Há uma particularidade comum aos ditos gêneros da intimidade: em uma
carta, em um diário, alguém confidencia um segredo ao outro, alguém elege um confidente íntimo e o convoca – ainda que na figura do “meu querido diário”. A escrita da correspondência, como a da anotação no diário, é aquela que introduz no texto esta marca de um interlocutor oculto, ou a busca por este interlocutor, este alguém com quem falamos. Ela traz um chamado. Ana Cristina Cesar insiste nesta ideia de que a carta é escrita, antes de tudo, para chamar o outro, para causar algo em alguém: “Fundamentalmente, carta você escreve para mobilizar alguém (...) Você quer mobilizar alguém, você quer que, através do teu texto, um determinado interlocutor fique mobilizado” (c&t: 257). De modo que trabalhar com esses gêneros implica escrever um texto que contém, por natureza, uma forte carga daquilo que entendemos, desde Roman Jakobson, por função fática da linguagem, a função de estabelecer ou manter contato com o outro: Vocês estudaram Jakobson? Função fática? Muito centrado naquilo que é a segunda pessoa... Então, carta é cheio de vocativos, é cheio de exortações a alguém. É alguém que importa numa carta, mesmo que você esteja falando de coisas tuas. Diários... também. Quando você está escrevendo um diário... Existe muito aquela expressão “querido diário”. Você está tam- bém de olho num interlocutor. Você escreve um diário exatamente porque não tem um con- fidente, está substituindo um confidente teu (c&t: 257).
A diferença é que, na literatura, este alguém que você quer mobilizar é
muito mais difuso, você não sabe exatamente quem é ele, diz Ana: Do ponto de vista pessoal, do ponto de vista de como é que nasce um texto, você, quando está escrevendo, o impulso básico de você escrever é mobilizar alguém, mas você não sabe direito quem é esse alguém. Se você escreve uma carta, sabe. Se você escreve um diário, sabe menos. Se você escreve literatura, o impulso de mobilizar alguém – a gente podia chamar de o outro – continua, persiste, mas você não sabe direito, e é má-fé dizer que sabe. Então se o Jorge Amado disser “escrevo para o povo”, não sei se ele escreva para o povo, entendeu? (c&t: 258).
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A questão aqui não é a de que o escritor escreva preocupado com o público, no sentido de se preocupar com o leitor daquele poema, ou de escrever tendo em vista um “público leitor”, não se trata do “escrever para” determinado tipo de leitor ou de população. Pois não se trata de dar uma funcionalidade comuni- cativa ao texto literário; pelo contrário, ele é o texto que não comunica do jeito que nos comunicamos no dia a dia, diz Ana, ele é o texto que não comunica do modo que uma carta ou um diário de verdade comunicariam. Então trabalhar na literatura com estes gêneros da intimidade, fazer o diário de menina ou a carta ao amado se transformar em literatura, pressupõe uma espécie de borramento da figura pessoal, privada ou específica deste suposto interlocutor. Ao fazer lite- ratura, você já não sabe mais quem é ele. Segundo ela, este interlocutor se perde, difunde-se, dispersa-se – no entanto, a busca pelo encontro com o outro, pela mobilização de alguém, permaneceria, embora deste modo diferente: “A gente não sabe direito para quem a gente escreve. Mas existe, por trás do que a gente escreve, o desejo do encontro ou o desejo de mobilização do outro” (c&t: 258). De modo que fazer uma poesia que se vale de recursos dessas escritas que são mais explicitamente o compartilhamento com um outro, com uma compa- nhia íntima, um confidente, é fazer uma poesia que contém um apelo interlo- cutivo forte, que enfatiza esta que, para Ana, seria uma característica mais geral de uma certa literatura. Nos ditos gêneros da intimidade esta interlocução passa para o primeiro plano, assim, nos poemas que brincam com estes gêneros, o interlocutor ganha espaço, expande-se pelo texto, é incessante e obsessivamente convocado. Ana diz que em sua poesia, e em algumas literaturas, como até a da Guimarães Rosa, há uma obsessão pelo interlocutor, por esta figura do interlo- cutor: aquele com quem se fala, se conta um causo, aquele para quem se tem o que dizer, aquele que pode, enfim, ouvir-nos, encontrar-se com aquilo que dize- mos, escrevemos. Como vimos anteriormente, este interlocutor, que nos poemas de Ana C. é ficcionalizado, é aquele que supostamente conteria a chave para desvendar os falsos segredos que se escondem nos poemas, é aquele para quem ela se dirige, em tom de conversa íntima, deixando os espaços em branco que apenas um con- fidente íntimo de fato poderia completar. Acontece que, ao final, os confidentes somos nós, leitores, desconhecidos e imprevistos, convidados a preencher estas lacunas com nossas fabulações. Os segredos são vazios, silêncios, vácuos, espa- ços em que nós, interlocutores, poderemos nos espraiar em nossas leituras futu- ras. Aqui então desmancha-se a funcionalidade dos gêneros verdadeiramente íntimos – ou íntimos no sentido de “privado” ou “pessoal” – pois desmancha-se
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