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Capítulo I

Verde ou azul? Teria sido uma escolha simples se a questão fosse


outra. Mas não naquele caso. Não no meu caso. Fiquei escutando a voz
do médico repetí-la, na minha cabeça, como se fosse um looping lento,
quase eterno. Verde ou azul? Verde. Azul. A natureza não recebeu esse
ultimato, 40 anos antes. Não precisou escolher entre o verde e o azul.
Pelo contrário: havia juntado o verde, o azul e o cinza, que prevalecia
em dias de chuva ou nos nublados, ou toda vez que eu estava
concentrado em algum tipo de impasse. Como agora. A natureza tinha
levado milhões de anos para desenvolver um sistema de alternância de
cores altamente sofisticado, cujos padrões estavam, ao que parecia,
ligados tanto ao meio externo – como a cor da própria camisa – quanto
aos humores pessoais, mas que a tecnologia humana não conseguia
imitar. Não passava nem perto. E por conta dessa inabilidade é que,
agora, eu estava diante da pergunta: verde ou azul? Não podia esperar
mais. Afinal, em termos práticos, tanto fazia. O principal é que eu
pudesse enxergar de novo.
– Verde.
– Ah, muito bem. Verde é esperança e não vai lhe fazer mal um
pouco de esperança, nessa situação.
– Doutor, guarde sua filosofia barata para seus pacientes
traumatizados. Eu não preciso disso. E antes do que o senhor pensa vou
estar voltando aqui para fazer a substituição.
– Ah, o que temos aqui? Mais um tipinho durão. Escute, filho:
estou nisso há muito tempo, praticamente desde que as gangues
começaram com esse comércio e você nem era nascido. Nunca vi
ninguém recuperar o que perdeu.

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– Mas vai ver. Em menos de um ano, juro que volto a esse
consultório para devolver suas próteses.
A resposta saiu entre dentes, quase sussurrada, e era o que
acontecia toda vez que eu estava muito furioso, triste ou excitado.
Ao perceber a mudança no tom da própria voz, pensou consigo
mesmo: “mas, que diabo! Esse velho está tentando ajudar. Guarde essa
raiva para quem lhe fez isso.” Tentou se recompor e passou para uma
pergunta de ordem prática. Só pensava em sair dali o mais depressa
possível.
– Quando é que devo voltar? Em uma semana?
– Calma, filho. Roma não se fez num dia. Em geral, nesses casos,
a gente pede de 10 a 15 dias e...
– Não posso esperar tanto!
– É compreensível a sua angústia, mas não se trata apenas de
confeccionar as próteses. As cavidades originais precisam estar bem
cicatrizadas...
– Então, dê um jeito para que elas cicatrizem. O senhor é o
médico, aqui.
– Não vamos perder mais tempo. Retire a proteção para eu poder
medir a profundidade e o diâmetro. Vou pedir urgência na sua remessa
e minha assistente fará contato, assim que os globos chegarem. Agora,
vamos lá: retire a venda-guia, para eu fazer meu trabalho.
Botei meus óculos escuros sensoriais de lado, enquanto o médico
iniciava seus cálculos de precisão.
Não era difícil me movimentar com a venda-guia. Pelo contrário,
era até bem fácil, principalmente para um saudosista como eu, que a
vida inteira tinha gostado de jogar velhas versões de videogame. Nunca
pensei que o know-how fosse me ser útil dessa maneira. Eu, vítima da
Gangue dos Olhos, a máfia internacional mais violenta da qual já se
tivera notícia.

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O roubo dos olhos até que era um bom negócio para muita gente,
em especial para os atravessadores. Para os desenvolvedores da venda-
guia, sem dúvida nenhuma. Era um sistema sensório simples, em que a
visão tradicional fora substituída por um permanente fundo negro, sobre
o qual surgiam referências luminosas de obstáculos reais em forma de
pontos vermelhos intermitentes. A oscilação irradiava uma espécie de
luz difusa, toda vez que o portador se aproximasse de formas vivas que
emitissem calor corporal. No caso de Judith, assistente do doutor, era
muito intenso, aliás. Mal podia esperar para receber minhas próteses e
conferir se àquela voz macia correspondiam contornos à altura.
– Não se preocupe com gastos, seu plano de saúde oferece
cobertura integral.
Era ela, me tirando dos meus pensamentos obscenos, dentro do
seu impecável e sexy uniforme. Como eu podia saber? Não podia. Nunca
tinha encontrado esta mulher antes de ter tido meus olhos arrancados,
mas imaginava. Eu me fiz de surdo, só para ouvi-la falar mais um
pouco.
– Como é?
– Além dos procedimentos de implante, as próteses também estão
cobertas pelo seu seguro.
– Tudo bem – respondi, sem demonstrar importância.
Ela me devolveu a venda-guia, ajeitou na minha cara, ligando os
conectores dos implantes atrás das orelhas, e me conduziu pelo braço
até a saída. Na verdade, não era necessário porque eu já tinha me
acostumado a me movimentar muito bem com aquela geringonça. Mas
deixei que o fizesse, só para conferir, de leve, num roçar de cotovelo, se
ela tinha grandes peitorais cobrindo a caixa de ressonância toráxica.
– Até breve.
– Aguardo sua ligação.
E tinha. Manequim 48.

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Capítulo II

Com a maré de (má) sorte que andava para o meu lado, é claro
que estava chovendo quando eu cheguei à rua. Uma chuva gelada e
intensa. Ajeitei a gola do impermeável e tombei a cabeça para a frente,
instintivamente, arrumando o chapéu pela aba. Algumas gotas pingaram
sobre a venda-guia, nada que chegasse a atrapalhar as “transmissões”,
como eu tinha me acostumado a chamar meu sistema cibernético de
visão monitorada.
Eu precisava de um trago. Percorri mentalmente uma espécie de
mapa para saber qual era o bar mais próximo de onde eu estava. Na
transversal adiante, entrei na estação do metrô e, em três paradas,
rumo norte, estava no Charlie.
– Um duplo, sem gelo.
Agora sim. Aquecido pelo álcool, eu já era capaz de organizar
meus pensamentos novamente. Não havia tempo a perder. Se eu
quisesse achar os bastardos que roubaram meus olhos, teria que agir
rápido. Antes que eles grudassem cada um na ponta de um
penduricalho de luxo, que iria acabar no pescoço de matrona da mulher
de algum ministro do supremo... ou, até mesmo, de uma top model.
Particularmente, eu preferiria a segunda opção, ainda mais se ela fosse
“farta” na frente...
Estalou a boca, depois de mais um gole, e seus lábios se
esticaram num esgar, que imitava um sorriso apertado nos cantos. Não
conseguia parar de pensar na ironia da coisa. Como é que ele, o
detetive Da Silva, com tantos anos de estrada, tinha se deixado apanhar
pela Gangue dos Olhos? Definitivamente, ele estava bêbado demais
naquela noite... Não fosse por isso, ninguém ia pôr as mãos naqueles
olhos.

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Na verdade, seus olhos, em si, eram bonitos, é verdade, mas eles
eram basicamente o veículo do seu olhar. E era disso que ele se
ressentia, do que sentia falta, do que não podia abrir mão. Sabia que
tinha um olhar incisivo – tão útil durante um interrogatório – e
penetrante – fundamental como uma arma de sedução. Ninguém olhava
uma mulher como Da Silva.
“Como é que foi, mesmo? Preciso recapitular. Eu estava no bar
atrás da chefatura, comemorando a aposentadoria do Inspetor Lincoln,
quando todo mundo se despediu e eu resolvi ficar para mais uma: a
derradeira. Já tinha dado uns amassos na Beth e decidi fazer hora, para
ver se ela já ia para casa... para a MINHA casa, embora ela ainda não
soubesse disso. De repente, decidi fumar um charuto lá fora, joguei o
dinheiro no balcão e saí para a rua. Estava bem mais frio do que hoje.
Eu tinha acabado de dar a primeira tragada quando...”
– Ahn!!!!
Todos no bar se viraram para olhar o detetive.
– Quem é? O que é isso?
– Calma, Da Silva, sou eu, Fernandez.
O inspetor havia tocado no braço do colega, dobrado sobre o
balcão, sem anunciar nada.
– Tá maluco, seu filho da puta? Tá querendo levar um tiro na
cara?
– Porra, Da Silva, desculpe. Te vi aí bebendo e não sei direito
como é que funciona essa venda, como é que chama mesmo?
– Guia, venda-guia, porra!
– Me desculpa, cara.
– Já estava achando que eram aqueles fodidos que voltaram pra
roubar minha olhota!
Da Silva ria da própria piada. Fernandez riu também.

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– É, pode ser, mas eu ainda não vi ninguém com olho do cu
pendurado no pescoço...
– Isso porque você nunca viu o meu, dizem que é lindo!
Mais gargalhadas.
– Ou, então, as minhas bolas. Uma beleza de bolas.
Fernandez se engasgou com a cerveja, que levava na mão,
enquanto se sentava ao lado do colega.
– Escuta, Da Silva: ouvi dizer que você vai atrás dos caras.
– Pode crer que vou mesmo...
– Ouvi falar de um velho, que mora na oficina dele lá no bairro dos
judeus, e que segundo minhas fontes prepara os tais suportes onde eles
colocam os olhos, sabe como é?
– Já estou vendo tudo – disse Da Silva, com ironia.
– Sério. Parece que ele trabalha com um coreano, que cuida da
parte dos chips que mantêm o olho vivo, você entende?
– U-hum – sinalizou o detetive, dando outro trago e balançando
assertivamente a cabeça.
– Já faz muito tempo que estou querendo botar as mãos nesses
caras.
– Você e toda a polícia da cidade, há pelo menos 50 anos...
– Sei, eu sei... Mas me disseram que esse judeu, um tal de Stein,
é da primeira leva, do grupo que começou o negócio. Ele sabe direitinho
quem é quem, distribui para os italianos venderem e...
– A porra toda é essa, ‘cê ‘tá vendo? Olha só: tem judeu, coreano,
italiano... todo tipo de máfia junta!
– É por isso que a gente não pega esses filhos da puta!
– Você não pega, Fernandez, você e os frouxos dos teus colegas,
porque eu vou pegar! E não vou nem esperar minhas próteses ficarem
prontas. Porque não vou precisar delas. Antes disso, recupero meus

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olhos. Já que me deram uma licença, vou começar a investigar agora.
Preciso de um plano bem feito, pistas...
– Mantenho você informado... se cuida – disse, Fernandez, se
levantando.
– Deixa comigo. Agora só bebo até um certo limite. Afinal, tenho
um cu a zelar...
Ambos gargalham.
– Sabe que nem se nota nada, você aí, com os seus óculos
escuros de sempre?
– Tô até fodendo de óculos! Não tiro nem para tomar banho.
– A gente se vê, malandro.
Fernandez se afasta e Da Silva chama o garçom:
– Amigo, fecha o meu aqui. Ah, e me empresta o telefone. Como é
mesmo o número do Bar do Gringo?
– Vai mais um uísque, de saideira?
– Saideira, que nada. E o próximo, é lá que eu vou tomar...

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Capítulo III

O Bar do Gringo, como sempre, estava lotado àquela hora da


noite. Eu tentava evitar, ao máximo, o contato com os colegas, apesar
da proximidade da chefatura. Não queria comiseração. Por isso, assim
que entrei, avisei no balcão que Beth deveria me trazer um duplo sem
gelo na mesa do canto...
– Da Silva, bom te ver de novo.
– Não posso dizer o mesmo querida, você sabe... Mas seu cheiro
continua me deixando de pau duro.
– Você é um safado incorrigível – disse Beth, passando a mão na
cabeleira negra do homem sentado à sua frente.
– Escute, benzinho, eu até levaria você pra casa hoje, mas tenho
que resolver um pequeno problema antes...
– Oh, eu sei. Hoje eu não vou sair tão cedo, às sextas o bar fica
lotado, como você sabe.
– ‘Tá certo, ‘tá certo. Escute, preciso que você me conte tudo o
que se lembra do dia em que me pegaram...
– Não tenho muita coisa para contar, amoreco. Fiquei tão
apavorada que entrei correndo de volta no bar, para chamar ajuda.
Tinha sangue espalhado por todo lado e eu odeio ver sangue!
– Tudo bem. Mas tente descrever para mim como é que foi, o que
você viu, tudo o que puder lembrar. É importante, doçura...
– Está bem, Da Silva. Só espere um pouco. Maria faltou justo hoje
e mal consigo atender as mesas. Ela sempre faz isso, no dia seguinte do
pagamento....
– Eu espero. Não vou a lugar nenhum.
Beth se levantou e correu para o balcão, encheu a bandeja com
copos de drinques e garrafas, e saiu distribuindo entre os clientes. Ela

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tinha cerca de 1,70 m, cabelo castanho claro encaracolado, na altura
dos ombros, olhos redondos e escuros e até que ficava bem no
uniforme, que envergava com indiscutível altivez. Sempre muito
maquiada, tentava disfarçar a idade com o batom vermelho e brincos
bem grandes, em geral de argolas douradas. E como as carnes ainda
estavam duras, não tinha dificuldade em se fazer passar por uma
mulher mais jovem. Não era comum que Beth caísse na cantada de
clientes e o caso de Da Silva foi uma exceção. No bar e na chefatura de
polícia, todo mundo sabia que eles estavam juntos há alguns meses,
mas ninguém fazia caso disso.
Uma hora e meia depois, um público sonolento e barulhento ainda
lotava o Bar do Gringo. Da Silva esperava pacientemente, relaxado
pelas doses de uísque.
– Ufa! Agora eu acho que vai dar. Aproveitei para ir lembrando
como foi naquela noite.
– Isso. Conte pro papai aqui.
– Bom, era por volta das 2h, 10 pras duas, para ser mais exata.
Eu sei porque olhei o relógio do vestiário quando fui trocar de roupa
para ir para casa. Como não vi você no salão, imaginei que estivesse me
esperando lá fora.
– E estava, só que na horizontal...
– Não brinque com isso! Empurrei a porta da rua e vi você caído
mais para o lado direito, de costas para onde eu estava. Achei que
tivesse sido morto por algum bandido vingativo, apesar de não ter
ouvido tiros... Quando me abaixei para socorrê-lo, vi os dois buracos
ensangüentados na sua cara e que você estava gemendo e xingando...
– Viu alguém se afastar?
– Não, embora tenha ouvido gente correndo e, depois, um carro
arrancando em alta velocidade, numa rua próxima... E você, não viu
ninguém antes do ataque?

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– Não, eles me pegaram por trás, devem ter me dado uma
coronhada. Só me lembro de cair, meio tonto, e de sentir uma espécie
de colherada entrando e saindo com os meus olhos.
– Você não ouviu eles dizerem nada?
– Nem uma palavra...
– Quantos acha que eram?
– Pelo menos três, porque senti um me segurando pelos braços e
outro pelas pernas, além do “cirurgião”...
– Quem está com você nisso, Da Silva? Tem alguém lhe ajudando?
– Por enquanto, tem você. E o Fernandez, que ficou de checar
umas fontes sobre a Gangue dos Olhos. Pra falar a verdade, eu nem
quis saber quem é que está cuidando da investigação oficialmente. São
todos uns merdas!
– Esses bandidos são perigosos, você precisa de proteção. Não
pode investigar sozinho...
– O que eu tenho a perder? Escute, docinho, não vou ficar
esperando esses burocratas adesivados com distintivos levantarem seus
traseiros para irem às ruas, que é onde a ação está – eu mesmo vou!
– Desculpe não ter ajudado muito...
– Realmente, não ajudou, mas eu sei de uma coisinha que você
pode fazer por mim...
Da Silva beijou e apertou a garçonete, sentada ao seu lado.
– Vamos para sua casa, me dê uns minutos para trocar de roupa...
Você quer falar com mais alguém?
– Depende. Quem mais estava aqui naquela noite, e que me
socorreu?
- Só o Garcia, que é o dono, mas ele não está aqui hoje. O
Johnny, que também ajudou, ficou com tanto medo, que pediu as
contas no dia seguinte. Dá até para entender. É só aqui na cidade que
acontece isso, esse roubo de olhos...

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– Pois é, mais uma coisa que a polícia não explica. Como é que
você vai sair, se o bar ainda está cheio?
– Cheia estou eu, vamos. Já lhe disse que o Garcia não está aqui
hoje, ele que venha cuidar do que é dele. Espere aí que eu já volto.
– Tudo bem, venho falar com o Garcia depois.
“Os peritos que reviraram a cena do crime também não acharam
nada, além do meu sangue. Preciso de outro ponto de partida. Quem
poderia me ajudar? Se esses caras roubam olhos humanos para
transformar em jóias, eles devem ter algum esquema para conservar o
globo ocular antes de colocar no encaixe biônico que mantém o olho
vivo. Quem sabe o médico que está cuidando de mim? Vou procurar por
ele amanhã...”
– Pronto, estou pronta, podemos ir.
Da Silva pagou a despesa, ofereceu o braço à Beth e os dois
deixaram o bar.
– Ah, bem melhor o ar aqui fora. Escute, não estou dirigindo, por
motivos óbvios.
– Claro, eu sei.
– No que está pensando? É só porque eu bebi demais!!!
- Claro, claro – disse Beth, entre risos.
– Vamos pegar um táxi ou você prefere ir caminhando?
– Vamos a pé, eu quero lhe perguntar algumas coisas.
– Que coisas?
– Esse negócio de tráfico de órgãos...
– Você quer dizer, tráfico de olhos, não? Tráfico de órgãos existe
desde que existe transplante, inclusive de crianças, especialmente as
mais pobres.
– Mas, não é ilegal, usar jóias feitas de olhos humanos?

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– Pode apostar sua bunda nisso, no mundo todo. No entanto, não
sei se você sabe, é difícil distinguir as jóias falsas das verdadeiras, e
esse é o nosso maior problema.
– Eu nunca vi um colar desses, o que são as falsas?
– No caso dos pingentes de olhos, a jóia verdadeira é feita com
um olho sintético e, a falsa, com um olho humano. É uma situação
completamente invertida, em que o produto falso vale mais do que o
original. Fazem isso para disfarçar, inundando o mercado com as
próteses para confundir a ação policial. Aliás, esse comércio todo
começou num desfile de moda, há muito tempo, quando uma famosa
estilista encerrou a apresentação usando um colar com uma grande bola
azul pendurada no pescoço. Todo mundo, principalmente a imprensa,
comentou que parecia um olho humano e ela não desmentiu.
– E era?
– Ainda não, mas a idéia ficou e, dali a pouco tempo, começaram
a usar as próteses, muito bem feitas, como jóias, e o impacto foi
imediato. Graças ao desenvolvimento tecnológico, tinham conseguido
dar a esse olho sintético o brilho quase igual ao do olhar humano Como
todo mundo se interessou e quis comprar um igual, dali a pouco tempo
haviam desenvolvido um material de última geração, capaz de fazer
movimentos. Foi aí que o tráfico começou.
– Eu não sabia disso, nunca estive perto de um desses colares.
Nem os verdadeiros, nem os falsos.
– Claro, apenas os muito ricos é que podem pagar. Eu mesmo só
vi em poucas ocasiões, na maioria das vezes em apreensões. Nesse
caso, a dona do colar também é indiciada, se houver realmente um olho
humano incrustado.
– Deixa ver se eu entendi: existem as réplicas do olho humano,
que são caras e que se pode usar livremente, e existem as jóias feitas
de olho, proibidas e que custam mais caro ainda.

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– Verdadeiras fortunas! Nesse caso, os colares de olho humano é
que são as falsificações dos colares sintéticos autorizados...
– Mas, existe diferença?
– Sim, existe. As jóias de olhos verdadeiros são muito mais
bonitas. Têm um brilho que não dá pra copiar.
– Entendi.
– Esses suportes desenvolvidos em laboratório conectam o olho
humano a um chip e a um complexo sistema de irrigação, de forma que
ele não apodrece. Fica conservado e mantém, inclusive, algumas
características, como o movimento independente.
– Fascinante.
– O maior problema da polícia é que não podemos abordar
ninguém que use o colar e pedir para fazer a checagem, é contra a lei.
– Absurdo! Enquanto isso, tantas pessoas aqui na cidade sofrendo
ataques.
– É, mas as penas diminuíram muito para os criminosos, depois
que os médicos conseguiram construir próteses quase perfeitas. Dizem
que se volta a enxergar completamente, às vezes até melhor do que
antes, caso a pessoa tivesse algum problema de visão.
– Logo você terá as suas.
– Eu não, de jeito nenhum! Antes disso vou colocar as mãos de
volta nos meus olhos e nos sujeitos que fizeram isso.
– O que você pretende fazer?
– Amanhã vou falar com o oftalmologista que me atendeu. Quero
saber como se conserva um par de olhos roubados.
– Muito bem. E, enquanto isso?
– Enquanto isso vou lhe mostrar como o resto de mim continua
vivo e pulsando...

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O casal parou em frente à porta do prédio dele. Da Silva deu um
longo e indecente beijo na garçonete, enquanto apertava firmemente a
bunda dela com as duas mãos, comprimindo seu corpo contra o dele.
– Você é um safado, Da Silva.
– Você também, Beth Gostosona.
Na calçada, um gato malhado se assustou e atravessou a rua
correndo.
– O que foi isso?
– Nada – respondeu ela – apenas um gato.
– Curioso. Sabia que os olhos dos gatos não servem para fazer as
tais jóias? Ninguém sabe explicar por quê...
– Dariam brincos lindos...
– Sortudos, esses bichanos.

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Capítulo IV

De todas as mulheres que tive, Beth era a mais ardorosa e a mais


ardente. Ela botava sentimento na coisa e, além disso, trepava que era
uma maravilha. Nunca recusava – não importava se estivesse chateada
com o babaca do Garcia, deprimida, ou se algum cliente bêbado tivesse
tentado alguma liberdade. Pelo contrário: às vezes, eu tinha a
impressão de que, para ela, o sexo era uma espécie de panacéia, a cura
para todos os males... Além desse estado permanente de prontidão, tão
raro nas mulheres nesses dias, Beth reunia, ainda, mais dois traços de
personalidade que, se por um lado eu admirava, por outro poderiam me
oferecer um certo risco, já que, até então, eu nunca tinha me entregado
totalmente a uma mulher. O que me fazia tão igual a quase todos os
homens.
Para começo de conversa, Beth não se comportava o tempo todo
de acordo com a típica posição feminina da parte envolvida que está ali
para receber a porra embora, nela, ela fosse fascinante. Beth sabia o
momento certo de se deixar levar, acariciar, penetrar e, para todos os
efeitos, sentia um verdadeiro prazer nesse papel. Tinha uma entrega
plena, sem medo e, portanto, sem limites nem fronteiras. Esse era o
primeiro aspecto a me fascinar.
Mas, de um momento para o outro e, principalmente, se o
orgasmo tivesse sido dos bons, ela descansava um pouco e, aí, aí eu é
que me tornava sua presa. Nesses momentos que, confesso, tinham
para mim um encanto especial, ela me levava pela mão de volta ao
“mundo sem pecado original”, que é como costumávamos chamar o ato.
– Pense bem: se Deus criou Adão e Eva e eles viviam pelados,
com o Jardim do Éden e toda a natureza para desfrutar, sem culpa, sem

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dor e sem trabalho, como é que você acha que eles passavam o tempo?
Fodendo, é lógico!
Eu não tive resposta e apenas concordei com Beth, diante dessa
pergunta estranha que ela me colocava ali, diante de um tremendo milk
shake de chocolate, à luz do dia, num tom de voz até bem alto,
empolgada pela própria sagacidade, embora impróprio para o tanto de
crianças nas outras mesas do Mc Donald’s, dado o assunto, e que ela
mesma respondia, com uma dose de sincera ingenuidade.
– Acho que a verdadeira punição para o pecado original não foi ter
que trabalhar para viver, nem parir com dor. Pelo menos, não desde
que inventaram as férias, os fins de semana, os analgésicos e a
anestesia. A punição verdadeira é não poder mais transar o tempo todo!
Tive uma crise de riso diante de Beth naquela hora. Ela me
encarava séria, franzindo a testa, como se tivesse feito a descoberta
filosófica mais significativa de todos os tempos. Só parei de rir quando
ela já estava ficando meio chateada, achando que o meu riso era uma
crítica à inteligência dela. Quando, na verdade, era felicidade por ter
tido a sorte de ter encontrado aquela mulher tão única. A foda que se
seguiu, quando chegamos à minha casa, foi, aliás, uma das melhores de
que consigo me lembrar...
Com o tempo, desenvolvemos um código que era mais ou menos
assim:
– O que é que a gente vai fazer hoje? Tá a fim de ir ao cinema, ou
você prefere me ajudar a carregar as compras do supermercado?
– Melhor o mercado, Beth. Sabe por quê? Porque, depois do
mercado, eu tô muito a fim de te levar para o “mundo”. Vai bater aquela
fome, mais tarde.
Ao que ela, prontamente, responderia:
– E quem vai para a cozinha é você, vou avisando logo...

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– Baby, não só pretendo encarar o fogão como, inclusive, preparar
qualquer prato que você estiver a fim...
Quando eu dizia coisas como essas, um alarme interno disparava
sua mensagem dupla, que gritava “perigo” e sussurrava “eu te amo” em
backing vocals.
Ultimamente, eu não andava cozinhando muito, por motivos
óbvios, mas Beth entendia. Devido ao ataque, eu havia, ainda por cima,
me tornado dependente dela em várias atividades diárias, pelo menos
por uns tempos. Como aparar os pêlos do nariz e das orelhas ou ler os
jornais. Beth, a minha Beth, havia se tornado um par de óculos de grau.
– Que más notícias você tem para mim hoje, querida?
– O de sempre. Os chineses ameaçando mandar inspecionar as
usinas nucleares norte-americanas, os países árabes reclamando da
invasão de imigrantes europeus e outra chacina no Rio de Janeiro.
– E as boas notícias?
– Ah, sim: vai haver mais um show das holografias dos Stones...
– Você sabe que eu prefiro os Beatles. Tem aí algum caso que
possa estar relacionado à Gangue dos Olhos?
– Hum, deixe ver... nada não.
– Esses jornalistas são a escória da humanidade!
– Como assim?
– Toda a imprensa está fechada nesse assunto: sob nenhuma
hipótese se faz a cobertura dos ataques.
– Mas, por quê?
– Para não gerar pânico na população, para não incentivar, por
uma série de motivos.
– Incentivar como?
– É o princípio do tabu social. Quantas vezes você já viu notícias
falando sobre suicídios, por exemplo?
– Não me lembro de nenhuma.

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– Exatamente. Só se noticia suicídio quando for um caso muito
espetacular ou, então, de uma pessoa famosa.
– Por quê?
– Porque está provado cientificamente que a notícia induz à
ocorrência de outros casos.
– Minha nossa!
– Esse é um dos cânones do jornalismo. A Gangue dos Olhos, por
exemplo, só ataca na nossa cidade. As polícias, como você sabe, são
interligadas e até agora o que se sabe é que nunca houve registro de
ocorrência semelhante fora daqui.
– Qual seria a explicação para isso?
– Não sabemos. A suspeita é de que o negócio é tão lucrativo e a
tecnologia envolvida tão especializada que não daria, pelo menos por
enquanto, para tentar montar, digamos, uma “escala industrial”.
– Isso me dá calafrios.
– Sim, e é justamente por isso, porque essa modalidade de crime
ainda está circunscrita a uma região relativamente pequena, que
precisamos agir rápido. Dê outra olhada no jornal. Não existe nenhuma
matéria suspeita, que fale sobre doença, doente...
– Espere um pouco.
Da Silva continua mastigando seu café da manhã, enquanto Beth
repassa cuidadosamente o jornal, entre grandes goles de café.
– Você fica bonito com esses óculos...
– Prefiro sem. Isso enquanto eu tinha olhos, bem lembrado...
Então, encontrou alguma coisa?
– Só uma notinha aqui na coluna social do primeiro caderno. Diz
que aquela top model, Clarice Krapp, não pôde abrir os desfiles em
Milão por motivo de doença não revelada...
– Estranho. Ela é daqui, não é?

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– Isso. Os pais ainda moram por perto, ela vive viajando. Mas há
pouco tempo eu li que ela estava na cidade.
– Preciso achar essa moça. Vou pedir ao Fernandez o endereço
dos pais.
– Você acha que pode ter sido a Gangue? Diz aqui que o cachê era
de um milhão...
– É possível, ela tem uns olhos lindos, quase amarelos, seria uma
jóia rara e sempre tem alguém disposto a pagar.
– Como poderia ter acontecido? Ela deve ter uma segurança e
tanto!
– Toda segurança tem suas falhas, é uma questão de observar e
descobrir.
– E com relação aos tráficos estéticos, Da Silva?
– O que é que tem?
– Esses sim, são noticiados.
– Porque a coisa tomou um vulto absurdo. Todo mundo,
praticamente, conhece alguém que teve alguma parte estética do corpo
roubada.
– Tem razão, é inacreditável.
– O que mais me espanta é a reação da sociedade, de uma
maneira geral. Você acredita que tem gente que nem acha tão grave ter
o nariz, os lábios e até as orelhas roubadas para serem vendidas,
reimplantadas em alguém que quer ficar “mais bonito”?
– Que mundo é esse!
– Tem sim. Eu mesmo já vi casos, lá na chefatura. Era uma mãe,
falando pra filha: “Menina, você até que deu muita sorte! O nariz
prótese vai ficar igualzinho, não envelhece, e você ainda vai entrar
numa grana preta do seguro!” A garota dizia: “Mas, mãe! Eu só tenho
15 anos, vou ficar sem olfato e nunca cheirei um pau na vida!” Foi uma
cena bizarra.

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– Vocês se divertem bastante na polícia.
– Não tanto quanto vocês no bar. Benzinho, fique o tempo que
quiser. Vou falar com aquele oftalmologista idiota e, no caminho,
procurar o Fernandez. Mais tarde eu passo no Gringo.
– Combinado.
– Ainda bem que o transplante de pênis, para quem manda roubar
o dos outros, não está funcionando. Senão você ia ser a primeira a ficar
sem o seu brinquedo.
– Convencido.

20
Capítulo V

Da Silva sorriu, descaradamente, ao se lembrar de que, dali a


alguns minutos, estaria novamente frente à frente com a assistente do
oftalmologista. Judith. Judith. Judith, nome bíblico. Ju-di-th... Talvez ele
amasse Beth mas, que diabo!, era um homem, afinal. A voz de Judith
era música, o calor do corpo, como podia sentir por meio da venda-guia,
bem mais intenso do que aquele que vinha da “suposta” namorada.
Provavelmente, porque fosse bem mais jovem.
Pensamentos lúbricos povoavam sua mente e lhe faziam
companhia na rua meio vazia. Duas formas vivas se aproximaram de Da
Silva, vindos da direção contrária. Parecia o dono e seu cachorro,
porque eram uma forma adulta e outra bem menor, próxima ao chão.
Quando já estavam bem perto, o detetive percebeu uma
movimentação mais intensa do animal, que parou a seus pés e,
imediatamente, começou a farejá-lo, abanando a cauda.
– Flush1, não se atreva a sujar as calças do rapaz.
O cão fazia um tremendo alvoroço. Arfava, saltava e ensaiava uma
“choradeira” canina.
– Está bem, está bem, eu já entendi, Flush, tudo certo.
A muito custo a moça acalmou seu cachorro.
– Desculpe incomodar você com isso. Gosta de cães?
Desconfiado da efusividade do bicho, Da Silva hesitou.
– Humm... geralmente, gosto, sim, mas esse seu cachorro parece
ter encontrado um osso perdido – ele é sempre assim?
– Oh, não, não senhor. Só quando ele encontra alguém especial.
– Especial como?
Pelo jeito de falar, Da Silva percebeu que estava diante de uma
adolescente.

21
– Bem, na verdade eu não costumo contar isso a ninguém não,
ainda mais assim, logo de cara mas... vamos lá: Flush é um pet sensor
amoroso.
– Você deve estar brincando!
– Não estou não!
– E o que o seu cachorro quer comigo?
– Ele não quer nada. Assim como os velhos cães de caça, ele só
está indicando que eu é que posso querer.
Da Silva estava rindo ruidosamente.
– Escute, benzinho: quantos anos você tem?
– Agora estou com 18. Mas o Flush já está comigo desde os 15.
– E por quê uma garota de 15 anos iria precisar de um pet sensor
amoroso?
– Ué, para aquilo que eles servem: identificar parceiros
compatíveis com você!
– Mas como é que seu cachorro pode saber isso, pelo meu cheiro?
– Dentre outras coisas. Não se esqueça de que ele é um sensor.
Você sabe, esses animais são adestrados, além de serem o resultado de
cruzamentos sucessivos de antepassados especiais.
– O seu cachorro acaba de me ver, como pode, num abano de
cauda, sinalizar que sirvo para você?
– Oh, não se engane com a tecnologia. Não é a você que o Flush
precisa conhecer, mas a mim. Sabe, eu comprei ele tão cedo porque,
dizem, o cachorro leva em média uns três anos para apreender a
essência do dono. Varia de bicho para bicho: gatos levam dois anos,
papagaios um ano, mas eu prefiro cachorro.
– E você já teve algum namorado escolhido pelo cachorro?
– Sim, tive dois, muito bons, por sinal. Mas eu ainda não estava
querendo me amarrar.
– O que, por sinal, é o meu caso.

22
– Das outras vezes, ele não demonstrou metade do entusiasmo
que está mostrando com você.
– Escute, filha, você não acredita nisso, não é verdade?
– Piamente.
– Quanto custou esse bicho?
– Custou bastante, foi presente do meu pai.
Da Silva notou que o cachorro havia se aquietado. Pelo menos, o
adestramento parecia bom.
– Escute, não vá se preocupar com o Flush, ele é só uma ajuda.
Podemos nos ver de novo?
– Bem, como você pode ver eu não estou enxergando nada agora.
– Foi a Gangue dos Olhos?
– Sim – suspirou Da Silva. Aliás, eu estava indo tentar cuidar disso
agora, se me permite.
– Claro, eu compreendo. Posso lhe dar meu cartão?
– Cartão? Ah, sim, lógico, lógico.
– Gostaria de vê-lo novamente. O mais breve possível.
– Sim, pode ser, outra hora, quando eu estiver com mais calma e
“mais completo”.
Ao perceber que Da Silva se despedia, Flush soltou um lamento
em forma de ganido.
– Ele é sensível mesmo, não? Que raça?
– Cocker spaniel, pêlo dourado.
– Ah, sim, tudo bem. Até a próxima, amigo – disse Da Silva,
dando tapinhas rápidos na cabeça do animal.
– Tchau.
A garota se afastou, conversando animadamente com seu
bichinho, enquanto o detetive seguia seu curso.
1
Flush é o cachorro protagonista de um livro de Virgínia Woolf, de mesmo nome.

23
Capítulo VI

O consultório do oftalmologista era um lugar totalmente sem


alma. Cadeiras, tapetes, paredes, tudo era irrepreensivelmente branco.
Não havia, sequer, um único quadro na parede. Naquele ambiente,
qualquer pessoa pareceria bonita pelo simples fato de estar respirando,
ou fazendo qualquer outro movimento. Aliás, toda a clínica era assim. A
temperatura também, fosse qual fosse o clima do lado de fora, cravava
os mesmos 22º Celsius, ano após ano. Da Silva detestava o lugar,
detestava a mesmice e odiava estar lá. Na sua atual situação, não tinha
condições de ver as opressivas paredes brancas, mas sentia seu cheiro.
Investigações sobre a Gangue dos Olhos o tinham levado àquela mesma
sala, dois anos atrás. A impressão, então, tinha sido tão desagradável
que, ainda agora, retornava aquela memória incômoda.
Sem horário marcado, o jeito era esperar que o médico o
atendesse entre uma e outra consulta agendada. Para piorar, Judith não
estava, e foi outra voz feminina, seca e nada atraente, quem lhe
apontou uma poltrona, com o aviso:
– Sente aí e espere.
“Judith, logo hoje que preciso tanto de você... Mas, que canalha é
você, Da Silva? Foi uma noite tão boa com a Beth. E, agora, ainda
aparece essa menina do cachorro, que deve ser uma graça. Ah, que
hora mais imprópria pra ficar sem os olhos. Vou precisar de ajuda para
ligar para ela, não posso ler o cartão de visita... Alguma coisa está
mudando em mim. Não, não são os ‘óculos escuros’ desta maldita
venda-guia, algo em mim mudou. O sexo com Beth, desta vez, foi
diferente, eu estou mais sensível, talvez. É, pode ser. Sempre ouvi dizer
que os cegos são insaciáveis, os melhores amantes, porque a visão não
lhes rouba outros sentidos. Essa mulheres não poderiam ter aparecido

24
em melhor hora! Desculpe, Beth, mas se uma chance aparecer, eu
chego.”
Às 11h30min, mais de duas horas depois, portanto, o médico
mandou chama-lo. Um providencial cochilo tinha abreviado a espera e
amenizado o costumeiro mal-humor do detetive.
– Caro doutor, preciso de dados. Como é que esses bandidos
conservam os olhos vivos antes e mesmo depois da incrustação?
– Bem, isso não é nada complicado. Qualquer estudante de
Medicina, hoje em dia, sabe disso. Para o período em seguida da
retirada é usado um derivado do formol, um aldeído fórmico em baixa
concentração que, muitos anos atrás, foi descoberto para uso
cosmético. Para garantir uma conservação satisfatória, basta que se
irrigue também o olho com solução de cloreto de sódio a nove por mil.
– Soro fisiológico. E quando os olhos viram jóias?
– Bem, neste caso é ainda mais simples, embora dependa de uma
alta tecnologia e uma manutenção que é bem cara, do ponto de vista da
assepsia. Basicamente, o olho mantido artificialmente vivo se torna uma
peça ciborgue que dispensa o aldeído fórmico ao ser conectado nos
eletrodos que formam o, vamos dizer assim, “corpo” do colar. Acredito
que o grande atrativo destas jóias, além da própria beleza do olho, é o
fato de que o olho continua “funcionando”. Por exemplo, esse olho se
move. Só não se pode dizer que ele enxerga porque não está enviando
mensagens ao cérebro, que é quem, efetivamente, constrói a imagem.
– Esse produto – diacho, não consigo ler e vou ter que repetir mil
vezes para não esquecer o nome...
– O aldeído fórmico?
– Isso, aldeído fórmico, aldeído fórmico... O aldeído fórmico tem
mais alguma aplicação médica ou outra, que possibilite rastrear
fornecedores e compradores?

25
– Ah, sim, certamente: ele também é usado, com muito sucesso,
para conservar partes do corpo a serem transplantadas.
– No mercado negro, inclusive, dentro dos tráficos estéticos?
– Lamentavelmente.
– Há quantos fabricantes do produto?
– Que distribua em nossa cidade, que eu saiba, apenas um.
– O senhor pode me conseguir o nome?
– Certamente. Aguarde um momento, por favor.
O médico acessou o computador e perguntou:
– Quer que eu escreva?
– Se não for nenhuma palavra complicada, não é preciso. Diga
apenas o nome da rua e o número, em voz alta.
– Everlasting Inc., Rua 15, número 2-B.
– Qual o bairro?
– Bairro da Ponte. Mas, se me permite, Da Silva, eu não creio que
você esteja em condições de checar isso sozinho e...
– Obrigada pela sua preocupação, doutor, mas esta briga é minha.
Melhor do que ninguém, conheço a licenciosidade da polícia. Se não
recuperar os meus olhos, perco também o emprego, isso é certo. E um
cego desamparado não tem muitas chances com as mulheres, como o
senhor poderá imaginar.
– Admiro seu senso de humor.
– E eu a sua ironia. Ouça, doutor, só mais uma pergunta: esses
olhos, os meus olhos, se tiverem virado penduricalhos, quais são as
chances de reimplantá-los?
– Não posso dar garantias, detetive, porque nunca aconteceu.
Jamais foi possível recuperar olhos roubados mas, do ponto de vista dos
recursos médicos, acredito que não haveria problema.
– Então o meu caso vai ser o primeiro, eu lhe garanto.
Recomendações a sua assistente.

26
Capítulo VII

“Everlasting Inc. Rua 15, 2-B.”


Se existia alguma coisa boa naquela droga de cidade, certamente
era a rede de metrô. Com centenas de estações em vários níveis de
profundidade, o serviço era barato, pontual, eficiente e centenário. Por
algum motivo que nenhum antropólogo urbano seria capaz de explicar,
enquanto na superfície o crime e a violência tomavam as ruas, nos trens
subterrâneos e nas suas estações o número de incidentes era
praticamente inexistente. Era como se a população guardasse uma
antiga reverência, uma quase afetividade mesmo, em relação àquele
meio de transporte, que fazia de seu território um local próximo ao
sagrado.
Agora que estava cego, Da Silva agradecia aos céus porque podia
contar com o metrô. Era ele quem lhe garantia a independência nas
investigações por conta própria que, de outra forma, seria impossível.
Por força do ofício sabia, por exemplo, que não se pode confiar em
taxistas, já que a categoria gosta de ver, ouvir e, o que é pior, às vezes
também falar demais. Não, ele não podia se arriscar com testemunhas
de nenhuma espécie.
Perguntando a um e a outro, não foi difícil chegar à Rua 15.
Quanto ao número 2-B, já era outra história. Um homem usando uma
venda-guia chama atenção demasiada e, logicamente, poderia despertar
suspeita dentro da fábrica.
Pela primeira vez sem seus mais de 20 anos de polícia, o detetive
Da Silva se descobriu desorientado. O que estava ele fazendo ali? Como
investigar alguma coisa, qualquer coisa, se nem sequer conseguia
chegar à frente do prédio – e observar o movimento, muito menos.
Quando, meio furioso de desespero, já começava a repassar

27
mentalmente em quem talvez pudesse confiar para ajuda-lo, sentiu uma
mão pesada que pousava sobre o seu ombro direito, vindo de trás.
Apesar do sobressalto, Da Silva tentou controlar a emoção na voz.
– Calma, amigo, não quero lhe fazer mal. Posso ajudar em alguma
coisa?
Da Silva não podia ver, mas quem o abordava era um negro com
mais de dois metros de altura, pesando mais de 100 kg, e que usava
um uniforme de segurança, além de uma série de outros dispositivos de
defesa, como cacetete, revólver e algemas, se bem que não
precisasse...
Acuado, o detetive pensou rápido e seguiu pela única via que
tinha: o ataque.
– Detetive Da Silva, coletando dados para um caso. Procuro a
empresa Everlasting Inc.
– Pois o senhor está com sorte. É ali, do outro lado da rua, eu
trabalho lá e estou chegando para o meu turno. Quer que eu o
acompanhe?
Ainda assustado, Da Silva acenou afirmativamente com a cabeça.
– O senhor deve estar em algum tipo de missão especial, detetive.
Sem carro de polícia, desacompanhado, é alguma investigação sigilosa?
– Isso mesmo. Eu gostaria de falar com o encarregado pela
fábrica.
– O Sr. Souza, claro, nosso gerente geral. Aguarde aqui que eu
vou ver se ele está.
Como o negro interfonou de dentro de uma sala com paredes de
vidro, ainda que aguçasse os ouvidos Da Silva não conseguiu ouvir nada
do que ele disse.
– O senhor está mesmo com sorte, vou levá-lo até lá.
“Sorte. Esse cara só pode estar me gozando...”

28
Da Silva seguiu o segurança por alguns corredores e, depois, de
elevador, até o quinto andar, onde desembarcaram. Uma secretária
assumiu o papel de interlocutor na ante-sala, o que não pareceu
despertar em Da Silva nenhuma outra sensação, além de enfado, já que
sua voz denotava ser de relativa avançada idade.
O próprio gerente geral se apresentou à porta com um gesto que
convidava o detetive a entrar na sua sala:
– Por aqui, senhor. Carmem, café e água, por favor. Souza fechou
a porta atrás de si.
Era uma pena que Da Silva estivesse, temporariamente,
incapacitado de enxergar completamente. Sua visão teria revelado
muita coisa a propósito de Souza. Que ele não era sincero, por exemplo,
e que tinha um modo de olhar bastante evasivo, do tipo que não
encarava. De estatura relativamente média, tendendo para baixa, Souza
estava entre os 30 e os 40, era extremamente pálido e engomadinho, e
se esforçava para fazer parecer alguém que não era. Vindo de uma
classe social baixa, era do tipo que procurava ostentar, através do
consumo de tudo o que fosse caro – como o seu relógio de pulso ou sua
caminhonete – alguma coisa que não era. Diante de um novo
interlocutor, sempre encontrava uma maneira de inserir, da forma
menos afetada possível, que seu currículo incluía um curso em Harvard.
O que ele não mencionava era que o tal curso não tinha durado nem
duas semanas e que era um dos menos significativos na universidade.
Apesar da palidez (ou, ainda, a propósito dela) Souza era uma figura
sombria: tinha cabelos e olhos pretos, e uma voz cujo timbre remontava
às profundezas do inferno.
– O que o traz aqui, detetive...
– Da Silva – se adiantou, diante da hesitação ou falha de memória
do gerente.

29
– Exatamente. O senhor não me parece estar em condições, se
me permite, de conduzir nenhuma espécie de investigação e, muito
menos, me parece estar autorizado para isso. Seus superiores sabem
que está aqui?
– Com sorte, saberão em quem suas respectivas senhoras estarão
cavalgando a essa hora, se me permite o senhor – devolveu Da Silva,
frisando as últimas palavras para reforçar o sarcasmo.
– Qual o seu problema, detetive?
– Meu problema está na cara, Sr. Souza, na minha cara. Ele
termina nessa venda-guia e começa na noite em que a Gangue dos
Olhos levou o que é meu.
– Em que posso ajudá-lo?
– Pode começar me dizendo para quem é que vocês vendem o tal
conservante.
– Não faço idéia de a que esteja se referindo...
– Uma ova, que não faz – gritou Da Silva, ao mesmo tempo que
desfechava um vigoroso murro sobre a mesa de Souza. Do outro lado, o
gerente estremeceu.
– Não me venha usar seus métodos policialescos aqui na minha
casa, o senhor sabe muito bem que não está em missão oficial e que,
portanto, tudo o que eu lhe disser vai ser estritamente por... caridade.
A secretária abriu a porta e deixou duas xícaras de café e dois
copos d’água sobre a mesa, se apressando em sair.
– Guarde sua... caridade para a coitada que pariu seus filhos.
– Não sei se percebe, detetive, mas de maneira nenhuma eu sou
obrigado a lhe dar qualquer informação. Além do mais, parece que nem
o senhor sabe ao certo aquilo que procura. Veja bem, nossa lista de
produtos inclui uma vasta linha de uso médico e industrial, cuja
aplicação vai de uma gama que se estende de...
– Aldeído fórmico – gritou Da Silva.

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– Como disse?
– Eu disse aldeído fórmico e você me escutou muito bem.
Souza se empertigou todo na cadeira, ajeitando o nó da gravata, e
pigarreou um pouco, antes de responder.
– O que é que tem, o aldeído fórmico?
– Quero saber para quem vocês vendem, e quanto.
– Essa informação é sigilosa, porque contempla uma relação de
confiança entre a Everlasting Inc. e sua carteira de clientes, de maneira
que eu não...
– Feche logo a matraca, não quero saber de ladainha decorada do
seu manual de administração, e só abra de novo para me responder
aquilo que eu perguntei.
– E por que motivo o faria, se não sou obrigado?
– Talvez não sirva de motivo suficiente saber que esse tal
conservante que vocês fabricam e distribuem serve, entre outras coisas,
para conservar os olhos que a Gangue anda roubando por aí. E se isso
não for motivo suficiente, gostaria de lembrar que comerciar com
qualquer tipo de máfia pode lhe render alguns anos de cadeia. Amigo,
não é o lugar onde um sujeito delicado como você gostaria de estar...
Souza bebeu o café num único gole, enquanto Da Silva começava
a degustar o seu, depois de ter alcançado a xícara sem nenhuma
dificuldade, graças ao sensor de temperatura de sua prestativa venda-
guia.
– E então? Como ficamos?
Souza chamou a secretária à sua sala.
– Carmem, copie todos os arquivos relativos ao aldeído fórmico
referentes aos últimos 24 meses: produção, compra de substâncias
químicas, vendas consolidadas, banco de dados de clientes e
fornecedores, transportadoras, tudo. Reproduza a pasta toda para o
detetive Da Silva. Podemos enviar para o seu endereço...

31
– Eu aguardo aqui mesmo – sentenciou Da Silva, num tom
sacramental. Em alguns minutos, a secretária lhe entregava um pen
drive com toda a informação pedida.
– Estou profundamente agradecido. Nem tenho palavras para lhe
dizer o quanto aprecio sua cooperação espontânea...
– O senhor sabe o caminho para fora, não?
– Claro, lógico. Até mais ver, Sr. Souza. Em breve nos falaremos
novamente.

32
Capítulo VIII

Desde o acontecido, Da Silva havia se tornado uma espécie de


persona non grata na chefatura. Os colegas, que antes o tinham na
conta de prepotente e egocêntrico, juntaram a esse veredito um outro,
ainda pior: o coitado que você tem medo de se tornar. Mas, ao
detetive, tanto se lhe dava a opinião dos outros policiais a seu respeito,
desde sempre. Contanto que o deixassem trabalhar, estava tudo certo.
Não era o caso. Um detetive sem os olhos é tão útil quanto um carro
sem as rodas. Por isso, tinha sido afastado, o que não o impedia de
circular nas dependências oficiais e, mais ainda, tentar levantar
informações que pudessem ajudá-lo na sua investigação particular.
– Cadê o Fernandez? – perguntou, sem nem dar boa tarde,
encostado no balcão de atendimento.
– ‘Tá com a chefia. Se quiser, espere aí.
Pela voz, era o sargento Da Silva – por que o maldito não usava o
outro sobrenome? – mal-humorado como sempre.
Da Silva não gostava de esperar e, sem dar importância ao
comando do sargento, resolveu desfilar pela chefatura com o
brinquedinho que, ele sabia, intimidava os outros policiais.
– ‘Tá bonito com esses óculos escuros, meu caro!
– Vá se foder!
– Já tem alguma pista decisiva, Da Silva? – perguntava outro.
– Mas nem que você me desse a bunda aqui agora eu lhe diria,
amigo.
– Da Silva, você está me procurando?
Fernandez apareceu bem na hora em que Da Silva estava
cogitando a possibilidade de barbarizar, vamos dizer assim, quebrando
algumas cadeiras na nuca de um ou outro.

33
– Bebe alguma coisa?
– Vamos, qualquer boteco fede menos que esse lugar.
Os dois saíram sob os olhares curiosos de todos que estavam no
saguão de entrada.
Da Silva deu um gole no seu grande copo de cerveja,
confortavelmente instalado no Bar do Charlie, e perguntou, sem
rodeios:
– Conseguiu o endereço daquela modelo como eu lhe pedi?
– Consegui, claro. Segundo me disseram, Clarice está na casa dos
pais dela, em Armada, sob cuidados médicos. É uma daquelas mansões
que ficam no alto da colina...
– O metrô não vai até lá – pode me levar?
– Quando?
– De preferência, agora. Faça isso pelo seu velho chapa!
– Porra, Da Silva, você vai me deixar enrolado mas, tudo bem.
– Enquanto isso vou lhe passar sua próxima tarefa.
– Próxima tarefa?
– Pegue esse pen drive e veja o que descobre. É uma lista de todo
mundo que teve ou tem a ver com o aldeído fórmico, pelo menos
oficialmente, nos últimos dois anos. Veja o que consegue descobrir.
– E o que vem a ser essa porra?
– É onde a Gangue conserva os olhos extirpados antes de fazer a
incrustação – entendeu, ou falei muito difícil???
– Muito engraçado, você.
– Só não vá fazer isso na chefatura! Use o computador em casa.
– Claro.
Em cerca de 10 minutos, Da Silva desembarcava em frente a uma
linda casa de dois andares, toda branca, rodeada de jardins impecáveis.
No portão, junto à campainha, o nome Krapp, em letras douradas.

34
– É melhor você ir andando, Fernandez. Quero que pensem que
vim sozinho.
– Sem problemas. Nos falamos mais tarde.
– Não me ligue, a linha pode estar grampeada. Me encontre no
Bar do Gringo, às 10.
Da Silva esperou que o carro se afastasse para tocar a campainha.
Ia precisar reunir toda a boa educação que sua mãe lhe dera – e ele há
muito esquecera – para conseguir manobrar aqueles grã-finos.
– Boa tarde. Gostaria de falar com Clarice Krapp.
– Quem está falando, por favor?
– Aqui é o detetive Da Silva.
– Foi a chefatura que o mandou?
– Não exatamente. É que preciso ver urgentemente a Srta. Krapp,
é muito importante.
– Aguarde um momento.
Passaram alguns minutos, até que uma voz feminina, melodiosa e
firme, veio falar com ele.
– Detetive Da Silva?
– Sim, sou eu.
– Aqui é Esmeralda Krapp, mãe de Clarice. Em que posso ajudá-
lo?
– Na verdade, Sra. Krapp, é muito importante que eu fale o mais
cedo possível com sua filha.
– Acredito que sim, detetive, mas minha filha está acamada e não
creio que ela esteja em condições de vê-lo.
– É muito importante, Sra. Krapp. Quando a senhora me vir vai
entender por quê. Acho que sei o que aconteceu com sua filha e estou
reunindo pistas para desbaratar aquela Gangue, se é que a senhora me
entende...

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– Oh, sim, parece que algum anjo o enviou, detetive. Ainda não
divulgamos isso para ninguém e estamos contando com a maior
lealdade por parte da equipe médica e de nossos empregados.
– Posso entender, Sra. Krapp. Mas não é conveniente que
fiquemos conversando assim, via interfone. A senhora vai entender
quando me vir.
– Já estou entendendo, detetive Da Silva. O circuito de câmeras já
me mostrou a sua venda-guia. Entre, por favor.
Da Silva se sentiu um tanto devassado ao ser observado sem nem
sequer se dar conta, quase como se tivesse estado nu. “Não é hora para
frescura, Da Silva, você está indo bem.”
Embora não conseguisse ver, por exemplo, como era a decoração
da casa, percebia que estava num ambiente amplo e, provavelmente,
bem iluminado.
– Não posso lhe garantir que minha filha queira vê-lo, Sr. Da
Silva. O senhor há de imaginar como ela está se sentindo...
– Perfeitamente, senhora. Quando aconteceu o ataque?
– Na quarta-feira, quando Clarice retornava de uma festa. Não
entendo como driblaram toda a segurança!
– Nos dias de hoje, ninguém está totalmente seguro. Onde
aconteceu?
– Na saída subterrânea do elevador, na garagem do prédio de
onde ela estava saindo.
– Continue.
– Clarice esqueceu a bolsa no apartamento desses amigos e, como
estava cansada, mandou que um dos guarda-costas voltasse ao
apartamento para buscar. A imprensa não estava lhe dando trégua
aquela noite...
– Não havia mais nenhum guarda-costas?

36
– Sim, havia outro. Mas Clarice me disse que estava louca para
chegar em casa e mandou que ele fosse ligando o carro.
– Ela deveria ter ido com ele.
– Foi terrível. Eles agiram realmente muito rápido. Deviam estar
seguindo minha filha há muito tempo.
– É bem provável.
– Ela não se lembra de absolutamente nada do ataque em si. Só
de um golpe na cabeça, que não a deixou inconsciente, mas que causou
uma espécie de visão turva. Em seguida, sentiu que a agarravam ali
mesmo, na porta do elevador, e não levou nem um minuto para
arrancarem os olhos dela com alguma ferramenta côncava.
– Eles são treinados para isso.
– Ela não consegue descrever a dor e o horror que sentiu. Só
depois de alguns segundos é que conseguiu entender o que estava se
passando. Foi aí que começou a gritar, antes de desfalecer.
– E os guarda-costas?
– Parece que chegaram juntos ao mesmo tempo ali, onde ela
estava caída. Dizem não ter visto nada e não há registro de imagens no
circuito de vigilância do prédio.
– Eles foram demitidos?
– Claro que não, tudo o que não precisamos a esta altura é um
escândalo. A carreira de minha filha não pode ficar comprometida.
– Sei como se sente, estou passando pelo mesmo dilema. Não são
só as modelos que precisam de seus olhos para trabalhar... A senhora
me deixa trocar umas palavras com ela?
– Sr. Da Silva, não sei se minha filha estaria disposta a recebe-lo.
– Diga a ela que tenho uma motivação pessoal para pegar a
Gangue, ela vai entender. Além do mais, o que a polícia fez por vocês,
até agora?

37
– Para ser sincera, não muito. Oh, Sr. Da Silva, Deus queira que
possa ajudar-nos. Minha filha é tão jovem, tão bonita...
– Vamos lá, pergunte se Clarice me recebe.
– Com licença, volto já.
Numa situação como essas, Da Silva aproveitaria para explorar a
casa. Mas, privado de seu olhar aguçado, o jeito era tentar “farejar”
algum outro tipo de sinal. O máximo que conseguiu foi saber que a dona
da casa gostava de rosas... Ah, sim! E também que teriam costeletas de
porco no jantar.

38
Capítulo IX

Esperara anos para ver ao vivo aquela belezoca e, agora, estava


incapacitado. “Da Silva é um sujeito de sorte!”
– Ela vai recebê-lo.
Da Silva seguiu Esmeralda Krapp pela escadaria até a ala dos
quartos, que ficava no andar de cima. Ela abriu uma porta, esperou que
o detetive entrasse e tornou a fechá-la, sem entrar, pelo lado de fora.
– Quem mandou o senhor aqui, detetive?
– Acho que foram minhas... Ia dizer bolas, mas se corrigiu a
tempo. ...entranhas, senhorita.
– Sente-se, por favor.
A voz da garota chegava fraca, trêmula e frágil, como os véus de
sua cama com dossel. Se pudesse enxergar a peça de museu, com
certeza Da Silva teria considerado de mau gosto “foder no meio de
tantos panos pendurados”. O detetive dispensou rodeios.
– Do que a senhorita se lembra, Senhorita Krapp?
– Muito pouco, para falar a verdade. Eu estava bastante sonada,
de cansaço e das doses de vodca que havia tomado na festa.
– Prossiga. Chegou a ver alguém? Quantos eram?
– Não, mas acho que deviam ser pelo menos três homens.
– Como no meu caso...
– Minha mãe me disse que o senhor também está usando a
venda-guia, já se adaptou?
– Praticamente como se tivesse nascido com ela.
– Sorte a sua, inspetor.
– Detetive – corrigiu ele.
– Detetive, desculpe. Eu ainda não entendi direito como funciona.
– Você vai se acostumar, não tem mistério.

39
– Há quanto tempo está com a sua?
– Deixe ver... hoje faz uma semana.
– Comecei há dois dias.
– Entendo.
“Não estamos progredindo muito. Essa garota não se lembra de
nada.”
– Ouviu algum som, sabe algum detalhe?
– Nada, absolutamente nada. Detetive, foi tão horrível que acho
que meu subconsciente está bloqueando qualquer memória, me
desculpe.
– Não tem problema. Sei o que está passando.
O que estaria acontecendo com o velho fodedor Da Silva? Ele não
ficou nem um pouco excitado por estar, não só na presença mas, NO
QUARTO de Clarice Krapp! Ao invés disso, outros sentimentos o
assolavam.
– Senhor Da Silva, eu estou com muito medo. Não sei se terei
coragem de implantar próteses e continuar com a minha carreira assim,
sem problemas, não sou uma atriz.
– Entendo o que quer dizer. Para mim também está sendo difícil.
– O pior de tudo é que, sem os olhos, não se consegue nem
chorar, não é verdade? Eu não consigo pôr pra fora o que estou
sentindo, é um pesadelo, eu, eu...
– Fique calma, senhorita. Eles não irão longe. Nem com os seus
olhos, nem com os meus. Desta vez, se meteram com a pessoa errada.
Da Silva se levantou do sofá onde estava e se sentou na beira da
cama da modelo, afastando, meio assustado, um dos panos do dossel.
Segurou a mão dela para tentar acalmá-la e percebeu como era bem
feita, com longos dedos de unhas compridas, e de uma pele
extraordinariamente fina e delicada, como papel de arroz. “Coisa mais
difícil, pensou, é mulher com uma pele dessas. Peitos, bunda, xota, hoje

40
tudo se coloca novo mas, pele, não. As mulheres mais lindas tinham
aquele tipo de pele. E ele sem a porra dos olhos pra ver.
– Ouça, senhorita, eu já tenho algumas pistas e colocar a mão
nesses caras é uma questão de tempo.
O corpo de Clarice tremia e ela recostou sua cabeça sobre o ombro
esquerdo dele. Uma nuvem de shampu perfumado desviou a linha de
raciocínio do policial, enquanto uma cascata de cachos finíssimos,
vermelho claros como chamas, deslizava pelo braço dele. Só então Da
Silva se deu conta da música que tocava em bg, com as melhores
canções de James Brown.
– Você também gosta de soul, belezoca?
Clarice deu um risinho.
– É, ele tem o poder de me deixar alegre.
– Entendo. Pois, não fosse pelo tempo, eu diria que essa aí o velho
Brown compôs em minha homenagem.
– Há há há – Clarice deu uma gargalhada.
Era “Sex Machine”, que ele aumentou de volume, assim que
conseguiu, a muito custo, tatear o botão certo do controle remoto que
encontrou na cabeceira...

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Capítulo X

Pela primeira vez desde que tinha ouvido falar da Gangue dos
Olhos, ainda na adolescência, Da Silva tentou imaginar quantas pessoas
teriam sido vítimas daquela máfia que transformava olhos humanos em
jóias preciosas. Seriam centenas? Milhares? Embora os ataques
acontecessem apenas ali, na sua cidade natal de Nova Belém, não se
sabia por quê, o mercado consumidor era potencialmente imenso,
configurado nos milionários de todos os cantos do mundo. Uma gente
que, sem dúvida nenhuma, perdera há muito qualquer vestígio de
humanidade e apelaria a qualquer atrocidade só para ostentar luxo e
poder.
O detetive foi descendo devagar a Colina da Armada até que seus
ouvidos lhe passaram a mensagem que estava esperando: agora você
chegou a uma avenida de grande movimento. O que, em outras
palavras, só podia significar que a próxima estação do metrô não estaria
longe... Nintendo Station era aquela, mas qualquer uma serviria, graças
à intrincada e eficiente rede de transporte subterrâneo. Da Silva coçava
a nuca e pensava, como costumava fazer toda vez que se encontrava
como agora: numa verdadeira “sinuca de bico”. Voltara à estaca zero,
porque a garota, por mais linda que fosse ou desesperada que
estivesse, não tinha ajudado em nada. Talvez Fernandez tivesse
avançado com a lista do aldeído fórmico, pensou. Sim, precisava
acreditar nisso. O velho Da Silva jamais se dava por derrotado. “A
melhor foda é aquela que ainda vou dar”, gostava de repetir. O velho Da
Silva era mesmo um otimista.
As vozes altas de duas mulheres arrancaram o detetive de seus
pensamentos da forma mais violenta possível. O diálogo entre elas era o
mais banal possível. Conversavam sobre trabalho, um evento da

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categoria, ou qualquer coisa que o valesse, mas não era esse o
problema. O problema era o volume: embora sentadas lado a lado no
banco em frente a Da Silva, elas gritavam, não uma com a outra, mas
para a outra, numa altura que tornava totalmente impossível a qualquer
pessoa no vagão conversar ou mesmo pensar consigo mesmo. O som
estridente tomou conta do espaço e não restava mais nada aos poucos
passageiros a não ser prestar atenção na insignificância daquela
conversa que, tal qual uma tsunami, tinha varrido todo o interior do
carro.
“Malditas vadias!”, falou Da Silva, num tom facilmente superado
pelo blá-blá-blá das mulheres. “Elas sabem que estão infringindo a lei”,
pensou consigo. “Se ao menos eu não estivesse suspenso e de posse do
meu equipamento, autuaria essas duas agora.” Os passageiros – um
velho barbudo, três garotos adolescentes e uma mulher com uma
criancinha de cerca de cinco anos se entreolhavam, espantados e
visivelmente incomodados. A menina perguntou à mãe:
– Mamãe, as moças estão brigando?
– Não, meu amor, elas não estão brigando não.
– Mas elas ‘tão fazendo barulho, mamãe. Não pode fazer barulho
na rua não, né?
– Nem na rua, nem em lugar nenhum. Não foi nada, vem aqui no
meu colo, vem.
– Mas, mamãe...
– Fique quietinha que, já já, nós vamos descer.
A pequenina tapou as orelhas com as mãos, sem cerimônia, como
é tão próprio da sinceridade infantil, perdendo um pouco do equilíbrio
com os cotovelos, assim, tão levantados.
A conversa das senhoras seguia animada. À certa altura, uma
delas, a loura, teve uma crise de riso, seguida de um estrondoso acesso
de tosse, o que só fez sua amiga rir ainda mais. À medida que a alegria

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da dupla crescia, o restante do público só parecia mais e mais deprimido
com o espetáculo.
Da Silva já considerava a possibilidade de trocar de vagão na
estação seguinte quando aconteceu o primeiro milagre do dia. No início,
ele só ouviu o disparo do alarme.
– Com licença senhoras, mas vou ter que autuá-las por
desrespeito à lei e perturbação do sossgo alheio. Queiram se levantar,
por favor.
As palavras estavam sendo ditas por um jovem moreno,
provavelmente bonito, pensou Da Silva, por causa da voz poderosa e
agradável, que acabara de entrar no metrô. As mulheres não esboçaram
nenhuma reação, nenhuma desculpa, e apenas se levantaram com jeito
de quem sabia o que estava por acontecer.
O policial tirou do bolso um pequeno aparelho ótico, que lembrava
um acendedor de fogão com uma lanterna na ponta, e mirou bem
dentro dos olhos da loura, tirando uma espécie de fotografia. Em
seguida, foi a vez da outra e toda a ação não levou mais do que um
minuto.
“Yes”, pensou Da Silva.
O homem, então, leu os registros no visor e disse às duas, num
tom ameaçadoramente calmo:
– Estou vendo aqui que as senhoras são reincidentes e que, por
isso, se constitui um delito mais grave. A multa já foi cobrada em dobro
via débito automático em suas respectivas contas bancárias e uma
terceira ocorrência pode levar à repressão mais sistemática, incluindo a
suspensão temporária do uso de transporte público, estamos
entendidos?
As mulheres apenas assentiram com um aceno de cabeça e
desabaram de volta aos seus lugares, caladas até o fim da viagem. Com
tantos lugares vagos, o Tenente Muller, ainda assim, foi se sentar ao

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lado de Da Silva. Talvez porque a venda-guia sinalizasse sua cegueira e
a necessidade de um esclarecimento.
– Boa tarde, amigo. Não sei se percebe o que acaba de acontecer
por aqui...
– Perfeitamente. Também sou policial, embora inativo no
momento. Detetive Da Silva – disse, estendendo a mão.
– Tenente Muller – devolveu o interlocutor. A porta do vagão ainda
nem estava totalmente aberta e o alarme do meu sinalizador já estava
tocando... é incrível o desrespeito de certas pessoas.
– Nem me diga, você caiu do céu. Essa gente não espera que vá
aparecer um policial assim, num vagão de metrô, a essa hora.
– Realmente, é bem improvável.
– Estranhos os nossos tempos. Se, por um lado, temos todo um
aparato, como esse da identificação por leitura de íris, para coibir em
segundos uma pequena perturbação, por outro não conseguimos lidar
com crimes mais graves, como o da Gangue dos Olhos.
– É tudo uma questão de grana. Crimes contra o silêncio geram
multas para os cofres públicos que, por sua vez, financiam pesquisas e
novos equipamentos. Mas no caso dos traficantes de órgãos, é muito,
muito dinheiro.
– Deve ser isso mesmo. É novo na cidade?
– Sim, vim transferido do Sul há duas semanas.
– E ainda não deu tempo de arrumar um carro.
– Exato. Há quanto tempo está usando esta venda?
– Uns sete ou oito dias.
– E as próteses, já tem previsão de receber?
– Mais uns 10 ou 15 dias, mas antes disso vou colocar as mãos
nesses bastardos e furar os olhos deles com meu dedo em riste, um por
um.
– Faço votos que consiga, amigo.

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– Não tem medo de vir para esta cidade?
– Não tive escolha, foram ordens superiores. Além disso, tenho
olhos muito feios, e não corro o menor risco. Seria a última pessoa na
face da Terra que esses caras iam querer saquear – garantiu o tenente,
entre risos.
– Olhos feios... preciso ver isso – comentou Da Silva, em tom de
brincadeira. Onde é que você está lotado?
– Na 45, sabe onde fica?
– Hum hum.
– Eu desço aqui. Se precisar de ajuda, apareça para tomar um
café – convidou Muller, se levantando e estendendo a mão para as
despedidas.
– Eu agradeço, oficial. Só mais uma coisa: de quanto foi o prejuízo
das damas?
– Dois mil cada.
Todos os passageiros, que prestavam atenção à conversa,
aplaudiram o policial que saía, inclusive Da Silva, com todo entusiasmo.

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Capítulo XI

Pelo horário em que chegou ao Bar do Gringo deveria estar bem


mais cheio e alvoroçado. Nem bem passou pela porta de entrada, Beth
foi ao seu encontro, visivelmente ansiosa. Deu-lhe um beijo rápido e,
ainda com a mão direita pousada sobre o seu rosto, perguntou:
– E então? Como foi com a garota?
– Bah, tempo perdido! Ela não sabe de nada, não se lembra de
nada, e parece estar fazendo um esforço incrível para esquecer mesmo.
– Sinto muito, Da Silva.
– Cadê todo mundo? Tá um silêncio danado aqui.
– Não sei. Também estou estranhando... Normalmente a casa está
bem mais cheia, já são 19h.
– Talvez eles saibam alguma coisa que a gente não sabe.
– Não quero nem pensar. O que você bebe?
– Preciso me inspirar, doçura. Me dê alguma coisa forte e
sofisticada.
– Nosso melhor uísque, está bom pra você?
– Manda.
Beth instalou o detetive na sua mesa preferida, no canto em
frente ao balcão, e foi pegar a bebida. Da Silva cantarolou qualquer
coisa, aleatoriamente, enquanto tamborilava os dedos impacientes
sobre o tampo sem toalha.
– Aqui está.
– Você pode sentar um pouco?
– Está brincando? Você é o meu único cliente até agora.
– Então escute. Preciso recapitular. A visita à casa de Clarisse foi
praticamente uma perda de tempo.
– Como ela é?

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– Bem, cabelos fartos e perfumados, pele macia e uma vozinha de
criança. Você não vai querer um relato mais descritivo, eu suponho...
– Espere aí! Que negócio é esse de pele macia e cabelo cheiroso,
só falta dizer que deitou na cama com ela.
– Praticamente.
– Assim não dá – reagiu Beth, desferindo um vigoroso soco no
muque direito de Da Silva.
– Ai, isso doeu. Não se envergonha de bater num cego?
– Eu ainda nem comecei. O que aconteceu lá?
– Beth, amorzinho, você já teve mais senso de humor. No meio da
conversa, a garota começou a chorar e eu fui me sentar na beira da
cama, onde ela estava sentada, para dar apoio moral, só isso – disse,
esfregando o antebraço.
– Hum.
– Agora, sério. Acho que o que está assustando mais a Clarisse é
que, por saber que até hoje ninguém recuperou os olhos, ela já esteja
acreditando que vai ter que se virar mesmo com as próteses, como todo
mundo. No caso dela, a coisa fica mais grave, porque o que ela vende é
a imagem. Tem medo de que alguém venha a perceber a troca. Sem
contar que os olhos dela realmente têm uma cor relativamente rara, que
eu não sei se vão conseguir reproduzir.
– Meio puxados pro amarelo, né?
– Isso. Independentemente disso, eu fiquei com pena da garota.
Ela é tão jovem e está muito assustada. É como se tivessem levado
junto os sonhos, a auto-confiança, a vontade de viver dessa menina. Ela
está totalmente acuada, e não sei em que medida vai conseguir se
expor em breve aos flashes e às passarelas. Ela não pode sumir muito
tempo. Senão, vão desconfiar.
– Ainda mais se ela reaparecer com olhos de cor diferente.
– Exatamente.

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– Pense pelo lado bom: ela não vai morrer de fome – com a grana
que tem!
– Eu sei, mas é mais do que isso. O que ela vai fazer pro resto da
vida? Ela tinha um projeto... compromissos agendados... contratos a
cumprir.
– deve haver alguma cláusula dizendo que ela está desobrigada de
aparecer em público se estiver com “alguma coisa faltando”...
– Não seja cruel, Beth! Você não é assim. Você é minha Beth
doce.
– Não tente me beijar, estou com ciúme. E agora?
– Agora estou esperando o Fernandez. Vamos ver se aquele filho
da puta descobriu alguma coisa. Enquanto isso, quer ir foder lá atrás
comigo, no almoxarifado?
– Da Silva, parece que lhe tiraram alguma coisa além dos olhos!
– Mas não as bolas!
– Deve ter saído um bocado de massa cinzenta junto.
– Quê isso, boneca? Você disse que o bar está vazio. Vamos
aproveitar.
– Eu não posso perder esse emprego! Não sabemos o que vai
acontecer com você.
– Não vai ser isso que você está pensando. Não vão aposentar o
melhor detetive da cidade por invalidez assim tão facilmente. Já que
você não quer saciar meu apetite, então me prepare uma omelete
daquelas que só você sabe fazer!
– Eu sou garçonete, não cozinheira!
– Não haverá testemunhas. E eu, juro que não conto para
ninguém...
– Vou pedir à cozinha, isso sim. Alguma preferência?
– Quero com tudo dentro!
– Aguarde um pouquinho, estão entrando alguns clientes...

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– Ah! Já não era sem tempo.
Beth se afastou uns 15 minutos e, quando voltou com a comida –
uma enorme omelete dourada com queijo, presunto, batatas,
cogumelos, cebolas, tomates e pimentões, mais uma cestinha de pão –
encontrou Da Silva meio sorumbático.
– Ainda pensando na garota?
– Bethinha, você lê meus pensamentos. Se acontecer o pior e eu
não puser a mão nesses caras, tudo bem. Eu já sou um cavalo velho
mesmo. Mas, arruinar a vida de uma menina assim! Esses desgraçados
não têm respeito. Alguém tem que dar um basta nisso.
– Então não foi perdida sua ida lá, você ganhou motivação, não
acha?
– Acho que você é uma sábia, é, uma sábia bunduda.
– Tire a mão da minha bunda, estou de serviço – resmungou Beth,
entre risos.
– Me acompanha?
– Já comi, amor. Bom apetite.

***

– Salve, Da Silva!
– Fernandez, meu bom homem. Ainda há pouco, comentei com a
Beth: já já chega aquele filho da puta. Alguma novidade?
– Você não se emenda, não é mesmo? O que descobri é que
vendem regularmente o tal aldeído fórmico para algumas dezenas de
clientes e cerca de 15 estão na cidade.
– Mas quem disse que os atravessadores trabalham aqui?
– Eu sei, só estou especulando que eles façam tudo sem sair da
cidade, uma vez que os ataques também estão restritos a esta
circunscrição.

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– Pode ser, é um ponto de partida. É possível você investigar
melhor esses 15?
– Só nas minhas folgas. E muito discretamente. Não vamos querer
ser descobertos por ninguém da chefatura.
– Tem razão. Estive pensando: e quanto às vítimas? Será que
existe alguma lista? Com nomes, endereços, data do ataque, coisas
assim?
– Acho mais fácil conseguir junto à rede hospitalar do que com
nossos colegas, obviamente.
– Obviamente. Fernandez: você fala tão bonito! Então, deixe
comigo. Vou usar meu magnetismo pessoal, mais uma vez.
– Contra a enfermeira peituda do seu médico, eu suponho.
– Rapaz, você está ficando inteligente. Deve ser a convivência
comigo. Dessa parte eu mesmo me encarrego, falar com quem foi
atacado. Já percebi que essa venda-guia desperta automaticamente
uma certa solidariedade de classe.
– Imagino. Vamos ver o que consigo, então, com as empresas.
Ainda precisa de mim? Estou quebrado.
– Não, você é peludo demais pro meu gosto! Ah, sim: só mais um
favorzinho. Leia aqui pra mim este número de telefone – pediu Da Silva,
estendendo um cartão que tirou da carteira na direção do colega – Mas,
discretamente, sem que a Beth perceba. Uma gentileza, de homem pra
homem.

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Capítulo XII

O crescimento demográfico mundial ao longo dos séculos tinha


conseguido realizar, espontaneamente, aquele que teria sido o sonho de
muito administradores públicos do início do terceiro milênio:
desconcentrar os aglomerados populacionais em unidades menores,
ainda que circundando velhas metrópoles. Assim, em 4002, no início do
quinto milênio, graças à tecnologia o que existia era uma sucessão de
cidades mais ou menos com o mesmo grau de importância, sendo que
praticamente haviam desaparecido os espaços desabitados. Calçadas
lotadas com o vai-vem dos pedestres e engarrafamentos quilométricos
tinham sido preservados somente nos filmes antigos. E era por isso que,
agora, Beth e Da Silva conseguiam ouvir, claramente, seus próprios
passos no pavimento de uma rua praticamente deserta – como sempre,
especialmente, à noite.
– Benzinho, você me faz um favor?
– Claro.
– Eu tenho me esquecido totalmente de acionar meus verbetes
eletrônicos em casa – você cuida disso?
– Certamente que cuido. Quantos são mesmo?
– Bom, tem o da Coca-Cola na sala, o da Walmart na cozinha e
dois no meu quarto: Microsoft e Kodak. Ah, sim: Calvin Klein no
banheiro – são cinco.
– E quanto é que rende toda essa parafernália, Da Silva?
– Isso depende. Conta a média de horas mensais em que o painel
fica funcionando mas, principalmente, o grau de pessoas em circulação
naquele ambiente.
– Não entendi.

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– O que conta para os birôs, tecnicamente, é a exposição a que
estão sujeito os verbetes, você entende? Uma pessoa que tem a casa
sempre cheia e, logicamente, os painéis são mais vistos, contabiliza
uma taxa mais alta. Eu, ultimamente, desde que fiquei estropiado,
quase não tenho recebido ninguém em casa, estou esperando uma
redução drástica dos rendimentos este mês.
– Eu não ia ganhar nada: ninguém me visita.
– Sem contar que não tenho me lembrado de pôr a porcaria para
funcionar. Porque não vejo, esqueço.
– Tá certo, deixe comigo. Mas, vale a pena em termos de grana?
– Já dá pra pagar o condomínio.
– Então, vamos acionar a geringonça.
Beth e Da Silva subiram os dois lances de escada em silêncio. O
prédio parecia abandonado, tamanha era a quietude, a falta de ruídos
do lugar. Essa também poderia ser considerada uma espécie de
“conquista” da atualidade. Perturbar o sossego de um vizinho era uma
infração punida com um longo período de serviços sociais aos quais
ninguém em sã consciência iria se expor se pudesse evitar.
– Eu faço o quê com isso?
– Basta apertar o botão que liga.
Beth saiu andando pelo apartamento e acionando os painéis. Ela
ainda parecia intrigada com o sistema.
– Como é que os caras sabem que você está relatando o número
certo de visitantes e não está informando para mais?
– Cada porra dessas tem um sensor de presença que reage à id
pessoal. Ele não apenas capta que alguém esteve aqui mas sabe quem
esteve aqui, e por quanto tempo.
– Não sacaneia!

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– Falar nisso, estou com um problema. Não sei se você sabe, mas
a cada mês o depositário dos verbetes precisa ir a uma central
autorizada escolher filmes novos.
– Ah, é?
– Exato. É preciso assistir a todos os lançamentos das marcas
conveniadas e escolher uma mídia nova.
– Interessante. Assim, pelo menos, não dá pra ficar enjoado com
a repetição. Eles não se metem?
– Sim e não. Posso escolher uma entre três e cinco novidades por
mês, para cada marca, mas só dentro daqueles que me mostrarem.
Mas, na verdade, são produzidas dezenas, que sofrem uma triagem para
o seu tipo de perfil.
– Que perfil é esse?
– Quando a gente se cadastra no programa, preenche um
formulário acurado com tudo a nosso respeito: desde idade, sexo,
profissão, escolaridade, até coisas mais subjetivas, como “o que você
compraria hoje se o mundo acabasse amanhã?”.
– Estou impressionada.
– Daí, juntando tudo isso, com meu gosto para as artes e hábitos
de consumo, eles traçam meu perfil E, também, supostamente, o das
pessoas com as quais eu convivo. Para depois me oferecer somente
aqueles verbetes com mais chance de convencimento de compra –
entendeu?
– Provavelmente eles conhecem você melhor do que eu.
– Eles me conhecem melhor do que eu mesmo. Agora, tem umas
coisas engraçadas. Sabe um velhinho, que só aparece no Bar do Grinco
às sextas-feiras?
– Qual?
– Um de bigodinho, cabelo todo branco, que puxa conversa com
todo mundo.

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– Sr. Noel, lógico!
– Isso mesmo. Outro dia, estávamos batendo um papo e ele me
disse que tem gente que passou a freqüentar ainda mais a casa dele só
por causa dos verbetes.
– Eu não acredito! Mas, por quê?
– Porque ele tem perfil de oldies. Ou seja, pode escolher qualquer
peça publicitária de qualquer época. Você já imaginou a quantidade de
filmes antigos da Coca-Cola que ele pode escolher? São centenas de
milhares.
– E as antigas eram bonitas...
– Ele está para mudar de categoria. Parece que ofereceram a ele
uma licença de exposição para cartões de crédito, a que mais paga.
– É...
– O velho fatura tanto que nem liga para a aposentadoria. Deixa
juntar e só pega o crédito de três em três meses.
– Esse controle todo me assusta.
– Bobagem. É só uma maneira de ganhar algum, só isso. E tem
coisas em que eu sou conservador. Agora, chega essa bunda pra cá.
– Eles não têm como saber se a gente está trepando não, tem?
– Não faço a menor idéia, querida.
– Pois é. Vou precisar ir lá de novo em duas semanas e acho que
não vai pegar bem chegar cego – como é que eu vou ver os filmes?
– É só você que pode fazer isso?
– Somente eu. O contrato é absolutamente particular.
– Até lá você já vai estar inteirinho de novo.
– É isso que eu gosto em você, belezura. Você tem classe, é
tesuda e sabe como não desanimar um homem.
Da Silva foi oferecendo um rastro de beijos pelo caminho da sala
até o quarto que Beth, evidentemente, apreciou um a um e seguiu até a
cama. Ela tinha pensado que, com toda aquela conversa sobre

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publicidade, iria estar dispersa, distraída com os painéis, mas não. Logo
o quarto se encheu de gemidos e sussurros, de arrepios e até de alguns
contorcionismos, de forma que ficaram no ar as traquitanas em
lançamento pelas gigantes da informática e da fotografia pós-digital.

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Capítulo XIII

Só de pensar de ter que voltar à clínica de olhos deixava Da Silva


de mau humor. Mas, caso fosse habilidoso, conseguiria chegar num
horário propício a sair com Judith, leva-la para tomar um café, por
exemplo. O problema é que nunca sabia as horas. Volta e meia,
abordava as pessoas, qualquer um, com uma pergunta que era quase
um safanão: “que horas são?”. Assim, à queima-roupa, sem mais
aquela, sem nem um bom-dia amortecendo o choque, sem nem um por-
favor que lhe denotasse resquícios de bons modos, nada. Obrigado,
então, nem pensar. Era por isso que nem sempre obtinha alguma
resposta. Era comum que o interlocutor (e se pode chamar de
interlocutor àlguém que foge ao diálogo?) simplesmente desse as costas
e se afastasse depressa à vista da venda-guia, como se diante de algum
tipo de doença contagiosa. Nesses casos, Da Silva recorria à sua
interminável lista de palavrões, alguns conhecidos, outros autorais, e
até herméticos, como o “seu filho de uma porca fodida até as tripas” ou
o “vá se sentar num cabinho” (?), para citar alguns.
Da Silva não podia ver a cara de espanto, temor ou repulsa das
pessoas, mas certamente as captava. E se ressentia disso. E, às vezes,
até berrava. “Seus cagões estropiados, vão se f... Eu vou sair dessa e,
quando sair, vou pegar um por um, e esfregar sua cara no relógio, até
vocês me dizerem as horas, seus fodidos.” Claro que sua fúria só fazia
piorar a situação. Isso quando não se criava uma confusão de verdade.
Uma ou duas vezes algum comerciante, temendo encrenca na calçada
em frente ao seu estabelecimento, chegou a acionar algum guarda das
redondezas, mas Da Silva e seu mau gênio eram conhecidos dentro da
categoria.

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Geralmente, nesses casos, Da Silva saía caminhando rápido, até
tomar coragem de perguntar as horas novamente. “Por que você
simplesmente não compra um relógio para cegos?”, perguntou Beth, um
dia. “Porque não vou precisar dele, só por isso, eu vou tirar essa coisa
da cara daqui a alguns dias.” Da Silva refez mentalmente o percurso
percorrido desde que saíra de casa e concluiu que estava na 13 com
Roosevelt. Na próxima esquina ficava o vendedor de comida de rua,
esse não criaria problema em socializar o horário que Nosso Senhor
dispusera graciosamente a todos.
– Pode me dizer as horas?
– São 11 e 30.
– Maravilhoso. Boa vontade e boa hora, chegarei pouco antes da
pausa do almoço – saiu o detetive, praticamente falando sozinho.
Depois de um trecho relativamente curto de metrô, chegava à clínica.
– Preciso falar com a enfermeira Judith, por favor. (Da Silva
sempre se lembrava das palavrinhas mágicas quando era conveniente.)
– Ela trabalha com o Dr. Max, consultório 3. Siga em frente e
dobre...
– ... à direita no fim do corredor – obrigado, eu tenho vindo
sempre aqui ultimamente, como pode ver.
O lugarzinho horroroso lhe causava até um certo arrepio na
espinha. “Vai ver que são eles mesmos que estão arrancando os olhos
da gente para ter mais serviço. Como quem paga são os planos de
saúde e, estes, por sua vez, são cobertos pelas seguradoras,
aparentemente ninguém perde nesse negócio. Os olhos roubados são
um filé, claro, mas num lucro de segundo momento. Digamos que
fiquem danificados durante a remoção, por exemplo? Não se sabe
porque nenhum jornalista, ainda, entrevistou os bandidos. É, todo
mundo ganha, menos a gente, ‘os fornecedores’.”
– Enfermeira Judith, por favor.

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Seguiu-se um silêncio junto à mesa onde estava.
– Enfermeira Judith.
– Eu ouvi da primeira vez, não sou surda.
“Oh, não! Era o sargentão do outro dia...”
– Poderia chamar sua colega?
– Só se for por telefone, federal. Ela está de férias.
– De férias?
– Isso mesmo, você tem problema de audição?
– Mas por que não me disseram logo, lá na recepção? – continuou
Da Silva, mais refletindo mentalmente do que propriamente dirigindo
uma pergunta à enfermeira.
– Volte lá e pergunte a eles. Você tem consulta?
– Não, não tenho consulta.
– Então, com licença, porque tenho trabalho a fazer.
Se antes o detetive precisava falar com Judith, agora ele “queria”.
Decidiu tentar um contato junto ao RH. Inventou uma história pelo
caminho, depois de apurar onde ficava a sala na recepção da entrada.
– Sou paciente do Dr. Max, como pode ver, e a enfermeira Judith
me disse que havia um problema qualquer com a cobertura do meu
plano. Enquanto não for esclarecido, eles não vão começar a fazer
minhas próteses. Preciso falar com ela o mais rápido possível.
– Senhor, o que está pedindo foge totalmente às normas de nossa
administração. Nós não podemos passar nenhum tipo de contato
particular de nossos funcionários.
– Então, o nome. Diga apenas o nome completo da enfermeira
Judith, que eu me encarrego do resto. Acredito que não haja nenhuma
restrição à divulgação meramente do nome, não é mesmo?
– Sem problema, senhor. Um momento que vou verificar nos
arquivos. Aqui está: Judith Mancini.
– Mancini, só isso?

59
– Só.
– Muito obrigado, Senhor.?.
– Mancini.
– Mancini? Que nome mais comum. Por um acaso o senhor não
seria irmão da enfermeira ou outro parente próximo?
– Marido.
– Ah, sim, marido, por que não pensei nisso? Até mais ver.
Essa foi boa: marido e mulher trabalhando no mesmo lugar. Da
Silva, você está mesmo numa “maré de sorte”. De má sorte. Agora
tinha mais um problema nas mãos. Encontrar Judith o mais rápido
possível e combinar uma história antes que ela falasse com o marido à
noite. E se ele telefonasse antes? Tinha que correr esse risco. E também
rezar para que Judith topasse sustentar a história dele, “em nome do
bem-estar da população da cidade. Em nome de colocarmos esses
animais dentro da jaula, que é o lugar deles.” Isso, Da Silva, vá
treinando a retórica, porque você vai precisar dela. E bastante...
Se o marido está trabalhando, é sinal de que Judith não deve ter
viajado e está na cidade. Pelo menos, uma coisa a favor.

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Capítulo XIV

O medo de grampo no telefone e ter que encontrar Fernandez


pessoalmente toda vez que precisava de uma informação já estava
começando a dar nos nervos de Da Silva. Mas foi rápido e não era nem
1 da tarde e já estava de posse do endereço da belezoca. Por prudência
(ou por constrangimento mesmo, diante do marido) Da Silva combinou
encontrar com Judith num café que ficava na esquina da rua em que ela
morava.
– Obrigado por ter vindo.
– Não há de quê, detetive. Em que posso ajudá-lo?
– Quero saber se o Dr. Max ou o hospital tem alguma lista com os
dados das vítimas da gangue.
– Que tipo de dados?
– Todos os dados possíveis: nome e endereço completo, data do
atendimento, as próteses propriamente ditas, tudo que for possível
levantar.
– O senhor pretende interrogar essas pessoas?
– Interrogar não é bem o termo. Fui afastado do caso e estou
fazendo uma investigação paralela.
– Detetive, não sei se compreende o que está me pedindo. Nosso
hospital é o hospital de referência para estes atendimentos e só
podemos fornecer informação estritamente para diligências oficiais.
– Compreendo perfeitamente, enfermeira. Mas eu não posso
deixar minha única chance de recuperação real ao encargo daqueles
tontos que jamais resolveram um caso.
– Posso imaginar sua angústia, detetive, mas eu estaria correndo
riscos. Não pretendo mentir para meu marido e não me peça para
facilitar nenhum tipo de tráfico de influências para o senhor. Está fora

61
de cogitação. Além disso, com as próteses o senhor vai voltar a
enxergar normalmente. Talvez até melhor.
– Esta hipótese está simplesmente fora de cogitação. Não dou a
mínima para suas instruções administrativas e não estou nem um pouco
a fim de me transformar num ciborgue. Não vou admitir que façam isso
impunemente com pessoas de bem como eu, ou como a Senhorita
Clarice Krapp.
– Ela também foi atacada?
– Sim, mas as investigações correm em sigilo.
– Pobre garota. Ela tem uns olhos realmente lindos.
– Tinha, Judith, tinha. Então? Vai ou não me ajudar? Uma garota
com uma voz tão bonita deve ter um grande coração.
– Obrigada, Sr. Da Silva, é muito gentil da sua parte. Vamos ver...
Está bem, vou ajudá-lo. Mas preciso contar a verdade a meu marido.
Como sabe, estou de férias e despertaria suspeitas se aparecesse assim,
de repente, na clínica.
– Podemos confiar nele?
– Totalmente. Falo com ele esta noite e lhe telefono amanhã de
manhã.
– Não, não, telefonar não é seguro, pode ser que minhas ligações
estejam sendo rastreadas. Vou procurar seu marido novamente
amanhã, por volta do mesmo horário em que nos vimos hoje. Diga a ele
que esteja com uma cópia desses arquivos.
– Está certo. Tenho certeza de que ele vai colaborar. Entenda, eu
não poderia fazer diferente. Ainda que não estivesse de férias, nós
sempre contamos tudo um ao outro.
– Sujeito de sorte, esse Mancini. Você é uma jóia preciosa. Não
acredito que, nos dias de hoje, ainda existam mulheres assim.
– O que é isso, detetive! Tenho certeza de que sua namorada faria
o mesmo. O senhor tem uma namorada, não tem?

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Por um segundo Da Silva pensou em mentir. Ele sempre imaginou
que Judith fosse uma obra de arte – caso a sua plástica correspondesse
à voz, mas... – e, quem sabe, devesse guardar algumas cartas na
manga.
– Tenho sim, acho que pode-se dizer que sim.
Se ela era tão cúmplice do marido, de que adiantaria?
– Essa sua profissão até que exerce um certo fascínio sobre as
mulheres, não é verdade?
“Êpa! Parece que agora ela já está me dando um certo mole. Será
que ainda dá pra...”
– Desejo-lhe muito sucesso, detetive, mas tenho que ir. Talvez o
senhor seja, afinal, a pessoa certa para encontrar esses criminosos. Há
situações na vida em que tudo que a gente precisa é de uma motivação
pessoal.
– Espero que esteja certa.
– Adeus.
Depois de estender a mão para Judith, Da Silva sentou-se de novo
e ficou mais um tempo pensando sozinho.
“Cara, você não existe. Tá fodido e, em vez de se concentrar no
trabalho, dispersa toda hora por causa de alguma mulher! Você não tem
tempo pra isso. Você tem que correr.”
E agora? Deveria haver centenas de nomes de vítimas. Precisava
de ajuda. Mas, quem? Não podia confiar em ninguém – ou quase. E se o
tal Tenente Muller entrasse no circuito? Recém-chegado, talvez não
tivesse tido tempo para ficar de rabo preso com ninguém.
Mulheres. Tinha que ligar para a garota do cachorro. Ia ser até
bom, pra despistar algum grampo. Iam achar que o Detetive Da Silva
estava se lixando pro acontecido e iam relaxar na vigilância. Isso
mesmo. Ligaria para a garota assim que chegasse em casa. Afinal, fazia

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parte do plano. É, não tinha nada a ver com traição à Beth. Era apenas
um recurso tático, nada mais.
Definitivamente, não se podia esperar coerência da parte de Da
Silva. E muito menos constância.

64
Capítulo XV

Da Silva resolveu criar um clima para fazer a ligação. Tomou um


bom banho, entrou num roupão limpinho e cheiroso e colocou música
ambiente. Instrumental. Clássica. David Bowie in All Saints.
– Alô!
– Alô!
Lá estava ela.
– Aqui é Da Silva. Você me deu o seu cartão.
– Sim, claro, como vai? Eu estava mesmo esperando pela sua
ligação para hoje.
– Estava?
– Oh, sim. Flush esteve a tarde inteira agoniado, então imaginei
que ele estivesse, vamos dizer assim, “farejando algo”.
– Um cachorro sensitivo!
– Oh, sim, é bastante sofisticado. O sistema é bem complexo.
Qualquer dia posso explicar para você, pessoalmente.
– Seu nome é mesmo...
– Anika.
– Você parece saber bastante sobre essa técnica dos pets
sensores, não é verdade?
– Oh, sim, mas é só porque eu pretendo me especializar nisso.
Leio tudo o que é publicado a respeito há muitos anos.
– Acredito que seja um negócio lucrativo.
– Você diz, financeiramente? Tenho certeza que sim. Mas o que
me entusiasma mesmo é saber que é a maneira mais segura já
desenvolvida pelo homem para encontrar sua cara metade. E uma
pessoa feliz na sua vida amorosa tem, obviamente, maiores chances de

65
sucesso na sua vida profissional. Ela costuma ser mais tranqüila, mais
equilibrada, mais energética, está de bem com a vida.
– Você acredita mesmo nisso, não?
– Claro. É absolutamente científico.
– E o que aconteceu com o velho truque do “amor à primeira
vista”?
– Oh, ele continua existindo. Só que, no caso, digamos que seja
mais um “faro ao primeiro encontro” e que o dos cachorros seja bem
superior ao nosso.
– Mais um pouco vai acabar me convencendo.
– Me desculpe, é que eu também adoro os animais. E quando
começo a falar... Mas, me diga, como vão as coisas? Você me pareceu
estar com um problema meio sério naquele dia.
– Tem razão, é mesmo sério. Mas já está tudo encaminhado.
– Você deve colocar próteses oculares, então?
- É o que tudo indica.
– Não vale a pena se exasperar por isso. Hoje em dia, a tecnologia
resolve tudo – ou quase tudo.
– Olha que você deve ter razão.
– Vamos nos ver? Digo, encontrar? Ou você prefere esperar até
que já esteja enxergando de novo? Afinal, você não me viu ainda.
– De maneira nenhuma. Que tal amanhã, às 17h?
– Claro, onde?
– Você escolhe.
– Vamos ao parque onde o Flush descobriu você, o que acha?
– Perfeito. Me diga, Anika. Quantos anos você tem mesmo?
Dezoito, você disse...
– Isso. Na verdade, só completo daqui a 10 dias.
– Mas nós não vamos fazer nada de impróprio até lá, não é
mesmo?

66
– Fale por você. Flush e eu não nos comprometemos a nada,
hahaha.
– Boa piada. Então, até lá.
– Grande beijo.
Quer dizer então que a bonequinha... Anika... era maliciosa. Meio
tecnófila demais para o gosto dele mas, que diabos!, coisa de
adolescente. Bem que poderia ter pedido uma descrição.
Da Silva começou a planejar o dia seguinte. “Logo cedo, vou
procurar o Fernandez e perguntar o que ele sabe sobre o Tenente
Müller. Depois, vou pegar a lista com o Mancini. E, mais tarde, vamos
fazer festa no cachorrinho. Vai ser um dia cheio. Nada mal para um
semi-inválido.”

67
Capítulo XVI

Planejar não quer dizer quer você vai fazer. Planejar não significa
coisa alguma! Foi o que Da Silva descobriu, na manhã seguinte. A coisa
toda começou a desandar por culpa dele mesmo. Culpa. Não gostava
dessa palavra. Era pesada demais. Digamos que Da Silva preferia dizer
que tinha sido por sua “causa” que todo o esquema saiu de controle.
Os motivos – ou melhor, o motivo – tinha começado ainda na
véspera, logo após o seu telefonema com Annika. Embora estivesse
conseguindo pequenas (embora significativas) vitórias na busca por
reaver seus olhos, algo havia mudado, vamos dizer, de dois dias para
cá. A mulherada estava na área, ele conseguia, mal ou bem, sobreviver
e agir embora cego, mas... dentro de si, sentia que algo se esvaía. Em
seu lugar, crescia um sentimento escuro, sombrio, gelado. Parece que,
com o passar das horas, sua esperança desaparecia e surgia uma certa
revolta em seu lugar.
Mas aquele não era o feitio de Da Silva. Embora de caráter
duvidoso – mulherengo, desbocado e encrenqueiro – Da Silva era o tipo
de pecador com o qual simpatizam os homens santos. Porque, apesar
de seus defeitos infinitos, ele possuía uma invencível força de vontade,
muito senso de justiça e solidariedade o suficiente para permitir que
desempenhasse seu trabalho na polícia sem se corromper.
Seu espírito estava fraco. A pressão do tempo, pouco a pouco,
criava no detetive uma disposição de quem está alquebrado e cansado.
Por isso bebeu. O Detetive Da Silva bebeu um litro de whisky em menos
de três horas, e é claro que precisou arcar com as conseqüências nos
dias que se seguiram.
Para começar, não conseguiu fazer contato com Fernandez e saber
sobre o Tenente Muller, como era sua intenção. O que não era tão

68
grave, uma vez que não haviam combinado nada. Mas daí a perder a
hora para pegar a lista com o marido de Judith, já era insensato. O
problema é que, quando depois de muito custo, e com pontadas
dolorosíssimas na cabeça, conseguiu abrir os olhos, ligou o rádio e
descobriu que já era quase meio-dia. Mesmo que conseguisse se
levantar, de nada adiantaria correr para a clínica, porque quando
chegasse provavelmente Mancini teria saído para o almoço.
– Maldição!
Agora, aquela agonia da alma tomava conta de todo o seu ser. O
corpo incômodo, a cegueira e a “culpa”, por menos que o detetive
admitisse a palavra, se instalavam para ficar. Deitado em sua cama, Da
Silva só queria permanecer ali, sentindo pena de si mesmo. E pensava:
“que se dane a cegueira! Que se danem as próteses! Que venham as
próteses, porque não vou conseguir mesmo! Não tem jeito, a saída é
aceitar toda esta merda de mundo e a maneira que os outros
escolheram para solucionar o que está aí. Não tenho força mais!”
– Não tenho, não tenho!
Com medo da reação dos vizinhos, Da Silva parou logo de gritar.
Tinha que reconhecer que estava frágil, precisando de ajuda, não podia
contar só consigo mesmo. Mas nunca tinha sido o tipo de cara que vive
em rodas de amigos, ou com a casa cheia, sempre preferira fazer
apenas o que tivesse vontade, sem se preocupar com o trato social.
Agora, que estava ficando velho e privado de toda sua capacidade física,
começava a questionar seu estilo de vida.
– Quem vai se importar comigo? Quem vai querer me ajudar?
Diante desse pensamento, a questão dos seus olhos se tornava
menor. O medo de ficar só assustava muito mais do que o medo de ficar
definitivamente cego.
Da Silva teria chorado se fosse possível. Em vez disso, soltou uns
ganidos agudos, baixinho, enquanto se debatia na cama revirada.

69
– Não foi possível eu vir mais cedo, tudo bem?
– Por mim não há problema, detetive. Aqui está o que pediu.
– Muito obrigado. Vou copiar o arquivo e depois lhe devolvo.
– Não há pressa. Não seria seguro simplesmente enviar porque
toda correspondência eletrônica por aqui é rastreada, como o senhor
pode imaginar.
– Entendo.
– Desejamos muito boa sorte.
– Eu agradeço, camarada.
– Precisa de mais alguma coisa? O senhor me parece meio pálido.
– Não é nada, só estou um pouco sonolento, só isso.
Da Silva deu as costas e saiu da forma mais discreta que pôde. Foi
direto à chefatura e passou uma ordem simples a Fernandez.
– Estude esta listagem e me encontre às 22h no Bar do Gringo
para me dizer o que sabe sobre o Tenente Müller. Agora, preciso ir.
Tenho uma garota me esperando.

70
Capítulo XVII

Da Silva estava descendo os primeiros degraus da estação do


metrô para ir encontrar Annika quando percebeu passos de alguém
correndo logo atrás dele.
– Da Silva, espere um pouco, houve uma reviravolta no caso.
Era Fernandez, que trazia novidades.
– Do que é que você está falando, homem?
– Aconteceu.
– Quê que aconteceu?
Fernandez tinha corrido tanto que mal conseguia falar. Respirou
fundo e disparou.
– O primeiro ataque a uma criança. Aconteceu. A Gangue dos
Olhos pegou um menino de quatro anos, não faz nem meia hora.
– Mas o que é isso, o que é isso?
– Não grite, Da Silva, temos que manter o caso em segredo para
não provocar pânico.
– Onde foi que aconteceu?
– Na Rua Roosevelt, na saída do shopping.
– Eu não acredito nisso, se eu pego esses filhos da puta! Quem
estava com a criança?
– Ele estava com o pai. Parece que o cara é professor, alguma
coisa assim.
– Para onde levaram?
– Para a sua clínica de referência, onde mais?
– Vamos lá agora mesmo, temos que chegar antes que os babacas
que cuidam oficialmente do caso dêem as caras.

***

71
O pai de Lukas estava em estado de choque. Ou, então, a dose de
tranqüilizantes que haviam aplicado nele tinha sido daquelas de
derrubar cavalo. O sujeito, magrelo e cabeçudo, só abandonou o olhar
distante por um momento, quando enterrou o rosto nas mãos e
começou a chorar convulsamente, com fortes estremecimentos
corporais.
– O que ele está fazendo, não consigo ver.
– ‘Tá chorando igual um louco.
– Ele não diz nada?
– Não consegue contar nada, não sabemos como aconteceu.
– Que horas são?
– Cinco e vinte.
– Ah, talvez eu ainda consiga encontrar a menina...
– Que menina, cara? Isso lá é hora de...
– Cala a boca e vê se descobre alguma coisa por aqui. E vê se não
se esquece da outra tarefa que eu tinha lhe dado, quero isso para hoje.
– Per-fei-ta-men-te.
Da Silva achou seu caminho até a rua e, dali, ao metrô e ao
parque. Chegou com 40 minutos de atraso e foi localizado rapidamente
por um cachorro apaixonado. Sua dona não parecia menos efusiva.
– Desculpe o atraso, mas houve um contratempo que eu não pude
evitar.
– Não tem problema, eu já estava contando com isso.
– Estava, por quê? Você por um acaso também tem poderes
paranormais? – replicou Da Silva, num tom algo desagradavelmente
sadio. No mesmo momento que falou, já se arrependia da agressividade
contra o alvo errado. Mas a garota parecia não fazer o menor caso
disso.
– Me desculpe, estou um pouco nervoso e esbaforido.

72
– Problema nenhum. Vamos nos sentar? Ou você prefere ir beber
alguma coisa? Parece cansado.
A todas essas, Flush esperava pacientemente sentado, olhando
para um e para outro, à medida que iam falando. Passado o impacto da
descoberta daquela “caça perfeita”, seu instinto de farejador havia se
aplacado e, agora, ele conservava a mais tranqüilizadora calma na
presença de Da Silva, o que só fazia aumentar as certezas de Annika.
– Venha, conheço uma lanchonete logo ali na esquina. Tomamos
um suco? Você está com cara de quem está precisando...
– Lanchonete? Pensando bem, é um local mais apropriado para
uma conversa discreta.
– Não me diga que é hoje que vai pedir a minha mão? – gracejou
a garota, imediatamente caindo de rir da própria absurdidade. Não
restou mais nada a Da Silva a não ser rir também. Foi bom para aliviar
a tensão.
– Tudo vai depender de você dizer as frases certas...
– Oh, como não pensei nisso? O problema é que Flush não vai
poder me soprar nada.
Logo estavam diante de dois grandes copos cheinhos de puro suco
de laranja, sem gelo e sem açúcar.
– Fale-me de você.
– Não tenho muito o que contar. Acho que ainda não vivi o
suficiente para ter histórias. Você sim é que deve ter tramas fantásticas
e aventuras de montão. Minha vida é um tédio.
– Não posso acreditar nisso. Se o seu pai tem mesmo a grana que
eu imagino ter, você já deve ter feito muita coisa boa na vida. Me
desculpe, não quis parecer interesseiro.
– Não pareceu.
– Eu quero saber de você.

73
– Bem, não gosto muito de falar a meu respeito. Vamos apenas ir
nos conhecendo aos pouquinhos, você deve ser observador e vai pegar
tudo muito depressa. Eu sou bem descomplicada, para falar a verdade.
– E fisicamente?
– Digamos que eu seja “bonitinha”. Em breve você vai estar
enxergando de novo e tirar suas próprias conclusões, o que me diz?
– Pra mim ‘tá ótimo!
– Além do mais, Flush me acha linda – não é Flush? – perguntou
ao bichinho, que reagiu de imediato, abanando contente o cotoco de
rabo daquele jeito que só os cachorros conseguem fazer. Para alguém
que entendesse a linguagem corporal dos caninos, aquilo seria um
contundente sim.
E foi aí que veio a Da Silva uma espécie de insight, coisa que há
muito tempo não acontecia. Talvez porque, a despeito dos maus
acontecimentos das últimas horas, na companhia da garota ele se
sentisse tão bem e relaxado que entrou em sintonia com alguma força
positiva do universo e fez a Annika, num repente, a pergunta que iria
causar toda uma reviravolta no caso da Gangue dos Olhos, embora ele
ainda não soubesse disso.
– Você conhece alguém que tenha um colar de olho?

74
Capítulo XVIII

– Da Silva, fiz uma descoberta importante para as nossas


investigações. Existe uma espécie de associação de amparo psicológico
às vítimas da Gangue dos Olhos que funciona, secretamente, há mais de
cinco décadas.
– Não sacaneia! E como é que eu nunca ouvi falar dessa gente
antes?
– Como disse, eles agem em silêncio e bem discretamente, como
o AA. Dão apoio terapêutico inclusive às famílias das vítimas.
– E eu aqui me fudendo sozinho, por que é que o Dr. Max não me
botou em contato com essa gente?
– Porque ele não pode. A associação é secreta. São eles que
fazem contato com você.
– E o que estão esperando?
– Parece que eles agem de dentro da fábrica de próteses oculares,
onde estão infiltrados faz tempo. Não deixa de ser estratégico. Para
evitar que algum aventureiro – tipo jornalista ou policial – tente se fazer
passar por uma vítima, eles aguardam até a solicitação oficial da
encomenda desses olhos, porque sabem que o controle das seguradoras
e dos planos de saúde é draconiano.
– Ah, sim.
– Mas não se preocupe. Você já está para ser convidado, nas
próximas horas, apesar de ser policial. No seu caso, demoraram mais
um pouco, suspeitando de algum estratagema.
– E por que vão me admitir, então?
Fernandez titubeou um pouco antes de responder.

75
– Desculpe ter que lhe dizer isso, velho, mas eles sabem de fonte
segura que sua carreira como policial está encerrada. Você vai ser
aposentado.
– Apesar das próteses?
– Apesar das próteses.
– Eu não acredito nisso...
Fernandez esperou que Da Silva se refizesse do baque e então
continuou.
– Nós até qie tivemos sorte. Uma aluna da minha mulher tem um
primo que faz parte da associação e comentou com ela. Marie me falou
quando me viu examinando a lista. Vão procurar você ainda hoje.
– Onde?
– Na sua casa.
– Então estou indo pra lá.
– E tem mais. Você vai chegar a tempo de participar de uma
reunião de emergência. O caso do Lukas já chegou aos ouvidos deles e
devem estar aí talvez dispostos a rever algumas das diretrizes internas.
Não poderia haver melhor hora para você se aproximar.
– Bem pensado, camarada. Isso quase me consola desta ameaça
de “aposentadoria precoce”. Vou para casa aguardar minha convocação.
– Imaginei que iria. Bom, isso resolve a questão de ter que
estudar a lista das vítimas. Vou procurar me concentrar na outra, a das
empresas que compram o aldeído.
– Está certo.
No jeito meio constrangido, entre emocionado e agradecido de Da
Silva Fernandez imaginou estar identificando algum traço de mais
suavidade no colega. Seria o sofrimento, afinal?
– Muito obrigado, cara.
– Nem pense em me agradecer, Da Silva. Você faria a mesma
coisa se estivesse no meu lugar.

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– Isso depende.
– Depende de quê?
– Da minha foda no momento. Vê lá se eu ia perder tempo com
um cego enjoado se tivesse uma boa foda na parada, ia estar muito
ocupado.
– Pronto, voltou ao normal!
– O que disse?
– Nada, nada, não disse nada. Nos vemos amanhã.
– Aí eu lhe conto o que tiver descoberto com o bando de
ceguinhos.
– Pois fique sabendo que o único ceguinho que vai haver por lá é
você mesmo. Todos os outros usam prótese.
– Realmente. Isso vai me deixar em desvantagem.
– Não se eu conheço você.
– Ah, sim: amanhã me lembre de lhe falar, também, sobre uma
outra novidade.
– Que novidade?
– Vou me entrevistar com uma dona de colar.
– Está brincando!
– Vou mesmo. E tudo indica que é um dos legítimos. Mas, uma
coisa de cada vez...
***

Conforme Fernandez havia imaginado, por volta das oito da noite


Da Silva recebeu a visita de um simpático casal. Depois de rápidas
apresentações – primeiro porque Da Silva não era de perder tempo e
segundo porque já sabia, a priori, o que queriam tratar – seguiram os
três para a reunião marcada para as nove, que acontecia sempre num
local diferente e definido com poucas horas de antecedência.
– Quer dizer que vocês são casados.

77
– Dá pra perceber?
– Oh, sim, claro que dá. Um completa o que o outro estava
falando, é bem típico.
– Todo mundo nos diz isso.
Laís dirigia a caminhonete, enquanto Johnny, no banco do carona,
seguia virado para trás, para conversar com o detetive.
– Juntos há muito tempo?
– Cinco para seis anos.
– Filhos?
– Um casal.
– Quando perderam os olhos?
– Bem, Laís era garota ainda, tinha 15 para 16 anos. Comigo foi
mais tarde, eu já estava com 28.
– E olha que ironia: eu era da equipe profissional da Federação de
Arco e Flecha.
– Mas que coisa!
– É. Eles dizem que as próteses substituem com vantagem os
olhos originais, mas nem sempre isso é verdade. No meu caso, pelo
menos, não foi. Eu até tentei voltar à ativa, mas não deu mais para
mim.
– Pode ser questão de trauma, amor.
– É, na época me disseram isso, sim.
– Pelo menos esteticamente ficou igual?
– Ah, isso sim. Não se nota diferença. Eu não conheci a Laís antes
do ataque, mas pelas fotos antigas, é a mesma coisa.
– Ficou igualzinho sim. Dei sorte porque tinha olhos negros, então
é praticamente impossível perceber qualquer diferença nas próteses.
– Olhos negros? São os mais raros e mais caros no mercado.

78
– Ouvi falar. Sabe que tinha até umas amigas minhas, Johnny, na
época, que ficaram me enchendo o saco, dizendo que aquela era a
minha oportunidade de ter olhos azuis?
– Não acredito!
– Sério. Elas diziam: “ah, você diz que está usando lente de
contato, ninguém vai ficar sabendo!” Maluquice.
– É, mas, oficialmente, você ia ter que mudar todos os seus
documentos, só isso é que ia dar um pouco de trabalho.
– Pois eu acho você mais bonita com olhos negros.
– Vocês se conheceram na associação?
– Foi.
– Era era casado e a primeira coisa que minha mulher fez quando
soube do ataque foi ir embora para a casa da mãe.
– Que filha da puta! Desculpe.
– Tudo bem, detetive, ela era isso mesmo. Mas foi até bom. Senão
eu não teria conhecido a Laís e, bem, não teríamos a nossa familiazinha.
– É... tudo tem seu lado bom – disse Da Silva, sem mostrar muita
convicção.
– Chegamos.
Laís estacionou o carro e os três entraram numa espécie de loft,
nos fundos de um armazém.
– Você vai fazer sensação lá em cima.
– Não assuste ele, Johnny.
– Por quê? Eles sabem quem eu sou?
– Claro!
– Eu sempre soube que chegaria ao estrelato.

79
Capítulo XIX

Aquela era a primeira vez que Da Silva se “confundia” com as


chamadas vítimas e, até ali, não gostava nada daquela sensação.
Sempre tão seguro de si, intempestivo, estava agora numa posição de
absoluta equiparação, o que lhe incomodava o ego. Da Silva nunca
aceitou estar em pé de igualdade com quem quer que fosse. Em
qualquer roda, em qualquer cena, tinha que se sentir destacado, não
importando se admirado ou odiado. Tanto fazia. “Virei um ceguinho”,
pensava. “Estou ceguinho.” “Hoje, aqui, eu sou O ceguinho – ou será
que tem mais alguém sem prótese na sala?”
O som que lhe chegava aos ouvidos era de uma pequena multidão
que falava ao mesmo tempo. Cumprimentos, homens e mulheres,
deveria haver umas 80 pessoas reunidas, se os seus ouvidos não o
estavam enganando.
– Tem mais algum cego aqui hoje? – perguntou, quase à queima-
roupa, para quem quisesse responder. Foi Laís quem respondeu, algo
titubeante, por perceber o desconforto do detetive.
– Na verdade, não.
– Ah, que ótimo! Agora deve estar todo mundo olhando para a
minha cara!
Da Silva berrou tão alto que foi exatamente esse o efeito que ele
conseguiu. Curiosamente, pela primeira vez na vida ele não queria
chamar a atenção. Mas era tarde e sua fragilidade temporária estava ali,
exposta à comiseração. Pelo menos era o que pensava... Como se,
mesmo em silêncio, a venda-guia na sua cara já não fosse suficiente
para indicar sua condição.
– Ah, mas que merda.
– Vamos nos sentar – sugeriu Johnny.

80
Da Silva pensou em perguntar pelo garoto recém-atacado, e
também pela modelo Krapp, mas depois percebeu que poderia estar
falando demais. É, não tinha jeito: ele ia ser o “indefeso” da noite, o
lado mais fraco, o que não ia entender nada. Resolveu apelar para outra
tática.
– A família do menino vem?
– Que menino? – perguntou Laís, assustada.
– Calma, meu amor. Não lhe contei mais cedo para você não se
preocupar à toa.
– Pegaram um moleque de quatro anos – disparou Da Silva, com
um visível ressentimento na voz. Já que se sentia mal, pelo menos que
tivesse companhia.
– Mas, e os nossos filhos?
– Calma, Laís. As crianças têm olhos negros – explicou Johnny,
voltando-se para Da Silva.
– Que ótimo! – respondeu, sem disfarçar a ironia.
– Vamos embora daqui. Vamos embora da cidade.
– Tudo bem, querida, já estou cuidando disso.
– Ai, os nossos amigos, a nossa casa.
Embora a opressão no peito fosse forte, Laís não derrubou uma
lágrima, já que os receptores de próteses oculares perdiam o volume do
canal lacrimal. A umidade dava, no máximo, para fazer a lubrificação
mínima. Colírios eram um bom suporte nos pacientes mais refratários.
– Bem, como todos sabem temos um fator novo na nossa triste
sina. Ocorreu o primeiro ataque a uma criança. Não vai haver
representante da família aqui hoje mas a comissão de defesa achou
importante trazer esse assunto à discussão imediata. A pergunta é: se
queremos continuar oprimidos, inferiorizados, passivos diante de nossa
condição ou se é chegada a hora de mostrar nossa cara e admitir para a
sociedade, para a imprensa e para o mundo que, sim, existe uma

81
Gangue dos Olhos que nos rouba e nos mutila e que não se pode mais
negar o estado de ameaça pública.
A voz que chegava aos ouvidos de Da Silva era grave. Tinha uma
dicção de locutor profissional. Ele não podia ver, mas ela partia de um
sujeito baixinho e careca. Sua barba era preta e ele praticamente não
tinha pescoço. Estava na faixa dos 50 anos e seus olhos eram bastante
oblíquos, o que lhe dava um ar de personagem de desenho animado,
em conjunto com a arcada de dentes absolutamente idênticos.
Um choque curto em que ninguém se pronunciou foi seguido de
um grande burburinho, mas logo se dissipou. O orador deu continuidade
à sua fala.
- Todos aqui temos filhos, sobrinhos ou netos e sabemos que as
crianças estão ainda mais expostas como vítimas potenciais.
“Todos não. Eu não tenho”, pensou Da Silva consigo mesmo, sem
sentir o que fosse.
- Precisamos votar. Vamos distribuir cédulas e quem estiver
presente escolhe sim ou não, ganha a maioria simples. Uma comissão
de voluntários vai se reunir para combinar uma estratégia, em caso de o
sim vencer. Lembro a todos que faz uma eternidade que estamos
praticamente na clandestinidade, isolados com nossos problemas, sem
que se mova uma palha para, pelo menos, punir os culpados pelo nosso
infortúnio. A polícia – e aí teve que interromper por um momento a fala,
já que um murmúrio coletivo se levantou – a polícia nada faz para
colocar essa Gangue atrás das grades.
“Agora gostei”, pensou Da Silva, retornando de seus
pensamentos. Até então, ele estava absorto, tentando imaginar como
seria a cara daquelas pessoas, como seriam seus olhos. W mais: se ele
notaria em seu semblante alguma diferença dos ditos “normais” caso
tivesse aparecido naquela noite desavisadamente. Mas não poderia, é
claro. Não com as limitações de sua venda-guia.

82
Não houve discussão, ponderações, ninguém disse mais nada e,
nos minutos seguintes, a audiência se ocupou com a votação.
Contabilizados os votos, o mesmo homem anunciou ao público.
- Dezessete votos contra, 75 a favor. A assembléia se decidiu por
divulgar nossa existência e cobrar soluções inadiáveis das autoridades.
Os voluntários à comissão por favor deixem seu nome nessa lista. Serão
escolhidas cinco pessoas apenas. Muito obrigado.
Da Silva ouviu que as pessoas se levantavam e começavam a
deixar o salão.
- Detetive: o senhor acredita que pode contribuir de alguma forma
para nossas próximas ações? Quero dizer, com algum contato na polícia,
ou algo que venha de sua experiência anterior?
Quem lhe dirigia a pergunta era Johnny e, contrariando toda a
lógica, Da Silva respondeu que não.
- Sinto muito, mas eu fui afastado – explicou, sem nem pensar em
fazer menção às investigações paralelas que o consumiam dia e noite
desde o ataque.
- Entendo. Aceita uma carona para casa?
- Não há necessidade - respondeu, lacônico - É só me deixar no
próximo buraco de metrô.

83
Capítulo XX

O coração do homem é terra que ninguém caminha. O


querer, os desejos, freqüentemente contrariam qualquer lógica. Só
mesmo com esse tipo de pensamento é que Da Silva seria capaz de
aceitar o próprio comportamento nos últimos dias, se é que se pode
chamar de comportamento o sonhar de olhos abertos. Bem...
consciência desperta talvez fosse mais o caso.
Fato é que Da Silva não conseguia parar de pensar na menina
Annika desde que, bem, desde que a conheceu. Ou o cachorro o
encontrou, tanto faz. Embora seu caráter fosse ainda mais duvidoso do
que sua personalidade, o detetive não se sentia lá muito bem com
aquele, aquela, aquele... aquela paixonite. Primeiro havia a situação
geral, o caso de Clarisse e o de Lukas. Depois, havia Beth: como,se o
sentimento com ela era tão bom, se a cama era tão boa, podia ir se
deixar seduzindo assim por uma garota, afinal, que nunca tinha visto na
vida?!?! E se ela fosse uma baranga? Rica, mas baranga. Simpática,
mas um estropício? Sua alma gêmea, mas uma mocréia? Melhor seria
continuar cego. Por fim, sua cegueira, ainda que temporária, parecia ser
o que menos o afetava.
Quanto mais mal se sentia, maior a vontade de ver (ver?) Annika
ou, pelo menos, falar com ela. Ia ligar para a garota, assim que
chegasse em casa.
– Annika, sou eu?
– Oi, Da Silva. Tudo bem com você?
– Praticamente na mesma.
– Comigo também. Eu estava achando que você ia fazer contato
quando vi que Flush estava um tanto quanto agitado.

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– Sério? Esse cachorro tem poderes! Estou quase sugerindo o
nome dele para integrar a comissão que investiga a Gangue dos Olhos.
– Não ia rolar. O treinamento dos pets sensores amorosos é muito
específico. Ele poderia, no máximo, ter dado algum alerta no caso de ter
pressentido algum perigo a sua integridade física. Isso no caso de vocês
terem se conhecido antes do ataque.
– Claro, claro. Você sabe tudo sobre esse assunto, não é mesmo,
querida?
– Hummm... digamos que eu saiba bastante. E que praticamente
aprendi a ler já pesquisando esse assunto específico. Tudo o que me
caía nas mãos eu devorava. Acho que já li todos os livros, ensaios,
artigos e até tratados científicos já escritos sobre o assunto.
– Precoce, sem dúvida nenhuma. E você faz idéia do porquê de
tudo isso?
– Mais ou menos. Vamos dizer que essa foi uma estratégia de
autodefesa. Autodefesa não: sobrevivência.
– O que quer dizer?
– Acho que não suportaria uma grande decepção amorosa ou, pior
que isso, simplesmente passar pela vida sem ter um amor verdadeiro.
– Sério? É tão grave assim para você?
– Absolutamente.
– Você me disse uma vez que Flush já havia lhe indicado alguns
caras compatíveis, antes de apontar o focinho pra mim, como você
qualifica essas, vamos dizer assim, “ocorrências”?
– Da Silva, às vezes você fala tão engraçado (eu acho isso um
charme) – completou, sussurrando – Pela ênfase de sinalização do
animal, eu sabia que aquele era ainda um grau de compatibilidade
baixa. Foi uma espécie de treinamento, entende?
– Treinamento de quem – seu ou dele?
– Vamos dizer de ambos. Mas agora eu sei que achei o cara.

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– É muito engraçado ouvir você garantir isso, assim, com tanta
certeza. E se você não tivesse o cachorro, afinal? Muita gente não tem...
– ...porque não pode pagar. Ou porque, simplesmente, não sabe o
que significa.
– E se você não tivesse o pet, Annika?
– Então eu mesma seria muito diferente. Menos leve, menos
relaxada, mais insegura e até infeliz.
– Por quê? A vida não se resume à “relação amorosa perfeita”.
– Para mim se resume, sim. Exatamente isso, todo o resto é
besteira.
– Isso é porque você não tem que dar duro!
– É verdade. Mas saiba que meu pai não teve sempre grana. Ele
era até bem ferrado quando eu era criança.
– Ah, que interessante.
– Mas, então. Eu não suportaria viver sem amor. E sei que, para a
maioria das pessoas, esse encontro definitivo não acontece nunca.
– E por que você acha que é assim?
A esta altura Da Silva já estava totalmente relaxado, deitado
confortavelmente em sua cama, sem nem se lembrar mais da reunião
de agora há pouco e totalmente receptivo à conversa de Annika.
– A estrutura da vida, hoje, mais gera o contato superficial e,
geralmente, muito rápido. Há muito tempo um filósofo chamado Martin
Heidegger indicou que a humanidade, vamos dizer, lá pela época da
Primeira Revolução Industrial, você está se situando?
– Sim, sim, Revolução Industrial, acho que me lembro de alguma
coisa.
– Pois então. Ele fazia a diferenciação entre dois tipos de
pensamento: o meditante e o calculante. O calculante tem tudo a ver
com o desenvolvimento científico, com o capitalismo, com a objetividade
e, ao meu ver, até com o materialismo. Já o pensamento meditante

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remete à idéia de contemplação, de não se apressar em toda e qualquer
rotina, de ter tempo para si mesmo, de ter tempo para olhar em volta e,
em última instância, descobrir do que gosta e do que não gosta, do que
quer ou não incorporar a sua vida. Está claro que o pensamento
meditante não ajudava em nada à onda do consumismo, na época da
explosão dos malls e dos shopping centers, como você pode imaginar.
– Compreendo.
– Para mim, é dessa meditação sem pressa, desse auto-
conhecimento, dessa observação aguçada e, principalmente, dessa
escolha própria não teleguiada que pode brotar o verdadeiro amor.
– Mas você não percebe o paradoxo?
– Claro que percebo. Foi justamente graças ao pensamento
calculante científico que se conseguiu a técnica para adestrar os pets
sensores. Digamos que eles são como uma prótese animal – se é que
isso existe, na contramão de todas as mecânicas – para ressarcir uma
espécie de habilidade que o ser humano foi perdendo com o tempo.
– Menina, você sabe um bocado. Está estudando alguma coisa,
está na faculdade?
– Ainda não me decidi o que vou querer. Mas, sabe de uma coisa?
Eu também tenho uma outra teoria sobre a eficácia dos pets. Estou
cansando você?
– Nem um pouco, continue. Estou achando sua conversa
deliciosamente interessante e bem acima da média das bobagens que
estou acostumado a ouvir onde circulo.
– E se, na verdade, não for nada disso?
– Sim.
– E se o dono do animal, dada a conexão emocional que existe
entre os dois, for simplesmente uma pessoa mais tranqüila, menos
carente.
– Sei.

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– O que faria com que essa capacidade de amar, no caso outra
pessoa, estivesse mais aguçada. Uma predisposição.
– É uma teoria. Mas eu me lembro de que uma vez vi um cara,
novo, andando com quatro cachorros na rua e uma expressão de que
estaria melhor se tivesse ao menos uma namorada no lugar.
– Talvez não houvesse a “conexão” entre eles.
– E o que vai ser de você quando Flush tiver ido dessa para a
melhor?
–Até lá nós dois já estaremos há muito tempo na fase do “e foram
felizes para sempre”.
– Sério?
– Sério.
– Mesmo?
– Mesmo.
– Então é melhor eu ir tirando o fraque da naftalina...
Da Silva ficou quieto um momento e continuou.
– E se não der certo, Annika? Pode haver “empecilhos”. Da Silva
odiava essa palavra, e talvez justamente por isso a tenha usado,
pensando na sua história com Beth e como, de alguma maneira, já
estava mais ou menos sendo canalha com as duas.
– Você me fala sobre eles no nosso próximo encontro que, espero,
seja em breve. Só sei lhe dizer que, por enquanto, eu não agüentaria o
sofrimento da separação de quem eu gostasse de verdade, fosse qual
fosse o motivo.
– Não fale assim, você me assusta.
– É a pura verdade, Da Silva. Você já passou por isso?
– Para ser sincero, acho que nunca amei ninguém. Sou
egocêntrico demais para isso (e pensou: ah, se a Beth escuta isso!)
– Eu também não. Mas só de pensar no assunto parece que vou
morrer! Deve ser coisa de reencarnação.

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– Não me diga que acredita nisso?
– Lógico. Você?
– 100% não acredito. Há séculos ninguém mais fala nesse
assunto. Até hoje a ciência não comprovou a tal existência da alma,
quanto mais que ela é imortal e, mais ainda, reutilizável.
– Algo me diz que Flush e eu vamos ter um longo trabalho com
você – não é mesmo Flush?
– Ele está aí do lado?
– Ele está onde eu estou. E acaba de mandar um abano de rabo
pra você.
– Da mesma forma. Vamos dormir?
– Vamos, mas primeiro me responda: você não acha válido, se
você tem, usar seu dinheiro para evitar um sofrimento, para ter uma
felicidade? É um investimento que dá um retorno emocional. Nem tudo
na vida é grana. Foi o que meu pai falou quando pedi a ele para me
comprar esse tipo de cachorro.
– É, você deve estar certa. Pelo menos de cada duas pessoas só
uma tem que fazer o gasto. É pagar para não sofrer. O dinheiro resolve
tudo – ou quase tudo – resmungou, pensando na própria condição de
vida. – O seu cachorro também vai lhe avisar sobre o nosso primeiro
beijo, sobre a primeira trepada?
– Há há há, não, esse já é o meu departamento.
– Fico aliviado em saber disso. Durma bem.
– Você também. E um beijo.

89
Capítulo XXI

Depois de seu último encontro com Fernandes, Da Silva não


poderia se sentir pior. A conclusão a que chegaram é que seria
praticamente impossível descobrir alguma irregularidade nas empresas
que compravam o aldeído fórmico, a não ser que um informante fosse
infiltrado em cada uma delas, a perder de vista.
Nos últimos dias, Da Silva não tinha nem se avistado nem sequer
falado com Beth, ainda que apenas pelo telefone. Ele simplesmente não
procurara por ela, não tivera vontade, e isso o aborrecia. No entanto, o
que aborrecia ainda mais era que ela também não procurara por ele,
coisa estranha, e era incômodo se saber assim, tão dispensável. Ah, que
se dane, pensou, melhor assim, ela já deve estar em outra e eu o que
tenho que fazer é partir para outra também. A garota está aí mesmo,
doida para me dar. É, talvez Beth fosse daquele tipo de mulher que
precisa do tal “olho no olho” na hora do gozo. Se for assim, não deve
estar achando graça em chegar ao orgasmo com vista para um enorme
paredão preto e inexpressivo, que é essa porra de venda-guia.
– Mas que merda!
Sentiu um impulso angustiado de ligar para Beth, mas reprimiu
automaticamente, recolhendo a mão do telefone.
– A Beth gosta de mim, e eu não sou mais bem um homem,
afinal.
Claro que Da Silva exagerava, como exagerava toda vez que tinha
aqueles ataques de auto-comiseração. Que, aliás, já existiam bem antes
de ter perdido os olhos. O que ele qualificava como “meio-homem” era
seu corpo no período pós-Gangue: só porque estava usando a venda-
guia e nas suas veias corria um tanto de sangue artificial, ele já se
sentia assim, quase um ciborgue.

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De fato, ter os olhos arrancados era uma coisa que gerava uma
hemorragia e tanto. Se pelo menos os filhos-da-puta da Gangue se
dessem ao trabalho de cauterizar os buracos abertos – o que não ia
levar mais do que alguns segundos – o atacado correria menos risco de
morrer. Mas como o fator tempo era essencial para a excelência daquele
tipo de crime, não tinha jeito. Era colherada um, colherada dois e tchau!
Curiosos é que eles sempre começavam pelo olho esquerdo... Devia ser
algum tipo de superstição. Isso de acordo com o relato das vítimas, é
claro, que até então nunca tinha variado. Por causa do sangue, ou
melhor, da perda de sangue, era comum a vítima morrer caso não fosse
encontrada em, no máximo, 40 minutos. Num cenário horripilante, diga-
se de passagem. E porque a Gangue era tão eficiente, a proporção dos
ataques fatais, de acordo com as estatísticas, era de um para três. Tudo
isso passou na cabeça de Da Silva em décimos de segundo.
– Caralho. Bem que a Beth podia ter levado mais tempo para me
encontrar caído no beco – resmungou Da Silva, pensando que, talvez,
sobreviver não tivesse sido tão bom negócio. Ele, que já era egocêntrico
ao extremo, potencializara esse defeito de personalidade muitas vezes
desde que passara para o lado da clientela. O medo faz coisas terríveis
com as pessoas.

***

Annika não seria capaz de reconhecer a própria mãe. Ela


simplesmente caiu na estrada assim que a menina tinha idade suficiente
para escolher o cardápio do almoço e ir à escola. Com relação à comida,
durante longos meses após a partida de Olga Annika só comeu o que
tinha vontade: basicamente bastonetes de peixe com batata frita e
muitas barras de chocolate. Seu pai não se atreveria a detonar qualquer
motivo extra de tristeza em meio àquele vácuo irreparável. Foi apenas a

91
boa índole da menina o que impediu que se tornasse uma pequena
déspota, principalmente a partir do momento em que o pai (sem que ele
mesmo soubesse explicar exatamente como!) começou a ficar rico. Com
todas as vontades atendidas, Annika tinha tanta temperança que, salvo
por Flush, nunca pedira ao pai mais além do que qualquer família de
classe média pudesse pagar.
A formação da sua personalidade também contou com outros
ingredientes de qualidade, além dos que trazia nos seus genes. O pai
jamais foi do tipo que ficasse amargurado pelo abandono. Para falar a
verdade, ele nunca disse nada contra a ex-mulher. Simplesmente
explicou à filha que a mãe foi embora e contava realmente tudo o que
sabia – e não era muito, afinal, porque Olga nunca mais deu notícia –
toda vez que a menina vinha com uma pergunta qualquer.
Quem observasse de fora poderia mesmo dizer que o golpe de
sorte financeira que coube a pai e filha tinha sido coisa do destino. Para
ser franco, Artemus não precisou fazer grande esforço para ficar rico, as
circunstâncias só conspiraram a seu favor. E pronto! Como uma forma
de compensação possível diante da fuga da esposa.
Parecia até irônico, mas o fato é que o pai de Annika jamais
perdera um segundo sequer do seu dia para tentar imaginar se Olga
sabia ou não o quanto havia ficado rico. Ele estava ocupado – e, por que
não dizer? – feliz demais com sua própria sorte para perder tempo se
lamentando. Ao contrário do pai, no entanto, Annika sempre se pegava
imaginando se a mãe sabia ou não sabia sobre toda a fortuna que
estava perdendo. Gostava de imaginá-la em estado de penúria, como
sub-empregada ou desempregada. Mas é claro que só iria valer se ela
tivesse consciência da merda que fez. Nesse particular, Annika não era
nenhuma santa e, em dias de crise, como acontece a qualquer um,
chegava a imaginar contratar um detetive só para poder localizar a mãe
e dizer na cara dela: “a gente ficou rico, e você?” Talvez Da Silva

92
pudesse se encarregar disso, chegou a pensar, depois que tivesse
passado a “trabalhar por conta própria”, como era inevitável. Até que
seria uma troca justa, diante do que o conhecimento de Annika estava
por lhe proporcionar.
Porque embora seu pai tivesse aproveitado bem a vida de solteiro
– sempre elegante, sempre sem excessos, sempre na maior descrição –
à certa altura ele decidiu se casar novamente e a madrasta de Annika
era a única pessoa que Da Silva, no momento, precisava encontrar.

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Capítulo XXII

A reação da população de Nova Belém diante da divulgação dos


crimes da Gangue dos Olhos não poderia ter sido mais morna. Não que
a imprensa local não tivesse se apropriado plenamente do assunto, pelo
contrário. Durante os próximos meses, ia sair de tudo. Três gerações de
uma mesma família atacada. O caso da mulher religiosa que preferiu
continuar a viver sem as próteses e sem a venda-guia, ostentando no
meio da cara aquilo que acreditava ter sido vontade do Todo Poderoso,
em lugar da bestialidade de comerciantes e clientes dos colares. O casal
que agradecia à Gangue porque, sem os ataques, jamais teria se
conhecido.
Isso sem falar na exploração do chamado infotainment. Dezenas
de talk shows discutiam a validade ou não deste tipo de queixa. Afinal,
parecia que, tirando o aspecto da variação natural da cor dos olhos
humanos, as próteses superavam — e muito! — a eficiência dos órgãos
de nascença. Em diversas repercussões, no melhor estilo “o povo fala”,
a grande maioria dos novobelenenses não via motivo para tanto alarde
por parte das vítimas. Eles se sentiam prejudicados? Então, que fossem
pleitear na justiça algum tipo de indenização, não propriamente por
“perdas e danos” mas, talvez, pela falha na segurança e contra o direito
de ir e vir. Médicos, juristas, advogados e todo tipo de especialistas se
arrolavam o poder da última palavra sobre o assunto.
Mesmo a associação das vítimas, unida em décadas de
clandestinidade, se viu dividida no grupo que exigia uma condenação
pública aos atentados e aquele que preferia mesmo uma indenização em
dinheiro. A isso, boa parte do primeiro grupo assentia dizendo que, logo
em seguida ao repúdio social e cobrança de uma solução definitiva por

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parte das autoridades, bem que pingar um dinheirinho extra na conta
bancária não ia pegar mal.
Surpreendentemente, depois de uns 10 dias de manchetes
nacionais e internacionais, o assunto acabou caindo no esquecimento.
Curioso é que, com renovada força ou, então, diante de uma demanda
aumentada devido à divulgação gratuita na mídia de fora da cidade, o
certo é que aumentou substancialmente (em torno de 40%) o número
de assaltos aos olhos da população. Em termos de administração
pública, não houve prejuízo direto aos cofres municipais, já que Nova
Belém não tinha nenhum atrativo turístico, de sorte que tudo continuou
na mesma.
Mas quanto à iniciativa privada, por outro lado, a repercussão foi
excelente. Logo surgiram produtos como uma vacina que, aplicada nos
olhos em três doses com intervalo de um mês entre uma e outra,
praticamente tornavam inútil qualquer par de olhos para incrustação.
Alguém teve a idéia de estampar camisetas, que vendiam como água,
com os dizeres “eu tomei a vacina no olho, vá tomar no olho do seu...”.
Pelo sim, pelo não, a Gangue atacava assim mesmo e não era raro se
desse bem, com uma vítima que, da vacina, só tinha a camiseta. É claro
que surgiu também um mercado negro para venda dos olhos, em que o
“doador” oferecia seus atributos naturais, contanto que levasse
anestesia...
Até mesmo Da Silva, cujo envolvimento com a questão ia além do
aspecto profissional, estranhou sua própria reação diante de todo o
alvoroço.
— Ah, que se dane todo mundo.
E o máximo que fez foi telefonar para Annika e agendar um
encontro com a madrasta dela.

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Graças a uma espécie de assessoria de imprensa ao contrário, o
mundo jamais ficou sabendo que Clarisse Krapp fora uma vítima da
Gangue.

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Capítulo XXIII

Vivianne recebeu Da Silva no jardim de inverno pontualmente às


15h daquela sexta-feira. Da Silva estava especialmente ácido, porque
seu prazo para recuperar os olhos estava se esgotando. Ou pelo menos
era nisso que ele acreditava. As próteses chegariam em um ou dois dias
e o implante seria imediato. Um adiamento inviabilizaria uma cirurgia
futura, sem contar que Da Silva não fazia a menor idéia de por onde
andariam seus globos oculares.
O detetive foi bem específico: Annika não deveria participar da
conversa. Nem ela, nem o pai, nem qualquer outra pessoa, à exceção
de Fernandez, que deveria acompanhar Da Silva justamente para cuidar
da observação de detalhes que o colega estava impossibilitado de
registrar. Nesse meio tempo, eles haviam conseguido cooptar o Tenente
Muller que aguardava lá fora, no carro.
Por toda parte orquídeas de diversas cores, formatos e tamanhos
enchiam o ambiente. Como elas não emanam aroma, o dado teria
passado despercebido de Da Silva, não fosse por Fernandez. A dona da
casa exibia um colar de olho cuja íris era negra. Essa foi a primeira
observação Fernandez passou adiante, sem fazer qualquer tentativa de
ser discreto.
— Então você está usando um colar agora. Ele é falso ou
verdadeiro?
Vivianne não dava a mínima se o que iria dizer poderia ou não vir
a comprometê-la. Ela simplesmente ignorava o risco com total
intencionalidade.
— Meu caro detetive. Eu não gosto de imitações. Meu colar foi
feito de um olho legítimo.
— Com legítimo você quer dizer...

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— Humano, exatamente. Eu tenho vários, um de cada cor.
— Poderia mostrá-los ao meu amigo?
— Certamente. Está tudo aqui, nestas bandejas climatizadas. Só
não toquem nos globos para não haver nenhum dano, por favor. Os
senhores sabem que não é um tipo de jóia barata.
Havia um globo azul claro, um azul escuro, um cinza esmaecido,
um verde e um castanho escuro acobreado, além do negro, que
adornava de uma forma horripilantemente estética o belíssimo colo
daquela belíssima mulher. Fernandez fez uma breve descrição do que
via a Da Silva, que em nenhum momento interrompeu com perguntas.
Embora diante do grotesco da situação, tanto Da Silva quanto
Fernandez sentiam uma excitação que não era de modo algum
desagradável. Os policiais ficaram particularmente interessados pelo
fato de os olhos terem movimento autônomo, dando, inclusive, algumas
vezes a impressão de encará-los, com seu questionamento mudo,
eterno e profundamente triste.
— Não sei se percebem que não se trata apenas do gasto da
compra, mas também da manutenção. Tenho uma empregada exclusiva
só para cuidar dos meus colares.
— Não tem medo de que ela fale demais? Ou que substitua um
dos originais por uma cópia? — perguntou Da Silva.
— De modo algum. Ela sabe que eu perceberia imediatamente.
São bastante diferentes, o brilho da imitação é, se me permitem o
comentário, totalmente morto em comparação com um genuíno. Ela
sabe que o assunto é sério e não arriscaria seu emprego regiamente
remunerado por um, por uma, por uma fatalidade, se é que me
entendem.
— O que seu marido diz sobe a sua coleção?
— Artemus? Ele não se liga muito nessas coisas. Acredita que são
olhos artificiais e pronto. Além disso, eu já era extremamente rica antes

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de me casar com ele e sempre comprei meus colares com meu próprio
dinheiro.
— Quanto pagou por cada um?
— Digamos que algo entre meio milhão e um milhão, dependendo
da cor e do design do suporte, se mais ou menos elaborado.
— Compra sempre do mesmo fornecedor?
— Nós não nos conhecemos, vamos dizer assim, pessoalmente.
Digamos que ele seja o mesmo de todas as minhas amigas.
— E são muitas as que têm esses colares?
— Você ficaria surpreso, detetive.
— Então: o que acha de colaborar conosco?
— Não vejo por que não. Já tenho colares suficientes, de todo tipo
que preciso.
— Então marque um encontro. Vamos dizer que um colega nosso,
de fora da cidade, deseja um colar para pedir a mão da noiva em
casamento.
— Como quiserem. Aguardem aqui que vou dar o telefonema.

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Capítulo XXIV

Tudo foi feito como combinado. O Tenente Müller compareceu


naquela mesma noite — pontualmente às 20h — se fazendo passar por
um noivo rico, excêntrico e apaixonado. O local escolhido pela Gangue,
estranhamente, foi o campus de uma universidade pública, na área
destinada à construção de um restaurante comunitário onde, há anos,
jazia um esqueleto. Era época de férias escolares e, assim, nem os
vigias davam as caras por ali.
Desta vez, Fernandez serviu de motorista e ficou aguardando
dentro do carro, no estacionamento, onde havia uns poucos veículos
parados desde a semana anterior. Como não podia ver, Da Silva decidiu
seguir Muller à distância, e até que a venda-guia acabaria se revelando
uma ferramenta bem útil, já que sinalizaria o calor corporal de qualquer
forma viva num raio de ação bastante seguro.
A última pessoa que Da Silva ou o Tenente imaginariam encontrar
como contato seria ela. Sim, porque quem apareceu com uma espécie
de catálogo foi uma jovem provocante, embora não fosse bonita, e
deliberadamente estúpida. Se aquele era o estande de vendas oficial da
Gangue, eles iam indo bem, porque havia até luz instalada, uma mesa e
duas confortáveis poltronas vermelhas, que contrastavam ao extremo
com a nudez do chão e das paredes sem portas nem janelas.
— Então o senhor está procurando um presente para sua noiva?
— Sim, uma amiga me falou sobre vocês e desejo saber preços e
prazos de entrega.
— Basta dar uma olhada no mostruário, tudo vai depender do
modelo que escolher, naturalmente.
— Naturalmente.

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Escondido num canto onde a luz não alcançava, Da Silva mal
podia acreditar no que ouvia. Primeiro, uma mulher. Depois, uma
mulher jovem. E em terceiro lugar, uma jovem completamente obtusa,
que numa única frase conseguia falar tudo errado: “monstruário,
modelho”. Não, só poderia ser algum truque para despistar!!!
— Gostei deste aqui.
— Ah, sim, a “pedra” amarela. Se me permite a sugestão, qual
seria mesmo a cor dos olhos da sua noiva?
— Ela tem olhos castanhos. Não tão lindos quanto os seus...
— Ah, sim, perfeito, perfeito. Este tom cai perfeitamente com
olhos de cor “amarrom”. E o engaste?
— Gostei deste aqui, na página cinco.
— Um dos modelos mais elaborados, os motivos “itruscos”, vejo
que é um homem de bom gosto. Vejamos. Nesta cor e neste formato
precisaríamos de quatro a cinco semanas no ateliê. E ficaria num custo
de 700 mil. À vista, naturalmente, contra-entrega.
— Naturalmente. Do que necessita para formalizar o pedido?
Da Silva não conseguia pensar em nada, a não ser agarrar a
garota e fazê-la refém até que ela contasse alguma coisa aproveitável.
Mas aí é que estava o problema: ele duvidava de que ela soubesse
muito mais do que aquela cantilena que provavelmente havia sido
treinada a recitar. Não eram nada bobos, aqueles caras da Gangue. O
jeito era seguí-la.
— É só preencher o cadastro até aqui, deixe que os detalhes da
peça eu “mesmo” preencho.
— Ah, sim.
O Tenente Müller colocou alguns dados fictícios e pediu um
número de telefone à garota.
— Não se preocupe: nós faremos contato quando tivermos uma
previsão mais fechada do prazo de entrega.

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Apertaram as mãos e a moça saiu primeiro. Müller se encaminhou
para o carro em que Fernandez aguardava abaixado. A garota sumiu
entre os prédios. Da Silva, que vinha logo atrás, só teve tempo de
avisar, na janela do veículo:
— Vamos seguí-la.
— Mas como, se a gente a perdeu de vista?
— Ela pode ter sumido para vocês, mas não para mim.

A venda-guia continuava mostrando duas informações que fizeram


Da Silva comemorar. A primeira, que a vendedora da Gangue
aparentemente deixara seu carro na próxima esquina. A segunda a de
que não havia mais nenhuma fonte de calor nas proximidades — ou seja
— nenhum espia.
— Ela acaba de sair naquele carro ali na frente, estão vendo?
— Estamos, vamos atrás dela. Rapaz, hoje é mesmo seu dia de
sorte — disse Fernandez — o carro da gata é branco!

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Capítulo XXV

Se a vida real fosse uma história de ficção, neste ponto da


narrativa a vendedora da Gangue iria seguir para algum tipo de quartel-
general, e então se daria um confronto entre os policiais e os bandidos,
sabe-se lá com que conseqüências. Na verdade, elas dependeriam
mesmo é da boa vontade ou da quantidade de bile do autor no
momento. No nosso caso, a garota acabou indo apenas para casa
dormir — depois de cumprido o seu expediente.
Assim sendo, e como não houvesse mais nenhum tipo de
movimento — “nem uma trepadinha? O que estará acontecendo aos
machos desta cidade? Maldição! Nossa sociedade está sendo carcomida
‘na base’” — pensara Da Silva em voz alta, o que desatou uma bela
crise de riso em seus colegas, até então relativamente tensos.
Não que Da Silva fizesse esse tipo de comentário com a intenção
de um gracejo, para ganhar a simpatia de quem quer que fosse, ou
mesmo cultivar a fama de ser “um cara legal”: ele realmente acreditava
no que deixava escapar. Tanto que não achava a menor graça.
Como não via nada e já havia marcado o seu ponto da noite — ele
propriamente não, os recursos termossensíveis da venda-guia! — Da
Silva iria para casa. Fernandez e Müller combinaram uma escala, meio a
meio, para o restante da noite, dando plantão em frente ao
apartamento da mulher. O primeiro seria Fernandez, que pegava na
chefatura às 8h do dia seguinte, enquanto Müller teria a manhã livre.
Fernandez achou um canto discreto enquanto Muller levava Da Silva até
a próxima estação. Mas o vigia ficaria com o carro, para a necessidade
de alguma perseguição, ou retirada rápida, embora isso parecesse
absolutamente improvável.

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Sentado encolhido no vagão quase vazio, Da Silva percebia que, à
medida que os últimos grãos baixavam na sua ampulheta, ia adquirindo
uma estranha calma. Já se sentia quase conformado com seu destino de
ciborgue quando uma voz fraca de idoso lhe disse, bem baixo, quase
num sussurro, porém claro, junto ao ouvido direito:
— Em todos esses anos, jamais alguém chegou tão perto de nos
desbaratar. O senhor está se saindo melhor do que toda a polícia
organizada — meus cumprimentos.
Havia um sotaque estranho que não era facilmente identificável:
meio espanhol, meio hebraico, mas, a princípio, nem isso Da Silva
conseguiu perceber, tamanho o susto.
— Sou aquele que a imprensa chamaria de “o chefe da Gangue”,
se um dia fosse descoberto. Por isso, tenho a liberdade de me
aproximar do meu “quase algoz”, que é o senhor.
— O que deseja? Como me descobriu? Havia alguém nos vigiando
em segurança...
— Mas é claro. Ouça, sua estação de desembarque seria a
próxima, e no entanto sou capaz de imaginar que o senhor aceitaria um
convite meu.
— Qualquer um, meu velho. O que me fizer.
— Gosto da sua objetividade, detetive. E, como o senhor, eu
também aprecio a verdade. De alguma forma, a nossa verdade é a
mesma. O senhor quer recuperar seus olhos, desbaratar a Gangue — o
que, posso lhe adiantar, é uma tarefa praticamente impossível, e digo
isso sem a menor intenção de diminuir sua capacidade. Acontece que
nossa... sociedade... sim, criminosa... é muito maior e mais influente do
que possa fazer idéia. Sem contar todo nosso aparato tecnológico que, o
senhor, como um homem inteligente, há de convir que vai muito além
do que aquele utilizado nos colares vivos, que é como nós os
chamamos. Foi assim que conseguimos monitora-los hoje à noite sem

104
que se dessem conta de nossa presença. Nosso negócio é rentável e
costumamos separar boa parte da verba para pesquisa.
— Tudo isso dentro de Nova Belém?
— Acredite. Já poderíamos, inclusive, até migrar para uma
atividade, como direi, mais decente, legalizada, sair da clandestinidade
e passar a faturar com as patentes. Colocar, enfim, Nova Belém no
mapa do mundo. Mas não desejamos desapontar nossa clientela, nem
tampouco simpatizamos tanto assim com o prefeito, hehehe.
Essa era boa. Velho, crápula e com senso de humor.
— O senhor me acompanha?
— Obviamente que sim. Mas qual é a sua verdade, que permite o
capricho de, em vez dessa abordagem, não ordenar simplesmente que
nos matem aos três?
— No momento, minha verdade é impedir que o senhor nos revele
a todos. O que, ao menos para mim, não significa, ainda, que o
considere um inimigo. De certa forma, Detetive Da Silva, o senhor está
apenas tentando recuperar o que é seu.
— Por falar nisso: meus olhos já foram... como é que vocês
chamam isso?
— Encrustados? Para falar a verdade, ainda não. Vamos.
A porta do vagão se abriu e, ao passar por ela, Da Silva se sentia
como se sob o efeito de alguma droga, tamanha a descarga emocional
que a revelação do velho havia desencadeado sobre ele. Mas, agora,
não podia recuar, nem contar com quem quer que fosse. Talvez só com
a sorte e, quem sabe, um certo jogo de cintura, se é que teve realmente
algum ao longo da vida.

105
Capítulo XXVI

Da Silva já não sabia mais em que estação do metrô haviam


descido e, sem prestar atenção no caminho, apenas se deixava levar.
Estava tão ansioso e impotente que, de certa forma, resolveu arriscar
tudo nas mãos do acaso, sem medir estrategicamente as perguntas,
como de praxe.
— Um par de olhos arrancado pode ser reimplantado no crânio?
— É a sua esperança, não é mesmo? Tudo vai depender do estágio
em que o processo se encontre. Quando vira jóia, a parte posterior do
olho, ou seja, toda a musculatura do nervo ótico, precisa ser cortada
fora, para ficar uma coisa assim mais bem acabada, bonita, só com o
globo. Uma vez retirados, não há como refazer esses ligamentos. Pelo
menos, nem nós temos essa tecnologia.
— Essa é a “rebarba” que vocês jogam fora, não é mesmo?
— Nada é desperdiçado e não deixaríamos pistas. Depois de
devidamente triturado, encaminhamos para beneficiamento de ração
animal.
Uma pausa grave se fez, quando só se ouvia os passos dos dois
homens na calçada. À certa altura, o velho continuou.
— Sabe, detetive, um dos motivos que explica o sucesso de nossa
sociedade é que, sinceramente, temos um bom olho para os negócios, e
isso não é um trocadilho de mau gosto. Talvez o senhor goste de saber,
por exemplo, que é uma de nossas subsidiárias — neste caso, uma
empresa verdadeira — quem fabrica as próprias próteses usadas para
recuperação da visão. E não apenas de quem perdeu os olhos num
ataque, como é bom lembrar.
— Que interessante — soltou Da Silva, com uma ponta de ironia
na voz — não deixa de ser uma jogada de mestre.

106
— Não, não, senhor, não quero que me entenda mal. Apesar de as
próteses não serem baratas, e nem poderiam, já que são um produto
absolutamente sofisticado, esse faturamento nem se compara ao da
nossa principal atividade. Mas saiba que o fundador da nossa sociedade
só permitiu as primeiras coletas e incrustações quando estava
absolutamente seguro de que o prejuízo às pessoas seria o menor
possível.
— Posso dizer por mim mesmo — retrucou Da Silva, desta vez
sem fazer o menor esforço para disfarçar uma ironia aberta e cortante.
— Claro, existe o desconforto da extração, isso eu posso entender,
uma ou outra intercorrência fatal, há umas poucas semanas de cegueira
monitorada pela venda-guia mas, de forma geral, todo mundo sai
ganhando.
— E posso quase apostar que é a sua empresa também a mesma
que fabrica as vendas-guias — acertei?
— Sim, nós pensamos em tudo, justamente para criar o menor
transtorno possível. Não somos piratas sanguinários, como a mídia fará
a população pensar, apenas cuidamos do nosso negócio, cobrindo todas
as eventualidades e, por vezes, até antecipando algumas.
— O senhor chama o ataque ao menino de eventualidade?
— Ah, sim, na verdade esse caso foi fruto de um descuido, falta de
informação de um funcionário novo e mais afoito, já definitivamente
solucionado.
— Definitivamente?
— Sim. Ele está morto. Não vai incomodar mais. Não podemos nos
dar ao luxo da complacência com erros que venham a comprometer a
segurança do grupo.
— E a modelo? O que me diz de Clarisse Krapp?

107
— Bem, este foi um episódio diferente. Uma de nossas clientes
preferenciais não abriu mão do pedido. Aquela é uma cor muito rara de
“pedra”, como se pode perceber.
— Estou impressionado com sua frieza, senhor...
— Ainda não é o momento para apresentações, Detetive Da Silva.
Eu não sei ao certo como terminaremos a noite.
— Para onde está me levando?
— Na verdade, acabamos de chegar. Venha, é ali do outro lado da
rua.
Da Silva ouviu o deslizar de algumas portas sendo abertas em
seguida pelo acionamento de senhas de segurança, até que foi
convidado a se sentar.
— Meu prezado detetive, é uma pena que não possa ver onde está
neste momento. O senhor não acreditaria nos seus olhos!
— Mas o senhor vai me dizer, eu presumo.
— Bem-vindo a nossa estufa. É aqui que preservamos, em solução
estéril, as pedras coletadas para a incrustação.
Da Silva sentiu um arrepio sacudir-lhe o corpo. Engoliu em seco e
tentou dizer a frase com o mínimo de tremor na voz.
— Gostaria de saber quantos são...
— Um momentinho, vou fazer aí uma contagem rápida, são
exatamente dois, quatro, seis, oito... há 32 pares de olhos dentro dos
vidros. Cores as mais variadas, uma beleza.
Da Silva passou a mão pela boca, descendo até o queixo, como
para secar as gotículas de suor que brotavam, enquanto pensava no que
lhe restava fazer.
— E agora, Sr. Mistério? O que acontece?
— Aposto que quer saber se os seus olhos estão aqui, mas é claro
que estão. Só que não há nenhuma etiqueta no vidro dizendo: olhos do
Detetive Da Silva, que o senhor mesmo pudesse ler, não somos sádicos.

108
As peças são identificadas por números de série e pela data da coleta. E
a lista não fica — disse, frisando as duas últimas palavras — aqui. Não
somos tolos. Na verdade, para nós isso é totalmente indiferente, a não
ser porque precisamos checar mais tarde se a cor bate com o pedido e,
também, o tipo sangüíneo do portador original.
— Que diferença faz isso?
— É uma biotecnologia muito acurada e há ajustes a serem feitos
de acordo com essa especificidade.
Da Silva já nem prestava mais a menor atenção às respostas do
velho. Só sentia aumentar seu desespero diante da constatação de que
nunca estivera tão perto de recuperar seus olhos mas, ao mesmo
tempo, tão longe. Lançou outra pergunta a esmo.
— Há mais alguém aqui?
— Não, detetive, estamos sós. Sós e observados por 32 pares de
lindos olhos que nos espreitam, que nos questionam, com suas
insondáveis inquietudes humanas. Diga, Detetive Da Silva: há para o
senhor algo mais belo na natureza do que dois lindos olhos humanos?
O cego renunciou à resposta e resistiu ao impulso de agarrar
aquele traste pelo pescoço e acabar logo com aquilo. Precisava de
ajuda, precisava de luz, precisava de tempo.
Não. Precisava de um milagre.

109
Capítulo XXVII

Nesta noite, o Bar do Gringo não pareceu a Fernandez tão


simpático como antes. Na verdade, só agora ele notava o quanto era
escuro, o quanto a mobília era gasta e triste, o quanto todo o ambiente
fazia pensar em decrepitude e solidão.
Fazias quase 72 horas desde que Da Silva tinha sido visto vivo
pela última vez. Algo tinha dado errado. A missão — sua missão — de
procurar por ele não chegava a ser dever profissional, já que não havia
nenhum registro oficial de desaparecimento. Além dele, apenas Müller,
que estivera envolvido na vigília à casa da vendedora da Gangue dos
Olhos, tinha certeza do desaparecimento, dadas as circunstâncias. Da
Silva não iria sumir assim, e o jeito era procurar refazer seus últimos
passos, e indagar junto às pouquíssimas pessoas de sua relação.
Basicamente, Annika e Beth.
A garçonete recebeu o inspetor sem grande espanto, pelo menos
até saber do que se tratava.
— Sinto muito por Da Silva, mas desde o ataque ele começou a
agir estranhamente. De uns tempos pra cá, simplesmente desapareceu,
deixou de ligar, não me procurava e eu entendi o recado. Era outra na
parada, já me aconteceu antes. Eu, então, decidi partir pra outro
também. Acho que, até ele voltar a enxergar, vai ser assim, e eu não
costumo forçar a barra. Gosto de Da Silva, mas minha vida já é dura o
bastante para eu ainda ter que cuidar dele. Além do mais, ele não iria
gostar.
— Ei, Beth, pare de falar no passado: ninguém sabe se Da Silva
está morto. Por enquanto, só não sabemos o paradeiro dele. Se ouvir
qualquer rumor ou ele fizer contato, é só me ligar.
— Recomendações à Marie!

110
Fernandez deixou a garota para o final. Não sabia nada dela,
apenas se lembrava de um certo cartão de visita e do pedido do amigo
para que lesse o número de telefone em voz alta. No apartamento de
Da Silva, localizou o cartão sem dificuldade, em meio a uma grande
quantidade de papéis espalhados sobre a mesa. Na secretária
eletrônica, apenas três recado da empresa lembrando a Da Silva que
precisava fazer contato urgente a fim de prestar contas dos seus
verbetes eletrônicos, sob o risco de ter o contrato cancelado.
Definitivamente, estava ali um cara solitário.
— Sim, que bom que me ligou, Inspetor Fernandez, eu já estava
mesmo estranhando a falta de notícias. Meu pet amoroso, o Flush, já
havia dado uma espécie de sinal três noites atrás e vem estando
deprimido desde então, o que não deixa dúvidas de que Da Silva está
com problemas. Há algo que eu possa fazer?
— Avise se tiver alguma notícia dele. Você também pode rezar.
— Rezar? Rezar, sim, mão conheço nenhuma oração, mas pode
ser uma boa idéia. Obrigada de novo, Inspetor.
Enquanto isso, Müller fazia uma varredura em todos os hospitais,
hospícios e necrotérios da cidade. Tentou também as delegacias e até a
penitenciária federal de segurança máxima que ficava instalada,
ironicamente, no município. Nada.
— Amigo, estou começando a acreditar que alguém da Gangue
nos viu naquela noite. Melhor redobrar os cuidados com a vigilância
pessoal, Müller. Sua e de sua família.
— Não tenho família, Fernandez. Fique você de olho também.
— Agora Da Silva vai ter que se virar. Ele não vai deixar barato.
Tenho certeza de que, mesmo que não consiga pegar ninguém da
quadrilha nem recuperar seus olhos, pelo menos não vai deixar nenhum
filho da puta colocar as mãos no couro dele!

111
— Bravo, Fernandez! Agora você falou igualzinho ao homem! Me
avise se tiver alguma novidade.
— Você também!

112
Capítulo XXVIII

As dores — no estômago, na cabeça — das primeiras horas sem


comer e sem beber, numa segunda fase, são substituídas por uma
tremenda fraqueza física e certa confusão mental. Passados alguns dias,
caso a pessoa não morra, pode haver delírios, geralmente alternados
com longos períodos de sono ou de desmaio.
Não fosse toda essa agonia a enfrentar, depois de ter sido deixado
na “estufa” pelo capo da Gangue, Da Silva experimentara um sofrimento
mental ainda maior: fugir dali, claro, mas levando consigo os olhos
arrancados para tentar posteriormente um implante. O detetive não
conseguia pensar em mais nada, estava totalmente obcecado, um bicho
ferido enjaulado por completo fora de si, mas que não externava sua
fúria, ela o consumia de suas vazias órbitas oculares para dentro.
Havia o silêncio. Da Silva não gritava, não chamava, não gemia,
nada. Em certos momentos, enquanto ainda tinha forças, percorria às
apalpadelas as estantes e prateleiras do recinto, tocando de leve os
vidros, com medo de quebrá-los, e refazendo internamente sempre a
mesma pergunta: será que esses olhos são os meus? São os meus?
Serão os meus?
Da Silva, que nunca tinha levado a sério nada que não pudesse
tocar, provar, cheirar, ver ou ouvir ao longo de toda uma vida 100%
material — à exceção da experiência com o pet sensor amoroso de
Annika, doce Annika — no auge do desespero tentava sentir, através da
fria fronteira do vidro, qual daqueles pares de olhos pudesse vir a ser o
que buscava.
“Eu não vou conseguir.”
Chorar também não podia. Foram horas alternando esses
pensamentos com outros, não menos sombrios.

113
“Como vou sair daqui? Será que alguém vai voltar para me
buscar? O que eu devo fazer, então? Escutar primeiro ou partir direto
para a defesa? Tirando a cadeira, não há nada aqui que possa servir de
arma. Quanto tempo terá se passado? Não há ninguém para perguntar
as horas. Será que alguém vai me procurar? Beth, Fernandez, Müller,
Annika? Aquele cachorro dela, será que não serve para isso?”
E como o tempo passava e Da Silva retornava sempre às mesmas
idéias sem resposta, finalmente ele entendeu que fora deixado ali para
morrer. Como na sala, antes asséptica, pelo jeito não havia janelas, já
nas primeiras horas do cárcere teve que sofrer também o desconforto
do odor de suas próprias excreções, que passara a fazer num único
canto, escolhido aleatoriamente.
“Mas se aqui é que ficam os olhos, por que ninguém vem pegar
nada, eles devem precisar continuar a trabalhar, ou não? Meu Deus! Eu
não quero morrer aqui, não me deixe morrer aqui.”
Desta maneira, Da Silva se agarrou a um pensamento bom, e à
falta de senso que seria tudo aquilo se não existisse uma alma, e à
sensação de desperdício se fosse apenas aquilo: uma cabeça com dois
profundos buracos no lugar dos olhos, encarcerado com suas próprias
fezes e urina, ali, sem ninguém. E pensou na conversa que tivera com
Annika, a menina que acreditava em tanta coisa: na ciência, na lógica,
no seu cão, e que tinham um espírito além da matéria, e que estavam
predestinados a serem felizes um dia, e tentou acreditar ele sozinho que
esse dia, sim, ia chegar. Da Silva pediu misericórdia e pensou com força
e fé naquela bondade superior que, afinal, também havia, de certa
forma, dentro dele, e foi com este pensamento que perdeu pela última
vez a consciência.
Não houve, em todas as horas que passou trancafiado na sala, um
único registro de calor, ou seja, de forma viva, na venda-guia de Da
Silva.

114
Capítulo XXIX

O registro seguinte da venda percebido por Da Silva, na verdade,


foram muitos. Agora estava num quarto de hospital, cercado de
cuidados e de todos que haviam se importado com seu sumiço. Diante
de Annika, Beth entendeu num relance o que havia se passado no
coração do ex-amor.
Foi Fernandez quem contou ao amigo o que, elo menos para a
imprensa, foi noticiado como “um grande milagre”. Da Silva já estava
fora de circulação há quatro dias quando o mais improvável aconteceu:
um grupo de assaltantes altamente especializados, que durante meses
observara atentamente o quartel general da Gangue dos Olhos, sem
jamais desconfiar do que é que acontecia ali dentro, na quarta noite
resolveu fazer um assalto ao local. O que encontraram lá dentro, altas
horas, foi um conjunto de oficinas de ourivesaria, laboratórios e, pouco
a pouco, eles mesmos se assustaram ao se dar conta de onde estavam.
Não havia guardas e não viram ninguém. Já estavam pensando em dar
o fora, com o tanto de ouro e jóias que haviam recolhido, quando um
deles — ironicamente chamado Dimas, para a alegria dos editores —
achou por bem entrar na última sala. Só encontraram uma série de
vidros cheio de água e um corpo caído no chão, o qual imaginaram se
tratar de um cadáver, já que o ar ali dentro estava totalmente
irrespirável. No entanto, ao desvirá-lo, deram com a venda-guia e
pensaram que, se fosse aquela uma vítima da Gangue, o mínimo que
poderiam fazer era jogá-la na calçada. E foi o que fizeram. Neste
momento, foram surpreendidos pela equipe policial que trabalhava no
seu encalço e a atitude do resgate até que serviu para atenuar suas
penas.

115
Capítulo XXX

Annika parecia uma reencarnação da atriz alemã Louise Brooks2:


pele muito branca, cabelos muito negros e com o mesmo corte à la
garçonne, um rosto esculpido e um sorriso capaz de iluminar qualquer
ambiente. Da Silva, que havia visto A caixa de Pandora, parecia ter tido
uma revelação quando, depois da bem-sucedida cirurgia de reimplante
dos olhos, voltou a enxergar e pôde vê-la.
Num passeio no parque, Flush disparando lá na frente atrás dos
pombos, Annika soltou-se da mão de Da Silva e lhe disse:
— Duas perguntas importantes: qual o seu primeiro nome?
— Eu sou Zé — devolveu, entre risos.
— E o que você pretende fazer agora, que voluntariamente não é
mais policial?
— Quero resgatar as boas coisas da vida: vou abrir um
restaurante de sopas!
— Sério? Olha que isso pode dar certo.
— Se a gente rezar direitinho, vai dar.
— A gente vai ficar juntos pra sempre, se eu rezar também?
— Pra sempre, alma com alma, pela eternidade!
Annika abriu um largo sorriso. Fazia um lindo dia de sol e era bom
estar vivo.
— De que cor estão meus olhos hoje?
— Quem se importa?

FIM

2
Louise Brooks (Lulu) foi a protagonista em A caixa de Pandora, do ano de 1928.

116

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