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COMO A BÍBLIA
FOI ESCRITA
INTRODUÇÃO ao
ANTIGO TESTAMENTO
e ao NOVO TESTAMENTO
Segundo Pierre Gibert
Transcrição e Reprodução Eletrônica:
Luiz Edgar de Carvalho
Mens Sana
Publicações eletrônicas
para ler e pensar
2011
Sumário
Apresentação
Prólogo
Escolher uma Bíblia
Como utilizar uma Bíblia?
Primeira parte
O ANTIGO TESTAMENTO
I
ANTES DE ABRIR O LIVRO ...
Essas Escrituras citadas por Cristo
Em quais língua e escritura?
II
UMA BIBLIOTECA VARIADA
A Lei ou Pentateuco
Profetas "anteriores"
Profetas "posteriores"
Os Escritos
III
UMA LONGA HISTÓRIA ...
As condições da escritura
Sobre as Escrituras Sagradas
Da "Teoria Documentária" ao Antigo Testamento
Do aramaico ao grego
O cânon das Escrituras
Segunda parte
O NOVO TESTAMENTO
I
ANTES DE ABRIR O LIVRO ...
No início, Jesus Cristo
Em quais língua e escritura?
II
UMA BIBLIOTECA VARIADA ...
Os quatro evangelhos
Apresentação
Uma escrita particular da história
Os Atos dos Apóstolos
As Cartas
O Apocalipse
III
LENTA E MÚLTIPLA ESCRITURA ...
Cristãos pouco apressados em escrever
O despertar para a história
Uma história simples e complexa
A fixação do cânon
Conclusão
Pequeno glossário
Apresentação
Este manual Como a Bíblia foi Escrita, Introdução ao Antigo Testamento e ao Novo
Testamento, em formato de Livro Eletrônico (e-book), destina-se tanto ao leitor habitu-
al da Bíblia como ao principiante que abre a Bíblia pela primeira vez. Seu conteúdo
pretende apenas ajudar a abrir a Bíblia. Nada mais que isso. Outros estudos podem,
oportunamente, ser feitos no sentido de aprofundar o conhecimento da Bíblia.
O presente manual, portanto, não tem senão uma finalidade precípua: permitir à
Escritura abrir-nos seus sentidos, deixar que a Palavra nos interpele, consentir que o
Espírito nos conduza nesta aventura de Jesus que se tornou a nossa: a duma existên-
cia vivida no encontro com o Deus vivo.
Muitas pessoas desejam ler a Bíblia, mas não têm tempo ou não sabem por onde
começar. Este manual foi preparado com a intenção de ajudar o leitor a se orientar
num livro tão grande e também tão importante como é a Bíblia.
O texto da Bíblia é um só, mas pode ser lido de várias maneiras. Ressaltamos
que a questão dos modos ou métodos de ler a Bíblia é muito variada: leitura espontâ-
nea, popular, a partir da vida; leituras científicas; histórico-críticas, estruturais, socioló-
gicas; leitura a partir de determinados pontos de vista... Afinal, a Bíblia não é somente
um livro, mas, uma biblioteca.
Em seu conjunto, este manual é bastante amplo e rico. Muitas outras coisas po-
deriam ser ditas ou acrescentadas e outros pontos de vista ser considerados. Entre-
tanto, como em todo manual, procuramos dar ao seu conteúdo uma ordem pedagógi-
ca, que seja estimulante e forneça pistas muito ricas para um aprofundamento da leitu-
ra e do estudo da Bíblia. Acreditamos também que será um subsídio particularmente
útil para a formação de todos quantos desejam ler a Bíblia com mais proveito.
Não há melhor introdução à leitura da Bíblia do que mostrar como o texto bíblico
foi escrito e fixado. Essa convicção forma o eixo deste Manual, compilado com os tex-
tos transcritos do livro “Como a Bíblia foi Escrita”, de Pierre Gibert, um dos grandes
exegetas da atualidade, publicado por Edições Paulinas. De forma original e apaixo-
nante este Manual responde a porque e em que circunstâncias um povo, Israel, de-
pendente de sua fé num Deus único, dotou-se de tal biblioteca entre os séculos XIII e I
antes de nossa era.
Por fim, duas frases de Isaías ajudam a entender as razões maiores de ser deste
Manual. A primeira frase o profeta a endereça a Jerusalém que está para dar à luz
multidões: “Aumente o espaço de sua tenda, ligeira estenda a lona, estique as cordas,
finque as estacas, porque você vai se estender para a direita e para a esquerda. . .” (Is
54,2-3a). Aumentar o espaço da tenda e estender-se para todos os lados como resul-
tado da fecundidade que vem de Deus: essa a primeira razão.
A segunda frase dirige-se a todos os que se consideram filhos e filhas de Jerusa-
lém: “Vocês poderão amamentar-se nela até ficarem satisfeitos com a consolação que
ela tem; sugarão com satisfação a abundância do seu seio”. . . (Is 66,11). A Bíblia é
nosso livro comum. E quanto mais a conhecemos, mais dela nos alimentamos e vive-
mos. Eis a segunda razão.
Mas, o melhor momento da razão de ser deste Manual é quando o leitor o deixa
de lado, para ficar a sós com o texto da própria Bíblia. Esta é a hora da verdade e da
vida.
Recomenda-se, para a leitura dos textos bíblicos, a Bíblia - Tradução Ecumênica
(TEB), publicada pela Edições Loyola, São Paulo. (LEC)
PRÓLOGO
O que é a Bíblia? Como ler esse “livro” que, desde as primeiras páginas, nos descon-
certa descrevendo as origens do universo e da humanidade de um ponto de vista que
a ciência contesta? Ensinar a conhecer a Bíblia, ensinar a ler a Bíblia é justamente a
proposta deste Manual “Para Conhecer a Bíblia”, em formato eletrônico.
Mas será realmente possível introduzir alguém à leitura da Bíblia? Semelhante
pergunta, apresentada no prólogo de uma obra que tem esse objetivo, pode parecer
uma contradição. Mas é uma pergunta que merece ser feita.
O que é realmente a Bíblia?
Sua aparência faz dela um “livro”. E seguramente pode-se introduzir alguém a
um livro... mas é possível introduzir alguém, e do mesmo modo, a uma biblioteca?
Pois a Bíblia é uma biblioteca concebida, como veremos, durante vários séculos, mais
de um milênio... Nessas condições, seria possível fazer, em poucas páginas ou em
curtos capítulos, uma introdução a tantos livros produzidos durante numerosos sécu-
los? Seria o mesmo que se propor a fazer uma introdução à literatura portuguesa para
um chinês que a desconhecesse totalmente.
É por isso que, tendo-nos proposto a fazer uma “introdução” à Bíblia, é preciso
definir sua exata acepção e a finalidade para tentar escapar à ilusão de se obter co-
nhecimentos máximos mediante um mínimo de meios... Na verdade, não pode intro-
duzir alguém à Bíblia como tal, mas a cada um de seus livros ou de seus conjuntos de
livros, e isso implica um trabalho de grande fôlego.
Entretanto, pode-se tomar a Bíblia nas mãos e abrir esse livro, em geral conside-
rado como o livro por excelência. Depara-se, então, com uma escritura, ou antes, com
uma história feita de diferentes atos de escritura. Não se fala da Escritura ou das Es-
crituras para designar a Bíblia? Assim, as palavras Bíblia, Livro, Escritura e Escrituras
são freqüentemente tomadas como sinônimas pelos leitores, sobretudo se eles crêem
em Deus, embora alguns percebam que tais expressões não são exatamente equiva-
lentes, o que confirma, complicando um pouco mais as coisas, a existência de outra
designação, a de Palavra de Deus.
Dizer como a Bíblia foi escrita parece, portanto, num primeiro momento, um ca-
minho para a solução do problema levantado pela existência de tão diversas designa-
ções e pela questão de sua introdução. A Bíblia, na sua materialidade de livro palpá-
vel, que pode ser tomado, aberto e lido, nos leva, em um momento ou em outro, a nos
interrogarmos sobre a forma pela qual foi elaborada nessa mesma materialidade, ain-
da que seja forte em nosso espírito a convicção de que ela foi “inspirada”, de que é
“obra divina” ou “Palavra de Deus”. E aqui se apresenta um caminho particularmente
adequado para se fazer uma introdução à Bíblia.
A obra que apresentamos nesta edição eletrônica se propõe, em primeiro lugar,
atingir a materialidade desse livro chamado Bíblia. É por isso que, num primeiro mo-
mento, ela apresentará essa mesma Bíblia tal como a oferece o índice na multiplicida-
de de seus livros. E, como só se aprende a conhecer aquilo a que se é submetido ou
confrontado, a apresentação desses diferentes livros é pontuada de orientações e de
guias de leitura. Para cada um dos livros, foram assinalados alguns textos importantes
ou mais significativos da obra, constituindo-se assim numa como que primeira antolo-
gia bíblica.
Esta obra observa a ordem da subdivisão geral da Bíblia em Antigo e Novo Tes-
tamentos, bem como a ordem de cada um de seus livros, como apresentada na Tra-
dução Ecumênica da Bíblia, abreviatura TEB. Trata-se, portanto, de uma “introdução à
Bíblia” no sentido mais comum do termo.
Ao mesmo tempo, este manual descreve o modo pelo qual as Escrituras foram
elaboradas. Apresenta uma espécie de história da composição da Bíblia em seu con-
junto, o que se chama o estabelecimento do cânon, e também em cada uma de suas
grandes partes, que não coincidem necessariamente com a distinção dos diferentes
livros.
Dividimos esta obra em duas partes, compreendendo a primeira o Antigo Testa-
mento, e a segunda, o Novo Testamento. Ttrata-se de uma introdução à Bíblia na sua
integralidade, embora a perspectiva desse gênero de obra, que apela para conheci-
mentos mais aprofundados de cada um dos livros, seja realmente limitada.
Dispor de uma boa Bíblia, isto é, de uma boa tradução da Bíblia, faz parte do
mínimo requerido. Traduções não faltam, o que deveria impedir que se desviasse para
uma edição qualquer, especialmente para essas Bíblias ou trechos escolhidos da Bí-
blia que encontramos às vezes no fundo de nossos armários, difundidos pelo zelo in-
discreto e voluntário de muitas pessoas ou entidades distribuidoras. . . Poder-se-ia
definir a escolha entre uma das obras mais difundidas no Brasil que propomos a seguir
e cujas características apresentamos sumariamente.
Bíblia – Tradução Ecumênica, TEB, Edições Loyola, São Paulo. Um projeto e-
cumênico devido ao trabalho conjunto de católicos e protestantes em cada livro. Origi-
nalmente editada pela “Sociedade Bíblica da França”. Os livros “apócrifos” ou “deute-
rocanônicos” do cânon católico foram colocados no final do Antigo Testamento. Na
elaboração deste Manual “Como a Bíblia foi Escrita”, esta foi a Bíblia utilizada, motivo
por que sugerimos também sua utilização para leitura.
Bíblia de Jerusalém, BJ, Edições Paulus, São Paulo. Deve seu nome à Escola
bíblica e arqueológica francesa, mantida pelos dominicanos, que foram os responsá-
veis pela obra original. É produto da colaboração de numerosos tradutores. Segundo
os entendidos, trata-se da melhor tradução em termo de valor de conjunto.
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, tradução dos originais, numa linguagem popu-
lar. Paulus, São Paulo.
Bíblia Sagrada, da tradução francesa dos Monges de Maredsous (Bélgica). Edi-
tora Ave Maria, São Paulo.
Bíblia Sagrada, Co-edição de Editora Vozes, Petrópolis (RJ), e Editora Santuá-
rio, Aparecida (SP).
Bíblia Sagrada, Nova Tradução na Linguagem de Hoje, SBB – Sociedade Bíbili-
ca do Brasil, São Paulo.
Uma designação não é suficiente, contudo, para definir alguma coisa e menos
ainda para descrevê-la ou explicá-la. Assim, designar o “Antigo Testamento” só servi-
rá, de início, como já dissemos, para uni-lo ou opô-lo a um “Novo Testamento”.
Em outras palavras, por que razão devemos nos ineressar por um Antigo Testa-
mento? Ou seja, o que faz com que nós, como cristãos, possamos e devamos nos
interessar por ele?
“No início era o Verbo”, isto é, Cristo.
Todo cristão se define antes de tudo pela fé em Jesus Cristo, pela aceitação de
seu ensinamento e do mistério da Salvação, que envolve sua morte e ressurreição.
Dessa forma, se o Antigo Testamento apresenta algum interesse para ele, só será em
relação a Jesus, que não se reduz a uma figura e a uma vida terrestres, mas cuja figu-
ra e vida ultrapassam largamente o testemunho humano.
Assim foi para são Paulo, lembrando aos cristãos de Corinto o que ele próprio ti-
nha “recebido”:
“Por primeiro, eu lhes transmiti aquilo que eu mesmo recebi, isto é: Cristo
morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; ele foi sepultado, res-
suscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras (...)” (1Cor 15,3-4).
Por duas vezes aparece aí a expressão “conforme as Escrituras”. Paulo limita-se
a observar, sem nada explicitar, que o acontecimento da morte de Cristo “por nossos
pecados” e sua ressurreição “no terceiro dia” estão de acordo com as “Escrituras”, ou
ainda explicados por essas mesmas Escrituras. Ele reconhece, portanto, nos textos
que o precedem bem como precedem a Cristo, uma autoridade que garante a autenti-
cidade ou a verdade dos fatos que narra.
Fica claro assim que existiam Escrituras que confirmam e interpretam o duplo
acontecimenmto da morte e ressurreição de Cristo. E fica evidente também que tais
Escrituras deviam ser bem conhecidas por seus leitores, uma vez que o Apóstolo se
contenta em utilizar em sua narrativa i, simples jogo de alusões.
Assim uma designação diferente daquela de “Antigo Testamento” nos é ofereci-
da pela lembrança dessa primeira prédica cristã, que não poderia abster-se da re-
fer|ência, ainda que alusiva, às “Escrituras”.
Ora, muitas vezes o próprio Jesus precisa, se se pode dizer assim, essa aproxi-
mação com “as Escrituras”, indicando as passagens que fazem referência à sua morte
e ressurreição.
A uma pergunta provocadora dos escribas e fariseus, ele responde:
“Uma geração má e adúltera busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será
dado, a não ser o sinal do profeta Jonas. De fato, assim como Jonas pas-
sou três dias e três noites no ventre da baleia, assim também o filho do
Homem passará três dias e três noites no seio da terra” (Mt 12,39-40).
A palavra de Jesus remete seus interlocutores a uma pitoresca narrativa do Anti-
go Testamento, a da história de Jonas que, por não ter obedecido a Deus que lhe or-
denou que fosse predizer o castigo à cidade pecadora de Nínive, se vê obrigado a ir
até lá. . . no ventre de uma baleia!
De outro modo, Pedro, na ocasião da primeira pregação aos judeus após Pente-
costes, evoca um salmo para justificar a morte de Cristo seguida de sua estupenda
ressurreição:
“Homens de Israel, escutem estas palavras: Jesus de Nazaré foi um ho-
mem que Deus confirmou entre vocês (...) e vocês, através de ímpios, o
mataram, pregando-o numa cruz. Deus, porém, ressuscitou Jesus, liber-
tando-o das cadeias da morte, porque não era possível que ela o dominas-
se. De fato, Davi assim falou a respeito de Jesus: ‘Eu via sempre o Senhor
diante de mim, porque ele está à minha direita, para que eu não vacile. Por
isso, meu coração se alegra, minha língua exulta e minha carne repousa
em esperança. Porque não me abandonarás na região dos mortos, nem
permitirás que o teu santo conheça a corrupção’ “ (At 2,22-27)
Nessa passagem de seu discurso, Pedro remete seus ouvintes a um texto que
conheciam bem, pois fazia parte de um conjunto de preces, o livro dos Salmos, tradi-
cionalmente atribuído ao rei Davi. E acrescenta:
“Irmãos, quanto ao patriarca Davi, permitam que eu lhes diga com fran-
queza: ele morreu, foi sepultado e seu túmulo está entre nós até hoje. Mas
ele era profeta, e sabia que Deus lhe havia jurado solenemente fazer com
que um descendente seu lhe sucedesse no trono. Por isso, previu a res-
surreição de Cristo e falou: ‘ele não foi abandonado na região dos mortos e
sua carne não conheceu a corrupção’ “
Que importa uma argumentação que temos certa dificuldade de seguir com nos-
sa mentalidade moderna? O que conta é que, para o judeu Pedro, que se dirige a ju-
deus e fala do duplo acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, um caminho de
entendimento e de prova se impõe: a referência ao rei Davi, apresentado como profeta
e autor de salmos, nos quais pode se ler “antecipadamente” e, portanto, como um fato
anunciado e posteriormente realizado, a ressurreição de Cristo.
Assim, quando Paulo, dirigindo-se aos coríntios, lembra-lhes que Cristo foi morto
“pelos nossos pecados” e ressustiou no terceiro dia “de acordo com as Escrituras”,
quando Pedro cita uma passagem dessas Escrituras, o salmo 16, e quando o próprio
Cristo censura duramente os escribas e os fariseus em nome da realização da “figura
de Jonas” em sua morte e ressurreição, nesses três casos o acontecimento é dito,
relido e interpretado à luz de Escrituras antecedentes.
Para o cristão haverá sempre um momento em que o conhecimento e o estudo
dessas Escrituras se impõem. O Antigo Testamento, que as expressa doravante, deve
tornar-se uma leitura cristã, mesmo que esta não possa sempre ser feita de acordo
com o modo de leitura das primeiras gerações das quais testemunham Pedro, Paulo e
o próprio Cristo.
Tal como a conhecemos por meio da Bíblia, essa língua é relativamente recente,
sua escrita alfabética é posterior à invenção e à difusão da escritura alfabética no anti-
go Oriente-Próximo, ou seja, bem depois do século XV a.C. Assim, a Bíblia não pode
assegurar textos anteriores ao século XII e as primeiras grandes redações (ciclos de
narrativas, códigos legislativos ou compilações de textos de sabedoria) não são real-
mente plausíveis antes do século IX a.C.
Em resumo, em suas partes mais antigas, o Antigo Testamento só oferece al-
guns textos que podem remontar aos séculos XII e XI a.C; já os textos mais desenvol-
vidos só são datáveis dos séculos X-IX, e o essencial de uma redação mais organiza-
da situa-se entre os séculos VIII e III a.C.
Essas datas vão consequentemente estabelecer uma distância importante entre
os mais antigos escritos que podemos levantar e os acontecimentos neles relatados,
fundadores ou não. Assim, é preciso registrar, às vezes, espaços de cinco a oito sécu-
los entre determinada personagem ou acontecimento e a referência escrita que o texto
hebraico do Antigo Testamento apresenta sobre ela. Se se acrescentar a isso o fato
de que as personagens mais antigas, os Patriarcas, em geral situados entre os sécu-
los XVIII e XVI a.C., sem dúvida não falavam o hebraico, pois essa língua é relativa-
mente tardia, pode-se pressentir aí um dos maiores problemas que grande parte da
redação do Antigo Testamento apresenta para o leitor: que grau de confiabilidade po-
de se conceder a tais narrativas?
Como quer que seja, o hebraico foi utilizado como língua de redação do Antigo
Testamento durante uma dezena de séculos.
2. Em aramaico
DO HEBRAICO AO ARAMAICO
3. Em grego
A LEI OU PENTATEUCO
A Lei designa a primeira parte do Antigo Tgestamento e abrange o que explicita
o nome de origem grega, Pentateuco, ou seja, cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronônio.
Mas, por que distinguir esses cinco primeiros livros dos seguintes, se, como ve-
remos, há uma relação de continuidade com a segunda parte do Antigo Testamento?
É justamente a designação tradicional desses cinco livros como Lei (em he-
braico, Torá), portadora de uma forte carga simbólica, que permite justificar o agrupa-
mento desses cinco livros. No “Pentateuco” Israel vai reencontrar tudo o que fornece
as bases para uma comunidade religiosa e nacional, os ancestrais e primeiros guias,
os princípios doutrinais e um corpus propriamente legislativo. Nesse sentido, a palavra
“Lei”, tomada em sentido bastante amplo, define bem esse conjunto de livros e ao
mesmo tempo o delimita sem, contudo, cortar sua ligação com os outros livros.
Reconhecer os patriarcas
Embora não seja o caso de entrar em todos os detalhes de uma rica história
que permanece sempre muito familiar em seu objeto e estilo, o livro do Gênesis cons-
titui, de certa forma, a partir do capítulo 12, os primeiros arquivos do povo de Israel.
São arquivos que lhe permitem situar-se na existência não só em relação à criação do
universo e da humanidade, mas também em relação aos outros povos por meio de
ancestrais nos quais se reconhece. Esse reconhecimento vem de início pelo nome:
Israel é o "cognome" dado por Deus a Jacó, neto de Abraão, mas vem também pela fé
que anima esses grandes ancestrais, e por suas ações, ainda que essas ações nem
sempre estejam dentro dos limites de uma moral mais rigorosa. Mas, sobretudo, poder
dizer-se "filho de Abraão" constituirá até Cristo e até hoje essa garantia de identidade.
Portanto, não se trata apenas da questão da "Lei" no conjunto desse livro, feito
sobretudo de narrativas frequentemente pitorescas e de manifestações muitas vezes
aterradoras de Deus a homens que finalmente ele tranquiliza e cumula de promessas
e nquezas.
" Eu sou YHWH, Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó ... "
É nesses termos que muitas vezes, Deus se apresenta no decorrer do Antigo
e mesmo do Novo Testamento, marcando com um selo especial os grandes ances-
trais de seu povo, Israel, que ele mesmo traz o nome, recentemente dado a Jacó num
episódio famoso, sua luta misteriosa com "Alguém" (cf. Gn 32,23-33).
Esses três ancestrais são apresentados segundo a ordem de filiação: Abraão
gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, que teve por sua vez doze filhos que deram origem às
doze tribos que formam Israel.
Como todas as figuras e acontecimentos de origem, os Patriarcas e os grandes
episódios de suas vidas dificilmente poderão ser apreendidos em linguagem de histo-
riador, isto é, segundo as leis da pesquisa histórica e da crítica das fontes. De certa
forma, trata-se de personagens e de acontecimentos que "se perdem na noite dos
tempos" a despeito das inúmeras tentativas de datação. Entretanto, ao se ler o texto
do Gênesis a partir do capítulo 12 e apesar dos problemas que essa leitura apresenta
ao leitor atento, as figuras dos Patriarcas revelam uma força extraordinária que não
provém apenas do caráter pitoresco de suas aventuras (a esse respeito leia-se, por
exemplo, a negociação de Abraão para a compra do terreno de seu túmulo em Gn 23,
ou a forma pela qual Jacó adquire um rebanho à custa de seu sogro em Gn 30,25-43).
É uma força que provém sobretudo do caráter das relações que esses homens man-
têm com Deus, relações que os tornam figuras exemplares e justificam a referência a
Deus como Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó.
É portanto na fé que é preciso se ater em primeiro lugar, fé que põe Abraão
em ação mesmo quando as garantias que tinha pareciam apenas promessas impossí-
veis: ter um filho numa idade muito avançada e dispor de um território que fará de sua
descendência uma nação! É essa mesma fé que fará Jacó submeter-se a Deus, erigir-
lhe altares e abençoar os filhos no momento de sua morte, quando sua esperteza e
habilidade, nos limites frequentemente ultrapassados de sua desonestidade, teriam
podido fazê-lo crer que ele próprio já possuía tudo o que lhe seria necessário para
sair-se bem por si mesmo dos maus passos.
A vida desses homens não se reduz, portanto, ao anedótico dos episódios que
pontuam seu itinerário. Porém, é esse mesmo itinerário que se torna exemplar, simbó-
lico daquilo que toda pessoa que crê tem para viver no curso de sua existência: fé em
Deus sobretudo no âmago do incompreensível, confiança naquele que guia todos os
seres, mas que, ao mesmo tempo, respeita a liberdade, a iniciativa e os limites pesso-
ais. . .
O livro do Êxodo fornece os fundamentos, por assim dizer, para esses três
grandes elementos básicos da vida e da compreensão do povo de Israel.
A festa da Páscoa, comemorando a saída do Egito e cujo ritual é descrito no Ex
12,1-28, é a maior festa do ano. Abrindo caminho para o prodígio do mar Vermelho
(Ex 14), lembra a ação salvadora de Deus em termos de verdadeira criação (segundo
sobretudo os termos fundamentais do primeiro capítulo do Gênesis), pois é um Israel
novo que vai surgir do meio das águas separadas, contidas pelo vento do leste, para
chegar à Palavra de Deus, no Sinai.
Essa Palavra se concretiza numa Lei. Novamente aqui o prodígio marca a ma-
nifestação divina (cf. Ex 19,16ss) ao ponto de aterrorizar o povo que irá preferir que
seja Moisés a lhe falar dali em diante e não o próprio Deus (cf. Ex 20,18-21). Essa Lei,
introduzida pelo "Decálogo" (ou "as Dez Palavras", cf. Ex 20,1-17), trata, portanto, pri-
meiro da natureza de Deus, do respeito que se deve ter em relação a ele, dos deveres
gerais do homem para com seu próximo. Em seguida ela se concretizará tanto em
indicações do tipo ritual (para a liturgia, as festas religiosas, os sacrifícios ...) como em
indicações de tipo legislativo, habitual em toda comunidade nacional.
Mas essa Lei se inscreve por sua vez num conjunto, a Aliança.
A Aliança descreve de maneira mais clara e forte a relação entre Deus e Israel.
Ela é expressa, por certo, mediante narrativas, principalmente daquela que fala da
proclamação da Lei no Sinai (cf. Ex 19,3ss), mas também por meio de uma constru-
ção litúrgica que talvez tenha servido para a elaboração de uma parte do livro do Êxo-
do.
Dessa forma, em diversos momentos de sua historia, Israel renovará a Aliança
com Deus mediante cerimônias que obedecem ao seguinte esquema: 1) convocação
do povo; 2) proclamação de YHWH; 3) lembrança dos prodígios realizados por YHWH
para seu povo durante o curso da história; 4) proclamação da lei divina seguida das
cláusulas de bênção (para a fidelidade) e de maldição (para a infidelidade); 5) adesão
do povo; 6) rito (sacrifício, elevação de um altar, aspersão do povo ... ); 7) despedida
do povo.
Pode-se levantar em linhas gerais esse esquema em Ex 19,1 a 24,8.
Para um modelo de cerimônia de renovação da Aliança, pode se reportar ao
capítulo 24 do livro de Josué.
3. O terceiro livro do Pentateuco, o Levitico, trata principalmente, como o nome
indica, da codificação das funções, cargos, costumes e papel da casta sacerdotal, os
Levitas. Entretanto, não se pode reduzi-lo a tal codificação, pois descreve também a
chamada "lei da santidade", ou seja, conjunto de leis, preceitos, conselhos diversos
destinados à santificação dos membros do povo.
4. O quarto livro, ou livro dos Números é assim chamado porque contém o re-
censeamento e a enumeração dos membros do povo durante o seu errar pelo deserto.
Liga-se também à história iniciada no livro do Êxodo do qual constitui a sequência
normal.
LER ALGUMAS PÁGINAS
PROFETAS "ANTERIORES"
3. Após o livro dos Juízes, entre os quais Samuel ainda é contado pelo redator
do primeiro livro que traz seu nome, o primeiro e segundo livros de Samuel constituem
a história da instituição da monarquia.
Embora se trate sempre de uma história santa, que se passa entre Israel e seu
Deus, entramos aqui, mais do que com o livro de Josué ou dos Juízes, numa leitura
mais objetiva dos fatos. Ou seja, com a instituição da monarquia, Israel integra-se na
história no sentido clássico do termo. E, de fato, os dois livros de Samuel constituem
uma espécie de nascimento em ato da historiografia e uma obra prima da literatura de
Israel.
Essa nova etapa começa bastante mal. A idéia de um rei fora imposta pela
pressão dos fatos aos anciãos de Israel, que vieram procurar aquele em quem ainda
reconheciam uma grande autoridade moral, o juiz Samuel, para que ele designasse
um rei. O objetivo era acabar com a instabilidade política do tempo dos Juízes e ade-
quar-se a essa lei de constituição dos estados que é a única que assegura o reconhe-
cimento e a existência de uma nação, a instituição monárquica. Tais eram os imperati-
vos e as evidências do contexto. No entanto "não agradou a Samuel a frase que eles
disseram: 'Dê-nos um rei’ “.
Na verdade, as causas desse "desagrado" são complexas: recusa da comuni-
dade em reconhecer a autoridade de seus próprios filhos, o não-reconhecimento de
Javé como o "único verdadeiro rei" de Israel, mas dependem também de uma tradição
do povo hebreu que nunca deixou de encarar essa instituição com certa restrição. Até
o desaparecimento da monarquia em 587, Israel vai sempre oscilar entre uma atitude
favorável e uma atitude de oposição, ao mesmo tempo em que construía aos poucos a
expectativa de um rei ideal na pessoa do messias*.
O primeiro livro de Samuel narra em linhas gerais as origens da monarquia, a
escolha de Saul como o primeiro rei, suas batalhas para construir um reino digno des-
se nome, seu abandono por Deus em conseqüência de suas faltas, ao mesmo tempo
em que já surgia um rival, o jovem Davi, logo beneficiado pelos favores divinos e con-
sagrado por Samuel, que lhe levaria a unção.
4. Encerrando-se com a morte heróica do rei Saul, o primeiro livro não se distin-
gue verdadeiramente do segundo, que se inicia com a consagração efetiva de Davi
como rei, o qual já havia escolhido sua capital, Hebron, local da sepultura dos Patriar-
cas.
O segundo livro trata sobretudo do reinado de Davi, que se envolve em sombra e
luzes: as sombras dos pecados pessoais do rei, da traição de seu filho Absalão; as
luzes de seu arrependimento e de sua coragem, a luz sobretudo do estabelecimento
de Jerusalém como capital. Finalmente a velhice, enfraquecendo-lhe as energias, to-
ma-o um joguete das intrigas de sucessão.
As intrigas da sucessão explodem no início do primeiro livro dos Reis que é uma
continuação do segundo livro de Samuel. Dois capítulos serão suficientes para que
seja resolvida uma nova etapa dessa história: a elevação a rei, por meio do compro-
metimento e do crime, do sucessor de Davi, seu próprio filho, Salomão, em rivalidade
com outros pretendentes.
5. É, no entanto, com Salomão que o primeiro livro dos Reis nos oferece em oi-
to capítulos o modelo do rei ideal. Dotado por Deus de sabedoria e poder real, exce-
lente administrador, construtor do Templo do Deus único, Salomão é o rei por exce-
lência, isto é, sábio por excelência. Porém, a história terminará mal, com Salomão se
deixando perder na idolatria por suas concubinas estrangeiras, enquanto um de seus
oficiais, Jeroboão, tentava um golpe de estado.
O golpe realmente ocorreu após a morte do rei e com ele terminou a unidade
inicial do reino de Davi. Daquela época em diante o povo único do Deus único se veria
dividido em dois reinos de importância desigual: o reino do Norte, governado por Jero-
boão, também chamado de reino de Israel, econômica e culturalmente mais rico do
que o reino do Sul, ou reino de Judá, governado por Roboão, filho de Salomão. O
cisma nascido dessa divisão constituiria antes do Exílio de 587 a grande provação da
história de Israel até a queda do reino do Norte em 721. A partir daí o reino do Sul se-
ria o único a representar o povo de Deus diante das nações vizinhas cada vez mais
ameaçadoras nas fronteiras de um território exíguo demais.
A história relatada nos dois livros dos Reis e que termina com o episódio da
queda de Jerusalém em 587 atacada pela Babilônia, já não apresenta mais o vigor
narrativo e aquela espécie de regozijo característico dos livros de Samuel. A narrativa
assemelha-se, em sua forma, a uma espécie de ladainha desolada de reis pecadores
que "fizeram o que é mal diante dos olhos de Javé".
Esses diferentes reinados, narrados em poucos parágrafos, às vezes em al-
gumas linhas apenas, são julgados sobretudo pela fidelidade ou mais freqüentemente
pela infidelidade do rei a Deus e à Aliança. A causa da queda dos dois reinos é expli-
cada pelos respectivos pecados.
Nesse ponto se detém a primeira seção da segunda parte dos livros da Bíblia
hebraica. Por várias razões oriundas do próprio caráter de biblioteca do Antigo Testa-
mento e, portanto, dos azares da história complexa de sua redação (cf. a seguir, cap.
III, pp. 67ss.), a continuação dessa história só vai ser encontrada na terceira parte, os
Escritos. Por enquanto, devemos tratar da segunda seção desta segunda parte, que
marca a primeira verdadeira ruptura da continuidade histórica observada
nos livros enumerados até aqui.
PROFETAS "POSTERIORES"
A segunda seção dos "Profetas" é chamada "Profetas posteriores". Como já
observamos, os "Profetas posteriores" reúnem na realidade as compilações de prega-
ções e de anotações biográficas e autobiográficas dessas personagens fascinantes
que foram os Profetas de Israel.
1. Como sucede com muitos termos da língua corrente, a palavra "profeta" vem
sendo comumente utilizada num sentido diverso do original. Em nossa cultura, "profe-
ta" dá idéia de predição, e portanto de conhecimento do futuro, o que o toma quase
sinônimo de "adivinho" ou de "cartomante". Embora os profetas tenham chegado em
determinados momentos a "falar sobre o futuro" sem no entanto garantir a fiabilidade
de seu presságio, o papel que desempenharam sobretudo originalmente estava bem
distante da predição.
O profeta era na realidade um mensageiro de Deus encarregado de denunciar
o pecado de Israel e eventualmente adverti-lo da eminência do castigo divino, em geral
sob forma de uma invasão estrangeira. Na verdade ele terá às vezes de "predizer o
futuro", mas esse futuro poderá se modificar se, nesse meio tempo, o povo se arre-
pender de sua má conduta.
Tal pregação supõe naturalmente a familiaridade com Deus, familiaridade que
o próprio profeta marca pela fórmula com que abre e fecha a maior parte de suas in-
tervenções: "Assim fala o Senhor..." Correlativamente, o profeta aparece como um
feroz defensor da Aliança, como uma espécie de arauto da honra de Deus injuriada
por seu povo.
Ao mesmo tempo ele se manifesta como um leitor ou mais exatamente um re-
leitor da história de Israel desde suas origens, seja desde Abraão e Jacó, seja mais
freqüentemente desde o Êxodo, a saída do Egito, o vaguear pelo deserto. A história
lhe serve ora para lembrar a fidelidade passada de Israel ora a constância de suas
infidelidades presentes.
O conjunto que designa os "Profetas posteriores" é constituído por três "gran-
des profetas" Isaías, Jeremias e Ezequiel (aos quais as tradições grega e latina acres-
centam Daniel, apresenta- do, no entanto, pela Bíblia hebraica no livro dos "Escritos"),
e por doze "pequenos profetas". É preciso observar o caráter artificial da designação
"grandes / pequenos", que se baseia apenas na diferente extensão da narrativa. É
necessário, portanto, ignorar essa classificação ou distinção para entender melhor a
natureza desses textos, cuja abordagem, ao contrário da maior parte dos livros estu-
dados até aqui, vai ser bastante difícil.
Embora, por razões complexas de se determinar, somente a partir do século
VIU possa ser assinalado o registro escrito da pregação de alguns desses profetas, o
fenômeno profético surgiu na verdade bem anteriormente, tanto é que os livros de
Samuel e dos Reis se referem a eles em vários momentos.
Contudo, são os livros proféticos que asseguram o teste- munho mais claro do
grande profetismo de Israel, que, na verdade e com mais propriedade do que a classi-
ficação arbitrária que todas as nossas Bíblias apresentam, divide-se em profetas pré-
exilicos, profetas exílicos e profetas pôs-exilicos.
Nem tudo foi fácil para Isaías, muito provavelmente saído de um meio social
que lhe facilitava acesso fácil ao rei, que este lhe tenha sido favorável, como Ezequias,
ou desfavorável como Acaz.
Mas é evidentemente a força de sua mensagem que faz de Isaías o grande
profeta que conhecemos. Obsecado pela santidade de Deus, como exprime sua mag-
nífica "narrativa de vocação" (Is 6), não cessa de denunciar o pecado do povo e de
seus govemantes aos quais promete os piores castigos mediante a invasão militar que
aniquilará a nação e a reduzirá a um território de nômades! Porém, ao mesmo tempo,
para além desses castigos, anuncia uma extraordinária salvação que irá se concre-
tizar progressivamente com o advento da misteriosa figura de um filho do rei ...
5. Ezequiel apresenta um caso um tanto bizarro, não apenas por causa do ca-
ráter quase fantástico de certo número de seus textos, mas também pelo fato de que
transita por duas épocas, dois modos de expressão literária e dois tipos de profetismo:
o "profetismo de ameaça", característico da época imediatamente anterior ao Exílio e o
"profetismo de consolação", característico do tempo do Exílio.
Embora seja difícil situar sua "vocação" relatada numa extraordinária visão no
início do livro, sabe-se, no entanto, que o profeta fez parte da primeira deportação em
597, dez anos antes da queda de Jerusalém, quando os notáveis do reino de Judá
foram conduzidos, com um pesado tributo, à Babilônia. Ezequiel foi, portanto, incluído
entre esses notáveis, sem dúvida por causa de seu caráter sacerdotal.
A situação de Exílio explica uma das grandes particularidades de sua mensa-
gem: o fato de ter sido, em grande parte, não falada mas diretamente escrita. Envia-
dos de Jerusalém vinham buscar a "mensagem" que o profeta devia transmitir aos
compatriotas que tinham permanecido no país. Porém, mais tarde, quando esses
compatriotas deportados reúnem-se por sua vez a ele na Babilônia, Ezequiel se toma
o "profeta da consolação", como o segundo Isaías.
O contexto social da época e a limitação decorrente do fato de tratar-se de um
texto escrito, explicam por que Ezequiel ultrapassa a expressão profética tradicional.
É por isso que, mais do que seus predecessores, ele está ligado à origem de
um gênero literário novo, que terá posteriormente muito sucesso no Judaísmo pré-
cristão e no cristianismo nascente, o gênero apocalíptico (cf. pp. 62-63). Esse gênero,
baseado na visão, apresenta forte elaboração literária, ao ponto de muitas vezes pare-
cer hermético para os próprios contemporâneos, e às vezes continuar assim nas épo-
cas posteriores que perderam o código simbólico, embora se apóie largamente na
releitura de figuras e acontecimentos do passado, em vista de uma compreensão mais
aprofundada dos acontecimentos do presente.
Ezequiel, profeta da esperança, elaborará no exílio o projeto de um Templo i-
deal, com que encerra o seu livro.
6. Mesmo que seja preciso deixar na sombra os profetas do pós-exílio, não po-
deríamos terminar esta introdução aos profetas sem falar do segundo Isaías. Voz anô-
nima a clamar no deserto, muito embora apresente sua "narrativa de vocação" (Is
40,3), esse profeta, provavelmente um sacerdote, deixou uma mensagem original.
Adaptado à situação dos exilados, propõe- se de início a uma mensagem de consola-
ção (Is 40,1-2).
É uma consolação que vai concretizar-se no reconheci- mento de um "servidor"
que primeiro toma a figura do conquistador da Babilônia, Ciro, o qual como soberano
pagão vai autorizar Israel a regressar para Jerusalém. Mais tarde esse servidor tomará
progressivamente o perfil de uma figura de sofrimento redentor, ultrapassando todas
as representações já feitas sobre a personagem que estaria para chegar, na figura do
Messias.
O segundo Isaías, como seus predecessores, ou talvez ainda mais que estes,
faz a releitura da história e vai insistir na originalidade do novo Êxodo que Israel terá
de efetuar para voltar à sua Terra!
OS ESCRITOS
Após a relativa particularidade das duas primeiras partes do Antigo Testamen-
to, o próprio título da terceira, "os Escritos", corre o risco de fazê-Ia parecer como um
fourre-tout do que podia entrar nas duas outras. De fato, a enumeração desses livros
é bastante heteróclita, tanto mais que, embora certo número deles não possa integrar-
se nas duas primeiras partes, outros, ao contrário, tais como Esdras e Neemias, entra-
riam normalmente na lista dos livros dos "Profetas anteriores", enquanto que Treno ou
Lamentações de Jeremias e o livro de Daniel poderiam entrar, e efetivamente entram
nas Bíblias cristãs, na categoria dos "Profetas" (ou "Profetas posteriores" segundo a
Bíblia hebraica) ...
AS FAMÍLIAS DE SALMOS
1) Os louvores:
É preciso, no entanto, observar que o conjunto dos Salmos não encerra todas
as preces e toda hinologia de Israel. O Pentateuco, os livros históricos propriamente
ditos bem como os livros proféticos são pontuados por salmos, hinos e diversas pre-
ces. A importância do conjunto dos Salmos de certa forma ultrapassa as outras partes
do Antigo Testamento, mas são estas que fornecem a temática, o motivo de prece de
numerosos salmos.
A PRECE DE ISRAEL
QUE NÃO FAZ PARTE DO SALTÉRIO
2. O livro dos Provérbios vem imediatamente após o livro dos Salmos, embora
não haja a menor relação lógica ou cronológica nessa seqüência. Com ele entramos
num gênero específico e particularmente importante não só no Antigo Testamento
como também na expressão de todas as culturas: a sabedoria ou o gênero sapiencial.
Como se sabe, não há nada de mais universal que a sabedoria. Popularmente
expressa em dísticos ritmados e rimados, vamos encontrá-Ia portanto no livro dos
Provérbios semelhante às compilações e coleções de provérbios de todas as culturas.
Entretanto, o livro dos Provérbios não se reduz a essa coleção de fórmulas e
sentenças que, em sua maior parte, expressando uma sabedoria bastante banal, pou-
co testemunha da fé de Israel. Porém, em algumas partes do livro, sobretudo nos nove
primeiros capítulos, exprime-se uma doutrina própria sobre a Sabedoria personificada,
considerada próxima de Deus, mas ao mesmo tempo ao alcance de todos.
3. O livro de Jó, que vem após o livro dos Provérbios, liga-se ao gênero sapi-
encial. A partir da história fictícia de um justo abatido por desgraças pessoais que lhe
atingem a família, os bens e a própria carne, é proposta uma reflexão sobre o sofri-
mento, a providência e a justiça divinas, o mal e os discursos consoladores ou acusa-
dores. A narração dos fatos é reduzida ao mínimo e apresentada no início e no fim do
livro; a maior parte do livro é formada por longos discursos do próprio Jó e dos quatro
amigos que vêm visitá-Io, que expõem as diversas posições diante do sofrimento. Fi-
nalmente a intervenção divina faz calar os visitantes e o próprio Jó que, paciente, re-
cuperará uma família e seus bens.
O LIVRO DE JÓ
Esse livro merece ser lido em sua integralidade. Porém, a ex-
tensão de seus períodos e determinadas considerações pode-
rão cansar o leitor. Assim pode se selecionar al-guns trechos
para leitura:
COÉLET OU ECLESIASTES
5. Com o Cântico dos Cânticos (que segue o livro de Jó), o livro de Rute, as
Lamentações (ou Treno, isto é, conto plangente), o Coélet e o livro de Ester, depara-
mo-nos com o que a liturgia judaica chama de "Cinco Manuscritos". Essa designa- ção
não significa a unificação dos cinco livros em relação à sua natureza, mas apenas
mostra que eles são utilizados por ocasião de festas religiosas: o Cântico dos Cânticos
para a Páscoa, o livro de Rute para o Pentecostes, Lamentações para o aniversário da
destruição do Templo por Nabucodonosor em 587, Coélet para a festa das Tendas (ou
dos Tabernáculos) e Ester para a festa de Purim. Esse agrupamento, embora não nos
informe sobre a natureza e o conteúdo dos livros, tem pelo menos a utilidade de nos
mostrar a ligação dos livros bíblicos com a liturgia.
O Cântico dos Cânticos é na origem um poema de amor em oito cantos que vai
simbolizar, por sua introdução no corpo do Antigo Testamento, o amor de Deus por
seu povo. Poetica- mente muito sensual, deve ser lido à luz do simbolismo da história
de Israel e de suas relações com Deus.
O livro de Rute, que pelo assunto não teria seu lugar aqui, propõe-se a fazer a
transição entre o livro dos Juízes e o primeiro livro de Samuel e apresenta, no final de
uma curta história de tom edificante, a genealogia dos ancestrais de Davi.
OS "CINCO MANUSCRITOS"
6. O livro de Daniel poderia nos levar ao gênero profético. Ele pertence mais
exatamente ao gênero apocalíptico. Esse gênero tipicamente judeu tardio, originário
em parte da tradição profética, exprime-se e desenvolve-se num tempo de persegui-
ção. O visionário do apocalipse fala da "revelação" (sentido da palavra "apocalipse")
que lhe foi feita para que ele compreenda e explique a seus irmãos a causa de tal pro-
vação: a perseguição é apenas a manifestação visível na Terra de um combate maior
que acontece no mundo celeste e que coloca em luta o próprio Deus e seus anjos con-
tra as forças do Mal. Israel recebe o contragolpe desse combate, porém pertence ao
campo dos justos, isto é, Deus lhe assegurará a vitória final.
Redigido num estilo particularmente brilhante, feito de imagens e de símbolos,
o livro de Daniel não nos é, sem dúvida, um texto familiar e já suscitou interpretações
da mais alta fantasia ou mesmo próximas do delírio. Trata-se, no entanto, de uma ex-
pressão perfeitamente controlada, verdadeira releitura dos grandes temas do Antigo
Testamento, o que supõe um bom conhecimento bíblico.
Porém, o livro não é feito apenas da expressão apocalíptica, encerra também
episódios históricos, da literatura maravilhosa e cantos ou hinos assimiláveis a salmos.
O LIVRO DE DANIEL
ESDRAS E NEEMIAS
Os dois livros das Crônicas podem ser considerados como uma releitura purifi-
cante e, portanto, edificante dos dois livros de Samuel e dos Reis. Retendo apenas os
aspectos positivos da vida de Davi e sobretudo de Salomão, idealizam a história de
Israel de acordo com a Lei e a liturgia divinas. Seu interesse é por conseguinte compa-
rável aos livros de Samuel e dos Reis. Para observar isso pode se tomar um ou outro
capítulo desses livros e se reportar em seguida aos textos correspondentes dos livros
de Samuel e dos Reis.
AS CONDIÇÕES DA ESCRITURA
A multiplicidade dos livros, as grandes diferenças de gênero literário, de estilo,
de forma nos levam a reconhecer no Antigo Testamento diferentes processos de ela-
boração, mesmo porque não se pode produzir uma canção como uma lei, uma lenda
como um provérbio, um livro de história como um poema. Entretanto, numa cultura
como a de Israel, a aparição de arquivos ou a preocupação de conservar por escrito
lembranças, tradições, leis e sabedoria deve ter ocorrido num certo aspecto da mesma
forma que em todas as outras culturas. Nesse aspecto, antes de chegar ao que espe-
cifica a escritura do Antigo Testamento como obra religiosa, sagrada, iremos ver nele
o que pode relacionar-se com o procedimento geral da escritura comum a todas as
culturas.
O Antigo Testamento apresenta, com efeito, um caso bastante extraordinário
de constituição e de conservação de biblioteca. Se por um lado Israrel conheceu, so-
bretudo no plano político e técnico, alguns atrasos — chegou à escrita, à monarquia e
à idade do Ferro II bem após numerosas culturas vizinhas — por outro lado representa
um dos testemunhois mais antigos de uma cultura consciente de si mesma.
Certamente a Suméria, o Egito, a Assíria oferecem documentos consideravel-
mente mais antigos. Mas, sobretudo pela consciência religiosa, Israel conseguiu cons-
tituir um conjunto com uma perseverança e segundo uma coerência de intenção que
fazem dela um caso único entre as culturas vizinhas. Embora o Antigo Testamento
atual esteja longe de encerrar tudo que Israel produziu, esse aspecto cultural não po-
deria ser esquecido ou negligenciado.
Em todas as literaturas do antigo Oriente-Próximo, há um momento e um meio
considerados favoráveis ao nascimento e desenvolvimento de uma atividade literária
digna desse nome: é o momento e o meio da instituição monárquica.
As cortes reais, por razões às vezes de ordem econômica e política, eram o lu-
gar de certa produção literária. Seja para assegurar a conservação dos arquivos di-
plomáticos e administrativos, leis, decretos e regulamentos, seja para guardar a me-
mória dos grandes feitos reais, muitos motivos concorriam para despertar o interesse
do soberano em favor da escritura. Por outro lado, quando se conhece a técnica da
escrita na Antiguidade, o custo dos suportes e, portanto, o preço de toda obre escrita,
torna-se evidente que somente o poder e a fortuna de um soberano poderiam garantir
a compra do material, o sustento dos escribas e secretários, e finalmente a conserva-
ção dos arquivos.
A instituição da monarquia em Israel foi particularmente tardia e laboriosa e só
conheceu verdadeira estabilidade no reinado de Salomão. Portanto, o século IX consti-
tui um bom marco para situar as primeiras produções literárias de certa importância.
Muitos dos conjuntos de textos que trataremos mais à frente datam aparentemente
desse primeiro período real, embora não digam respeito aos interesses e exigências
do poder real.
No entanto é bom observar que o século IX é apenas um marco, uma espécie
de ponto fixo, não um começo absoluto, pois a prática da língua hebraica e da escrita
alfabética que essa língua vai utlizar precedem largamente a instituição monárquica.
Entretanto, antes de retornar aos textos que podemos datar de antes do esta-
belecimento do primeiro reinado em Israel, afastemos o risco de certas ilusões e inge-
nuidades na leitura.
A maior delas consistiria em considerar como quase contemporâneos os acon-
tecimenmtos mais antigos e o registro escrito dos mesmos. Realmente, está fora de
cogitação que a redação da “história de Adão e Eva”, do Dilúvio, dos Patriarcas, ou
seja, o livro do Gênesis, tenha ocorrido logo após os acontecimentos que relata. A
origem do universo e da humanidade por definição, mas também a história de Abraão,
Isaac e Jacó e de seus filhos situam-se em épocas em que não existiam nem a escrita
nem a língua hebraica clássica nem as condições mínimas de redação. Em suma, o
livro do Gênesis, embora se apresente como o primeiro livro da Bíblia, não pode ser
considerado como o primeiro a ser escrito.
Por sua vez, o livro do Êxodo, embora relate acontecicmentos que se passam
cerca de quatro séculos após os relatados no fim do livro do Gênesis, também não
escapa a essa constatação. Embora alguns elementos arqueológicos de uma escrita
pré ou paleo-hebraica tenham sido levantados nos desertos do Sinai e de Negueb,
não se pode deduzir, por esses tênues indícios, uma atividade de escrita capaz de dar
conta da composição de um livro como o Êxodo na época dos aconecimentos que
relata, ou pouco após.
Os livros do Gênesis e do Êxodo cobrem vários séculos de história, cinco ou
seis pelo menos se não levarmos em conta os onze primeiros capítulos do Gênesis
que tratam das primeiras idades da humanidade. Certo número de questões se coloca
ao historiador em relação à natureza e ao valor de seu conteúdo.
Outra ilusão ou ingenuidade consiste em julgar que a escritura teria apenas fi-
xado posteriormente um texto originário da tradição oral. Assim, de século para século,
ou mesmo de milênio para milênio, os homens teriam transmitido boca a boca o que o
texto nos permite hoje atingir. Tal hipótese, porém, só é possível se levarmos em con-
ta certo número de condições, constatações e nuanças.
Como sabemos, no ser humano, em toda cultura, a palavra é sempre anterior à
linguagem escrita e os processos de oralidade e, portanto, de conservação de texto
oral, distinguem-se nitidamente da escrita.
A tradição oral geralmente veicula textos ritmados ou assonâncias, fatos de re-
petiçãol, “refrãos”, processos mneumotécnicos. Por causa disso, e paradoxalmente, a
conservação oral gera textos longos, marcados por recorrências de sons e de ima-
gens, que se destinam à memorização do fato transmitido e à descrição de seu pito-
resco. É por isso que as tradições orais se exprimem geralmenteem cantos, senten-
ças, discursos e poemas épicos, ou transformam em cantos, sentenças, discursos e
poemas épicos o que elas querem transmitir.
O reconhecimento desse processo não deve ser negligenciado, pois permite
levantar no corpus do Antigo Testamento os textos que carregam ainda a marca de
uma tradição oral. Nesse sentido, o cântico de Moisés no Êxodo (cf. Ex 15), o cântico
de Débora no livro dos Juízes (cf. Jz 5) podem ser considerados como textos antigos,
“primitivos”, embora eles tenham passado depois, no estado escrito, por modificações
e acréscimos.
O processo de escritura, ao contrário, e em particular na Bíblia, impõe aos tex-
tos, sobretudo às narrativas, efeitos de condensação. Assim uma história que, para ser
contada, exigiria muitos minutos, vai ser reduzida a alguns versículos que podem ser
lidos em alguns segundos. E essa será uma das características da arete de numero-
sos redatores do Antigo Testamento, dos livros históricos (“os profetas antreiores”),
mas sobretudo do Gênesis e do Êxodo, arte de nos contar um fato com um mínimo de
palavras e de frases, de tal modo que na maior parte das vezes não se pode eliminar
uma sem comprometer a harmonia e a significação do conjunto.
Essa arte de condensação se explica em grande parte pela função da escritura
na Antiguidade e por suas condições de produção. Utilizar um suporte dispendioso e
difícil como o papiro e, mais tarde, o pergaminho, instrumentos de escritura pouco cô-
modos como o estilete, o buril ou o cálamo obrigava a esses prodígios de condensa-
ção, de que são um testemunho os livros de narrativas, os livros de prédicas e sobre-
tudo os esquemas de prédicas dos profetas. Assim, pode se estar certo de que, ao
contrário do que normalmente se pensa, quanto mais curto e condensado é um texto,
mais possibilidade ele tem de pertencer a um processo de elaboração escrita, o que
não exclui de forma alguma a sua anterioridade oral, na qual ele provavelmente seria
formado de sequências bem mais longas.
Por todas essas razões e pelo simples fato de que o Antigo Testamento se a-
presente como um escrito, é preciso partir do momento em que a escrita já é um pro-
cesso adquirido em Israel. Para isso, não se pode ir além do século XII a.C., ou para
se ter mais segurança, além do ´seculo XI. É claro que ainda estamos muito longe da
instituição monárquica. Mas, embora possamos ter mais segurança em relação às
tradições e textos anteriores a essa instituição, a experiência de outras culturas nos
permite levantar algumas hipóteses quanto às primeiras elaborações escritas de Isra-
el.
Observando sempre uma atitude de prudência, é possível manter como primiti-
vos e, portanto, particularmente antigos, certo número de textos cuja forma lembra
uma oralidade anterior. Estariam nesse caso poemas, cantos, hinos guerreiros. Da
mesma forma, alguns temas característicos de determinadas narrativas atestam tradi-
ções de contos e de lendas que o processamento do escrito, por mais condensado
que tenha sido, fixou, porém não inventou. É por isso que se pode apontar ainda hoje,
a partir de regras bem precisas, inúmeras dessas formas primitivas de narrativas no
Gênesis, nos livros de Josué e dos Juízes, nos livros de Samuel e dos Reis.
Essas “velhas histórias” relacionam-se, não apenas em Israel como em toda
cultura, a necessidades do povo, e em sua maior parte teriam sido estranhas a uma
inspiração e necessidades religiosas. Depois, algumas dessas velhas histórias devem
ter sido sacralizadas. Em seguida essas narrativas puderam ser reagrupadas em sé-
ries ou ciclos em torno do nome de um herói, de um lugar ou de ambos ao mesmo
tempo.
DESDE OS MAIS ANTIGOS TEXTOS DA BÍBLIA
ATÉ UMA REDAÇÃO ELABORADA DE NARRATIVAS E DE CICLOS
Como todos os outros povos, Israel devia dispor em suas orignes familiares e
tribais de todo um folclore de narrativas, de poemas e de cantos que a época real çpô-
de recolher e ficar por escrito, e que seria integrado em conjuntos literários posterio-
res.
Entretanto, a Bíblia permanece um livro sagrado, originário de uma intenção
sagrada. Nesse aspecto e para além da instituição real, de que modo Israel afirmou
sua originalidade?
CONSULTAR UM MAPA
Será bom levantar, num mapa do tempo dos Juízes, os grandes lugares
da história pré-monárquica e o nome dos principais santuários.
Para isso pode-se também se reportar ou ao glossário de uma Bíblia ou
a um dicionário da Bíblia que forneça as referências aos textos bíblicos
ligados a esses santuários. Para alguns textos, ver a próxima relação.
Assim, toda uma literatura pré-real deve ter se constituído nesses multiplos
santuários, testemunhando ao mesmo tempo a unidade e a diversidade de um Israel
antigo, aliás unido pelas tradições populares e guerreiras habituais em todo povo. Es-
sa literatura, integrada hoje nos diferentes livros do Pentateuco, sobretudo no Gênesis,
mas também nos livros de Josué, dos Juízes e no primeiro livro de Samuel, permane-
ce, sem dúvida, de difícil reconstituição tanto no conjunto como em seus detalhes; no
entanto, ela pode ser delineada aí.
Num precedente convite à leitura (cf. acima), havíamos proposto descobrir al-
guns textos tradicionalmente considerados como “primitivos”. Na perspectiva
do que acabamos de falar sobre essas formas lierárias pré-monárquicas e liga-
das a santuários, os seguintes textos podem ser lidos fazendo-se uma ligação
aos santuários que evocam.
1) Bersabéia (ou Beer-Sheva): Gn 21,22-34; (22,19); 26,26-33; 46,1-5;
2) Mambré e Hebron: Gn 18,1-15; 23,1-20;
3) Betel: Gn 28,10-22; 35,1-15;
4) Penuel: Gn 32, 23-33;
5) Siquém: Gn 33,18-20; Js 24,1-28;
6) Guilgal: Js 4,19-24; 5,2-12;
7) O monte Ebal: Js 8,30-35;
8) Gabaão: Js 9,3-15;
9) Silo: Js 18,1; 1Sm 1,1 a 3,21.
1. Na verdade o Antigo Testamento foi lido durante quinze séculos na era cristã
sem que fossem levantadas questões que permitissem reconstituir sua lenta elabora-
ção. Como já dissemos, Cristo estava no início e no fim do Antigo Testamento e, por-
tanto, em seu âmago. Mas chegou um momento, no século XVII, em que alguns leito-
res não puderam mais se contentar com essa única procupação “crística”. . . O Antigo
Testamento, em determinados livros e determinados detalhes, aparece com certo nú-
mero de incoerências, de contradições, de repetições que a razão, a lógica e mesmo
certas descobertas cientificas não podiam suportar. Tornava-se, por exemplo, crucial a
questão: como Moisés teria podido contar sua própria morte na obra que lhe era atri-
buída, o Pentateuco? Sabe-se com efeito que no Pentateuco, no final do livro do Deu-
teronômio, esse acontecimento é narrado com detalhes.
Tornava-se tentador rejeitar em nome da razão, ou do bom senso, ou mesmo
da verdade, uma obra que durante séculos fora considerada uma das fontes da Ver-
dade e havia alimentado a fé e a piedade de milhares de pessoas. Resolver essas
incoerências e contradições que só poderiam ser aparentes, dewvolvendo o Antigo
Testamento para a razão das pessoas que crêem, foi a proposta do que iria tornar-se,
a partir do século XVII, a “exegese crítica”.
Se durante mais de um século, entre o fim do século XVIII e o fim do século
XIX, essa exegese moderna foi dominantemente alemã e inglesa, contudo, foi no am-
biente cultural francês que ela nasceu. O filósofo Spinoza, sob influência da filosofia de
Descartes, o oratoriano de Dieppe, Richard Simon e em seguida o médico de Montpel-
lier, Jean Astruc, abriram de outro modo a Bíblia, o Antigo Testamento em particular e,
sobretudo, o Pentateuco e o livro do Gênesis. É a eles que devemos em sua origem o
que iria tornar-se a “teoria documentária” e que, desde a sgunda metade do século
XIX até nossos dias, não deixou de estar no centro da exegese do Antigo Testamento.
3. No entanto, não se pode acreditar que as coisas sejam tão simples como a
nossa apresentação sugere. Se em seu próprio princípio a teoria documentária não
pode ser questionada em seus detalhes, na distribuição dos diferentes documentos e
sub-documentos que revela, em sua datação, ela não cessou de ser primeiro afinada e
depois reavaliada. E atualmente algumas pesquisas mostraram que a teoria documen-
tária não era mais indispensável para explicar algumas tradições do livro dos Núme-
ros, e que talvez o documento E não tivesse a consistência literária e teológica que lhe
era às vezes reconhecida. Por outro lado, o documento J não seria exclusivamente
assegurado pela denominação de Deus como JHWH, esse nome poderia correspon-
der a uma “javização” posterior de textos de outra origem etc.
É por isso que se assiste há alguns anos a um aflorar de novas hipóteses que
têm o duplo mérito de levar novamente em conta objeções feitas já há muito tempo
sobre uma percepção dos documentos J e E que seria precisa demais, elborada de-
mais, e de propor caminhos mais satisfatórios para a compreensão da composição do
Antigo Testamento. Essas hipóteses valorizam especificamente o Deuteronômio e a
Escola teológica da qual ele emana para a releitura geral da história de Israel até o
Exílio e para a elaboração dos primeiros livros, o Gênesis, o Êxodo, o Levítico e os
Números.
Nessa perspectiva, situa-se particularmente o período central da História de Is-
rael e de sua autoconsciência entre os séculos VIII e VI. Nesses séculos, os escritores
sagrados tiveram, de um lado, que integrar uma teologia fortemente influenciada pelo
profetismo que denunciava o pecado do povo, de seus chefes e do rei, isto é, a infide-
lidade à Aliança e, por outro lado, tiveram de “reler” as origens, organizando o que iria
tornar-se o Pentateuco.
E não se pode tratar as origens como se tratam acontecimentos mais tardios e
contemporâneos. Narrar o que se passou “no início” de uma história, seja ela nacional
ou religiosa, implica que se tenha uma idéia formada e, portanto, uma experiência de-
corrente dessa realidade nacional ou religiosa. Assim, os franceses só puderam se
interessar pelos gauleses a partir do século XVI, porque, precisamente a partir dessa
época, adquiriram um conhecimento suficiente da França da qual queriam tratar das
origens e dos seus ancestrais. Em Israel, com certeza, não se procedeu de forma dife-
rente.
Como em muitas outras culturas, começou-se, sem dúvida, por considerar as
origens como relativamente próximas, imediatamente anteriores ao momento em que
se vivia, o período real; assim o período reconhecido como inicial teria sido o período
dos Juízes. Porém, depois se subiria cada vez mais alto à medida que os aconteci-
mentos iam forçando uma justificação mais forte do próprio povo, de sua antiguidade
como povo e como ocupante da Terra. É assim plausível que se tivesse partido do
tempo dos Juízes, isto é, da época imediatamente pré-real, para ir em seguida até a
entrada na Terra Prometida (no início do livro de Josué), depois até o livro do Êxodo
antes de chegar ao ancestral único, Abraão. Tal trajetória em direção a origens sem-
pre recuadas deve corresponder às grandes etapas da vida de Israel entre os séculos
VIII e VI, isto é, entre o momento dos primeiros perigos exteriores e o da perda da Ter-
ra, em 587. O século VI permitiu aos sobreviventes essa visão mais global e mais ra-
dical que teria feito chegar até Abraão.
A descoberta desses novos caminhos de abordagem dos textos impede que se
coloquem no mesmo plano de veracidade histórica os livros do Pentateuco e os livros
que relatam acontecimentos posteriores. Eles fazem antes depender esses “primeiros”
livros de épocas tardias com toda a implicação que isso traz em relação à natureza
dos fatos relatados, ao estilo das narrativas e à teologia que veiculam. Não se trata
hoje de “demonstrar” a história dos episódios da vida de Davi ou da queda de Jerusa-
lém. Não se trata evidentemente de dizer que tudo foi inventado posteriormente, mas
de re-situar de outra forma personagens, acontecimentos e textos do Pentateuco e de
ver como tudo isso entra na grande compreensão teológica e espiritual de Israel da
grande época profética, antes e após o Exílio.
Porém, sejam quais forem a determinação e a datação das diversas tradições
que constituem os diferentes livros do Antigo Testamento e do Pentateuco em particu-
lar, a teoria documentária, em seu próprio princípio já não pode mais ser colocada em
dúvida. Mais ainda, ela vai marcar, dali em diante, o estudo de toda a Bíblia, Antigo e
Novo Testamento, em cada um de seus livros, pela simples e boa razão de que tal
obra orientada para a fé e a salvação dos leitores pedia a incessante retomada dos
textos por parte dos responsáveis da comunidade. Que o Antigo Testamento tenha
sido o resultado de uma fusão mais ou menos bem sucedida, mais ou menos visível
de documentos diversos, de épocas diversas decorre não apenas do bom senso como
da própria natureza da obra sagrada.
DO ARAMAICO AO GREGO
Não há dúvida de que, no século III a.C., havia um conjunto de livros hebraicos
que tivesse podido ser recebido como tal; sua tradução grega feita no fim desse século
no Egito é suficiente para demonstrá-lo. Ou seja, na época, longe da pátria-mãe, a
terra de Israel, de sua capital, Jerusalém e de seu Templo, os judeus de Alexandria
consideram que há nesse conjunto de livros um todo que deve ser tornado acessível
na língua falada por eles e que é a mesma da maior parte dos pagãos que os rodeiam.
A empreitada da tradução constitui um acontecimento capital não só para o
nosso entendimento do Antigo Testamento como para a composição deste, mostrando
que esse conjunto é fechado ao mesmo tempo que aberto, unificado mas ao mesmo
tempo suscetível de receber complementos! Mas antes de se chegar ao grego, é pre-
ciso dizer uma palavra sobre a introdução do aramaico.
Para tanto, retomamos aqui uma das consequências do Exílio na Babilônia,
pois no dizer do livro de Neemias, no retorno, durante a celebração da festa das Ten-
das em Jerusalém, “liam o livro da Lei de Deus, traduzindo-e e dando explicações,
para que o povo entendesse a leitura” (Ne 8,8). Tal observação prova que, naquela
época, numerosos judeus já não mais compreendiam o hebraico. . . A língua diplomá-
tica e comercial de então havia feito seu trabalho: os próprios judeus falavam o ara-
maico.
De fato, a presença do aramaico no Antigo Testamento é bastante fraca. É en-
contrada no livro de Daniel (bruscamente em 2,4, após um início hebraico, e até 7,28,
com a interrupção do cântico 3,24-90, do qual só possuímos um texsto grego). Por
outro lado, um livro como o livro (grego) de Tobias, embora tenha tido um original he-
braico, conheceu sem dúvida uma versão aramaica. Supõe-se ainda que o primeiro
livro dos Macabeus possa ter sido inicialmente escrito em aramaico.
Porém, é o grego que, na sequência da tradução do conjunto do Antigo Testa-
mento no fim do século III, é o mais revelador. Ele mostra não somente certa consci-
ência da unidade do Antigo Testamento já no fim do século III, ao lado da necessidade
de torná-lo compreensível numa língua estrangeira, mas também a possibilidade de
completar ou de continuar ao longo do tempo essa biblioteca. Feita essa constatação,
a “Bíblia grega” nos leva agora a receber e apresentar livros inteiramente redigidos ou
conservados nessa língua e colocados na continuidade da tradição hebraica. Ora, en-
contramos aí quase todos os grandes gêneros da Bíblia hebraica, embora muitas ve-
zes a intenção edificante supere largamento a preocupação com a criação, ou mesmo
com a exatidão histórica e geográfica!
O livro de Tobias que, como acabamos de lembrar, talvez tenha sido original-
mente redigido em aramaico, conta por meio de uma história de família o destino de
um judeu piedoso, deportado para Nínive, atingido pela desgraça da cegueira, da qual
foi felizmente curado pelo concurso de forças claramente providenciais. Para isso,
sabe-se que papel desempenhou o anjo Rafael. Escrito por volta de 200 a.C., pertence
sem dúvida ao gênero romanesco edificante.
O livro de Judite que, de início, soma inverossimilhanças históricas e geográfi-
cas, toma nitidamente o caminho do romanesco. A intenção é semelhante à do livro de
Tobias, porém aqui ela se transpõe para o destino do povo de Israel, que consegue a
vitória sobre seus inimigos pela ação de uma mulher corajosa e virtuosa, Judite. Esse
livro, datado de meados do súclo II a.C., deixa transparecer uma atmosfera de escal-
tação que marcou a época da revolta dos Macabeus contra o helenismo.
O livro de Ester também põe em cena uma mulhder. Porém esta, ao contrário
de Judite, não utilizará a força para agir em favor de seu povo. Sua doçura e lealdade
para com seu senhor pagão triunfarão contra as manobras dos inimigos de seu povo
encarnados em sinistras personagens. Neste livro há também uma parte em hebraico,
contudo a versão grega é visivelmente mais importante. Sua redação pode ser situada
no final do século II a.C.
Podemos mencionar ainda, dentro do espírito de lição edificante que caracteri-
za esses três livros, os dois últimos capítulos do livro de Daniel a que já nos referimos
anteriormente. Esses capítulos, escritos em grego, apresentam duas narrativas dife-
rentes, da história da c asta Suzana e dos velhotes (Dn 13) e a de Bel e a Serpente
(Dn 14).
LER OS LIVROS DE TOBIAS, DE JUDITE E DE ESTER
Esses livros, por sua própria forma, não trazem especial dificuldade pa-
ra o leitor, trata-se de uma leitura fácil. Porém, se não se quiser ler to-
dos os três, pode-se escolher um deles...
Para respeitar a mensagem do texto, não se deve prender a questões
de história e de geografia que por muitas vezes prejudicaram a sua
compreensão, mas procurar atingir sobretudo os pontos religiosos e mo-
rais com os quais os redatores os marcaram conscientemente. É bom
observar também que naquela época começa a se desenvolver em Is-
rael, sem dúvida por influência de cultar estrangeiras, principalemente
grega, certo gosto pelo romance.
Os dois livros dos Macabeus nos levam ao gênero histórico, como em continu-
ação das sequênciaws históricas dos livros de Samuel e dos Reis, de Esdras e de
Neemias. Porém, não se deve considerá-los como uma sequência, como ocorre por
exemplo com os dois livros de Samuel. De fato, o segundo livro é uma espécia de pa-
ralelo do primeiro. Os dois livros tiram seu nome do herói principal que se destacou em
meados do século II, na ocasião da revolta judia contra o coupante helênico, revolta
mesclada de guerra civil.
O primeiro livro dos Macabeus, verdadeira epopéia do Judaísmo tardio, do
quao só temos o texto grego, celebra os altos feitos de incontestável fundamento his-
tórico dos três filhos de Matatias. Trazendo uma interpretação teológica da história a
partir da tradição profética da denúncia do pecado de Israel, mostra a vitória final des-
se povo graças a sua coragem e heroísmo.
Já o segundo livros dos Macabeus, redigido diretamenmte em grego, terá um
tom completamente diferente. Aproxima-se mais da literatura edificante, e o o autor
não disfarça o seu propósito homilético. Deixa bem clara a crença na ressurreição dos
mortos para uma recompensa além-túmulo e na intercessão dos santos.
O livro de Baruc, que nossas Bíblias colocam após o kuvri de Jeremias, parece
um retgorno aos livros proféticos. Na verdade trata-se de uma contaminação por cau-
sa do nome do secretário do profeta Jeremias, que também se chamava Baruc. É um
texto heterogêneo, composto de segmentos diversificados. Após uma introdução de
aparência histórica, o livro inicia-se com uma prece (1,15 a 3,8), a que se segue um
poema de sabedoria (3,9 a 4,4) e termina com uma das obras primas da literatura pro-
fética em que o autor exorta os exililados judeus à esperança (4,5 a 5,9). Sua redação
remonta possivelmente ao início do século I a.C.
Dois livros sapienciais nos levam ao fim do inventário de nossa biblioteca: o li-
vro de Ben Sirac e o Livro da Sabedoria.
Já fizemos alusão ao livro de Ben Sirac (ou Sirácida, ou Eclesiástico). Esse li-
vro teve um destino curioso. Pelo prólogo sabe-se que foi traduzido do hebraico, po-
rém até a descoberta no Cairo, em 1896, da quase totalidade do texto hebraico, guar-
dávamos apenas a lembrança de sua versão grega.
De grande alcance literário, o livro de Ben Sirac é norteado por uma tônica reli-
giosa e teológicaz, que o torna um dos maiores livros sapienciais da Bíblia. Marca um
dos ápices da Sabedoria de Israel, quando destaca essa sabedoria — comum a todas
as culturas — da universalidade, para mostrar nela a peculiaridade judia. A observân-
cia da Lei aparece aí como a sua coração. É interessante também notar como esse
livro, à diferença de outros, integra a suas reflexões, visões de história, retratos de
ancestrais, tudo entre os anos 190-180 a.C.
Com o livro da Sabedoria, chegamos ao limite da era cristã. O livro, escrito em
três partes a partir do ano 30 a.C., influenciará diretamente o Novo Testamento e par-
ticularmente são Paulo. É uma obra apologética, produzida no contexto alexandrino
marcado pelos riscos de apostasia e por um anti-semitismo nascente. Embora mante-
nha a forma tradicional da reflexão sapiencial, seus conceitos ultrapassam largamente
a sabedoria tradicional tanto na teologia como na visão da história.
Assim termina no tempo esse Antigo Testamento tão diverso em seu conteúdo
como em sua expressão. Verdadeira biblioteca, só pode ser tratado como tal, isto é,
sem a ilusão do livro original e perfeitamente unificado que se espera de um autor úni-
co. Uma vez consciente dessa variedade, cada um é livre para escolher o livro ou a
passagem do livro que llhe interessa, como a liturgia tem feito tradicionalmente e nos
convida, portanto, a fazê-lo.
Sabe-se que esta foi a Bíblia das primeiras gerações cristãs, dos Padres da I-
greja e da Igreja do Oriente, que a traduziu em diversas linguas, entre elas o armênio
e o etíope. Ora, suas variantes são frequentemente significativas e fornecem o funda-
mento para certas interpretações cristãs. É por isso que, nestas últimas décadas, tal
ou tal teólogo não hesitou em levantar a questão da autoridade dos Setenta e, portan-
to, do reconhecimento deste texto acima do original hebraico como a expressão da
Palavra de Deus. O Concílio Vaticano II, em sua constituição dogmática Dei Verbum,
afirma que “a Igreja, desde o início, fez sua essa antiga versão grega do Antigo Tes-
tamento”, o que só pode nos convidar a levá-la novamente em consideração.
SEGUNDA PARTE
O NOVO TESTAMENTO
OS QUATRO EVANGELHOS
Apresentação
A ordem tradicional do Novo Testamento apresenta em primeiro lugar quatro livros,
ao mesmo tempo semelhantes e diferentes, que a tradição designa com o nome de
“evangelhos” e que atribui a quatro autores, cujo nome, no entanto, nunca se apre-
senta no texto. Em sentido estrito, esses quatro evangelhos são anônimos, porém
designados como evangelhos segundo ou de Mateus, Marcos, Lucas e João. No
primeiro e no quarto nome, reconhecem-se discípulos de Jesus, dois apóstolos, nos
outros dois, discípulos de discípulos, Marcos, discípulo de Pedro e Lucas, discípulo
de Paulo.
Os que mais se aproximam entre si, os três primeiros, de Mateus, Marcos e
Lucas, são chamados “evangelhos sinóticos” por causa da grande semelhança que
apresentam nos fatos e propósitos relatados, de tal forma que podem ser dispostos
em “sinopse” isto é, em colunas paralelas. Isso não exclui, contudo, diferenças muito
importantes.
O quarto evangelho, atribuído a João, é completamente diferente. Não somen-
te porque não segue a mesma ordem dos acontecimentos dos evangelhos sinóticos,
como também porque Jesus se exprime aí num estilo bem diferente e muito mais
longamente. É por isso que requer um tratamento à parte.
De que são feitos esses quatro livros? O que os caracteriza?
Ao ler o início do evangelho de Mateus, depois o início do evangelho de Mar-
cos, a indicação é clara: “Livro da origem de Jesus Cristo...” segundo Mateus, “Co-
meço da Boa Notícia de Jesus, o messias, o Filho de Deus” segundo Marcos; portan-
to é Jesus que está em questão. Assim, pelo fato de falarem com certo número de
detalhes de Jesus, de sua vida desde suas origens até sua morte e sepultamento,
poderia reconhecer-se nesses livros uma espécie de biografia do Cristianismo. Mas
trata-se realmente de “biografias” de Jesus?
Lucas define claramente seu propósito no início do evangelho: não somente
“compor uma narração dos acontecimentos que se passaram entre nós”, isto é, prin-
cipalmente os fatos e atos de Jesus, mas também transmitir “ensinamentos”; e as
testemunhas oculares interrogadas são igualmente “servidores da Palavra”. Portan-
to, o evangelho não se propõe a ser apenas biográfico, mas também catequético,
doutrinal.
O evangelho de João apresenta no “Prólogo”, a verdadeira personalidade de
Jesus, Deus-Verbo e Filho do Pai, por meio de formas simbólicas, recolhidas em
sua maioria no Antigo Testamento.
Assim, por mais diferentes que sejam os evangelhos, deixam entender em su-
as preliminares que não se tratará de relatar apenas o que Jesus fez e disse, sua
vida, mas o seu ensinamento e aquilo que ultrapassa, portanto, uma biografia co-
mum, a revelação de sua natureza divina e do valor salvífico de seu destino para a
humanidade.
É por isso que os quatro evangelhos obedecem a um mesmo plano e possuem
um mesmo conteúdo básico, ainda que um ou outro privilegie sobretudo tal e tal as-
pecto e ignore tal e tal outro.
Esquematicamente, os evangelhos seguem o princípio da biografia: a partir de
acontecimentos originais, apresentam Jesus em cena mediante suas palavras e a-
ções. A seguir desenvolvem os acontecimentos dos seus últimos dias de vida marca-
dos por colóquios particulares com os apóstolos, pela instituição do memorial da Euca-
ristia, pela prisão, processo diante das autoridades judias e romanas, condenação à
crucificação, morte e sepultamento. E finalmente são relatados os episódios das apari-
ções após a ressurreição para os apóstolos e discípulos.
Esse esquema fundamental de quatro componentes: 1) origens, 2) pregação e
ações, 3) últimos encontros, Paixão e morte, 4) aparições do ressuscitado – é seguido
de formas diferentes por cada um dos evangelistas.
Mateus e Lucas têm dois capítulos para “a infância de Cristo”: tratam aí não a-
penas dos acontecimentos relacionados ao nascimento e à infância de Jesus, mas
também de acontecimentos anteriores como a “anunciação” a José em Mateus, a “a-
nunciação” a Maria em Lucas, que relata também uma “anunciação” a Zacarias do
nascimento de João Batista.
Marcos e João ignoram totalmente esses episódios e, após um “título” em Mar-
cos e o “prólogo” em João, colocam Jesus diretamente em cena como adulto, logo
após seu anúncio por João Batista.
Os episódios da vida de Jesus como pregador da Boa Nova ocupam naturalmen-
te grande parte dos quatro evangelhos, porém aí também de formas diferentes e desi-
guais.
Se nos sinóticos os fatos e atos de Jesus e seu ensinamento às multidões atra-
vés da Galiléia e da Judéia e em Jerusalém representam perto de três quartos de e-
vangelho, em João constituirão apenas a metade.
Nos evangelhos são extraordinariamente valorizados os últimos dias, os coló-
quios com os discípulos, as narrativas da Paixão. E se estes ocupam cerca de um
quarto dos sinóticos, vão ocupar perto da metade do evangelho de João.
Enfim são as narrativas das aparições de Jesus após a ressurreição que apre-
sentam as maiores diferenças, não apenas entre os sinóticos e João, mas também
nos três sinóticos entre si, seja em relação ao calendário, aos lugares, aos modos de
aparição, seja em relação à própria escolha dos episódios. Assim, qualquer que seja a
importância dos fatos e atos e do ensinamento de Jesus, os evangelistas privilegiaram
nitidamente os acontecimentos da Paixão, a tal ponto que, ao longo de seu evangelho
preparam seus leitores para isso da mesma forma que se diz que Jesus preparou para
isso seus discípulos. Tal desproporção tem evidentemente uma razão de ser, que é
indicada pelos próprios evangelhos e que domina a reflexão dos outros textos do Novo
Testamento.
Com efeito, os evangelhos e mais ainda os outros textos do Novo Testamento,
sobretudo as cartas de são Paulo, ressaltam uma convicção: é pela Paixão, morte e
Ressurreição que Jesus, Cristo e Filho de Deus, salvou a humanidade de seus pe-
cados. Tal convicção só poderia levar os evangelistas e os primeiros cristãos a privile-
giar a narrativa dos acontecimentos da salvação. Dessa forma, mesmo a compreen-
são dos fatos e atos de Cristo anteriores a esses acontecimentos, bem como o enten-
dimento de seu ensinamento liminar estaria de certa forma devotado a eles.
Uma questão que nos é particularmente sensível, sobretudo nos últimos dois séculos,
é a da exatidão histórica dos evangelhos.
Embora, como mostra o prólogo de Lucas, não se possa negar aos evangelistas
a preocupação de relatar os fatos a partir de testemunhos comprovados, pode-se no
entanto perceber que a história não é sua única preocupação. Assim são ignorados os
longos anos da infância e da juventude de Jesus e consagrada uma parte importante
da narrativa aos seus últimos dias. É o relato de seu ensinamento, de seus desloca-
mentos, de seus feitos e atos que devem ter-se desenvolvido por vários anos, reduziu-
se a pouco mais do que a metade dos textos. Ou seja, embora Jesus tenha vivido cer-
ca de quarenta anos, o que foi relatado sobre ele nos evangelhos seria suficiente ape-
nas para ocupar algumas semanas!
Portanto, é evidente que os evangelistas, mesmo que se curvassem às regras
de seu tempo quanto à precisão histórica, não tinham no desenvolvimento da história
a principal preocupação. Pode-se concluir portanto pela desigualdade de tratamento
dos diversos acontecimentos e pela condensação de alguns deles, que os evangelis-
tas calculam estar dizendo o essencial, um essencial que seria suficiente para o seu
propósito, embora com isso tenham excitado a nossa curiosidade até o fim dos tempos
deixando em silêncio partes importantes da vida e mesmo do ensinamento de Jesus.
“Jesus realizou diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos
neste livro”, escreverá João (20,30), acrescentando um pouco mais adiante: “Jesus fez
ainda muitas outras coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que não caberiam
no mundo os livros que seriam escritos” (Jo 21,25).
Mas se justamente “estes sinais foram colocados por escrito”, foi com uma inten-
ção precisa que exclui toda perda de tempo ou todo prolongamento do propósito: “para
que vocês acreditem que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para que, acreditan-
do, vocês tenham a vida em seu nome”.
Tudo é assim dito pelo evangelista que é mais afirmativo em seu testemunho e
ao mesmo tempo que manifesta uma grande liberdade na forma de organizar os fatos
e de apresentar a palavra de Jesus.
Ainda que a Paixão, a morte e a Ressurreição de Cristo constituam o essencial
da narrativa evangélica, os outros atos e gestos de Jesus e sobretudo seu ensinamen-
to não são negligenciáveis, tanto mais quanto a Ressurreição lhe dá um sentido novo.
Em grande parte, o ensinamento de Jesus não importando a forma que assuma, vai
lembrar as grandes tradições de Israel, o profetismo e a sabedoria. O próprio Jesus,
muitas vezes, não pretende dizer outra coisa além do que as Escrituras já nos haviam
legado. Porém, por outro lado, esse ensino se distingue do ensino anterior: “Vocês
ouviram o que foi dito aos antigos(...) Eu porém lhes digo(...)” (Mt 5,21-22). E bem
mais, esse ensinamento, tal como aquele das Bem-aventuranças, fala mais que de
Jesus de Nazaré, fala já do Filho de Deus.
Esse ensinamento se expressa de diferentes formas. Ao lado do discurso no
sentido mais habitual do termo, há o diálogo com seus discípulos e com pessoas que
encontra pelo caminho, com fariseus, escribas / legistas, representantes de diferentes
correntes do Judaísmo, tais como os saduceus. Nesse último caso, o diálogo pode
tomar a forma de uma polêmica.
Muitas vezes, Jesus se expressa por meio de parábolas, pequenas histórias in-
ventadas para ilustrar determinado ensinamento, que é freqüentemente mais profundo
do que aparenta numa primeira leitura.
E finalmente, porém sem pretender ser exaustivo sobre todas as formas utiliza-
das por Jesus para seu ensinamento, é preciso mencionar o desenvolvimento e o vo-
cabulário próprios do quarto evangelho. Além do fato de que Jesus aí se exprime mais
longamente, a doutrina é mais explícita a partir de fatos, de “sinais”, que precisam ser
explicitados, quites a que aqueles que num primeiro momento o admiraram por causa
desses sinais, separam-se dele às vezes violentamente no fim da discussão.
a) nos Sinóticos: descrição do mal, ação milagrosa, reação das pessoas presen-
tes;
2) Prodígios
Ao ler as passagens dos evangelhos propostas aqui, deve-se reportar aos textos
do Antigo Testamento que elas evocam e cujas referências são dadas por nossas edi-
ções da Bíblia.
Mt 16,24; 24,15-25;
Jo 2,22; 14,1-6; 15,18-27; 17,1-26;
Mt 28,16-20;
Lc 24,44-48.
Jo 20,1-18: A fé na Ressurreição;
Mt 28,1-20: A vontade de viver como discípulo;
Mc 16,9-20: O compromisso com a missão;
Mc 8,27-38: O desejo de conhecer Cristo vivo.
— a introdução (At 1,1-5) para ler estabelecendo uma relação com Lc 1,1-4;
AS CARTAS
O conjunto das cartas de Paulo, Pedro, Tiago, Judas e João ocupa a maior parte do
Novo Testamento. Como os Atos dos Apóstolos, ainda que de forma diferente, teste-
munham o pensamento e a vida das primeiras comunidades cristãs após a Ascensão.
Em geral, dirigidas pelas circunstâncias, pela particularidade de uma ou outra
comunidade, as cartas, além das informações que podem fornecer sobre essas primei-
ras comunidades, discutem questões e problemas doutrinais e práticos aos quais eram
confrontadas.
Daí grande parte das dificuldades que apresentam para a leitura, não somente
porque supõem conhecimentos históricos, alguns dos quais hoje inacessíveis, mas
também porque apresentam uma reflexão moral e teológica que demanda tempo para
ser compreendida e assimilada.
As cartas têm por autores os primeiros pregadores do evangelho, que se dirigem
a comunidades que eles mesmos fundaram ou que outros fundaram. A designação
desses autores não tem a segurança ou o rigor dos escritos modernos, e isso por vá-
rias razões.
Certa relatividade se deve em primeiro lugar às próprias condições de escritura
ou da atividade redacional na Antiguidade. Em geral um mestre não escrevia ele pró-
prio suas obras, como se pode observar com Paulo escrevendo de seu próprio punho
apenas a saudação final (cf. 1Cor 16,19-21; 2Ts 3,17). Na verdade utilizavam-se se-
cretários que não eram apenas copistas escrevendo sob ditado, mas que tinham uma
participação ativa na composição das cartas. Em vários pontos, sobretudo nas cartas
de Paulo, é feita alusão a esses verdadeiros colaboradores (por exemplo, Timóteo em
Rm 16,21, ou Silvano em 1Pd 5,12).
Em segundo lugar, a autoridade de um mestre era de certa forma delegada a um
grupo de discípulos habilitados a escrever a pedido e em caso de urgência, quando o
mestre estava em viagem, na prisão, ou mesmo já morto. Dispondo de arquivos, de
notas e sobretudo imbuídos do espírito do mestre, esses discípulos podiam receber
pedidos das comunidades, que se dirigiam a eles como os representantes daquele do
qual eles dispunham do saber e da autoridade. Assim podemos distinguir hoje, entre
as cartas de Paulo, as que foram escritas diretamente sob sua orientação (Romanos,
Gálatas, 1Coríntios, 1 e 2Tessalonicenses, Filipenses...) e as chamadas “deuteropau-
linianas”, que foram escritas quando o mestre já estava em Roma na prisão, ou mes-
mo martirizado (Efésios, Colossenses, 1 e 2Timóteo...).
Enfim, importava mais às comunidades e aos destinatários particulares o conte-
údo de um texto do que sua atribuição segura a um autor. As cartas, uma vez escritas,
circulavam entre outras comunidades. Algumas se perderam, outras tiveram trechos
cortados, depois foram reagrupadas de forma mais ou menos arbitrária (por exemplo
2Cor). O essencial era que se dispusesse de textos cobertos e garantidos pela autori-
dade, direta ou indireta, próxima ou distante, de um ou outro autor, se possível próxi-
mo do próprio Cristo (o que levará sobretudo Paulo a lembrar que também ele é após-
tolo e testemunha da Ressurreição em virtude de uma aparição particular (cf. 1Cor
9,1-2).
Foi de Paulo que conservamos o maior número de cartas. As que chegaram até
nós estão dispostas numa ordem totalmente arbitrária, da mais longa (carta aos Ro-
manos) à mais curta (o “bilhete” a Filemon). Não se deve, portanto, procurar aí ne-
nhuma particular indicação significativa ou cronológica. Nessas cartas a questão bási-
ca é estabelecer a sua datação, que nos possibilite distinguir entre as que possam
realmente qualificar-se de “paulinianas” nas condições já lembradas e as que serão
ditas “deuteropaulinianas”.
Escritos de circunstância, ligados a destinatários e comunidades específicas, as
cartas estão repletas de detalhes interessantes para a história das primeiras gerações
cristãs, mas são também e principalmente textos de exposições doutrinais e morais.
Já nos referimos à interpretação que as cartas de Paulo, em particular aos Gála-
tas e aos Romanos, dão para o mistério de Cristo. Sem elas, de certo modo, a mensa-
gem de Cristo não poderia ser plenamente compreendida.
Digamos que, em linhas gerais, elas ensinam a eficácia e a universalidade da
salvação trazida por Cristo, mostrando que o homem é salvo unicamente por sua fé
nesse Cristo, único salvador, sem a intermediação de nenhuma lei; é o aspecto doutri-
nal. Ao mesmo tempo, essas cartas propõem o comportamento que o cristão, salvo
dessa forma, deve ter; é o aspecto moral.
Transparece igualmente no texto a personalidade do autor, embora seja preciso
ter cuidado para não fazer, a respeito, observações apressadas. É certo que Paulo
mostra-se nas cartas capaz de uma grande ternura e ao mesmo tempo de um vigor de
propósito que o leva às vezes à cólera. Já a personalidade de João é mais difícil de se
delinear.
Em relação às datas de sua redação, as cartas de Paulo situam-se entre o ano
48 d.C. e o fim do século, o que as torna, e nós voltaremos a isso, os mais antigos
escritos do Cristianismo, tanto mais que essas cartas conservam documentos ainda
mais antigos, fórmulas de credo ou expressões condensadas da fé e hinos litúrgicos.
E finalmente, e embora não se trate realmente de uma carta, mencionamos a
chamada “carta aos Hebreus”.
Na orientação da teologia pauliniana que faz de Cristo o único salvador, esse
texto de natureza doutrinal, do qual não se conhece nem o autor nem os destinatários,
visa mostrar a supremacia de Cristo em relação aos sacerdotes e aos sacrifícios da
antiga Aliança. Escrito com grande rigor de vocabulário, de imagens e de construção,
esse texto tinha também por função cortar definitivamente as nostalgias do culto ligado
ao Templo de Jerusalém, mostrando que para os adeptos de Cristo não havia mais
lugar para outro sacerdócio, outro culto e outro sacrifício além daqueles que ele mes-
mo realizou.
PARA UMA PRIMEIRA ABORDAGEM DAS CARTAS
— fórmulas de credo: 1 Cor 15,3-5; 1Ts 4,14; - hinos antigos: F12,6-11; Cl 1,15-
20;
O APOCALIPSE
Situado em último lugar na seqüência do Novo Testamento, transbordando de ima-
gens, aparições celestes, personagens fantásticas ou fantasmagóricas, esse livro apa-
rece como o mais estranho, mais enigmático dos livros, ou mesmo como esotérico. É
por isso que ele freqüentemente atrai os espíritos das pessoas, ao mesmo tempo em
que as deixa numa grande perplexidade.
Embora se trate de um livro tipicamente cristão, liga-se a um gênero literário ori-
ginário do profetismo do Antigo Testamento e praticado a partir do século 11 a.C. no
Judaísmo.
Etimologicamente a palavra “apocalipse” significa “revelação” como lembra o
próprio prólogo do livro:
“Esta é a revelação de Jesus Cristo: Deus a concedeu a Jesus, para ele mostrar
aos seus servos as coisas que devem acontecer muito em breve. Deus enviou ao seu
servo João o Anjo, que lhe mostrou estas coisas através de sinais”.
Duas personagens são portanto colocadas imediatamente em cena, o “visioná-
rio” João e o Anjo que lhe servirá de guia e de intérprete. Composto basicamente de
narrativas de visões, esse gênero de livro obedece a regras precisas de composição e
de elaboração de imagens que são emprestadas dos grandes temas do Antigo Testa-
mento.
O livro apocalíptico é próprio dos tempos de crise da comunidade religiosa. Num
momento de fraqueza sente-se ameaçada de morte por causa da perseguição que se
abate sobre ela, duvidando de seu destino, pede algum tipo de consolação e de certe-
za sobre o futuro. É portanto para responder a essa expectativa que se ergue o autor
do Apocalipse. Mais do que mergulhar nos mistérios do futuro, ele vai se preocupar
em fazer compreender a provação por que passa a humanidade.
Por isso vai persuadi-la de que as provações que podem fazê-la crer que foi a-
bandonada por Deus – na circunstância do Cristo ressuscitado seu salvador – na ver-
dade são o resultado de uma luta que as forças satânicas travam não somente contra
ela, a humanidade, mas também contra Deus e contra Cristo. Pois Deus e Cristo en-
contram-se também envolvidos nesse combate.
O procedimento visionário permitirá que se abra por assim dizer os céus e se
mostre que o que se passa sobre a Terra passa-se da mesma forma no céu, segundo
imagens e referências já conhecidas dos leitores, pois têm como base imagens, lem-
branças, histórias e figuras do Antigo Testamento.
Abrindo com “cartas” dirigidas aos “Anjos”, isto é, aos responsáveis das comuni-
dades existentes na costa ocidental da Turquia atual, o livro do Apocalipse reflete por-
tanto um ou vários momentos da perseguição no decorrer do século I d.C. Mostra co-
mo o destino do mundo foi entregue ao Cordeiro imolado, símbolo de Cristo morto e
ressuscitado. Triunfando em suntuosas liturgias celestes em que ressoam hinos da
Igreja primitiva, o Cordeiro sabe quais são as tribulações sofridas pelos cristãos. As-
sim, o autor do Apocalipse tranqüiliza seus leitores, pois Cristo tem, por meio desse
saber, o controle dessas tribulações.
As visões que põem em cena não somente os flagelos mas também as “duas
testemunhas” (talvez Pedro e Paulo martirizados), os companheiros martirizados em
nome do Cordeiro vão progressivamente fazer aparecer a Besta responsável por todos
esses males.
Naturalmente o combate que vai travar-se levará à aniquilação da Besta para
que apareça a nova Jerusalém que simboliza a vitória definitiva do Cordeiro e daque-
les que têm fé.
O final conduz, entretanto, à realidade imediata dos fatos e embora a vitória seja
conquistada mediante a morte e a Ressurreição de Cristo, há que se suportar ainda
um tempo de espera durante o qual os cristãos, perseguidos ou não, suplicam ao seu
salvador para “vir”.
De certa forma não há conclusão melhor para o Novo Testamento do que esse
livro que permanece, no entanto, difícil de ser compreendido em todos os detalhes e
na riqueza de sua significação. Porém afirma duas coisas: a fé dos cristãos em Cristo
ressuscitado e a esperança que os acompanha no próprio âmago de sua provação.
ABORDAGEM DO APOCALIPSE
É difícil ter uma idéia exata do livro do Apocalipse não apenas por causa de sua
dificuldade mas também em razão de todas as interpretações fantasiosas e catastrófi-
cas das quais ele sempre tem sido objeto. Assim, não seria demais recomendar que
se utilizasse uma boa obra de introdução.
Com prudência e prestando atenção às alusões ao Antigo Testamento (indica-
das nas boas traduções), pode se ler:
Pode ser interessante tomar conhecimento não apenas dos hinos que citam de-
terminadas cartas que já encontramos, mas também aquelas que pontuam as narrati-
vas da infância de Cristo em Lucas e as visões do Apocalipse, lembrando-se de que
elas pertencem à liturgia da primitiva igreja e que celebram num jogo de imagens
transparentes, mesmo nos evangelhos da infância, o Cristo ressuscitado.
— O Magnificat, Lc 1,46-55;
— o Benedictus, Lc 1,68-79
— Mc 9,38-50;
— Lc 11,23 a 12,12.
É difícil dizer exatamente quando e por que a primeira geração cristã tomou consciên-
cia da continuação do tempo, isto é, de uma história própria do Cristianismo antes do
retorno de Cristo. As testemunhas que citamos com relação à convicção da iminência
desse retorno são sem dúvida incontestáveis. Mas refletem o espírito do conjunto das
comunidades? Que papel desempenhou aí a tomada de consciência de um Cristia-
nismo diferente do Judaísmo, quando ele havia sido tanto tempo considerado como
próximo? Os cristãos eram realmente “diferentes” do resto do mundo?
A partir dos únicos dados de que dispomos, os escritos do Novo Testamento, vá-
rias hipóteses podem ser levantadas, que não se excluem de forma alguma uma em
relação a outra, bem como também não excluem a possibilidade da existência de ou-
tras.
Pode-se de início evocar a simples experiência da multiplicidade das mortes
marcando a continuação do tempo. Os anos se passavam, Cristo não voltava, enterros
sucediam-se a enterros e houve possivelmente para muitos uma espécie de reação de
realismo que os fez levar em conta outros propósitos de Cristo sobre sua fidelidade
“até o fim dos tempos” cuja hora era ignorada mesmo pelo Filho (cf. Mc 13,32)!
Outra hipótese pode ser baseada na consciência, dentro da herança de Israel,
do próprio valor da história para a revelação e o conhecimento pleno da Verdade.
Nesse ponto o testemunho do evangelho de João é particularmente significativo,
quando fala do propósito de Cristo sobre a necessidade de sua partida para que o
Espírito revele aos discípulos coisas que até então eles não haviam sido capazes de
receber:
“Ainda tenho muitas coisas para dizer, mas agora vocês não seriam capazes de
suportar. Quando vier o Espírito da Verdade, ele encaminhará vocês para toda a
verdade...” (Jo 16,12-13).
Antes de estabelecer uma espécie de calendário dos diferentes escritos do Novo Tes-
tamento, é preciso não esquecer que esses escritos não deviam constituir, aos olhos
das primeiras gerações cristãs, novas Escrituras, nem mesmo complementos para as
Escrituras. Até o início do século II d.C., as Escrituras continuaram para os cristãos as
que haviam sido para Cristo e para os primeiros discípulos e que se chamaria mais
tarde Antigo Testamento. É por isso que não se deve esquecer que as primeiras escri-
turas cristãs tinham um caráter utilitário e funcional e se referiam constantemente a
essas Escrituras por excelência que nunca deixaram de reler.
Já nos referimos aos primeiros documentos cristãos, que eram ao mesmo tempo
orais e escritos, fórmulas de credo, os hinos litúrgicos e os logias atualmente dissemi-
nados em todos os textos do Novo Testamento, dos quais alguns podem ser identifi-
cados facilmente, enquanto outros pedem um estudo mais especializado.
Porém, não se deve considerar de maneira isolada esses textos utilitários elabo-
rados e conservados por escrito nos anos que seguiram à ressurreição, ou seja entre
os anos 35 e 40 aproximadamente, e esquecer que até o fim do século I as comunida-
des cristãs não cessaram de elaborar tais formas para expressar sua fé e sua prece.
Testemunham os textos mais tardios do Novo Testamento como, por exemplo, o Pró-
logo do quarto evangelho (Jo 1,1-18) ou o hino da carta aos Colossenses (Cl 1,15-20).
Paralelamente, apesar do que dissemos sobre a tardia tomada de consciência
do tempo de espera dos cristãos pelo retorno de Cristo, não se deve imaginar que se
passaram muitas décadas para se compor as narrativas se não do conjunto da vida de
Jesus, pelo menos dos episódios particularmente importantes dessa vida. É evidente
nesse aspecto que não tardaram a serem redigidas as narrativas dos acontecimentos
da Paixão e dos fatos que ocorreram em torno da reaparição de Cristo após sua mor-
te.
Para isso havia pelo menos duas razões: em primeiro lugar esses acontecimen-
tos estavam no núcleo do mistério fundamental e central da fé cristã, e deviam portan-
to ser bem depressa evocados com detalhes e testemunhas suficientes; em segundo
lugar, a própria celebração litúrgica não poderia deixar de lado essa evocação. Tudo
indica que as narrativas da Paixão devem ter constituído se não o fundamento, pelo
menos um elemento importante da redação prévia à redação global de nossos evan-
gelhos, antes do ano 50.
Num segundo momento, à medida que as testemunhas desapareciam e as co-
munidades se desenvolviam principalmente em terras estrangeiras, distantes dos lo-
cais em que os acontecimentos fundadores haviam ocorrido, tornava-se necessário
escrever sobre eles “narrativas seguidas”, como definiu Lucas, a partir de testemunhos
cuidadosamente verificados. Porém, nesse ponto, vários fenômenos iriam entrar em
jogo.
Embora seja incontestável que os evangelistas visaram a um trabalho de histori-
adores, tal não era, contudo, sua única preocupação. A proposta para eles era de fa-
zer prolongar o ensinamento daquele cuja Ressurreição tornara um Ser Vivo, como já
lembramos. Dessa forma deviam levar em conta informações, documentos e outras
composições anteriores que iriam ser constantemente enriquecidos até que a obra
chegasse à forma final com a qual a conhecemos hoje, mas deviam também levar em
conta comunidades que se propuseram a viver do exemplo e do ensinamento de seu
Mestre e não apenas enriquecer sua memória com fatos do passado.
Também é preciso não se espantar que os evangelhos, como os conhecemos
atualmente, sejam o produto de pesquisas de tipo histórico conforme os hábitos da
época e ao mesmo tempo da atualização de um passado cuja personagem principal,
por causa da Ressurreição e da ação do Espírito Santo, pertencia também ao presen-
te das comunidades. Assim, em nossos evangelhos a preocupação do historiador e a
preocupação do catequista mostram-se estreitamente mescladas, o que pode incomo-
dar o historiador moderno que poderá a todo instante descobrir aí anacronismos.
Por isso e embora nossos evangelhos tenham conhecido estados sucessivos en-
tre o ano 50 e o fim do século I, na verdade só podem ser razoavelmente datados co-
mo do último quarto do século I. E isso pode ser confirmado por certo número de alu-
sões que são feitas a acontecimentos bem posteriores à vida de Cristo: por exemplo,
as alusões à ruína do Templo do ano 70, ou às polêmicas contra os judeus designa-
dos como tais no evangelho de João, polêmicas que são claramente o eco da rejeição
feita aos cristãos por parte desses mesmos judeus com a instauração, no fim do sécu-
lo I, da prece “contra os heréticos”, isto é, contra os cristãos.
De fato, a história da redação de cada um dos quatro evangelhos é uma história
complexa e deve se evitar reduzi-la a uma redação precoce e rápida antes do ano 50,
ou a uma redação única, monolítica, no final do século I.
Ao lado dessa história dos evangelhos, coloca-se a redação do corpus das car-
tas. Já nos referimos ao seu aspecto de necessidade ou de utilidade para as comuni-
dades cristãs.
Muitas dessas cartas, sobretudo as de Paulo, constituem os verdadeiramente
primeiros escritos do Cristianismo e podem ser datados da quarta ou quinta década do
século I.
Porém é preciso não esquecer, como já observamos, as necessidades de comu-
nidades que, até o fim do século solicitavam ensinamentos e conselhos a discípulos
que conservavam o pensamento dos primeiros apóstolos ou de Paulo. Assim, as car-
tas continuaram a ser redigidas até o fim do século.
Esse fato teve dupla conseqüência. Em primeiro lugar e à medida que se avan-
çava no tempo, refletia-se sobre a exata dimensão e a significação do mistério de Cris-
to, feito Senhor e reconhecido como Deus, e ao mesmo tempo refletia-se sobre o mis-
tério da Igreja. Verdadeiros tratados teológicos, cristológicos e eclesiológicos surgiram
na segunda metade do século I; o mais claro exemplo é a carta aos Hebreus, mas
também o é a primeira carta de João.
Por outro lado, é preciso não excluir certa ondulação, certa sensibilidade diante
das audácias da nova fé que emerge. Assim, em determinados textos deuteropaulinia-
nos há claramente um recuo em relação a doutrinas e práticas julgadas excessiva-
mente “revolucionárias”. Dessa forma, na primeira carta a Timóteo (cf. 1,11-12), as
mulheres devem permanecer caladas nas assembléias, ao passo que na primeira car-
ta aos Coríntios elas podiam profetizar, isto é, proferir uma palavra clara destinada a
edificar a Igreja (cf. 1Cor 14,1-4), contanto que tivessem a cabeça coberta (cf. 1 Cor
11,5)...
A famosa trilogia de Gálatas (3,28): “Não há diferença entre judeu e grego, entre
escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus
Cristo” repete-se em Colossenses (3,11): “E aí já não há grego nem judeu, circunciso
ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é
tudo em todos”. Aqui já não aparece a questão da mulher... E evidentemente o “es-
quecimento” da diferenciação anulada “nem homem nem mulher” não será inocente.
Esses textos testemunham as tensões e dificuldades que havia entre as primei-
ras gerações cristãs, o temor da novidade, o recuo diante de audácias julgadas mais
ou menos intoleráveis, e mostram portanto os riscos de regressão em relação à exi-
gência libertadora de Cristo e de sua mensagem.
Não é de se espantar tais evoluções. Sendo o Novo Testamento a testemunha
das primeiras comunidades cristãs, das primeiras décadas da história da Igreja, do
choque que deve ter representado a Boa Nova de Cristo em universos religiosos, polí-
ticos e culturais pouco aptos a recebê-la apesar de sua expectativa, era inevitável que
se marcassem hesitações e recuos que não irão, contudo, destruir a radicalidade es-
sencial da Mensagem e sua constante novidade.
A FIXAÇÃO DO CÂNON
A fixação do cânon do Antigo Testamento, isto é, das Escrituras, foi o produto de uma
história complexa e em parte incerta. Será preciso falar em termos análogos sobre a
fixação do cânon do Novo Testamento? Na realidade a questão deve ser colocada
sobre a constituição e, portanto, a determinação de uma Bíblia cristã, uma vez que os
escritos do Novo Testamento citam o antigo, dos quais, no final das contas jamais vão
se separar.
Os escritos do Novo Testamento, como já vimos anteriormente, incluindo aí os
evangelhos, atenderam de início a necessidades das diferentes comunidades, de tal
forma que se poderia mesmo supor que, sem essas comunidades e as circunstâncias
precisas, tais escritos não teriam jamais existido. Aliás, uma vez que os primeiros cris-
tãos, como judeus que eram, conheciam as escrituras e liam-nas em função da che-
gada de Cristo, e já que eles as propunham aos novos batizados de origem pagã, po-
de-se dizer de certo modo que todos já dispunham de sua Bíblia representada pelos
livros do Antigo Testamento.
Foi, portanto, progressivamente que os escritos próprios do primeiro Cristianismo
iriam ser investidos de uma autoridade para ser um dia triados e coligidos, constituindo
assim nosso Novo Testamento, porém sem que fosse cortado o liame que o ligava ao
Antigo, apesar das teorias de um ou outro herege, como por exemplo Marcion que, no
início do século II, iria pregar o esquecimento do Antigo Testamento por causa de sua
caducidade.
Mesmo hoje continua difícil definir o desenvolvimento de uma história que levou
à fixação, de fato, desse conjunto de textos que precisou, num momento ou em outro,
proceder por eliminação e proibiu sobretudo “apócrifos” de evangelhos, de atos de
Apóstolos e de epístolas, heréticos ou bizarros. Pode-se em todo caso falar de um
cânon de fato, pois nunca se pretendeu, por exemplo, integrar no Novo Testamento
as cartas dos Padres apostólicos que, como santo Inácio de Antióquia ou são Clemen-
te de Roma, escreveram no início do século II, são Clemente citando de sua parte uma
ou outra passagem da primeira carta de Paulo aos Coríntios. Isso permite justificar um
princípio de autoridade ou de referência ligado aos Apóstolos e aos discípulos muito
próximos de Cristo. Assim só seriam reconhecidos como escritos canônicos do Novo
Testamento aqueles dos quais a Tradição guardava, desde a primeira metade do sé-
culo II, a lembrança de que se ligavam aos Apóstolos ou a seus discípulos imediatos.
Sem dúvida, a necessidade de conservar as palavras do Senhor deve ter de-
sempenhado um papel importante na constituição e conservação de um corpus de
textos. A isso é preciso acrescentar a idéia de profecia em exercício na comunidade
cristã segundo uma doutrina ligada às manifestações do Espírito nesses tempos der-
radeiros, manifestações anunciadas tanto pelos profetas do Antigo Testamento como
pelo próprio Cristo (cf. At 2,16; Jo 16,7). Conservar essas profecias e guardar a memó-
ria dos ensinamentos dos Apóstolos contribuiu sem dúvida alguma para o respeito
devido a textos destinados a fixá-los, como evoca o final do Apocalipse (cf. 22,15-19).
O primeiro marco mais seguro do estabelecimento da lista dos escritos do Novo
Testamento encontra-se no início do século IV com a preocupação de Eusébio de Ce-
saréia, o fundador da historiografia cristã. Ao procurar estabelecer essa lista, ele torna
evidente que até então não havia uma lista oficial e universalmente reconhecida.
Devia estar ocorrendo naquele momento a influência das heresias e em particu-
lar da heresia ariana. Como era preciso fazer frente a essas ameaças e, portanto, en-
tender-se sobre as autoridades reconhecidas, tornava-se necessário entrar definitiva-
mente em acordo sobre os escritos de base que seriam aceitos por todos como refe-
rência. As controvérsias que se desenvolveram naquela época, a ocorrência dos gran-
des concílios iria consagrar um cânon do Novo Testamento ao qual não se retornaria
até as controvérsias provocadas pela Reforma e pela Contra-Reforma do século XVI
na Europa ocidental. Desta vez, tanto para o lado protestante como para o lado católi-
co, com a definição do cânon pelo concílio de Trento, o cânon seria fixado de forma
intangível, embora tanto para a teologia como para o ensinamento catequético e pas-
toral permanecesse aberto ao entendimento que o Espírito lhe daria até o fim dos
tempos.
Será o Novo Testamento uma obra fechada? “Início do desenvolvimento do
dogma”, como definia o cardeal Newman em meados do século XIX, o Novo Testa-
mento, longe de ser apenas a segunda parte da Bíblia e longe de encerrar as Escritu-
ras do Antigo Testamento, que relê à luz de Cristo e do Espírito, abre para o leitor e
para toda a comunidade que crê uma história de pensamento e de santidade que con-
tinua sempre diante de nossos olhos.
CONCLUSÃO
Da mesma forma que não se pode realmente introduzir alguém à Bíblia, não se pode
concluir uma obra que pretende introduzir a ela!
Tudo começa, com efeito, no momento em que, tendo sido dada a primeira in-
formação e os primeiros pontos de referência, percebe-se que é preciso pôr-se a ca-
minho, tomar o livro e ler... Para isso, como procuramos propor nestas páginas, é ne-
cessário saber o que contém tal biblioteca, de que forma é preciso abordá-la, com
quais instrumentos se poderá avançar por terrenos que são às vezes bem áridos.
Trata-se apenas de saber avançar, descobrir e aprender.
Se a Bíblia é lida há mais de vinte séculos e muito largamente por pessoas que
não a viram nascer, que não a produziram e para quem não foi de início escrita, se ela
conheceu e continua a conhecer um tal sucesso de edição em todas as línguas fala-
das sobre a Terra, é porque, além da fé no Deus de Israel e em Jesus Cristo que ela
pede, ela reúne a humanidade em torno do que lhe é essencial.
Sem dúvida, só raramente ela toma as formas da lei, do preceito, da sabedoria
ou do catecismo. Sem dúvida, só raramente encontramos nela fórmulas de fé. Ela é
mais narrativa, familiar da arte da narração, da particularidade da história, fatos que
podem desencorajar a priori o leitor ávido de regras rituais e morais precisas, originais
e intocáveis; fórmulas feitas, preceitos e outros imperativos categóricos.
Em vez disso, a Bíblia propõe a história, uma história feita de narrativas que se
ligam tanto ao mito, à lenda ou ao conto, como à verdade histórica, tal como podemos
defini-la hoje.
Mas pouco importa afinal que tudo não seja rigorosamente exato ou averiguado
nos “livros históricos” do Antigo Testamento, que esses livros também dêem espaço
para o imaginário ou se apóiem, como todos os historiadores da Antiguidade fizeram,
em narrativas incertas. O que conta é precisamente o que conduziu a redação bíblica
até o término do Novo Testamento: a convicção de que o ser humano tomado no tem-
po, na particularidade de sua época, de seu espaço e de sua cultura, nas particulari-
dades da História e da compreensão que tem dessa mesma História, só pode conhe-
cer a Deus dentro da realidade de sua própria história. Se Deus quiser, portanto, se
dar a conhecer ao homem, só o fará dentro dessa realidade histórica.
Tudo passa, é verdade, nesse rio de curso incessante e passam também os
princípios e as regras, as leis e os escritos fundadores que podem se mostrar, num
momento ou em outro, relativos, caducos, apesar da pretensão de seus autores de
reger com eles toda a humanidade até seu final.
A Bíblia, tanto o Novo como o Antigo Testamento, sabe disso, desse escoamen-
to do tempo, dessa evolução de idéias e imagens, que faz com que a representação
de Deus no tempo de Jeremias não seja mais a que as Escrituras dizem ter sido no
tempo de Abraão, de Moisés ou de Davi. E o velho Elias legando seu manto a Eliseu
não lhe lega os farrapos gastos de uma doutrina intocável, mas o símbolo de uma vida
através da qual ele havia duramente caminhado, até o ponto de precisar renunciar,
como nos conta o capítulo 19 do primeiro livro dos Reis. Às velhas imagens, que no
entanto eram bíblicas, do fogo, da tempestade e do tremor de terra que haviam servi-
do até então para anunciar Deus. Houve então “uma brisa suave. Ouvindo-a, Elias
cobriu o rosto com o manto...” (1Rs 19,12-13).
E alguns séculos mais tarde, quando os pastores e os Magos se inclinaram dian-
te de um recém-nascido, um menino muito pequeno, sua adoração testemunhará uma
nova imagem de Deus, mais intrigante que nunca, pois exposta à história humana,
com suas incertezas, fadigas, alegrias, dores, tragédias e morte.
Mas é, sem dúvida, essa a grande lição ou o grande princípio da Bíblia, Antigo e
Novo Testamentos: convite a aceitar o rio da história, a mergulhar nele como o único
lugar em que a Verdade pode realmente se manifestar. E se, como todo escrito, a Bí-
blia fixa alguma coisa, é precisamente esse ensinamento, pois Deus é “Aquele que é,
que era e que vem” e de quem o Verbo foi ouvido, visto pelos nossos olhos, tocado
por nossas mãos e contemplado, como nos recorda são João (cf. 1Jo 1,1) nos cami-
nhos de nossa História.
PEQUENO GLOSSÁRIO
Este pequeno glossário não tem a intenção de estabelecer definições estritas, nem, ao
contrário, suas diferentes acepções. Escolhemos um pequeno número de termos bási-
cos para a leitura deste manual. Assim, o leitor está convidado a se reportar a dicioná-
rios mais abrangentes.
FIM DO MANUAL
COMO A BÍBLIA FOI ESCRITA
Introdução ao Antigo Testamento
e ao Novo Testamento
Segundo Pierre Gibert
Mens Sana
Publicações Eletrônicas
Para ler e pensar
Abril, 2011