Maria Graciete Besse “Terminemos com mistificações e falsos pudores, quebremos até ao fundo toda água onde nos afundamos...” Novas Cartas Portuguesas (p.261)
a opinião de Maria Alzira escrita ousada, por vezes agressiva, e pela tradição, uma vez que desde
N Seixo há pelo menos qua-
tro razões para reler Novas Cartas Portuguesas. Uma delas, tal- despudorada, formando um vasto panorama sobre o estatuto das mulheres no imenso cortejo do seu o princípio dos tempos: “Tiveram os homens de se julgar semideuses caídos de sua graça vez a mais importante, é o “confronto infortúnio histórico. Deparamos por obra da mulher; e logo depois dos tempos” que permite “verificar assim com figuras femininas marca- tiveram que se inventar redimi- como a situação para a qual o livro das por condicionalismos de vária dos através do ventre de nova apelava (a situação social da mul- ordem, maltratadas, enclausuradas, mãe, essa santa, essa capaz de her) não foi passível de qualquer casadas à força, enganadas, explo- conhecer Deus no seu ventre e alteração significativa1”. Com efeito, radas e, apesar de tudo, extrema- de no seu ventre encarnar o deus apesar de ter havido alguns pro- mente pacientes. Mariana Alcoforado, salvador, depois chamado o filho gressos na condição feminina em a célebre religiosa de Beja, que do homem - que ironia rebuscada Portugal depois de 1974, as des- serve de ponto de partida ao - na sua vida e nos seus actos igualdades mantêm-se e o poder discurso entrecruzado e indissociá- exemplares.” (p.154) patriarcal parece não ter sofrido vel das três escritoras, funciona grandes mudanças. como o símbolo de todas as mulhe- O estatuto da mulher no pensa- A publicação em Abril de 1972, res, como o arquétipo da alienação mento patriarcal foi sempre defi- em plena primavera marcelista, de e da clausura feminina no seio da nido pela marginalização, pela Novas Cartas Portuguesas 2 , livro sociedade patriarcal, pois: estigmatização e pela domestica- assinado por três escritoras já “Que mulher não é freira, ofere- ção. Dependentes e submissas, víti- conhecidas no espaço literário cida, abnegada, sem vida sua, mas do amor ou da paixão, as português, funcionou como um acto afastada do mundo? Qual a mulheres foram durante séculos o político de alto valor simbólico que mudança, na vida das mulheres, verdadeiro Outro do homem, o provocou uma reacção feroz por ao longo dos séculos? No tempo “continente negro” que Freud assu- parte da censura fascista: acusadas de tia Mariana as mulheres borda- mia como inacessível. Num contexto de pornografia e ultrage à moral vam ou teciam ou fiavam ou cultural marcadamente “falogocên- pública, Maria Isabel Barreno, Maria cozinhavam, sujeitavam-se aos trico”, como diria Derrida, a escrita Teresa Horta e Maria Velho da Costa direitos de seus maridos, engravi- constitui para elas uma forma de viram o seu livro retirado do davam, tinham abortos ou faziam- afirmação identitária. Durante muito mercado e descobriram-se a braços nos (...) O que mudou na vida das tempo, a epistolografia, género com um processo judicial a que só mulheres? Já não tecem, já não considerado “menor”, conotado a pressão dos movimentos feminis- fiam, talvez porque se desenvol- com o feminino, revelou-se um fértil tas internacionais e sobretudo a veram a indústria e o comércio; espaço de interrogação e de Revolução dos Cravos permitiram as mulheres bordam, cozinham, reflexão. Também o convento pôr termo. sujeitam-se aos direitos de seus funcionou paradoxalmente como A mais de 30 anos de distância, maridos, engravidam, têm abor- espaço de libertação, constituindo e mesmo se hoje os códigos morais tos ou fazem-nos, têm filhos, uma forma de escapar ao casamento e as mentalidades portuguesas já nados-mortos, nados-vivos, tratam imposto pela família. não se escandalizam com o livro dos filhos, morrem de parto, às As cinco cartas atribuídas a das “três Marias”, parece-nos interes- vezes, em suas casas, onde Mariana Alcoforado, publicadas em sante interrogar o discurso de insur- apenas mudou o feitio dos Paris no século XVII, com o título reição desta obra que, a nosso ver, móveis, das cadeiras e dos corti- Lettres de la Religieuse Portugaise, ainda não perdeu de todo a actuali- nados.” (p.152) contavam a paixão infeliz da freira dade, mesmo se a sua reedição em abandonada por um oficial francês, 1998 passou quase despercebida. Neste círculo infernal, o destino o conde de Chamilly, e conhece- Ao mergulhar no livro, o que o das mulheres repete-se de geração ram a partir de 1669 um êxito leitor descobre antes de mais é uma em geração, legitimado pela cultura enorme que inspirou muitas conti-
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nuações, respostas e imitações. nas referências à mãe ou à irmã de “Amor, eu só o quereria na igual- Depois de várias polémicas, é hoje Mariana, à amiga D.Joana de dade; por isso recusei marido, aceite como seguro que o autor Vasconcelos, mas encontramos recusei homem. Deixarei meu destas Cartas foi Guilleragues, bom também discursos que nada têm a diário a minha sobrinha. O que conhecedor da alma feminina e da ver com a paixão da freira de Beja, posso ser, entretanto? Só me história de Mariana Alcoforado que inscrevendo-se antes num espaço defino pela negativa; não bordo, viveu efectivamente no convento social bem definido, como a emigra- não tenho filhos. Com Mariana de Beja. Ao traduzir as cartas da ção ou a revolta juvenil e introduzi- sobrinha me identifico: sou freira para alemão, em 1907, Rilke dos, respectivamente, pela carta de mulher de palavra pesada; mulher salientou a sua originalidade, consi- uma mulher da aldeia do Carvalhal, de silêncio e diário...” (p.154) derando-as como as mais belas dirigida a seu marido, emigrante no cartas de amor da literatura ociden- Canadá, e pela carta de uma univer- A temática de Novas Cartas tal. sitária de Lisboa endereçada ao seu Portuguesas oscila assim entre dois Em Novas Cartas Portuguesas as noivo, desertor, propondo assim a pólos: o amor e a guerra, por vezes “três Marias” mobilizam justamente afirmação de vivências múltiplas e intimamente relacionados, como no este texto, sem nunca evocarem singulares. discorrer da criada doente: Guilleragues, e inventam várias O discurso da intimidade aban- “ A minha mãe bem dizia: “Maria gerações de “Marianas” vítimas da dona por vezes a veia epistolográ- tem cuidado, isso de casamentos opressão patriarcal, da violência fica para recorrer ao registo diarís- nunca se sabe, às vezes mais vale social, da injustiça e da discrimina- tico, com a transcrição de passagens a gente ficar solteira...” mas como ção, como a Mariana filósofa que do diário de D.Maria Ana, descen- é que eu podia saber que o meu vê desmoronar-se todos os seus dente da religiosa de Beja, nascida António havia de vir assim das esforços literários, a mulher solteira no princípio do século XIX, assu- Africas, ele que era uma pessoa, e desprezada, que trabalha para mida como mulher sozinha, a recu- não desfazendo, de tão bom cora- ganhar um salário de miséria, ou sar lucidamente a sujeição senti- ção e desde que veio das guerras ainda a mulher transformada em mental, o que significa que, mesmo anda transtornado da cabeça e me objecto de consumo, vítima do seu pela denegação, o amor continua a mete medo grita noite e dia, bate- destino biológico. Através de uma ser o grande centro das atenções me até se fartar e eu ficar esten- rede intertextual, híbrida e frag- das narradoras: dida.” (p.175) mentada, as três autoras revelam a encruzilhada onde se encontra a mulher, em processo de tomada de consciência, ou seja, de “desclau- sura” (p.14). Desta forma, o livro afirma-se como um palimpsesto, na medida em que a sua superfície esconde níveis de significação mais profundos, equacionando moderni- dade e tradição. Com efeito, ao esta- belecer relações com as famosas Cartas de Mariana Alcoforado, o texto moderno propõe uma palavra circular onde se conjugam dois tempos (passado-presente), dois espaços (interior-exterior) e dois universos (real-imaginário), solici- tando frequentemente a dinamiza- ção de discursos oriundos da orali- dade, da tradição lírica, de obras anteriores das autoras, de passa- gens de um texto de Albertine Sarrazin ou ainda, entre muitas outras possibilidades, a transcrição de um artigo do Código Penal português. A pluralidade das vozes narrati- vas desenvolve pacientemente a teia de diversos percursos femininos, enraízados na relação problemática de Mariana Alcoforado e Chamilly, Maria Teresa Horta - foto Maria José Palla
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Ao longo da obra, a temática sobretudo em exercício que inter- a um público feminino, como amorosa nunca ganha uma dimen- roga incansavelmente o estatuto das observa Laurent Versini4, esta forma são eufórica, já que a paixão se mulheres através dos tempos, num literária permite facilmente opôr relaciona, desde as suas raízes espaço tradicionalmente fechado. dois mundos: o convento e a socie- etimológicas, com uma ideia de O discurso sobre o amor parece dade, o espaço feminino e o universo sofrimento. Contudo, é a partir dela constituir, desde sempre, o tema masculino, a clausura e a aspiração que se elabora a visão de um preferido da escrita produzida por de liberdade. espaço feminino cuja passividade é mulheres. Mas, como afirma Béatrice Em Novas Cartas Portuguesas neutralizada pela intensidade da Slama, tal facto tem raízes históri- encontramos um conjunto de cartas escrita, pela variedade das missivas cas, pois: cuidadosamente datadas (indo de 1 onde o cruzamento das vozes de “Si les femmes, dans leurs textes, de Março de 1971 a 25 de Novembro mulheres de “palavra pesada”, parlent tant d’amour, c’est peut- de 1971, ou seja, produzidas simbo- impõe uma constante afirmação de être aussi parce que c’est le seul licamente durante nove meses), que identidade. Desta forma, a paixão discours qui leur soit concédé3.” passam em revista os grandes mitos de Mariana Alcoforado pelo oficial da tradição misógina. Estas cartas francês ultrapassa os limites da Outra constante da escrita femi- podem reunir-se em três grupos: as história individual para se transfor- nina relaciona-se com a forma epis- que são escritas pelas três autoras, mar em pretexto de análise aplicá- tolar. Composta quase sempre por as que são atribuídas a Mariana vel a qualquer situação amorosa e mulheres e dirigida essencialmente Alcoforado e às suas relações (Chamilly, D.Joana de Vasconcelos, etc.) e as que são assumidas por personagens contemporâneas e muitas vezes anónimas. Assim se constitui um jogo de espelhos, de ambiguidades, de intercâmbios que permitem pensar de outra forma a história do poder, da propriedade e da dominação masculina. Por todo este discurso perpassa naturalmente uma ideia de fatalismo, relacionado com o conceito de “destino” ou de “natureza feminina”, mas a essa visão tradicional sobrepõem-se estruturas vivas, aprisionadas nos limites historico-culturais que se confundem com a cena de uma História marcada pela misoginia. Nesta perspectiva, apesar de recor- rer a uma série de elementos tradi- cionais, como a temática amorosa ou a forma epistolar, a obra impõe- se como um texto subversivo, na medida em que acaba por denun- ciar especularmente o peso dessa tradição. A dimensão mais evidente da subversão relaciona-se com a forma como as autoras falam abertamente de temas desde sempre ocultados, como o corpo e o desejo físico, a sexualidade, o prazer feminino, o fingimento enquanto forma de alimentar as ilusões masculinas, de que é exemplo a seguinte passa- gem: “a camisa de noite levantada às virilhas assim expostas e o ar composto de quem cumpre um dever vindo, herdado de nossas Maria Isabel Barreno mães e avós, o prazer (não
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muito, claro) fingido, imitado relação homem-mulher, introdu- de filhos e vendendo sua força de bem, a fim de se lhes dar a zindo um debate sobre questões trabalho ao homem-patrão. Esta é constante certeza da sua vigorosa tabu como o adultério e o aborto, uma exacta e muito necessária virilidade, aura: bons na cama e ou propondo ironicamente uma mas não total leitura da realidade no trabalho, excelentes pais de definição das “tarefas” femininas, (...) Mas a esta leitura é necessá- família e patrões de mulher, com apresentadas sob a forma de um rio acrescentar todos os sistemas ordenado certo ao fim do mês a exercício escolar, como a “redacção de cristalizações culturais que fim de se poder comer e ter de uma rapartiga de nome Maria vieram sustentando, reforçando, carro.” (p.111) Adélia nascida no Carvalhal e justificando e ampliando essa educada num asilo religioso em dominação da mulher” (p.90) ou ainda, o nojo numa relação Beja”, de que extraímos a seguinte conjugal sem afecto, como afirma passagem: O discurso de Novas Cartas D.Joana: “As tarefas do homem são aque- Portuguesas corresponde assim a “Sabes tu o que é sermos toma- las da coragem, da força e do um exercício entendido como das nuas por mãos apressadas e mando. Quer dizer: serem presi- instrumento político, como revisita- bocas moles de cuspo? O corpo dentes, generais, serem padres, ção da ordem simbólica que dilacerado por membro estranho, soldados, caçadores, serem governa a sociedade, através da escaldante, a magoar sobretudo a toureiros, serem futebolistas e noção de “resistência feminina” que alma? Espada leivosa a retalhar- juízes, etc., etc. (...) Depois há as aponta para duas atitudes funda- nos as carnes, Mariana, sabes tu tarefas das mulheres, que acima mentais (já identificáveis de certa minha irmã, o que é calarmos, dia de todas está a de ter filhos, forma, no início do século XIX, em após dia, o nojo, a aflição já sem guardá-los e tratá-los nas doen- Portugal, com as mulheres republi- lágrimas, nem lágrimas tendo para ças, dar-lhes a educação em casa canas, mas que o salazarismo esma- nos chorarmos, nem pena conse- e o carinho; é também tarefa da gará em seguida ): uma forte mobi- guirmos arranjar mesmo por nós mulher ser professora e mais lização no sentido de conquistar próprias?”, (p.147) coisas, tal como costureira, cabe- direitos cívicos e liberdade de No entanto, o que descobrimos leireira, criada, enfermeira. Há expressão; e uma escolha identitá- em Novas Cartas Portuguesas não é também mulheres médicas, ria que tenta promover uma rela- apenas a história das mulheres, mas engenheiras, advogadas, etc., mas ção feminina com o mundo, através antes uma rede complexa de deter- o meu pai diz que é melhor a do exercício de uma escrita ligada minações culturais em que homens gente não se fiar nelas que as à condição das mulheres. A dessa- e mulheres se confundem no inter- mulheres foram feitas para a vida cralização do sistema patriarcal ior de um mesmo circuito ideoló- da casa que é uma tarefa muito passa em primeiro lugar por uma gico pontuado pela multiplicação bonita e dá muito gosto ter tudo tomada de consciência do estatuto de representações, imagens, reflexos, limpo e arrumado para quando da mulher e, em seguida, pela mitos, identificações, mesmo se este chegar o nosso marido ele poder desmontagem dos mecanismos de processo passa pela definição do descansar do trabalho do dia que dominação que persiste ainda nas mundo masculino português, assim foi tanto, a fim de arranjar mentalidades dos nossos dias, cruelmente apresentado: dinheiro para nos sustentar e aos apesar de todas as transformações “Frágeis no entanto são os filhos.” (p.238) que conheceu a sociedade portu- homens em suas nostalgias, guesa: medos, rogos, prepotências, fingi- Neste mundo de “tarefas” bem “a mulher vota, é universitária, das docilidades. Frágeis são os delimitadas, inscreve-se contudo emprega-se; a mulher bebe, a homens deste país de nostalgias uma retórica da emancipação, mulher fuma, a mulher concorre idênticas e medos e desânimos. presente ao longo de todo o livro, a concursos de beleza, a mulher Fragilidade em tentativas várias e capaz de conduzir a um equacio- usa mini-maxi-saia, “hot-pants”, de disfarce: o desafiar touros em namento negativo do amor, enten- “tampax”, diz “estou menstruada” praças públicas, por exemplo, os dido como cristalização cultural, à frente de homens, a mulher carros de corridas e lutas corpo- visto que: toma a pílula (...) vai para a cama a-corpo. Ó meu Portugal de “...Todos os mitos do amor dão- com o namorado (...) E o homem machos a enganar impotência, no como impedido e irrealizado, exulta, irmãs, e ajuda a mulher cobridores, garanhões, tão maus e todas as histórias de amor são nesta farsa, neste engodo de, amantes, tão apressados na cama, histórias de suicidas; porque nesta falsa e vergonhosa “liberta- só atentos a mostrar picha” (p.87) temos de remontar o curso da ção” onde cada vez mais presa (e dominação, desmontar suas agora de si própria), a mulher é Por outro lado, Novas Cartas circunstâncias históricas, para apanhada nas malhas de uma Portuguesas utiliza todos os recur- destruir suas raízes. Entendo, sociedade que a usa, a domina, a sos da polifonia ao serviço do pois, que não basta pensar em escraviza, a conduz, a utiliza, a confronto de dois mundos, relações de produção, sendo manuseia, a consome.” (p.235) evocando os problemas gerais da socialmente a mulher produtora A tomada de consciência que as
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inevitavelmente pela invenção de outros modelos, pela construção laboriosa de uma identidade, pois: “Tudo terá de ser novo, e todos temos medo. E o problema da mulher, no meio disto, não é o de perder ou ganhar, é o da sua iden- tidade” (p.254) G
1 Maria Alzira Seixo, Outros Erros.
Ensaios de Literatura, Ed. Asa, Porto, 2001, p.179. 2 Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas, Estúdios Cor, Lisboa, 1972. Utilizamos neste estudo a 7a edição, Pub. D.Quixote, Lisboa, 1998. 3 Béatrice Slama, in Aron, Misérable et três autoras nos propõem, desen- zida por mulheres, na medida em glorieuse la femme du XIXe siècle, volve-se não só através da denún- que funda uma libertação que passa Fayard, Paris, 1980, p.234 4 Laurent Versini, Le roman épistolaire, cia dos estereotipos culturais rela- pelo acesso à consciência e à cria- cionados com o destino das ção, realizando uma afirmação exis- PUF, Paris, 1979, p.60 5 Cf. Cecília Barreira, Confidências de mulheres, mas também da incursão tencial e anunciando a desmistifica- Mulheres, anos 50-60, Ed. Notícias, num domínio tradicionalmente ção da mulher, a reapropriação do Lisboa, 1993, p.180. reservado aos homens, como a lite- seu corpo, da sua sexualidade e da 6 Paulo de Medeiros, “O som dos ratura erótica. As cenas de mastur- sua linguagem, num movimento de búzios : feminismo, pós-moder- bação, a evocação do orgasmo ou transformação um pouco à maneira nismo, simulação”, in Discursos, n°5, Outubro de 1993, p.42. do incesto propõem uma visão dife- de Simone de Beauvoir que afir- rente do feminino e perturbam mava em Le Deuxième Sexe: “on ne inevitavelmente os códigos de naît pas femme, on le devient”. moralidade vigentes nos anos 7O, Como observa Paulo de Medeiros: Résumé ao mesmo tempo que inscrevem em “Em parte, Novas Cartas Portuguesas ousadia uma palavra que afirma a pode ser visto como um livro- Lever le silence sur les violences presença de uma mulher-sujeito. chave do feminismo tradicional, misogynes tel est le but des trois Notemos que a evocação dos inter- se se atentar principalmente na romancières portugaises qui publient, ditos não passa todavia pelo inversão realizada pelas autoras en 1972, Nouvelles Lettres Portugaises. discurso directo no momento da da função das Cartas, que, em Ce livre, éminemment politique, elaboração da obra, tal como o vez de serem a expressão do provoque un énorme scandale dans sublinha Maria Velho da Costa numa desejo masculino - dissimulado le Portugal conservateur de Marcelo “confidência” feita a Cecília Barreira: através do artifício da suposta voz Caetano mais il obtient l’appui “Durante o trabalho de nós três, de Mariana Alcoforado - para com inconditionnel des mouvements das três Marias, não falávamos do um “objecto” (a mulher) exotici- féministes internationaux. Prenant orgasmo. Acho que ainda por zado (portuguesa e freira), passa- comme point de départ les fameu- tabu e desconhecimento. Coisas ram a ser a restauração do desejo ses lettres de la religieuse portu- que hoje toda a gente sabe não feminino à boca (e ao corpo) das gaise, parues au XVII e siècle, les eram faladas. Nós éramos capa- mulheres. Consequentemente, “trois Marias” interrogent la condi- zes de discutir violência sexual Novas Cartas Portuguesas funciona tion féminine et dénoncent un até, mas não essas coisas. Era um também como uma revelação e système de pensée patriarcal imposé tabu inconsciente. Nem mesmo a uma condenação da condição et accepté comme universel. Leur Teresa, muito audaciosa, falava feminina no sistema patriarcal6.” parole se veut émancipatrice, sub- disso. O tabu era tão profundo versive, susceptible de nourrir une que nem ocorria. O orgasmo não Ao perguntar a certa altura: profonde réflexion sur les frontiè- fazia parte da nossa linguagem. “Mas o que pode a literatura? Ou res du féminin et du masculin. Essa palavra não existia no nosso antes: o que podem as palavras?” discurso5.” (p.234), as três autoras afirmam finalmente que a escrita feminina é Pelo seu militantismo, Novas um fenómeno trans-histórico, Cartas Portuguesas pode ser apon- podendo constituir a emergência tado como o momento de uma vira- de uma voz diferente, veiculando gem na literatura portuguesa produ- uma ideia de mudança que passa