Sei sulla pagina 1di 53

SE DEVEREI CONTIGO HABITAR

Ricardo de Almeida Rocha


O solitude! If I must with thee dwell

Let it not be among the jumbled heap

Of murky buildings (...)

John Keats
1

Oh, solidão!...

Na janela junto à ponte, a jovem se debruça,


absorta. A correntinha brilha em seu pescoço. Na
trilha do parque por onde voltou, ereta como se nada
tivesse acontecido, arde ainda a devassidão das
aparências, como um copo fervilhando,. Havia lá nas
árvores aves como essa, canto de um mundo que a
abandonou. Chega a ouvir o barulho do mar,
exatamente como se ainda estivesse dando sua
caminhada matinal. Ali está ela, sozinha, tentando se
alegrar na lembrança do quindim que comera de
sobremesa. O casaco marrom não dá idéia do frio que
faz. Um estado natural. Em cores fortes e reflexos,
passam os automóveis. Inquieta, respira fundo;
afasta-se da paisagem com um impulso no parapeito
e num último relance deixa o sol entrar na sala,
filtrado, quase líquido sobre os móveis.

Gisele Drabska. Uma mulher jovem e simpática


que todos achavam belíssima. Que vantagem existe
nisso, se a beleza só traz tanta dor? Um dia morrerá e
nada ficará além de seu caráter, dos objetos pessoais
impregnando de saudade uma pessoa amada e os
poemas que escreve nas horas de maior angústia.
Meu irmão, o que te tornou assim tão corriqueiro e
substituiu teu amor dedicado por lassidão tamanha?
Nem imagina onde ele esteja. Possivelmente foi para
algum lugar no litoral europeu, que adora. Sempre
soube se virar longe dos grandes centros. Aqui na
metrópole a vida é mesmo difícil e enganoso o mais
bucólico dos recantos. Tomou a longa ducha, mas a
sensação se mantém: parece que ainda dorme. Seja
como for é dia, um novo dia, precisa sair para o
trabalho – o último motivo para que levante da cama
de manhã.

Sobre a cabeceira o relógio acusa seu atraso.


Sobre a penteadeira o perfume e o creme que a
disfarçarão. Veja no espelho o quanto você é de fato
bela, lindíssima, dama triste do olhar perdido na
sacada da empresa. As colegas a imaginam realizada,
com os homens que quer. E amaldiçoam, amaldiçoam
sempre, às vezes com gracejos, outras com simples e
cruel maledicência. Sobre a cômoda antiga as
bonecas de porcelana numa cena perfeita de reflexão
da protagonista acerca de sua infância que chegou a
ser tão boa durante algum tempo.

O tempo...

Uma colina ao longe cuja neblina jamais se


dissipa, mas o olhar discerne sempre alguma
mudança, porque de outro modo estar no espaço
seria insuportável para a mediocridade humana. Seu
desânimo inexistia. Agora a saia, vermelha e
engomada. Uma última ajeitada no cabelo desdenha
de qualquer tempo ou contratempo.

Ao sair, numa rápida olhada para cima, percebe


que há ainda orvalho nas folhas da árvore em frente,
única do quarteirão. A grama ao redor está dourada –
até que horas durará esse brilho? No rosto pálido a
resposta imperceptível. Não mais que alguns minutos,
o tempo da alegria de alguém.

Um vermelho vivo reflete do carro que passa e,


junto à distância marcada pelo motor, mistura-se o
som do celular. Alô? Não esperava que ele fosse
ainda capaz de ligar. Viu-a saindo, não gostaria ela
que terminassem em algum lugar discreto o que
haviam na trilha começado? Se tivesse dito o que
pensava, Gisele decerto sentiria de novo o golpear de
trevas com que seu coração a tortura. Mantém o
andar rápido e decidido. Nem por doença falta ao
trabalho e não costuma se atrasar.
3

A morte não existe para ele. A moça no monitor


atende seu pedido de que tire mais uma peça. Sabia
que com essa conseguiria logo de primeira. Seus
amigos de bar nada entendem de computador e não
partilhavam suas fantasias mas tampouco podiam
imaginar nada de mal. A vida não existe para ele, se
isso não for vida.

Esse barulho incomoda. Grita com os vizinhos.


Podem parar com isso, palhaços? Não escutam porque
não estão em casa. Hum, que gostosa, vejamos o que
digo para que tire o resto, pensa, já se segurando
com a mão direita. Bendita tecnologia! Aposto que
você se depila toda, dá para se notar. Ela mostra que
não, ali onde se destaca aquela marca de nascença.
Não deu para segurar muito tempo, e depois do gozo
não há nada. Ela gosta de se exibir e nem imagina
que o faz agora para ninguém, ele foi se lavar. Ao
contato da água fria o membro já pequeno se enruga.

O quê? – ele se assusta. Vira-se para o lado do


ruído. Está vendo o que está vendo? Procura razões
para a alucinação, algo que comeu no almoço, a
maconha do dia anterior; talvez esteja sonhando. Do
chuveiro, o que se vê é um homem aterrorizado,
prostrado. Um menino. Quem entrasse naquele
momento veria a luminosidade da perna feminina à
luz do basculante. Na pele lisa e luzente há um
reflexo desfigurado do homem caído. Ele balbucia.
Pelo ângulo, não mais se poderia ver além da perna,
mas deduzia que era uma mulher magnífica. As
lembranças que provoca são diversas e envolvem
mais que sexo. O menino no chão vê a mãe, tão
bonita, escuta o pai dizendo que vai embora, que não
agüenta mais a esposa e o filho, vou embora, diz,
desse inferno.

Está se justificando. Pede humildemente


perdão, não pretendia. Estava estressado por causa
do trabalho, ela podia imaginar o que era a rotina de
um executivo? Perdoe-me, por favor. Ele estava cheio
de dívidas, não conseguia se concentrar no trabalho.
Não tinha mais posses nem dinheiro e jamais teve
amor. Encontrá-la no parque foi um refrigério. Ele
sabe, não foi a maneira mais lisonjeira de demonstrar
isso, mas ela podia acreditar. Deveria dar uma
desculpa para a mulher na tela do computador? A
moça no banheiro não se mexe e não fala. Na verdade
nem poderia estar ali. Então do que se trata? É uma
impressão correta a de que ela está a ponto de
chorar; sim, os olhos estão marejados – sim, fale, me
faça compreender o que está acontecendo.

Que nada. Cada vez entende menos, na


proporção exata da dor que cresce dentro dele;
lentamente, como a visão, ela própria cresce, a partir
de seu peito, como se ali estivesse enraizada. Ah! a
loucura! Quem disse que pessoas como ele não
sentem remorso? O que é corpo e o que é alma, onde
começa esse sofrimento inexorável? Não, isso não é
remorso, é alguma outra coisa, todos afinal agem de
forma semelhante e quando não fazem imaginam
fazer, o que dá naturalmente no mesmo, por que ele
seria culpado? Mas os lábios que recebiam as
lágrimas se movimentam agora em sentido inverso,
ameaçam sorrir, um sorriso apavorante, o que está
acontecendo comigo? – por que justamente comigo?
São palavras inteligíveis que agora saem desses
lábios? Possivelmente não, mas ele as entende, com
tanta clareza quanto sente esse pé que descalço em
seu peito se apóia.

Junto ao olhar fulminante, uma sentença. Desista


de sua vida, ou essa dor crescerá ao infinito. O
chuveiro pinga, a torneira da pia está aberta, há
gotas na janela do banheiro... Tudo está chorando o
pranto ao qual a visão renunciou. Ele está admitindo
o que sua razão rejeita. A ponto de desistir da vida.
Não há dúvida, é dela esse joelho, como não seria, foi
o que primeiro lhe chamou a atenção.

Prosseguiu o percurso, e a dor crescia pelas


coxas, e houve o momento terrível da pontada em
pleno ventre, ah, aquela floresta em que pela manhã
se havia perdido, em que sua rigidez ignorou a secura
sem que gritos houvesse (pois sua mão lhe tapava a
boca). Aí chegou alguém. Aí ele fugiu. E agora nada
tampa a minha boca, pensa; contudo tampouco posso
gritar. Enquanto ela conta em detalhes as dores da
beleza e a covardia da crueldade, ele simplesmente
não suporta mais. É o fim, precisa ser. Seguidamente
os momentos se pensam derradeiros, até que sobre a
total destruição derrama-se a última agonia,
amplificada como o vento na à janela.
5

Um prédio sofisticado. Pode-se imaginar que todos os


que vivem aqui tem seus desejos satisfeitos. Até a
adolescência, Gisele nutriu pelo tio Pertiert
admiração e afeto os mais autênticos. Vultos na
janela do segundo andar, o que terá acontecido? O
rosto do homem grisalho se volta para a mulher ao
lado mas deixa de dizer o que pensou. Sigamos nosso
caminho, o que temos a ver com isso? Todavia é difícil
imaginar que exista para o casal um caminho comum
a seguir, exceto salvaguardas inúteis que perderão
mais cedo ou mais tarde o sentido. O homem
assassinado é conhecido do policial responsável pela
investigação. Por que assassinado? Não há indício de
que tenha alguém estado com ele, não há arma ou
vestígio, fora essa expressão terrificada em seu rosto,
nada absolutamente aponta para um crime. Mas as
pessoas se aglomeram, já sem o casal entre elas, por
causa da viatura.

Pertiert passou a noite com uma garota nesse


bar onde costumam ser rigorosos com a questão da
identidade e de não permitirem a entrada de
menores. Há essa construção ao lado onde ninguém
poderá imaginar que exista no fundo um quarto até
agradável com alguma serventia. Não toque o corpo,
diz o policial ao porteiro. O próprio homem exigia o
inverso de sua companhia havia tão pouco tempo.
Não dá para ter certeza mas realmente parece não ter
mais que quatorze anos, a idade da sobrinha quando
descobriu pelo método mais abrupto que ele não era
assim digno de tanta admiração.

Vem cá, diz um policial ao outro. Houve segunda-


feira passada uma morte com características muito
parecidas. Quero dizer, com um cadáver muito
parecido: igualmente assustado e próximo ainda em
vida da região das sombras. Que eu não precise ver
um terceiro desses. Olhe. A tela do notebook mostra,
à luz do basculante, a posição derradeira do vizinho
de Gisele Drabska, como a clareza digital que não dá
uma verdadeira noção da luminosidade que ali havia,
longe disso. Quem é, como foi, com que rapidez se
deslocam as hipóteses entre o avanço tecnológico e a
lerdeza da justiça humana. Onde fica esse prédio? As
coisas logo ficarão complicadas para essa moça.
Todavia, mm tempo eterno de sofrimento para os que
sofrimento merecem não será o bastante para fazer
com que tenha valido a pena?
O vento lá fora geme e remexe coisas que
deveriam ser apagadas para sempre.

Sim, Gisele se sentia bem com elogios. E esse


agora, inesperado, entusiasmou-a além do que ela
própria costumava se permitir. Sua beleza e
inteligência de nada lhe valiam, mas agora se exalta
uma possível glória literária, glória de homens. Mas
essa fé, de súbito, qual é mesmo a sua utilidade? O
brilho da noite lembrava o brilho dos sonhos e afinal
seu tio está ainda entre as raríssimas pessoas em
quem acredita. Olhando-o ela aceitou o dom como de
fato uma dádiva e não um fardo. E foi se deitar com
uma nova perspectiva para o dia seguinte.

A motivação ou o desencanto sempre estão à


frente, num lugar que deveria pertencer à simples
realidade. Ela voou de um lugar a outro em poucas
horas e quando percebeu o Sr. Pertiert no quarto,
praticamente em sua cama, passou da renovada
esperança ao desespero. Mais um agindo da forma
que julgava normal até aquela noite e que ao
amanhecer mais que isso, passou a crer que não há
exceções, nenhuma, pensou, e como viverei num
mundo assim? Mas logo de novo o pêndulo fará seu
trajeto, ao conhecer David no ônibus. A cruel
decepção com o tio deixa de ser um choque, revive
num forte desejo de conseguir um bom trabalho e o
mais depressa se tornar independente – porque ainda
que exista no mundo um homem bom, não irá pôr em
risco o relacionamento com dependência. Assim que
se vê de novo sozinha, Gisele enche o peito, se põe
ereta e entra no prédio em que construirá uma
carreira de sucesso. É aí que o delegado
pessoalmente pergunta se ela veio trabalhar e, pela
resposta, forma dentro de si a convicção. Ela é a
principal suspeita.
7

Sentados à mesa do jantar sozinhos, enquanto a


senhora Drabska repousava após mais uma de suas
crises, o pai pergunta o que Gisele tinha, não era bom
para a saúde guardar as coisas para si mesma
daquela forma. Como é impossível negar a tensão e a
tristeza, admite falar. Pai, diz ela, e então começa, do
princípio, não, não terá coragem de falar do tio, então
conta sobre o médico, sem os detalhes mais dolentes.
Bem que o senhor Drabska tinha cautelas quando
diziam que era um profissional competente, um
homem maravilhoso, e louvavam seu interesse pelas
pacientes nas consultas. As palavras ainda procuram
um caminho quando ela sente que não deveria ter
falado e, olhando de soslaio para o rosto de seu pai,
percebeu que ela podia matá-lo de desgosto, mas
sabe, pai, o senhor não deve se importar assim tanto,
é um desclassificado, não vale a pena sofrer por
causa dele, e o pai pensa que se não vale a pena
sofrer com tal motivo, então qualquer sofrimento é
escusado. Minha filha, minha querida filhinha, e
colocou reticências onde completaria, o que não vale
a pena é colocar uma criança no mundo desses.
O sol estava alto e o dia quente. O carro saiu da
garagem, parecendo gemer em cada manobra. Ele
perdera a hora, o que nunca acontecia, porque só
conseguiu adormecer pela manhã, o que tampouco
era comum. O senhor Pertiert do lado, ao contrário,
parece ter passado uma noite ótima, na verdade
ainda dorme. Perdi a hora, Deus meu, não posso me
atrasar, dessa viagem depende a saúde de Ewe, mas
que ninguém imagine que na volta não mataria o
canalha, miserável, maldito, maldito – o que todavia,
súbito entende, nada mudará quanto a Gisele, antes
irá acrescentar dor à sua dor e mais trágico será o
seu futuro. Oh, o que pode motivar esses monstros,
onde está o Deus em quem creu a vida inteira, como
pode permitir essas coisas? E então lembra que tudo
começou, o desabafo da filha, porque a lembrara
sobre sua saúde e o mal de guardar as coisas para si,
não, não posso fazer isso, pensa, mas alguma coisa
preciso fazer. Ou talvez devesse apenas ter percebido
que para criar uma filha é preciso um pouco mais de
cuidado, talvez devesse ter esse tipo de conversa
antes que se tornasse mulher, e agora o mal não a
pegaria de tal sorte indefesa.

Então, pensa o senhor Pierce, talvez eu tenha


sido mais culpado que o próprio doutor, e nesse exato
momento Gisele despertou num sobressalto, correu
até a janela e viu apenas por uma fração de segundo
o carro do pai fazendo a curva e pegando a avenida.
9

Bem cedo os peritos começaram. Em parte pela


natural procura de objetos e sinais que pudessem
ligar o fato com um ato criminoso. Os médicos depois
confirmariam ou não se foi morte natural. Mas mesmo
se nada indicasse um crime, todos tinham desde o
princípio uma sensação bizarra ao olhar para o
cadáver. Os vultos passam para lá e para cá. Falam
entre si a cada poeira descoberta. Parece que ele
estava se divertindo antes de acontecer. Acha que
vale a pena localizar essa mulher? Não haveria tempo.
Por que ela estava na Geórgia? Mas pode saber de
alguma coisa. Nos laboratórios da polícia, também
haviam madrugado. Pincéis e líquidos, fitas e ácidos,
uma ou outra ferramenta, a lanterna e o microscópio.
Que coisa nojenta. Isso se popularizou por causa da
internet mas sempre existiu? A internet é apenas um
espelho do mundo: um espelho que aumenta, mas
ainda um espelho. Ninguém imaginava que aquele
perito tão jovem pudesse conhecer Baudelaire.
Quem? Hum. Aí está. É o que eu estava dizendo, a
gente não imagina essas coisas. Quanto à menina,
bem, não tão menina assim, não sabiam como avaliar.
É claro que o lugar foi preparado por um cafetão.
Podiam até procurá-lo e prendê-lo. Mas isso em nada
ajudaria na investigação. De nada serviria para
explicar o horror nas feições desses mortos.

Não parece coisa humana. Na verdade, a relação


virtual e a pedofilia, tampouco lembram alguma coisa
humana, pelo menos no sentido de que há um
monstro inumano dentro de cada um que a gente
desconhece porque prefere desconhecer. Talvez pelo
anseio de liberdade; porque cada transgressão,
quanto mais sórdida, mais nos aproxime de um tipo
de alvedrio que nos aproxima dos deuses. Um dos
homens se vira para a perita que falava. Você parece
ver em tudo alguma coisa que confirme suas teorias
insanas. Mas no fundo ele pensava de modo parecido.
Que o pior de tudo não é descobrir pessoas anormais,
mas sentir que lá no fundo há uma afinidade entre
nós e elas.

Os peritos são sombras na manhã. Este parece


ter passado uma noite difícil, talvez insone, talvez o
cansaço do sexo, ou ambos. O assoalho estala como
as indas e vindas num estranho refrão. Se a prova
pericial foi priorizada como ciência, e a ciência é
irrefutável, o que faremos com os traços desses
rostos, a ausência de digitais, esse inquérito de
sombras? Nenhuma materialidade, tampouco
testemunhas (exceto noutras direções), nenhum
vestígio ou agente que suporte a existência do crime,
nenhum vento que dobre árvores nem água das
nuvens carregadas nesses rostos revestidos mais de
pavor do que de pele. Nem autor, nem material, nem
indício qualquer e assim nenhuma evidência. Todavia
não é possível ignorar esses corpos retorcidos, não
importa o que disser a autópsia. Assim o investigador
se antecipa, descobre a relação entre os mortos, que
se confirma quando a mãe da suspeita (agora vítima)
chora à possibilidade do irmão ter abusado da
sobrinha. E todavia não há nada. Por que não desiste?
Ela morreu. Sim, morreu. Naquele mesmo dia em que
foi atacada no parque. Morreu por causa do ataque,
ao tentar se defender. Morreu porque ele fugiu. Que
sonhos são esses de que forjou a própria morte para
se livrar? Seguirá ele na caça de um fantasma?

Se precisa de um corpo e a cremação está


documentada, o que terá? Mas é um homem
competente e racional, o que temos? Dois corpos,
uma jovem assediada pelos dois, uma mulher
determinada, conforme os testemunhos no trabalho,
de inteligência incomum, e agora, o resultado da
autópsia, ataque do coração nos dois casos. Sim, e o
que comeram? Não é difícil provocá-los hoje em dia. O
delegado está muito próximo da aposentadoria.
Jamais houve um desafio assim, será o fecho de ouro
de sua carreira, não se deixará ludibriar por uma
mulher, por inteligente que seja e ainda que seus
motivos sejam justos.
11

Ninguém estava aqui no momento em que ele morreu,


disse o perito ao delegado. Não há dúvida quanto a
isso. Por que o senhor simplesmente não aceita? O
legista determinou: simples síncope. Nada indica o
contrário. Substância suspeita alguma ingerida. A dor
no rosto dele, infelizmente, não há método que
explique. Que razão haveria para continuarmos? –
perguntou o jovem, condescendente. Todos
concordam que é apenas uma coincidência ambos
terem abusado da moça. Se pensarmos bem, foi feita
justiça. Uma justiça divina. Portanto, vamos tomar um
café e depois eu levo o senhor em casa. Têm sido dias
difíceis.

Estava deitado sobre os lençóis trocados,


recusara o chamado da mulher para jantar. Abdul,
abdul, ela ainda insiste sem que ele ouça. É possível
que não esteja morta, que tenha forjado a
documentação e subornado os envolvidos. E as cinzas
não deixam rastros. De um salto, levantou-se. É claro!
As cinzas... Onde foram jogadas? Haverá testemunhas
decerto. E se não houver, não será estranho? – disse
para si mesmo num sorriso sarcástico. Tudo de que
precisa, um pretexto para seguir adiante. Descobrirá
a intrincada verdade. Sua investigação terá sucesso,
será um marco. Abdul, Abdul. Você é um gênio.

Todos estão convocados para a reunião. O


pessoal da Instituto de Perícias não podia acreditar.
Menos ainda os investigadores subordinados. A
irritação se misturou à maledicência. Portas batem
pesadamente, cadeiras são jogadas contra as mesas.
Na sala o delegado nada ouve. As pessoas ainda
estão entrando. Abdul está em outro mundo.

13

Volta da aula de música. Gisele. Seus cabelos


cresceram desde o verão, emprestam-lhe um toque
de mulher. Que horas são? Está atrasada para o
médico e não teve tempo de encontrar a mãe para
irem juntas. Balança moderadamente os quadris
ficando férteis e mordisca os lábios. Se não mais a
encontram na noite, como reclamam os amigos, é por
isso, responde, porque vive sem tempo, mas na
verdade prefere usufruir da vida assim, estudando,
logo terá um bom emprego, o que eles ganham com
tanta madrugada insone e noites em claro jogando
conversa fora? Quando porém lembrar desse dia, terá
preferido um barzinho, uma festa nefasta, qualquer
coisa que a fizesse perder a hora, não da aula apenas,
porque a música ainda era das poucas coisas que
amava.

Então? O que você está sentindo, perguntou o


doutor, muito sério, ainda imaginando que a mãe está
na sala de espera acertando com sua secretária os
detalhes relativos ao plano. Logo entendeu que a
senhora Drabska não fora com a filha. Já havia
perdido a noite de sono cuidando dela. E a mãe
estava se acabada, exausta, doente, disse Gisele
numa confidência de que se arrependerá para
sempre. Quanto ao doutor, havia tempo esperava
esse dia. Ao chegar em casa, atravessando as ruas
perigosamente, entre carros e palavras amalgamadas
de pornografia e maldição, ela ainda está
desalinhada, seus olhos estão marejados e o ar lhe
falta.

Ela evitou a cozinha e o beijo na senhora, não


contou à mãe, conforme prometera, da audição com o
mestre italiano, que tal ele era, ela achava ter tocado
bem?, e quanto à consulta, o que vai dizer, Meu Deus,
quando inevitavelmente elas se encontrassem? Dirá
que foi tudo bem, naturalmente, e precisará mentir
de modo convincente porque a senhora Drabska é
esperta demais, apesar dos vácuos da doença,
esperta demais. Mas agora vai direto para o quarto e
maquinalmente tira o violoncelo da caixa. O som se
propaga melancólico pela casa e todos sabem que ela
não gosta de ser interrompida quando treina.

Que música tão triste. É melhor deixa-la


sossegada, à noite a gente pergunta, bem, você
pergunta na verdade, porque eu não estarei aqui.
Terminando de falar, o pai entra e fecha a porta atrás
de si. Depois do almoço, ele e o cunhado irão viajar a
negócios. A mulher relaciona a tristeza da música à
seu pressentimento, mas não diz nada, silêncio de
que se arrependerá para sempre. Mas não se calará
quanto ao irmão, um dia haverá de falar o que de
repente passou a inundar a sua alma. Nem precisará
ser muito clara, o delegado é um homem perspicaz e
ela hoje uma mãe por demais ferida e indignada. Isso
não irá ressuscitar a moça nem punir o irmão morto,
mas de algum modo a conforta.

O quadro na parede refrata a melodia, a lâmpada


e a suavidade quente da tarde. Vozes através da
porta do consultório. Em seguida a secretária sai,
levando o que parece ser alguns prontuários. Uma
menina também espera o elevador. Nunca a viu por
ali. Sorri e diz que vai chover. Naquele dia no quarto
os quadros de Gisele também deslocavam luzes, sons
e sentimentos, sem porém lhes dar um destino.
Agora, o médico se prepara para sair também. Não se
sente muito bem. Apóia o queixo com a mão esquerda
e súbito desvia o olhar antes perdido para o quadro
na parede. O que está vendo?, se pergunta,
preferindo que a resposta não se manifeste.

Tudo o que pensou naqueles momentos, a dor


horrenda que esperava para si mesmo num louco
ímpeto de justiça, tardia, tardia demais – e nada
precisava ter feito além de ser um homem direito, não
deturpar seu juramento em atos sórdidos, e tentar
cuidar de seus pacientes com dedicação, com amor,
como fazia na discussão de seus direitos com o Plano
de Saúde – não, não isso, mas levado por compaixão
sincera pelos outros – por que, se fui um rapaz direito
e cheio de idéias altruístas, minha existência
terminará assim, perseguido pelo destino por dele me
afastei, e em meio a tamanho transe expiatório que
todavia não evitará o fim mais trágico –tudo o que
pensou naquela estrada perversa antes do abismo,
rosnando como um cão valente que foge diante de um
monstro invisível.

Quando a polícia chegou, lá estava o doutor,


caído, como se por horas houvesse se contorcido,
para além de qualquer explicação sensata. Meu Deus,
murmura o delegado, e em seu olhar está escrito que
ele começa a acreditar que existe alguma coisa além
da vingança naquelas mortes. Agora, como irá ele
dormir? Aonde levam essas alíneas? E escuta. Sonata
ao luar... lágrimas desesperadas abafadas por um
violoncelo ... (Pagava talvez algum pecado?)

O calor suave parece vir de uma tarde distante.


15

Puxou a saia e tentou interpor a bolsa ao sentir o


indesejável contato. Se afastou o quanto foi possível
no metrô cheio. Com a veemente insistência da mão,
a certeza do abuso transforma-se em percepção, faz-
se sentimento; desloca-se para a região em que a
emoção ganha nítidos contornos que ela aceita como
ódio. Está sendo subjugada em mais de um sentido,
não pelos eventos exteriores apenas. Deus, como
todas as coisas são escuras por aqui!... Então o ódio e
a mão se misturaram e o corpo e a alma eram como a
imagem diante do espelho e ela não sabia o que era o
reflexo do que. Porque seus nervos também estavam
afetados.

O homem atrás dela perde, a cada movimento do


vagão, eventual pejo que possa ainda e a cada
tiquetaquear permite-se maior avanço, saqueador na
noite. Encosta sagrada sem vanglória exceto entre
pares que não verão a ignomínia. A vergonha
decretada por quem o dirá patético e solitário. O
brado contém-se entre a ira e o constrangimento
como se os que os rodeavam estivessem prontos não
a socorrê-la mas a acusá-la. Por que esse vestido
curto? Por que essa blusa justa? Por que esses
quadris perfeitos?

Outro brado e som algum.

Apenas o trem está gritando, ruge agora, geme e


se contorce na lenta e odiosa agonia borrifada no
coração de um ser invisível. Ouviu os próprios dedos
agarrarem-se à alça da bolsa e viu o próprio rosto
tornar-se exangue. Uma inconcebível morte alastrou-
se em triunfo pelo infame constrangimento. O
escândalo transcendera a mera decência e mesmo o
crime jamais punido, uma coisa que acontece em
meio a tantas coisas que acontecem, a serem tão
somente acatadas, jamais partilhadas, assumiu a
forma odiosa que também na representação futura
será odiosa – soube Gisele – não há na morte sombra
de poesia. Teve certeza. Não sabe quando mas, ah,
será tenebroso o fim dos pusilânimes. Não sabe
quando. Um dia.

Aquela eternidade sórdida teve seu fim


anunciado pelo auto-falante. A próxima estação
incompatibilizará o desejo de paz com o de vingança.
E todavia que tempo será esse para alguém como ela,
incapaz de qualquer ira ou violência? Que tempo será
esse para encontrar esse rosto visto com clareza num
relance, se tudo o que deseja agora é jamais rever
esse rosto?

Azáfama na plataforma. A multidão se derrama


mas logo o gargalo da escada rolante em fila indiana
a detém. Ninguém verá Gisele chorar. Ainda que
todos os seus sonhos de um mundo puro estejam
desabando sobre ela, ninguém a verá chorar.

17

A ponte. Atravessa-a lentamente. Hoje ele apareceu


na paisagem levado pelos seus próprios desejos,
ardendo, igual a qualquer outro. Se sair desse
quadro, deixará que atrás de si, ao piscar do
semáforo, dois carros em sentido contrário se
encontrem num cruzamento. Em momentos assim o ar
parece estar em sua face, as cores da cidade e o sol
que sobe no horizonte saem de dentro dele. Como se
dilui em seu olhar, o amanhecer foge da terra.
Poderia ser de tardinha, daria no mesmo. O que muda
é a personalíssima perspectiva, o calçamento que
avança conforme seus pensamentos entre a
intensidade íntima de seu cálice. Os passos ecoarão
até o alto da escada, e então haverá uma pausa
ilusória. Sua vida hoje se assemelha, sem dúvida, a
qualquer uma. Não que isso seja mau, pelo contrário,
sente-se sereno como um fantasma que caminha. O
inquilino do andar de baixo pergunta se ele tem um
pouco de açúcar que possa emprestar. Acho que sim.
A mão abre a porta que range em seus gonzos.

Eis aqui, diz quase para si mesmo, o pote de


açúcar como um sol que se ergue atrás de uma
cordilheira interior. Um dia como outros, escravo dos
sentimentos; lá e acolá é sempre aqui. No fundo da
sala, enquanto o vizinho sai, a janela está se abrindo
e os duendes que fabricam esse David Choi voam por
sobre os telhados. Tão elementar, a manhã respira
nas cortinas. Um zíper. A descarga. Ela disse que me
ama. Estamos juntos há quase um ano e só hoje ela
disse que me ama. Com a mesma convicção que amou
todo esse tempo sem dizer. É essa franqueza, se pode
chamar assim, que o comove, que faz com que dele
brote esse sentimento de dever, quase de missão,
matéria de que é feito o seu amor, ainda quando
escapa para regiões de onde só voltará após o êxtase.

Um copo. Água. Bebe. A menina que Gisele foi um


dia. Está sorrindo: está sorrindo para ele. Uma visão
rara. O que está dizendo? Durante muito tempo
escutará o inaudito naquele movimento de lábios.
Mas por que ele está tremendo? Não importa. Nada
importa. Ela está ali, está ali ainda, diáfana em sua
lembrança, revivida em seu presente por um
caprichoso acaso que ele tende a acreditar
predestinação. Amor. O sorriso se espalha pelos
nervos. Que sorriso? Pergunta-se. É ela que está
sorrindo em mim ou sou eu mesmo? A menina encosta
o braço no braço dele sobre a carteira que pela
primeira vez dividem, e será a única. O branco da
blusa de seu uniforme irradia-se pelo futuro de David.
Ilumina agora este aposento.

Quando se despediram no dia anterior, Gisele


olhou para David, entre apaziguada e temerosa. A
que horas nos encontraremos amanhã? Não fazia
sentido ser fulminada assim como se tivesse recebido
uma má notícia, justo agora que tinha superado os
traumas e conseguira, que conseguiram. Na sala azul
abrigada de seus demônios, os ininterruptos
espasmos pareceram de súbito os últimos suspiros.

A luz da tarde que iluminava os enfeites na mesa


de centro é a mesma agora no quarto dele. De
manhãzinha, como se fosse de tarde. Ele seca a boca
com a manga da camisa. Alguma coisa está errada,
sentem no mesmo átimo, o gozo parando sobre eles,
o gozo há tanto esperado. Justo agora que as sombras
se dissiparam, a premonição indesejada. Ah, ele
deveria ter dormido lá, com ela. Por que mesmo não o
fez? Então este momento não poderia existir, e seus
olhos ainda a estariam contemplando. Mas se o
passado às vezes volta, o futuro jamais chega, e
quem poderia ontem imaginar? O que poderia ter sido
não foi e agora é tarde. À sirene da ambulância cabe
o grito alucinado, derradeira queixa. É tarde demais.
19

Ela sabe, o sonho da vida se corrompeu, de um


jeito que essas flores em sua mão, exuberantes, não
podem refletir e todavia aí estão, tão coloridas,
tenras e viçosas, não há como imaginá-las em ligadas
à morte mas entram com Gisele no cemitério e a
acompanham até o túmulo do pai, devolvendo a luz
ao dia, enquanto pássaros esvoaçam do prédio
principal onde está a capela e a sala onde o corpo foi
velado, pintados de um branco funéreo em que ela
continua a vê-lo, como se cada rachadura daquela
fachada guardasse um segredo a respeito dele, ou
dela mesma, como se a vida estivesse muito mais ali,
na morte, no morto, do que na sua sobrevida
caminhante, mais fraca cada vez, sabe Deus a que
apegada, a uma esperança é que não, aqui está, pai,
receba essa homenagem de quem o amou muito e que
sente tanto a tua falta.

Apegar-se quem sabe à manhã apenas, aqui


assim silenciosa e pacífica, onde não passam as
inquietudes ou o cansaço, e as poucas pessoas ao
redor guardam entre si essa afinidade derradeira, que
têm porque estão vivas – e talvez isso prove que
existe um mundo fora dali – e das recordações
carregadas no ar. Então ela sobe dos joelhos, apóia-se
e levanta, retorna às passagens estreitas e solitárias,
escutando os pássaros e os murmúrios e nada
escutando além da voz noturna em que, entorpecida,
sua insônia se ampara. Mas o que dizer de desse céu
de 2010, do luzidio verde dessa árvore, das nuvens
escuras cujo contorno porém se mantém branco?
Nesses últimos meses de um ano marcado por
desastres naturais em todo o mundo, enchentes,
terremotos e tsunamis, parece a Gisele ter entendido
alguma coisa do sentido da existência, vislumbre
possivelmente restrito àqueles cuja existência
aparentemente perde o significado.

Quem sabe tenha compreendido que as coisas


não tem razão de ser, não uma que se baseie no
entendimento, e a partir daí toda filosofia de vida
tenha se tornado inútil. A partir daí, o acidente, a
morte do pai e a sobrevivência do tio, a doença da
mãe, tudo adquire uma lógica intrínseca alheia ao
raciocínio humano. E naturalmente seu fado, seu
fardo pesado e odioso. Já há algumas luzes no prédio,
e à saída, no ritmo de seus passos, as casas se
acendem. Sua sombra lateral no caminho cresce
agora em uma parede de sépia mais saturado.

Quando Gisele se aproximou de sua rua, cerca de


meia horas depois, a luz dourava seu perfil e parecia
uma orla reluzente em seu vestido até agora há
pouco, quando entrou no prédio numa linha reta e
decidida até o elevador, sentindo que o ar lhe faltava,
encostando-se ao metal frio bem debaixo da câmera
de segurança, falando baixinho palavras de consolo
para si mesma, calma, você não vai conseguir
sobreviver a tanta tensão, bom é ter esperança e
esperar em silêncio, suportar o jugo da juventude,
quem sabe não tenha que carregá-lo sozinha ao longo
de toda vida, quem sabe apareça alguém, um amigo,
um parceiro, um homem que tome conta de mim e,
enquanto não acontece, farte-se de afrontas. Sentou-
se na cama, tirou os sapatos, suspirou, tornou a
levantar, chegou à janela, ainda bem que não dá para
nenhum vizinho, não gostava da maneira como esse
do mesmo andar a olhava, era bom pelo menos em
algum momento ter essa liberdade, desabotoar o
sutiã aureolada, imagine, uma santa, não, é uma
coisa que não sou, pensa ao deixar a calcinha no
assoalho, solta os cabelos e uma explosão suave e
prateada que engole os intermináveis temores da
noite que pulsando se aproxima.

Gostaria de por um short, uma camiseta e ir


correr no parque junto à praia, mas seria quase uma
insulto à violência da cidade, bem, deixará para de
assim que amanhecer, afinal excepcionalmente hoje
as lembranças lhe deixaram com muito sono, e assim
que dormir em seu sono sem sonhos já será amanhã.
21

Alguns dias depois de ter ido à casa de Gisele e


falado com a senhora Drabska, o delegado Abdul
encontrou um antigo colega a quem muito respeitava
e perguntou o que ele achava de tudo aquilo. Tem
suas opiniões e algumas intuições, porém vão de
encontro umas às outras. Você sabe, Artur, não sou
um homem místico; mas estou começando a crer que
existe uma conotação sobrenatural nessas mortes. O
outro quis então saber detalhes e o delegado contou.

Gisele é -- ou era (quase admite) -- uma moça


muito bonita, realmente atraente. Olhe. Ao mostrar a
foto disse a si mesmo que não fazia justiça à jovem.
Lembrou de repente que o colega teve um caso
extraconjugal com uma moça dessa idade. Enfim, já
havia começado e, paciência, continuou. Tudo
indicava que ela tinha se vingado do vizinho, que a
havia assediado no parque da praia na manhã de 29
de setembro de 2010, quando à noite ele foi
assassinado em seu apartamento. Mas isso não pode
ser porque ela morreu antes, nesse mesmo dia. Abdul
chegou a pensar que ela simulara sua própria morte
para se livrar, pois o porteiro de seu prédio disse que
ela saíra à hora de sempre para trabalhar. Mas no
escritório constatou que ela na verdade faltara (por
que o porteiro mentiu? -- Não menti! protestou o
homem, juro que a vi!), sim, ela faltara -- o que aliás,
testemunharam, jamais tinha acontecido antes. Artur
a essa altura começa a se interessar e passa a dar
uma atenção mais cuidadosa à narrativa do delegado.

É um homem de cinqüenta e sete anos, de poucos


verdadeiros amigos e hábitos rigorosos. Aposentou-se
tão logo pôde, já que não suportava tanta
perversidade e a forma como as leis terminavam por
livrar sempre os culpados. A literatura deveria servir
para que de algum modo fizesse a justiça a que os
homens se recusavam. Se tivesse talento para tanto,
teria se dedicado completamente, mas também no
mundo dos livros, descobriu, a desconexão entre o
que deveria ser e o que era se mostrava evidente,
mundo nefasto de lixo publicado e nobres anonimatos
que só o tempo redime.

Bem, o que chamou a atenção dos policiais, do


pessoal da perícia e de todos o que chegaram a ter
contato visual com o cadáver foi a aparência
aterrorizada e aterrorizante do morto, alguma coisa
muito próxima dos fantasmas acorrentados ao inferno
nos filmes de terror, um testemunho de unanimidade
ainda mais relevante pelo gaguejar, pelo tremor e
olhos esbagaçados. Artur abre mais os próprios olhos
sem ousar de antemão esboçar qualquer tese: quem
sabe ali poderia estar a história de seu romance. Algo
pelo que valha a pena viver os últimos anos de uma
vida até então inócua. Abdul não é homem de pedir
opinião – se está fazendo isso... Uma jovem
assediada, um estarrecedor cadáver, o medo, a
crueldade, o inferno, a desesperança e ódio. E agora?

Logo, não um só cadáver. Como assim?


Soubemos, meu amigo, de um caso em tudo muito
semelhante, a ausência de provas, testemunhas ou
vestígios, o horror na face, a súplica inaudita pelo
fim, Artur tentava imaginar, um homem rogando aos
montes que o soterrassem, isso e não a clemência
como perdão para seus pecados. Não parecia coisa
humana. Esse outro morto, imagine, era tio da
suspeita, que agora creio estar mesmo morta. Mas
não acabou. Falta falar de um rapaz que enfrentou a
suspeita do delegado, um tal Eduard se esse detalhe
a Artur interessar, que garantiu com consistente
veemência a inocência da moça chamada Gisele; falta
falar da mãe dela, cuja doença não a impediu de
desafiar a autoridade em sua casa a prender a sua
filha; e falta sobretudo falar de outras vítimas, não
sei, diz, o quanto é válido usar esse termo.
Sim, o médico a quem a jovem durante um tempo
consultou, sobre quem a própria família praguejou ao
saber da morte e a mulher em especial parecia se
sentir vingada, e um outro, encontrado no banheiro
de uma lanchonete, tendo também algo em comum
com a rotina dessa moça, quero dizer, costumavam
pegar o mesmo metrô no mesmo horário. Assim, aqui
estão, os delegados, um aposentado e outro quase,
em meio a uma tal sorte de fatos e espectros,
enquanto o garçom lhes traz mais duas xícaras de
café.

Como se não bastasse tudo isso, há uma história


trágica que não envolve diretamente essa moça, mas
seu namorado, o que significa dizer que quase a
envolve, tal a ligação dos dois, conforme Abdul pôde
apurar. O que aconteceu com ele? Sofreu uma queda
numa circunstância corriqueira, parece que ia trocar a
lâmpada de seu quarto e teve uma tontura. Não, não
morreu, mas é quase como se tivesse morrido, está
ligado a aparelhos, inconsciente, e os médicos
acreditam que é remotíssima a possibilidade de um
dia acordar.

E tinha mais, se Abdul quisesse se ater a


detalhes, o acidente que matou o pai. Dele, o tio
Pertiert se salvou.
Artur intuíra saídas para o labirinto. A literatura
poderia suprir o que faltasse, mas não pode dizer isso
ao amigo, não é o que ele espera ou pediu. Beberam
juntos um gole e Abdul apanhou o cigarro a que
voltara após o caso. Olham-se, suspiram. Ao contrário
de você, Abdul, sou um homem místico. Um
calendário na parede. Faz um mês que o vizinho da
moça morreu. Desde então, toda segunda-feira. O
quê? Alguém morre assim. Artur emergiu de seu
mundo imaginado e cogitou o quanto poderia ser
verdadeiro. Então, o que ele achava?

Pode ser que existam mais pontos em comum


entre esses mortos e a partir deles tenhamos um
caso, mesmo que, como tudo indica, a moça
realmente esteja morta.

25
Quase meia-noite. Gisele faz grande esforço para
levantar o fardo da cama, pois era isso que seu corpo
se havia tornado. Acabara de desabafar com o irmão,
e convulsa adormeceu. Ele está ao lado e a contempla
calado. Parece meditar sobre os horrores que ela
contou: assim ela o vê ao despertar. Mas aqui mudam
algumas coisas, Hadrien a olha de um jeito estranho,
com o olhar típico de quem bebeu. O que vê? É esse o
seu irmão? Ele diz algo. Sim, é ele. Mudaram algumas
coisas. O declínio da nobreza de um amor fraterno.
Uma realidade inesperada. O que você está fazendo,
Hadrien? Ele apenas a velava. Não assim.

Aproxima-se dela, que custa a dar por si, porque


até um momento ainda poderiam ser carinhos de
irmão. Ela percebe estar sem a blusa. Essa mão que a
percorre é ainda a mão de Hadrien. Gisele se encolhe,
chorosa, mas nada do escândalo que seria de supor.
São movimentos castos, de evidente repúdio, mas
não indignados, onde ficou sua capacidade de se
escandalizar? Ele também não insiste. Apóia-se no
cotovelo direito, recostado atrás dela, e ouve o
pranto como se viesse de muito longe, como ecos do
além. Eu te amo, ele diz, como se fosse algo normal
de se dizer.

Ela se vira para ele e o olha no fundo de seus


olhos. Abraça-o e sua voz sai com irreal compreensão.
Meu querido, nós sempre fomos tão unidos, sempre
pudemos contar um com o outro. O calor do corpo
dela se irradia pelos nervos de Hadrien e talvez por
fragmentos de seu espírito, num aroma entre o mar
pela manhã e a nota da noite mais funérea. Irmã
minha, amada minha, que irá receber o meu beijo,
num último momento vira o rosto, desvia seu
miraculoso hálito, de perfeitos perfumes adocicados,
sem qualquer nódoa apesar de tudo. Ele se inclina, e
aperta-a contra si, perdendo pela primeira vez a
sutileza. Segura com as duas mãos o rosto dela e fala,
embora ela não esteja mais escutando.

Quem é esse homem, senão um a mais,


permitindo-se perder por um prazer tão próximo que
é abismo, uma perdição irreversível como a vela que
consome não mais dará luz. O que mais a confunde é
essa calma, onde deveria reinar uma indignação
veemente. Gisele tranca os lábios e no queixo se
multiplicam pontos de ab-rogação da confissão há
pouco feita e aos laços puros do sangue e do afeto.
Não, ele não está dizendo isso, tudo bem que bebeu e
se deva entoa dar um desconto, mas quanto a uma tal
heresia? Se quatro assaltantes que você nunca viu
puderam, por que seu irmão amado não poderá?
Ela mais uma vez lutou o quanto pôde, e foi
bastante visto que era forte, mas há um fim para toda
resistência, e não será isso com a própria existência?
Os olhos fechados na banheira, após os um ao outro
se ensaboarem os braços, e sobretudo a mão com a
esponja desesperadamente esmerar-se em sua
missão sob a água, os olhos fechados e ela o imagina,
dormindo o sono de duplo amortecimento e múltiplas
e perversas ramagens. Não se dirige ela mais a Deus
por consolo ou direção. Fecha de novo os olhos,
afunda sob a espuma, e vê emergir de súbito uma
abelha selvagem e vermelha.

29

Quando a luz aflita entrou pela janela e banhou o


assoalho, ela estava deitada, com os olhos abertos;
agora porém o espelho diante da cama já não guarda
sua imagem: levantara-se, abrira as cortinas, e o
amanhecer o quarto inteiro envolveu. Espáduas nuas,
floridas, tocam o tecido e o afasta ainda mais para a
visão completa do jardim. Diga-me em que está
pensando, dissera uma vez David; ela agora pensa
nele, em que mais poderia pensar? – sua esperança de
que desperte algum dia, desgastada, está morrendo.
O vidro devolve o olhar que questiona esses caprichos
cruéis do destino.

Gelada na alma, senta-se e na penteadeira passa


a se maquiar. O que adianta chorar, ou melhor,
saberem que chorou? O rosto enquadrado chora
ainda, as lágrimas se multiplicam tanto mais são
reprimidas. Enfim se acalma, não, apenas se
transforma a agitação da dor. Está correndo agora
pela rua vazia, os olhos borrados. Relembra. Amor,
fica tranqüila. Não sei por que está assim triste e
você tem o direito de guardar o segredo que quiser.
Intimidade verdadeira tem de permitir que cada tenha
vida própria. Ela olhou David com ternura agradecida,
mas sabia que não poderia mais guardar para si
aquelas coisas. Isso foi no dia anterior em que ele
sofreu o acidente. Agora não tem mais com quem
falar do tio, desse homem no metrô, do assalto, do
irmão. A manhã cada vez mais brilhante concede a
seu corpo um frescor que ela não sente.

Para que é essa fila enorme? Alguma coisa a ver


com benefícios sociais do Estado. Que loucura. Esse
mundo é louco. Gisele não quer mais viver, embora
jamais fosse capaz de tentar contra a vida, um
perfeito paradoxo. Continua correndo e o mar
aparece, translúcido como se realmente tivesse luz
própria. Os pombos na areia ainda podem ser
ouvidos. Chega a pensar quem sabe ainda as coisas
ainda se ajeitem. Parou defronte à praia. Um dia
assim não pode conviver com o mal, pensa. O céu e o
mar garantem isso. Ali passa a recordar.

Tenta adivinhar as horas pela posição da lua. Um


relógio plenamente audível. Os olhos de David,
fundos, a contemplam. O pior horário do trânsito já
passou. Ela pede a ele que se sente, pede que se
sente e se abaixa para desabotoar a fivela do sapato.
O movimento das folhas das árvores à janela é suave,
quase inexiste. Que quadro magnífico, ele pensa; as
sombras no rosto e no vestido de Gisele, a luz que se
derrama pelo quarto. Um leve tremor nas mãos dele.
Um tremor que as frustradas tentativas anteriores só
aumentaram. Subitamente ele levanta e se aproxima.

Um dia tinha de acontecer. Foi como se algo se


rompesse dentro dele. Não chegava a crer que ela
pudesse estar brincando, zombando; mas, por uma
desconhecida natureza que nele dormia, entre biliosa
e irascível sem contudo ter nada de uma coisa ou de
outra (porque a virtude desconhece os extremos),
David abraçou-a de modo inequívoco, que não
houvesse qualquer dúvida, sua ternura não deveria
ser confundida com fraqueza ou pusilanimidade. Se
ela quisesse, podia lhe contar o que se passava nos
momentos íntimos, por que se tornava tão arredia de
súbito, justo no melhor momento. Como não contava,
deu-lhe o direito de se impor assim, tirando-lhe a
calcinha e deitando-a, num carinho decidido.

Nada falaram enquanto durou. Quando os dedos


dele tomaram o partido de Gisele, embora ainda
dentro dela, pétreo e passivo, uma réstia brilhante
passeou à frente dela e ela soube que era primavera,
porque embora fizesse frio sentia-se aconchegada e
embora o tempo estivesse firme, havia muita
umidade, inclusive naquele sinuoso silêncio. Então,
embora devesse estar também decepcionada com
David, que se impusera como todos, seu sorriso
denuncia que está feliz, e que não, ele não era como
todos. Ele era único, murmurou ao pisar o mar. A
ramaria ali perto suavemente ainda dança.

31

Primeiramente, uma sombra na parede. A luz


amarela em torno se agitou, como a aura de alguém
que estivesse à beira de um ataque – alguém que de
repente, depois de representar o papel de um anjo,
tornar-se-á demônio. Quando a esposa entrou, ele
estava deitado, mas agora, zurzido, parece que vai se
levantar. Quem sabe precise sofrer assim. Escuta a
irmã em meio a percussão no assoalho do
apartamento acima, no teto. Sente-se desgraçado.
Gisele! Acorda em absoluto desespero. Sua mulher
pergunta O que foi? – mas, paralisado de desespero,
Hadrien não consegue falar. Olham um ao outro
enquanto a sombra desliza para os lados da janela.

Os rins o estão matando, pontadas de dentro o


açoitam. Por que tem medo, precisa encontrar
explicações. Ai! Eu devia ter aceitado a sugestão e ido
ao médico, pelo menos não continuar a comer
morango. Mas, oh, é tão gostoso... E as crianças
comem. Ai! A dor desce pelo corpo. Ela o está tocando
com o pênis, está me tocando e, dizendo que me ama,
quer mais e mais. Mas por Deus, Hadrien, do que você
está falando? Ela quem? Uma mulher com pênis? A
esposa faz tempo pensava que ele tinha se curado.
Mas qual o quê, de novo aqueles sonhos. Você está
me assustando, pare com isso. E pensar que era o
homem mais bonito que ela jamais vira, hoje acabado,
até alguma outra coisa muito, mas muito pior. Como
se fosse um morto que agora na direção dela
caminha.

Hei, que música é essa, ai, é dolorosa demais – há


um mundo de horrores em cada acorde. Eu sei que
não fui o que você esperava num tempo em que
esperava tanto e tanto precisava. Tão gostoso?
Hadrien nada tem em comum com as crianças senão a
maldade que nasce em seus corações. Sem vara de
correção, porque o pai morreu e a doença da mãe ia
adiantada. Um rosto fugaz. Poderá sobreviver a isso?
Não quer, na verdade. Sua sentença. O caminho de
seus pecados. A perversidade é o castigo do perverso
e longe ele está do prêmio dos virtuosos.

As sombras da noite passam sem pressa;


mulheres à janela do trem para o inferno; troves,
uivos, a inconfundível palidez da raça degenerada.
Esse rosto verdoengo tem a ver com as insônias,
depressão ou com outra mulher? Quando Hadrien
chegou perto dela, tremia toda sobre um majestoso
calafrio e quase via o que, acorrentado pelo medo, ele
via. Ele não tem medo de morrer. Seria banal, um
castigo desejado, não mais que enfadonho. Diante da
esposa, vê a irmã. Quem dera pudessem constatar
que foi mesmo apenas outro sonho, um novo
pesadelo e apenas isso. Tudo bem. Sei da minha
maldade. Diga. Agora. O que posso fazer?

Deve haver alguma coisa, uma salvação, e ele a


reconheceria de imediato. Seu contrito coração está
suplicando, quer apenas saber o sortilégio com que
afastará as dores que agora tomam um e outro lado
da cabeça. Ele a ama, Gisele. Jura que sim. Nas trevas
que envolveram ele e tudo ao redor mil vezes repetirá
que a ama. Que não o fizesse sofrer assim, não se
nivele comigo, você sempre foi um anjo. Então
Hadrien e a esposa pensaram ao mesmo tempo que
ele deveria ir procura-la e pedir-lhe perdão e talvez aí
encontrasse a paz. Procurarão na internet o
endereço, o telefone, o e-mail. Irá pessoalmente se
necessário. Embora não tivesse certeza de ser capaz
de olhar nos olhos da irmã outra vez.

Vanda percebe que ele está nu. Pensando bem,


nem tão acabado assim. Passaram momentos
absolutamente inesquecíveis. Então ela tem certeza
de que ele precisa mesmo entrar em contato com a
irmã e acabar com isso. Afinal acontece nas melhores
famílias, quem não tem um esqueleto no armário?
Amor, por favor, volte pra mim. Ele quer. Palavra de
honra. Então pede que ela o ajude. A quem está
pedindo, já não sabe. Esse não é o olhar de Vanda.
Ok. Está bem. Você pode ler meus pensamentos.
Vanda meneia a cabeça e pensa que não, ele está
louco, já não há nada a fazer.

33

Um homem renascido. No rosto perplexo de


infância, a customização das últimas luzes do dia.
Ahn? Customização, repete ele para a enfermeira, ou
seja, forma como algo passa a existir segundo uma
determinada personalidade. Quando ela se afasta,
pergunta a si mesmo se sua idéia não é loucura e não,
é antes a afirmação do bom-senso e da vida, conclui
enquanto seus passos soam pelo silêncio do hospital.
O corredor vazio termina no balcão de atendimento. A
mocinha, com os olhos marejados, sorri para ele.
Adeus, David, não deixe de nos visitar de vez em
quando. Pensa que ele bem poderia lhe pedir o
endereço e ela passaria a criar essa expectativa, de
que um dia ele apareça lá em casa. Seu rosto pálido
lembra o de Gisele, mas – imagina David – a partir de
hoje todos os rostos de mulher, de algum modo,
lembrarão o rosto dela.

O mundo... A neblina submerge as


construções. (continua)

Potrebbero piacerti anche