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Abordar uma temática como a canção popular no Estado de São Paulo parece
uma tarefa pretensiosa e extensa demais para um capítulo de livro. Optar por um
cancioneiro que teve a cidade de São Paulo por assunto é também um desafio
cidade por distintos grupos e períodos. Contudo, esta representação musical ultrapassou
não apenas paulistano. Assim, os limites entre interior e capital no campo da música
popular são muito mais complexos do que os limites espaciais. O território da música e
e ainda há, uma troca freqüente entre os gêneros musicais produzidos em todo o Estado
de São Paulo. Para além disso, as influências musicais entre diferentes regiões do país e
2
Portanto, estas reflexões são delimitadas no modo como a cidade de São Paulo é
vista por dois compositores: pelo paulista João Rubinato (1910-1982), nome do popular
inspiração poética e musical e o tempo que lhe é inerente é “a noção de tempo afetivo
em contraposição à de tempo linear, evolutivo, como que para deter a pressa da cidade,
canções que ressaltaram e contribuíram na representação de uma São Paulo muito cara à
representações pode ser entendido como uma das estratégias de legitimação e conquista
paulista – até o folclore, passando pelo senso comum”. 5 Na constituição deste ideário
Todavia, esta peça musical não se resume a uma ode ao paulista. O compositor
narra São Paulo a partir da chegada dos portugueses até a ambientação da movimentada
cidade do final da década de 1960. Tais canções de Paulistana fazem emergir um tema
intérpretes de diferentes gêneros musicais. Assim, apesar de ter sido composta entre o
início da década de 1960 e 1974, ano de sua gravação, a sinfonia estabelece uma relação
já não vivesse na cidade naquele período. Billy Blanco estudou Engenharia em São
Paulo entre 1946 e 1948, quando então se transferiu para o Rio de Janeiro, onde
concluiu seu curso de Arquitetura. Paulistana, segundo seu autor, foi composta para sua
esposa, a paulista Ruth Egydio de Sousa Aranha. O músico chegou a compor outras
parceria com Tom Jobim), Belém (Guajará: Suíte do Arco-Íris – 1993) e trabalha
colonial, Billy traz na canção Louvação de Anchieta, interpretada por Pery Ribeiro, uma
para que esta história se inicie e para que seja cantada e decantada pelo homem novo,
como no trecho: “Tem canção por todo lado/ Louvado seja Anchieta/ Pra sempre seja
louvado”. Por outro lado, tal canção não se resume a tal louvação, uma vez que enfatiza
uma trilha sonora cotidiana: “Navegante tem cantiga/ Que aprendeu no mar um dia/
Como não poderia deixar de ser, a cronologia composta por Billy aponta “as
raízes do Brasil”, ressaltando que esta contribuição que vem do mar não é a única na
4
homônima Bartira:
arranjo que alterna uma musicalidade européia, num solo ao piano e numa sonoridade
mais orquestrada, em contraponto a uma tessitura mais percussiva que remete a uma
chocalho, guizos, tambores (que não são exatamente indígenas). Isso produz uma
encontro entre estes povos. Parte desta “estratégia musical” advém também da
destas mesmas matrizes. Nesse sentido, é possível uma aproximação com as reflexões
soma de elementos tão díspares gerou muitas vezes produtos imprevistos e que em vão
mesma premissa, não há como enquadrá-la como mais um dos arautos da ideologia da
paulistanidade, simplesmente por ter evocado valores caros a esta mesma representação,
pois seria extremamente reducionista tal conclusão. Não unicamente como licença
Cláudia. Por fim, as críticas a esta construção histórica não estavam disponíveis para
que o compositor incorporasse outras leituras, que nos são contemporâneas, bem como,
Censura.
Bartira é também escolhida como motivo por Billy Blanco dada a representação
do paulista encontra sua matriz ideal. Filha do cacique Tibiriçá, da tribo Guaianá, ao se
casar com o português João Ramalho durante o início da colonização em São Paulo, ela
brasileiros”, “mãe da Nação” ou como diria a letra da canção, essa “mãe antiga”,
Paulista, pois que seu sangue vem passando de geração em geração pelas veias da gente
exemplo de outras obras, a autora prossegue fazendo uma ponte entre tempos distintos
ao falar do “sangue bandeirante”, que seria o “sangue que ainda hoje circula nas veias
dos estadistas, dos agricultores, dos industriais, dos poetas, dos operários, e da
Portanto, tal biografia acresce ao marco fundador da raça uma cronologia que
bandeirante. A letra da canção reforça todos estes valores como a raça, a gênese, as
raízes do povo paulista. Por outro lado, o autor vê que Bartira é relegada por uma
jesuíta seu grande padre; então, paulista quatrocentista deve esse tempo que ninguém
Ribeiro. Neste, digamos, carimbó-épico9, temos uma outra composição que realiza a
fusão de valores indígenas e europeus. A tensão é bem maior nas cordas e nos metais,
da empresa, o inesperado presente nas trilhas terrestres das bandeiras e nas rotas
fluviais, “rio acima”, das monções. Não obstante, refere-se a história tradicional e
fronteiras “pra fazer mais o Brasil do que existia”. Esta “missão cristã” povoa também
outras canções presentes em Paulistana, como nos trechos: “louvado seja Anchieta”
(Louvação de Anchieta); “abençoado o colo desta mãe antiga” (Bartira); “na reza do
paulista, trabalho é Padre-Nosso/ é a prece de quem luta e quer vencer” (Tema de São
Aldir Blanc (em parceria com o letrista Cláudio Tolomei), onde o amor num dia de sol
entre Fernão e Esmeralda pode ser descrito através do passado, em que Fernão volta ao
sertanista no XVIIº século", de 1888, do poeta Olavo Bilac. Esta poesia épica inspirou
outras poesias, filmes11 e canções como Águas de Março, de Tom Jobim e Sonhador
1956, de Mano Décio da Viola e de Silas de Oliveira 12. Remete ainda a um tempo épico,
recurso poético.
homônima, com suas motos, badalações, com a mini-saia e short da paulistana que
imaginaram/ Que a tanga e a miçanga vinham outra vez”. Em O Céu de São Paulo,
comparado a uma “guerra de chaminés”, que produz um céu que “não é da garoa/ é véu
de fumaça que passa”. Contudo, se o sol transpassa a cortina de fumaça ou não, isso não
retira o paulistano da sua correria: “é que o bandeirante/ não perde seu tempo, olhando
preocupação com a poluição e aponta que “o sol verdadeiro está no asfalto/ na terra, no
homem, na produção”.
Na seqüência da canção Monções, vem uma das canções mais reconhecidas pelo
público paulista: Tema de São Paulo. Apesar da obra Paulistana não ter feito muito
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sucesso junto ao público, a canção que tem por tema São Paulo foi usada, junto com
Amanhecendo e O tempo e a hora, como prefixo pela rádio Joven Pan no programa
Jornal da Manhã durante mais de vinte e cinco anos. Entretanto, esta rádio paulista não
foi a única, uma vez que outras rádios do país também utilizaram trechos da canção
como prefixo musical. Como é típico da arrecadação dos direitos autorais no Brasil, o
compositor nunca recebeu nada pelo uso diário de sua obra, segundo o próprio Billy
Blanco: “Eles usam alguns segundos e tiram antes que seja necessário o pagamento de
direitos, um truquezinho”. 13
São Paulo, quando do anúncio da inauguração de novas estações de Metrô, entre outros
projetos. Ao ouvir Tema de São Paulo 40 anos após sua composição, seu texto soa até
irônico:
coro como executante não é aleatória. Ao tratar da poesia de Neruda, Alfredo Bosi
classes, os estratos, os grupos de uma formação histórica que se dizem no tu, no vós, no
Na seqüência temos uma outra composição que também reforça esta imagem do
paulista que vai dormir pensando no trabalho do dia seguinte, intitulada Capital do
tempo, cuja interpretação coube a Elza Soares. Desta vez, são trazidos à cena os povos
que construíram a metrópole: “bastante italiano, sírio, japonês/ além do africano, índio e
português (...) paulista é quem vem e fica/ plantando família e chão/ fazendo a terra
mais rica/ dinheiro e calo na mão”. Contudo, a riqueza produzida por estes
Nesta obra, interpretada pelo sambista carioca Nadinho da Ilha, Billy compõe
uma São Paulo mais próxima daquela composta em prosa, verso e melodia por
retratada. O tempo exíguo para os que vivem na metrópole apressada é abordado em sua
relação com o dinheiro e com o progresso da cidade: “de Metrô chego primeiro/ se
tempo é dinheiro/ melhor vou faturar”. Nesse sentido, o ideário de 1954 é representado
para/ para São Paulo crescer” (grifos nossos). Neste trecho, o progresso é sugerido em
toda sua carga de positividade, ou seja, a imagem de uma marcha, avanço, evolução.
contexto: “notícia ganha o mundo/ e a gente não é nada”. Curiosamente, uma passagem
desta canção pode responder às diferentes visões da cidade: “o que vale é a versão/
A produção musical de Billy Blanco, por vezes pautada num ótimo exercício de
fino humor, sugere que as canções que enaltecem São Paulo em Paulistana tenham sido
trabalho, o capital, a pressa, o centro do poder. Nesse sentido, como está claro no título,
a idéia do “retrato” é bem plausível. Contudo, tal ironia não é perceptível em toda a
obra, mas em alguns momentos, além disso, parte da Paulistana foi utilizada pelos
ou discursivo.
Viva o Camelô. Este tema já foi antes explorado em outra composição sua intitulada
Camelot, em que este comerciante das ruas é sugerido como inspiração a certos
políticos: “aconselho então a muito deputado/ que ganha calado/ escutar o camelot com
12
atenção/ o distinto aprenderá a falar de fato/ quando cassarem o mandato/ já tem uma
profissão: de camelot”. Com Pro Esporte, bossa-nova interpretada por Elza Soares, o
autor enfatiza a importância de São Paulo nas mais diferentes modalidades esportivas,
afinal: “pro esporte, pro esporte é a solução/ pro esporte, pro esporte contra a poluição
(...) só em São Paulo que é a terra do depressa/ a São Silvestre poderia acontecer”.
Jovem, Coisas da Noite e em Rua Augusta. Nesta última, Billy traz os locais em que o
buate, restaurante, até casa lotérica”. Na última canção desta sinfonia está presente
Grande São Paulo, uma ode às cidades que compõem a região metropolitana, como
Santo Amaro, Santo André, Guarulhos, além de bairros paulistanos como o Brás e a
Vila Maria. Mais orquestrada do que as três canções que lhe antecedem, conclui com o
passível de análise, porém há também uma complementaridade nas versões do que seria
a cidade. Esta suíte ou sinfonia popular que é Paulistana: o retrato de uma cidade
muito fértil do início da década de 1970, muito embora sua temática fosse
contextualmente anterior.
O objeto deste texto está circunscrito às décadas de 1950 e 1960, contudo, faz-se
1974, este foi também o ano da gravação do primeiro LP (long play) de Adoniran
Barbosa. Em particular, a censura às canções que compunham o disco, será desta vez o
1974 e 197515. Uma densa bibliografia16 explora o fato das canções de Adoniran terem
17
sido vetadas devido ao linguajar “ítalo-caipira” utilizado pelo compositor ao elaborar
contar, é destacado que a censura da canção Despejo na Favela, em 1969, teve mesmo
um cunho político.
Nos pareceres que encontramos nos Arquivos da Censura, temos uma versão
complementar dos trabalhos que abordaram este caso de veto à obra de Adoniran. Não
eram apenas os erros gramaticais que geraram os cortes. No Arquivo Nacional/ Rio de
Janeiro, há duas cópias de letras de Adoniran, uma delas é Saudosa Maloca, enviada
pela empresa Discos CBS S/A, cujo parecer de 12 de outubro de 197118 liberou a
canção. Dois meses antes, em letra também enviada pela CBS, a canção Despejo na
No entanto, as duas canções foram gravadas pelo grupo de samba Titulares do Ritmo 20,
Em março de 1974, desta vez foi a gravadora Odeon que tentou gravar algumas
canções de Adoniran Barbosa para compor seu primeiro LP e, com base nos vetos das
na Favela, Já fui uma brasa, Tiro ao Álvaro e Um Samba no Bixiga. De acordo com o
parecer dos três primeiros censores que avaliaram o recurso, “a letra musical ‘Despejo
14
na Favela’ deverá ter seu veto mantido, porque infringe o disposto no Art. 41, alínea d),
21
do Regulamento aprovado pelo Dec. Nº. 20493/46”. Trocando em miúdos, com base
A canção Despejo na Favela já havia sido gravada em 1969 por Nerino Silva e,
em 1971, pelo Titulares do Ritmo. Entretanto, desta vez, a canção de Adoniran, Despejo
idéia de protesto contra a ordem judicial e a condição social de Narciso na favela. Dessa
censoras grifam a última parte da letra, apesar de não discorrerem sobre a mesma.
Segundo Ayrton Mugnaini Jr., este não seria o primeiro veto junto à obra de Adoniran:
15
ao disco meio século depois, na interpretação de Passoca”. O autor lembra também que:
devidos aos versos: ‘Minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás, mas essa
uma forte carga de crítica social. Num dos primeiros trabalhos sobre Adoniran escrito
por um historiador e pouco citado por muitos, no artigo intitulado Luzes da Cidade,
conta os preceitos legais contidos no Dec. 20.493 de 46”. Para completar, corrigem
Lei nº. 5.536, de 21 de Novembro de 1968, que “Dispõe sobre a censura de obras
16
nesta lei que é instituída a obrigatoriedade de formação superior para os novos técnicos
de Censura.
Assim, mesmo baseado no aparato jurídico criado pela ditadura, o corte era
questionável, pois a única passagem da lei que tangencia a justificativa utilizada para o
censura deverão apreciar a obra em seu contexto geral levando-lhe em conta o valor
artístico, cultural e educativo, sem isolar cenas, trechos ou frases, ficando-lhe vedadas
que as anteriores, qual seja: “VETADO – A falta de gosto impede a liberação da letra”.
Afinal, por que uma canção como Um Samba no Bixiga (gravada em 1956 pelos
1974? Por um lado, tal veto esbarra na subjetividade do censor que, embora tenha uma
série de preceitos legais a observar, pode construir uma linha argumentativa pessoal
para vetar o objeto analisado. Além disso, o país vivia uma outra fase dentro da ditadura
produção artística.
Censura a liberação da canção Já fui uma brasa, parceria de Adoniran com Marcos
César, como afirma o Parecer nº 13849/74: “A letra ‘Já fui uma brasa’ é passível de
desta vez a passagem “porque em baixo, se assoprar/ pode ter muita lenha pra queimar”.
Como as censoras entenderam que o buraco era mais embaixo, veio o veto e os
compositores foram obrigados a fazer uma pequena mudança nos versos finais de Já fui
uma brasa:
(declamado):
É negrão... eu ia passando,
o broto olhou pra mim e disse:
é uma cinza, mora?
Sim, mas se assoprarem debaixo desta cinza
tem muita lenha pra queimar...
Aqui, Adoniran faz uma crítica à forma sazonal como alguns gêneros musicais
se sucedem nos meios de comunicação. Em particular, aponta como seu “samba antigo”
é esquecido frente ao que desponta como moderno, no caso, representado pela Jovem
Guarda. Esta canção revela também uma outra faceta da biografia do compositor, ou
seja, o caráter cíclico de seu sucesso numa diversa carreira no rádio, televisão, cinema e
programa radiofônico História das Malocas, baseado em sua canção Saudosa Maloca, e
criado pelo produtor, roteirista, seu parceiro e grande incentivador Osvaldo Moles
radiopeça estreou em novembro de 1955. Durante mais de dez anos (...) tornando-se
História das Malocas (...)”. O autor lembra ainda a origem do típico visual de Adoniran:
Contudo, João Rubinato foi muitos. Foi ator em inúmeros filmes como no
premiado O Cangaceiro (1953); teve parcerias inusitadas com dois grandes poetas
(1914-1988) e duas composições com Hilda Hilst (1930-2004), escritas para Adoniran
quando do encontro de ambos no Bar do Hotel Jaraguá.26 Teve contato com curiosos
compositores, como Peteleco. Diferente de Chico Buarque que, para driblar a Censura,
algumas de suas canções ao seu cachorro Peteleco, desta vez para driblar as sociedades
representativas de classe. Outra composição que teve o nome de seu intérprete alterado
pelo mesmo motivo foi Samba do Arnesto, quando da inversão do nome de Nicola
gravar uma música sua. Em 1935, Adoniran foi premiado no concurso de marchas em
São Paulo, com Dona Boa, parceria com J. Aimberê (1904-1944) e, apesar do
compositor considerá-la muito ruim, foi escolhida por um júri especializado, que contou
até mesmo com a participação de Camargo Guarnieri (1907-1993). Com Trem das Onze
teve uma canção com alcance internacional, mas antes disso foi, ironicamente, sucesso
19
Centenário.
Álvaro, mais uma parceria de Adoniran com Osvaldo Moles, foi vetada com a mesma
LIBERAÇÃO da letra ‘Tiro ao Álvaro’, desde que corrigidas as palavras ‘tauba’ (para
Candinho 27, esta breve passagem da Censura brasileira é a prova de que não houve
Maracatins, gravação feita já no país sob a batuta dos militares, foi vetada desta vez.
gravação, a canção não foi incluída no disco de Adoniran de 1974, o que somente foi
feito em 1980, num belo dueto com Elis Regina, no disco Adoniran e Convidados. Esta
gravação contribuiu para que uma outra geração conhecesse a obra do compositor.
Segundo Ayrton Mugnaini Jr., a canção Samba do Arnesto também teria sido
vetada no mesmo período, visto que todas estas canções fariam parte do primeiro LP
individual de Adoniran, que até então só havia gravado compactos simples e duplos.
Apesar de não termos encontrado em Brasília tal canção vetada, afirma o autor que:
‘Um Samba no Bixiga’, lançado nos anos 1950 pelos Demônios, desta vez proibido só
inaugurador trabalho de Valter Krausche sobre Adoniran trazia esta mesma versão em
20
relação à Samba do Arnesto: “foi proibido por um decreto federal que não permitia o
algo impróprio para o Brasil novo dos militares pós-1964. Nesse sentido, depreende-se
que o veto não é unicamente “lingüístico”, mas também de ordem política na medida
Como diria Alcir Lenharo: “O sentido da transgressão se amplia quando a fala ‘errada’
visa diretamente atacar não somente a fala do instituído e sim os seus próprios
constituidores”. 30
sejam medidas para proibir qualquer que seja a obra artística, ainda mais pelo fato de ser
compositor popular teve que esbarrar nos mecanismos do Estado autoritário de então.
diversidade lingüística foi, ao longo dos séculos XIX e XX, vista como empecilho à
“como no caso da pressão sobre os falantes de dialetos para julgarem o próprio discurso
31
incorreto”. Para além disso, há ainda o preconceito em relação às variações
marcas sociais impressas nas falas ou imprimem o status, no caso das elites, ou o
o Brasil vivia uma forte censura, que não era unicamente avessa ao discurso político.
novamente percebida pela ditadura militar, desta vez no final da década de 1970.
Embora não tivesse uma militância política, Adoniran foi fichado no DEOPS –
consta em quatro resumidas fichas, ele teria participado de atos públicos na cidade de
São Paulo: “03.77 – Fez parte dos shows programados p/ Fac. de Ciências Sociais da
anterior: “23/03/79 – Rel. nº. 1009 – Ref. part. de festa de despedida na casa
Universitária”.
Custo de Vida” 34, em que o agente, após discorrer sobre o histórico deste movimento,
tais como ‘Lavrador’ de Geraldo Vandré, ‘Saudosa maloca’ de Adoniran Barbosa (...)”.
Não há uma afirmação de que Adoniran tenha participado do ato, contudo era também
outros momentos, não tão freqüentes, a criação de fichas também surgia da ignorância
radiofônico, foi colocada sob suspeita ao ser inserida num outro contexto, no caso, no
habitação, da fome, da exploração, da “força da grana que ergue e destrói coisas belas”
(como diria Caetano Veloso em Sampa). Porém, Adoniran não foi o único a fazê-lo.
Estes compositores e intérpretes são também responsáveis, senão pela criação, pela
produção da canção popular. A maioria dos trabalhos sobre a boêmia e sua relação com
a música popular dão conta deste universo no Rio de Janeiro. A cidade de São Paulo foi,
de certa maneira, esquecida não apenas pela historiografia, mas também por outras
elaboração de uma imagem da cidade de São Paulo pouco afeita aos prazeres noturnos
dos cafés, bares, restaurantes e boates da cidade. Afinal, o paulista dormia cedo e, o
23
pior, “pensando nas coisas que no outro dia ia fazer”, ou seja, trabalhar. Portanto, muito
boêmia. Esta visão tem sido questionada em relação às décadas de 1950 e 1960, por
exemplo, pelo jornalista Hélvio Borelli, em seu recente livro Noites Paulistanas:
história e revelações musicais das décadas 50/60, através de uma São Paulo que
Um dos mais importantes bares paulistas foi o Jogral. Inaugurado em 1964, pelo
compositor Luís Carlos Paraná (1932-1970), este bar foi o endereço preferido de
lugar, segundo o publicitário Marcus Pereira (morto em 1981), acionista simbólico com
principal atração da casa era o próprio Luís Carlos Paraná, tendo no repertório
decisiva para que Marcus Pereira viesse a inaugurar em 1967 uma seqüência de discos e
a posterior criação da sua gravadora Marcus Pereira. Este foi um empreendimento ímpar
gravação de canções populares, a partir de uma determinada visão do que seria o mapa
musical do Brasil.
personagens não muito presentes nas canções populares. É exposta a história de gente
comum, como aquela classe lembrada na década de 1950 pelo livro Quarto de Despejo,
parte de uma cultura urbana que, tanto naqueles anos cinqüenta como em nossos dias,
às agruras daqueles que vivem nas favelas, nas ruas, em condições desumanas por toda
obra, como no natal de 1959: “eu fui fazer compras, porque amanhã é dia de ano.
Comprei arroz, sabão, querosene e açúcar”.38 Era um tempo em que não era necessário
ter saudade do Lampião de Gás, retratado na canção de Zica Bergami, pois era ainda a
pessoal/ que hoje vai ter ensaio geral/ vai depressa maria/ antes que fique tarde/ daqui a
pouco escurece (....) e passar pelo armazém/ trazer um pacote de vela/ e um litro de
querozene (...)”. Numa entrevista de outro ícone da canção paulistana, Paulo Vanzolini,
autor de clássicos como Ronda, Volta por Cima e Praça Clóvis, entre outras, o
compositor assevera que Adoniran compôs uma imagem ímpar do que seria a periferia:
“‘Inês saiu pra comprar pavio pro lampião’. Numa cidade como São Paulo, alguém sai
pra comprar pavio por lampião. Quer dizer, você vê o poder de síntese que tem um
negócio desses?” 39
Carolina de Jesus exerceu ainda uma crítica ao seu cotidiano e aos políticos,
como na irônica passagem: “Eu não gosto do Kubitschek. O homem que tem um nome
40
esquisito que o povo sabe falar, mas não sabe escrever”. Com a publicação e a boa
aceitação do público pôde comprar uma casa, ser convidada para palestras, ser recebida
por celebridades. Porém, perde tudo ao não conseguir a mesma vendagem nos livros
25
que se seguiram, vindo a falecer na pobreza. A essência de sua obra pode ser entendida
em mais uma de suas frases célebres: “Eu não escrevo como quem manda flores”. 41
antigos astros e estrelas do rádio. No samba, a história é mais recorrente ainda. Além de
muitos deles serem reconhecidos tardiamente pela crítica e pelo público, enfrentam as
mesmas péssimas condições de vida a que são submetidos os moradores dos subúrbios.
Por fim, a cidade de São Paulo, que em inúmeros aspectos pouco se diferencia
de inúmeros centros urbanos, foi retratada distintamente pelos dois compositores. Suas
composições, se não são “retratos” da cidade, são visões de uma São Paulo que nasce e
renasce a cada dia, em que a modernidade e o atraso são como irmãos siameses, que não
se aceitam, mas que têm na sua origem a explicação de uma existência comum e
moderno com o arcaico, da riqueza com a pobreza, do condomínio de luxo ao lado das
humanas, mas que também viu nascer a altivez humana e a alegria, refletidas, por
exemplo, nos aspectos positivos cantados por Billy Blanco e Adoniran Barbosa. A
Adoniran, a força de sua poética imprimiu à metrópole seus olhares e ficou gravada na
memória das ruas. Este compositor popular soube muito bem traduzir a dualidade da
26
tristeza e da alegria paulistana em suas canções, como se percebe na sua fala que
antecede a gravação de Bom dia Tristeza42: “A tristeza é um bichinho, que pra ruer tá
Notas:
1
Como atesta o Programa O Cancioneiro da Imigração, em que Anna Maria Kiffer analisa as manifestações musicais de
quinze povos que vivem em São Paulo. Disponível em: <http://www.radio.usp.br/especial.php?id=2>. Acesso em: 23 mai.
2005.
2
O programa radiofônico Piratininga: do Pau Brasil à Paulicéia Desvairada, realizado pelo pesquisador musical Omar
Jubran para a Rádio USP que, a partir de inúmeras canções e excertos da literatura que têm a cidade por tema, traçou um
rico e bem construído panorama da cidade cantada e escrita. Disponível em: <http://www.radio.usp.br/especial.php?id=7>.
Acesso em: 23 mai. 2005.
3
BLANCO, Billy. Paulistana: Retrato de uma Cidade. Evento/Odeon. SE-11.00, 1974. Relançada em CD em 1996, pela
EMI, nº. 837823 2. Curiosamente, quase todo o elenco do disco foi composto por cariocas. Em 2005, quando das
comemorações do aniversário da cidade de São Paulo, a Banda Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo apresentou a peça
em plena Avenida Paulista.
4
LENHARO, Alcir. Luzes da Cidade. Óculum - Revista universitária de arquitetura, arte e cultura. Campinas: PUC, nº. 1,
pp. 50-55, ago. 1985, p. 50.
5
CERRI, Luis Fernando. Non ducor, duco: a Ideologia da Paulistanidade e a Escola. Revista Brasileira de História, v.18,
n.36, 1998, p. 02.
6
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio/ Departamento de Cultura da
Guanabara, 1975, p. 91.
7
BITTENCOURT, Adalzira. A Mulher paulista na História. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1954, p.17.
8
Depoimento presente no encarte do disco e do CD Paulistana – Retrato de uma cidade.
9
Aqui temos uma fusão do tradicional carimbó, uma dança de roda do Pará, com um discurso literário e musical
grandiloqüente, ou seja, ressaltam-se os feitos de uma ocupação heróica, típica de uma epopéia.
10
FIUZA, Alexandre. Entre cantos e chibatas: a pobreza em rima rica nas canções de João Bosco e Aldir Blanc.
Campinas: Faculdade de Educação, 2001. (Dissertação de Mestrado).
11
Por exemplo, em 1933 o italiano Vittorio Capellaro dirige O Caçador de Diamantes e em 1918 O Garimpeiro. Mais
informações em: EMÍLIO, Paulo. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra: Embrafilme,
1980.
12
Ver: NOVA História da MPB. Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Abril
Cultural, 1977. 33 rpm, stereo, nº. HMPB-21, p. 09.
13
Billy Blanco – 80 anos de talento. In: <http://www.socinpro.org.br/socnot12-04.htm>. Disponível em 23 de mai. 2005.
Ver também entrevista com Billy Blanco junto a própria rádio Joven Pan em 24 de janeiro de 2000. Disponível em:
<http://jovempan.uol.com.br/jpamnew/destaques/memoria>. Acesso em: 19 mai. 2005.
14
BOSI, Alfredo. Poesia de Resistência. In: O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1977, p. 182.
15
BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa. EMI-Odeon, 1974. 33 rpm, stereo, nº SMOFB-3839; e Adoniran Barbosa.
Odeon, 1975. 33 rpm, stereo, nº SMOB-3877.
16
Aliás, a bibliografia que analisa a obra de Adoniran é das mais extensas entre as que abordam os compositores brasileiros.
São inúmeras dissertações, artigos, reportagens e memórias dos campos da História, Música, Literatura, Jornalismo e
Ciências Sociais. Portanto, não caberia aqui neste breve trabalho uma fortuna crítica que abarcasse esta mesma produção.
Ver ainda: NOVA História da Música Popular Brasileira. Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. São Paulo: Abril Cultural,
1978. 33 rpm, stereo, nº HMPB-49.
17
Que tem sua origem muito anterior ao trabalho de Adoniran, como nos primeiros programas de humor no rádio em São
Paulo, ou nos textos de “Bananére, ou melhor, o engenheiro Alexandre Marcondes Machado (1892-1933), [que] foi o
criador do modo ítalo-paulista de falar”. In: MOURA, Flávio, NIGRI, André. Adoniran: se o senhor não ta lembrado. São
Paulo: Boitempo, 2002, p. 25.
18
Arquivo Nacional/ Rio de Janeiro, TN2.3.8763, nº. 8501, datado de 12/10/1971.
19
Idem, TN2.3.8685, nº. 8523, datado de 11/08/1971.
20
TITULARES do Ritmo. Titulares dos Troféus, CBS, 10104197, 1971. Ver a fonte desta discografia em: MUGNAINI JR.,
Ayrton. Adoniran: dá licença de contar... São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 233.
21
Parecer nº. 13849/74, Seção Censura Prévia, de 04.09.1975, Fundo DCDP - Divisão de Censura e Diversões Públicas,
Arquivo Nacional/ DF.
22
MUGNAINI JR., op. cit. , p.124.
23
LENHARO, op. cit., p. 51. Ver também a análise destes espaços de sociabilidade em: MATOS, Maria Izilda Santos de.
História e Música: pensando a cidade como territórios de Adoniran Barbosa. História: Questões & Debates, Curitiba, n.31,
pp. 31-48, 1999.
24
ROCHA, Francisco. Adoniran Barbosa: O Poeta da Cidade. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 95.
25
CARMO, Maurício do. A Leitura da Modernidade Paulistana em Adoniran Barbosa. Disponível em:
<http://www.estacio.br/graduacao/letras/trabalhos/docente/mauricio_adoniran.asp>. Acesso em: 30 jun. 2005.
26
MUGNAINI JR., op. cit., p.118.
27
Idem. Adoniran atuou em 18 filmes, como em Candinho, P&B, 95 min., 1953, dirigido por Abílio Pereira de Almeida.
28
Ibidem, p.132.
29
KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa: pelas ruas da cidade. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.79.
30
LENHARO, op. cit., p. 53.
31
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002, p. 123.
32
POSSENTI, Sírio. Sobre o ensino de português na escola. In: O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2001.
33
MORAES, José Geraldo Vinci de. A cidade de São Paulo: cultura e música popular no ar. História. São Paulo. nº. 17/8,
1998/1999, p. 27.
34
Documento 50-C-0-6862, citado na ficha de Adoniran Barbosa, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
35
SAUTCHUK, João Miguel. O Brasil em Discos: Nação, Povo e Música na Produção da Gravadora Marcus Pereira.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ Universidade de Brasília, 2005. (Dissertação de Mestrado), p. 26.
36
CALDAS, Waldenyr. Luz neon: canção e cultura na cidade. São Paulo: SESC/ Stúdio Nobel, 1995, p. 111.
37
Apesar de pouco conhecidas, Carolina também compôs algumas canções, como Vedete da Favela, Rá Ré Rí Ró Rua e
Marcha do Pinguço. Tais marchinhas foram recentemente interpretadas pela cantora Verônica Ferriari no programa
televisivo Sr. Brasil, apresentado por Rolando Boldrin, na TV Cultura, exibido em 11 de outubro de 2005.
38
JESUS. Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Círculo do Livro, 1990, p. 178.
39
In: JUBRAN, Omar. Piratininga: do Pau Brasil à Paulicéia Desvairada, Rádio USP, parte IV. Disponível em:
<http://www.radio.usp.br/especial.php?id=7>. Acesso em: 23 mai. 2005.
40
JESUS, op. cit., p.70.
41
Idem, p.182.
42
Parceria com Vinícius de Moraes presente no disco Adoniran Barbosa e Convidados. EMI-Odeon, 1980. 33 rpm, stereo,
nº 31C 064422868D. (Relançado em CD com o título Adoniran Barbosa, pela EMI, 2002, nº. 583582 2).