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Fórum

Social Mundial
Cândido Grzybowski
Flávia Mattar
Gustavo Marin
João Sucupira
Leonardo Méllo
Silvana De Paula
Vívian Braga

Futebol globalizado
Fábio Sá Earp

Governo Lula
Sonia Fleury

Entrevista
Dodô da Portela

DEMOCRACIA VIVA 20
fev 2004 / mar 2004
E D I T O R I A L
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

P oderíamos resumir a missão da revista Democracia Viva em exercer uma vigi-


lância cívica sobre a democracia em ação entre nós. Democracia, para o Ibase, são direitos civis e
políticos plenos. É ideal e vivência prática, como processo em permanente construção da sociedade
historicamente possível. Olhar a democracia em ação é uma forma de agir criticando, para extrair o
máximo de possibilidades dos limites reais.
Este número da Democracia Viva vem a público num momento em que nossos contras-
tes como sociedade são mais evidentes, ao menos para os olhares mais atentos. Temos o carnaval, com sua
explosão de criatividade, alegria e afirmação de uma identidade político-cultural que ninguém consegue
destruir. Somos nós, curtindo-nos como somos, mesmo nas piores adversidades, como nos anos de
chumbo. Na outra ponta, temos os 40 anos do início da ditadura militar no Brasil. Por mais que queiramos
esquecer os tristes anos, como lembra Álvaro Caldas, ainda não botamos a limpo o que foi a tortura
política entre nós para extrair a delação. Estamos pagando caro por isso. A crônica de Alcione Araújo é
reveladora da tragédia que se abate sobre nós até hoje. Alguém, sem nome, vive e morre. Triste herança no
cotidiano de nossa atitude complacente com o terror. A democracia não aguenta isso.
Explorar e expor nossos contrastes é uma maneira de olhar sobre os limites e possibili-
dades da democracia. Seja no futebol – artigo de Fábio Sá Earp –, seja no samba – a entrevista com Dodô
da Portela e o ensaio fotográfico de Cris Veneu, com texto de Fátima Pontes. Mas a contradição opera no
centro do governo Lula, como mostra Sonia Fleury, alertando sobre os cenários possíveis neste segundo
ano de “esperança esgarçada”. O olhar irrequieto e provocador de Democracia Viva acolhe o discurso
radicalmente democrático em defesa do feminismo de Ana Veloso. No âmbito internacional, a edição traz
o artigo de Carlés Riera sobre Barcelona. A cidade espanhola é uma referência do urbanismo mundial, mas
ainda não conseguiu superar o desafio de alcançar uma integração onde caibam o respeito à diversidade e à
cultura, além da sustentabilidade
Logo após o Fórum Social Mundial, em Mumbai, na Índia, a revista do Ibase não
poderia deixar de ser o espaço de ressonância deste que é, indiscutivelmente, o portador da maior onda
de cidadania planetária jamais vista. No calor do que ocorreu em Mumbai, diferentes impressões de
pessoas do Ibase que lá estiveram. Além disso, temos o artigo de Gustavo Marin. Trata-se de um
primeiro balanço, feito no calor da hora, instigante, apontando fraquezas e debilidades do FSM em sua
quarta edição – mostrando de forma cabal uma vontade de superar o déficit de globalidade, tanto
geográfica como social. Voltaremos a Porto Alegre em 2005 precisando dar um enorme salto de qualidade
em termos propositivos e de estratégias de ação.
Democracia Viva atende claramente a sua missão, trazendo tudo isto para debate público.
Mas precisamos de vocês, leitor e leitora, para que exerçamos nosso papel de vigilantes da democracia.
Ajudem-nos na tarefa de radicalizar o debate entre nós! A democracia e a cidadania no Brasil agradecem.
S U M Á R I O
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas
2 ARTIGO Av. Rio Branco, 124 / 8º
20148-900 Rio de Janeiro/RJ
40 anos do golpe militar, um legado Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852 3517
que ainda paira sobre nós ibase@ibase.br - www.ibase.br
Álvaro Caldas
Conselho Curador
8 NACIONAL Regina Novaes
João Guerra
Governo Lula: continuísmo no
Carlos Alberto Afonso
primeiro ano. Mudanças no segundo? Moacir Palmeira
Sonia Fleury
Jane Souto de Oliveira

14 VARIEDADES Direção Executiva


Cândido Grzybowski
ENTREVISTA
Dodô da Portela
16 CRÔNICA Francisco Menezes
Réquiem sem lágrimas Jaime Patalano
Alcione Araújo Coordenadores(as)
Erica Rodrigues
18 ESPORTE Iracema Dantas
Grandezas e misérias do futebol Itamar Silva
globalizado João Roberto Lopes Pinto
Fábio Sá Earp João Sucupira
Leonardo Méllo
24 INTERNACIONAL Moema Miranda
Desenvolvimento urbano em Núbia Gonçalves

Barcelona: conflito de vizinhança Assessora da Direção Executiva


e consenso midiático Maria Nakano
Carlés Riera
DEMOCRACIA VIVA
CULTURA 30 PELO MUNDO ISSN: 1415149-9
Do samba
32 ENTREVISTA Diretor Responsável
Cândido Grzybowski
Dodô da Portela
Conselho Editorial
40 RESENHAS Alcione Araújo
Ari Roitman
44 FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Eduardo Henrique Pereira de Oliveira
Estamos mais fortes Jane Souto de Oliveira
Gustavo Marin Regina Novaes
Rosana Heringer
48 OPINIÃO IBASE Coordenação Editorial
Impressões de Mumbai Iracema Dantas
Cândido Grzybowski, Vívian Braga,
João Sucupira e Flávia Mattar Subeditor
Marcelo Carvalho
54 INDICADORES Revisão
Notas de pesquisa AnaCris Bittencourt
Silvana De Paula e Leonardo Méllo Marcelo Bessa

60 ESPAÇO ABERTO Assistentes Editoriais


Flávia Mattar
O discurso feminista na esfera pública Jamile Chequer
Ana Veloso
Produção
68 CULTURA Geni Macedo
Do samba Distribuição
Maria Edileuza Matias
76 ÚLTIMA PÁGINA
Marco Projeto Gráfico
Mais Programação Visual

Diagramação
Imaginatto Design e Marketing

Foto da Capa
Cris Veneu

Fotolitos
Rainer Rio

Impressão
SRG Gráfica e Editora

Tiragem
4.300 exemplares
democraciaviva@cidadania.org.br
ARTIGO
Álvaro Caldas*

40 anos do
golpe militar,
um legado
que ainda paira
sobre nós
Num angustiado ensaio escrito em meio ao espanto e à indignação provocados pela revelação

dos porões da guerra da Argélia, Jean Paul Sartre advertiu que “a tortura não é civil nem

militar, nem tampouco especificamente francesa, mas uma praga que infecta toda nossa

era”. Naquele momento, entre 1957 e 1958, a população francesa tomou conhecimento de

que o exército francês e as forças policiais da colônia empregaram sistematicamente a

tortura no enfrentamento aos rebeldes argelinos, levando a uma comoção generalizada.

FEV 2004 / MAR 2004 3


A R T I G O

Até então, no mundo chamado civilizado, embate que se trava numa prolongada ses-
acreditava-se que o emprego da tortura cons- são de suplícios, o torturador não se con-
tituía uma aberração de governos psicóticos tenta com a rendição da pessoa torturada,
e degenerados, sem apoio popular, bárba- e l e a l m e j a a p o s s a r- s e d e s u a a l m a ,
ros e déspotas não esclarecidos que viola- despojá-lo de seus valores, tornar-se dono
vam todos os princípios de justiça e de direi- de sua voz para transformá-lo num dela-
to universalmente reconhecidos. tor. O carrasco sevicia, humilha e adminis-
A praga antevista por Sartre alastrou- tra a dor para arrancar uma informação,
se na década seguinte. Dessa vez, tendo os num sádico ritual que pode terminar com
governos ditatoriais da América Latina como um cadáver em suas mãos.
centro de uma nova fase de expansão e re- No Brasil, ainda não fizemos uma dis-
crudescimento da tortura como método ro- cussão para passar a limpo essa história, o
tineiro e institucionalizado de repressão pra- que significa que estamos aptos a repeti-la,
ticado pelo Estado. Esses governos contavam como de fato se repete país afora. Relatório
com a cobertura e o ostensivo apoio técnico recente da Organização das Nações Unidas
e financeiro da CIA, agência do governo nor- (ONU) confirma que a tortura policial corre
te-americano e de outros Estados liberal-de- solta nas delegacias de polícia e penitenciá-
mocráticos, todos considerados civilizados. rias do país.
Até mesmo o know-how francês adquirido No Rio, vale lembrar dois casos de im-
na Argélia foi transferido. pacto registrados pela imprensa. Em outu-
Gestada nos po- bro do ano passado, Chan Kim Chang, co-
rões da ditadura militar, merciante chinês naturalizado brasileiro, foi

Pesquisa realizada essa infecção constitui


um dos seus legados
preso no aeroporto internacional Tom Jobim
e levado por agentes federais para o presí-
mais nocivos à socieda- dio Ary Franco. Três dias depois, foi deixado
pelo Datafolha de brasileira; seus tentá- em coma no hospital Salgado Filho. Para a
culos criaram raízes e se polícia, o chinês causou uma lesão em si
publicada em espalharam, aproveitan- mesmo. Policiais suspeitos foram afastados
do-se do ambiente pro- de suas funções, mas as investigações ain-
fevereiro deste pício ao abuso de auto- da não chegaram ao fim e à punição dos
ridade, à impunidade, à policiais delinqüentes. Em outro caso, ain-
ano revelou que corrupção e à violência
policial. A ditadura du-
da mais recente, o estudante de fisioterapia
Rômulo Batista de Melo, 21 anos, foi preso

24% da população rou mais de 20 anos.


Parte do seu acervo de ar-
no dia 21 de janeiro de 2004 em Cabo Frio,
sob acusação de roubo de carro. Seis dias
depois, seu corpo, com marcas de tortura e
paulistana admite bitrariedades com muitos
dos seus crimes – inclu- sevícias, foi entregue à família. Relatório
indo a localização dos policial informa que ele causou as lesões
a prática de corpos dos desapareci- em si mesmo. Quem não se recorda de que
dos políticos –, continua o jornalista Wladimir Herzog, assassinado
tortura física até hoje trancada nos ar- pelo DOI-Codi em São Paulo, em outubro
quivos militares. 1975, foi dado como suicida?
para que pessoas Quando se fala Os casos de tortura e morte inte-
em tortura, não se trata graram-se à rotina das delegacias de polí-
suspeitas de desmandos de meia
dúzia de policiais e ofi-
cia, com graves conseqüências para a so-
ciedade. Pesquisa realizada pelo Datafolha

confessem ciais subalternos. Práti-


ca institucionalizada
publicada em fevereiro deste ano pela Folha
de S.Paulo revelou que 24% da população
paulistana admite a prática de tortura físi-
seus crimes pelo regime ditatorial, a
tortura tornou-se um ca para que pessoas suspeitas confessem
poderoso instrumento crimes. Num país que manteve o regime
da política repressora do de escravidão até o fim do século XIX, a
Estado, que se provou eficiente e eficaz, à aberração da tortura pode vir a se tornar
custa de muitas vidas, de centenas de pesso- aceitável, diante de uma política de Esta-
as mortas e desaparecidas, de terríveis se- do que ora se omite, ora a utiliza para seus
qüelas, físicas e morais. No solitário e abjeto fins ilegítimos.

4 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
40 ANOS DO GOLPE MILITAR, UM LEGADO QUE AINDA PAIRA SOBRE NÓS

Barbárie em questão
A guerra da Argélia reabriu uma ferida. As fossem capazes de dependurar um prisio-
primeiras vítimas da tortura naquele país fo- neiro no pau-de-arara. Abriu-se um de-
ram os revolucionários árabes que lutavam bate nacional, envolvendo políticos, sin-
pela independência, ou seja, os estrangeiros, dicalistas, jornalistas e intelectuais do
os “outros”, os negros, os oprimidos, pon- porte de Sartre e de Albert Camus, este
do em xeque o problema geral das políticas um pied noir, nascido na Argélia. A im-
de colonização européia. A incômoda pre- prensa teve papel relevante, contribuin-
sença da barbárie no centro da Europa cau- do para revelar a extensão e gravidade
sou escândalo e o caso teve enorme reper- dos fatos, com a comprovação de que as
cussão. Em grande parte porque o autoridades francesas, militares e mem-
ressurgimento da tortura no século XX era bros da polícia utilizaram a tortura não
visto como um fenômeno confinado e res- apenas contra argelinos mas também con-
trito a algumas formas de governos ditatori- tra cidadãos e cidadãs franceses.
ais, de características aberrantes e No mesmo ensaio, que serviu de prefá-
manipuladoras, como foram os casos da Ale- cio ao libelo “La question”, de Henri Alleg,
manha nazista e a selvageria stalinista na citado no livro Tortura, do historiador nor-
União Soviética e seus estados satélites. te-americano Edward Peters, Sartre
A França levantou-se, indignada. Como exteriorizou o seu horror:
fora possível chegar até aquele ponto? Em 1943, na rua Lauriston, o quar-
Após 1957, quando as denúncias se in- tel-general da Gestapo em Paris, os fran-
tensificaram na imprensa, a mobilização ceses gritavam de agonia e dor e toda a
de repúdio da sociedade cresceu e contri- França podia ouvi-los. Naqueles dias as
buiu para a queda da Quarta República e, conseqüências da guerra eram incertas
logo a seguir, para a independência da e não queríamos pensar no futuro. Ape-
Argélia, em 1962. O povo francês orgu- nas uma coisa parecia impossível em
lhava-se do caráter humanitário e legal de quaisquer circunstâncias: que algum dia
suas instituições e não estava preparado homens agindo em nosso nome fizes-
para acreditar que oficiais de seu exército sem outros gritar daquela forma.

Museus do terror
no 1 o Batalhão de Polícia do Exército, rua
Na América Latina, o violento legado dos anos Barão de Mesquita, na Tijuca, com os fantas-
de terror com seu séqüito de tortura, assassi- mas que habitam seus porões.
natos, execuções e desaparecimentos perma- Não tivemos um movimento de massa
nece à sombra e ainda não foi inteiramente de repúdio à praga da tortura porque não se
revolvido. Com o fim das ditaduras militares deu à opinião pública informações sobre a
no Brasil, Uruguai, Chile e na Argentina, dra- profundidade da infecção. A covardia e os
mas pessoais foram expostos, mas a ação cri- interesses de uma parte da sociedade, que
minosa e terrorista dos Estados continua en- transitou da ditadura para a democracia man-
coberta. São segredos militares que tendo postos no poder e nas Forças Arma-
permanecem fechados. das, e uma imprensa que não se empenhou
Há indícios de que os ventos come- em recuperar esse passado maldito contri-
çam a mudar na Argentina. O presidente buíram para que o povo brasileiro, e demais
Néstor Kirchner anunciou que o prédio da povos latino-americanos, não tivessem essa
temida Escola de Mecânica da Marinha informação, como a população francesa pôde
(Esma), principal centro de tortura durante a ter no caso da Argélia.
ditadura, será transformado em museu para Aqui não se criam recordações, é uma
preservar a memória das pessoas presas polí- terra sem coisas passadas. As bandeiras de de-
ticas mortas e desaparecidas. Exemplo que o núncia, os cartazes com as pessoas mortas e
governo brasileiro poderia seguir, transfor- desaparecidas e o grito “tortura nunca mais!”
mando em museu e abrindo ao público as continuaram como se ainda ditadura fosse, nas
instalações do DOI-Codi no Rio de Janeiro, mãos de grupos politizados, entidades de

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A R T I G O

* Álvaro Caldas anistia, mães, avós e familiares, ou seja, em os e soldos extras, benefícios familiares,
Jornalista, professor e
seus pequenos guetos, como se ainda vigo- além de clandestinidade, impunidade, pro-
escritor. Autor de rasse o regime de opressão e essas fossem teção e verbas secretas. Também foram trei-
Tirando o capuz bandeiras da esquerda, de alguns nados em cursos e escolas especializadas, uma
(Codecri, 1980), que revanchistas, e não uma questão de interesse delas mantida pela CIA no canal de Panamá.
será relançado no de toda a sociedade. A ainda recente experiência francesa na guer-
primeiro semestre de Já diziam os gregos que, diante de tra- ra da Argélia foi muito bem-vinda. O regime
2004 pela editora gédias e crueldades incomuns, as pessoas, destinou a esses seletos grupos de foras-da-
Garamond para ganhar coragem, sempre costumam re- lei espaços invioláveis dentro de seus quar-
petir que “já viram coisas piores”, quando de- téis e em delegacias, com direito a casas e
veriam dizer que “o pior está por vir”. Entre sítios clandestinos, como a famosa “Casa do
nós, a imagem da tortura praticamente ficou terror”, em Teresópolis.
reduzida a um interrogatório de delegacia Todos os “aparelhos” eram devidamen-
policial, durante o qual são aplicadas rotinei- te equipados com os prosaicos e terríveis ins-
ramente umas porradinhas, uma extravagân- trumentos necessários a seu infame e árduo
cia do Dops praticada por delegados. O mais trabalho. Poucas pessoas no Brasil conhecem
famoso deles, Sérgio Fleury, um facínora cíni- de fato essa história. Quando são informados,
co, morreu prematuramente, ainda durante a os jovens abrem a boca horrorizados.
ditadura, num estranho Na Casa do terror, os carrascos não te-
acidente em seu barco, riam testemunhas. Somente os deuses e algu-

Todos os “aparelhos” para satisfação dos res-


ponsáveis maiores, os
mas pessoas desmemoriadas sobreviventes da-
quelas oficinas de tortura. Mas tudo se passou
militares, que haviam cri- muito perto, do nosso lado. Como na rua
eram devidamente ado o monstro. Lauriston, em Paris, onde franceses gritaram
de agonia e de dor, muitos brasileiros grita-
equipados com os Tudo se passou
ram de dor e agonia no 1o Batalhão da PE, rua
Barão de Mesquita, centro de operações do
prosaicos e terríveis muito perto
DOI-Codi no Rio, e também nos porões de uma
Vista sob essa ótica de- tranqüila delegacia policial na rua Tutóia, bair-
instrumentos formada pelos tempos
de censura, a tortura vi-
ro do Paraíso, em São Paulo, sede da temível
Oban (Operação Bandeirantes), ou em tantos
necessários a seu rou sinônimo de “maus
tratos”, um detalhe me-
outros lugares no país onde essa praga con-
fortavelmente se instalou.

infame e árduo nor da “guerra suja”, ex-


pressão que iguala todas
E com ela o sádico, cruel, covarde e
rotineiro exercício da macabra exploração do
as pessoas na mesma corpo nu da pessoa torturada pelo tortura-
trabalho. Poucas vala, torturadores e com- dor, à procura dos pontos sensíveis de dor e
batentes, afinal anistia- de sua rendição física e moral.
pessoas no Brasil das juntas. Porém, a di- Naquela assombrada casa de pessoas
tadura brasileira e suas mortas onde reina o terror e o tempo não pas-
conhecem de fato congêneres institucio- sa, o torturador busca infatigavelmente extra-
nalizaram, de fato, a tor- ir – esse é o verbo – aquela informação que a
essa história. tura e a utilizaram como
uma poderosa arma a
pessoa torturada resiste em lhe dar, numa pe-
nosa negociação cujo preço é a dor. Uma bru-
Quando são serviço do Estado para
difundir o terror, o
tal negociação que se desenrola em meio a
gritos, choques, porradas, execuções simula-

informados, os medo, obter informa-


ções e eliminar seus ad-
das, queimaduras, afogamentos, estupros, fo-
bias, humilhação, desespero, suor, dejetos e
versários políticos. E o sangue. Agonia e morte de muitas pessoas,
jovens abrem a boca fez com grande eficiên- seus cadáveres.
cia, numa ação integra- Esse é o passado que precisamos pas-
horrorizados da denominada Opera- sar a limpo. Para livrar a sociedade dessa pra-
ção Condor. ga, é indispensável remover os escombros dei-
Os oficiais mili- xados pela ditadura. Quarenta anos decorridos
tares recrutados para compor suas equi- desde o golpe militar de 1964, o abominável
pes receberam tratamento de elite, salári- legado ainda paira sobre nós.

6 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
www.cidadetransparente.org.br

O que era segredo,


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FEV 2004 / MAR 2004 7


NACIO
NACIONAL
Sonia Fleury*

Governo
Lula:
O presidente Lula foi eleito por uma ampla coalizão, que somou aos votos tradicionais

da esquerda os de outros setores descontentes com o modelo político liberal. Neste

último grupo, incluem-se empresariado, industriais e a classe média. Sob o lema “A esperan-

ça venceu o medo”, o novo governo tomou posse prometendo mudanças com seguran-

ça, demonstrando o amadurecimento político do líder sindical que organizou a resistência

da classe operária aos governos militares e fundou o Partido dos Trabalhadores (PT).

Internacionalmente, a vitória de um governo de esquerda no Brasil representou a possi-

bilidade de construção de uma alternativa à globalização subordinada aos interesses da

especulação financeira.

A vitória de Lula só pode ser explicada como resultado da política liberal implantada

pelo governo anterior, que provocou um desmonte simultâneo nos canais de representação da

burguesia e da classe trabalhadora. É nos marcos da crise de hegemonia do modelo liberal

vigente na década de 1990 que se constrói um projeto alternativo de poder. A eleição de

8 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
NAL
continuísmo no
primeiro ano.
Mudanças
no segundo? *

Lula representaria, portanto, a possibilida- concentração da renda, fato que tem geran-
de de unir os interesses do capital produtivo do uma explosão sem precedentes da violên-
e do sindicalismo em torno de um projeto cia urbana.
de desenvolvimento nacional, alterando a
atual correlação de forças e, assim, reduzin-
Economia vulnerável
do a margem de manobra do capital finan-
ceiro e sua voracidade devastadora da eco- Neste contexto, e para gerar condições de
nomia nacional. governabilidade, armou-se uma ampla coa-
O novo governo recebeu uma herança lizão liderada por dirigentes do PT, mas com
econômica amarga de seus antecessores, com uma composição diversificada, que se refle-
a economia crescendo cerca de 1% ao ano, tiu na contraditória composição do Ministé-
incapaz, portanto, de criar empregos para rio de Lula. Nesse sentido, é lapidar a afir-
uma nova geração de trabalhadores e traba- mação de frei Beto, assessor do presidente,
lhadoras. O crescimento do desemprego e da ao afirmar que o PT havia chegado ao gover-
informalidade no mercado de trabalho, a vul- no, mas não ao poder. Mesmo assim, a es-
nerabilidade da economia, o crescimento ex- peculação financeira se fez sentir imediata-
ponencial da dívida como porcentagem do mente após a eleição, gerando uma sensação
Produto Interno Bruto (PIB), o desmonte do de perda de controle da estabilização eco- * Texto apresentado na jorna-
da “Um ano de governo Lula:
aparato estatal desenvolvimentista por meio nômica gerada a altos custos no governo oportunidades e desafios”,
de privatizações dos ativos públicos e a inca- anterior, mas mantendo a economia comple- promovido pela Escola Brasi-
leira de Administração Públi-
pacidade de desenvolver mecanismos de re- tamente vulnerável. Apesar de Lula ter se ca e de Empresas (Ebape) –
Fundação Getúlio Vargas,
gulação foram legados da política liberal. O apresentado como candidato responsável, Universitat Pompeu Fabra e
investimento social realizado, capaz de me- que respeitaria os contratos firmados e man- Fundación Cidob, em Barcelo-
na, Espanha, em 1 o de dezem-
lhorar os indicadores sociais, não reduziu a teria a estabilidade financeira, a especulação bro de 2003.

FEV 2004 / MAR 2004 9


N A C I O N A L

financeira que se seguiu à sua vitória fez com funcionalismo público. Dessa forma, deixou
que o dólar disparasse e a estimativa inter- de formular uma proposta para as carreiras
nacional do risco de investir no Brasil subis- do Estado e perdeu a oportunidade de criar
se vertiginosamente. mecanismos de inclusão no sistema de pro-
A opção por uma política econômica teção social de 60% da força de trabalho que
ortodoxa, dando continuidade àquela assu- se encontra no mercado informal de traba-
mida pelo governo anterior em consonância lho. Conseqüentemente, promoveu a ruptu-
com as metas acordadas com o Fundo Mone- ra com aliados históricos, como sindicatos e
tário Internacional (FMI), foi adotada com vis- funcionalismo público, e gerou fissuras na
tas a estabilizar a economia e restaurar a cre- sua base parlamentar de apoio, passando a
dibilidade ameaçada no mercado financeiro depender dos votos da oposição para apro-
internacional. Sem recur- vação das reformas.
sos para investir em po-
Foi marcado líticas públicas, o gover-
Ano de tensões
no se dedicou a cortar
um tento pelo gastos e aumentar as ex-
portações, aumentando o
O primeiro ano do governo Lula caracterizou-
se por continuísmo na política econômica or-

governo superávit primário, em


um esforço gigantesco
todoxa, inovações no estilo e instituições po-
líticas, impasses em virtude das contradições
para gerar divisas e pagar internas ao governo e uma ousada política
ao convocar juros da dívida pública. externa. As primeiras tensões se fizeram sen-
As conseqüências tir no interior do próprio PT, caracterizado
governadores foram devastadoras: o tanto pela disciplina partidária como por seus
desemprego atingiu ní- compromissos ideológicos e programáticos,
para negociar veis assustadores, a ao ter de apoiar medidas de reforma encami-
economia entrou em re- nhadas pelo presidente ao Congresso, em
as reformas. cessão, a indústria ficou franca contradição com todo o ideário políti-
estagnada, empresariado co daquele partido. As opções de solidarizar-
No entanto, e classe trabalhadora já
não suportavam a absurda
se com o governo, crescer como partido e
descaracterizar-se ideologicamente ou

a recessão taxa de juros e a demanda


diminuiu no mercado in-
desidentificar-se com o programa governa-
mental e isolar-se são tensões permanentes
terno. Nesse contexto, o desse dilema. Dadas as características do pre-
econômica governo encaminhou ao sidencialismo de coalizão vigente no sistema
Congresso as propostas de multipartidário do Brasil, associado a baixo
aumentou reforma previdenciária e compromisso programático dos partidos, po-
tributária, ambas voltadas rém com fortes controles das bancadas pelas
a tensão política para promoção do ajuste lideranças no Congresso, a aprovação das pro-
fiscal e aumento da cre- postas do governo depende da negociação
dibilidade internacional com as lideranças parlamentares. Para tanto,
do governo. O processo de negociação des- é crucial a posição articuladora desempenha-
sas reformas evidenciou algumas das princi- da por líderes do PT no Congresso, fortemente
pais qualidades e deficiências do governo. Por identificados com as propostas governamen-
um lado, o governo Lula inovou ao instituir tais, mas em franca contradição com as bases
diferentes instâncias de negociação das re- do partido e com os movimentos sociais que
formas, seja com a sociedade civil, no Conse- tradicionalmente o apoiaram.
lho de Desenvolvimento Econômico e Social, O governo também procurou cons-
seja com os governos estaduais. Dessa for- truir sua maioria por meio da negociação com
ma, deu maior densidade ao processo demo- governos estaduais, reconhecendo a impor-
crático, reduzindo as pressões de congressis- tância política que tradicionalmente tiveram
tas por barganhas de cargos e verbas públicas no controle das bancadas estaduais no Con-
para aprovar as reformas. Por outro lado, pri- gresso. Foi marcado um tento pelo governo
sioneiro da armadilha da política econômica ao convocar governadores para negociar as
e do mercado financeiro internacional, redu- reformas. No entanto, a recessão econômica
ziu a reforma da seguridade social a um ajus- aumentou a tensão política, com os gover-
te fiscal, diminuindo os gastos estatais com o nos estaduais reivindicando compensações

10 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
GOVERNO LULA: CONTINUÍSMO NO PRIMEIRO ANO. MUDANÇAS NO SEGUNDO?

financeiras por meio da reforma tributária, a Constituição Federal de 1988. Em muitos


de tal forma que essa negociação terminou momentos, evidencia-se uma perspectiva
sendo inócua e os conteúdos centrais da re- que identifica desenvolvimento com cresci-
forma foram postergados. mento e cidadania com consumo, retroagin-
A perspectiva de gerar uma nova insti- do em relação ao padrão constitucional que
tucionalidade, capaz de permitir espaços pú- reconhece os direitos de cidadania e inova
blicos de negociação e concertação, marcou na criação de mecanismos de co-gestão das
como inovadora a gestão Lula no seu primei- políticas sociais.
ro ano de governo. A construção de um novo
contrato social, capaz de impulsionar um pro-
Morte súbita
jeto de crescimento nacional com inclusão
social requer a formação de um novo bloco Se o primeiro ano foi ca-
dirigente para o país, segundo palavras do racterizado pela continui-
ministro Tarso Genro. Para tanto, o governo
Lula adotou uma estratégia de concertação
dade nas políticas econô-
micas e sociais, caberia
A perspectiva de
social, inovando nos mecanismos institucio-
nais de negociação e argumentação entre so-
perguntar quais as chan-
ces de que uma ruptura
gerar uma nova
ciedade civil e governo, que, no entanto, se seja introduzida a partir
encontram limitados pela política de conten- do segundo ano de go- institucionalidade,
ção do gasto público estatal. verno. Se a estratégia de
Cada vez mais, as lideranças compro- dar continuidade foi capaz de permitir
metidas com um projeto nacional estão con- justificada como a única
vencidas de que os instrumentos de reativa- forma de evitar a morte espaços públicos
ção da economia, capazes de induzir o súbita do governo, a in-
crescimento, deveriam ser o gasto e o crédito
públicos, combinados com a redução subs-
capacidade de implemen-
tar as mudanças para as
de negociação
tancial da taxa de juros e a estabilização da
taxa cambial. Os eixos para os quais deveriam
quais a população lhe
atribuiu um mandato se-
e concertação,
ser orientadas essas medidas seriam os da
ampliação do superávit comercial e os investi-
ria razão suficiente para
caracterizar a morte lenta
marcou como
mentos públicos na infra-estrutura econômi- do governo.
ca e social. O próprio governo, em seu plano À medida que as inovadora
plurianual, assume essa mesma perspectiva, expectativas populares
em franco desacordo com a política posta em não se realizaram, houve a gestão Lula
prática pelo Banco Central e pela Fazenda, aumento da pressão dos
cujos cortes orçamentários têm como esteio movimentos sociais, es- no seu primeiro
o acordo com o FMI. pecialmente dos setores
Contradições também se acentuam na
área relacionada à produção agrícola e ao meio
vinculados a trabalhado-
res e trabalhadoras sem
ano de governo
ambiente, com relação à liberação ou não da terra e, na área urbana, a
soja transgênica para plantação e comerciali- sem teto. O recrudesci-
zação. Em um lado, encontra-se o Ministério mento dos conflitos com
da Agricultura, cujo titular representa os inte- morte no campo, das invasões das terras in-
resses do setor agroexportador, atual respon- dígenas, da violência urbana e do desrespei-
sável pelo superávit na balança comercial, e, to aos direitos humanos cobra medidas ime-
no outro lado, a ministra do Meio Ambiente, diatas para buscar reduzir a secular e
Marina Silva, figura histórica das lutas dos mo- estrutural iniqüidade na distribuição tanto da
vimentos sociais nessa área. renda como dos bens públicos no Brasil.
Todas essas tensões implicaram um Impossibilitado de atuar de forma efe-
congelamento da gestão pública, mesmo em tiva na redistribuição da renda, em função
áreas prioritárias para o governo, por serem das restrições econômicas das quais não con-
emblemáticas, como o programa Fome Zero. segue se libertar, o governo tem buscado mar-
Também nesse campo social o governo atual car sua gestão por meio de medidas de com-
segue a perspectiva de refilantropização da bate à corrupção, construção de uma política
política social, à margem da institucionali- e um sistema nacional de segurança pública
dade das políticas universalistas criadas com e uma política externa autônoma.

FEV 2004 / MAR 2004 11


* Sonia Fleury Na política externa, o Brasil enfrentou- lado, sem uma redução dos juros e sem au-
Professora da Escola se com a questão da Área de Livre Comércio mento do investimento público em expansão
Brasileira de das Américas (Alca), cuja agenda inicial favo- da infra-estrutura econômica e social, será
Administração Pública e recia os interesses dos Estados Unidos em de- difícil viabilizar uma retomada consistente do
de Empresas da trimento dos demais países. Com habilidade, crescimento.
Fundação Getúlio a diplomacia brasileira negocia acordos com Um cenário oposto, pessimista, vê na
Vargas (FGV), onde
países membros do Mercosul em uma estra- continuidade da política econômica ortodoxa
coordena o Programa
tégia que reduz a hegemonia norte-america- a manutenção das condições de asfixia da ca-
de Estudos da Esfera
na na Alca, ao transferir temas polêmicos para pacidade produtiva nacional, com aumento do
Pública, e membro do
Conselho de
negociações conjuntas ou multilaterais. No desemprego e do desespero. Dada a enorme
Desenvolvimento entanto, a capacidade de dar continuidade a solidariedade das lideranças sindicais e parti-
Econômico e Social. essa política externa autônoma dependerá, dárias com o presidente Lula, poderia ocorrer
sfleury@fgv.br sem dúvida, da legitimidade do governo no um aprofundamento do distanciamento en-
exercício interno do poder. tre bases e lideranças, que já se fez sentir por
ocasião da reforma previdenciária. Nesse caso,
os canais democráticos de canalização de in-
Possíveis cenários
teresses e agregação de preferências se en-
O ano de 2004 será um ano importante por contrariam com o sentido invertido, de cima
várias razões: em primeiro lugar, porque já para baixo, deslegitimando não só o governo
não se poderá tributar a política atual à he- como também as instituições da democracia.
rança recebida do governo anterior; em se- O “estouro da boiada” ocorreria quando as
gundo, porque será ano de eleições muni- massas passassem a atuar por conta própria, à
cipais; e, em terceiro, porque existe uma revelia das lideranças, gerando uma situação
forte mobilização da sociedade civil, tanto de ingovernabilidade.
fruto dos mecanismos de participação já Um terceiro cenário identifica a ma-
existentes como daqueles introduzidos por nutenção da política econômica ortodoxa
este governo. como um limite para que o governo possa
O primeiro cenário possível é aquele atender às expectativas que o elegeram. Nes-
desenhado pelo governo, no qual o país sai- se cenário, os setores organizados da socie-
ria da recessão e iniciaria um ciclo virtuoso de dade, empresariado, sindicalistas, movimen-
crescimento econômico, com investimentos tos sociais, partidos políticos e a própria
partilhados por Estado e iniciativa privada. burocracia passariam a cobrar, cada vez mais,
Esse cenário de crescimento econômico é di- os compromissos assumidos em campanha.
visado por alguns em relação aos indicado- O que diferencia esse cenário do anterior não
res de reaquecimento da produção industrial é a identificação da manutenção da atual po-
nos dois últimos meses, tanto do setor ex- lítica econômica como restritiva, mas a con-
portador como daquele responsável pela pro- vicção de que as instituições democráticas
dução de bens para o consumo do mercado não serão afetadas. Ao contrário, o revigora-
interno. A suposição de manutenção de uma mento das demandas sociais passaria pelos
política macroeconômica ortodoxa, com al- canais institucionais, fortalecendo-os. Consi-
guma pequena flexibilidade dada pelas con- derando que este é um governo que sabe res-
dições de negociação do acordo com o FMI ponder às demandas e pressões políticas, es-
seria compensada por uma política meso- pera-se que possa redirecionar sua política
econômica heterodoxa, com mecanismos que econômica em consonância com as expecta-
já estão sendo implementados de expansão tivas sociais.
do crédito popular. O ano seguinte seria ain- Todos esses cenários serão fortemen-
da de política de contenção e de arrumação te afetados pela conjuntura econômica in-
da casa, com o aprofundamento da revisão ternacional, pelo prestígio do governo no
do papel das agências reguladoras e fortale- exterior e pelas condições de governabilida-
cimentos dos instrumentos de planejamento de na América Latina. Internamente, uma
e investimento público. combinação do primeiro cenário com o ter-
A viabilidade de ser esse um cenário ceiro seria mais provável que a ocorrência
mais ou menos positivo e provável depende- do segundo. Do desempenho da economia
rá da capacidade, a ser demonstrada, de rea- e da reação da sociedade organizada depen-
ção do setor produtivo, especialmente daque- derá o grau das mudanças no segundo ano
le que absorve mais mão-de-obra. Por outro do governo Lula.

12 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
FEV 2004 / MAR 2004 13
V A R I E V
Flávia Mattar
A
Colaboraram: Elaine Ramos e Jamile Chequer
R I E

Chope com cidadania Trovador do samba Bota pra quebrar

A ONG gaúcha Nuances – grupo pela Angenor de Oliveira (1908–1980) Mulheres quebradeiras de coco
livre orientação sexual – iniciou em – que ficou conhecido como Car- babaçu da região do Médio Mearim,
Porto Alegre a distribuição de men- tola por ter o hábito, quando pe- no Maranhão, acionaram o Institu-
sagens conscientizadoras em bola- dreiro, de usar um chapéu-coco to Brasileiro de Meio Ambiente e
chas personalizadas de chope. De- para que o cimento não grudasse dos Recursos Naturais Renováveis
senhos e cores chamativas foram em seus cabelos –, ao longo de 72 (Ibama) para denunciar os proble-
utilizados como linguagem visual. anos de vida, compôs cerca de 500 mas que a produção de carvão com
Mais de 30 mil já estão decorando canções, sozinho ou em parceria. a queima de cocos inteiros poderi-
as mesas de bares, boates, saunas, A grandeza de seus versos e melo- am acarretar. Segundo a Associação
videolocadoras, livrarias etc. dias é tamanha que até hoje suas em Áreas de Assentamento no Es-
Foram criados quatro modelos músicas são regravadas por tado do Maranhão (Assema), a em-
bem-humorados de bolachas. Duas diversos(as) intérpretes. presa Cosima, que nega as acusa-
mulheres, segurando suas escovas Além do legado de suas com- ções, já teria instalado 40 fornos
de dentes, trazem a mensagem posições, o mestre ainda nos dei- no município de Lago da Pedra.
“Quem casa quer casa! – Os direi- xou a escola de samba Estação Em termos ambientais, as mulhe-
tos civis são de todas e todos”. Um Primeira de Mangueira, à qual res chamaram a atenção para as der-
homem, com uma garrafa em uma não só deu o nome como tam- rubadas e o envenenamento das pal-
das mãos e uma camisinha na ou- bém determinou suas cores. Para meiras de coco babaçu e para o fato
tra, observado por olhares ‘gulo- quem dizia que o verde e rosa não de não existir legislação que proteja
sos’ de outros homens, passa o se- combinavam, retrucava: “Ora, o esse bem natural. Em reunião com o
guinte recado: “O de bêbado não verde representa a esperança, o Ibama, ficou acordado que deputados
tem dono, mas tem camisinha! – rosa representa o amor. Como o federais e estaduais seriam procura-
Sexo seguro é prazer sem medo”. amor pode não combinar com a dos pelas quebradeiras para tentar
Em uma referência às dificuldades esperança?”. acabar com essa lacuna legal.
enfrentadas por homossexuais Mesmo tendo declarado à re- Também estaria em jogo o sus-
para a adoção de crianças, foi fei- vista Manchete (3/12/1977) que tento de muitas chefes de família,
ta a brincadeira “Troque seu ca- “quem gosta de homenagem pós- que extraem subprodutos do coco
chorro por uma criança pobre! – tuma é estátua”, é impossível não babaçu para aumentar sua fonte de
Adoção é um direito cidadão”. E, continuar a reverenciar a sua renda. Produzem farinha do
para chamar a atenção contra o arte, patrimônio cultural brasilei- mesocarpo – que serve como com-
preconceito que ronda as relações ro. O Centro Cultural Banco do plemento alimentar –, óleo para
inter-raciais, existe a mensagem Brasil do Rio de Janeiro apresen- cosméticos e azeite comestível,
“Melancia com leite vai bem, tará, até 28 de março, o espetá- além de carvão, utilizando apenas
também! – Diversidade é democra- culo teatral Obrigado, Cartola a casca do coco. “A empresa tira a
cia. Bom proveito!”. (direção de Vicente Maiolino e possibilidade de as mulheres au-
texto de Sandra Louzada). O mu- mentarem a sua renda queimando
(51) 3286-3325
sical ganhou de presente samba os cocos inteiros, para a produção
www.nuances.com.br
inédito de Paulinho da Viola e de carvão em escala industrial”,
Hermínio Bello de Carvalho. Vale denuncia Maria de Jesus Brinjelo,
a pena conferir. coordenadora adjunta da Assema.

(21) 3808-2020 (98) 221-0462


comunicacao@assema.org.br

14 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
D A D E S
D A D E S

Arte kusiwa reconhecida Conferência contra Academia sertaneja


a fome
As expressões orais e o grafismo Será inaugurada em agosto a Uni-
dos(as) Waiãpi, que habitam terras A II Conferência de Segurança Ali- versidade Federal do Vale São
no Amapá, na divisa com a Guiana mentar e Nutricional, que aconte- Francisco (UFVSF), com sede em
Francesa, foram declarados patri- ce de 17 a 20 de março, em Olinda, Juazeiro (BA) e Petrolina (PE).
mônio oral e imaterial da huma- Pernambuco, cumprirá o impor- A nova universidade incentivará
nidade pela Organização das Na- tante papel de propor diretrizes projetos que visem à solução de
ções Unidas para a Educação, para um plano nacional sobre o problemas socioeconômicos que
Ciência e Cultura (Unesco). A in- tema. O evento acontecerá em um afetam a população pobre da re-
dicação partiu do Museu do Índio/ momento de decisões no país, gião do semi-árido.
Fundação Nacional do Índio como a discussão sobre o Plano O professor José Weber Freire
(Funai) e foi apoiada pelo Minis- Nacional de Reforma Agrária, Macedo, reitor da Universidade
tério da Cultura. novo Plano de Safra e as negocia- Federal do Espírito Santo e gestor
Registrada pelo Instituto do ções internacionais do acordo agrí- da implantação da nova federal,
Patrimônio Histórico e Artístico cola. Esses elementos terão boa declarou que a idéia é destinar 50%
Nacional (Iphan), desde dezembro influência nas discussões de cerca das vagas para candidatos(as)
de 2002, como Patrimônio Cultu- de 800 delegados e delegadas e de oriundos(as) de escolas públicas.
ral Brasileiro, a arte kusiwa revela 200 integrantes do governo e do Mas alerta que a decisão final fi-
padrões gráficos, com infinitas Conselho Nacional de Segurança cará a cargo do Conselho Federal
combinações, que são utilizados em Alimentar e Nutricional (Consea). de Educação.
pinturas corporais, trançados e de- “Espero que as diretrizes estabele- O concurso público para o
coração de artefatos. Os traços, cidas na conferência tenham um preenchimento do corpo docen-
representando animais e objetos do bom impacto nas definições do te será entre abril e junho. “Já
uso cotidiano, são feitos com tin- país”, anima-se Francisco Menezes, na seleção, o candidato a profes-
tas em cuja composição estão se- diretor do Ibase e integrante do sor da UFVSF deverá apresentar
mentes de urucum, gordura de ma- Consea. um projeto social a ser desenvol-
caco, suco de jenipapo verde e A conferência terá 17 grupos vido com os alunos na comuni-
resinas perfumadas. temáticos para o aprofundamento dade”, explica Macedo.
O status de patrimônio imaterial de um amplo leque de temas. Den-
da humanidade poderá proteger os tre os mais controversos, Renato
grafismos e saberes orais dos(as) Maluf, professor da Universidade
Waiãpi do uso abusivo da sociedade Federal Rural do Rio de Janeiro
não-indígena para fins comerciais (UFRRJ) e integrante do Consea,
e publicitários. Além disso, poderá destaca os transgênicos. “Certa-
elevar a auto-estima desse povo e mente é um ponto de debate e po-
o desejo dos(as) mais jovens de lêmica. O Consea tem uma posi-
continuar fortalecendo sua tradi- ção de favorecer o debate e
ção e expressão cultural. desejamos que a conferência tam-
bém seja assim”, diz.

FEV 2004 / MAR 2004 15


C R Ô N I C A

Réquiem nora-se a existência de testamento, ig-


nora-se se era eleitor. Causa mortis:

sem lágrimas indeterminada em razão de intensa car-


bonização. Médico atestante: Dr(a). Nilo
Jorge R. Gonçalves; Local do sepultamen-
to: Cemitério de Irajá. Declarante: Fabi-
Tenho em mãos o documento oficial de uma ano Silva dos Santos. Observações: Re-
página. No alto, em letras grandes em negrito, gistro feito a 01 dia do mês de agosto do
lê-se “República Federativa do Brasil” ano de 2003. Guia: 189 – 39ª DP. Eu,
encimando as Armas da República. Abaixo, [assinatura ilegível], declaro que o refe-
em letras menores, “Estado do Rio de Janei- rido é verdade e dou fé.
ro”. Em tipos manuscritos, lê-se “Mauro S. Ao acabar de ler isso, caro amigo ou
Dias”, encimando quatro linhas de letras mi- cara amiga, fiquei como você: pasmo, incré-
údas: “Registrador e Notário da Décima Quar- dulo, chocado. De alma aturdida e espírito
ta Circunscrição do Registro Civil das Pesso- desarrumado. O que pensar primeiro? Nem sei.
as Naturais e Tabelionato. Freguesia de Para começar, o primeiro impulso de brasilei-
Madureira – Sétima Zona. Matriz: Rua Dagmar ro: suspeitar da autenticidade do documento.
da Fonseca, 118 – Madureira. Filial: Rua Doze Porém, está na minha mão, e recebi de fonte
de Fevereiro, 427 – Loja A – Bangu”. Após limpa – jornalista que busca alguém com quem
triplo espaço, lê-se, em negrito: “Certidão de compartilhar sua perplexidade. É um docu-
Óbito”. Em seguida, o texto: mento autêntico e legal. Tem as Armas da
Certifico que à fl. 227 do livro n o: C-0182 República e está assinado pelo responsável
do registro de óbitos, sob o número de que, diz aqui, dá fé – tem, pois, fé pública.
ordem 85607, foi lavrado o óbito de um Mas, pensando bem, dá fé exatamen-
corpo falecido aos 30 dias do mês de ju- te de quê? De que nada sabia da criatura que
lho do ano de 2003, em hora ignorada, se foi? Da própria ignorância? Imagino que
no(a) rua Virgílio Filho s/no, Costa Bar- um atestado de óbito deveria informar quem
ros, do sexo masculino, filho de pais des- morreu, de que morreu, como é o corpo do
conhecidos, com a idade ignorada, pro- morto, seus parentes, endereço etc. Para que
fissão ignorada, Estado Civil ignorado, servirá um documento que informa que ig-
residência ignorada, natural de região nora tudo do morto e das circunstâncias da
ignorada. Ignora-se a existência de fi- morte? De tudo, restam apenas três informa-
lhos, ignora-se a existência de bens, ig- ções: homem, morreu, queimado.

16 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
O que pretendia a autoridade ao exarar Passou por aqui sem deixar rastros nem pe- Alcione Araújo
– como se diz no jargão dela – um tal docu- gadas, partiu sem deixar vestígio. Passou, e alcionaraujo@uol.com.br
mento? Tripudiar? O único documento que o mundo não deu pela sua presença.
restou do morto registra a sua morte e nada Ninguém sentiu a sua falta? Será que
da sua vida. Talvez seja rotineira a macabra não tinha sequer parentes distantes? Não
ironia. Para a burocracia oficial, que costuma é nada, não é nada, era um homem. Esteve
exigir que o cidadão vivo prove que existe, entre nós e partiu sem que tivéssemos a
deve ser natural que um morto não tenha pro- chance de ouvi-lo, abraçá-lo, quem sabe
vas de que existiu. Há, porém, um insofismável convidá-lo a sentar-se à mesa, como se faz
corpo. Ele grita no seu silêncio. com um irmão.
Para mim, para você, caro leitor ou cara Será que ninguém o amou? Ninguém
leitora, e para o mundo, alguém morreu e não o amava? Esposa, namorada, ninguém? Um
sabemos quem. Como pode isso acontecer na vizinho não lhe teria acenado nunca? Um
era da Internet, em plena sociedade de infor- cão não lhe teria seguido os passos alguma
mação? Acredite: agora que o sei, em absolu- vez, ainda que escorraçado em seguida? Não
ta indigência e total anonimato, surge imensa é nada, não é nada, era um ser humano.
vontade de tê-lo conhecido. Ninguém indagou dos seus sonhos,
Ninguém registrou queixa do desapa- desejos, saudades? Ninguém mirou o fundo
recimento nem foi reclamar o corpo ou dos seus olhos (azuis? Verdes? Negros? Cas-
identificá-lo. Não é nada, não é nada, era um tanhos?) para saber da sua alma – pelos
cidadão. Seria branco? Negro? Índio? Japo- olhos, opacos, brilhantes, radiantes, caloro-
nês? Seria um brasileiro? Estrangeiro, incóg- sos, tristes, frios, a alma fala. Será que via-
nito no Brasil? Um espião? Será que morreu jou, visitou cidades, fez amigos, divertiu-se?
queimado – viveu o inferno na Terra – para Seria analfabeto e só viu a montanha, a ár-
não restar despojos? Esteve entre nós vore, a água do rio, ou foi um iniciado que
deliberadamente incógnito? entendeu a metáfora do mundo que repousa
Ninguém verteu uma lágrima em sua na vida letrada?
memória. Não se ouviu um “Descansou, coi- Um óbito não basta atestar. Há que
tado”, ou “É uma grande perda”, ou ainda investigar, revelar, desvelar, conhecer, res-
“Que Deus o tenha”. Quem seriam seus pais, peitar. Não é nada, não é nada, num só cor-
seus irmãos? Não teria uma família? Foi sem po carbonizado morreram um cidadão, um
deixar filhos, netos, nenhuma descendência? indivíduo, um homem, um ser humano. E um
Não é nada, não é nada, era um indivíduo. pouquinho de todos e todas nós.

FEV 2004 / MAR 2004 17


ESPOR
ESPORTE
Fabio Sá Earp*

Grandezas
e misérias do
futebol
globalizado
O futebol é uma das poucas atividades em que se cumpriu integralmente a promessa da

globalização – a extinção das fronteiras para o capital e para todas as mercadorias, incluindo

a força de trabalho. Jogadores de futebol pertencem, juntamente com cientistas, artistas,

executivos internacionais e alguns poucos outros profissionais, ao núcleo de privilegiados

que consegue ganhar a vida em um mercado verdadeiramente mundial. Esse é um segmen-

to do mercado de trabalho caracterizado pela meritocracia, em que as firmas precisam de

trabalhadores e trabalhadoras capazes de criar o novo. Enquanto cientistas e executivos são

18 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
TE
produzidos em série pelas universidades, prestígio não se restringe aos atletas que
artistas e jogadores são artesãos dotados atuam no exterior; as seleções brasileiras
de habilidades inatas do tipo que “não se vivem o melhor período de sua história.
aprende na escola”, as quais lhes permitem Somos o único país que já deteve ao mes-
oferecer espetáculos. 1 Esses trabalhadores mo tempo as copas do mundo de todas as
da indústria do espetáculo são raros – por- categorias (adultos, sub-20 anos e sub-
tanto, são muito mais caros. 17 anos).
Quanto ganham essas pessoas pri- Nas três últimas copas que dispu-
vilegiadas? A maior parte das estrelas de tou, a seleção principal venceu duas e, na
primeiríssima linha do futebol mundial recebe outra, ficou em segundo lugar. Há uma
aproximadamente US$ 500 mil por mês. década, o Brasil ocupa o primeiro lugar
Esse é o caso do nosso Ronaldo, do francês no ranking da Federação Internacional de
Zidane, do português Figo e do espanhol Raul. Futebol (Fifa), por ser a seleção de melhor
O italiano Del Piero e o holandês Kluivert aproveitamento em todas as partidas.
ganham US$ 750 mil; já o inglês Beckham Temos todas as razões para ufanis-
é o recordista com US$ 850 mil. Jogadores mo no futebol, no qual somos indubitavel-
em início de carreira e de pouco prestígio mente os melhores do mundo. Exceto uma:
jamais receberão menos de US$ 3 mil. 2 É o a população brasileira raramente assiste aos
bastante para fazer a cabeça de multidões espetáculos desses artistas dos gramados.
de jovens para quem o mercado de traba- Sim, pois um quinto dos nossos jogadores
lho raramente reserva mais de uma cente- – os melhores – se exibem em campeonatos
na de verdinhas. a que só assistimos pela TV paga (canais
Nossos jovens desempregados po- ESPN). Apenas nos jogos das seleções bra-
dem sonhar, mas dificilmente chegarão a sileiras podemos assistir a eles ao vivo ou
esse paraíso. O mercado de trabalho para pela TV aberta. 1 Não se trata de excluir o
jogadores de futebol que recebem salários Isso acontece porque, enquanto trabalho de aprimoramento
dos jogadores realizados pe-
como esses dificilmente ultrapassará, em nossos craques se deram excepcionalmen- los clubes, apenas deixar cla-
ro que, uma vez realizado o
todo o mundo, 20 mil vagas. No Brasil, os te bem com a globalização e a Confedera- mesmo trabalho, o talento ina-
clubes da primeira divisão empregam apro- ção Brasileira de Futebol soube adaptar- to continua gerando jogado-
res melhores.
ximadamente 1.500 atletas, dos quais a se aos novos tempos, os clubes brasileiros
2 As estimativas estão
metade na categoria iniciante (“júnior”). estão completamente falidos. Chafurdam na no site Football Transfers
Information, obtidas em 26
Existem 353 jogadores brasileiros registrados pior crise de toda a sua história e não con- d e o u t u b r o d e 2 0 0 3 , em
atuando no exterior; 3 supondo a existên- seguem pagar nem à previdência social – <www.footballtransfers.co.uk/
contracts/wages>.
cia de outros tantos jogadores mais jovens muito menos segurar os jogadores media-
3 Dados de Leonardo Ramalho,
ainda não registrados, podemos imaginar namente competentes, capazes de inserção obtidos em 26 de outubro de
2003 em <www.planeta.terra.
que existam aproximadamente 700 brasi- internacional. Para entender como chega- com.br/esporte/rsssfbrasil/
leiros defendendo seu lugar ao sol nos gra- mos a esse ponto, é preciso retroceder e miscellaneous/brazilplayinworld.
htm>.
mados estrangeiros. examinar a história do futebol no Brasil.
4 Dois meses e meio depois,
Muitos desses jogadores ocupam quando estas linhas foram
posição de grande destaque. Quando fi- redigidas, três deles manti-
Massas urbanas e espetáculos nham a liderança da artilha-
zemos nossa pesquisa, eram nossos patri- ria. Apenas Adriano perdeu
a posição, em função da cri-
otas os artilheiros dos campeonatos espa- O futebol acompanhou a industrialização e se que atingiu seu clube por
nhol (Ronaldo), alemão (Ailton), italiano a urbanização da economia brasileira, que conta do escândalo que aba-
lou a firma patrocinadora, a
(Adriano) e português (Derlei). 4 Mas tal proporcionaram massas urbanas ávidas por Parmalat.

FEV 2004 / MAR 2004 19


E S P O R T E

espetáculos que lhes permitissem trans- título e, em 14 competições, ganhamos


mutar frustrações e ódios sociais em riva- cinco e tivemos dois vice-campeonatos –
lidades simbólicas entre grupos de iden- estivemos em metade das finais. Nenhu-
tidade esportiva. ma outra seleção tem esse retrospecto, se-
As torcidas foram a identidade social quer parecido.
pela qual pudemos deixar de ser nativos ou
migrantes, pobres ou ricos, brancos ou mesti-
Lei do Passe
ços de diversas misturas, dos bairros nobres
ou suburbanos, no turbilhão cultural que foi Os jogadores que despontaram para o su-
o Brasil na segunda metade do século XX. To- cesso surgiram de clubes organizados em
dos e todas nós, ao longo da vida, mudamos campeonatos locais hierarquizados. Até
de moradia, de bairro, de 1966, apenas as cidades do Rio de Janeiro
emprego e de profissão, e de São Paulo tinham os pré-requisitos

O Brasil tem uma votamos em diferentes


candidatos e partidos,
para o sucesso: torcidas dispostas a pagar
e estádios capazes de acomodá-las. Em

das melhores acreditamos em diferen-


tes utopias. Mas uma
cada uma dessas capitais, havia quatro clu-
bes com torcidas expressivas (chamados
coisa não muda: a paixão “grandes”), que efetivamente competiam
seleções de futebol pelo clube de futebol e a pelos títulos, e uma dúzia de times sem
identidade com seus de- torcida, que eram meros participantes (cha-
desde 1930, mais torcedores. mados “pequenos”).
Foram esses apai- Os pequenos (aí incluídos os principais
quando ocorreu xonados que pagaram, clubes das demais capitais brasileiras) não ar-
com seus ingressos, os es- recadavam o suficiente para cobrir suas des-
a primeira Copa tádios e os salários dos jo-
gadores. Mas foram ainda
pesas e só sobreviviam graças ao último traço
do trabalho servil existente no país, a Lei do

do Mundo; muitos mais aqueles que


aprenderam a torcer a dis-
Passe do jogador de futebol.
Essa lei consistia no fato de que um

na verdade, tância, pelo rádio – progra-


mação de baixíssimo cus-
atleta só podia atuar por um clube se não
estivesse mais ligado a nenhum outro. Ou
to para a indústria cultural, seja, depois de começar em um clube, o joga-
foi o único país capaz de assegurar uma dor dependia da autorização do mesmo para
audiência predominante- continuar exercendo sua profissão em um
a comparecer a mente masculina, atraindo novo empregador. O clube só liberava o atle-
anunciantes como as ta se recebesse uma quantia em dinheiro – a
todas as 17 copas grandes cervejarias e lâmi- “venda do passe”. Os clubes pequenos eram
nas de barbear, que sus- fábricas de jogadores a serem vendidos aos
já realizadas tentaram a incipiente pro-
dução de jingles.5
clubes grandes.
À proporção que esse mercado se de-
Além dos jogos, os senvolvia, os clubes grandes passavam a
noticiários esportivos, os gastar cada vez mais com passes e salários
5 Alguns saudosistas talvez
comentários, tudo aquilo que transformava um de jogadores, excedendo o que arrecada-
ainda se recordem dos versos mero jogo de 90 minutos em um espetáculo per- vam nas bilheterias.
que embalavam a programa-
ção esportiva: “Quem gosta manente e quase sagrado, integrante de uma Para equilibrar as finanças, recorri-
de cerveja/bate o pé/reclama/
Quero Brahma!/Quero Brahma!”
cultura esportiva capaz de dar sentido à vida e am às famosas excursões – jogos amistosos
ou “Barba feita/com Gillette ordenar a passagem do tempo – a semana entre (isto é, de exibição, não de competição) re-
azul/é perfeita/com Gillette
monotech/alegria/faço a bar- um jogo e outro, os anos de uma competição alizados no exterior e pagos em preciosos
ba todo dia/com a Gillette
azul!”.
para a seguinte (“Lembra, foi naquele ano em dólares. Quanto mais a seleção brasileira
6 O caso paradigmático foi o
que o Flamengo ganhou com um gol do Valido obtinha resultados, mais os nossos clubes
de Didi, então tido como o feito com a mão...”). eram convidados a exibir os craques consa-
melhor jogador do mundo,
que não se adaptou à dureza O Brasil tem uma das melhores sele- grados pela camisa amarela – Pelé,
dos treinamentos na Espanha, ções de futebol do mundo desde 1930, Garrincha, Didi etc. Alguns desses jogado-
pois, em suas palavras, “trei-
no é treino, jogo é jogo”. Ra- quando ocorreu a primeira Copa do Mun- res eram negociados e se transferiam para
ros casos de adaptação foram
Canário, Evaristo, Valdo, do; na verdade, foi o único país a compare- clubes no exterior, mas eram muito poucos,
Julinho, Mazzola e Amarildo – cer a todas as 17 copas já realizadas. Desde pois os brasileiros dificilmente se adapta-
não por coincidência, mera
meia dúzia. 1950, disputamos como real candidato ao vam à vida noutro país. 6

20 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
GRANDEZAS E MISÉRIAS DO FUTEBOL GLOBALIZADO

Mercado futebolístico permaneciam. Mas a evasão de atletas foi


muito menor do que poderia ter sido em fun-
Na época do “milagre econômico”, foi po- ção de duas barreiras: a Lei do Passe, que res-
lítica dos governos militares descentralizar tringia o direito de trabalho, e a política de
o futebol, mediante a construção (ou o in- valorização cambial da primeira etapa do Pla-
centivo à construção) de grandes estádios no Real. Aliás, com o real valendo um dólar,
nas principais capitais. Com grandes bilhe- não faltaram empresas multinacionais dispos-
terias, os clubes locais conseguiam compe- tas a investir em clubes brasileiros, pensando
tir pelos grandes jogadores e, assim, en- em obter ganhos semelhantes aos do merca-
trar para o panteão do futebol brasileiro. do europeu. Foi possível repatriar jogadores,
Foi assim que as cidades de Belo Horizon- tendo sido Romário o caso mais conhecido.
te e Porto Alegre forneceram cada uma dois É bastante prová-
grandes clubes ao recém-criado campeo- vel que as experiências
nato brasileiro, e também foi desse modo
que Salvador, Recife e Curitiba forneceram
modernizantes tivessem
acabado pelo caráter
O enorme
mais uns tantos clubes de porte médio.
Estava criado um mercado nacional para o
predatório da adminis-
tração dos clubes,
aumento do poder
espetáculo futebolístico. freqüentemente caso de
Na década de 1970, não exportáva- polícia. Mas não vale a aquisitivo dos
mos jogadores: apenas craques em fim de pena perder muito tem-
carreira iam como uma espécie de embaixa- po com isso porque clubes europeus
dores do futebol tentar popularizar o espor- duas mudanças decisi-
te em novos países (como Pelé, nos Estados vas sepultaram essa fase foi sentido pelos
Unidos, e Rivelino, na Arábia). A razão é que do futebol brasileiro. A
os clubes europeus desenvolviam políticas
protecionistas, dificultando a importação
primeira foi uma mu-
dança jurídica, a elimi-
clubes brasileiros,
para dar oportunidade ao surgimento de
talentos nacionais. A xenofobia revelou-se
nação da Lei do Passe,
após uma agonia pro-
que não puderam
inútil (quando o Brasil decaiu, ascendeu a
Argentina, único país capaz de produzir cra-
longada; agora, o clube
só pode reter os direi- mais reter
ques em quantidade e qualidade compará- tos sobre o atleta du-
veis aos nossos) e foi sendo paulatinamente rante a vigência do con- jogadores de
suavizada ao longo da década de 1980. Foi trato. Livres dos clubes,
então que os melhores jogadores brasilei- os jogadores colocaram seleção no país.
ros tomaram o rumo da Europa – Zico, seus destinos nas mãos
Sócrates, Falcão, Cerezo e Júnior. de agentes (os famosos E nem mais os
No início da década de 1990, o fute- “empresários”), que os
bol europeu sofreu uma profunda moderni-
zação administrativa, com um aumento das
colocam em clubes em
troca de uma comissão
reservas da seleção
receitas resultante da venda de campeona-
tos para a televisão (sobretudo TV paga), do
– algo semelhante ao
que ocorre no boxe e no
aqui permaneciam
licenciamento de marca e de venda anteci- mundo artístico. A se-
pada de carnês de ingressos. Ao mesmo tem- gunda foi uma mudança macroeconômica,
po, reduziam-se as barreiras à entrada de a política de flutuação cambial, que nos
atletas, em parte como resultado da mobili- trouxe a um patamar sustentável de um dó-
dade de cidadãos da União Européia. Foi lar por três reais.
assim que, na década de 1990, criou-se o A conseqüência de ambas as mudan-
mercado globalizado do futebol, ora em ex- ças é que os jogadores estão livres para emi-
pansão para a Ásia, com o Japão e a Coréia grar e que mesmo salários baixos em dólar
do Sul já consolidados e sendo a China a convertem-se em valores extremamente ele-
próxima fronteira. vados a essa taxa de câmbio. E existe uma
O enorme aumento do poder aquisi- categoria de agentes especializados, autori-
tivo dos clubes europeus foi sentido pelos zados pela própria Fifa, em colocar jogado-
clubes brasileiros, que não puderam mais res em contato com os novos clubes; com
reter jogadores de seleção no país. Com o isso, muitos clubes estrangeiros podem com-
tempo, nem mais os reservas da seleção aqui prar um craque brasileiro. Agora, não é mais

FEV 2004 / MAR 2004 21


E S P O R T E

* Fabio Sá Earp apenas o Real Madrid que tem dois jogado- de é que, com esta taxa de câmbio, não exis-
Professor do Instituto de res brasileiros: o Milan tem três; a Roma, o te alternativa de mercado capaz de salvar o
Economia da UFRJ e Sporting Lisboa e o Lyon têm quatro cada; futebol brasileiro.
organizador do livro Pão o Borussia Dortmund, cinco; e o Benfica, Mas, felizmente, existem alternati-
e circo: fronteiras e outros seis. Mas não são somente os gran- vas fora das fronteiras do mercado. Não se
perspectivas da des clubes que têm essa possibilidade: o trata de intervenção estatal, pois ninguém
economia do Bolívar boliviano, o CSKA búlgaro e o de sã consciência pensaria em proibir a sa-
entretenimento (Razão Portimonense português também têm qua- ída de jogadores ou em destinar recursos
Cultural, 2002).
tro jogadores brasileiros cada um, o públicos aos clubes. A alternativa é algo
E-mail: saearp@ie.ufrj.br
Chernomoritz russo e o Chombuk Hyundai que já acompanhava a humanidade desde
têm cinco e o recordista é o modestíssimo seu nascedouro, muitíssimo antes da in-
Nacional, de Portugal, venção de mercados e de Estados: a dádi-
que conta com nove jo- va, com a qual se sustentam museus e so-
gadores brasileiros. ciedades beneficentes. A melhor forma é
Só nas situações Essa fuga de atle- criar uma sociedade de amigos que capte
tas prejudicou a quali- doações e as direcione para a finalidade
de desespero dade dos espetáculos
apresentados no merca-
desejada – doações que podem ser obti-
das até por telefone.

nos dispomos do interno, e o público


se retraiu, reduzindo as
No caso do futebol, as contribuições
não podem ser feitas mediante doações di-
receitas de bilheteria. retas aos clubes porque os dirigentes da
a aceitar Os grandes clubes bra- maior parte deles não gozam da confiança
sileiros viram-se incapa- de suas torcidas. As sociedades de amigos
soluções zes de sequer pagar sa- precisam ser dirigidas por pessoas de ido-
lários em dia, o que neidade moral inquestionável e ter suas
inovadoras. aumentou ainda mais o contas publicadas mensalmente na impren-
êxodo. Os clubes que sa. Pensemos em torcedores ilustres que po-
A situação têm sorte conseguem deriam aceitar trabalhar de graça: no Rio de
receber alguma coisa Janeiro, pessoas como o tricolor Chico
dos clubes pela saída dos jogado-
res com contratos em
Buarque, o vascaíno Sérgio Cabral, o rubro-
negro Zico, o botafoguense Armando No-

brasileiros já é andamento que este-


jam sendo pagos em
gueira e muitos outros... E só devem liberar
recursos para finalidades específicas, mês a
dia; mas a maioria cha- mês, fora do controle dos dirigentes de clu-
suficientemente furda impotente na pró- bes, destinando metade dos recursos para
pria agonia. Ou seja, dívidas trabalhistas e previdenciárias, en-
desesperadora todos os clubes do país quanto elas existirem.
transformaram-se em Vejamos o potencial deste sistema, que
para permitir “pequenos”, incapazes pode ser administrado por um convênio com
de se sustentar com um banco. O Flamengo tem 25 milhões de tor-
o experimento suas receitas próprias e cedores; 7 se apenas um décimo deles doar
de manter seus princi- mensalmente R$ 10 (preço de uma arquiban-
pais jogadores. cada no último campeonato), teremos mais de
US$ 8 milhões por mês, ou US$ 100 milhões
por ano – o que é suficiente, por exemplo, para
Qual a saída?
pagar todas as suas dívidas. Parece mágica, mas
Existe uma solução vazia, repetida como um é mera canalização da paixão.
mantra, que é a profissionalização do fute- Só nas situações de desespero nos dis-
bol brasileiro. Nada contra, mas não se es- pomos a aceitar soluções inovadoras. A situ-
pere que daí venha a solução. Se triplicarem ação dos clubes brasileiros já é suficiente-
suas receitas, os grandes clubes passarão a mente desesperadora para permitir o
receber em torno de US$ 2 milhões mensais experimento do novo. Ou então, caso per-
7 IBOPE, “Pesquisa Personali-
zada/Opinião Pública/Times – o que não dá para sustentar um clube de maneça a miséria atual de nossos clubes, que
de Futebol”, obtido em
09/01/2004 em <www.ibope. segunda divisão na Europa e que não é nada pelo menos se barateie a TV paga, para que
com.br/opp/pesquisa/ diante de uma dívida como a do Flamengo, possamos assistir ao nosso melhor futebol –
o p i n i a o p u b l i c a /
torcidasfutebol_jan03.htm> que se diz alcançar US$ 80 milhões. A verda- nos campos europeus.

22 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
O Jornal da Cidadania é distribuído
para pessoas que têm pouco ou ne-
nhum acesso à informação crítica e
comprometida com a democracia.
Nossos leitores e leitoras são, espe-
cialmente, estudantes e professoras
e professores de escolas públicas de
todo o país. Mas também trabalha-
doras e trabalhadores urbanos e ru-
rais, líderes comunitários(as), mora-
doras e moradores de comunidades
pobres. São 60 mil exemplares dis-
tribuídos gratuitamente.

Participe de mais esta iniciativa do


Ibase. Você pode ajudar com con-
tribuições financeiras ou organizan-
do um núcleo de distribuição.

FEV 2004 / MAR 2004 23


INTERN
INTERNACIONAL
Carlés Riera*

Desenvolvimento
urbano em
Barcelona:
conflito
de vizinhança
e consenso
midiático
Barcelona está se convertendo, talvez já o seja, em uma referência do urbanismo mundial,

tanto pela sua tradição vanguardista como por seu atual crescimento, de grande projeção

midiática, e por sua arquitetura, tão valorizada entre as elites dessa disciplina. No entanto, a

aposta pelo crescimento sem perder a identidade de cidade compacta, os objetivos da inte-

gração e da coesão do conjunto da cidade compatíveis com a diversidade funcional e de

bairros, as respostas ao desafio da sustentabilidade e o horizonte de uma representatividade

regional e global da cultura e do conhecimento superam em importância o potencial de seus

projetos arquitetônicos mais singulares.

24 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
ACIONAL
Apesar dessa fama, de grande atratividade tu- juntamente com sua importância política e
rística, o desenvolvimento urbano de Barcelo- cultural catalã, de forma determinante para
na não foi levado a cabo sem uma polêmica o seu desenvolvimento.
cidadã. A maior parte dos projetos de trans- Com o aparecimento das administra-
formação e crescimento da cidade enfrentou ções democráticas, administradores(as) pro-
críticas e freqüentes oposições e mobilizações gressistas das cidades deram seu apoio e res-
populares, encabeçadas, principalmente, pelo posta à forte pressão que a sociedade civil
movimento de vizinhança.1 Entretanto, os su- havia exercido para recuperar Barcelona urba-
cessivos governos locais conseguiram, quase nisticamente no regime político anterior. Em
sempre, criar um clima de consenso final, ba- um primeiro momento, atuaram em peque-
seado na coesão das elites, econômicas, inte- nos locais urbanos, praças e parques e, de-
lectuais e culturais, que produziram uma opi- pois, ampliaram sua intervenção para escalas
nião pública de apoio ao desenvolvimentismo maiores de reequilíbrio de áreas obsoletas ou
da cidade e ao seu papel de liderança interna- de reequilíbrio entre regiões da cidade.
cional em certos aspectos e momentos, resul- Posteriormente, em outubro de 1986,
tando em notável adesão e compromisso en- Barcelona foi escolhida para organizar os Jo-
tre os setores populares, apoiados nas gos Olímpicos de 1992. Mais de 6 bilhões de
melhorias dos bairros e na identificação com euros investidos no total da operação e, em
uma cidade que tem condição de protago- determinados períodos, mais de 12 milhões de
nista. Vejamos alguns dos principais proces- euros diários dão uma idéia da magnitude das
sos pelos quais passaram esse desenvolvimen- atuações e da aceleração no processo de im-
to e sua legitimação. plementação. Esse fenômeno excepcional e
outros que, ao longo da história recente de
Barcelona, foram ocorrendo em intervalos de
Transformação urbana
40–50 anos (1888, 1929 e 1953) representa-
Na região metropolitana de Barcelona, dife- ram saltos qualitativos e quantitativos na trans-
rentemente do que aconteceu na maioria das formação da cidade. Atualmente, o Fórum 2004
cidades européias e americanas – que viram das Culturas e a chegada do trem de alta ve-
como seus centros urbanos mudavam crian- locidade legitimam novas atuações de trans-
do downtowns metade centro de negócios formação e crescimento da cidade em grande
(em que os fragmentos mais qualificados des- escala, que atraem investimento e novas opor-
tinam-se a serviços financeiros, serviços em- tunidades para atuações urbanísticas e arqui-
presariais, sedes representativas das grandes tetônicas singulares. Novamente, reproduz-se
instituições etc.), metade centros de margina- o ciclo de oposição de vizinhança, diálogo e
lização onde vão parar as minorias étnicas, legitimação midiática a cargo das elites.
desempregados(as), pessoas mais velhas sem Na requalificação de Barcelona, bus-
possibilidades, marginalizados(as) e alguns ca-se novamente, como já haviam feito os pla-
grupos liberais de classe média –, esse pro- nejadores das expansões do século XIX, as
cesso foi apenas parcialmente limitado, reno- áreas comuns entre a arquitetura e o urba-
vando e revitalizando o centro e também as nismo, trabalhando com a especificidade da
periferias compactas do município barcelonês. cidade mediterrânea.
As causas dessa tendência são diversas A realidade construída da Barcelona
e devem ser entendidas no contexto histórico compacta permitia e permite intervir na cha- 1 Na Espanha, movimento de
em que se produzem e na intenção que faz mada escala intermediária. Essa escala é rei- vizinhança (movimiento veci-
nal) corresponde a um conjun-
com que Barcelona se dirija para sua recupera- vindicada como ponte entre as decisões pro- to de organizações entre
pessoas que vivem em um
ção de maneira decidida. gramáticas e as estruturais. É a consideração mesmo bairro. O objetivo é
O peso de Barcelona em seu contexto da cidade por partes que permite soluções for- levar reivindicações, propostas
e sugestões a autoridades lo-
metropolitano e regional e sua progressiva mais bem especificadas e de qualidade. É o cais. Também pode ser deno-
minado movimento de base
importância internacional contribuíram, chamado “urbanismo urbano”, do Laborató- (movimiento de base).

FEV 2004 / MAR 2004 25


I N T E R N A C I O N A L

rio de Urbanismo de Barcelona (1984), que se mente na Cidade Velha. Eles(as) iniciam um
caracteriza pela localização dos aspectos vin- processo de certa especialização ocupacional
culados ao desenho em escala urbana. nesses bairros, com a acolhida de recém-
A Carta de Atenas propõe, para o caso chegados(as) à cidade e sua progressiva inte-
do projeto urbano, que o impacto da inter- gração no seio da estrutura urbana.
venção a médio prazo possa ser previamente Durante muito tempo, os bairros da Ci-
estimado. O valor do projeto de requalifica- dade Velha sofreram um importante processo
ção urbana será dado pela aceitação dos de degradação física. De sua longa história e
agentes sociais e econômicos e pelo proces- de sua forte densidade demográfica, em cer-
so de revalorização da cidade que se trans- tas épocas, nasceu um tecido urbano muito
forma e se atualiza em si mesma. heterogêneo. As construções realizadas sobre
edifícios já existentes e a exploração máxima
de todos os espaços disponíveis – pátios inter-
Centro histórico
As construções O processo de renovação
nos, terraços sobre os telhados, celeiros trans-
formados em habitações – chegam a formar a

realizadas sobre do centro histórico de


Barcelona é um exemplo
chamada favelização vertical. Além disso,
proprietários(as), em virtude do constante au-

edifícios já de trabalho multidisci-


plinar e de participação
mento da demanda, optaram pela subdivisão
dos apartamentos que possuíam, aumentan-
do tecido social, que su- do, assim, a rentabilidade de sua proprieda-
existentes pera necessariamente a de, sem realizar obras de manutenção e de
realidade urbanística do melhoria dos edifícios. A tudo isso cabe acres-
e a exploração projeto urbano e que, centar uma falta de investimento por parte dos
em certas ocasiões, não poderes públicos no tocante à conservação das
máxima em todas as necessárias, infra-estruturas urbanas e à manutenção dos
modula, transforma e serviços sociais.
de todos acomoda diferentes pon-
tos de vista.
No fim da década de 1980, a adminis-
tração empreendeu políticas de reformas ur-

os espaços A Cidade Velha,


como seu nome indica, é
banísticas (os Planos Especiais de Reforma In-
terna/Peri), destinadas a frear os fenômenos
de degradação. Cada plano de reestruturação
disponíveis a parte mais antiga da ci-
dade. Até o século XIX, a foi objeto de uma mobilização seguida de uma
atual superfície da Cida- negociação das associações de bairro. Isso expli-
formam a de Velha representava a ca, em parte, a lentidão de sua implantação e de
totalidade do território sua execução. Os diferentes Peris da Cidade Ve-
chamada urbano de Barcelona. lha são apresentados como uma alternativa aos
Com o Plano Cerdà, exe- planos anteriores de reformas urbanas, bloque-
favelização cutado durante a segun- ados por causa de sua impopularidade. Em vez
da metade do século XIX, de proceder a uma terceirização do setor – subs-
vertical a cidade rompe sua ter-
ceira muralha e se esten-
tituindo numerosas moradias por escritórios –
e em vez de mudar a textura do tecido social, os
de até se unir com os po- novos projetos permitiriam que os(as) habitan-
voados vizinhos. Essa brecha permite um tes e suas atividades econômicas não-margi-
êxodo da população que possui os meios su- nais permanecessem na região.
ficientes para fazê-lo: a aristocracia e a bur- Esse processo, no entanto, não alcan-
guesia se instalarão, assim, nos bairros em çou plenamente seus melhores objetivos, e
construção do Eixample. É aí que parece co- o resultado atual inclui uma forte tendência
meçar o processo de segregação urbana e de à terceirização, uma progressiva substituição
marginalização do espaço abandonado pelas de habitantes de camadas populares por clas-
camadas abastadas. ses médias e regiões de forte marginaliza-
No início do século XX, a construção ção ligadas a novos(as) habitantes proveni-
do metrô e as obras realizadas em função da entes da imigração, alguns(mas) dos(das)
Exposição Universal de 1929 atraem uma im- quais em ascensão social. Essa situação in-
portante onda de imigração. Numerosos(as) corpora também uma estrutura fortemente
cidadãos(ãs) de toda a Espanha partem em intercultural, valorada por uns(umas) e ques-
direção a Barcelona e se instalam principal- tionada por outros(as).

26 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
DESENVOLVIMENTO URBANO EM BARCELONA: CONFLITO DE VIZINHANÇA E CONSENSO MIDIÁTICO

Conflito e participação A recente transformação da cidade de


Barcelona é de uma evidência indiscutível e com
A história urbanística da cidade está ligada a grande consenso sobre o fato de que as mu-
um ciclo constante de iniciativa urbanística danças eram imprescindíveis e inadiáveis e so-
municipal, protesto cidadão, negociação e le- bre as melhorias alcançadas em escala global e
gitimação midiática do projeto estratégico com de bairros. Entretanto, é óbvio que ainda falta
apoio das elites. Se, em um primeiro momen- muito a ser feito, tanto no plano físico (cons-
to, as reivindicações estavam ligadas às neces- trutivo) como no social. Mas as discrepâncias
sidades imediatas e fáceis de justificar, tanto aparecem em torno da questão sobre se foi fei-
diante de vizinhos(as) como das autoridades, to ou não tudo o que era necessário e da ma-
com o passar do tempo as demandas torna- neira adequada e, sobretudo, em relação ao pro-
ram-se mais complexas, e embora os movimen- jeto estratégico de cidade,
tos sociais urbanos não tenham gerado “mo- progressivamente elitista,
vimentos de massa” como se esperava, dual, turística, multicultu-
acabaram influindo decisivamente na constru-
ção física da cidade. Depois de fazerem frente
ral e metropolitana.
A democracia
às necessidades imperiosas (expropriações,
falta de moradias), passaram a reivindicar uma
Balanço das
reivindicações
atual foi
certa qualidade de vida e acabaram exigindo –
com maior ou menor acerto – uma qualidade Um trabalho de campo verdadeiramente
na forma, um determinado desenho. em 49 associações de
Conjuntamente, as discussões geradas
pela mobilização cidadã e a demanda de par-
bairro permitiu o preen- participativa
chimento, com mais ou
ticipação democrática na redação do planeja-
mento urbano questionaram também a fun-
menos dados, de 550 fi-
chas de reivindicações
até o fim ou
ção de urbanista como projetista da nova
cidade e remodelador(a) da existente. O(a)
com uma repercussão fí-
sica sobre o território.
somente se
técnico(a) se viu obrigado(a) a reconsiderar Entre toda a in-
seu papel e situar-se, em certo casos, como formação sistematizada, limitou a
redator(a) e planejador(a) de uma proposta foram analisados os ti-
que não pode remediar uma pressão pos de reivindicações, escutar as
reivindicativa e, em outros casos, como correlacionando-as com
impulsionador(a) dessa pressão. Ficou de- o tempo e o local, o pro- petições com
monstrado que não se pode prescindir do(a) cesso temporal entre rei-
usuário(a) se realmente se pretende construir
uma cidade para todos(as).
vindicação e realização e a uma atitude de
correspondência entre o
Em Barcelona, ainda que se tenha
chegado a dialogar mais facilmente com
solicitado e o conseguido,
tanto a partir do que po-
superioridade?
vereadores(as) e prefeitos(as) nas adminis- deríamos chamar de pe-
trações democráticas, a resposta das associ- quena escala de satisfação
ações de vizinhança à pergunta sobre se re- do(a) usuário(a) como a partir do parâmetro
almente havia ocorrido uma mudança em grande escala da incidência na construção
importante em sua forma de participação na da cidade. A informação e a análise foram or-
construção da cidade é negativa. A demo- denadas em quatro âmbitos.
cracia atual foi verdadeiramente participativa
até o fim ou somente se limitou a escutar as 1. Urbanização
petições com uma atitude de superiorida- As reivindicações para uma melhoria da ur-
de? No momento da realização das obras, o banização básica aparecem na etapa inicial
governo local impôs seus critérios com um do movimento em todos os bairros periféri-
bom desenho, mas prescindindo das expec- cos, sejam polígonos ou núcleos marginais,
tativas de vizinhos(as)? As associações de geralmente unidos com a reivindicação de
vizinhança, embora reconhecendo as gran- condicionamento da moradia, e constatam
des realizações e melhorias nos bairros, rea- a ínfima qualidade das atuações construti-
firmam as críticas, insistindo na existência vas da década de 1950 à de 1970. Além dis-
de um despotismo ilustrado no urbanismo so, era imprescindível para o progresso de
barcelonês dos últimos anos. um bairro conseguir um sistema de esgotos,

FEV 2004 / MAR 2004 27


I N T E R N A C I O N A L

luz, água ou asfalto. A exigência dessas neces- bates sobre o Plano Geral Metropolitano e
sidades propiciou a coesão necessária para o sobre os Peris dos diferentes bairros com re-
surgimento dos movimentos sociais urbanos. sultados desiguais.
Na década de 1970, os serviços míni-
mos foram conseguidos ou estava formulada 2. Patrimônio
sua reivindicação, e as petições de urbaniza- O patrimônio é entendido como tal a partir
ção eram, na verdade, de reurbanização, ou de duas variáveis. Por ser de titularidade pú-
seja, existia uma estrutura básica, ruas ou pra- blica, será necessário zelar pela manutenção
ças, que necessitava uma remodelação ou um da propriedade, evitando-se a alienação ou
melhor aproveitamento. O planejamento de reclamando-se o uso público dos terrenos
demandas de reurbanização se manteve qua- ou edifícios. Ou, por seu valor cultural – os
se constante ao longo dos anos. casos mais numerosos –, será necessário res-
Algumas dessas reivindicações origi- gatar ou conservar certos edifícios privados,
naram as associações de vizinhança, e a mai- pelo interesse cultural ou artístico, ou, en-
oria teve uma importância muito relevante tão, reclamar a manutenção ou a reposição
para a manutenção do caráter do bairro ou de monumentos.
para a recuperação de sua identidade. As reivindicações de patrimônio foram
A oposição aos planos parciais forta- habitualmente acompanhadas de propostas
leceu as associações de vizinhança, que con- de reutilização para equipamentos urbanos e
seguiram passar da defesa dos habitantes de produção dos espaços públicos e sempre
afetados à racionalização das atuações. tiveram um valor simbólico agregado. Tais
A partir de 1973, foram registradas as equipamentos e espaços foram apresentados
primeiras denúncias de irregularidades urba- como sinais de identidade do bairro e, em al-
nísticas, um tipo de ação que predominou guns casos, acabaram por ser considerados
até 1978 e que, além dos resultados positi- mais como um valor patrimonial exclusivo do
vos de vigilância e controle das imobiliárias, próprio bairro, acima de seu serviço ao con-
parou ou modificou uma série de constru- junto da cidade. Apesar de tudo, esse tipo de
ções de grande impacto. Continuaram os de- reivindicação foi de grande utilidade para a

Balanço desigual
Embora seja verdade que o movimento de vizi- pios de seu entorno e tentando salvar as barrei-
nhança tenha alcançado a dignificação urbana ras físicas que fragmentam essa grande rede
dos bairros, assim como um clima de concerta- urbana. Reivindicações locais, ecológicas e de
ção e uma tendência redistributiva e conceito urbano que propõem idéias mais
integradora no crescimento da cidade, ele não redistributivas e sustentáveis tentam frear ou
conseguiu uma participação e uma influência limitar tal projeto.
efetivas no desenvolvimento estratégico de De outra parte, projeto do Fórum 2004 e a
Barcelona, que ficou nas mãos do consenso chegada do trem de alta velocidade completam
das elites políticas, técnicas e econômicas. Isso as grandes intervenções urbanísticas no solo que
significa um modelo de adesão construído não estavam redefinidas. Essas atuações recebe-
midiaticamente que reforça mais a aceitação ram críticas relacionadas à sua visão especulativa
difusa de uma ordem do que a verdadeira co- e elitista. O fato é que Barcelona encarece, a
esão. Progressivamente, a cidade se desarticula moradia é inacessível e as classes populares de-
socialmente sob a aparente comunhão com o vem ir embora ou ocupar redutos de baixa qua-
projeto de cidade terciária, cultural, metropo- lidade habitacional.
litana e tecnocrática. Cada vez mais coexistem Provavelmente, só quando Barcelona en-
diversas redes urbanas e sociais. contrar seus limites – e se o movimento social
Atualmente, Barcelona já está no limite de urbano for capaz de renovar suas forças –,
sua capacidade de extensão urbana no territó- poderá ser reconsiderado o sentido de suas
rio. E é por isso que já faz tempo que está inter- futuras transformações, já em escala metro-
vindo de forma muito ativa na configuração de politana, a partir de uma verdadeira participa-
uma conurbação metropolitana com os municí- ção no estratégico.

28 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
DESENVOLVIMENTO URBANO EM BARCELONA: CONFLITO DE VIZINHANÇA E CONSENSO MIDIÁTICO

reconstrução de Barcelona e, sobretudo, teve as escolas e as creches. A partir de 1970, apa- * Carlés Riera
a função de catalogação e revalorização de recem as primeiras demandas de equipamen- Sociólogo, membro
alguns edifícios de notável interesse arquite- tos esportivos, assim como as primeiras de- da Associação Desarrollo
tônico e de conservação total ou parcial da mandas de equipamentos sanitários, sociais, Comunitario
arquitetura industrial, a qual constitui um cívicos e culturais.
referencial histórico para o conjunto da cida-
de e não somente para os bairros tradicio- 4. Serviços públicos
nais onde está localizada. Desde a reivindicação inicial de um mercado
até a oposição a um aterro sanitário, a deman-
3. Produção do espaço público da de bombeiros e a supressão de torres de alta
A reivindicação do espaço público tem sido tensão cruzando um bairro, passando pela de-
predominante na história do movimento so- manda de transporte público, tudo isso se trata
cial urbano. No caso das áreas verdes e dos de mobilizações para converter os bairros em
equipamentos urbanos, dos quais Barcelona território urbano conectado e de qualidade. Tais
está muito necessitada, o tema anima e ofe- mobilizações tiveram uma grande repercussão
rece grandes possibilidades de estender as na idéia de uma cidade integrada, redistributi-
lutas de vizinhança, chegar a todas as imedi- va e policêntrica, assim como na construção de
ações, à imprensa e às autoridades compe- uma forte identidade de bairro.
tentes. Se a essas circunstâncias somarmos a
tão citada revisão do Plano Geral Metropoli- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
tano (PGM), será possível compreender que a
DOMINGO I CLOTA, Miquel; BONET I CASAS, Maria Rosa.
maioria das reivindicações foi formulada en-
Barcelona i els moviments socials urbans. Barcelona: Editorial
tre 1974 e 1980. Mediterrània, 1998.
A subdivisão dessas reivindicações em MONNET, Nadja. La formación del espacio público: una
mirada etnológica sobre el Casc Antic de Barcelona. Barcelona:
dois grandes blocos, áreas verdes e equipa-
Catarata, 2002.
mentos urbanos, mostra o predomínio das PALENZUELA, Salvador Rueda. Ecologia urbana: Barcelona i la
demandas de equipamentos e, dentro destas, seva regió metropolitana com a referents. Barcelona: Beta, 1995.

O RELATÓRIO 2003 DO OBSERVATÓRIO DA CIDADANIA TRAZ O


CENÁRIO DE 15 PAÍSES, ENFOCANDO A PRIVATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS
PÚBLICOS ESSENCIAIS E OS PREJUÍZOS QUE VÊM ACARRETANDO PARA
AS POPULAÇÕES MAIS POBRES. O CAPITULO BRASILEIRO ENFATIZA
OS SEGUINTES TEMAS: GÊNERO E AGRICULTURA FAMILIAR, COMBATE
À AIDS, RACISMO, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS, DESIGUALDADES
E POLÍTICA, ECONOMIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS.

O CD-ROM QUE ACOMPANHA A PUBLICAÇÃO TRAZ ESTATÍSTICAS QUE


MOSTRAM O AVANÇO E O RETROCESSO DOS PAÍSES EM RELAÇÃO
ÀS METAS DA ONU E TAMBÉM AS EDIÇÕES COMPLETAS EM
ESPANHOL E INGLÊS, COM AVALIAÇÃO DE 181 PAÍSES.

Pedidos de exemplares ao Ibase: (21) 2509 0660 ou www.ibase.br FEV 2004 / MAR 2004 29
MUNDO PELO
Jamile Chequer
MUNDO PE

Encontro cidadão Festival de peso Liberdade, liberdade

Entre os dias 21 e 24 de março O Annual Kora Music Awards está A organização Freedom House lan-
de 2004, Gaborone, capital da na oitava edição. Comparável ao çou o relatório Liberdade no Mun-
Botsuana, será a sede da 5a Confe- Grammy nos Estados Unidos e ao do – 2003. Dentre os destaques na
rência Mundial da Civicus – uma Brits, na Grã-Bretanha, o evento análise feita sobre o grau de demo-
aliança internacional, fundada em – que aconteceu em dezembro em cracia nos países, está a Iugoslávia
1993, para a representação cidadã Johanesburgo, África do Sul – pós-Milosevic, que aumentou sua
com a participação de mais de cem teve, em 2003, 29 categorias, 15 atividade cívica e livre expressão
países. Os eventos anteriores acon- a mais que a segunda edição do da mídia.
teceram na Cidade do México, Bu- Kora. E uma novidade do prêmio No fim de 2002, 89 países eram
dapeste, Manila e Vancouver. foi que as categorias de “Melhor considerados livres, com mídia in-
O objetivo desse encontro é artista feminino” e “Melhor ar- dependente, abertura para oposi-
articular a sociedade civil, pesqui- tista masculino” foram votadas ções políticas, clima de respeito e
sadores(as), ativistas, agências de por telefone. uma significante vida cívica. Em
desenvolvimento etc. e estimular Só entre os(s) quenianos(as), 2003, esse número aumentou por
a troca de informações sobre ati- foram 11 os(as) indicados(as). O quatro. “Isso significa que tanto o
vidades de sucesso e desafios pre- queniano E-Sir, que faleceu em número como a proporção de pa-
sentes em suas organizações e so- meados do ano passado, foi repre- íses livres (46%) são os maiores
ciedades. Além disso, o encontro sentado por sua mãe. Uganda par- da história dessa pesquisa”, apon-
pretende descobrir maneiras de ticipou com três músicos que con- ta o documento.
fortalecer as organizações da so- correram na categoria “Melhor São 55 países parcialmente li-
ciedade civil, trabalhar para a jus- músico do Leste da África”. vres, quatro menos que no ano an-
tiça social e qualificar a partici- Oliver Mtukudzi, do Zimbábue, terior. Constatou-se que 1.293 bi-
pação cidadã. ganhou dois dos prêmios mais co- lhão de pessoas (20,87% da
“Agindo juntos para um mun- biçados: “Melhor artista masculi- população mundial) vivem em um
do justo” é o tema principal. Mas no do Sudeste da África” e ambiente de corrupções, restrições
HIV/Aids, juventude, grupos mar- “Lifetime Achievement”. Alguns étnicas e religiosas e pouca força
ginalizados, entre outros assuntos, artistas aproveitaram o momento das leis. E são 48 países sem liber-
estarão perpassando todos os even- para falar sobre a Aids. Foi o caso dade, com 2.186 bilhões de pessoas
tos da conferência. do ganhador do “Melhor artista (35,28% da população mundial).
masculino do Oeste da África”, O relatório também chama a
www.civicus.org
Ghana´s Kojo Antwi. Ele lembrou atenção para o fato de que países
que a pandemia atinge o continen- de maioria mulçumana na Ásia,
te de forma brutal e pediu que o Oriente Médio e África têm apre-
uso da camisinha seja uma prática sentado progressos. “Isso contra-
das pessoas que fazem sexo. diz algumas afirmações de que os
ensinamentos islâmicos são con-
trários ao desenvolvimento demo-
crático”, finaliza.

30 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
LO MUNDO PELO MUNDO PELO MUNDO

Ainda os transgênicos Cenário mundial De olho nas atrocidades

A União Européia (UE) e os Esta- As Nações Unidas divulgaram, re- A Human Rights Watch (HRW)
dos Unidos estão em uma acirrada centemente, relatório com proje- lançou recentemente uma publica-
batalha por causa dos transgênicos. ções da população mundial para ção sobre direitos humanos e con-
Em dezembro, mais uma vez, a Co- 2300. Mapearam cinco possíveis flitos armados. São 407 páginas,
missão Européia anunciou que os(as) cenários mundiais. Todas as pro- divididas em 15 estudos. Um deles
especialistas da UE não autoriza- jeções apontam um declínio na na- narra a situação da Chechênia,
ram a comercialização do milho talidade depois de 2050 e um con- onde direitos humanos estariam
BT-11. Agora, está com os minis- seqüente aumento da expectativa sendo esquecidos com a desculpa
tros da UE a responsabilidade de de vida. Também nesses cenários, da “luta contra o terror”. Outro
manter a proibição ou não aos or- a imigração internacional é consi- estudo diz que forças aliadas estão
ganismos geneticamente modifica- derada inexistente depois de 2050. “perdendo a paz” no Afeganistão
dos (OGMs), que vêm sendo bani- No cenário médio, em 2075 a e um terceiro fala sobre a Iugoslá-
dos do continente desde 1999. população mundial será de 9,2 bi- via e mostra como ainda há inse-
Na verdade, a autorização pode lhões. Em 2175, esse número di- gurança, discriminação trabalhis-
não ter saído por falta de quórum. minuirá para 8,3 bilhões, e, por ta e problemas de justiça que
A UE é formada por 15 países. Se- causa do aumento da fertilidade, servem como barreiras para o re-
gundo o jornal Le Monde, Espanha, em 2300, a população será de 9 torno de refugiados(as). Como re-
Irlanda, Reino Unido, Holanda, Su- bilhões. Os países em desenvolvi- sultado, a “limpeza étnica” conti-
écia e Finlândia deram o aval para a mento serão responsáveis por 7,7 nua expressiva em alguns locais.
comercialização. Alemanha, Bélgi- bilhões de pessoas em 2300. Chi- O Iraque é o foco da publica-
ca e Itália se abstiveram e França, na, Estados Unidos e Índia conti- ção. “O governo Bush não pode
Áustria, Luxemburgo, Dinamarca, nuarão sendo os países mais popu- justificar a guerra como uma in-
Portugal e Grécia votaram contra. losos, sendo que a Índia, em 2050, tervenção humanitária, assim
Entre satisfeitos(as) e insatisfei- terá mais habitantes que a China. como Tony Blair”, disse o
tos(as) com a decisão, vieram os O documento mostra também Kenneth Roth, diretor executivo
aplausos da ONG Amigos da Terra. uma numerosa população mundial do HRW. “Essas intervenções de-
com 80 anos ou mais. Em 2300, a vem ser reservadas para acabar
expectativa é de que haja mais de com uma iminente ou constante
1,5 bilhão de pessoas, 17% da po- carnificina. Não podem ser usadas
pulação mundial. Hoje, essa popu- tardiamente tendo como causa
lação corresponde a apenas 1%. O atrocidades que foram ignoradas no
relatório conclui que a sociedade passado”, advertiu.
futura terá de dar mais valor às
www.hrw.org
contribuições das pessoas mais
velhas para garantir que elas con-
tinuem ativas e engajadas.

FEV 2004 / MAR 2004 31


ENTRE ENTREVISTA

VISTA

32 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
9
Dodô da
Portela
O Rio de Janeiro não seria o mesmo sem alguns de seus
ícones. Contar a história de um deles é recriar a cidade, é
acrescentar um pouco mais de vida à heróica cidade de São
Sebastião. Conversar com Dodô da Portela é percorrer a
trajetória da escola, berço de Paulinho da Viola, Monarco,
Natal e Paulo da Portela, é rejuvenescer o Rio de Janeiro.
Dodô foi escolhida pela diretoria da escola de Oswaldo Cruz
para ser a madrinha da bateria, substituindo a apresentadora
de TV Adriane Galisteu. Significaria uma volta às raízes no
carnaval carioca? O tempo dirá.
Maria das Dores Rodrigues, seu verdadeiro nome, foi
porta-bandeira no primeiro campeonato da Portela em 1935,
função que exerceu até 1966. É muito querida na escola.
Conversar com ela na quadra é tarefa quase impossível, a todo
momento é interrompida por alguém que a saúda, pedindo a
bênção. A memória de Dodô não se restringe à Portela. De
Barra Mansa – sua cidade natal – ao Rio, conta com
desenvoltura como era sua vida no interior, sua chegada ao
bairro carioca da Saúde, o período Getúlio Vargas etc. E um
pouco do difícil cotidiano da cidade hoje.

FEV 2004 / MAR 2004 33


E N T R E V I S TA

Há quanto tempo mora na cidade lhor o meu pai dava para ela. Mas, depois,
do Rio? meu pai começou nas andanças dele e minha
Dodô da Portela – Tenho 84 anos e moro mãe teve que virar lavadeira.
na Saúde há 80 anos. Sou de Barra Mansa, Eles se separaram?
vim para cá com 4 anos, com a mamãe, seis Dodô da Portela – Não, nunca se separa-
irmãos e mais três sobrinhos que a mamãe ram. Minha mãe, dona Otília, era de igreja.
criava. Fomos direto para a Saúde, onde mora- Olha a minha casa, cheia de santo... Lá na
mos em um quarto de um beco. Mamãe veio Portela quem cuida de santo sou eu. Meu pai,
para o Rio porque em Barra Mansa não tinha seu Tibúrcio, era de baile. Puxei aos dois, né?
emprego para os rapazes. Sua mãe era religiosa, católica, e
E seu pai? seu pai era boêmio?
Dodô da Portela – Papai nunca morou Dodô da Portela – Isso mesmo. Para meu
no Rio, vinha de oito em oito dias. Ele ficou pai, mulher tinha que ter as cadeiras largas.
em Barra Mansa. A família do meu pai era Minha mãe falava que, por isso, ele corria
melhorada; da minha mãe, não. Ele traba- atrás das andanças. O meu pai que abriu o
lhava na estrada de ferro e também era co- primeiro clube de baile, de gafieira, lá em Barra
missário de polícia. Ele podia dar ordem de Mansa. O nome era Pensão, defronte ao Jar-
prisão; se tivesse uma briga ou qualquer dim Macaco.
coisa, ele podia prender. Achavam que a Meu pai era um negro bonito à beça. Não
gente era rica. Por causa disso, eu e meus faltava mulher para ele, mas faltavam as coi-
irmãos não ganhávamos nada no colégio, sas pra gente; foi assim que a mamãe virou
nem merenda, nem uniforme. Nossa casa em lavadeira. Não tenho nenhum retrato dele na
Barra Mansa, mamãe dizia, era enorme: tí- parede porque eu era tão apegada que prefi-
nhamos nossos quartos e duas salas. Quan- ro nem ficar olhando... A mesma coisa é com
do inventaram o gramofone, meu pai com- minha mãe e com meu crioulo, meu marido:
prou logo. Só rico tinha gramofone, e meu tenho fotos, mas não boto na parede. Sem-
pai comprou para a minha mãe. Tudo de me- pre fui muito ligada à família. Todo final de
ano vou para Aparecida, como ia antes com
minha mãe.
A senhora ainda vai a Barra
Mansa?
Dodô da Portela – Sempre vou. Batizei
uma escola de samba lá, tenho parentes que
ainda moram na cidade. A casa onde a gen-
te morava ainda existe. Está escrito até hoje:
Vila Otília.
Voltando à época que a senhora
chegou ao Rio, como era a vida?
Dodô da Portela – Para mim, estava tudo
bom, eu era criança. Mas lembro que, aqui na
Saúde, era bem diferente. Se chegasse uma
criança perto de um malandro quando ele es-
tava trabalhando – porque pra ele era traba-
lho –, ele ralhava com ela e mandava chamar o
pai. Quando o pai vinha, perguntava: “Por que
deixou seu filho por aí?”. Se aparecesse uma
menina grávida e a mãe dela falasse que o
rapaz não queria casar, a coisa complicava: era
“ou casa ou morre”. A lei era assim. Agora,
com o dinheiro, tudo mudou. Mudou muito.
Naquela época, não tinha tanta violência. Hoje,
tem tanta criança pequena envolvida...
Mas nem a polícia era violenta?
Dodô da Portela – A polícia não subia o
morro; era tudo mais calmo. Agora, os polici-
ais acham que é só no morro que tem violên-

34 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
9
DODÔ DA PORTELA

cia. E é aqui que eles vêm procurar. Esquecem minha idade para o juiz de menor; disse que
que lá embaixo também tem violência. Fui cri- eu tinha 19 anos.
ada aqui e via que um tomava conta do outro O Paulo da Portela?
direitinho. Havia respeito entre nós. Tinha mui- Dodô da Portela – Ele mesmo. Mas, an-
ta festa; era raro o sábado em que não havia tes, ele disse ao seu Antônio, que era o mes-
um casamento! tre-sala da Portela: “Veja se essa menina dá
Depois, fui crescendo e comecei a enten- para porta-bandeira”. Fomos para a rua en-
der um pouco mais do lugar onde vivia. Foi saiar na mesma hora. Rapidinho, seu Antô-
aqui no Rio que tirei meus documentos. Mi- nio me explicou o que eu tinha que fazer a
nha carteira tem a assinatura do Getúlio cada sinal: quando jogava o lenço para cima,
Vargas. Quando ele entrou no poder, ma- quando esticava a mão, quando pedia minha
mãe tirou nossas carteiras para a gente po- mão – até hoje é tudo na base dos sinais.
der trabalhar. Me lembro de que, quando o Quando acabamos o en-
Getúlio veio para o poder, foi uma fofoca saio, seu Antônio me le-
danada. Diziam até que ele tinha vindo a vou de volta ao Paulo da Os policiais
cavalo, mas eu não acredito. Foi nessa época Portela e disse: “Essa me-
que fui para a Portela.
E como foi sua ida para a Portela?
nina vai ser uma grande
porta-bandeira”.
acham que é só
Dodô da Portela – Eu trabalhava como
empacotadora em uma fábrica de cartonagem
Na época, a Portela
não tinha uma quadra tão
no morro que
na Visconde da Gávea, 121. Tinha uns 13 para
14 anos. Lá também trabalhava a Dora, que
grande como hoje; era a
Portelinha: uma casa de
tem violência.
era a rainha da Portela na época. Antigamen- família que só dava mes-
te, as escolas de samba tinham um concurso mo para guardar os ins- E é aqui
para escolher a rainha e também a princesa; trumentos da bateria e os
era uma forma de angariar dinheiro com a ven- troféus. A gente nem po- que eles vêm
da dos votos. Na hora do almoço, só dava dia sambar ali, a gente
Portela! E quem não era portelense virava por ensaiava na rua. procurar.
causa da Dora! As moças que trabalhavam lá Onde?
cantavam sambas da Portela, uma batucava na
mesa, umas começavam a sapatear, outras dan-
Dodô da Portela – Na
Estrada do Portela, em
Esquecem que
çavam. Eu, que já gostava, passei a adorar.
E isso era todo dia: batendo aqui, cantan-
Madureira. Começava 8
horas da noite e acabava
lá embaixo
do lá... O patrão vinha de pontinha de pé nas
escadas para ver e ralhar com a gente. Quan-
meia-noite. Em dia de en-
saio, eu saía do trabalho e
também tem
do uma escutava e sentava, todo mundo sen- ia para casa me arrumar e
tava. Quando ele chegava ao sobrado, não encontrar com minha mãe. violência
tinha mais barulho. Aí ele olhava e dava aque- Era ela quem me levava
le sorriso. Sabia que a gente só estava senta- para a Portela porque eu
da por causa dele. Quando ele descia, come- era menor e, naquela épo-
çava o batuque de novo... Eu não batucava ca, menor não andava sozinho na rua, senão
nada, só dançava. a polícia levava. Mas, antes de ir para a Portela,
Eu trabalhava de guarda-pó, mas, na hora a gente rezava o terço. Eu fazia tudo rápido e
do almoço, tirava o avental, colocava no cabo dizia para a mamãe: “Já estou com o terço na
da vassoura e começava a rodar. A Dora come- mão”. Se eu rezasse sozinha, ela sabia que eu
çou a dizer que eu levava jeito para porta-ban- ia pular alguma coisa. Depois da reza, a gente
deira. Mas foi só com 15 anos que eu fui à pegava o bonde, saltava em Madureira e an-
Portela. A Dora disse que a porta-bandeira es- dava até a Portelinha.
tava faltando e me levou à quadra. Foi quando O fato de ser tão jovem não fez
eu conheci o Paulo da Portela. Quando cheguei com que sua família tentasse
lá, o Paulo logo disse: “Ela é muito criança, não impedir sua entrada na escola?
pode sair”. Não podia mesmo, mas eu fui a Dodô da Portela – Até que não, mas
primeira menor a sair numa escola de samba. minha mãe sempre ia junto. Mas eu tinha
Mas ninguém sabia da sua idade? que rezar o terço antes! Acho que vem daí
Dodô da Portela – Desfilei a primeira vez esse meu gosto pelos santos. Nisso puxei
em 1935. É só fazer as contas...Ele aumentou à mamãe. Mas já disse que também saí ao

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E N T R E V I S TA

com alegorias de carabina, ajoelhadas e


apontando para a comissão julgadora di-
zendo: “pau na justiça”! Ficamos em sexto
lugar! Foi uma briga danada!
Que ano foi isso?
Dodô da Portela – Não sei, não me lem-
bro. Mas lembro que foi por causa disso que o
Paulo deixou a Portela. Na verdade, tiraram ele.
Não podiam fazer uma coisa dessas com o fun-
dador da escola! Até diziam que ele podia
continuar indo à Portela, mas seus compa-
nheiros não podiam entrar. Isso levou ele à
morte. Antigamente, as escolas de samba eram
muito rigorosas.
E ele continuou freqüentando
a Portela?
Dodô da Portela – Não, ele foi para a
Lira do Amor; quando morreu, não estava
na Portela. Mas, no enterro dele, eu estava
lá segurando a bandeira da nossa escola.
Na época do Paulo da Portela,
a escola não tinha nenhum tipo
de patrono?
Dodô da Portela – O que tinha era o Li-
vro de Ouro, onde as pessoas assinavam suas
doações. O dinheiro arrecadado era para fa-
papai: minha canela não pode ouvir um sam- zer os carros alegóricos e vestir a bateria. Por-
ba. Eu sempre dizia que o culpado era o papai. ta-bandeira e mestre-sala se vestiam por con-
Sou mesmo uma mistura do meu pai e da mi- ta própria.
nha mãe. Sempre gostei de ir a bailes; minhas Como foi a emoção do primeiro
irmãs nunca foram desse jeito. E eu enterrei desfile, em 1935?
todo mundo e ainda estou aqui! Às vezes, fico Dodô da Portela – Eu, com 84 anos, sei
pensando: “Será que tenho mesmo 84 anos?”. lá como fiquei naquele dia! Acho que foi mui-
Eu até olho os documentos para ver se tenho to grande, que eu me lembre; e ninguém me
mesmo essa idade toda. Todo mundo diz que tira esse prazer porque eu dei essa vitória à
não parece. Eu vejo senhoras que dizem ter 70 Portela. Nenhuma escola tinha ganho na Pra-
anos e nunca saem dos 70! Muita gente men- ça Onze, e eu, no meu primeiro desfile como
te a idade... porta-bandeira, dei esse título à Portela. Foi
Que outras lembranças a senhora o meu ponto que fez a Portela desempatar
tem do Paulo da Portela? com a Mangueira.
Dodô da Portela – Ele foi o primeiro E não tinha essa história de escolinha, era
sambista que viajou para fora do país. Nes- com a gente mesmo. Em dias que não tinha
sas viagens, ele levava o nome da Portela. ensaio na escola, quando eu chegava em casa
Quando ele chegava, já vinha com o samba a mamãe até escondia as vassouras. Eu enro-
pronto para a escola. Enquanto ele não che- lava um pano no cabo e rodava! Haja espelho
gava, a gente ensaiava com sambas de ou- e lâmpada! Mamãe ficava tiririca...
tros compositores. Mas o Paulo sempre che- Na Portela, sempre foi tudo muito emoci-
gava e concorria com o samba dele. Mas, onante... A cada novo campeonato, os com-
em certo ano, ele estava em São Paulo e, positores me carregavam no colo. O resulta-
quando chegou, a gente já estava na Cen- do era na hora e os jurados não ficavam longe
tral indo para a Praça Onze desfilar, já era como hoje. Eles olhavam e pegavam na
carnaval! Ele ensinou o samba para as pas- bandeira, botavam a mão na roupa da porta-
toras ali mesmo, só que elas não entende- bandeira e do mestre-sala, olhavam toda a
ram o samba direito. No refrão a gente ti- nossa elegância. Nós dois não podíamos de
nha que falar “glória pra justiça”. Só que, jeito nenhum dar as costas para os jurados, a
na hora, saiu “pau na justiça”! As pastoras gente tinha que dançar olhando e sorrindo

36 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
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DODÔ DA PORTELA

para eles. Hoje, tem mestre-sala e porta-ban- A senhora nunca ganhou dinheiro
deira que só rodam e nem sabem por que com o samba?
estão rodando... A verdadeira rodada da por- Dodô da Portela – Não, até agora. Tenho
ta-bandeira, três para direita e três para es- uma butique lá na quadra que seu Carlinhos
querda, só quem faz sou eu e a Vilma, nin- [Carlinhos Maracanã, presidente da Portela]
guém mais faz. A maioria só faz aquele pião, mandou fazer pra mim. É só. Pode perguntar a
não acompanha nem a bateria. Era muito mais qualquer pessoa. Para mim, ter essa butique
bonita uma dança de porta-bandeira e mes- na quadra da Portela é um troféu, o troféu de
tre-sala. Os mestres-salas de agora gostam que eu gosto mais.
de pular. Os únicos que ainda fazem da ma- A senhora tem aposentadoria
neira antiga são o Peninha, da Estácio, e o também?
Chiquinho, da Imperatriz Leopoldinense. No Dodô da Portela – Tenho! E eu não tra-
meu tempo, a gente ia e voltava; agora, é tudo balhava? Quando me casei, meu crioulo que-
correndo. Mas isso é por causa do relógio ria me tirar do emprego, mas eu já tinha muito
também. O próprio pessoal da harmonia man- tempo de serviço. Conversei, levei ele; sabe
da a escola correr. como é, mulher leva o homem. Eu fiquei e me
Que outras mudanças ocorreram aposentei; tenho a minha aposentadoria e te-
nas escolas de samba? nho a pensão dele.
Dodô da Portela – A ala das baianas!
Antigamente, iam para a ala das baianas as
senhoras que não podiam sair em alas, não
tinham mais pique. Agora, a ala está cheia
de meninas novas, que só querem sair de
baiana para não pagar a fantasia. Como é
que essas senhoras estão se sentindo? Com
65 anos, já são cortadas. Não me conformo
de ver uma senhora se queixando que foi
cortada da ala das baianas. Na Portela, elas
vão para a minha butique falar sobre isso.
Sou do tempo em que as baianas eram as
senhoras da escola. Era uma ginga diferente.
Agora, os diretores querem que as baianas
suspendam os pés. Baiana não suspende o
pé, por isso se usava chinelo. Hoje estão des-
filando até de sandálias.
Mas, apesar disso, a senhora nem
pensa em deixar a escola.
Dodô da Portela – Eu vou deixar por quê?
Já estou velha, vou deixar por que se eu gosto
da Portela? Lá todos me respeitam.
Quem é a melhor porta-bandeira
da atualidade?
Dodô da Portela – Na minha opinião, são
várias: a Maria Helena, da Imperatriz, a
Selminha, da Beija-flor. E tem também a
Mariazinha, que era da Vila Isabel; mas ela está
cega, não dança mais.
A senhora desfilou a vida inteira só
pela Portela. Mas, nos carnavais
atuais, mestre-sala e porta-bandeira
mudam bastante de escola, não?
Dodô da Portela – Sim, mas antigamen-
te não tinha dinheiro, agora tem. Agora é ou-
tro departamento. Eu não ganhava dinheiro
nem para fazer minha roupa, minha roupa era
feita com o dinheiro do meu trabalho.

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E N T R E V I S TA

Como a senhora se tornou


madrinha da bateria?
Dodô da Portela – Nem sei direito como
foi! Só sei que recebi um telefonema do
Marquinhos, assessor do seu Carlinhos, dizen-
do: “Vou te falar uma surpresa, a senhora ago-
ra é madrinha da bateria”. Eu falei: “Você não
sabe que eu tenho mais de 80 anos? Sou ve-
lha, como você fica dizendo que sou madri-
nha de bateria?”. Claro que eu pensei que ele
estava caçoando de mim. Todo mundo sabe
que as madrinhas de bateria são modelos,
meninas novas. Antigamente, era diferente,
mas madrinha de bateria nunca foi velha.
Como era antigamente?
Dodô da Portela – Era uma menina do
local, da escola, mas era uma menina nova. Só
que ela não vinha nua; aliás, nem passista vi-
nha nua. Mas depois resolveram tirar as meni-
Seu marido também tentou tirá-la nas da escola e botar modelo.
da escola? O que a senhora acha disso?
Dodô da Portela – Quando éramos noi- Dodô da Portela – Para mim, tem que ser
vos, meu crioulo até me levava. Ele trabalhava menina da escola. Mas a verdade é que tira-
no cais e já me conheceu como porta-bandei- ram quase toda a gente da escola. Até para
ra. Ele dizia para mim: “Não sei se eu traba- subir no carro tem que ser menina bonita,
lho hoje”. Eu dizia: “Te espero até 9 horas. Se modelo. A única escola que não tem muito
não vier, eu vou sair”. Nunca enganei. Ele sa- essa diferença é a Beija-Flor. A Mangueira tam-
bia. Mas, depois que casamos, não sei o que bém valoriza muito as pessoas do local; tanto
deu nele, e ele não queria mais que eu fosse. que, para ser porta-bandeira ou mestre-sala,
Ele foi até fazer queixa para minha mãe e meu tem que morar lá no morro.
pai. Um dia meu pai chegou e falou: “Dodô, A senhora vai sozinha na frente da
deixa a bandeira”. Eu disse: “Deixo não”. E bateria?
nunca deixei. Dodô da Portela – Iremos eu e a rainha,
Ele era do samba? uma menina da comunidade.
Dodô da Portela – Era! Era mangueirense. E a senhora acha que essa atitude
Nós nos conhecemos num baile lá no Irajá; eu da Portela pode significar uma
tinha 20 e poucos anos; era muito bonita. Eu volta às origens da escola?
gostava muito de ir aos bailes... Dodô da Portela – Pode ser um exemplo
Era ciúme então? para as outras escolas. Sou uma das mais ve-
Dodô da Portela – Ciúme nada; não que- lhas do samba. Vocês já viram uma mulher de
ria mesmo, só isso. Depois desistiu. 84 anos na escola de samba se rebolando? É
Naquela época não era tão comum difícil! Na bateria é só homem, com uma se-
uma jovem ir sozinha a bailes, nhora é mais respeito, eles não vão me dizer
não? O que as pessoas falavam? piada, eles não vão me agarrar. É outro respei-
Dodô da Portela – Ninguém falava nada. to, lá todo mundo me chama de madrinha.
Ou eu não prestava atenção. Eu queria mesmo A senhora é muitíssimo admirada
era dançar, gostava de ir à Elite [tradicional e respeitada no mundo do samba.
gafieira do Centro do Rio]. Entrava em qual- Mas, fora dele, já houve algum
quer gafieira. Usava sapato alto e minha rou- fato que a discriminasse por ser
pa não era uma roupa comum; quem é de es- mulher e negra?
cola de samba se veste diferente pra ir ao baile. Dodô da Portela – Quando os desfiles de
A senhora tem filhos(as)? escola de samba começaram, os brancos não se
Dodô da Portela – Criei uma sobrinha metiam. As mães nem deixavam que as meni-
porque a mãe dela morreu de parto, era mi- nas brancas falassem com a gente, não podiam
nha irmã. Mas filho meu, não tive. Acho que nem encostar. Mulher de samba, mulher de
por causa da Portela. gafieira e mulher que trabalhava na fábrica não

38 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
9
DODÔ DA PORTELA

Participaram desta
prestava! Eu fazia isso tudo... E me casei di- é. Até os americanos dizem que no Brasil não entrevista:
reitinho. Mas a idéia era que a gente não pres- tem branco! Mesmo nas famílias de branqui- Elaine Ramos,
Iracema Dantas
tava. Lembro de uma música que diz: quando nhos – assim, igual a vocês – tem um preto lá e Marcelo Carvalho
uma escola de samba passa, parece até que no fundo do baú. A verdade é essa, mas quem
sacudiu um pé de jamelão; só preto. Mas, é que vai dizer? Todo mundo sempre está que- Fotos: Vanor Correia
mesmo nessa época, branco namorava negra. rendo clarear...
Não casava, mas namorava. Até hoje não mu- E que negócio é esse de falar que o Brasil
dou muito, né? foi descoberto pelos brancos? Descobriu
Mas, pessoalmente, já sentiu nada, tinha terra e tinha índio! A nossa língua
algum tipo de discriminação? é guarani, é de índio, não é o português.
Dodô da Portela – Em lugar nenhum. Se Algumas igrejas evangélicas têm
eu sei que em alguns lugares eu não vou ser ido ao sambódromo em grandes
bem recebida, por que iria? Sou muito assim. evangelizações. O que a senhora
Quais seriam esses lugares? pensa disso?
Dodô da Portela – Antigamente, por Dodô da Portela – Esse negócio de dizer
exemplo, o único clube de futebol onde en- que eles estão salvos e a gente não me deixa
trava preto era o Vasco. No Fluminense, no danada. Quando vejo sambista deixando o
Flamengo, no Botafogo, nesses clubes só samba e entrando pra Igreja, digo logo: é di-
entrava pra jogar. Não podia fazer outra nheiro, é dinheiro! E ainda tem gente que
coisa. Então, o que eu iria fazer lá? Para larga de comprar um pão para levar dinheiro
levar um não? Não sou melhor do que nin- para a Igreja.
guém, mas ninguém faz pouco caso de mim; Veja só: tem um programa que passa de-
é ruim de fazer! pois da meia-noite, com uma loura, que tem
A senhora acompanhou a cada coisa... Ela diz que é evangélica... Ah, cai
discussão sobre as cotas para fora! Pelo menos os católicos dão esmola, eles
alunos(as) negros(as)? não dão nada... Por isso, eu digo: “Deixa eu
Dodô da Portela – Claro! Todo mundo assim mesmo”, né, São Sebastião?
tem que ter direito a estudar, mas depende de
outras coisas. Lembro que, lá em Barra Mansa,
tinha um rapaz negro que estudou, fez facul-
dade. Ele, apesar de toda a separação que exis-
te, foi em frente e se formou médico, um mé-
dico muito bom. Mas é raro. Quando um negro
entra para um departamento, mesmo que sai-
ba mais que os brancos, quem fica é o branco;
o negro sai.
E por que o negro sai?
Dodô da Portela – Porque é preto! Já viu
preto mandar em branco? Já viu branco acei-
tar isso? É difícil para um preto!
Eu conheço a mãe do Edson Santos [verea-
dor pelo PT-RJ], a dona Elza. Ela já desfilou
comigo na Ala das Damas do Samba e sempre
diz que ele apanhou muito porque, quando
era estudante, só andava no meio dos bran-
cos fazendo política. Ela não queria que ne-
nhum branco fizesse pouco caso dele. Eu digo
para a Elza: “O seu filho ainda vai ser presi-
dente”. Ele luta bastante pelos negros, tanto
que já foi até candidato a senador. Ele perdeu
voto para o pessoal da Bíblia, mas tomara que
seja presidente um dia.
Então, a senhora acha que o Brasil
é um país racista?
Dodô da Portela – É racista, sim. Não era
pra ser, porque está cheio de crioulo aqui, mas

FEVOUTUBRO/2000
2004 / MAR 2004 39
R E S E N H A

destrutivas. Vera Malaguti Batista se inscre-


ve no seleto círculo do último grupo, e seu
novo livro O medo na cidade do Rio de Ja-
neiro é uma importante contribuição para
refletir sobre os motivos por que as mudan-
ças sociais são sempre adiadas em nosso
país. Sobretudo, o que acontece com uma
sociedade onde essas mudanças permane-
cem por séculos bloqueadas.
A autora traça um paralelo entre o
século XIX e as três últimas décadas do sé-
culo XX. O primeiro quadro se desenha no
contexto da sociedade escravocrata do Im-
pério e do medo constante de uma rebelião
dos de baixo como elemento determinante
no DNA político das classes dominantes.
O segundo é o Brasil das políticas de des-
monte do Estado dos anos recentes, com o
O medo na cidade crescimento impressionante da violência
nossa de cada dia e sua transformação em
do Rio de Janeiro notícia de primeira página de todos jornais.
O aspecto de convergência seria a relação
Vera Malaguti Batista
subordinada com a dinâmica mundial de
Editora Revan
acumulação de capital, por meio da econo-
272 págs.
mia agrária de então ou de um parque in-
dustrial complexo e incompleto, infenso a
As décadas de 1980 e 1990 serão reconheci- uma economia política que pudesse trans-
das pela historiografia, no futuro, como a formar os ganhos com a modernização em
época da grande vitória da reação burgue- amplas conquistas de cidadania. O resulta-
sa contra os movimentos políticos de es- do dessa condição é o cultivo permanente
querda. A derrota se deu no campo das experi- do medo como estratégia de dominação.
ências de governos de esquerda (socialismo Assim, o que poderia ser visto como
real ou socialdemocracia) e nas respostas te- arbitrário nesses paralelos históricos ganha
óricas aos dilemas da sociedade contempo- uma proximidade desconcertante. O grande
rânea. Diante disso, esboçaram-se, entre in- medo do século XIX – que Vera constrói a
telectuais de esquerda, três comportamentos: partir da Revolta dos Malês, na Bahia, em
os que rapidamente se entregaram aos no- 1835 – era uma resposta à crise do Primeiro
vos tempos e suas vicissitudes antiutópicas Império, forma acabada da frustração de to-
e pós-tudo; os que ficaram reafirmando o pas- dos os sonhos de uma independência que
sado como uma entidade mítica, sem que nele representasse a formação de uma nação li-
fossem identificados erros de qualquer or- vre e autônoma. Portanto, aquela conjuntu-
dem; e os que se puseram a pensar na pers- ra de instabilidade da década de 1930 – tam-
pectiva de atualizar a crítica ao capitalismo bém sacudida pela Cabanagem no Pará, entre
numa de suas fases mais predatórias e outras revoltas populares – indica o quanto

40 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
era insuportável para as classes subalternas genocídios, como a cifra de 40 mil mortes
a continuidade da estrutura colonial, mesmo violentas por ano no Brasil, atingindo, so-
que em nova chave política. O apelo ao medo bretudo, jovens negros – com que essa clas-
em torno de um inimigo perigoso e desco- se impõe literalmente a ferro e fogo a ordem
nhecido é quase igual nos tempos de Feijó e e o progresso (não é um notável acaso que o
nos de FHC. Porém, para os dias de hoje, a alcaide condottieri da protofascista guarda
origem dessa velha e requentada estratégia municipal do Rio de Janeiro recupere nas
de poder está no golpe de Estado de 1964. placas de suas obras essa consigna?) estão
Em sua história desses dois momen- completamente silenciados. A própria es-
tos dos medos cariocas, o argumento novo querda, na sua maioria formada pelos filhos
que a autora mobiliza para a compreensão da classe média branca, tende a ignorar esse
dos modos das nossas revoluções passivas, tema, talvez por julgar que ele não faça par-
como diria Carlos Nelson Coutinho, é o pa- te da luta pela radicalização da democracia. Com
pel que exercem o sistema penal e o discurso tal comportamento, apenas revela sua total su-
criminológico em tais ocasiões. Sabemos, ao bordinação a pensadores de outros países e
menos desde a grande obra de Rusche e uma incompreensível alienação diante dos
Kirchheimer (Punição e estrutura social), componentes materiais, isto é, étnicos – julga-
que o sistema punitivo de uma sociedade é ria redundante o termo se não fosse uma ques-
um poderoso aparato disciplinador das clas- tão teórica de primeira ordem em nosso país –
ses subalternas. Mas, em países onde a do- das classes populares.
minação política pôde se realizar predomi- O Medo na cidade do Rio de Janeiro
nantemente pela via da persuasão, esse é uma corajosa escavação nas ruínas resul-
aparato perdeu sua função ainda no início tantes desse processo histórico. Um passeio
do século XX. (É certo que essa afirmação pela alma de uma sociedade que não quer se
merece ressalvas nos anos mais recentes com saber assustadoramente deformada. Torna-se
o que Loïc Wacquant tem chamado de Esta- uma contribuição importante não apenas por
do penal nos Estados Unidos. Mas isso ape- trazer uma nova luz ao modelo em que as clas-
nas esclarece a natureza política da transição ses dominantes preparam as contra-revolu-
por que estão passando as sociedades dos ções no Brasil como também por apontar que
países centrais.) Em países periféricos, a não há neutralidade possível diante das ações
criminalização dos pobres é uma constante que do sistema penal contra as pessoas pretas e
pode ser compreendida como contraponto da pobres. Nesse campo, alinhava-se a unidade
ausência desde sempre do Estado de bem-es- entre racismo e repressão como o componen-
tar social, donde o uso da força como via privi- te que, em última instância, faz que os
legiada de dominação de classe. Dessa for- perdedores sejam sempre os mesmos. Exata-
ma, o direito penal é um dos componentes mente esses que o medo do primeiro governo
“ontológicos” da ideologia da classe domi- de esquerda eleito democraticamente neste
nante brasileira – com toda a crueldade des- país fará que vejam o futuro como uma per-
ses homens cordiais, essa face perversa da manência do passado.
frieza e desprezo com os de baixo. Se as vira-
das de mesa nas regras do jogo democrático
já são uma praxe dessa elite, e tais golpes fo- Marildo Menegat
ram escrutinados e denunciados pelas esquer- Professor adjunto da Escola
das; os crimes cotidianos – verdadeiros de Serviço Social da UFRJ

FEV 2004 / MAR 2004 41


no estímulo ao novo – nem sempre associ-
ado ao moderno – e ao simultâneo resgate
e construção da identidade brasileira. O
novo dizia respeito às esferas administra-
tiva, produtiva, política, social, territorial
e urbana. Já o redescobrimento do Brasil
não seria simplesmente uma volta nostál-
gica ao passado, mas a simbiose do pas-
sado, cuidadosamente selecionado, com
esse novo patrocinado pelo Estado. Nes-
se ambiente, deve ser entendida a cons-
trução de Volta Redonda.
Mas o que interessa em Volta Re-
donda? A unidade produtiva da usina, o
projeto urbanístico ou a cidade? A respos-
ta do autor é clara: tudo o que ao projeto se
associava. Lopes se detém na atmosfera da
era Vargas para situar a construção de Volta
A aventura da forma: Redonda no contexto da reorganização do
urbanismo e utopia território, da urbanização crescente e das
articulações políticas em torno dos princi-
em Volta Redonda pais personagens que emergiam no novo
campo profissional que se consolidava: o
Alberto Lopes
urbanismo moderno. Por isso, o fácil en-
Editora E-papers
tendimento da relação existente entre a
188 págs.
marcha para o Oeste, as construções da
Central do Brasil, do Palácio Capanema, do
A aventura da forma: urbanismo e utopia Ministério da Fazenda e a abertura da Ave-
em Volta Redonda é fruto da dissertação nida Presidente Vargas no Rio de Janeiro,
de mestrado de Alberto Lopes. Embora seja a construção de Goiânia, a criação da Liga
denso, o livro, longe de ser um texto hermé- Nacional contra o Mocambo e a invenção
tico, feito para doutos, é fácil de ser lido. O de um novo lugar exemplarmente imagina-
texto reflete a complexidade da pergunta- do para ser Volta Redonda.
problema, do objeto e do caminho percorri- Para dar conta desse desafio, o au-
do para desvelá-los. tor faz um pequeno histórico da ocupação
A densidade do livro se revela na do lugar para, então, nos contar a trama
interface do objeto construído. O recurso política por trás da escolha do local do pro-
à história e à geografia, sem jamais aban- jeto. No terceiro capítulo, faz um breve pas-
donar o campo do urbanismo, mostra um seio pelo pensamento urbanístico moder-
pesquisador maduro com suas fontes e no para chegar a Tony Garnier (1869–1948).
opções teórico-metodológicas. Assim, o O modelo da cidade industrial desse
texto flui a partir do contexto do Estado renomado urbanista francês é dissecado de
Novo. As construções simbólicas do esta- forma a nos mostrar a analogia existente com
do de exceção de Vargas são decodificadas o plano de Volta Redonda. O instigante foi

42 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
R E S E N H A

a acuidade de Lopes em tratar dessa influ- de era visceral. Assim, Volta Redonda emer-
ência, acentuando a característica utópica ge como um projeto ufanista de Estado,
de ambos os projetos. onde a cidade real se encontraria suspensa
Essa influência pode ser buscada na no tempo. Ela se realizaria no devir sem o
expressão física dos projetos, mas extrapola passado, tendo o presente como uma forma
a materialidade dos planos. A dimensão so- inacabada. Na expectativa do projeto, esse
cial é examinada a partir da interseção da futuro desejado estava chegando e o pas-
análise da cidade industrial de Garnier, da sado indesejado estava sendo definitiva-
trajetória profissional de Attílio Corrêa Lima mente morto.
(1901–1943), autor do plano de Volta Redon- Por fim, a questão desafiadora que
da que havia estudado na França entre 1927 envolve a busca de uma filiação entre a
e 1931, e principalmente das conjunturas do cidade industrial de Garnier e a Volta Re-
período analisado. Assim, o livro não é so- donda de Corrêa Lima não se resolve com
bre a história de Volta Redonda e muito me- as similaridades dos traçados e dos dese-
nos sobre a implantação da usina siderúr- nhos propostos, como explicitou o autor,
gica, mas sobre a relação entre a forma da pois, entre o lápis e o papel do projeto, há
cidade e os seus processos sociais. o espaço de tudo aquilo que não está ex-
Ocorre que os processos sociais plícito no plano. Mas isso nos traz outras
não são dependentes exclusivamente das perguntas. O modelo de Garnier teria uma
formas espaciais que os sustentam, o que dimensão democrática que o plano de
tende a desmistificar o discurso social e Corrêa Lima não contemplava? Como seria
político fundador do projeto. Não surpre- possível buscar essa filiação em meio a uma
ende, portanto, a tensão existente entre a encomenda feita por uma ditadura?
preferência de Corrêa Lima por habitações Por tudo isso, a leitura desse livro
coletivas e a concepção vitoriosa da di- torna-se obrigatória. A aparente narrativa
retoria da Companhia Siderúrgica Nacio- linear torna o texto leve, mas não esconde
nal (CSN) em relação às habitações indi- essas questões. São elas que nos aproxi-
viduais. A luta entre o novo e o passado, mam das Fedoras, de Italo Calvino, pois a
rapidamente transformado em velho – de- aventura da forma se confunde com a aven-
vendo, portanto, ser descartado –, expres- tura da cidade e da vida.
sou-se de formas diferenciadas ao longo do
tempo. Se o novo, em alguns momentos, ser-
viu-se do velho, rapidamente o velho pas- Lucia Silva
sou a se servir do novo. Entre as experiênci- Mestre em Planejamento Urbano
as relatadas no livro, há casos de moradores e Regional (Ippur/UFRJ) e doutora
e moradoras que criavam boi e porco em em História Social (PUC/SP).
edifícios de apartamentos planejados para Autora de Verão de 1930/31:
ensejar a nova ordem. tempo quente nos jornais
Longe de pensar o texto como uma do Rio (PMCRJ, 2003)
crítica contundente ao ideário do urbanis- e História do urbanismo no Rio
mo moderno, o livro explora a poderosa re- de Janeiro: administração municipal,
lação entre o Estado e a cidade, em termos engenharia e arquitetura
de políticas públicas e projetos, ao longo dos anos 20 à ditadura Vargas
do tempo. A relação entre a usina e a cida- (E-papers, 2003).

FEV 2004 / MAR 2004 43


FÓRUM
FÓRUM
Gustavo Marin*
SOCIAL MUNDIAL

SOCIAL
MUNDIAL
Estamos mais

fortes
Depois do Fórum Social Mundial 2004 (FSM), em Mumbai, na Índia, em janeiro, a socieda-

de civil mundial já não é mais a mesma ou, pelo menos, a dinâmica iniciada no primeiro

FSM de Porto Alegre mudou profundamente, fortalecendo-se de forma notável. De agora

em diante, Mumbai está inscrita na agenda cidadã mundial iniciada em Seattle ou, como

dirão algumas pessoas, na África do Sul, em 1994, com a queda do apartheid. Daqui para

frente, quando se falar do Fórum de Mumbai, estará sendo evocado um evento efervescen-

te, popular, inédito na curta história dos movimentos altermundialistas.

44 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
A tentativa de mundializar realmente o FSM e sões próprias de qualquer encontro desse
fazê-lo crescer além de suas raízes brasileiras porte. Essas tensões podem ser fonte de enri-
deu resultado, pois a busca de uma verdadei- quecimento individual e coletivo. Também
ra mundialização das resistências e a elabo- podem aumentar as distâncias existentes en-
ração de vias alternativas ante a globalização tre os diversos setores que compõem a dinâ-
capitalista apontam justamente para o forta- mica altermundialista e, a longo prazo, enfra-
lecimento das lutas de todos os atores, tanto quecer o processo empreendido.
no Norte como no Sul e, também, no Leste e Entre essas tensões, pode ser identifica-
no Oeste. Depois de Mumbai, Porto Alegre da a separação entre as atividades organizadas
está mais forte do que antes. Graças à tenaci- de forma centralizada e as atividades auto-
dade de organizadores e organizadoras geridas pelos diversos grupos, redes, sindica-
hindus e, principalmente, graças à forte pre- tos, associações etc. Era um tanto patético ver
sença e à arte de viver dos hindus que coor- as salas com 4 mil cadeiras para os painéis e
denaram esse evento, todos e todas somos com 10 mil para as conferências ocupadas por
agora mais fortes do que antes. 100 ou 200 pessoas. A sensação de vazio era
Depois dessa primeira constatação, são evidente. Essas salas dispunham de serviços
muitas as lições aprendidas que podemos citar. de tradução simultânea, áudio e vídeo própri-
A primeira delas é que, quando um grupo de os das grandes conferências, mas para um
cidadãos e cidadãs se envolve em uma nova público que não estava lá, enquanto muitos
ação, procurando abrir novos caminhos para dos seminários e das oficinas autogeridas (cer-
fazer avançar um processo mundial e isso acon- ca de mil) eram mais animados e participativos.
tece, propiciando um processo aberto e trans- Essa divisão, que já tinha sido notada em Por-
parente, apesar da diversidade (ou deveríamos to Alegre, entre uma cultura que se expressa
dizer graças à diversidade?) de seus membros, mediante o discurso emitido (freqüentemente
essa ação tem muita chance de ter êxito. Se, a partir de cima) diante de um público que só
além disso, há uma ajuda em outras regiões do pode aplaudir e outra cultura que favorece o
mundo a partir de pessoas que oferecem suas diálogo, o intercâmbio de experiências e o
experiências e manifestam sua solidariedade debate sobre as idéias e as propostas foi, em
mediante sua presença e apoio, as possibilida- Mumbai, uma evidência indiscutível. Como
des de sucesso são ainda maiores. É preciso corolário, pode-se acrescentar que as ativida-
dizer que, como toda aventura humana, o FSM des autogeridas, ao terem como referência um
de Mumbai foi possível graças a um grupo re- grupo, uma associação ou uma rede com base
lativamente pequeno de homens e mulheres na Índia, foram muitas vezes as mais numero-
da Índia, apoiado por pessoas de outras regi- sas. Em outras palavras, nos Fóruns Sociais as
ões do mundo que, progressivamente, foram atividades “lançadas” de cima não funcionam.
ampliando o processo até envolver centenas – Outra divisão flagrante era a que exis-
ou milhares – de organizadores e voluntários.1 tia entre as pessoas que se manifestavam nas
Os métodos e as práticas de organização dos ruas, freqüentemente gritando slogans e to-
Fóruns Sociais, uma vez que se baseiam na Car- cando tambores, e as que discutiam nas salas
ta de Princípios e pregam a abertura e a trans- de reuniões. Era um pouco estranho ver, por
parência, diminuem os riscos de controle por um lado, os grupos que tentavam se fazer ou-
parte de um pequeno grupo. vir dizendo “aqui estamos” mediante slogans
Outra lição é que, acima de tudo, o Fó- e tambores e, por outro, aqueles que, laborio-
rum de Mumbai foi uma manifestação popu- samente, procuravam se fazer ouvir por meio
lar, uma manifestação do povo. Comparado dos idiomas, em inglês, híndi, marati, chinês,
com Porto Alegre, e principalmente com os francês, espanhol, português etc. A diversida-
Fóruns europeus, que mobilizaram principal- de é uma característica importante dos Fóruns
mente setores da classe média, em Mumbai Sociais e, em Mumbai, era muito clara e evi-
foi amplamente majoritária a presença de dente. Mas, se não há diálogo entre as dife-
“intocáveis”, de camponeses, de organizações rentes culturas, a diversidade pode se trans-
de mulheres e jovens e de pessoas visivelmen- formar em um diálogo de surdos e fazer com
te pobres. O Fórum não só se tornou mais que as pessoas não se encontrem. “Domesti- 1 O artigo “Deux ans défforts
pour um Forum ‘made in
“mundial”, como também mais “social”. car” a interculturalidade requer tempo, não é India’”, do jornalista Laurence
Caramel, publicado no L e
Um aprendizado foi que o Fórum 2004 algo que se possa improvisar. Não há dúvida Monde de 16 de janeiro de
também reuniu culturas e práticas muito di- de que é preciso deixar espaço para o 2004, traz informações sobre
os antecedentes do FSM na
versas. Em Mumbai, vieram à tona várias ten- imprevisível e que se esteja aberto diante das Índia.

FEV 2004 / MAR 2004 45


FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

diferentes expressões culturais, mas, ao mes- mais forte a convicção de que é necessário atra-
mo tempo, é necessário preparar os encon- vessar o umbral e entrar em uma nova etapa.
tros entre culturas diversas. Caso contrário, Enquanto o fim da Guerra Fria e a que-
acabam surgindo mal-entendidos. 2 da do Muro de Berlim pareciam pressagiar uma
Outra contradição diz respeito aos mei- nova organização mundial fundada sobre o
os de expressão. Há pessoas que se expressam multilateralismo internacional baseado no di-
por meio do discurso e da escrita e há aquelas reito e na democracia, a realidade é que assis-
que o fazem por meios artísticos. Durante o timos a um panorama bem diferente: o do rei-
Fórum de Mumbai, houve 5 mil manifestações nado absoluto do império norte-americano
artísticas nas ruas, algumas delas não regis- sobre o restante do mundo. A globalização
tradas na programação. Essas manifestações neoliberal estende sem cessar seus tentáculos
aconteciam nas esquinas ou nas áreas próxi- por todos os cantos do planeta e só faz ampli-
mas aos estandes. As manifestações do tipo ar as desigualdades entre pessoas pobres e
“teatro de rua” ou corais a céu aberto eram ricas, entre o Sul e o Norte. O panorama mun-
verdadeiras oficinas temáticas onde eram tra- dial no início do século XXI, e ainda mais de-
tados os mais diversos temas, tais como o co- pois de 11 de setembro de 2001, caracteriza-
mércio justo ou a exclusão das mulheres, com se pela passagem de uma globalização
uma qualidade tão pertinente quanto a das neoliberal (na qual a vontade de potência se
oficinas e, às vezes, até mais. Podemos dizer mantinha dentro dos limites marcados pela
que essa contradição não é, na verdade, uma Guerra Fria) para uma mundialização/globali-
contradição. No entanto, o diálogo e a articu- zação neo-imperial (na qual a lógica de guerra
lação entre as formas de intercâmbio basea- se junta à lógica da competência, mostrando
das no discurso e as que se baseiam em diver- claramente os interesses dos Estados Unidos
sas expressões artísticas ainda continuam e seus aliados).
sendo tarefas incompletas. A história nos ensinou que todos os
impérios caem. Mas também nos ensinou que
podem durar muitos séculos! Não estamos
Desafios históricos e políticos
agora no início do império norte-americano,
Para refletir sobre os desafios históricos e po- tampouco estamos diante de sua crise final
líticos, falta algo mais que o espaço de um ou de sua queda iminente.
artigo redigido logo depois do Fórum. Muitas Até agora os impérios não detiveram a
publicações divulgadas durante o Fórum da história. Mas o império norte-americano com-
Índia já trazem alguns dados esclarecedores porta uma característica singular e, nesse sen-
sobre essas questões. Por exemplo, é cada vez tido, nos confronta com um desafio histórico:

Visibilidade e legibilidade de debates e propostas

Atualmente, já se admite com facilidade foi feito um novo esforço, e os debates e pelo público participante. Esse esforço
que os Fóruns não devem terminar com as propostas surgidos nas conferências permite trazer à luz as novas idéias, as
declarações finais. Por outro lado, é hu- puderam ficar registrados e foram pu- novas alternativas que os atores sociais
manamente impossível querer redigir blicados diretamente no site. Para a ter- estão implementando para fazer frente
uma só declaração comum e final. Essa ceira edição de 2003, foi implementado e se sobrepor, dia após dia, às políticas
prática, claramente inscrita na Carta de um mecanismo mais consistente. 3 Nos impostas pelos donos da globalização
Princípios do FSM, foi uma das chaves diversos Fóruns continentais e temáticos, neoliberal e neo-imperialista.
do sucesso. Entretanto, ainda existe uma foram levadas adiante iniciativas seme- Os trabalhos de memória, documen-
tarefa pendente no que diz respeito ao lhantes. Esperemos agora os informes tação e sistematização são assumidos, de
desenvolvimento de meios que permi- do Fórum de Mumbai.4 agora em diante, por um crescente nú-
tam ter uma visão global e facilitem uma Essa tentativa de conservar a me- mero de equipes. As comissões de con-
legibilidade, evidenciando a riqueza dos mória dos Fóruns não se trata, em ab- teúdo e metodologia do Conselho Inter-
debates e das propostas. Já no primeiro soluto, de uma questão de nostalgia. nacional também começaram a se
Fórum em Porto Alegre, em janeiro de Uma dinâmica sem memória corre o ris- envolver. A capacidade de inovação para
2001, houve tentativas de documenta- co de diluir-se ou de que sua história que os programas e os métodos dos pró-
ção e sistematização das idéias pensadas seja escrita por outros. O trabalho de ximos Fóruns sejam realmente inovado-
nos Fóruns, mas a inevitável improvisa- memória, documentação e sistematiza- res e participativos será uma das chaves
ção fez que ficassem poucos indícios da ção é essencial para valorizar a riqueza para que a dinâmica altermundialista
memória da primeira edição. Em 2002, intercultural, social e política, trazida possa continuar fazendo caminho.

46 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
ESTAMOS MAIS FORTES

o modo de produção e de consumo e o siste- império que impõe uma lógica de “pax ameri- * Gustavo Marin
ma científico e técnico que implementou aten- cana” por meio da guerra e do modo de orga- Aliança para um Mundo
tam contra a própria condição humana. E não nização social e política que ela envolve e, por Responsável, Plural e
somente pelos prejuízos que infligem ao meio outro lado, grupos que organizam atentados Solidário
ambiente, mas também à vida, pelas mudan- reiteradamente, sem esquecer todas as redes
Fundação Charles
ças que podem introduzir na espécie humana. mafiosas – essas redes clandestinas que re- Léopold Mayer
Não é simplesmente uma questão de modos gem a vida de milhões de seres humanos que
de produção e de consumo. Tem algo a ver sobrevivem em condições semelhantes às da gustavo@alliance21.org

com a essência da condição humana, e isso escravidão. Dentro dessa lógica (se é que isso
está em perigo. pode ser chamado de lógica), a sociedade civil
Sabemos, agora, que o império atra- que está surgindo e que tentamos desenvol-
vessa crises econômicas recorrentes, mas pas- ver não pode ser tomada como refém.
2 Sobre esse tema, no marco
sa de uma crise para outra. Até se poderia di- Está claro que temos avançado desde do Diálogo Intercultural entre
a Índia e a China, coordenado
zer que é um império que se alimenta de crises. a queda do Muro de Berlim ou desde o fim pela Aliança para um Mundo
Até agora sempre conseguiu se salvar. Natu- do apartheid na África do Sul. Tem sido dada Responsável, Plural e Solidário
e apoiado pela Samvad Indian
ralmente, deixa atrás de si uma situação eco- prioridade a novos valores e a uma relação Foundation, pela Universidade
de Jinan, em Guangdong, e
nômica e social pior do que a provocada por de respeito entre homens e mulheres, e tam- pela Fundação da Juventude
um terremoto: sociedades cada vez mais bém foi empreendida uma nova relação en- da China, com o apoio da FPH
(Fundação Charles Léopold
destroçadas, cada vez mais fragmentadas, onde tre a humanidade e a biosfera. Na última Meyer), uma delegação da
China, com 15 pessoas, parti-
as desigualdades e as exclusões se agravam. década, havíamos avançado na questão dos cipou do FSM de Mumbai. O
Também atravessa crises de gover- direitos humanos. Por um momento, acredi- grupo chinês tomou a inicia-
tiva de chegar à Índia uma
nança: há muito tempo se diz que a reforma tamos que Pinochet seria julgado! Foi possí- semana antes, encontrar-se
em Pune e no estado de
do sistema das Nações Unidas é uma necessi- vel constituir um Tribunal Penal Internacio- Maharastra com outros cola-
dade evidente, mas o fato é que isso nunca nal e houve um desenvolvimento de boradores e organizar junto
com eles várias oficinas duran-
acontece. O sistema de segurança internacio- importantes redes. Centenas de encontros te o Fórum (em chinês, híndi,
marati e inglês). A Carta de
nal se tornou mais obsoleto e, além disso, por foram realizados. Produzimos dezenas de Princípios do FSM tinha sido
estar sob a tutela do império norte-america- cadernos de propostas. traduzida para o chinês. A
preparação da presença chi-
no, representa um perigo para a segurança e Todos os avanços são significativos. Os nesa no Fórum ocorreu com
meses de antecedência, e um
o entendimento entre as nações. Fóruns Sociais e as diferentes alianças são im- trabalho de imersão prévia
Além do mais, o império tenta impor portantes. A pergunta continua sendo: como permitiu superar eventuais
mal-entendidos e favorecer os
um novo marco, ideológico e religioso, medi- vamos fazer para que esses Fóruns e essas ali- vínculos – ainda que incipientes
– entre aqueles dois países, que
ante verdadeiras cruzadas que só fazem au- anças estejam à altura da situação? Podere- são os mais povoados do mun-
mentar os fanatismos religiosos. Esse império mos fazer com que o império caia? Seremos do e, além disso, vizinhos.

tem uma característica especial. Todos a tive- capazes de fazer que a humanidade saia da 3 O Ibase, em nome da Se-
cretaria Internacional, mobili-
ram, mas esse é um verdadeiro especialista: situação de estar entre a espada e a parede? zou várias dezenas de
pesquisadores e pesquisadoras.
cada vez que há uma crise, reage fazendo uma O século XXI deverá ser um século de Essa iniciativa foi reforçada
guerra. É um império guerreiro que atua pela grandes transformações, tanto no que se re- pela equipe de apoio para a
sistematização (“mapeadores”),
força violenta e impõe guerras, como é o caso fere à nossa maneira de pensar, como de sen- coordenada pela Aliança para
um Mundo Responsável, Plural
da última, que atualmente vivemos no Iraque. tir, de produzir, de consumir, de nos comuni- e Solidário, com o apoio da
Mas também há outra característica sin- car e nos governar. Cada um de nós sabe disso, FPH. Foi publicada uma cole-
ção de cinco volumes em por-
gular na atual situação que não podemos dei- mas, ao estarmos isolados, sentimo-nos para- tuguês e divulgado um
CD-ROM em quatro idiomas,
xar de mencionar, que é o grande aumento da lisados pela nossa própria impotência. É pre- com todos os informes e as
violência espetacular por parte de grupos que ciso reagir contra essa impotência, e essa rea- análises da terceira edição do
Fórum (conferências, painéis,
atuam em rede. Chegamos a um ponto em ção está se manifestando de diferentes atividades autogeridas, mesas
de diálogo e controvérsia e
que todos os anos são comemorados os gran- maneiras no mundo inteiro. pesquisas sobre o perfil de
des atentados que vêm matando milhares de Para fazer frente a esse desafio, há um participantes).

pessoas. Daqui em diante viveremos um perí- amplo debate de idéias e propostas, desen- 4 Françoise Fuegas, da equipe
de documentação e sistemati-
odo em que todos os anos estaremos volvido no processo gerado pelos Fóruns So- zação que havia trabalhado em
Porto Alegre, em 2003, come-
relembrando massacres. Esse é um traço parti- ciais e pelas diferentes dinâmicas cidadãs em çou um primeiro trabalho que
cular de nossa época: o império norte-ameri- muitas regiões do mundo. A partir daí, po- se propõe a dar legitimidade
aos temas apresentados no
cano se impõe, mas por meio de explosões, dem e devem surgir não só respostas às per- FSM de Mumbai. Trata-se de
uma análise baseada nas pa-
como acontece não só no Iraque, mas tam- guntas anteriores, mas também contribuições lavras-chave da base de dados
bém no mundo árabe, nas grandes cidades do para abrir, desde já, novas perspectivas para do FSM na Índia (The top ten
keywords of the WSF and the
Norte e em algumas do Sul. Nesse contexto, já que a humanidade possa viver em paz. Em main keywords by continents),
que pode ser encontrada em:
que é nele que devemos nos situar, estamos nossos dias, esse desafio se tornou uma ques- <http://allies.alliance21.org/
entre a espada e a parede? Por um lado, um tão de vida e morte. fsm/article.php3?id_article=231>.

FEV 2004 / MAR 2004 47


IBASE
OPINIÃO

Impressões de
Mumbai
O Fórum Social Mundial 2004 despertou diferentes sentimentos entre aqueles(as) que

estiveram em Mumbai. Especialmente para integrantes do Ibase, que acompanham o

Fórum desde as primeiras edições em Porto Alegre, o impacto de conviver com uma

desigualdade tão diferente da brasileira – ainda que não se trate de qualificá-la como

mais ou menos grave que a nossa – fez despertar questionamentos sobre os caminhos

que levam à construção de um outro mundo. Democracia Viva traz alguns relatos

dos(as) que durante seis dias puderam acompanhar mais uma edição de pleno exercício

da cidadania planetária.

48 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
Artífices de um mundo diferente
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

O Fórum Social Mundial (FSM) adquiriu uma sujeitos sociais que aderem à idéia e querem
nova e importante faceta: mostrou ser de di- ser artífices de um mundo diferente, onde a
mensões universais. Como mobilização da referência sejam todos os direitos humanos
emergente e diversa cidadania planetária, con- para todos os seres humanos. Se, até 2003,
tinua crescendo – quase 120 mil participantes éramos dominantemente latinos(as), agora so-
mobilizados(as) pela idéia de que, diante da mos mais universais, bem implantados na Ásia,
globalização dominante e suas mazelas, “ou- onde vive metade da humanidade. O FSM pas-
tro mundo é possível”. sou a ser assumido como espaço de expressão
À primeira vista, uma cacofonia. A Índia de identidades e propostas de amplos setores
em si mesma, com mais de 1 bilhão de seres populares. Foi um enorme salto de qualidade
humanos, é um mundo diverso, falando mui- na superação do déficit geográfico e social em
tas línguas – mais de 40, das quais quase a termos de sujeitos portadores do FSM.
metade é oficial –, com suas castas, com a ex- As novas linguagens e a necessidade de
clusão social de dalits e quase 300 milhões vi- tradução, que faça a liga da igualdade na diver-
vendo na indigência. No outro extremo, cerca sidade, são o desafio político e cultural maior
de 200 milhões integrados ao mercado que emerge de Mumbai. A força de novas lin-
globalizado. O impacto é atordoante, cultural guagens, exprimindo identidades não-reconhe-
e politicamente, ainda mais para olhos aguça- cidas e direitos negados – entre os quais so-
dos de ativistas de um emergente movimento bressaíram os movimentos dos dalits –,
de dimensões planetárias. Inevitavelmente, somando-se à onda ascendente clamando por
somos levados(as) a nos perguntar se faze- outro mundo, foi a tônica das múltiplas mar-
mos o bastante, se nos indignamos suficien- chas no FSM. A poeirenta rua principal foi trans-
temente diante da desumanidade a que mui- formada em avenida da cidadania planetária,
tas mulheres e homens, crianças e idosos(as) das 8 horas da manhã às 10 horas da noite.
são condenados(as) e se estamos sendo verda- Esse foi o epicentro do FSM, em Mumbai. Não
deiramente radicais nas propostas de mudança. foi preciso entender literalmente o que diziam
Mais de 20 mil dalits participaram, dan- as marchas, bastava render-se ao seu simbolis-
do uma dimensão bem popular ao FSM. Jun- mo, cheio de denúncias e afirmações. A elas
tou-se aos indianos e indianas uma rica expres- se somaram e por elas foram requalificados
são dos povos da Ásia, além de europeus e os grandes atos (conferências, painéis e me-
européias e norte-americanos(as), africanos(as) sas-redondas) sobre militarismo, unilateralismo
e latino-americanos(as). Destacou-se o fato de e guerra, sobre o poder global opressor e as
haver 480 brasileiras e brasileiros participan- trincheiras de resistência, sobre os movimen-
tes, número maior do que aqueles(as) da Ásia tos pela paz. No meio, o laboratório vivo de
no FSM de 2003, em Porto Alegre. O Nesco mais de mil seminários e oficinas, a seu modo
Ground – as construções de uma indústria si- desencontrados, mas afirmativos da possibi-
derúrgica falida, na periferia de Mumbai, adap- lidade de iniciar aqui e agora a construção de
tadas ao FSM, com salas improvisadas à base outro mundo.
de bambu e divisórias, teto e piso de pano rús- No fim, foi um Fórum que impactou
tico – tornou-se a expressão plena do que está pelo que carrega de surpreendente. Diante da
de alguma forma de fora da globalização: gen- crise em que se debate a ordem dominante do
te em carne e osso, mas comungando de um direito quase exclusivo do capital, a adesão à
mesmo ideal de liberdade e dignidade huma- mensagem de que “um outro mundo é possí-
nas acima do mercado. vel” é uma garantia da pujança da onda de
O êxito do Fórum Social Mundial em cidadania. Precisamos transformá-la em força
Mumbai deve ser medido pela adesão política, de reconstrução de um mundo solidário, de-
de mente e coração, no sonho e com vontade, mocrático e sustentável, para nós e para as
à sua mensagem. A cacofonia foi, na verdade, gerações futuras. Essa é a principal lição a se
uma pujante demonstração da diversidade de extrair de Mumbai.

FEV 2004 / MAR 2004 49


O P I N I Ã O

Do calor dos temperos às mãos geladas


das crianças que passam fome
Vívian Braga
Antropóloga, pesquisadora do Ibase

Pela manhã, já se sentia aromas de curry, sempre enfeitadas com pulseiras, braceletes,
cominho, gengibre, alho, mostarda, brincos, colares, tecidos e cores, muitas co-
tamarindo e chile misturados ao cheiro do res. A comida indiana também. Tanto os mem-
café servido no hotel. Ao fazer o pedido, bros da casta mais baixa como os da mais alta
brasileiros(as) que não queriam se envere- consomem alimentos multicoloridos.
dar pela cozinha indiana defendiam-se com À noite, nos restaurantes, a ausên-
um sonoro “no spice”. Mas o alerta não cia de alguns itens alimentares no cardá-
surtia efeito. Mesmo assim seus pratos vi- pio indiano e o alto preço das bebidas al-
nham apimentados. Parece que a comida coólicas é uma constante. Provavelmente,
dizia: “O que vocês estão pensando?! Não isso se relaciona às restrições alimentares
vou mudar porque querem”. Seria esse um da religião hindu. Hindus não comem car-
sinal de resistência à massificação do gos- ne de vaca, queijo nem consomem bebi-
to, sutilmente tramada pelos chefes dos res- das com álcool.
taurantes de Mumbai? Nessa viagem gastronômica, não se
À tarde, era a vez das comidas vendi- pode negligenciar um outro tipo de ausên-
das nos Food Counters do Nesco Ground. A cia e privação, da qual padecem mulheres e
inusitada montanha de pastéis fritos na crianças. A fome e a desnutrição são males
hora e empilhados uns sobre os outros cha- que acinzentam a riqueza colorida da culi-
mava a atenção – não só pelo modo de pre- nária indiana. Em Mumbai, a desnutrição
paro, mas também pela sensação que des- materno-infantil está por toda parte e, por
pertavam. Pareciam deliciosos. Aliás, em toda parte, crianças e mulheres aglomeram-
Mumbai consome-se bastante óleo, muitas se em volta de estrangeiros(as), tocando-
comidas são fritas, e as massas dos pães lhes os braços, as pernas, as mãos, os pés,
são oleosas. Os doces não fogem à regra. em busca do que comer. Quando levam suas
Porém, não são exageradamente doces, pequenas mãos geladas à boca, tocam tam-
como os do Brasil. Para saber se esse é um bém o coração e a alma de quem as observa.
aspecto cultural ou se alguma onda light Como acontece em todo lugar onde o capi-
tomou conta dos doces indianos, há de se talismo impera, há aqueles(as) que ganham
pesquisar um pouco mais. Curiosamente, com a tragédia humana. Por toda parte, está
uma dieta com alimentos bastante à venda um tipo de leite especial, não por
engordurados e doces com pouco açúcar acaso o mesmo que é pedido. Vendido em
produz uma população muito elegante. Ho- lojas que mais parecem farmácias, esse ali-
mens e mulheres são, em sua maioria, ma- mento, ao ser encarado como único remé-
gros. Cabe também ressaltar o tamanho das dio contra a fome e a desnutrição, naturali-
porções servidas – das sopas, dos pratos za a situação vivida por milhares de indianos
principais ou dos acompanhamentos – bem e indianas.
reduzidas se comparadas ao modo brasilei- Quando a realidade se impõe desse
ro da mesa farta. modo, não há como fugir. Nessas horas,
As frutas também reinam nos cardá- todos(as) somos iguais. E se aprende que
pios e no cenário de algumas ruas da cida- ser humano(a) é mais do que se comover
de. Barracas delas fazem lembrar do Brasil. com os gestos desesperados de quem tem
Isso remete às cores, que estão por toda fome. Humano(a) é aquele(a) que sente o
parte, predominantemente nas mulheres e toque das crianças e mulheres em busca
nas comidas. Nesse sentido, é possível ar- da sobrevivência como um tapa na cara.
riscar alguma associação. A cultura hindu Na Índia, no Brasil ou em qualquer lugar
impressiona pela riqueza dos detalhes nos do mundo, ser humano é se indignar e se
ornamentos das mulheres. Independente- envergonhar ao perceber que ainda não se
mente de sua condição social, elas estão fez o bastante

50 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
IMPRESSÕES DE MUMBAI

Uma cara popular


João Sucupira
Economista, coordenador do Ibase

Muitos aspectos poderiam ser ressaltados Bush lembrava a opressão do império explo-
para retratar o que foi o Fórum Social Mun- rador. Enfim, a favor da liberdade e da paz,
dial 2004 (FSM). Porém, um dos que mais cha- podiam se ouvir vozes nas mais diferentes
maram a atenção foi, sem dúvida, a presença línguas.
marcante dos movimentos sociais de base. A Em todo seu desenrolar, o Fórum
diversidade desses movimentos agindo de aglutinou forças. Era comum encontrar pes-
forma organizada, criativa e vibrante, não só soas que, mesmo não fazendo parte de um
das diversas regiões da Índia, mas dos de- determinado grupo, se engajavam na luta pela
mais países, principalmente asiáticos, deu ao emancipação de um povo ou contra uma guer-
Fórum uma nova cara. Uma cara popular. ra. Negros(as) se mistu-
Ao mesmo tempo em que represen- ravam em passeatas de
tantes de organizações de cidadania ativa, de
outras entidades da sociedade civil,
tailandeses(as). Pessoas
do Norte da Europa, ves-
Percebia-se
pesquisadores(as) da academia e estudantes
discutiam em oficinas e seminários, manifes-
tidas a caráter, tentavam
acompanhar o ritmo dos claramente
tações com palavras de ordem e cartazes to- tambores de grupos indí-
mavam conta das “ruas” do imenso espaço genas. Uma verdadeira naqueles
do Fórum. Aos berros, manifestantes agita- babel, mas com muita
vam a bandeira da igualdade como parte da harmonia apesar dos di- rostos uma
luta pela transformação da sociedade. As dis- ferentes códigos, símbo-
tintas formas de reivindicações e de agir – los e etnias. vontade imensa
pequenas passeatas, teatro de rua, grupos Em Mumbai, o(a)
de dança e música – tinham em comum a pers-
pectiva de que todos(as) aqueles(as) “sem po-
“cidadão(ã) do mundo”
não atuou apenas nas
de expressar
der” ou “sem privilégio” podem lutar para
mudar o mundo.
questões localizadas,
mas fez parte de redes
sua condição
Os dalits marchavam com a esperan-
ça de romper com as tradições arraigadas
internacionais ligadas a
grandes temas como jus- de ser humano
e a hierarquia de poder. Percebia-se clara- tiça, igualdade e paz. As
mente naqueles rostos uma vontade imen- manifestações não se di- que lhes é
sa de expressar sua condição de ser huma- rigiam necessariamente a
no que lhes é historicamente negada. Eram esse ou àquele governo. historicamente
tantos os motivos para denúncias que até Em seu centro, estavam
o local do estande reservado para venda e homens e mulheres: a fi- negada
exposição de materiais dos dalits recebeu gura do(a) cidadão(ã).
crítica. “Por que nossos estandes estão O FSM 2004 dei-
sempre perto dos banheiros?”, questiona- xará marcas profundas na
va um dos cartazes. história dos movimentos
Coreanos(as) denunciavam a política sociais indianos, tanto por seu significado ge-
governamental de expulsão de imigrantes e ral na trajetória das lutas pela cidadania como
de seus familiares – filhos(as) nativos(as) – por ter sido um período de questionamento
que vivem no país há muito tempo, mas não das próprias relações entre eles. Deixará mar-
possuem documentação de permanência no cas também em todos(as) que desconfiavam
país. Tibetanos(as) expressavam o horror e da continuidade da realização de Fóruns em
a humilhação da intervenção chinesa em seu âmbito regional ou mundial. Definitivamente,
território. Organizações de vários países exi- os discursos e debates deixaram de ser o úni-
giam a saída de norte-americanos(as) do co caminho para o exercício da luta pelos di-
Iraque. A figura caricaturada do presidente reitos que acontecerá nos próximos Fóruns.

FEV 2004 / MAR 2004 51


O P I N I Ã O

‘Perdida’ em Mumbai
Flávia Mattar
Jornalista, editora do IbaseNet <www.ibase.br>

Foi com entusiasmo – e também temor – que Com meu gravador, bloco de anota-
recebi a notícia de que faria a cobertura ções e caneta, sentei-me em uma das cadeiras
jornalística para o Ibase do Fórum Social de um dos grandes halls disponíveis às ativi-
Mundial 2004. Lembro do frio na barriga dades da grade principal. Infelizmente, a úni-
que senti no dia da abertura do evento, en- ca língua que se falava na mesa era o híndi.
quanto me preparava para pisar pela primei- Uma das responsáveis pela tradução, vendo a
ra vez no Nesco Ground, interrogação em meu rosto, aproximou-se e
espaço destinado à rea- disse, em inglês: “O equipamento falhou”.
lização do Fórum. Tendo entendido a mensagem, percebi que
Além da vontade não daria conta dessa tarefa específica.
Trabalhar como de ver de perto o des- Também causou preocupação o fato
pertar do FSM, tinha de ter a missão de cobrir um evento que es-
jornalista no duas preocupações. Uma
delas era a babel que es-
perava no mínimo 75 mil pessoas, oferecen-
do cerca de 1.200 atividades, sem contar com

Fórum muitas perava encontrar na


quarta edição do even-
a usual parceria de outros colegas de profis-
são do Ibase.
to – e que, de fato, aca- Trabalhar como jornalista no Fó-
vezes causa certa bei encontrando. Ou- rum, ao mesmo tempo em que causa pra-
tra era fazer sozinha a zer, muitas vezes causa certa frustração. A
frustração. cobertura de um even- sensação é a de que nunca será possível
to tão grande. traduzir nos textos que escrevemos a di-
A sensação Era grande a versidade de um processo como esse. Ou-
cacofonia presente, não tro fantasma constante é a impressão de
é a de que nunca só em termos de línguas que podemos estar no local errado, na
como também de lin- hora errada. Ou seja, algo mais importan-
será possível guagens – as pessoas
que se manifestavam
te e interessante pode estar ocorrendo
sem que estejamos presentes. Um colega

traduzir nos constantemente nas


ruas do Nesco usavam e
de profissão tentou me acalmar dizendo:
“Em um evento desse tamanho, nossas
abusavam de formas de escolhas acabam sendo meio aleatórias”.
textos que comunicação que pu- Passados os sustos iniciais e criadas
dessem sensibilizar o estratégias de trabalho durante os seis dias
escrevemos maior número possível do FSM 2004, foi possível não só cumprir a
de participantes. tarefa, mas também me emocionar com de-
a diversidade Mesmo quando poimentos como o da feminista Irene Khan,
os(as) participantes fa- de Bangladesh, que denunciou o uso do es-
de um processo lavam inglês, os sota-
ques eram tão variados
tupro como arma de guerra, levando ao co-
nhecimento das pessoas presentes histórias
como esse que muitas vezes pre-
ju dicavam o entendi-
de mulheres, com nome e endereço,
vitimizadas por esse abuso. Foi possível tam-
mento. Mas o problema bém trocar olhares fraternos com indianas
maior era quando nos que demonstravam carinho por mulheres oci-
deparávamos com situações como a que vivi dentais, como eu, solicitando dedicatórias
no segundo dia do evento, quando optei por em seus cadernos e fotografias para regis-
assistir a uma atividade sobre os dalits, cas- trar o encontro da diversidade em algum ou-
ta dos “intocáveis”. tro lugar, além da lembrança.

52 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
IMPRESSÕES DE MUMBAI

FEV 2004 / MAR 2004 53


INDICADORES
Silvana De Paula* e Leonardo Méllo**

Notas de
pesquisa
Uma celebração da diversidade e da tolerância em relação à diferença – essa é sempre a

constatação forte que fazemos quando participamos de uma edição do Fórum Social

Mundial (FSM). Nos eventos que ocorreram no Brasil e no que aconteceu este ano em

Mumbai, na Índia, a manifestação da diversidade foi a marca do FSM, sua marca fundante

e sua vitalidade. Na Índia, a magnitude da diversidade foi ainda mais expandida do que

nos anos anteriores, de modo que a gama extremamente plural de categorias sociais e

de setores da sociedade civil que se fez presente significa, com toda certeza, um novo

aporte para a diversidade, que é a meta constituinte do Fórum. Um novo aporte e,

conseqüentemente, novos desafios.

Ainda no começo, em 2001, o FSM foi pensado primordialmente como um even-

to, um acontecimento em oposição ao Fórum Econômico Mundial. Uma manifestação

cujo objetivo era dar lugar à multiplicidade de vozes discordantes da hegemonia de um

pensamento único, como princípio de ação no mundo, e da globalização neoliberal,

como processo político, social e econômico.

54 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
Desde aquele FSM, no conjunto das ativi- ram empreendidos: a) pesquisa sobre o
dades foram denunciadas e discutidas as perfil dos(as) participantes; b) registro das
várias formas e facetas do processo de ex- atividades autogeridas; c) sistematização
clusão promovido pelo ambiente monolítico dos conteúdos dos painéis; d) registro das
preconizado pela idéia de consenso – cada mesas de diálogo e controvérsia; e) trans-
vez mais claramente um eufemismo para a crição das conferências proferidas. 2
predominância de um único pensamento – Em 2004, no evento realizado em
e pelas regras do jogo político e econômico Mumbai, a proposição era dar continuidade
impetradas pelas agências internacionais a esse tipo de iniciativa por meio de uma
como o Fundo Monetário Internacional sondagem entre os(as) participantes acerca
(FMI), a Organização Mundial do Comércio dos temas que julgassem importantes para
(OMC) e o Banco Mundial (BM). serem discutidos no âmbito do FSM.
A repercussão da experiência do Fó- O fundamento dessa pesquisa coin-
rum logo se fez sentir. Cada vez com mais cide com o próprio fundamento do FSM:
nitidez, delineava-se que o FSM não era num espaço dessa natureza, todas as vo-
apenas um evento, mas, sim, um processo. zes devem ser ouvidas. Assim, assume-se
Um processo pelo qual os diversos setores como imprescindível saber o que as pesso-
das sociedades civis podiam discutir desde as presentes nesse tipo de espaço têm in-
questões locais até questões transnacionais. teresse em discutir. Essa perspectiva visa
O documento intitulado Carta de Princípios 1 evitar o descolamento entre os temas sele-
desde o início estabelecia os parâmetros cionados para discussão ao longo da série
desse processo, que contou com a partici- de Fóruns nacionais e regionais e os temas
pação de 20 mil pessoas no FSM de 2001, que as pessoas que freqüentam o Fórum
50 mil no de 2002, 100 mil em 2003 e, priorizam discutir. Ao mesmo tempo, evi-
estimativamente, 150 mil pessoas este ano dentemente, esse tipo de sondagem ali-
na Índia. menta a organização temática de Fóruns
Entretanto, nem sempre esses mo- futuros – nacionais, regionais, temáticos,
mentos foram documentados; nem sempre bem como o de âmbito mundial. Foi com
os conteúdos das discussões empreendi- esse horizonte que se procedeu à consul-
das no conjunto das atividades dos FSMs ta/sondagem 3 no FSM-Índia, cuja realiza-
foram registrados, de modo a conformar ção foi deliberada pelo Conselho Interna-
uma memória do processo do Fórum. É cional e conduzida pelo Ibase.
bem verdade que muitos livros sobre as O instrumento para essa enquete foi um
experiências dos FSMs foram escritos, mas questionário elaborado de modo a contemplar:4
esses livros são autorais. Somente em 2003 1) caracterização do(a) entrevistado(a); 2) ques-
as instâncias organizadoras do FSM deci- tões de intensidade de importância sobre 43
diram documentar os eventos anuais. Tal temas extraídos do conjunto das discussões
demora não se explica tanto pela falta de empreendidas nos Fóruns anteriores – mundi-
interesse por esse tipo de iniciativa. Mais ais, regionais, nacionais e temáticos; 3) ques- 1 A Carta de Princípios pode
do que isso, explica-se pela dificuldade de tões abertas, nas quais o(a) entrevistado(a) s e r l i d a n o s i t e < w w w.
forumsocialmundial.org.br>.
se encontrar uma forma de fazer registros nomeava assuntos considerados por ele(a)
2 IBASE. Coleção Fórum Social
oficiais sem, com isso, ferir uma das regras como não contemplados na lista de temas Mundial 2003. Rio de Janeiro:
Ibase, 2004. (5 volumes).
pilares da Carta de Princípios: a não-for- mencionada; dentre a totalidade dos temas
mulação ou enunciação de qualquer “re- – isto é, os apresentados no questionário 3 Qualificar essa consulta como
sondagem é de extrema im-
sultado final” ou “conclusão”, ou, ainda, mais os por ele(a) sugeridos –, o(a) portância, pois uma consulta,
a rigor, implicaria, de acordo
“resolução final” ou “proposição oficial” entrevistado(a) hierarquizava até cinco de- com a própria dinâmica do
em relação às discussões encaminhadas nas les, de acordo com sua concepção de ordem FSM, a instituição de um am-
plo processo de discussão so-
diversas atividades que tinham lugar du- de prioridade. bre o assunto, no âmbito do
qual todas as pessoas seriam
rante um dos FSMs. Assim, foi preciso que É sobejamente reconhecido que as instadas a manifestar suas po-
a preocupação de acompanhar sistemati- pessoas do país que sedia o FSM e dos paí- sições. Já a adição do atributo
de sondagem justifica meto-
camente o Fórum ficasse metodologica- ses mais próximos constituem a maior parte dologicamente o procedimen-
to de survey balizado por
mente assegurada como registro, como da população que dele participa. Para con- regras de constituição de uni-
documentação, e que jamais resvalasse tornar esse viés, ou seja, evitar que nossa verso e de amostragem sanci-
onadas na prática de pesquisa.
para a avaliação dos conteúdos das ativi- sondagem ecoasse o predomínio de vozes
4 O questionário foi elabora-
dades compreendidas no FSM. Nesses ter- asiáticas e, sobretudo, a posição dos(as) do no Brasil durante o mês de
dezembro de 2003 e primei-
mos, no ano de 2003, no terceiro FSM, fo- indianos(as) acerca dos temas que os(as) ra semana de janeiro de 2004.

FEV 2004 / MAR 2004 55


I N D I C A D O R E S

entrevistados(as) consi- Perspectiva de comparação


deravam importantes na
agenda de discussão do Um primeiro aspecto a ressaltar é que a pri-
FSM, foi adotado o sis- meira parte do questionário – caracteriza-
O acampamento tema de cotas. Assim, a ção do(a) entrevistado(a) – foi elaborada de
aplicação do questioná- modo a permitir uma comparação potenci-
de Mumbai foi rio obedeceu à regra se- almente muito interessante com os dados
gundo a qual, dado o levantados pela pesquisa realizada em 2003
fundamentalmente número de inscritos(as),
foram predeterminadas
sobre o perfil dos(as) participantes do FSM
de Porto Alegre. Mais especificamente, po-

um espaço uma quantidade de


entrevistados(as) indi-
deremos estar cotejando o tipo de inserção
do(a) entrevistado(a) em termos de ocupa-
anos(as), outra para ção, escolaridade, filiação a partido políti-
de discussão, os(as) asiáticos(as), exce- co, participação em organização e/ou movi-
to indianos(as), e uma mento social, áreas de atuação das
um espaço terceira cota de entrevis- organizações e movimentos de que partici-
tados(as) oriundos(as) pam, entre outros.
de fórum dos demais países. Tal Contudo, ao mesmo tempo em que
cota também combinou há elementos de comparabilidade por seme-
o tipo de inscrição/regis- lhança entre as duas investigações, há tam-
tro com que o(a) en- bém aqueles que podem nos permitir uma
trevistado(a) tornava-se comparação por diferença, de modo a tornar
participante do Fórum, a saber: delegado(a)/ possível acompanhar as especificidades en-
participante; observador(a)/passe diário; e tre as duas experiências que foram objeto
acampado(a) (Acampamento da Juventude). dessas investigações.
5 Gostaríamos de agradecer a
Em linguagem estatística, as cotas resultaram Nesse contexto, vale ressaltar o caso
Kamal Chenoy pelo apoio e pelo da operação de uma matriz cujas coordena- do Acampamento da Juventude. À primeira
eficaz encaminhamento de
contatos que viabilizou a con- das eram 3 por 3 – três tipos de origem/naci- vista, os dados oficiais de registro prévio
dução do nosso trabalho em
Mumbai. Somos também
onalidade e três tipos de inserção. dos(as) acampados(as) no FSM-Índia pare-
imensamente gratos ao profes- O trabalho na Índia teve início em 10 cem bastante irrisórios diante da magnitu-
sor doutor Sharit Bhomit, da
Universidade de Mumbai. O de janeiro de 2004, 5 a partir de quando 67 de do Acampamento da Juventude do Fó-
professor Sharit foi de suma
importância no recrutamento
estudantes universitários(as)6 foram rum de 2003, em Porto Alegre. Para termos
dos(as) estudantes e foi incan- recrutados(as) e treinados(as) para a aplica- uma idéia, basta saber que na véspera do
sável em divulgar entre os(as)
alunos(as) da Universidade de ção do questionário. Ainda durante essa pri- início do evento em Mumbai, isto é, em 15
Mumbai e do Tata Institute of
Social Sciences a relevância da
meira semana, foi feita uma aplicação piloto de janeiro, pouco mais de 2.500 pessoas
consulta e a importância de do questionário no campus da Universidade estavam registradas no acampamento. En-
participarem dela. Sua gene-
rosidade para conosco mate- de Mumbai. Em virtude do feedback desse tretanto, é preciso destacar três pontos. O
rializou-se de várias outras
maneiras, seja viabilizando sa-
piloto, assim como em razão dos dados ofi- primeiro, salientado pelo coordenador das
las na Universidade de Mumbai ciais obtidos no escritório do FSM-Índia e inscrições no acampamento, diz respeito à
para nossas reuniões, seja colo-
cando-nos em contato com no Acampamento da Juventude, 7 o questio- tendência das inscrições serem feitas “em
seus(suas) colegas, e até toman-
do parte em algumas das nos-
nário foi adaptado de modo a facilitar sua cima hora”, pois as pessoas chegavam a
sas sessões de treinamento inteligibilidade, aplicação e eficácia em rela- Mumbai, já com o Fórum começando. O se-
dos(as) estudantes – apesar de
sua agenda ser extremamente ção aos propósitos a serem por intermédio gundo e mais importante diz respeito à con-
ocupada, dada sua participa-
ção muito ativa tanto na uni-
dele atingidos. cepção do Acampamento da Juventude no
versidade como no FSM. Foram aplicados 3.891 questionári- FSM-Índia. À diferença da experiência bra-
6 Os(as) estudantes são da os. No momento, ainda se desenvolve a fase sileira – na qual o acampamento era simul-
Universidade de Mumbai e do
Tata Institute of Social Sciences de processamento das informações levan- taneamente local de acomodação e de ati-
e são alunos(as) de graduação vidades –, o acampamento de Mumbai foi
ou pós-graduação em cursos
tadas, não sendo possível, portanto, apre-
como Sociologia, História, Ciên- sentar neste artigo um quadro mais acaba- fundamentalmente um espaço de discussão,
cia Política, Psicologia, Filosofia,
Geografia e Serviço Social. do dessas informações. Contudo, algumas um espaço de fórum, por assim dizer. Os
7 Queremos agradecer o aces- considerações sobre o processo de sonda- espaços destinados à acomodação e ao dor-
so aos dados oficiais de regis- gem devem ser socializadas, já que elas, mitório foram os numerosos campings dis-
tro no FSM-Índia. Também
somos muitíssimos gratos a além da enquete, falam também do FSM- tribuídos pela cidade de Mumbai. Assim, o
Katherine (escritório do FSM –
Índia) e a Pieter (Acampamen- Índia – ainda que dentro dos limites do pro- registro no Acampamento da Juventude na
to da Juventude – Índia) pela visório, ou seja, nos limites de um trabalho experiência indiana dizia respeito, sobretu-
ajuda na operacionalização do
acesso a tais dados. em andamento. do, à participação prioritária nas atividades

56 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
NOTAS DE PESQUISA

programadas no âmbito do acampamento, bólico – de entrevistadores(as); a emissão dos


ou seja, seminários, debates, atos, confe- certificados de participação na pesquisa; e a
rências, shows etc. É bem verdade que o entrega, por parte de entrevistadores(as), de
crachá do acampamento facultava livre aces- relatórios qualitativos individuais, nos quais
so das pessoas ao espaço do Fórum e vice- eles(as) deveriam descrever suas experiênci-
versa. Mas isso se relaciona ao terceiro pon- as como participantes da sondagem, assim
to: a localização do acampamento e a como emitir seus comentários acerca da con-
localização do FSM. Diferentemente do que dução do trabalho, incluindo sugestões e ob-
aconteceu em Porto Alegre, quando os lo- servações que julgassem pertinentes. É um
cais eram vizinhos, em Mumbai o Acampa- prazer noticiar que o cronograma funcionou
mento da Juventude ficava no Colégio Dom melhor do que o esperado, que tudo resul-
Bosco, situado em Matunga, área tou muito a contento.
diametralmente oposta a Goregoon, bairro O primeiro dia foi acordado entre co-
que abriga o Nesco Ground, onde ocorreu ordenador, coordenadora e pesquisa -
o FSM. Isso pode nos levar a aceitar a possi- dores(as) como um dia especial. Desnecessá-
bilidade de que as pessoas terem se inscri- rio dizer que todos(as) estavam excita-
to prioritariamente em Nesco Ground. Des- díssimos(as) com a “estréia”, depois de dias
se modo, poderiam igualmente participar de treinamento, da apli-
do acampamento. Essa hipótese poderia ex- cação do teste piloto do
plicar o movimento das pessoas no acam- questionário, dos ajustes
pamento, ou seja, o fato de que o fluxo de etc. Igualmente merece-
participantes adensava-se a partir do fim da dor de nota é o fato do As características
tarde, quando justamente as atividades no grande entusiasmo que
Nesco Ground estavam terminando, alcan- sempre marcou a partici- específicas do
çando seu ponto máximo à noite. pação de todos(as) nesse
As características específicas do trabalho – esse entusias- Acampamento
Acampamento da Juventude em Mumbai mo disseminado no gru-
definiram uma estratégia também especial
para a condução da sondagem. Havia sem-
po era emocionante. Para
o dia 17 de janeiro, o dia
da Juventude
pre duas equipes de pesquisadores(as) tra-
balhando: uma cuidava da aplicação dos
especial de “estréia”, fo-
ram marcados dois en-
em Mumbai
questionários no acampamento, a outra fi-
cava encarregada do mesmo procedimento
contros com toda a equi-
pe. No primeiro, logo definiram uma
em Nesco Ground. Tal estratégia foi opera- pela manhã, foram reca-
cionalizada por meio do deslocamento do pitulados os pontos-cha- estratégia
coordenador ou da coordenadora da pes- ve do trabalho e saldadas
quisa (às vezes ambos) para o acampamen- eventuais dúvidas. Tam- também
to e, simultanemente, pelo expediente de bém foram distribuídos
termos uma supervisora permanente, esco- aos(às) pesquisadores(as) especial para
lhida no âmbito da equipe, no acampamen- os crachás, os questionári-
to e outra, também escolhida entre os(as)
estudantes, em Nesco Ground.
os e as cotas de entre-
vistados(as), tudo num
a condução
clima em que todos(as)
se sentiam “prontos(as)”
da sondagem
Rotina de pesquisa para começar e, como já
Um segundo aspecto que vale ser re- dito, entusiasmados(as).
gistrado, considerando sua grande eficiên- Divididas as duas equipes
cia para essa sondagem, diz respeito à roti- – Acampamento da Juventude e Nesco Ground
na de trabalho adotada – foram dois – foi dado início ao trabalho, tendo já acerta-
andamentos diferentes: o do primeiro dia e do um encontro de fim de expediente, no
o dos demais. Nosso cronograma de traba- Nesco Ground. A idéia desse encontro era fa-
lho era cumprir nossa cota nos dias 17, 18 zer um balanço da estréia na aplicação dos
e 19 de janeiro; e, por garantia, reservar o questionários e ajustar eventuais problemas.
dia 20 para preencher eventuais lacunas do Para os demais dias, a rotina foi pautada pelo
cumprimento dessas cotas. Para o dia 21 encontro matinal, antes do início dos traba-
foram programados: o pagamento – sim- lhos, quando era feito um breve balanço do

FEV 2004 / MAR 2004 57


I N D I C A D O R E S

dia anterior, possibilitado pela verificação FSM-Índia, mais precisamente dos países
feita pelo coordenador e pela coordenadora com maior número de inscrição/registro na-
todas as noites, com os questionários em quele Fórum.
mãos. Em concordância com esse balanço, A equipe responsável por proceder
eram feitas recomendações e solicitações es- aos registros no escritório do FSM-Índia tra-
pecíficas. Os questionários eram distribuídos, balhou com as seguintes categorias de
as equipes começavam a trabalhar e cada inscritos(as):
entrevistador(a), depois de ter cumprido sua • participantes e organizadores(as) de
cota, entregava o seu lote de questionário às eventos: inscritos(as) que vinham por in-
supervisoras ou ao(à) termédio de organização;
coordenador(a). Após isso, • participantes individuais: inscritos(as)

Os dados ele(a) estava liberado(a)


para participar das atividades
que se apresentavam individualmente,
isto é, sem ser por intermédio de orga-
do FSM – isso, vale mencio- nização;
que oferecemos nar, constituiu também uma • observadores(as): políticos(as), repre-
grande e muito apreciada sentantes de organismos, como FMI e
a seguir “mais-valia” do trabalho. BM, que tinham direito à presença, mas
Essa rotina garantiu, não tinham direito à voz. Eram, então,
são provisórios. a um só tempo, tanto a por definição, espectadores(as);
efic á c i a d a s o n d a g e m • passe livre: quem adquiriu um passe, à
Todavia, como o estabelecimento
de uma atmosfera de troca
entrada – no guichê de registro
(registration desk) –, mediante o qual ti-
oferecem um entre todos(as), um clima
estimulante de engajamen-
nha acesso às atividades do Fórum por
um dia. Era também, por definição,

desenho ainda to, de verdadeira equipe,


que permeou todo o perío-
espectador(a);
• acampados(as).
do de trabalho. Os relató- Aos(às) que são familiarizados(as)
que tosco rios individuais confirmam com as categorias de inscrição utilizadas
essa avaliação. Por essa ra- nos Fóruns anteriores, não é difícil reco-
das pessoas zão, constituem um rico nhecer na primeira categoria empregada
material a ser analisado em no procedimento de registro em Mumbai
que estiveram algum momento deste pro- – participantes que se inscrevem por inter-
cesso – muito possivelmen- médio de organização – o que anteriormen-
presentes te após a apuração dos da-
dos levantados pelos
te era denominado “delegado(a)”. Com
esse critério, foi adotado, no questioná-
no FSM-Índia, questionários. rio, o termo delegado(a). Para diferenciar
esse tipo de inscrito(a) daquele que se re-

mais precisamente Registros de ontem


e de hoje
gistrou sem ser por intermédio de organi-
zação, ou seja, aquele que se apresentou
como indivíduo, incorporamos o termo
dos países com As informações levantadas “participante”.
a partir dos questionários É pertinente observar dois aspectos:
maior número aplicados nessa sonda- 1) ambos(as) – delegado(a) e participante
gem estão em fase de apu- – têm efetiva participação no Fórum, seja
de inscrição ração. Assim, os dados como membro de mesa, conferencista,
que se seguem têm por organizador(a) de evento etc. Daí, o deno-
base apenas os números minador comum entre eles(as), ou a cate-
o fi ci a i s fo rnecid os p elo goria englobadora, ser “participante”; 2)
escritório do FSM em Mumbai acerca dos a distinção entre eles(as) – se participam
registros, das inscrições feitas até 15 de do Fórum por intermédio de organização
janeiro, véspera, portanto, da abertura do ou não – fica explicitada em questão da
Fórum. primeira parte do questionário, relativa à
Isso significa dizer que os dados que caracterização do(a) entrevistado(a), onde
oferecemos a seguir são provisórios. Toda- é inquirido se o(a) entrevistado(a) perten-
via, oferecem um desenho – ainda que tosco ce a alguma organização ou movimento
– das pessoas que estiveram presentes no social etc.

58 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
NOTAS DE PESQUISA

Quanto à categoria “observador(a)”, indiano(a); e outros(as) –, foi possível um * Silvana De


foi obedecida a definição feita pela equipe pequeno desdobramento dos dados de re- Paula
local responsável pelos registros e, portan- gistro prévio (Tabela 1). Consultora do Ibase
to, mantida a categoria. Todavia, dado que É preciso reiterar, enfaticamente, que e coordenadora
seu traço distintivo em relação aos(às) parti- os dados aqui apresentados são extrema- da pesquisa FSM 2004
cipantes – delegados(as) e participantes in- mente provisórios. Sua fonte são registros **Leonardo Méllo
dividuais – é precisamente o fato de ser que, embora oferecidos pelo escritório do
Coordenador do Ibase e
espectador(a), permitiu-se aproximar essa FSM-Índia, são anteriores ao evento. Por da pesquisa FSM 2004
categoria com a de passe diário no questi- isso, são passíveis de atualizações potenci-
onário. Também a distinção entre eles(as) é almente significativas. Como também já foi
facultada pela primeira parte do questioná- assinalado, ainda está sendo feita a análise
rio, a que trata da caracterização do(a) do retorno provido pelos 3.891 questioná-
entrevistado(a) e na qual, como dito anteri- rios aplicados. Aguarda-se ainda o fecha-
ormente, é perguntado se o(a) entrevistado(a) mento final dos dados de registro oficial
pertence a alguma organização ou movimen- do FSM-Índia.
to social etc. Nesse contexto, o que neste artigo é
Um segundo quadro de dados que apresentado constitui um “aperitivo”, por
podemos apresentar com base nos registros assim dizer, do campo da consulta/sonda-
oficiais anteriores ao início do FSM-Índia re- gem empreendida. O desejo é que estas
fere-se à origem geográfica, por assim dizer, notas funcionem como convite ao(à)
de previamente inscritos(as). É importante leitor(a) para acompanhar o andamento e
lembrar algo que já foi mencionado anteri- os desdobramentos desse trabalho. Para
ormente: com o intuito de não supervalorizar acrescentar um pouquinho mais de condi-
a opinião de indianos(as) – já que as pesso- mento a tal convite, pode-se dizer que, da-
as de nacionalidade indiana compunham a quilo que já foi manuseado em relação às
maioria das presentes ao Fórum –, foi ado- questões abertas do questionário, foram
tado o sistema de cotas. A classificação de apurados mais de mil – sim, mais de mil –
nacionalidade para cotas resultou nas se- novos temas que os(as) entrevistados(as)
guintes categorias: indiano(a); asiático(a), propuseram para serem discutidos no âm-
exceto indiano(a); outros(as). Precisamente bito do processo do Fórum Social Mundial.
porque o questionário prescreve a Certamente, uma contribuição de peso está
explicitação do país de origem das duas últi- para surgir no processo do FSM e na sua
mas categorias – asiático(a), exceto próxima edição, em 2005.

Tabela 1

Porcentagem da origem geográfica das pessoas registradas –


inscrição prévia – em %

Índia 50

Outros(as) 39

Ásia – exceto indianos(as) 11

África 10

América Latina 10

Oceania 10

Europa, Estados Unidos e Canadá 9

FEV 2004 / MAR 2004 59


ESPAÇO E S PA Ç O
Ana Veloso 1 *
ABERTO

O discurso
feminista
na esfera
pública
Uma das maiores contribuições que o feminismo, como projeto político e pensamento críti-

co, trouxe para a humanidade foi o questionamento do modelo patriarcal de construção de

sociedade, que destinava às mulheres o lugar de coadjuvantes do processo histórico,

restringindo a existência da condição feminina à esfera privada. Ao propor uma transforma-

ção nas relações de gênero e a igualdade e a liberdade para a mulher, o feminismo a

credenciou como sujeito político.

A ruptura de uma identidade socialmente imposta, que limitava o acesso das mulheres à

esfera pública, foi outra conquista do feminismo, como resgata a socióloga Maria Betânia Ávila

(2000) ao analisar a produção da filósofa Hannah Arendt:


1 A autora também é “Jorna-
lista Amiga da Criança”, títu- Penso que, desta forma, se viabiliza o que Arendt (1988) definiu como o direito
lo concedido, em dezembro
de 2003, pela Agência Nacio-
nal dos Direitos da Infância
(Andi).
a ter direitos, uma vez que a conquista dos direitos exige um sujeito que anuncie

60 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
ABERTO
seu projeto e tenha ação na esfera público e convocando-as a dar visibilidade para
política, participando, assim, do suas reivindicações. Nasce, para a pesquisado-
conflito, que deve ser inerente à de- ra Jane Mansbridge (apud Castells, 1999), o que
mocracia, e instituindo, como par- viria a se tornar um “movimento criado de forma
te desse conflito, a luta contra as discursiva”, mas que não fixou sua ação ape-
desigualdades a que estão sujeitas. nas na argumentação política.
Para além de soltar a voz das mulhe-
Espaço onde se intensificavam as de-
res, o movimento propunha atitudes políticas
sigualdades e a subordinação feminina, a es-
radicais. O debate feminista era uma forma de
fera privada surgiu como conceito na Anti-
se contrapor publicamente ao sistema patri-
güidade clássica, na vigência da suposta
arcal. Para tanto, as feministas questionaram
democracia grega, na qual o acesso à pólis
as relações entre os sexos masculino e femi-
só era permitido para os cidadãos de direitos,
nino, estabelecidas com bases na secular
ou seja, os homens. A noção de liberdade es-
submissão das mulheres.
tava condicionada à vivência no espaço pú-
Mas não bastava apenas conquistar
blico. O privado, no entanto, não se consti-
a esfera pública. Ao politizar a vida privada,
tuía em local de expressão da intimidade para
as feministas lançaram luz sobre temas até
as mulheres, mas, ao contrário, o da privação
então intocáveis ou obscurecidos pelo Es-
de direitos, fundamentado em uma relação hi-
tado e pela Igreja. Foi nesse momento que
erárquica e de opressão. Escravos e mulheres
incentivaram o debate acerca de algumas
eram tidos como desprovidos de desejos e
questões – como planejamento familiar e cui-
necessidades. Eram invisíveis socialmente,
dado com os(as) filhos(as) – e, posteriormen-
pois o que acontecia no privado não tinha
te, trataram dos direitos sexuais como expres-
significado político. O termo “público”, para
são da liberdade feminina.
Arendt, significa:
A saída para o espaço público trouxe
Em primeiro lugar, que tudo que inúmeras conquistas para as mulheres, tais
vem a público pode ser visto e ou- como a criação de postos no mercado de tra-
vido por todos e tem a maior di- balho e em instâncias de poder político. A
vulgação possível. Para nós, a apa- máxima “nosso corpo nos pertence” foi o mote
rência – aquilo que é visto e ouvido da década de 1960, quando as primeiras rei-
pelos outros e por nós mesmos – vindicações pela inclusão do tema direitos
constitui a realidade. Em compa- reprodutivos em discussões internacionais vi-
ração com a realidade que decorre eram à tona. Era a vez das mulheres reivindi-
do fato de que algo é visto e escu- carem seu espaço na cena pública como su-
tado, até mesmo as maiores forças jeitos políticos.
da vida íntima – as paixões do co- Stuart Hall (1997) vê no feminismo um
ração, os pensamentos da mente, os dos movimentos da chamada “modernidade
deleites dos sentidos – vivem uma tardia”, ao lutar pelo reconhecimento de uma
espécie de existência incerta e obs- identidade feminina, também tendo relação
cura, a não ser que, e até que, se- direta com o descentramento conceitual do
jam transformadas, desprivatizadas sujeito cartesiano e sociológico:
e desindividualizadas, por assim
O feminismo questionou a clássica
dizer, de modo a se tornarem ade-
distinção entre o “dentro” e o
quadas à aparição pública.
“fora”, o “privado” e o “públi-
(Arendt, 1991, p. 60)
co”. O slogan do feminismo era:
“o pessoal é político”. Ele abriu,
portanto, para a contestação polí-
Explosão do feminismo
tica, arenas inteiramente novas de
Movimento que toma maior fôlego a partir da vida social: a família, a sexuali-
década de 1960, o feminismo trouxe à tona dade, o trabalho doméstico, a di-
discussões em torno da vida pública e priva- visão doméstica do trabalho, o cui-
da, instigando as mulheres a ocupar o espaço dado com as crianças etc. Ele

FEV 2004 / MAR 2004 61


ESPAÇO
E S PA Ç O ABERTO

ABERTO
também enfatizou, como questão Não se trata simplesmente de que
política e social, o tema da forma elas continuem privadas, mas de
como somos formados e produzidos que elas são ativamente privatiza-
como sujeitos generificados. Isto é, das, mantidas no nível do priva-
ele politizou a subjetividade, a iden- do. (apud Silva, 1999, p. 49)
tidade e o processo de identificação
(como homens/mulheres, mães/pais,
filhos/filhas). (Hall, 1997, p. 49) Esfera pública
Apesar de ter dado largos Local de embates políticos e espaço fundamen-
Não seria passos rumo à politização
da esfera privada, a con-
tal para a democratização da vida cotidiana, a
esfera pública desponta como locus privilegi-
exagero dizer
quista da esfera pública ado para quem pretende ascender ao poder ou
ainda é um desafio para para quem não quer abrir mão dele. Isso acon-
as feministas. Talvez por-
que a mídia que “a esfera pública,
tece porque também é por meio dela que se
constroem e legitimam discursos. Ela funciona
tanto na dimensão do Es- como vitrine da vida social. E ninguém melhor
detém grande tado como em outros pla- do que a imprensa para fazer sua refração.
nos, onde também se Não seria exagero dizer que a mídia
poder de sedução processam os conflitos
políticos, ainda se consti-
detém grande poder de sedução e influência
sobre a sociedade justamente por fazer a me-
e influência sobre tui como um espaço soci-
al onde as desigualdades
diação entre a esfera pública e a privada, ou
melhor, por sua capacidade de reproduzir,
a sociedade de gênero, de classe, de
orientação sexual e de raça
para um grande número de espectadores, al-
gum fato social.
justamente por
estão presentes” (Ávila A sociedade, ao que parece, procura
et al., 2001). reafirmar sua identidade por meio da necessi-
Entre as dificulda-
fazer a mediação des enfrentadas pelo mo-
dade de exposição da intimidade. A exibição
do que, até poucos anos, era considerado
vimento feminista em as- exclusivo da vida privada tem sido comum em
entre a esfera cender à esfera pública, um mercado ávido por novidades. De progra-
está a necessidade de mas de auditórios, nos quais se discute a
pública e a romper com a construção
histórica que coloca a
vida de estrelas televisivas, ao simulacro de
programas como Big Brother Brasil. A idéia
privada casa, o lar e a família
como únicos espaços
é alimentar a cultuada sociedade do espetá-
culo. Vale tudo para conquistar os 15 minu-
possíveis para a existên- tos de fama, e a máxima “ser é ser percebi-
cia cotidiana da condição feminina. Não tem do”, de Berkeley, nunca fez tanto sentido.
sido fácil, para as mulheres, o convívio social Até as discussões políticas têm seu
em meio à dicotomia entre o público e o priva- eco ampliado via imprensa. É a alta visibilida-
do, principalmente porque sua manutenção de que diversos atores/atrizes sociais perse-
no ambiente doméstico fundamenta o poder guem, como forma de participar do mundo
patriarcal e nem todas as suas aspirações so- público, com existência reconhecida e voz le-
ciais aparecem na arena pública. Richard gitimada. Isso também justifica a crescente
Johnson entende o poder como um elemento importância que a sociedade deposita nos
de análise nesse debate, chamando a atenção veículos de comunicação. Neles, discursos
para sua presença implícita na relação entre podem ser simulados, editados e transforma-
as duas esferas: dos. As possibilidades são infinitas. Isso en-
Existem, naturalmente, profundas canta, seduz e fascina. Nesse contexto, a ex-
diferenças em termos de acesso à assessora do Senado Federal, Maristela
esfera pública. Muitas das preocu- Bernardo, colabora: “A mídia é cada vez mais
pações sociais não ganham abso- o que restou do espaço público. É o maior
lutamente qualquer publicidade. campo de mediação de poderes e conflitos,

62 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
O DISCURSO FEMINISTA NA ESFERA PÚBLICA

um espaço de competição. Estar na mídia é As maiores críticas ao trabalho de


sinônimo de existir” (apud Oliveira, 1997). Habermas se fundamentam na defesa de ina-
O debate entre a íntima relação entre as es- dequação histórica do seu conceito de esfera
feras privada e pública é de grande interes- pública burguesa, que, embora idealmente uni-
se para a comunicação, uma vez que, na so- versal, excluía as mulheres, a população de bai-
ciedade moderna, a indústria cultural estende xa renda, as pessoas que não tinham acesso à
seu domínio para a produção de novos sen- educação e as minorias étnicas. Outra obser-
tidos da vida privada. Na era da sociedade vação ao seu trabalho é feita por teóricos(as)
midiática, a vida privada se constituiu em que o acusam de não reconhecer o papel de
um novo bem de consumo. esferas públicas alternativas, formadas por
Uma das contribuições mais importan- segmentos da sociedade civil.
tes a respeito dos conceitos de esfera priva- João Correia, no
da e esfera pública ou espaço público seu artigo “Novo jornalis-
(Öffentlichkeit) é abordada pelo filósofo mo, CMC e esfera públi-
ca”, entende que o espa-
O debate entre
Jürgen Habermas em sua obra de estréia,
Mudança estrutural na esfera pública, de
1962, que se tornou uma importante referên-
ço público estaria, então,
midiatizado, existindo no
a íntima relação
cia para a teoria e a filosofia política contem-
porâneas. Os conceitos trazidos na publica-
cenário de uma esfera pú-
blica plural e multifaceta- entre as esferas
privada e pública
ção foram reformulados nas três décadas da, também compreendida
seguintes a partir de novas reflexões do au- como um local privilegia-
tor, especialmente sobre a teoria da ação co- do de disputa e afirmação
municativa e sobre as inter-relações entre os de direitos e cidadania. é de grande
campos da moral, do direito e da política.Na Nessa eclética cena
obra, Habermas coloca a mídia no centro das cultural, emergem os mo- interesse para a
discussões sobre a refuncionalização da es- vimentos da sociedade ci-
fera pública, entendendo-a como uma das suas vil que reivindicam, cada
vez mais, o reconhecimen-
comunicação. Na
principais expressões:
“A refuncionalização do princípio to de sua ação política e a
inserção do seu discurso
era da sociedade
da esfera pública baseia-se numa
reestruturação da esfera pública
enquanto uma esfera que pode ser
na cena pública, a exemplo
dos grupos de gays e lés- midiática, a vida
privada se
apreendida na evolução de sua ins- bicas, de defesa dos direi-
tituição por excelência: a imprensa”. tos das populações ne-
gras, dos(as) idosos(as) e
(Habermas, 1984, p. 213)
de portadores(as) de ne- constituiu em um
É central, nas formulações de Habermas, cessidades especiais. To-
o surgimento de uma arena onde cidadãos pri-
vados se colocam como públicos para debater
dos anseiam por mais do novo bem
que visibilidade.
questões e influenciar processos de decisão
política. Esse local se constitui fora da vida
Querem, na verda-
de, que suas propostas
de consumo
doméstica, da Igreja e do governo. possam ser assimiladas
Em acordo com as teorias da cultura pela opinião pública para formar uma opi-
das massas, o filósofo e principal represen- nião positiva acerca do que defendem e con-
tante da segunda geração da Escola de Frank- quistar simpatia e apoio de outros segmen-
furt reconhece a centralidade dos mass me- tos para sua causa.
dia nas sociedades contemporâneas. Ele Nesse contexto, é importante resgatar
propõe uma análise crítica sobre o funciona- o pensamento de E. Katz sobre a interface da
mento dos veículos de comunicação, dos oli- ação política desses movimentos com a mídia:
gopólios e da publicidade, estimulando refle- “O funcionamento das novas formas de cida-
xões sobre a formação de consenso na opinião dania e, conseqüentemente, os resultados
pública. Nas produções de Habermas, tam- dessa luta simbólica estão cada vez mais rela-
bém notamos sua preocupação em estudar a cionados com os media, sendo que a opinião
emissão e a recepção das mensagens difun- pública não tem necessariamente de se fazer
didas pela imprensa e a introdução do con- apesar da presença dos media, mas com re-
ceito de cidadãos(ãs) como consumidores(as). curso a eles” (Katz, 1995, p. 85).

FEV 2004 / MAR 2004 63


E S PA Ç O ABERTO

Mulheres e mídia falar “em sua própria voz”, assim,


simultaneamente, construindo e ex-
Consciente da lógica da indústria cultural, que
pressando a própria identidade cul-
tem na imprensa seu motor difusor, o movi-
tural através do idioma e do esti-
mento de mulheres entendeu que, para sair das
lo. (apud Moreiras, 2001, p. 89)
margens da sociedade e legitimar seu discurso
perante a opinião pública, precisava conquis- Apesar de ter protagonizado experiên-
tar novos espaços. Seria necessário, como diz cias exitosas no diálogo com a mídia nos últi-
a socióloga Fátima Jordão (1999), “encarar a mos anos, demonstrando preocupação em
mídia como campo de ação política”. interagir de forma qualificada com ela, o mo-
Isso significa dizer que, para entrar nes- vimento feminista ainda não desenvolveu uma
se cenário, onde os valores patriarcais são política de comunicação nem um trabalho con-
reproduzidos, desigualdades de gênero são tínuo com vistas ao estabelecimento de rela-
perpetuadas, e o corpo da mulher e sua sexu- ções mais permanentes com a imprensa.
alidade são comercializados como objetos de No entanto, nem a timidez do movimen-
consumo, seria preciso reunir argumentos to em lidar com a mídia, nem a falta de uma
para, por exemplo, desconstruir o sexismo pre- estratégia política de diálogo permanente com
sente nas redações. os veículos de comunicação impossibilitaram
Para tanto, o movimento precisa enten- a incorporação das formulações feministas por
der a lógica social da globalização (MacLuhan, distintos(as) atores/atrizes. A dinâmica das
1960), sabendo, ainda, que a incorporação de relações sociais nos espaços públicos con-
seu projeto político em instâncias da esfera pú- tribuiu para que possamos, atualmente, en-
blica está intimamente relacionada com sua ca- contrar referências feministas em artigos de
pacidade de conquistar espaço na mídia. jornais, entrevistas de parlamentares,
Autores como Thompson, Spink e advogados(as), profissionais de saúde e até
Guiddens entendem que, atualmen- em documentos de governos.2
te, a imprensa tem um papel fun- Mesmo tendo a “autoria” teórica e
damental na análise das relações conceitos próprios sobre questões relaciona-
sociais dinâmicas do mundo mo- das, por exemplo, à saúde e aos direitos sexu-
derno. Para eles, a mídia aponta ais e reprodutivos, muitas vezes o movimen-
para um novo olhar do que se con- to não conseguiu fazer sua defesa mais
sidera “o público e o privado”, veemente nos embates com a mídia. A atua-
entendendo a ética como uma nova ção ainda acontece de forma restrita e
instância de regulação social. (Me- descontinuada, sem a preparação de argu-
drado & Lira, 1999) mentos convincentes, perdendo terreno e
enfraquecendo a afirmação de ações favorá-
Para as mulheres, que enfrentam dile-
veis à ampliação e à garantia desses direitos.
2 Uma tendência crescente no
mas oriundos da dinâmica e tensa relação
movimento é a inserção de
Uma contradição se apresenta entre o
entre o privado e o público, expressar suas
feministas em espaços antes discurso e a prática do movimento, uma vez
considerados “do governo” ou idéias e opiniões, exercendo sua liderança em
“institucionais”. Se, no fim da que reconhece a suposta atração que a mídia
década de 1970, o movimento
espaços públicos, ainda é um grande desafio.
de mulheres lutou contra “Es-
exerce sobre a opinião pública, mas não sabe
No entanto, é cada vez maior a participação
tados” repressivos, atualmen- como interagir com ela. Esse é um reconheci-
te é grande a atuação nesses delas no poder. Isso exige, em contrapartida,
espaços, que não necessaria- mento que se explicita nas recomendações
mente são “de governo”. E isso
maior habilidade para difundir seu discurso.
esteve em evidência nas dis-
contidas na publicação Hera: Health,
Ao que parece, as feministas, ao longo
cussões das conferências inter- empowerment, rights & accountability –
nacionais de Pequim, na China, dos últimos anos, estão procurando dar maior
e do Cairo, no Egito. Essa par- Saúde, empoderamento, direitos e responsa-
ticipação acarreta a assimila-
visibilidade à sua intensa produção teórica.
ção do discurso feminista em
bilidade (1999).3 O documento sugere ações,
Isso nos leva a concluir que o movimento vem
diversos segmentos da socie- com diretores(as), gerentes e funcionários(as)
dade, até ampliando a visibi- internalizando alguns pontos convergentes
lidade das proposições e de empresas de comunicação, que reforcem a
teorias do movimento.
com o pensamento de Nancy Fraser:
importância dos direitos reprodutivos e so-
3 Trata-se de um documento As esferas públicas não são só are- bre o papel de cada um(a) na difusão de infor-
produzido por um grupo in-
ternacional de mulheres envol- nas para a formação da opinião mações confiáveis nessa área.
vido na área de saúde, a partir
de conceitos fundamentais de
discursiva, além disso, elas são Outro documento que traz uma série
acordos assinados na Confe- arenas para a formação e o desem- de sugestões sobre a ampliação dos debates
rência Internacional sobre Po-
pulação e Desenvolvimento penho de identidades sociais [...]. em torno da democratização dos meios de
(1994) e na IV Conferência In-
ternacional da Mulher (1995).
Participar significa ser capaz de comunicação e a atuação do movimento de

64 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
O DISCURSO FEMINISTA NA ESFERA PÚBLICA

mulheres nesse campo é o balanço nacional feministas elevaram o status do sujeito político
Políticas públicas para as mulheres no Bra- feminista a formador de opinião. São elas: a Rede
sil 5 anos após Beijing, da Articulação de Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais
Mulheres Brasileiras. A publicação ressalta a e Direitos Reprodutivos (Rede Feminista de
necessidade da criação de mecanismos de- Saúde) e a Rede de Mulheres no Rádio.
mocráticos de monitoramento, pela socieda- A Rede Feminista de Saúde fomentou,
de brasileira, da transmissão de mensagens nos últimos anos, intensos debates públicos
que agridem a cidadania das mulheres, além sobre questões centrais da agenda do movi-
da qualificação feminina para atuar em canais mento, demarcando sua posição diante de
de TV e rádios comunitárias. E ainda reco- questões polêmicas, como o aborto. A rede
menda: “É preciso desenvolver uma política também foi pioneira em promover debates en-
para o estímulo à capacitação de mulheres no tre feministas e jornalis-
jornalismo escrito, na televisão, no rádio e na tas, ao realizar, entre 1997
internet” (Oliveira, 1999, p. 160). O trecho ci- e 1999, seminários regio-
tado indica que, embora a performance femi-
nista seja acanhada nos veículos de comuni-
nais que, além de diag-
nosticar ruídos na comu- Dialogar com
cação, o movimento enxerga esse campo como nicação entre ativistas e
setor de concentração de poder e importante profissionais de impren- a mídia de
influência social. sa, forneceram subsídios
Dialogar com a mídia de forma planeja- tanto para melhorar a co- forma planejada
da também fez parte do processo de bertura da mídia como
empoderamento das mulheres e pode se cons- para qualificar a participa- também fez parte
tituir numa ação estratégica de advocacy. ção das mulheres organi-
Nesse sentido, as etapas do Curso Nacional
de Advocacy Feminista em Saúde e Direitos
zadas em programas de
rádio e televisão. Os en-
do processo de
Sexuais e Reprodutivos, realizadas, respecti-
vamente, em 1999 e 2001, tiveram, no progra-
contros resultaram na pu-
blicação do livro Mulher
empoderamento
ma, debates em torno de estratégias de inter-
venção política das mulheres nos veículos
e mídia, uma pauta desi-
gual?, editado em 1997. das mulheres
formais e comunitários de comunicação, con- Outra estratégia
tando, para tanto, com a significativa contri- de grande êxito na pro- e pode se
buição e participação de jornalistas da Rede moção de ações afirmati-
Nacional Feminista de Saúde e Direitos vas voltadas ao incre- constituir numa
Reprodutivos.4 mento da participação
Mas o desafio não é só melhorar o
diálogo com os meios. As feministas tam-
das mulheres na mídia foi
a formação da Rede de
ação estratégica
bém voltam seus olhos para o machismo pre-
sente nas redações, que pode originar em
Mulheres no Rádio, ain-
da na década de 1990. A
de advocacy
coberturas que desqualificam a população rede reúne quase 400 in-
feminina, imputando-lhes papéis sociais de- tegrantes de todos os
preciativos. Um sexismo explicitado, ainda, pontos do país. Sua tessitura está se consoli-
na discreta participação de mulheres nos dando, atualmente, por meio da Rede Cyberela,
cargos de decisão desses veículos,5 o que, um projeto do Cemina – Comunicação, Edu- 4 Os dois documentos elabo-
rados a partir das discussões
para a feminista Maria Cristina Quevedo cação e Informação em Gênero, que prima pela e conteúdos do curso de
(1996), é expressivamente combatido no ca- inclusão digital de mulheres por meio da advocacy trazem recomenda-
ções expressas e até dicas so-
pítulo “La mujer y los medios de difusíon”, veiculação de programas de rádio via Internet. bre como lidar com a mídia
para estimular as feministas a
contido na Plataforma de Ação da IV Confe- A paixão das integrantes da rede pelo pensar em uma forma de co-
rência Internacional da Mulher (1995). rádio tem possibilitado o exercício da fala municação política.

pública na mídia para centenas de mulheres, 5 Nos últimos anos, as reda-


ções têm demonstrado mais
numa intensa troca de relatos, histórias de disponibilidade para as mulhe-
Fala pública feminina re s . E m Pe r n a m b u co , p o r
vida e articulação de ações políticas e campa- exemplo, alguns cargos de
Uma nova revolução começou a tomar forma nhas em prol do pleno exercício da cidadania direção estão em mãos femi-
ninas, mas, ao mesmo tempo,
dentro do feminismo nos últimos anos, quando feminina em todo o país.6

ABERTO
isso não significa que as re-

ESPAÇO
estratégias nacionais de acesso do discurso Integrante da rede, o Centro de Mu- dações tenham incorporado “o
olhar que transforma” nem
feminista à esfera pública tiveram inegável lheres do Cabo, uma ONG feminista sediada que levem em consideração a
eqüidade de gênero em suas
impacto na opinião pública. Duas articulações em Pernambuco, entendeu, ainda em 1995, práticas.

FEV 2004 / MAR 2004 65


E S PA Ç O ABERTO

* Ana Veloso que o rádio poderia ser um grande aliado para Isso acontece porque o movimento de
Mestranda em o movimento feminista e o combate às desi- mulheres, por sua própria falta de prontidão,
Comunicação pela gualdades de gênero na Zona da Mata Sul de tem dificuldades em lidar com a velocidade
Universidade Federal Pernambuco.7 A entidade produz, em parce- das emissoras de rádio e televisão comunitá-
de Pernambuco (UFPE), ria com os centros de mulheres das cidades rias ou comerciais. Por isso, acaba perdendo
bolsista do programa de Palmares, Joaquim Nabuco e Água Preta, oportunidades de desencadear discussões
Gênero, Ação,
o programa Rádio Mulher. Fenômeno de pú- políticas e difundir argumentos. Outro fator
Reprodução e Liderança
blico, o Rádio Mulher ocupa o terceiro lugar preponderante para a suposta falta de espa-
da Fundação Carlos
Chagas e integrante da
de audiência na região e o primeiro lugar na ço sempre foi a resistência das feministas em
equipe técnica da ONG
preferência do público no seu horário de se relacionar mais intensamente com a mídia.
feminista Centro das veiculação, entre as 11 horas e o meio-dia. Uma coisa é certa: qualificar a fala pú-
Mulheres do Cabo. Totalmente produzido por mulheres, o pro- blica das suas líderes é primordial para o movi-
grama vai ao ar, ao vivo, três vezes por sema- mento. E também é essencial, uma vez que o
na, na rádio Quilombo FM. 8 discurso não fica no ar. Necessita de atrizes
As iniciativas citadas demonstram empoderadas para a sua propagação. No seu
que as feministas estão atentas para a im- texto preparatório ao curso nacional de
portância da difusão de suas idéias por meio advocacy feminista, a psicóloga Suely Olivei-
da mídia, como forma de emplacar mensa- ra (1999) atesta que a liderança não é só um
gens na esfera pública. No entanto, até 2002, talento natural. Ela também afirma que um dos
o movimento se ressentia de uma ação con- desafios do feminismo é formar as mulheres,
creta e ousada que habilitasse suas ativis- capacitando tecnicamente suas líderes, para
tas a enfrentar debates políticos em entre- que possam ter êxito em suas missões: plane-
vistas nos veículos de comunicação. Não jamento estratégico de ações, bom discurso e
havia, ainda, uma ação voltada para a po- fala pública, boa capacidade de argumentação,
tencialização de porta-vozes para intervir na relação habilidosa com a mídia, enfim, potenci-
lógica das coberturas de imprensa, pautan- alizar e desempenhar cada uma das habilida-
do assuntos do seu interesse. des da liderança.
Para passar de receptor passivo da Nem a invisibilidade na esfera privada
mídia a agente de mudança, de acordo com nem a superexposição dos holofotes da mídia
Fátima Pacheco Jordão (1999), o movimento na esfera pública. Ao entender a importância
precisa não somente interagir seu fazer políti- da qualificação para esse diálogo com a soci-
co com a mídia, mas “fazer política de modo edade, mediado pelos meios massivos, o mo-
comunicacional”. vimento conquistará novos aliados e aliadas
para seu projeto político que visa à transfor-
mação das relações sociais e à democratiza-
Porta-vozes feministas
ção da vida cotidiana. Acreditamos que quem
Em Pernambuco, as mulheres começaram a tem uma proposta ousada como essa não se
dialogar mais intensamente com a imprensa contentará em ser apenas uma fonte reconhe-
ao denunciar o sexismo nos meios de comu- cida pela opinião pública.
nicação de massa na década de 1980. No en- Ao compreender que qualquer trans-
tanto, a promoção de ações afirmativas, prin- formação cultural em curso no Brasil preci-
cipalmente no campo da saúde, dos direitos sa levar em conta os veículos de comunica-
sexuais e reprodutivos e do combate à vio- ção, o movimento apresenta as mulheres
lência, valorizando os veículos de comunica- como sujeitos políticos com habilidade para
ção como um caminho rápido e eficaz para imprimir seu discurso na esfera pública, lan-
atingir a opinião pública, ainda se ressentia çando o olhar feminista para a mídia como
de estratégias de continuidade que primas- “locus privilegiado da ação política”
sem pela politização do discurso. (Jordão, 1999).
6 Tudo isso convergindo para
o sítio <www.radiofalamulher.
org.br>.

7 Região marcada por uma


história de ocupação de terra
e monocultura da cana-de-
açúcar.

ESPAÇO
8 Também pode ser ouvido
por intermédio do sítio da
ONG<www.mulheresdocabo.
org.br>.

66 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
O DISCURSO FEMINISTA NA ESFERA PÚBLICA

Ação inédita
O Fórum de Mulheres de Pernambuco, em cícios de argumentação, de fala pública e
intercâmbio com a Rede Feminista de Saúde, media training. A idéia é fortalecer o dis-
decidiu investir na potencialização da fala pú- curso feminista não apenas para “figurar”
blica de suas militantes por meio do projeto na esfera pública e conquistar espaço. O
Mídia Advocacy – Qualificando Porta-Vozes projeto pretende, ainda, orientar as partici-
Feministas de Pernambuco para dialogar com pantes sobre a lógica e o funcionamento
a imprensa. 9 Trata-se de uma ação inédita dos veículos de comunicação de modo que
em comunicação que, além de habilitar fe- elas passem a interagir com profissionais de
ministas para lidar com a mídia, prima pelo imprensa e suas opiniões influam nas co-
seu aprofundamento teórico em temas rela- berturas jornalísticas de temas de interesse
cionados com saúde, direitos reprodutivos e do movimento.
direitos sexuais. A primeira edição do Mídia Em âmbito nacional, o movimento co-
Advocacy começou em março de 2003 e vai memora o surgimento do Instituto Patrícia
até março de 2004 e também tem o apoio Galvão, uma ONG criada em 2002 por
da Ação Mundo Solidário – Projetos na Amé- ativistas e feministas que atuam no campo
rica Latina (ASW).10 O projeto vem sendo da comunicação em todas as regiões do país.
desenvolvido com 25 mulheres líderes de or- Entre seus objetivos, o instituto pretende
ganizações feministas e de grupos comuni- “colaborar para a promoção e a constru-
tários de oito municípios da Região Metro- ção de uma imagem da mulher na mídia
politana do Recife, Zona da Mata Sul e do que seja mais adequada à realidade das bra-
sertão pernambucano. sileiras e que reflita o crescente reconheci-
A metodologia prevê discussões sobre mento dos direitos humanos das mulheres”.
o papel dos veículos de comunicação, troca Trata-se de uma grande contribuição para
de experiências por meio de vivências, exer- o feminismo brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro: DP&A, 1997. gênero. Chile: Isis Internacional, 1996, p 23.
9 O projeto vem sendo coor-
HERA. Saúde e direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: SCOTT, Joan. Gênero, uma categoria útil de análise histórica.
denado pela autora deste ar-
idéias para ação. S.l.: Cepia; Ibase; SOS Corpo, 1997. Educação & Realidade, Rio Grande do Sul, v. 20, n.2, 1995. tigo como parte de suas
JORDÃO, Fátima Pacheco. Desenvolvimento de estratégias e SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O que é, afinal, estudos atividades como bolsista do
programa de Gênero, Repro-

ABERTO
táticas de comunicação no espaço da mídia de massa. In: AGENDE. culturais?. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 9-131.
dução, Ação e Liderança, da
Fundação Carlos Chagas, com
o apoio da Fundação
MacArthur e em parceria com
a ONG feminista SOS Corpo –
Gênero e Cidadania.

10 O Fórum de Mulheres de
Pernambuco está negociando
a continuidade da execução
da proposta em 2004 com a
ActionAid e com o Dia Mun-
dial de Oração – Comité
Aleman.

FEV 2004 / MAR 2004 67


CULT CULTURA
Fátima Pontes *

68 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
URA
Do
samba
O olhar de Cris Veneu1 pousa vibrante e emocionado
sobre as representações do samba. É como se repetisse
os versos da canção De volta ao samba de Chico
Buarque, “Acenda o refletor / Apure o tamborim / Aqui é
o meu lugar / Eu vim”.
Ver fotos de sambistas, violões, estandartes é, sobretudo,
sentir as intensidades da cultura de um povo. Mas é
também constatar que o samba pode ser uma importante
e bela fonte criadora de imagens. Elas nos contam uma
história. Melhor, várias histórias. 1 Cris Veneu é carioca. Vem
desenvolvendo esse trabalho
Assim como as letras dos grandes sambistas expressam há sete anos, onde lida com
sensações particulares sobre o
samba, criando sempre no li-

os múltiplos aspectos da vida – o sentir, o lutar, o sofrer, mite fronteiriço entre o


fotojornalismo e sua subjetivi-
dade, convidando cada um(a)

o sobreviver –, as fotos nos mostram recortes da emoção a fazer sua própria incursão
nesse universo. As fotos que
ilustram esse texto são fruto

humana no essencial momento da manifestação da arte, da exposição individual Do


Samba, ocorrida no primeiro
sábado de fevereiro de 2004,

levando-nos a compreender a nossa própria trajetória. no Espaço Bananeiras, em


Santa Teresa, Rio de Janeiro.

FEV 2004 / MAR 2004 69


C U LT U R A

Produzir arte e cultura também

é conhecer a si mesmo, saber o que é

urgente e necessário para nós mesmos.

O nosso lugar. E a fotografia nos revela

por meio do samba – arte visceral – esse

nosso lugar cultural e humano.

70 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
DO SAMBA

A fotografia que revela

a relação do sambista

com o estandarte

de sua escola

nos remete aos aspectos

de reverência e adoração,

fazendo-nos pensar

o quanto

é imprescindível

e essencial a emoção

na vivência da arte.

FEV 2004 / MAR 2004 71


C U LT U R A

Reconhecemo-nos

em cada uma dessas fotos.

Percebemos nelas elementos

de resistência e renovação

nas imagens de jovens que

juntam ao tradicional

uma estética mais ousada,

porém permeada

pelo caráter de resistência

de um fazer artístico

e cultural cultivado

apaixonadamente

pelas pessoas mais velhas.

72 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
DO SAMBA

FEV 2004 / MAR 2004 73


C U LT U R A

Músicos,

pandeiros

e violões.

O samba

traduzido

em imagens

propicia

um ouvir

e sentir

diferentes,

pois são olhos

e coração

que definem,

agora,

seu sentido.

74 DEMOCRACIA VIVA Nº 20
DO SAMBA

* Fátima Pontes
Escritora, professora
de literatura inglesa.

Fotos: Cris Veneu

FEV 2004 / MAR 2004 75


última página

76 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

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