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Palestina,

até quando vamos


permitir isso?
Reforma agrária no governo Lula
Direitos sexuais e reprodutivos
Entrevistas
Manoel da Conceição

DEMOCRACIA VIVA 42
MAIO 2009
e d i t o r i a l
Dulce Chaves Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV

M ais uma vez, o Ibase, por meio da sua revista Demo-


cracia Viva, traz para o debate temas e problemas atuais e polêmicos. Por exemplo: no que diz
respeito ao contexto internacional, o artigo central é sobre o povo palestino, cuja luta árdua pelo
reconhecimento da sua presença no Oriente Médio vem se arrastando, de forma dramática, por
mais de seis décadas. Ainda sobre o contexto internacional, notas sobre uma revisita à Cuba e
à Colômbia, 40 anos depois, apontam dificuldades vividas atualmente por aquelas sociedades.

Um balanço sobre a nona edição do Fórum Social Mundial realizado em Belém,


em janeiro último, não poderia deixar de estar presente aqui. O evento, que contou com uma
significativa presença de indígenas, ribeirinhos, extrativistas e quilombolas, demonstrou enorme
vitalidade política. Ao questionar o nosso modelo de civilização, os(as) participantes do Fórum
se indagavam sobre o sentido do desenvolvimento. A pergunta recorrente era: para quê e para
quem serve o progresso?

Nesta edição, também está contemplado o antigo, mas ainda atual e fundamental,
debate sobre a reforma agrária. São duas as visões trazidas pela revista: a de um líder do MST
e a de um quadro governamental. Outra polêmica é sobre o aborto. O assunto é tratado por duas
mulheres. Ambas são religiosas. Uma é metodista e a outra é católica, mas suas posições são
radicalmente diferenciadas. José Padilha, diretor do filme Garapa, recém-lançado no circuito
nacional, traz uma discussão instigante sobre a fome e sua representação na arte.

Finalmente, nas duas entrevistas exemplares de histórias de vida, temos o campo


e a cidade. De um lado Manoel da Conceição, uma histórica liderança do meio rural, que há
mais de 40 anos ousou enfrentar as oligarquias do Nordeste brasileiro. Por isso, pagou um preço
muito alto. Mas não se deixou abater e até hoje continua na mesma batalha. O outro entrevistado
é um lutador da cidade. Nascido e criado no Morro Santa Marta, na zona sul do Rio de Janeiro,
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
20040-916 Rio de Janeiro/RJ
3 ARTIGO
Tel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402
Obstáculos e possibilidades <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
da reforma agrária
Osvaldo Russo Conselho Curador
Sebastião Soares
João Guerra
8 NACIONAL Carlos Alberto Afonso
MST: 25 anos de teimosia Nádia Rebouças
Sonia Carvalho
João Pedro Stedile
Direção Executiva
14 ENTREVISTA Cândido Grzybowski
Dulce Pandolfi
Manoel da Conceição Francisco Menezes

entrevista
22 INTERNACIONAL Coordenadores(as)
Manoel da Conceição Ciro Torres
Palestina, democracia a serviço Fernanda Carvalho
de quem? Itamar Silva
Jamal Juma João Roberto Lopes Pinto
Luzmere Demoner
Moema Miranda
28 DEBATE Renata Lins
Direitos sexuais e reprodutivos
Nancy Cardoso Pereira
Eva Aparecida Rezende de Moraes DEMO C RA C IA VIVA
ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral
36 ENTREVISTA
Diretora Responsável
Itamar Silva Dulce Pandolfi

52 ARTIGO Conselho Editorial


Alcione Araújo
Cuba e Colômbia, países parados Cândido Grzybowski
entrevista no tempo Charles Pessanha
Mario Osava Cleonice Dias
Itamar Silva
Jane Souto de Oliveira
João Roberto Lopes Pinto
56 RESENHAS Márcia Florêncio
Mario Osava
Moema Miranda
60 ARTIGO Regina Novaes
Belém 2009: o Fórum Rosana Heringer
Sérgio Leite
mais importante
José Correa Leite Edição e revisão
Ana Bittencourt
68 CRÔNICA
Subedição e revisão
Alcione Araújo Jamile Chequer

Assistente Editorial
70 CULTURA Flávia Mattar
Sobre a representação
da fome na arte Assessoria de imprensa
Rogério Jordão
José Padilha
“Garapa”, além dos retratos Produção
Para apoiar os projetos Flávia Mattar Geni Macedo
desenvolvidos pelo Estagiário
Ibase, escreva para 76 ARTIGO Diego Santos
amigos@ibase.br Território mental, o nó górdio Distribuição
ou telefone para da democracia Elaine Amaral de Mello
(21) 2178-9400. Evandro Vieira Ouriques
Projeto Gráfico e Diagramação
Doações de pessoas Mais Programação Visual
jurídicas podem ser 82 SUA OPINIÃO
abatidas do Imposto Foto de capa
Montagem sobre foto – Arquivo StoptheWall
de Renda. 84 ÚLTIMA PÁGINA (Palestinos(as) expulsos de suas casas pelo
Nani exército de Israel durante a catástrofe de Nakba,
em 1948)

Impressão
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia Stamppa Gráfica e Editora
para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política
editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso Tiragem
de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política. 5 mil exemplares

Os artigos assinados nesta publicação não traduzem, necessariamente, a posição do Ibase. democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Osvaldo Russo*

Obstáculos e

Alguns estudiosos – em nome de uma ciência supostamente desprovida

de ideologia – consideram irracionais a condução da reforma agrária e a

agenda pautada pelo movimento sindical e pelos movimentos sociais, quer

por sua “desatualização” histórica, quer por sua radicalidade e amplitude.

Entre estes, há os que chegam a falar em cooptação de pesquisadores

que prestam consultoria ao governo federal nessa área.

Essa argumentação não é justa nem verossímil. Esse tipo de ataque

parece somar-se à nova ofensiva contra o governo Lula e os movimentos

sociais que lutam pela reforma agrária, com a tentativa de sua criminali-

zação pelos setores conservadores, que procuram impor e antecipar a sua

agenda política para 2010. Há interesses, ideias e projetos em disputa e os

consensos e dissensos se fazem a cada realidade e circunstância histórica, e

não ao sabor de um pensamento único, ainda que sob inspiração científica.


Ao se focar equivocadamente o debate, perde-se a oportunidade de discutir sobre
qual reforma agrária nos entendemos ou divergimos. Ou, ainda, se é possível
e necessário ser feita alguma reforma agrária e qual. A crise do capital muda

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artigo

alguma coisa? A persistência de mobilizações, uma alternativa de outro tipo de desenvolvi-


acampamentos e conflitos no campo sinaliza mento e sociedade para o qual existe demanda
o quê? O sistema predatório do agronegócio social. Será que não podemos formar um novo
é sustentável? O desenvolvimento com desi- setor agrícola?
gualdade é aceitável? A agricultura camponesa
está fadada à economia de subsistência ou isso
Crise e novas perspectivas
está mais associado ao modelo de sociedade
imposto por uma classe ou grupo social? As No Brasil, existem 4 milhões de pequenas
políticas públicas de educação e de acesso à unidades produtoras agrícolas, entre as quais
pesquisa e à tecnologia podem alterar o modo 1 milhão nos assentamentos, que respondem
e a escala da produção camponesa? As formas pela maior parte da produção de alimentos
associativas podem cumprir uma função eco- que abastecem o mercado interno. Duas po-
nômica diferenciada e competitiva? As políticas sições antagônicas defendem a existência de
públicas são equitativas? um único ministério para cuidar da agricultura
Ao contrário das décadas de 1950 e (só que uma na ótica da agricultura familiar-
1960, quando a reforma agrária poderia ser -camponesa e outra na lógica da agricultura
uma opção para a industrialização, hoje se trata patronal-empresarial). Entretanto, enquanto
de posicioná-la frente às alternativas para o houver demanda social e realidade objetiva
desenvolvimento sustentável. A modernização que sustente a coexistência conflitiva do agro-
conservadora já ocorreu e não foi capaz de negócio e da agricultura familiar-camponesa,
superar a crise alimentar e, diante da atual crise haverá necessidade política e institucional de
financeira e econômica mundial, a redistribui- convivência de dois ministérios. Essa contradi-
ção da terra e das condições de produção e do ção só poderá ser superada pela política que
conhecimento não é uma inevitabilidade, mas altere a correlação de forças. A reforma agrária
Estes cartazes foram
produzidos no âmbito é a opção democrática e sustentável para um
da CNRA, da qual desenvolvimento com equidade social.
o Ibase foi um dos
A crise mundial do capital aponta para
organizadores.
novas perspectivas de mobilização social e
afirmação da agricultura camponesa e familiar
como estratégica ao desenvolvimento susten-
tável, na qual a reforma agrária tenha centrali-
dade, com geração de mais empregos, respeito
ao meio ambiente e produção de alimentos
saudáveis que garanta a soberania alimentar do
país. Segundo dados oficiais, o governo Lula foi
responsável por mais da metade dos assenta-
mentos realizados em toda a história brasileira
e o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf) saltou de pouco
mais de R$ 2 bilhões, na safra 2002-2003, para
R$ 13 bilhões, em 2008-2009.
É preciso também registrar que os
programas sociais, como o Bolsa Família e
o Luz para Todos, entre outros, alteraram o
panorama rural brasileiro, melhorando a qua-
lidade de vida no campo. Em relação à reforma
agrária, no entanto, há entraves que precisam
ser superados, como a atualização dos índices
de produtividade, o cumprimento integral dos
requisitos constitucionais da função social da
propriedade, a aceleração da imissão de posse,
a abolição dos juros compensatórios das inde-
nizações por interesse social e a aprovação da
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do
trabalho escravo, além da fixação do limite de
propriedade defendida pelo Fórum Nacional

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Obstáculos e possibilidades da reforma agrária

pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. do brechas para a apropriação do patrimônio


No tocante à Amazônia Legal, a região público por especuladores, quer por estar na
representa cerca de 60% do território nacional e contramão do sistema agrário de base familiar
nela vivem mais de 20 milhões de pessoas, das consagrado no ordenamento agrário brasileiro.
quais um terço na área rural. Na Região Norte, É preciso ter clareza de que a principal fonte de
mais de 70% da área total cadastrada pelo Insti- desmatamento e ocupação fundiária irregular
tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária na Amazônia se dá pela ação de madeireiros,
(Incra) referem-se aos grandes imóveis com área grileiros e fazendeiros do chamado agronegó-
superior a 15 módulos fiscais, estimando-se que cio, com a intensificação da pecuária extensiva
mais de 80% dessas áreas são improdutivas, e da plantação de soja.
portanto sujeitas à desapropriação por interesse Há contradições e limitações que preci-
social para fins de reforma agrária. Ao lado do sam ser superadas, mas não há incompatibili-
fortalecimento da agricultura familiar e do de- dade entre reforma agrária e desenvolvimento.
senvolvimento sustentável dos assentamentos, Diante da crise mundial, a hora é de dialogar
a reforma agrária não é problema, pois favorece e unir forças políticas e sociais para avançar e
a produção de alimentos saudáveis e a proteção consolidar o processo de desenvolvimento com
ao meio ambiente. distribuição da renda, da terra, do crédito e dos
Em relação ao programa de regulariza- serviços, priorizando o emprego, a educação,
ção fundiária na Amazônia Legal, que propõe a a seguridade social, a reforma agrária e a pre-
legalização de ocupantes de área pública até 15 servação do meio ambiente.
módulos fiscais (1.500 hectares), os movimen- A pesquisa realizada em 2007 pelo Ibase
tos sociais agrários e ambientais manifestam-se – Repercussões do Programa Bolsa Família na
contra essa medida, quer porque amplia o limite Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias
de áreas públicas a serem regularizadas, abrin- Beneficiadas – aponta que houve avanços nos

MAIO 2009 5
artigo

índices de segurança alimentar e nutricional Segundo a Organização das Nações Unidas


da população beneficiada com a transferência para Agricultura e Alimentação (FAO), quase
de renda efetuada pelo Bolsa Família, ainda 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo.
que permaneça um contingente de famílias Ou mudamos a matriz da produção de bens
que mantém elevados índices de insegurança agrícolas, democratizando a terra e priorizando
alimentar. Este programa social e as políticas a produção de base familiar, ou estaremos in-
de aumento real do salário mínimo e de ele- viabilizando a vida saudável no planeta. São os
vação do patamar de emprego pelo maior pobres em todo o mundo os que mais sofrem
aporte de investimentos estatais (o Programa com as crises e as desigualdades do capitalismo.
de Aceleração do Crescimento/PAC é exemplo
disso) expressam a mão distributiva do Estado
Revolução sem armas
social em contraposição à mão concentradora
e desigual do mercado. O Brasil, hoje, está mais preparado para en-
As exportações das commodities agríco- frentar novos desafios. É preciso, entretanto,
las transformaram a alimentação em mercado- dialogar mais intensamente com os movimen-
ria, gerando lucros fabulosos sem preocupação tos sociais para que estes sejam efetivamente
com a necessidade de alimentar as pessoas. parceiros ativos nesse diálogo nacional. O Brasil
não pode esperar, porque a fome e a pobreza
têm pressa, como costumava dizer o saudoso
Betinho. A crise do capital financeiro internacio-
nal é a crise do seu centro acumulativo que já
está adotando medidas para reciclar o cassino
em que transformou a economia mundial,
concentrando ainda mais o poder, a renda e
a riqueza, destruindo a natureza e excluindo
os pobres.
Se quisermos garantir a soberania ali-
mentar do nosso povo, temos que potencializar
as bases sociais e econômicas que construímos
recentemente, ampliar a reforma agrária e fa-
zer uma revolução sem armas no campo e na
educação brasileira, com investimentos estatais
em ciência, tecnologia, assistência técnica, qua-
lificação profissional e preservação ambiental,
criando e consolidando as bases sustentáveis
do nosso desenvolvimento e da soberania do
país. Apesar do volume de recursos aplicados no
setor, os movimentos sociais reclamam da desa-
celeração da reforma agrária, com a redução da
área desapropriada. É preciso revigorar o leme
da democratização da terra, da qualificação dos
assentamentos e do gerenciamento dos nossos
recursos fundiários.
O governo Lula tem propiciado avanço
notável nas políticas sociais, reduzindo a po-
breza e as desigualdades. O Programa Bolsa
Família, a nova política de assistência social
introduzida pelo Sistema Único de Assistência
Social (Suas), o aumento real do salário mínimo,
a geração de mais empregos com carteira as-
sinada, o apoio à agricultura familiar por meio
do Pronaf, o Luz para Todos, a construção de
cisternas no semi-árido, a criação do Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação (Fundeb) etc., têm merecido aceitação

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Obstáculos e possibilidades da reforma agrária

da maioria da população brasileira e reconhe- de reforma agrária. * Osvaldo Russo


cimento dos organismos internacionais, dos A reforma agrária precisa, sobretudo, Ex-presidente do
movimentos sociais e dos governos municipais dialogar com os movimentos sociais que Instituto Nacional
e estaduais, que são tratados de forma repu- organizam os demandantes prioritários – os de Colonização e
blicana pelo governo federal. trabalhadores rurais sem terra. A organização Reforma Agrária (Incra),
Os programas sociais, no entanto, coletiva é necessária para alcançar escala eco- estatístico, diretor da

não substituem os de geração de trabalho e nômica e empoderamento social que, ao lado Associação Brasileira
de Reforma Agrária
renda, que se constituem em portas de saída de infraestrutura, tecnologias apropriadas de
(Abra) e coordenador
daqueles programas. Na área rural, este ob- produção, crédito, assistência técnica, educação
do Núcleo Agrário
jetivo é cumprido pela reforma agrária e pelo e formação profissional, possibilitam a viabili-
Nacional do Partido dos
desenvolvimento da agricultura de base familiar. dade econômica dos projetos de assentamento Trabalhadores (PT)
Nesse sentido, a prioridade ao agronegócio e a promoção social das famílias assentadas.
deveria ser revista, pelo menos como está posta Hoje, sem isso, torna-se impossível garantir o
atualmente, pois tem comprometido o meio desenvolvimento sustentável dos assentamentos
ambiente e a soberania alimentar da popula- da reforma agrária no Brasil.
ção brasileira, além de não gerar os empregos A partir do aprofundamento dessa
necessários ao país. O modo de produção do discussão na sociedade, pode-se pactuar um
chamado agronegócio mostra-se, sobretudo, programa comum – popular – atrativo a uma
insustentável, segundo estudos que revelam nova coalizão política de forças sociais no cam-
novos padrões mundiais de sustentabilidade po e nas cidades, para impulsionar a construção
econômica, social e ambiental. de um novo modelo econômico – democrático
e sustentável – e, consequentemente, de um
novo modelo agrícola e agrário para o país.
Feijão e feijoada
O objetivo estratégico a alcançar, com ampla
Em qualquer contexto, aqui e alhures, reforma mobilização popular, é a viabilização desse
agrária significa não só, mas antes de tudo, novo tipo de desenvolvimento, que produza
redistribuir a terra útil, sobretudo a privada, alimentos saudáveis, preserve a vida e reduza
desconcentrando a sua propriedade, a sua drasticamente as desigualdades e a pobreza
posse e o seu uso, que atualmente mantêm no Brasil.
46,8% da área cadastrada nas mãos de 1,6% Sem prejuízo do financiamento da pro-
dos proprietários, tornando produtivos os dução individual, há necessidade, entretanto,
133 milhões de hectares de terras ociosas, ou para viabilizar uma nova agricultura familiar
então não se faz reforma agrária. Como dizia competitiva, de criação de um programa de
o saudoso José Gomes da Silva (fundador da incentivos para a organização de associações de
Associação Brasileira de Reforma Agrária /Abra, agricultores familiares, garantindo o acesso dos
ex-presidente do Incra e “ministro” do governo camponeses e suas famílias a um sistema públi-
paralelo do Lula, em 1990): “A terra está para a co, com a participação dos movimentos sociais.
reforma agrária, assim como o feijão está para a Para a viabilização desse novo modelo agrícola,
feijoada, depois vêm os temperos”. Na reforma é preciso acelerar e qualificar a reforma agrária
agrária, igualmente, é preciso garantir terra de e o apoio à agricultura familiar para além da
boa qualidade e políticas adequadas de apoio obtenção da terra, do mero assentamento e
aos assentamentos. do acesso ao crédito. É preciso, sobretudo,
Democratizar a vida no campo, proteger romper progressivamente com o modelo atual,
o meio ambiente, gerar empregos, promover hegemonizado pelo agronegócio, e priorizar a
o ser humano e produzir alimentos saudáveis integração da agricultura camponesa a um novo
por si só justificam a importância da reforma tipo de desenvolvimento no Brasil.
agrária hoje. Nas regiões desenvolvidas do país,
entretanto, a legislação atual inviabiliza a massi-
vidade da reforma agrária, mediante a aplicação
de seu principal instrumento – a desapropriação
por interesse social com pagamento da terra em
títulos da dívida agrária. É preciso, pois, mobi-
lizar as energias da sociedade e o acúmulo do
Estado conseguido até aqui para impulsionar as
mudanças normativas que se fazem necessárias,
como fortalecer institucionalmente o programa

MAIO 2009 7
nacio
nacional
João Pedro Stedile*

MST: 25
anos de
Na primeira metade da década de 1960, a economia brasileira já demonstrava sinais do

esgotamento e da estagnação do modelo de desenvolvimento apoiado no capital industrial.

Naquele momento, o governo João Goulart e seu ministro Celso Furtado elaboraram a

que talvez tenha sido a mais avançada proposta de reforma agrária de nosso país. Para

ampliar o mercado interno e o abastecimento dos centros urbanos, a proposta limitava o

tamanho máximo da propriedade da terra e desapropriava as áreas em torno das rodovias

para garantir tanto o escoamento da produção como o acesso à energia e infraestrutura

para os camponeses. O Plano de Reforma Agrária foi anunciado por João Goulart no

comício da Central do Brasil, que foi um dos fatos desencadeadores do golpe de 1964.

O regime militar, instalado naquele ano, não apenas interrompeu a oportunidade

mais efetiva que tivemos de democratizar o acesso à terra, como também estabele-

ceu uma saída para a crise do capital industrial brasileiro, ampliando a dependência

ao capital internacional. Estabeleceu também um violento processo de mecanização,

concentração de terras e êxodo rural. Era um período de expansão das empresas


transnacionais para dominar mercado, controlar matérias-primas e explorar a mão-de-obra barata
nos países periféricos.
De 1979 a 1984, os camponeses viviam um clima de ofensiva, no espírito geral impregnado

8 Democracia Viva Nº 42
onal
na classe trabalhadora, e realizaram dezenas
de ocupações de terra em todo o país. Os
posseiros, os sem terra e os assalariados rurais
perderam o medo – e foram à luta. Não queriam
mais migrar para a cidade como bois marcham
para o matadouro (na expressão de nosso sau-
doso poeta uruguaio Zitarroza).
Federal para o combate aos sem terra. Depois,
com a vitória do neoliberalismo do governo
de Fernando Henrique Cardoso (FHC), foi o
sinal verde para os latifundiários e suas polícias
estaduais atacarem o movimento. Tivemos em
pouco tempo dois massacres: Corumbiara e
Carajás. Ao longo desses anos, centenas de
Em janeiro de 1984, havia um proces- trabalhadores rurais pagaram com sua própria
so de reascenso do movimento de massas no vida o sonho da terra livre.
Brasil. A classe trabalhadora se reorganizava Mas seguimos a luta. Brecamos o neoli-
e acumulava forças orgânicas. Os partidos beralismo elegendo o governo Lula. Tínhamos
clandestinos já estavam na rua, como o Partido esperança que a vitória eleitoral pudesse de-
Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista sencadear um novo reascenso do movimento
do Brasil (PCdoB), entre outros. Conquistamos de massas, e com isso a reforma agrária tivesse
uma anistia parcial, mas a maioria dos exilados mais força para ser implementada. No entanto,
já tinha voltado ao país. Já havia se formado o não houve reforma agrária durante o governo
Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única Lula. Ao contrário, as forças do capital interna-
dos Trabalhadores (CUT) e a Coordenação Na- cional e financeiro, por meio de suas empresas
cional da Classe Trabalhadora (Conclat). transnacionais, ampliaram seu controle sobre a
Amplos setores das igrejas cristãs am- agricultura brasileira.
pliavam seu trabalho de formiguinha, formando
consciências e núcleos de base em defesa dos
pobres, inspirados pela Teologia da Libertação.
Havia um entusiasmo em todo lugar, porque

Fotos: Arquivo MST


a ditadura estava sendo derrotada e a classe
trabalhadora brasileira, na ofensiva, lutava e
se organizava.

Origens
Fruto de tudo isso, nos reunimos em Cascavel,
em janeiro de 1984, estimulados pelo trabalho
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), lideranças
de lutas pela terra de 16 estados brasileiros. E
lá, depois de cinco dias de debates, discussões,
reflexões coletivas, fundamos o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os nossos
objetivos eram claros: organizar um movimento
de massas nacional, que pudesse conscientizar
os camponeses para lutarem por terra, por
reforma agrária (mudanças mais amplas na
agricultura) e por uma sociedade mais justa e
igualitária. Queríamos, enfim, combater a po-
breza e a desigualdade social. A causa principal
dessa situação no campo era a concentração da
propriedade da terra, apelidada de latifúndio.
Não tínhamos a menor ideia se isso
era possível. E nem quanto tempo levaríamos
na busca de nossos objetivos. Passaram-se 25
anos, muito tempo. Foram anos de muitas mo-
bilizações, lutas e de uma teimosia constante,
de sempre lutarmos e nos mobilizarmos contra
o latifúndio. Pagamos caro por essa teimosia.
Durante o governo Collor, fomos dura-
mente reprimidos, com a instalação até mesmo
de um departamento especializado na Policia Marcha Nacional do MST

MAIO 2009 9
nacional

torno de não mais de 30 grandes empresas


transnacionais, como a Bunge, Cargill, ADM,
Dreyfuss, Monsanto, Syngenta, Bayer, Basf,
Nestlé etc.
Com o fortalecimento do agronegócio,
muitos de seus porta-vozes se apressaram a
prenunciar nas colunas de jornalões burgueses
que o MST se acabaria. Lêdo engano. A hege-
monia do capital financeiro e das transnacionais
sobre a agricultura não conseguiu, felizmente,
acabar com o MST. Por um único motivo: o
agronegócio não representa solução para os
problemas dos milhões de pobres que vivem no
meio rural. E o MST é a expressão da vontade
de libertação desses pobres.
Mais recentemente, o grande capital
Primeiro congresso nacional do MST internacional se articulou para solucionar a
crise de sua matriz energética baseada no pe-
tróleo. Formou-se uma aliança diabólica entre
as empresas petroleiras, automobilísticas e as
transnacionais do agronegócio para atuarem
nos países do Hemisfério Sul, com abundância
de terra, sol e água, para propor a produção
dos agrocombustíveis – que eles chamam en-
ganadoramente de biocombustíveis, mesmo
não tendo nada de vida.
Assim, nos últimos cinco anos, milhões
de hectares antes cultivados para alimentos ou
controlados por camponeses passaram para as
mãos de grandes fazendeiros e empresas para
implantar a monocultura de cana, soja, milho,
palma africana, girassol... Tudo para produzir
etanol ou óleo vegetal. É a repetição da ma-
Passeata pela reforma agrária em 1985 nipulação da Revolução Verde. As melhores
terras, mais próximas das grandes cidades e dos
E a fome continua portos, deixaram de dar alimentos para produzir
energia para os automóveis da classe média dos
Hoje, a maior parte de nossas riquezas, produ-
Estados Unidos, da China e do Japão...
ção e distribuição de mercadorias agrícolas está
Até a queda do preço do petróleo, a
sob controle das empresas transnacionais, que
taxa média de lucro na agricultura tinha subido
se aliaram aos fazendeiros capitalistas e produ-
de patamar e puxou consigo o preço médio de
ziram o modelo de exploração do agronegócio,
todos os produtos alimentícios, uma vez que o
buscando consolidar uma matriz produtiva na
preço do etanol tem como parâmetro os preços
agricultura baseada no uso intensivo de insu-
do combustível. O preço dos alimentos repre-
mos industriais, como máquinas, fertilizantes
senta de 60% a 80% da renda dos trabalhadores
químicos e agrotóxicos, tanto no Brasil como
em países em desenvolvimento (segundo a Or-
mundialmente.
ganização das Nações Unidas para Agricultura
De fato, uma das promessas se concreti-
e Alimentação/FAO). Em 2008, a cesta básica
zou: a produtividade por hectare se multiplicou,
no Brasil aumentou, em média, mais de 20%
aumentando quatro vezes no mundo. Mas a
(segundo o Departamento Intersindical de Es-
fome não acabou! E os famintos passaram de
tatísticas e Estudos Socioeconômicos/Dieese).
80 para 950 milhões de pessoas. Agora, cerca
Ou seja, a população em geral consumidora
de 70 países dependem das importações para
de alimentos teve de ajudar a pagar a taxa
alimentar seu povo. Na verdade, esse modelo
média de lucro que os capitalistas e fazendeiros
serviu apenas para concentrar o controle da
impuseram em função da produção do etanol.
produção e do comércio agrícola mundial em
Em nosso país, o modelo agroexporta-

10 Democracia Viva Nº 42
MST: 25 anos de teimosia

dor resultou também no bloqueio da reforma Criminalização e novas


agrária, agora sob responsabilidade do governo formas de luta
Lula. A democratização do acesso à terra es-
O avanço das empresas transnacionais na
barra na transformação dos recursos naturais
agricultura está combinado com uma ofensiva
em reserva de expansão do agronegócio. O
articulada por parte do Poder Judiciário, da
governo dá prioridade à produção de monocul-
imprensa empresarial e do Estado para reprimir
toras destinadas à exportação, sob controle das
os movimentos sociais. Um exemplo são os
empresas transnacionais e do capital financeiro,
ataques do presidente do Supremo Tribunal
para sustentar a política econômica neoliberal
Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes, episó-
herdada de FHC.
dios do Rio Grande do Sul, quando o Ministério
A política de crédito agrícola do gover-
Público estadual e a governadora Yeda Crusius
no não deixa dúvidas. O Banco Nacional de
determinaram oficialmente a “eliminação” do
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
MST e o fechamento das escolas itinerantes.
concedeu em empréstimos, apenas no ano
O resultado desse quadro são os meno-
passado, mais de R$17,2 bilhões para empresas
res índices de desapropriação e assentamentos
do agronegócio. O Banco do Brasil concedeu
da história do Brasil. Em 2008, das 18.630
mais de R$ 10 bilhões para apenas 20 empresas
famílias oficialmente assentadas pelo governo
do agronegócio. Enquanto isso, o Programa
federal, apenas 2.366 são novas famílias, en-
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Fa-
quanto o restante são ainda regularizações de
miliar (Pronaf) tem previsão para a liberação de
projetos de assentamentos dos anos anteriores.
apenas R$ 7, 2 bilhões para a safra 2008/2009,
É uma vergonha para aqueles que tinham um
alcançando 1,2 milhão de famílias de pequenos
compromisso histórico com a reforma agrária.
agricultores.
A humanidade precisa encarar os ali-
Nesse contexto, não há espaço para
mentos como um direito de todo ser humano e
os camponeses, para a reforma agrária e para
deixar de tratá-los como mercadorias, para dar
um modelo agrícola baseado na produção em
lucro às empresas transnacionais. Precisamos de
pequenas e médias propriedades, voltadas para
políticas para estimular, em todos os países, o
a produção de alimentos para o povo brasileiro.
fortalecimento da produção camponesa, única

Ocupação de terra em 1987

MAIO 2009 11
nacional

* João Pedro forma de fixar as pessoas no interior e produzir lotes para os pobres camponeses.
Stedile alimentos sadios sem agrotóxicos. Agora, as mudanças no campo para
Integrante da No nosso país, estamos diante da opor- combater a pobreza, a desigualdade e a con-
coordenação tunidade de realizar uma reforma agrária de centração de riquezas dependem de mudança
nacional do MST novo tipo, que tenha caráter popular em sua não só da propriedade da terra, mas também
natureza e interesses. Temos que implementar do modelo de produção. Se os inimigos são
um novo modelo agrícola, baseado em uma também as empresas internacionalizadas, que
matriz produtiva agroecológica e destinada dominam os mercados mundiais, significa
à soberania alimentar, capaz não apenas de também que os camponeses dependerão cada
democratizar o acesso à terra e à produção, vez mais das alianças com os trabalhadores da
mas de impedir o processo que marcha para o cidade para poder avançar nas suas conquistas.
colapso ambiental e alimentar. Felizmente, o MST adquiriu experiência nestes
Vamos dar seguimento a nossa luta pela 25 anos: sabedoria necessária para desenvolver
reforma agrária e contra o atual modelo agrí- novos métodos e novas formas de luta de massa
cola, que impede a consolidação da pequena que possam resolver os problemas do povo.
e média agricultura, transforma em mercadoria
nossos recursos naturais e trata a agricultura e
os alimentos como jogos de cassino. Podemos
pregar para governantes surdos, mas apren-
demos que sem mudanças radicais, na atual
conjuntura, as contradições e os problemas so-
ciais só aumentarão e, algum dia, vão explodir.
No entanto, a luta pela reforma agrária,
que antes se baseava apenas na ocupação de
terras do latifúndio, agora ficou mais complexa.
Temos que lutar contra o capital, contra a domi-
nação das empresas transnacionais. A reforma
agrária deixou de ser aquela medida clássica:
desapropriar grandes latifúndios e distribuir

Douglas Mansur / Arquivo MST

12 Democracia Viva Nº 42
MAIO 2009 13
ENTRE Entrevista

VISTA
Manoel da
Conceição
Ele é uma dessas figuras com quem desejamos passar a tarde
toda proseando. Cheio de causos e bom humor, transmite a
imagem de um homem tranquilo, daqueles que ficam sentados
na frente da casa vendo a vida passar. Lêdo engano. Mané,
como gosta de ser chamado, é cabra forte. Muito politizado,
tem sua vida perpassada
por lutas fundamentais, como pela
reforma agrária e pelos direitos
dos trabalhadores. Foi perseguido
político durante a ditadura, fundou
cooperativas, construiu escolas,
participou da criação da Central
Única dos Trabalhadores (CUT).
Sua maior convicção é a
necessidade de capacitação dos
trabalhadores, algo pelo qual
arriscou sua vida mais de uma
vez. “Sem o autoempoderamento
coletivo dos trabalhadores
do campo e da cidade não
haverá grandes mudanças
neste país. A mudança só
vai acontecer quando a
massa de trabalhadores e
trabalhadoras entender
que o enfrentamento
deve ser coletivo
e não individual.”

14 Democracia Viva Nº 42
Democracia Viva (DV) – Onde você latifundiários como meus inimigos, mas, agora,
nasceu e como foi sua infância eles é que tinham um inimigo para o resto da
e juventude? vida, e até hoje estou aqui.
Manoel da Conceição – Eu nasci no DV – E aí, você começou
Maranhão, no município de Coroatá, próximo a sua luta...
ao rio Itapecuru. Meus pais eram uma mistura Mané – Sim, aí começou a minha trajetória.
de gente. A descendência da minha mãe é Desde a época de Coroatá até 1962, eu era
portuguesa. O meu avô por parte de mãe é de apenas um revoltado, quase um “Lampião”,
origem indígena e meu pai era descendente de ninguém podia falar de fazendeiro, dono de
escravos, minha bisavó era escrava. Meu sangue terras, que eu tinha ódio. Mas eu comecei a
está todo misturado: índios, negros e portugue- participar de um curso de formação do MEB
ses. Toda minha família era de lavradores. Eu [Movimento de Educação de Base ] sobre sin-
tinha seis irmãos e o pedaço de terra onde eu dicalismo, cooperativismo e política. O curso
morava foi herdado dos meus avós e ficava no era da igreja e durou 13 dias, em Santa Inês.
meio da terra do Luís Soares, patrão do meu pai. Quando o curso acabou, saí com a missão
Meus pais consideravam que ele era um bom de fazer um trabalho nas comunidades. Como
homem, pois, todo ano, ele liberava a venda 99% da população era analfabeta, a primeira
fiado para ser paga na colheita. coisa que fiz foi incentivar a criação de escolas
DV – É nesse lugar de origem que nas comunidades. Criamos 28. Quem sabia
começa a sua luta pela terra? ler, passou a ser professor e nós recolhíamos
Mané – Sim, um dia, o Luís Soares chegou dinheiro na comunidade para gratificá-los. Pela
na minha casa perguntando se meu pai tinha os manhã, eles davam aulas às crianças e, durante
documentos da terra. Ele queria fazer um trato: a noite, aos adultos. Depois, a escola ganhou o
registrar a terra como se fosse dele, prometendo nome de Escola João-de-barro. E foi essa escola
a moradia da nossa família para sempre. Meu que nos ajudou a entender de sindicalismo por-
pai aceitou o trato. Isso foi em 1952. Só que, que até o significado de sindicato aprendemos
em 1955, o patrão morreu e a família dele fazendo. Em 18 de agosto de 1963, fundamos
quis a terra. Invadiram a terra e nos colocaram o primeiro sindicato de trabalhadores rurais
para fora. Eu estava na casa dos 20 anos e, do Maranhão, o Sindicato de Trabalhadores
nessa época, me rebelei, cheguei até a brigar, Autônomos, em Pindaré-Mirim.
mas fomos expulsos. Fui parar em Mearim, DV – Como você se envolveu
município de Bacabal, em terra de posseiros. com o movimento de resistência
Nesse mesmo lugar, dois anos depois, apareceu à ditadura?
um homem que disse que havia comprado as Mané – Eu nunca me envolvi com eles, eles
terras, o Manacé Castro, filho do delegado de é que se envolveram comigo. Quando baixou a
polícia. Tinha mais de 20 famílias nesse lugar. ditadura, nosso sindicato estava em uma briga
DV – Vocês aceitaram? danada por causa de terras e do gado que
Mané – Não concordamos, nos rebelamos, comia a nossa produção. Tentamos solucionar,
mas não houve briga. Falei com as autoridades procuramos até a Secretaria de Segurança
e me disseram que tínhamos de estar organi- Pública, mas nada foi resolvido. Fizemos uma
zados. Falaram que a gente tinha de criar uma assembleia, em janeiro de 1964, e decidimos
associação. Na nossa primeira reunião para criar que o gado que comesse nossa produção, co-
a associação rural de agricultores, o Manacé mia bala. Se o dono viesse negociar o prejuízo,
chegou em um caminhão com uns jagunços e fazíamos acordo. Se o dono viesse com brabeza,
disse: ‘Não corre ninguém, senão morre’. Eles pegava bala também.
entraram na casa e mataram três rapazes a Após o golpe, em abril de 1964, o nosso
facadas. Os rapazes eram todos casados e com sindicato foi ocupado militarmente e nos dis-
filhos. Uma velhinha de 65 anos foi esfaqueada seram que se fizéssemos reunião com mais de
nas costas e ficou rodando no chão; uma crian- cinco pessoas, iríamos presos por subversão. Eu
ça, que gritava a morte de seu pai, foi jogada fiquei refugiado até julho daquele ano, com o
contra a parede, o crânio rachou e os miolos ca- apoio da Igreja Católica. O gado estava acaban-
íram na sala. Eu levei um tiro na perna, mas me do e as pessoas estavam com raiva, revoltadas.
livrei. Caí no mangueiral e eles não conseguiram As pessoas, também de outras comunidades,
me achar. Nessa época, eu era evangélico, da iam para a minha casa, na calada da noite,
Assembleia de Deus, e me ajoelhei no meio do querendo saber o que era golpe, o que estava
povo dizendo que, até aquele dia, eu tinha os acontecendo. E eu começava a explicar o que

MAIO 2009 15
entrevista

acontecia no país. A existência dessas conversas um. Fui para um lugar chamado Carú, que fica
correu como fumaça até chegar à delegacia de lá para as matas de Pindaré-Mirim. Lá, comecei
Pindaré-Mirim. Tentaram me prender, mas tive a juntar uns companheiros que estavam revolta-
a sorte de, nesse dia, ter 300 pessoas sentadas dos. Durante um ano, tudo o que fiz foi juntar
na minha casa que impediram isso de acon- dinheiro para comprar arma de caça e fazer
tecer. Diziam: ‘Mané, preso? Daqui não vai, um barco gigante. Ao final disso, convoquei
não’. Foi uma confusão, mas a polícia acabou a comunidade para voltar a Pindaré-Mirim e
indo embora. pegar o delegado de surpresa, prender, amarrar,
Nessa reunião, tinha muitos comerciantes raspar a cabeça de todo mundo da delegacia
que começaram a ficar no meu pé. Diziam: e, no outro dia, soltá-los no meio da rua para
‘Rapaz, esses homens vieram aqui te prender, pagar a humilhação que me fizeram passar.
não deixaram isso acontecer, você não se en- DV – Foi aí que começou sua
tregou. Isso não vai dar certo daqui pra frente’. relação com a Ação Popular (AP)?
Eles queriam que eu fosse na polícia explicar Mané – Sim, antes dessa ação contra o
os meus motivos. Fui conversar sobre isso com delegado, chega em minha casa o companhei-
os meus companheiros que foram contra essa ro de sindicato Antônio Lisboa Brito, dizendo
ideia. O pessoal do campo não queria que que havia alguém do MEB – que também fazia
eu fosse, mas fui. Peguei um barquinho até parte da AP, da qual Betinho era integrante
Pindaré-Mirim, saí de madrugada e cheguei – querendo conversar e retomar a luta. Foi
nove da manhã na delegacia de polícia, e disse: quando voltei para Pindaré-Mirim sozinho,
‘Bom dia, sargento!’. Ele me perguntou quem sem família, sem nada. Lá encontrei Rui Frazão,
eu era e eu disse que queria saber o motivo da que não era do MEB. Eu contei para ele o que
minha prisão. Ao tentar me explicar, me deram estava pensando fazer. Ele disse: ‘Rapaz, não
voz de prisão. faz isso, é muito arriscado. O governo de São
Fiquei 30 dias na cadeia. Toda semana, Luís [Maranhão] vai mandar prender você de
eles me liberavam um dia e, quando estava qualquer jeito’. Conversa vai, conversa vem,
quase saindo daquela cidade, me prendiam eu, que sempre gostei de acatar a decisão do
novamente, me chicoteavam alegando que eu coletivo, optei por não fazer. Foi aí o começo
estava fugindo. A raiva, que já estava passando, da minha militância política. Até então, minha
voltou. A partir dessa ação da polícia, sabe o primeira militância foi nervosa, a segunda foi
que eu imaginei? Não sou cangaceiro e nunca a do MEB e a terceira etapa foi essa do rolo de
fui, mas vou passar pelo menos um dia sendo gado. Na AP, como militante, passamos a criar

16 Democracia Viva Nº 42
Manoel da Conceição

grupos de produção, organização política. Fui uma longa conversa, Mao Tse Tung continuou:
para São Paulo e trabalhei criando comissões ‘Mané, só faltam três coisas que preciso falar.
de fábrica e, de algumas, surgiu a CUT. Criei Se você achar por bem, leve para seu país’. Ele
tanto comissões de campo nas comunidades me disse que tudo que eu tivesse aprendido
como essas comissões de fábrica nas cidades, na China sobre a revolução chinesa deveria ser
que serviam de oposição sindical à ditadura. enterrado lá mesmo. ‘Cava um buraco e enterra
Fazia isso na clandestinidade. Cheguei a ser do tudo o que você aprendeu do que foi feito na
comitê central e da executiva nacional da AP. China, você faz isso?’. Aí, eu respondi, ‘Mas
DV – Como foi a experiência eu vim aqui para aprender’. Ele disse que, para
de ir à China? aprender melhor, era preciso deixar na caixola,
Mané – Fui para a China em outubro de não levar para o Brasil, essa seria a primeira lei
1969 e voltei em julho de 1970. Eu aprendi do materialismo dialético. Segundo, chegando
muito. Fui em uma delegação de 12 pessoas de volta ao Brasil, era preciso estudar a realidade
e eu não era dirigente. Fomos para uma esco- do país e fazer um trabalho profundo. A terceira
la fazer curso político e de guerrilha. Lá, foi era que, baseado nessa realidade, eu precisaria
discussão que não tinha fim. A maioria dos definir quem eram mesmo os inimigos a serem
companheiros entendia que a revolução chi- enfrentados. A disputa era baseada em saber
nesa era o nosso modelo de fazer revolução. como tirar do inimigo e trazer aos aliados. Ele
Foi nisso que começou a minha divergência me ensinou também a nunca ser o primeiro a
com a AP. Discordava que a revolução chinesa declarar ruptura política, econômica ou ideo-
fosse um modelo para ser aplicado no Brasil. lógica. E não é isso o que está sendo feito aqui
Essa divergência amigável, fraterna, chegou ao no Brasil, precisamos aprender mais sobre isso.
Mao Tse Tung. Quando fui receber uma perna Esses são pontos que guardei até hoje da minha
mecânica no hospital chinês, recebi um recado conversa com ele.
pra eu ir a um lugar com uma pessoa. Era para DV – Onde você mora hoje?
encontrar com o Mao Tsé Tung! Na conversa, Mané – Eu moro em João Lisboa [a 650
ele perguntou como estava o curso. Eu falei quilômetros da capital, São Luís], onde temos
que estava uma beleza! Mas ele responde: uma escola de formação e capacitação dos
‘Não está ótimo, está acontecendo algum trabalhadores. Minha casa fica ao lado dessa
mal-entendido, não está? Principalmente com escola. Eu vivo com minha segunda mulher,
você’. A AP tinha uma crítica à China sobre o Denise. Tive três filhas e um filho. Mariana
programa da Rádio Pequim feito para o Brasil, nasceu na Suíça, onde fiquei três anos e meio
e isso foi colocado no papel. Só que, na hora como exilado, mora comigo, e é agrônoma. O
de assinar a crítica, o pessoal colocou o Mané Manoelzinho é professor e a Raquel é sindica-
para assinar e não o dirigente da organização. lista. A Rosinha morreu em um acidente com
Era uma crítica coletiva, mas ficou como se fosse um caminhão na estrada, em 1º de novembro
minha. Também tinha essa divergência sobre a de 2002.
revolução que contei. DV – Você já foi evangélico,
Depois de duas horas de conversa, ele e agora qual a sua religião?
falou: ‘Rapaz, eu estive no Partido Comunista Mané – Eu tenho uma crítica muito forte
sozinho, quase isolado, durante 15 anos, por aos evangélicos e aos católicos, porque falar da
causa de uma divergência mais ou menos desse morte de Jesus e que ele queria só o céu depois
tipo. Os companheiros de partido achavam que de morto é deturpar a história, levando a morte
a revolução chinesa devia seguir os mesmos de Jesus a quase nada. Nos meus estudos, ele
caminhos da União Soviética e eu era o único não morreu só porque queria o céu para os
que era contra, porque lá a revolução tinha pobres, mas porque queria uma vida digna para
acontecido da cidade para o campo, e aqui todos os seres da sociedade.
isso é impossível. A grande massa na China é Para mim, quem cria a vida é o universo.
de camponeses. Logo, a força principal dessa Na minha cabeça, não se usa este nome, Deus.
revolução deve ser do campo’. O universo, que é material e ao mesmo tempo
DV – E isso foi algo que marcou espiritual, que é capaz de criar as coisas. Quem
a sua vida... não tem espírito, não cria. Só cria aquele que
Mané – Eu passei três meses pelas bases tem um espírito no seu corpo material, do
de apoio da revolução na China. Por causa contrário, não tem criatividade.
disso, discordava de implantar o modelo deles DV – O que você imagina para
no Brasil, tinha visto as diferenças. Depois de o Brasil em termos de modelo

MAIO 2009 17
entrevista

de desenvolvimento? Que papel cresce. Precisamos substituir essa produção em


as iniciativas de economia grande escala que só serve para exportação.
solidária devem ter? Há, também, a questão do veneno e dos
Mané – Eu trabalho no Maranhão, em agrotóxicos. É preciso uma produção orgânica,
uma região de agricultura familiar, onde tem que respeite a natureza e, sobretudo, a vida
grandes produtores de soja, eucalipto, carvão, de cada ser que gera aquela produção. Não
e sei que essa produção não tem diversificação. adianta ter um pinto que, em cinco dias, vira
Isso cria muitas dificuldades de sobrevivência um galo gigante e não presta. Um boi que
porque toda produção, quando sai para o mer- antes não dava nem 500 quilos, hoje pesa mais
cado, é deles, não nossa. Produzimos, mas não de mil! Gera riquezas, mas não gera produtos
aprendemos a gerenciar o negócio, por isso, de qualidade. Essa produção excessivamente
hoje, discutimos a necessidade de pensar no comercial só tem gerado fome, desigualdade.
autoempoderamento coletivo dos trabalhado- Nossos rios não têm mais peixes, por conta da
res. Não adianta falar de economia solidária se poluição, e nossas florestas já não estão, nem
não existe um ser humano solidário. de longe, como eram antes.
A primeira coisa a se pensar é como cons- O Maranhão era um estado pobre, mas não
truímos essa organização coletiva e solidária de famintos. Uma coisa é ser pobre, e outra é
que gera uma produção coletiva e solidária, ser faminto. Com isso, aumentou a violência.
porque, se cada um produz para si, ninguém Qual é a alternativa? Ser um marginal para
vai a lugar algum. Nós precisamos ter a terra tomar de quem tem? O Bolsa Família, que de-
para produzir com quantidade e qualidade, ter via ser uma coisa boa, pelo menos em nosso
o controle da nossa produção, a industrializa- estado, não está sendo.
ção dessa produção. Precisamos, também, de DV – Por quê?
uma produção diversificada, que contemple a Mané – Porque o processo de capacitação,
especialidade de cada um. E isso uma família conscientização para que as pessoas gerem no-
sozinha não consegue fazer. vos caminhos, criem autonomia, não acontece.
Tudo isso é importante, mas o mais impor- Não existe um acompanhamento sistemático e
tante nesse processo é: como nós conseguimos o que acaba acontecendo é que quanto mais
tomar posse do conhecimento científico e tec- bolsas, mas famintos aparecem.
nológico para não ficarmos reféns daqueles que DV – O Bolsa Família deveria ter,
têm o conhecimento de transformar a produção então, uma segunda etapa que
em mercadoria cara. Precisamos conseguir asse- consistisse na implantação
gurar esses princípios ou se torna muito difícil. de escolas técnicas, cursos etc.
É nesse campo que está a nossa grande guerra. É isso isso que está faltando?
DV – Você acha que já se caminhou Mané – Não só isso, mas o entendimento
rumo a esse empoderamento de que é necessário haver uma formação mais
ou ainda há muito o que fazer? consciente e mais solidária, tanto na educação
Mané – Estamos indo muito devagar. A básica quanto nas universidades. Se a escola
maioria dos trabalhadores se encarregou, antes não assume isso, uma nova cultura não surge.
de tudo, de odiar os ladrões, mas só ter raiva Para surgir uma nova cultura, é preciso que
não adianta. É necessário ter coragem, sabedo- haja análise, estudos, a visualização do que
ria, conhecimento e, também, o que se chama acontece. Hoje não vemos nada disso na tele-
de amor ao próximo. Essa relação amorosa é visão. Como ela é um dos principais meios de
muito importante para a sociedade andar. É comunicação, é preciso que também esteja na
preciso ter muito amor com o que se faz. televisão. É preciso haver acompanhamento
DV – As iniciativas de economia dos instrumentos, e não é isso que acontece.
solidária vêm se fortalecendo na Sem isso, fica muito difícil. Enquanto eu falo
sociedade brasileira. Como você com 20, eles falam com 1 milhão, 3 milhões,
avalia esse processo em relação, como eu vou vencer? Desde 1980, eu estou
por exemplo, há dez anos? no Maranhão junto com o movimento, para
Mané – Está muito devagar, mas está acon- conseguir terra para trabalhar. Nos mobilizamos
tecendo. Porém, acredito que, para andar mais e fizemos centenas de acampamentos gigan-
rapidamente, a economia solidária necessita de tes, com até 15 mil famílias. Conseguimos até
um investimento muito grande na questão do que Fernando Henrique Cardoso começou a
conhecimento científico e tecnológico. Se isso governar... e como os trabalhadores não têm
não acontece, o processo acontece, mas não essa cultura coletiva de controle da produção,

18 Democracia Viva Nº 42
Manoel da Conceição

de industrializar e colocar no mercado, ficaram com um pouco mais de respeito?


pobres, desgraçados! Mané – Dizer que não tem, não é verdade.
Nunca conseguimos colocar a importância Eu acredito que o governo federal que temos
do corporativismo, da vida coletiva. Mas cen- hoje, o governo Lula, dos que eu tenho conheci-
tenas, milhares de trabalhadores acham melhor mento, é o governo mais próximo da sociedade.
vender a terra e montar um boteco para vender Porém, falta muita coisa para darmos um salto
besteira. Vendem a terra depois de tanta luta, da quantidade para a qualidade.
terra que custou até vidas. Passa um tempo, DV – Você gostaria de ressaltar
vendem e querem de novo. Não melhorou a algum aspecto no qual o governo
vida, inventam mentiras, acham que vão ganhar Lula deveria estar investindo,
dinheiro com cachaça. Essa é a cultura que e não está?
está na cabeça do pessoal. Quem não rouba Mané – Aí temos umas questões graves.
e não herda, segundo meus avós diziam, fica Quem determina a cultura, e até a política,
na merda. Essa é a cultura que predomina na de um modo geral, é quem tem o controle
sociedade. hegemônico da riqueza principal do país. Para
DV – Então a educação é o trazer investimentos com mais força, com mais
principal elemento que falta? garra, teremos de enfrentar os ricões que estão
Mané – Não vai haver mudanças significa- por aí, no Brasil e no mundo. Esse é o credo de
tivas com qualidade e quantidade se nós, e o um povo. Aí, se esse povo não coloca isso como
governo, não investirmos na escola. Temos os alvo de ataque, fica difícil de resolver. Isso pode
meios de comunicação de massa que o povo acontecer desde que se trace um caminho pro-
escuta e assiste a toda hora e nos quais só se longado e se busque sempre investir na organi-
fala besteira o tempo todo. Só se fala de roubo, zação dos trabalhadores coletivos e intensificar
sacanagens. Veja o exemplo das novelas, todo a questão cultural, acompanhando o plano de
mundo quer ver novelas, mas existe algo de produção, industrialização e distribuição.
educativo nelas? Nós podemos vencer, desde O governo Lula investiu, mas foi pouco.
que o governo federal e os governos estaduais No Maranhão, por exemplo, tem uma família
e municipais se preocupem com essa questão chamada Sarney que, durante a ditadura, esteve
muito mais do que estão preocupados hoje. dentro. Esse pessoal é muito rico. No Maranhão,
DV – Você acredita que nenhum o povo é pobre. Menos eles. É uma oligarquia
governo teria destaque nesse poderosa. Nós [o PT, partido do qual Mané é
sentido, focado essa questão um dos fundadores] disputamos três vezes o

MAIO 2009 19
entrevista

governo federal, ganhamos na quarta, e o José ele chegou lá sozinho. Não há uma discussão
Sarney estava dentro, apoiando, lutando, defen- coletiva para decidir quem tem capacidade para
dendo. Ele é o nosso maior intermediário entre auxiliar, os companheiros não são educados a
o governo federal e o estado da oligarquia Sar- entender que o mandato é dele para o povo.
ney. Eles têm apoio, poder. Nós, trabalhadores, Existe um coletivo por trás da pessoa eleita.
de todas as cores, amarelo, branco, vermelho, DV – Essa mudança passa por
negro, como queiram chamar, perdemos no uma reforma política no Brasil?
Maranhão nosso alvo de ataque. O que seria uma reforma eficaz?
DV – Você já se candidatou Mané – Não sei se precisa de uma reforma.
alguma vez? Porque a reforma política imposta não vai levar
Mané – Fui candidato três vezes no Brasil a lugar nenhum. As pessoas têm de entender
e nunca reivindiquei ser candidato a nada. que, do jeito que está, é impossível continuar.
Acho que foi por isso que não ganhei. Mas Por isso, muitas revoluções feitas no mundo
toda vez que tínhamos uma candidatura que todo não deram certo. O que era visto como
não era para ganhar, o pessoal me indicava. principal instrumento de construção de uma
Assim, fui candidato ao governo, a senador e nação, a ditadura, não era nada construtiva.
a deputado federal. Eu entendo que o poder As pessoas precisam reagir. Se a consciência
de alguém que chega lá sozinho não pode ser for transformada em cultura, em prática de
o mesmo de alguém que chega com o apoio trabalho e de vida, é possível melhorar. Mas
de todo mundo, como o Lula. Mas parece que para isso acontecer, tem de haver um grande
investimento. Volto a falar, o governo precisa
divulgar as coisas públicas, tornar o governo
realmente público, aberto ao coletivo.
DV – Você aponta a necessidade
de rede coletiva, atuação em
conjunto. O governo Lula,
desde que começou, busca uma
aproximação com os movimentos
sociais, pelo menos na teoria. Quais
são os pontos negativos
ou positivos dessa aproximação?
Mané – Não vejo pontos negativos. Até
hoje, o melhor governo que já vi no Brasil é o
do Lula. Digo sem medo de errar. Mas há limites
para dizer que vai ajudar na mudança. Todos
eles têm esses limites, ninguém quer se deparar
com esse enfrentamento mais forte.
DV – Dizem que, de alguma
forma, a sociedade civil acabou
cooptada e se enfraqueceu,
não fez a pressão necessária.
Você concorda com isso?
Mané – Concordo, assino embaixo. Nós
lutamos vários anos para criar uma central única
dos trabalhadores neste país. Hoje, nós temos
cinco ou seis. Cada uma criticando a outra. Eu
pergunto o seguinte: nós temos um estado
que está dividido em municípios, você já viu
um município com dois prefeitos, um estado
com dois governadores e um país com dois
presidentes da República ao mesmo tempo?
E nós temos três, quatro centrais de trabalha-
dores. Enfraquece-se o movimento. O inimigo
número um das nossas centrais é justamente
essa divisão. E isso se reproduz em todo o país.
Se você observar o PT, verá que a guerra está lá

20 Democracia Viva Nº 42
Manoel da Conceição

dentro. Como vai dar certo se os movimentos foi cortado. Foi nos dada a desculpa de que a Participaram desta
brigam entre si? conjuntura estava exigindo essa posição. Se não entrevista
DV – Então, você acha que parte conseguirmos andar com os nossos pés, não Ana Bittencourt
Diego Santos
dos problemas está dentro dos teremos sustentabilidade. Ela passa pela união
Flávia Mattar
próprios movimentos? consciente. Afinal de contas, qual sociedade Jamile Chequer
Mané – Nós mesmos, trabalhadores e queremos construir? Uma sociedade capitalis-
trabalhadoras, não nos libertamos daquilo ta, socialista, misturada? Como é isso? Podem Realização
que havíamos adquirido ao longo da nossa construir o que quiserem e, com o passar do Decupagem e fotos
Diego Santos
história, influência ideológica e cultural. Nós tempo, volta tudo.
Edição
estamos estruturados neste sistema capitalista. DV – Você estava falando da crise.
Jamile Chequer
As pessoas podem até pensar que estou falando O que significa para você a eleição
Produção
besteira, mas veja bem: houve um tempo em de Barack Obama como presidente
Geni Macedo
que só se falava de mensalão, não é? Mensalão dos Estados Unidos?
era algo fora de moda? Não era. Companheiros Mané – Eu vejo a situação do Barack Obama
nossos aderiram a isso. E não aconteceu nada! muito parecida com a que vivemos aqui com o
Ninguém falou nada! Precisamos de instrumen- Lula. Ele pode melhorar muitas coisas, mas uma
tos, novas práticas, uma nova vida. Precisamos transformação, como a que eu sonho há mais
admitir que alguém faça o que o sistema faz. de 50 anos, não vai acontecer a curto prazo. O
Qual a minha moral política, cultural e ideológi- grande problema é ter a paciência de construir
ca para enfrentar o que prejudica a sociedade? e andar junto. É fundamental ter esse amor
Essas coisas não são tratadas e, quando são, solidário em que o saber não é monopólio, mas
as pessoas querem mudança. Mas como? Se coletivo. Isso custa para acontecer.
nós mesmos lidamos com elas, passamos a DV – Você acredita que a reforma
mão por cima? Não dá, e é isso que dificulta agrária vai acontecer?
qualquer ação fraterna, solidária e democrática Mané – Eu acredito que saia. E tenho
de qualquer governo que queira mudar alguma certeza que é importante. Mas o que a re-
coisa, pois, na sua base, tem gente que diz que forma agrária traz de benefícios à sociedade
não faz, mas faz. Podemos chamar na teoria de presente nos centros urbanos? A terra sempre
economia solidária, mas a nossa prática é bale- foi vista como coisa de pobres. Até quem está
la, papo furado. Quando temos uma coisa no no campo quer sair de lá. Precisamos mudar
sangue, nem que morramos, vamos até o fim. essa cultura. A questão da reforma agrária
Como se muda isso sozinho? Você acha não é só terra e pobreza. As pessoas precisam
que Jesus Cristo foi morto porque ele queria entender que terra nunca foi mercadoria. O
o céu para todos após sua morte? Não. Ele sol não é, o ar não é. Se bem que, até hoje, o
queria aqui o céu para que vivêssemos bem na sol só não virou mercadoria ainda porque não
terra. Céu não é condição de quem não peca conseguiram prendê-lo. Tudo vira mercadoria
depois da morte. Aqui está o céu e o inferno. nessa sociedade do dinheiro. Essa mudança
Falta generalizar muito mais esse sentimento de cultura é necessária. O debate da reforma
de libertação e é necessário assumirmos. Mas agrária começou no governo João Goulart,
não basta culparmos alguém. O problema está quando nós começamos a criar coragem para
em como, coletivamente, nos organizamos, ocupar as terras. Foi em uma ocupação em
trabalhamos para colocar freio nessas coisas 1968, quando eu perdi minha perna, 13 de
que são terríveis. julho de 1968, ano em que completei 33 anos.
DV – Você acha que a produção do Foi quando conheci o primeiro assentamento
etanol vai prejudicar ou beneficiar do Maranhão. A revolta foi surgindo em todas
o trabalhador rural? as esferas e foram surgindo novas ocupações
Mané – Como já disse, é necessário todo que só foram reconhecidas depois da ditadura.
um trabalho de capacitação, reeducação e No dia em que tivermos uma força invencível
implantação da economia solidária. Temos para tomar posse desses instrumentos, que não
visto a crise do capitalismo no mundo inteiro estão nas nossas mãos, conseguiremos ver a
e, com certeza, os primeiros investimentos a reforma agrária acontecendo.
serem cortados são os destinados ao social,
eles são, então, colocados no etanol, no pe-
tróleo etc. Faríamos uma feira em Imperatriz,
uma feira de economia solidária, e com a crise,
sem nenhuma conversa, o apoio financeiro

MAIO 2009 21
intern
internacional
Jamal Juma*

A Palestina, suas terras, lares, hospitais, escolas e vidas humanas foram testemunha

de mais de seis décadas de destruição. Da completa destruição de 418 comunidades

palestinas, em 1948, ao último ataque violento contra Gaza, que deixou quase 25 mil

estruturas em ruínas, a infraestrutura vital palestina tem estado sob constante ataque. O

custo humano em pessoas mortas, mutiladas, traumatizadas e aprisionadas é incalculável.

A destruição e o morticínio causados pelas ondas de ataques israelenses ocorrem

desde 1947, quando Israel foi criado pela Resolução 181 da Organização das Nações

Unidas (ONU). Os poderes imperiais, que naquela época eram maioria na ONU, decidiram

ignorar a autodeterminação do povo palestino e – contra a vontade dos representantes

palestinos e árabes (e até mesmo da comunidade judaica que vivia na Palestina) – alo-

caram terras palestinas ao Estado judaico. Desde então, Israel se comporta como um

“baluarte da civilização contra a barbárie”, como foi definido por Theodor Herzl, um dos

fundadores do sionismo.
[Traduzido do inglês por Jones
de Freitas] Por mais de 60 anos, Israel desaloja o povo palestino de suas terras, destrói seus meios

22 Democracia Viva Nº 42
acional
de subsistência, mantendo-o sob ocupação
e um regime institucional de discriminação
racial. Ironicamente, Israel tem violado todas
as resoluções da ONU em relação à Palestina e
a pergunta é a seguinte: o que a comunidade
apoiou a posição israelense, condicionando
a ajuda a uma declaração de princípios do
próximo governo palestino que satisfizesse as
exigências dos Estados Unidos. A secretária
de Estado atual, Hillary Clinton, prontamente
internacional está fazendo diante da continu- assumiu as mesmas posições na conferência
ação dos crimes de guerra e das violações dos do Egito.
direitos humanos cometidos pelo Estado que Para aqueles no Sul global que tiveram
ela criou? experiência com a “ajuda” do Banco Mundial,
Fundo Monetário Internacional (FMI) e doa-
dores internacionais, não é nenhuma surpresa
Chantagens
essa chantagem financeira e institucional. O
À comunidade internacional foi atribuído um que torna singular o caso palestino é que, pela
papel e dada uma direção quando, em 1949, primeira vez, um movimento de libertação,
foi criada a Agência das Nações Unidas de sem controle efetivo sobre nenhuma parte de
Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, seu território, caiu nas garras das instituições
na sigla em inglês), para contar e apoiar finan- financeiras internacionais, sob o disfarce da
ceiramente a maior parte dos mais de 6 milhões retórica da “paz”.
de refugiados palestinos espalhados no mundo O processo de “paz” de Oslo teve início
árabe e mais além. Hoje em dia, como em uma em 1993, com a criação da Autoridade Nacional
reação reflexa, toda vez que Israel comete um Palestina (ANP), que recebeu imediatamente
crime grave contra os palestinos ou árabes, a recursos generosos do Banco Mundial. Em-
comunidade internacional convoca uma confe- bora o reconhecimento internacional da ANP
rência de doadores, avalia os danos e promete e o retorno de muitos líderes da Organização
recursos para a reconstrução. para Libertação da Palestina (OLP) à terra natal
A última conferência, realizada no Egito, parecessem um grande sucesso e um passo na
após a carnificina em Gaza, pareceu especial- direção da criação do Estado palestino, foi tam-
mente generosa, com promessas de recursos bém uma medida necessária para um controle
para a minúscula Faixa de Gaza que ultrapas- eficaz das finanças e decisões do movimento de
saram US$ 4 bilhões. No entanto, um exame libertação palestino. Serviu para transferir para
mais detido revela, na Palestina, um exemplo em os próprios palestinos muitos custos da ocupa-
miniatura da hipocrisia da política internacional. ção. Assim, com a criação da ANP, a responsa-
O Hamas, que efetivamente governa a bilidade de prover a infraestrutura, atenção à
Faixa de Gaza, não foi convidado, as promessas saúde, educação e emprego foi transferida do
de recursos foram feitas a Mahmoud Abbas e poder ocupante para os palestinos. Porém, os
Salam Fayyad. Nenhum dos dois tem sequer palestinos ainda não tinham nenhum controle
controle nominal sobre a Faixa de Gaza. Do sobre suas fronteiras (e, portanto, sobre o
compromisso de US$ 900 milhões assumido comércio mais básico), água, terras e energia.
pelos Estados Unidos, a maior parte não está Após 1993, aumentaram os confiscos
nem alocado a Gaza: US$ 200 milhões serão de terras e a construção de assentamentos
destinados para cobrir déficits da administra- israelenses. Jerusalém – a capital da Palestina
ção de Mahmoud Abbas na Cisjordânia e US$ e seu principal centro cultural e econômico –
400 milhões para projetos do Banco Mundial ficou cada vez mais isolada. A Faixa de Gaza
(muitos deles beneficiam Israel). Embora US$ foi cercada e o movimento de palestinos entre
300 milhões estejam destinados a Gaza, seu a Cisjordânia e Gaza ficou mais difícil. O muro
principal objetivo é solapar o Hamas e estimular do apartheid, concebido pela primeira vez em
as lutas internas na Faixa de Gaza. 1996, começou a ser erigido em 2002, e ago-
Essa ajuda pode nunca chegar ao seu ra isola completamente áreas residenciais da
destino, pois Israel exigiu listas detalhadas Cisjordânia, terras agrícolas e recursos hídricos,
de quaisquer materiais ou alimentos a serem além de separar cada área das outras. O muro,
importados para ajuda humanitária e recons- os assentamentos e as zonas militares impedem
trução, e está determinado a manter um estrito de forma eficaz o acesso de quase 50% dos
controle dessa ajuda, garantindo que sirva palestinos à Cisjordânia, reduzindo os distritos a
a seus próprios interesses. Em uma de suas minúsculos guetos. Muitas pessoas são forçadas
últimas declarações, a ex-secretária de Estado a abandonar suas terras.
do governo estadunidesnse, Condoleezza Rice, Com o cerco, as condições em Gaza

MAIO 2009 23
internacional

são terríveis, com grandes áreas sem eletri- governança, desenvolvimento econômico, de-
cidade, saneamento e grande parte de sua senvolvimento social e assistência humanitária e
infraestrutura vital – mesmo se comparadas infraestrutura. Cada um dos setores estratégicos
com a situação nos bantustões1 da Cisjordânia. tem seu próprio grupo de trabalho, copresidido
Nessas condições, a atividade econômica, sem por um ministério palestino e uma instituição
falar no desenvolvimento, é quase impossível, internacional. De acordo com a ANP, os minis-
e os palestinos mergulham cada vez mais na térios “estão aprendendo fazendo o trabalho”
pobreza. Em Gaza, mais de 80% da população com seus copresidentes: o Banco Mundial, a
vive abaixo da linha de pobreza. Até o momen- Comissão Europeia, o Escritório do Coordenador
to, as instituições financeiras internacionais e Especial da ONU para o Processo de Paz no
a miríade de agências de ajuda internacionais Oriente Médio e a Agência dos Estados Unidos
juntaram-se para ajudar a ANP a cuidar das ne- para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na
cessidades do povo nas áreas ocupadas, como sigla em inglês). Esses grupos são responsáveis
agente da ocupação israelense. No entanto, pela implementação e pelo monitoramento,
nem as agências doadoras consideram isso uma assim como pelas despesas orçamentárias,
situação permanente e seus esforços são cada criando um verdadeiro governo paralelo.
vez mais focados em encontrar uma forma de Ao mesmo tempo, os cargos ministe-
tornar os guetos economicamente sustentáveis. riais da ANP na Cisjordânia foram em grande
parte ocupados por “tecnocratas” não eleitos,
os quais não prestam conta sequer a um par-
Plano para quem?
tido. O Fatah foi, em grande medida, alijado
A última rodada de iniciativas de “paz”, inicia- do processo decisório e o próprio movimento
da com a conferência de Annapolis, Estados está se desintegrando em várias facções. So-
Unidos, em novembro de 2007, ocorreu de- mente Mahmoud Abbas ainda representa o
pois de meses de um completo congelamento movimento, dando uma enganosa legitimida-
de todos os fundos, após os palestinos terem de palestina à atual ANP. No entanto, desde
eleito o governo do Hamas – um partido que o início de janeiro, até mesmo seu mandato
não se encaixava no marco que a comunidade como presidente da ANP expirou. Assim, ao
internacional havia criado para a ANP. Depois governo paralelo anteriormente mencionado
que o Hamas foi substituído, ao menos na corresponde um governo não eleito e sem
Cisjordânia, por Salam Fayyad, um velho amigo representatividade, eliminando qualquer pos-
dos estadunidenses, que tinha feito carreira no sibilidade de democracia, prestação de contas
Banco Mundial e no FMI, a situação parecia e processo decisório independente. A ANP da
normalizada. A conferência de Annapolis foi Cisjordânia não representa nenhuma expressão
seguida pela de Paris, muito menos discutida, política palestina que possa questionar o PRDP.
porém, bem mais importante, realizada em O primeiro item da agenda do PRDP é
dezembro daquele mesmo ano, na qual foram a “reforma da segurança”. Este é, de longe, o
assumidos compromissos de ajuda em quantias maior item do orçamento e tem como objetivo a
recordes ao governo de Salam Fayyad. A confe- criação de quatro forças de segurança bem trei-
rência de Paris aprovou e financiou o Plano de nadas. O general estadunidense, Keith Dayton,
Reforma e Desenvolvimento da Palestina (PRDP, está encarregado da supervisão desse processo.
na sigla em inglês). Ele fez parte do Grupo de Pesquisa Iraquiano
Exceto pelo nome, o plano praticamente que, depois da guerra, recebeu a missão de
não tem nada de palestino. Foi escrito pelo De- preparar um relatório provando a existência
partamento do Reino Unido para o Desenvolvi- das armas de destruição em massa no Iraque.
mento Internacional (DFID, na sigla em inglês) e A meta da reforma da segurança é evitar
só muito recentemente foi disponibilizada uma a participação da liderança militar palestina,
versão do plano em árabe. Os partidos políticos ainda imbuida de valores nacionais, e gradual-
palestinos, o Conselho Legislativo Palestino e mente eliminá-la. Assim, os novos recrutas são
a sociedade civil não estiveram envolvidos em treinados pela Agência Central de Inteligência
1 Cada um dos nenhuma discussão sobre esse plano estratégico estadunidense (CIA, na sigla em inglês), na
pseudoestados de base
tribal criados pelo regime do de “reforma” econômica e institucional para o Jordânia, onde recebem uma orientação bem
apartheid da antiga União
Sul-Africana (atual África do período 2008-2010. diferente. Como disse o ministro do Interior pa-
Sul) para manter os negros O PRDP impõe um marco à ação da ANP lestino, ao se dirigir aos novos recrutas: “Vocês
fora dos bairros e terras dos
brancos, mas suficientemente em todos os aspectos. O plano está dividido não estão aqui para confrontar Israel, o conflito
perto delas para servirem de
mão-de-obra barata. em quatro setores estratégicos: segurança e com Israel até agora não levou a nada. Vocês

24 Democracia Viva Nº 42
Palestina, Democracia a serviço de quem?

Arquivo StoptheWall

A Escola Internacional Americana em Gaza é um exemplo da ampla destruição da infraestrutura local.


Até hoje, dificilmente é permitido entrar em Gaza materiais para reconstrução

precisam mostrar a Israel que podem fazer o didos pela empresa de eletricidade, que não
trabalho!” Este trabalho, como vimos durante o consegue pagar a conta dos fornecedores de
ataque à Gaza, é reprimir a população palestina energia israelenses, os campos de refugiados
no caso de qualquer levante. Os palestinos que são cada vez mais equipados com medidores
saíram às ruas de Ramalá para protestar contra pré-pagos, resultando em uma rotina de cortes
a carnificina em Gaza foram impedidos pela de luz para muitos deles.
polícia palestina de chegar perto das forças de No entanto, o efeito dos projetos eco-
ocupação estacionadas em torno da cidade. nômicos e de infraestrutura será o mais dura-
O setor de proteção social, que não douro, pois eles vão, efetivamente, “cimentar”
ultrapassa dois décimos do total das despesas a ocupação, o muro e os assentamentos. A
anuais com segurança, está claramente carente espinha dorsal dos planos econômicos é a
de mais recursos, comprometendo até mesmo construção de três distritos industriais, além de
o que já existia em termos de rede de prote- uma zona de agronegócios e indústria turística,
ção social. No cenário mais otimista, o PRDP na área de Belém.
prestará uma eficaz assistência social a 60 mil
famílias na Cisjordânia e Faixa de Gaza. Esse
Cerco, exploração e dependência
número soa ridículo, pois, mais de 80% dos
1,8 milhão de palestinos em Gaza vivem abaixo O projeto turístico na área de Belém simples-
da linha de pobreza, assim como cerca de 20% mente ignora o fato de que o obstáculo real
dos palestinos da Cisjordânia. ao turismo naquela cidade é Israel manter o
Apesar disso, uma das primeiras medi- controle total de todas as fronteiras, do muro
das de Salam Fayyad foi forçar os campos de e dos postos de controle que circundam com-
refugiados a voltarem a pagar contas de serviços pletamente a cidade. No lugar de exigir o fim
públicos (como luz e água), o que havia sido da ocupação de Jerusalém e Belém, a equipe do
suspenso no início dessa intifada,2 com o acordo enviado especial para o Oriente Médio do Quar-
tácito do governo da ANP, para que as pessoas teto,3 Tony Blair, propõe candidamente postos
2 Insurreição popular
pudessem ter condições dignas de subsistência. de controle “amigáveis para o turismo”, com palestina contra a ocupação
da Faixa de Gaza e da
Para diminuir os empréstimos líquidos conce- faixas separadas para os turistas, evitando que Cisjordânia pelos israelenses.

MAIO 2009 25
internacional

sofram, ou mesmo vejam, as condições humi- renda per capita dos dependentes dos empre-
lhantes desses postos, onde aqueles palestinos gados do JIE será cerca de US$ 3,5 por dia,
que tiveram a sorte de conseguir permissões para trabalhadores qualificados, e US$ 2,9 por
especiais para ir a Jerusalém são conduzidos dia, para trabalhadores sem qualificação – um
como gado através de portões metálicos e pouco acima da linha internacional de pobreza
revistas abusivas. absoluta.
Também ignora totalmente o fato de Os proprietários palestinos das terras
que é impossível reativar a base fundamental onde a zona industrial será construída eram
do turismo – o setor doméstico –, enquanto anteriormente agricultores, que trabalhavam
cada centro urbano importante estiver cercado por conta própria. Agora, suas terras foram
no seu próprio gueto. Ao contrário, o projeto confiscadas duas vezes: primeiro, pela ANP
recomenda a promoção do turismo para “is- para a construção do distrito industrial (1998)
raelenses, jordanianos e árabes”, que terão e, depois, pelas forças de ocupação para a
melhor acesso àqueles locais do que os próprios construção do muro (2003). Esses e muitos ou-
palestinos. Ironicamente, no projeto afirma- tros agricultores cujas terras foram confiscadas
-se que o desenvolvimento da formam uma reserva perfeita de trabalhadores
infraestrutura turística em Belém empobrecidos e desempregados que podem
Provavelmente, “ajudará a romper o isolamento
dos palestinos que não podem
ser persuadidos a aceitar condições de trabalho
que, em outra situação, seriam inaceitáveis.

os trabalhadores viajar para o exterior e a expô-


-los a novas influências”. Assim,
Como o JIE está localizado diretamente
em um posto de controle do muro, isolado por

terão de passar o fato de que a ocupação torna


quase impossível viajar para fora
outros postos de controle de outros mercados
da Cisjordânia, os empregos criados depen-
da Palestina (como o faz com derão inteiramente do mercado israelense.
pela aprovação viagens no seu interior) seria Portanto, as indústrias desse distrito industrial
aparentemente compensado vão depender da vontade da administração
das forças de por se dar aos estrangeiros um israelense para ter acesso aos mercados e o
controle israelense mais suave do distrito pode ser isolado a qualquer momento,
segurança, acesso a Belém. Porém, o mais como aconteceu com a zona industrial no norte
importante é que o projeto vai da Faixa de Gaza.
isto é, terão aumentar a receita de turismo
do poder ocupante, que ficará
Além disso, os termos do estabeleci-
mento desse distrito comprometem a soberania

de provar que com a parte do leão dos lucros


com os peregrinos e turistas que
palestina sobre essas terras. A parte norte do
distrito industrial coincide com uma zona de

ninguém de sua passarem por seus aeroportos,


hotéis e restaurantes.
segurança para o muro e as forças de ocupação
não vão deixar de controlar essa área. Provavel-
A mesma dinâmica de mente, os trabalhadores terão de passar pela
família esteve maiores lucros para os israelen- aprovação das forças de segurança, isto é, terão
ses, exploração dos palestinos e de provar que ninguém de sua família esteve
envolvido na solidificação da ocupação das envolvido na resistência à ocupação.
terras palestinas é a força motriz O estudo de viabilidade do JIE aceita isso
resistência à dos distritos industriais que estão de forma implícita e, de fato, estimula a ANP
surgindo ao longo do muro. Por a formalizar esse arranjo, ou seja, abrir mão
exemplo, o Distrito Industrial de da soberania sobre aquelas terras. Isso não
Jenin (JIE, na sigla em inglês) será tem só consequências políticas, como também
construído nas terras da vila de Jalame, perto econômicas. Nessa área, as leis trabalhistas não
de Jenin, no norte da Cisjordânia. O projeto serão aplicáveis e essa proteção vai depender
está em desenvolvimento desde 1998 e é parte dos acordos especiais para o distrito industrial.
integrante do PRDP. O governo alemão se com- Finalmente, um parque agroindustrial,
prometeu com US$ 10 milhões para o projeto. que seria financiado principalmente pela Agên-
A ideia básica é atrair investidores com cia de Cooperação Internacional do Japão (Jica,
base no salário de subsistência dos palestinos na sigla em inglês), é o último dos projetos com
que vão trabalhar no distrito. Mesmo no cená- o objetivo de transformar o povo palestino da
rio mais otimista, com o máximo de empregos Cisjordânia em trabalhadores empobrecidos
sendo criados no distrito de Jenin, os dados e dependentes a serviço de Israel, do capital
3 Estados Unidos, União
Europeia, Rússia, ONU. fornecidos pelos planejadores indicam que a internacional e de uma pequena elite palestina.

26 Democracia Viva Nº 42
Palestina, Democracia a serviço de quem?

A maioria dos agricultores do Vale do tência do regime do Hamas na Faixa de Gaza. * Jamal Juma
Jordão é de pequenos proprietários. Eles não Nem a continuação do cerco nem os massacres Coordenador da
conseguem desenvolver suas propriedades por criminosos durante o ataque militar à Gaza no Campanha Popular
falta de infraestrutura – uma consequência de início deste ano destruíram o Hamas ou en- Palestina contra o Muro
40 anos de ocupação. No lugar de deixar que quadraram a Faixa de Gaza no marco da “paz do Apartheid <www.
esses agricultores desenvolvam seus próprios econômica” que tentam impor Israel e a co- stopthewall.org>

negócios, na visão da Jica, eles irão trabalhar munidade internacional. Grande parte da atual
em grandes complexos agroindustriais. Isso diplomacia e das controvérsias têm o objetivo
acarreta uma série de benefícios: garante que de tirar vantagem dos recursos da reconstrução
os agricultores serão forçados a abandonar suas para realizar aquilo que os militares israelenses
terras e torna mais fácil a colonização israelense; não conseguiram fazer.
gera lucros para Israel e empresas internacio- Até o momento, os palestinos estão
nais; e, finalmente, a inclusão planejada dos firmes em suas posições, tanto em Gaza como
negócios nos assentamentos assegura que a na Cisjordânia. No entanto, eles lutam não
colonização israelense se tornará um recurso somente contra Israel, como também contra
permanente e essencial do Vale do Jordão e seus criadores e apoiadores que queriam ver
de sua economia. o “baluarte da civilização contra a barbárie”
cravado no coração do mundo árabe. É vital
perguntar o que a comunidade internacional
Para além do óbvio
e as pessoas de todo o mundo podem fazer
Além de inúmeros pequenos ajustes, esses para apoiar a luta palestina. A oferta de apoio
projetos econômicos visam assegurar a sus- financeiro e moral é claramente insuficiente e
tentabilidade e lucratividade dos guetos. Um corre o risco de ser até contraproducente.
estudo do Centro Peres mostra que uma receita No lugar disso, o que a sociedade civil
de US$ 300 milhões originada por esse “desen- e os partidos políticos palestinos defendem é
volvimento” será embolsada diretamente pelos o corte do financiamento vital que permite a
israelenses, enquanto a comunidade interna- ocupação. Os planos internacionais e israe-
cional espera reduzir os gastos com a ajuda lenses vão funcionar enquanto os doadores
humanitária e buscar uma suposta solução da internacionais pagarem a conta. Israel pode
questão palestina. Além disso, será criada uma continuar matando, expulsando os palestinos e
pequena elite de empresários e funcionários, colonizando suas terras enquanto tiver o capital
ligados entre si e vinculados a Israel, que de necessário para isso.
fato vão lucrar com a ocupação. Eles assumirão Os movimentos e governos da América
a tarefa de controlar a maioria empobrecida da do Sul têm mostrado força suficiente para se
população palestina. opor às pressões imperiais e aos ditames do
Naturalmente, todos esses planos e livre comércio e das instituições financeiras
essas políticas contradizem frontalmente a le- internacionais. Em toda a América do Sul, das
gislação internacional, que estipula a obrigação lutas indígenas no México à campanha conti-
de o poder ocupante prover serviços sociais e nental contra a Alca (Área de Livre Comércio das
emprego para a população das áreas ocupadas. Américas), o povo lutou contra as zonas de livre
A exploração, colonização e inclusão de assen- comércio que resultavam na sua exploração.
tamentos em projetos econômicos são atos Muitos desses movimentos assumiram também
ilegais, assim como o confisco de terras e os a causa palestina e os governos sul-americanos
deslocamentos forçados da população. Porém, têm a obrigação moral de não apoiar Israel e
isso é quase óbvio demais para ser mencionado. recusar a assinatura do Acordo de Livre Co-
A distância entre os conceitos de “paz” mércio entre o Mercosul e Israel, manchado de
e “prosperidade” e as reivindicações palestinas sangue palestino. Nenhuma promessa de apoio
por justiça, reparações e libertação fica bem cla- à Palestina seria capaz de encobrir essa traição
ra na última mudança no discurso diplomático fundamental à nossa luta.
de Israel. O atual governo israelense demanda
uma “paz econômica”, no lugar do Mapa do
Caminho. Em outras palavras, a meta é deixar de
lado as negociações vazias e se concentrar em
completar o sistema econômico e institucional
de coerção e exploração.
O único obstáculo é Gaza e a persis-

MAIO 2009 27
d e b a t e

A discussão sobre o aborto é


uma das mais acaloradas em
nossa sociedade. Nela, estão
imbricadas questões científicas,
religiosas e de direitos.
A lei brasileira permite o aborto
apenas em duas situações:
em caso de risco de morte
da mãe ou em caso de estupro.
Mesmo assim, o caso divulgado

Direitos
sexuais e
da menina pernambucana de
9 anos – que se enquadrava
nos dois aspectos previstos em
lei – foi alvo de muita polêmica
que envolveu o pedido de
excomunhão pública da equipe
médica pelo arcebispo de Olinda
e Recife, Dom José Cardoso
Sobrinho.
Toda sociedade democrática
ganha com debates
aprofundados, principalmente
sobre questões que lhe são
fundamentais. É por isso
que a Democracia Viva promove
o diálogo de dois pontos
de vistas distintos.

28 Democracia Viva Nº 42
MAIO 2009 29
d e b a t e

Este é o meu
corpo e eu
não estou
Venha comigo! Este é o meu corpo e eu posso cheiro o que outras como eu comem e cheiram.
ser uma adolescente de 16 anos, uma senhora Não quero ficar sozinha na frente do mundo. Se
de 34 ou uma menina de 9 anos. Corpo de mu- eu for amada, amanso meus poros e buracos e
lher. Veja meu rosto, meus braços e pernas. Esta avanço sem medo pelo mundo. Mas dói.
é minha mão, meus pés. Meu umbigo, meus Se eu tenho 34 anos, o mundo já co-
olhos. Meu cotovelo, minha boca... meu sexo. meça a escavar em mim seus rigores do tempo.
Meu fêmeo corpo, de fêmea aprendi- Ainda sou tão jovem. Já sei o que quero na
zagem, tem entradas e saídas. Poros. Brechas. minha boca, no meu nariz. Conheço meus bu-
Reintrâncias. Cavidades. Buracos. Vazios. Eu racos, suas mazelas e prazeres. Nem tudo que
toda um mapa, de sinais e de acessos. Recebo eu ponho na boca é saudável: entre a escolha
o mundo por meus poros. Meus buracos mais e o hábito, muitas vezes é o mundo que me
queridos: os que me mantêm viva. engole. Ser adulta então é assim!
Respiro e troco com o mundo o ar que Mas se eu tenho 9, 16 ou 34 e sou
me dá vida. Quase nunca eu escolho o que mulher, o mundo me verá as partes mais que
respiro. Aceito os ares e suas fumaças pelas todas as outras, as pudendas pudicas partes. O
narinas. Escolho, se posso, um cheiro, um sa- meu nariz... pouco disciplinado será! À minha
bonete, um perfume. Recuso os cheiros ruins boca... pouca atenção será dada não adiantan-
tapando minhas narinas. Meu nariz é meu. do que se saiba que “não é o que sai... mas o
Como: coloco o mundo em pequenos que entra!”. Mas esta boca debaixo com seu
pedaços na boca e mastigo. Bebo, sorvo, en- pequenos-grandes lábios será o marco zero de
gulo: líquidos de água, remédio ou sopa. Nem minha existência.
sempre escolho, mas minha língua antecipa Me ensinarão nomes não usados, ocul-
gostos prazerosos e evita o gosto ruim. Respeito tarei nomes que aprendi na boca dos moleques
dietas, aprendo receitas e como bobagem. A e nas portas dos banheiros para dizer do meu
minha boca e sua fome. vão das pernas, meu sexo, genitália, periquita,
Se eu tenho 9 anos, aprendo cheiros e xoxota (e até mesmo quando eu tiver 50 e es-
sabores à duras penas. Crescer menina é difícil. crever assim serei censurada por mim mesma,
Me dizem o que cheirar e o que comer e disci- por meus esparsos leitores e alguma hierarquia
plinam meus poros. Aceito a disciplina porque sisuda).
vem misturada com amor e obrigação. E sangro: Me ensinaram a sentar de pernas fe-
tão cedo meu corpo devolve pro mundo minha chadas. Os joelhos interiores. As dobradiças da
sangração. Eu nem aprendi a cartografia d´eu moral, da vergonha na cara. Sentada: as pernas
menina e já sou mulher. fechadas. O aprendizado repetido por gerações
Se eu tenho 16, queria muito ser dona de mulheres: o vão das pernas evitado. O vão
1 Em memória de Marcella- do meu nariz, minha boca. Ainda não e agora das pernas e sua cartografia. No espaço público,
Althaus-Reid: teóloga, amiga
e indecente. sim me acompanham pelo espelho e eu como e não. Em casa, sim. Na praia, sim. Na festa, não.

30 Democracia Viva Nº 42
d e b a t e

No carnaval, sim. No jantar, não. Na escola, não. massacre do amor romântico, do mito da be-
No passeio, sim. Coloquialidades e formalidades leza, da febre de consumo e do mito do amor
de ter o vão das pernas e ser mulher. O esforço materno que me espreitam no mercado, nas
todo colocado nos joelhos com o aprendizado relações pessoais, nas experiências sexuais e
dos sim! e dos não! O joelho como inteligência afetivas. Não identificam minhas matrizes de
coletiva depositada na rótula e sua capacidade classe, gênero e etnia: qualquer mulher é toda
de flexão. Transitar pelas posições permitidas e mulher. Reduzem a concreticidade plural do
pelos vórtices do movimento abusivo acolhendo feminino na cidadania de segunda classe que
o que séculos de cultura e biologia desenvol- mantém os privilégios de patriarcais poderes.
veram para os joelhos femininos: obediência, Não sabem meu cheiro quando desejo,
reclusão, graciosidade. não conhecem meus arrepios e nem imaginam
Me ensinaram a esperar que as promes- o que eu sussurro quando faço sexo e é bom,
sas dos vídeos e das canções se cumpram e um o que eu xingo quando sou estuprada e o
homem me destranque as pernas. Abridor de que imploro quando não quero sexo algum.
latas a começar pelos joelhos. Trava civilizatória. Desfilam suas teologias como
Bambolê imprestável. Dobrada de desejo e con- exame rápido de farmácia
fusão, o macho destrava meus joelhos como se que declara minha gravidez:
abrisse uma porta, uma lata de cerveja, como
se meus joelhos não estivessem ali e fossem
absoluta! imutável! inques-
tionável!
Minhas
somente um empecilho a ser vencido.
Meu nariz não é santo, nem minha
Não me deixam em
paz. Olham pro mundo e cra-
antepassadas
boca. Buracos ordinários sem teologia e sem
rituais. Mas o vão das minhas pernas: valei-me!
vam seus argumentos morais
no vão das minhas pernas. serão culpadas
quantos cuidados e ordenações! interditos e Fazem lobby, obstruem polí-
danações! Tão pagãos meus pelos, tão per- ticas, aterrorizam serviços de de originais
verso o meu sexo que ao longo dos séculos saúde e de planejamento fa-
recebeu dos senhores teólogos tanta atenção. miliar. Enfiam suas teologias pecados e todas
Nunca nas sistemáticas teologias. Minhas faltas como membro viril na carne
anatômicas – eles dizem – me desautorizam da democracia e estupram reunidas na
à plena participação no sacerdócio. Minhas processos de discussão, acor-
profundidades e vazios uterinos me prenderão
à natureza e à maternidade.
dos internacionais e projetos
comunitários que mulheres
ancestralidade
Minhas antepassadas serão culpadas de
originais pecados e todas reunidas na ancestra-
de 9, 16, 34 e 50 precisam
e exigem como expressão
de Eva seremos
lidade de Eva seremos minorizadas e encurrala-
das entre a virtude e o vício... e a mãe-virgem
de direitos humanos e dig-
nidade. minorizadas e
do Salvador sobrevoará sobre nossas cabeças Se tenho 9, 16 ou
como modelo irrepetível, elogio da castidade 34 e sou parte da minoria encurraladas
e da funcionalidade maternal. social com privilégios, as
Sobre nós – de 9, 16 ou 34 anos... e excomunhões e os lobbies entre a virtude
mesmo nos avançados 50 – falarão os padres e não me alcançam. Protegida
pastores, dirão os bispos e arcebispos as entra- pelo dinheiro, tenho acesso a e o vício...
das e saídas do meu vão das pernas. Tanto sexo, técnicas seguras e higiênicas
sexo ruim... nenhum sexo: para os senhores de interrupção de gravidezes
teólogos tanto faz! Já sabem no meu lugar e indesejadas. Mas se eu sou da
melhor que eu o certo e o errado, o bem e o maioria despossuída, as seve-
mal. Imobilizam minha capacidade de conhecer ridades de castas/castos clericais me empurram
meu corpo e percorrê-lo. Querem impedir que para clandestinas alternativas que me punem
eu mesma analise e interprete as mazelas sociais e me fazem mal. Assim...assim os senhores da
que subordinam minha femeza, desconhecem religião continuam vendendo indulgências que
a miséria erótica e efetiva dos meus dias. Não mantêm as desigualdades sociais e a opressão
entram na minha casa, não conhecem as vul- das mulheres. Mas... venha comigo! Este é o
neráveis e violentas relações familiares com que meu corpo e eu não estou sozinha! Somos
convivo. Fingem que não sabem que não tenho muitas irmanadas na análise de conjuntura do
acesso à saúde reprodutiva ou ao planejamento sexismo. Somos tantas tanto e quanto organi-
familiar consciente e responsável. Ignoram o zadas, corajosas e responsáveis. Movimentos

MAIO 2009 31
de mulheres, profissionais de saúde, agentes Deus, tu me sondas e me conheces
de saúde pública, gestores de políticas de as- mas, vê bem!
sistência, juristas e até teólogas(os). sou uma mulher.
Queremos garantir as conquistas já Sabes quando desejo
feitas e fazer valer os direitos da menina de e quando choro?
9 anos. Queremos espaços de discussão e de Sabes quando menstruo
e tenho cólicas?
participação política que consolidem novos
Penetras de perto minhas carnes?
consensos sobre direitos sexuais e direitos re-
Sabes quando finjo ou vou gozar?
produtivos. Queremos eróticas relações de amor
Examinas minhas tabelas e minhas contas?
para mulheres de 16, 34 ou 50 anos. “Nossos Sabes quando engravido e quero ser mãe?
corpos nos pertencem” – continuaremos a Sabes quando engravido e decido abortar?
repetir, não como elogio do individualismo, Deus, não é soberbo o meu coração
mas como construção coletiva do corpo social nem altivo o meu olhar.
baseado em pactos legítimos que garantam Não ando atrás de grandes coisas,
os direitos das mulheres em todos os aspectos coisas grandes demais para mim.
econômicos, sociais e culturais... religiosos Só quero que me conheças,
também na expressão da liberdade de religião me penetres sem me esmagar,
e Estado Laico. me examines sem me espreitar.
Orgasmizadas e organizadas, nós já Não vou calar meus desejos
não temos medo da ira e da severidade dos nem desistir de afirmar:
colo e repouso encontrar em Ti
senhores donos da religião. Nas contradições,
como a mulher que aborta
nas contrações e nas decisões oramos assim:
descansa nos braços de uma amiga.

Salmo da Mulher que Aborta

32 Democracia Viva Nº 42
d e b a t e

Aborto
Eva Aparecida Rezende de Moraes
Doutora em Teologia pela PUC-Rio; pós-graduada em Matemática pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Além Paraíba (MG). Professora: de Matemática na Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro; de Ética Cristã
na PUC-Rio; de Teologia no Centro Loyola de Fé e Cultura (RJ), no Instituto Diocesano de Teologia de Volta Redonda
(RJ) e na Universidade Severino Sombra de Vassouras (RJ).
<rem.eva@gmail.com>

Esse pequeno artigo trata do aborto induzido. transformações por que passou nossa socie-
Nos posicionamos contrariamente ao aborto; dade (de agrícola a industrial, de industrial a
porém, tentamos abordar o assunto de forma tecnológica, de tecnológica a virtual) afeta-
a mais ampla possível, embora o espaço seja ram as famílias e a cultura. Muitos valores se
pouco. É um tema delicado, porque tangencia transformaram em contravalores e vice-versa.
os limites da existência (nascimento e morte) e A mudança social e cultural veio acrescida de
deve ser analisado sob diversas óticas. Vamos uma outra no campo sexual; encontramos, por
analisá-las. exemplo, uma precocidade nas relações sexuais
de nossos jovens, nem sempre acompanhada
de respectivas maturidade e responsabilidade.
Aspecto antropológico-social
Além desses fatores, a mídia tem nos informa-
No Brasil, o aborto é um problema social, rela- do, frequentemente, inúmeras patologias no
cionado a diversos fatores conjunturais, como âmbito da sexualidade, como abusos sexuais
o nível econômico, a escolaridade, o acesso às (provocados, inclusive, por pessoas próximas
informações e aos métodos contraceptivos, ou familiares da vítima), estupro e pedofilia.
dentre outros. O que as estatísticas nem sem- Acresça-se a esses fatos a deficiência
pre revelam é o motivo que, geralmente, leva em muitos setores da educação formal, que
as mulheres a abortarem. Em alguns casos, o até tem oferecido informação sexual, mas, ge-
aborto é induzido para salvar a vida da mãe ralmente, restrita à genitalidade, nem sempre
ou em caso de estupro; mas, geralmente, acompanhada de educação para a sexualidade,
encontramos gravidezes que acontecem por a maternidade e a paternidade. Falando-se
falta de orientação. em paternidade, o homem, geralmente, não
São vários os fatores que geram este é envolvido no processo do abortamento: ao
despreparo; um deles é o próprio sistema valorizar-se a vontade da mulher na decisão
econômico-social, que tem se revelado irres- sobre o aborto, ignora-se ou remete-se para
ponsável na veiculação de produtos merca- segundo plano sua vontade2 e, desse modo,
dológicos por meio de apelos à sexualidade, desvaloriza-se a sua participação no processo
voltados ao mercado infanto-juvenil. Além procriativo, reforçando uma cultura que pe-
disso, a ausência crescente dos pais e das naliza apenas a mulher pelas consequências
mães na formação dos filhos e das filhas é do ato sexual.
visível em todos os estratos de nossa socieda-
de: a realidade econômica tem imposto um
Aspecto legal 1 Cf., por exemplo,
ritmo acelerado de trabalho, que dificulta a HOBSBAWM, Eric. Era dos
Extremos. O breve século XX.
relação familiar e a formação das crianças e A Declaração Universal dos Direitos Humanos São Paulo, 1997.
jovens. Muitas de nossas atuais famílias não afirma, em seu artigo terceiro, que “todo o 2 Cf. http://www.o-caminho.
org/artigos/10racoes_contra.
se encaixam mais no modelo tradicional.1 As indivíduo tem direito à vida”. Esse direito é doc

MAIO 2009 33
prioritário, do qual emanam os demais. Na simples como os endêmicos ou preventivos não
legislação brasileira, encontramos: art. 124: conseguem sempre ser tratados de forma orga-
provocar aborto em si mesma ou consentir nizada e com qualidade. Em vários lugares, por
que outrem lhe provoque: detenção de um exemplo, a mortalidade das gestantes ainda é
a três anos; art. 125: provocar aborto sem o alta por assistência precária ou incorreta. Os
consentimento da gestante: reclusão de três abortos induzidos não são simples e requerem
a dez anos; art. 126: provocar preparo dos agentes de saúde e da própria
aborto com o consentimento gestante; além disso, a simples legalização
Algumas da gestante: reclusão de um a do aborto não elimina as causas que levam a
quatro anos. No art. 127, se a mulher a abortar. É dever do Estado executar
mulheres, gestante sofre lesão corporal de políticas eficazes de educação e segurança
natureza grave em conseqüência pública, reprimindo a violência à criança e
quando se do aborto, as penas cominadas à mulher; executando políticas sociais que
nos dois artigos anteriores são eduquem e informem adolescentes; desen-
decidem aumentadas de um terço, e, se volvendo uma ampla assistência às gestantes
lhe sobrevém a morte, as penas e punindo os infratores. Estas medidas seriam
pelo aborto, são duplicadas. No art. 128, não de maior eficiência, pois estariam cuidando do
se pune o médico que pratica o germe do problema.
procuram aborto se não há outro meio de
salvar a vida da gestante ou se
clínicas a gravidez resulta de estupro.
Aspecto religioso
Portanto, no Brasil, fora esses A maioria das religiões (como a cristã) é con-
clandestinas três casos legalizados, o aborto trária ao aborto. O que elas prezam é a vida do
é visto como ato voluntário de feto, argumentando que ela, antes de ser uma
ou realizam atentado à vida. escolha da mãe, é um dom de Deus. Assim,

métodos enquanto os que defendem a legalização do


aborto defendem a vida da mãe, as religiões
Aspecto político
inseguros, da saúde pública
defendem a vida do feto. A tradição moral
judaico-cristã sempre se preocupou com a

causando, em Algumas mulheres, quando se


decidem pelo aborto, procuram
defesa dos mais fracos e vulneráveis, como as
crianças, os órfãos, os idosos e as viúvas.3 Con-

alguns casos, clínicas clandestinas ou realizam


métodos inseguros, causando,
cordamos com vários Documentos Pontifícios
da Igreja Católica e com o Conselho Nacional

a própria morte em alguns casos, a própria mor-


te. Muitos argumentam que a
de Ética para as Ciências da Vida (1996), que
afirmam que a vida humana possui dignidade
discussão não é sobre o direito essencial e merece respeito, qualquer que seja
de a gestante abortar, mas sobre o seu estágio ou fase. Os cristãos defendem
o direito de a gestante ter auxílio médico para que Deus está envolvido no processo da con-
abortar. O que devemos, porém, indagar é o cepção: “Pois tu formaste o meu interior, tu me
aspecto político da legalização do aborto no teceste no seio de minha mãe. Graças te dou,
Brasil: o que o Estado ou seus representantes visto que, por modo assombrosamente mara-
buscam, ao propor a legalização total do abor- vilhoso, me formaste...” (Salmo 139,13-16).
to? Pode ser para responder a uma situação É também muito forte a fundamen-
de saúde pública; mas pode ser, igualmente, tação emanada do quinto mandamento da
uma forma objetiva de se eliminar o problema Lei de Deus: “Não matarás” (Êxodo 20,13).
e, não, resolvê-lo; pode, inclusive, ser uma Portanto, a religião cristã considera que a
forma sutil de se implantar um controle de vida humana tem início com a fecundação (o
natalidade no país. que, aliás, é partilhado com muitas opiniões
3 Cf. http://www.o-caminho.
Conhecemos a realidade caótica da médicas) e, portanto, abortar, é matar: “Nas
org/artigos/10racoes_contra. saúde pública no Brasil: casos relativamente suas múltiplas formas e manifestações, a vida
doc
é um bem impagável e indisponível; cada ser

34 Democracia Viva Nº 42
vivo manifesta, à sua maneira, a sabedoria e tos da mulher sobre seu corpo; entretanto,
a insondável providência de Deus Criador...”.4 nenhum direito é ilimitado, mas cerceado
pela existência do direito de um outro. O
direito da mulher de decidir sobre seu corpo
Aspecto biopsicológico
é limitado pelo direito do feto à vida. Muitas
Existem várias formas de aborto induzido, pessoas que defendem o aborto defendem
como o químico, com a utilização de prosta- uma ética utilitarista: seu ponto de partida é
glandinas5, da pílula RU-4866 ou de drogas o princípio da utilidade, segundo o qual uma
e plantas; ou, ainda, o cirúrgico, a partir dos ação é útil e, portanto, ética quando traz mais
métodos de dilatação ou corte7, sucção ou felicidade do que sofrimento aos atingidos; 4 D. Odilo Scherer, Secretário-
aspiração8, dilatação e curetagem9, envene- deste modo, o prejuízo de alguns poderia ser Geral da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil por
namento por sal10, sufocamento11 e esquarte- justificado pelo benefício de outros, desde que época da apresentação
do tema da Campanha
jamento. O aborto pode causar insuficiência estes estivessem em maior número (cálculo da Fraternidade de 2008:
“Escolhe, pois, a vida”.
ou incapacidade do colo uterino; danos às de maximização do bem) e, como o feto não
5 Droga que provoca parto
trompas; infertilidade; complicações em gra- é considerado, não possui nenhum interesse prematuro.

videz posterior; hemorragias; complicações envolvido. Evidentemente, não concordamos 6 Pílula abortiva, conhecida
como a “pílula do dia
placentárias; maior necessidade de cesariana; com esse argumento: eticamente falando, seguinte”. Age matando
de fome o bebê, privando-o
síndrome de Asherman12; isoimunização em todos sabemos que, a um direito, corresponde do hormônio progesterona.
pacientes com Rh negativo; gravidez de alto um dever. 7 Esquarteja-se o feto dentro
do ventre da mãe.
risco; abortos espontâneos; partos complica-
8 Insere-se no útero um
dos. A interrupção da gravidez é uma agres- tubo oco que tem uma forte
Conclusões sucção.
são para a saúde física, mental e emocional
9 Dilatação do colo do útero
da gestante, pois a mulher interrompe uma A primeira é religiosa: o feto é uma vida e a e raspagem do revestimento
uterino do embrião, da
gravidez, mas não elimina, de dentro de si, a vida é dom de Deus; se nos arrogamos o direito placenta e das membranas
experiência da maternidade. de decidir sobre a vida de um feto ou embrião, que envolvem o embrião.

10 Com uma seringa,


Já foram registrados vários sintomas abrimos precedentes para decidir, também, aspira-se o líquido amniótico
psicológicos em mulheres que abortaram, sobre a vida de qualquer outro ser humano. A e aplica-se uma solução
salina, que causará a morte
como atesta, por exemplo, o Colégio da segunda é legal: o aborto provocado acarreta do bebê em 12 horas, por
envenenamento, desidratação
Especialidade de Psiquiatria do Reino Unido a destruição de uma vida humana e qualquer e hemorragia do cérebro e
outros órgãos.
(Royal College of Psychiatrists)13: depressão, referendo ou decreto-lei que legitime a morte
11 Puxa-se o bebê para fora,
sentimento de culpa e de perda, abuso de de um ser humano indefeso é um atentado deixando a cabeça dentro;
introduz-se um tubo em
substâncias tóxicas e, até mesmo, suicídio. contra a vida e viola os direitos fundamentais sua nuca, que sugará a
sua massa cerebral; só
Esses sintomas também podem acontecer do ser humano:15 o primeiro direito humano então o bebê consegue ser
totalmente retirado.
devido às cobranças para com a mulher é o direito à vida e, se esse direito é burlado,
12 Amenorréia traumática:
que aborta, por parte de familiares, do pai abrimos precedentes para que outros direitos destruição do endométrio,
seguida do acolamento com
da criança ou das pessoas próximas; ou, ao também o sejam. A terceira é política. Indepen- formação de aderências
contrário, devido às pressões externas sobre dentemente da legalização ou não do aborto, fibrosas nas paredes da
cavidade uterina. Cf.
ela para que aborte. Apesar de, na maioria uma tarefa é indiscutível: a necessidade de http://www.medcenter.com/
Medscape/content.aspx?
das vezes, a mulher sofrer as consequências informação e formação da população sobre as LangType=1046&menu_id=
49&id=529.
psicológicas, alguns homens já apresentaram consequências do aborto, um trabalho desde
13 Cf. http://www.o-caminho.
depressão pós-aborto, especialmente quando o âmbito da educação formal até à informal. org/artigos/10racoes_contra.
doc
esse foi realizado sem o seu conhecimento e E, finalmente, a questão ética. Muitas meninas
14 “Ética é uma palavra de
autorização. e mulheres optam pelo aborto sem nenhuma origem grega, com duas
origens possíveis: a primeira,
consciência de seu ato; entretanto, um erro é a palavra grega éthos,
com e curto, que pode ser
não pode justificar o outro: se muitas dessas traduzida por costume; a
Aspecto ético segunda, também se escreve
mulheres são vítimas, a maior vítima é o feto éthos, porém com e longo,
que significa propriedade
O campo da ética é aquele dos valores e que, inclusive, não pode se defender. do caráter...”. MOORE, G. E.
comportamentos, direitos e deveres, como Princípios Éticos. São Paulo.
Abril Cultural. 1975. P. 4.
nos sugere a própria etimologia.14 É comum, 15 Cf. http://www.o-caminho.
nos discursos pró-aborto, a defesa dos direi- org/artigos/10racoes_contra.
doc

MAIO 2009 35
ENTRE Entrevista

VISTA
Itamar
Silva
Ele é da ala dos atrevidos. Mas é de um atrevimento diferenciado,
capaz de aliar tranquilidade, confiança e coerência
em cada passo que dá. Esses passos, geralmente,
seguem em direção ao bem-estar e à melhoria da
qualidade de vida no Santa Marta, favela dona de
seu coração, localizada no bairro de Botafogo,
zona sul do Rio de Janeiro – atualmente ocupada
pela Polícia Militar como parte de ação do Estado
para transformá-la em exemplo de “legalidade”.
Ali, ele nasceu, cresceu, casou, criou seus dois
filhos. E de lá não pretende sair. Pelo menos,
não tão cedo. Nesta entrevista à DV, o jornalista
e líder comunitário, que há cinco anos é um dos
coordenadores do Ibase, revela traços de sua
trajetória pessoal e profissional, marcada pela
atuação como ativista social e defensor dos
direitos humanos da população
de favelas da cidade. Não é uma atuação simples
de abraçar, ainda mais considerando todas as
campanhas do Estado, intensificadas pela mídia,
de pró-remoção e segregação das favelas
cariocas. “Não está sendo fácil participar desta
entrevista. De modo geral, tento me expor
pouco. Acho que temos de ser vistos pelo
que fazemos, pelo que ocorre a partir do
trabalho
e da militância. Mas fico lisonjeado
com essa atitude do Ibase de me
convidar e da Cleonice [Dias,
conselheira da revista] por ter

36 Democracia Viva Nº 42
Democracia Viva (DV) – Poderia minha avó e o restante do tempo com minha
começar falando sobre suas mãe. Depois, vieram outros irmãos. Dos vivos,
origens? sou o mais velho, vieram mais quatro irmãos,
Itamar Silva – Nasci no Santa Marta. Meu dois homens e duas mulheres. Lá pelas tantas,
pai vem de Itaperuna, norte do estado, minha meus pais acharam que tinha pouca gente na
mãe, de Campos. Meu pai vai morar no morro casa e adotaram uma menina, então somos
de São Carlos e minha mãe, muito nova, vai ser três mulheres e três homens vivos. Minha mãe
empregada doméstica em Copacabana. Eles se trabalhou como empregada doméstica até o
encontram no Rio de Janeiro, frequentavam as ano passado (2008), quando se aposentou. E
mesmas festas. Depois de casados, moraram triste da vida, porque a patroa morreu.
primeiro em Padre Miguel, na Vila Vintém, e, DV – Essa avó que morava com
depois, foram para o Santa Marta porque já vocês era paterna?
havia uma tia que morava lá. Isso foi em 1955, Itamar – Sim. Tem uma história interessante
pouco antes de eu nascer. Toda a minha ges- em torno do nome dela. A vida toda, conheci
tação foi passada no Santa Marta. Eu seria o minha avó como Maria Alves Diniz, a gente
terceiro filho, mas os dois primeiros morreram. a chamava de Quinha. Quando ela precisou
DV – Seu pai é uma pessoa voltada entrar com um processo para conseguir a apo-
para a cultura, certo? sentadoria, tivemos de voltar à sua cidade natal
Itamar – Sim, meu pai foi muito boêmio, para tirar um novo registro. E aí, descobrimos
desde a juventude. Sempre cantou, gostou de que não existia Maria Alves Diniz. Seu nome
música, da noite. Ele trabalhava no almoxari- correto é Maria Aurora da Silva. Não sei porque
fado da Exposição Carioca, uma grande loja a família dela ficou conhecida na cidade como
de departamentos que funcionava no Largo Família Diniz. O mesmo ocorre com meu pai,
da Carioca, e que depois acabou. E cantava na todos os conhecem como José Diniz, mas seu
noite. Muito rapidamente, ele construiu uma nome de fato é José Silva. Isso nos causou um
relação de amigos no Santa Marta que deu o problema mais tarde: minha avó tinha uma
desenho de como seria a nossa casa. poupança, pequenininha, e, quando morreu,
DV – Ele era folião e um dos ninguém pôde mexer porque a documentação
organizadores da Folia de Reis não batia, seria um processo tão trabalhoso
no Santa Marta? que preferimos deixar pra lá.
Itamar – Sim, ele sempre foi uma figura DV – Ela era uma referência
interessante. Em geral, as pessoas pensam, pai no Santa Marta, não é?
pobre não liga para os filhos ou vive bêbado. Itamar – Sim, como rezadeira, cumpriu
Não é verdade. Meu pai sempre foi boêmio, mas um papel importante. Minha casa tinha duas
manteve uma relação muito boa com os filhos. entradas, uma da parte do meu pai, que eram
Nunca apanhei dele. Lembro uma vez de ele ter os amigos músicos, boêmios, do futebol, e as
dado uma bronca mais forte, e só aquilo foi um pessoas que vinham buscar minha avó para
trauma. Minha mãe é quem batia. Ela chegava rezar. Um fato interessante era a reação dela
do trabalho cansada, ouvia reclamações dos diante de certas situações. Às vezes, chegavam
vizinhos e fazia esse papel de dar bronca, de lá com uma criança passando mal e ela rezava,
bater. Meu pai, não. mas dizia, ‘Isso é coisa de médico’. Era uma
Por outro lado, ele tinha essa vida para fora, sabedoria que só pude avaliar muito tempo
com a música, o samba, a Folia de Reis. Meu depois, ela não deixava que essa posição, esse
pai é folião desde muito tempo, antes de ser saber, fosse maior que a realidade com a qual
mestre de Folia de Reis, ele foi folião na Ilha do ela estava lidando e as vidas daquelas crianças.
Governador. Depois, trouxe a Folia para o Santa Tinha um amigo médico, que morou três anos
Marta e assumiu esse papel de mestre de Folia. no Santa Marta, o Zé Luís, que tinha uma
Mas agora, penso que meu pai deixava tudo relação engraçada com minha avó. Tanto ele
para a minha mãe, o pesado de educar, ficava respeitava o ofício dela como ela reconhecia
pra ela. Tínhamos uma figura de pai muito legal, aquele profissional.
amiga, ele é assim até hoje. DV – Qual era a religião da família?
DV – E sua mãe? Itamar – Lá em casa, religião nunca foi algo
Itamar – Minha mãe foi empregada do- muito forte, acho que somos uma típica famí-
méstica a vida toda. Quando estava com 1 lia católica brasileira. Minha avó era médium,
mês de nascido, ela voltou a trabalhar. Na meu pai também é. Minha mãe adora ir a uma
verdade, eu ficava uma parte do dia com macumba, bater palmas, mas não tem nada de

MAIO 2009 37
entrevista

médium, o maior sonho dela seria pegar um Costumo dizer que minha avó, como mais
santo, mas nada acontece. Mas todo mundo é velha, cumpriu o papel de morrer pela família.
batizado, minha avó não perdia uma Missa do Porque, intuitivamente, ela pediu para meus
Galo, participava dos rituais da Igreja Católica. E sobrinhos comprarem pão um pouco antes
como minha avó era rezadeira, na minha casa, daquele momento. Minha cunhada, que estava
sempre se puxou ladainha. Eu acompanho la- em casa, com a filha menor, ficou presa entre os
dainha desde pequeno, adoro rituais, acho que escombros e teve um problema sério na perna,
minha religiosidade tem a ver com isso. Mas e minha sobrinha se machucou um pouco, mas
depois que fiz Primeira Comunhão, não quis se salvou. Só fomos encontrar minha avó oito
mais saber de nada de igreja ou de religião. E horas depois.
fiquei assim, com uma relação distanciada da Foi uma perda muito grande para a família,
religião, até a chegada do padre Agostinho com certeza, mas para o Santa Marta, para
no Santa Marta. Aí, é uma outra igreja que a favela, onde ela era uma referência forte.
se apresenta, mais progressista, falando de Esse foi um momento muito difícil para mim.
outras questões. Eu retomo essa questão das Na época, estava na direção da associação de
celebrações, dos rituais, a partir de uma outra moradores e, muito rapidamente, tinha que
discussão. cuidar de outras tantas pessoas, conversar com
DV – Como lidou com o episódio a prefeitura para resolver os problemas, tive que
da morte dela? transformar aquele momento em outra coisa.
Itamar – Isso foi em 1988, houve uma chu- Morreram nove pessoas, 43 casas foram abaixo,
va no Santa Marta, com vários desabamentos, muitos ficaram desabrigados. Foi um momento
e a casa dos meus pais veio abaixo. Minha avó de muita dureza, mas a gente aprende muito.
estava em casa, era véspera de carnaval, lá pelas Fico impressionado como a gente pensa que
5 horas da tarde. Eu já não morava mais lá, mas não tem resistência, que não tem condição de
sim do outro lado do morro. Chovia muito e enfrentar, mas acaba enfrentando.
ouvi o barulho das casas vindo abaixo. Fiquei DV – De onde tira serenidade em
descontrolado, procurando minha família. Se momentos difíceis?
o desabamento fosse duas horas mais tarde, Itamar – Esta é uma resposta que não te-
minha família toda teria morrido porque, como nho. Posso responder com a minha vida, com os
era véspera de carnaval, todo mundo se reunia meus atos. Não sou sempre sereno, mas tento
para assistir ao desfile na casa dos meus pais. buscar uma certa tranquilidade, principalmente
nos momentos mais difíceis. Onde eu busco
força para isso? Meus pais são uma referência
legal. O exemplo da minha mãe, criou tantos
filhos, na dificuldade, e nunca a vi se lamentan-
do, isso é uma marca, não lembro de lamentos
dela, nem do meu pai, nem da minha avó. Essa
marca, da lamentação do sofrimento, não há.
Não que o sofrimento não estivesse presente,
vivemos várias passagens difíceis.
DV – Seus pais eram exigentes
com seus estudos?
Itamar – Esta era uma marca não só da
minha mãe, mas de muitas mulheres pobres.
Imagina que, nos anos 60, entrei no Jardim de
Infância, com três anos e meio. Isso não era
normal nessa época, era muito cedo. Entrei
para uma escola experimental, pública, mas de
excelência, em Botafogo. Para entrar, tinha que
ser por sorteio. Assim, consegui ser alfabetizado
muito cedo. Quando saio de lá, entro para a
escola pública já alfabetizado.
Sou da época em que se estudava até a
admissão, eram seis anos e eu saltei um ano por
conta de ter uma base boa, isso foi na quarta
série. Naquele momento, fazer o ginásio em

38 Democracia Viva Nº 42
Itamar Silva

colégio público era sinal de ser bom aluno ou 1978, a classe média começa a subir o morro, é
gente importante. Porque haviam os colégios um momento de muitos casamentos interclas-
públicos de qualidade ou as escolas religiosas, ses. Mas sempre fiz questão de marcar o lugar
que eram as melhores, ou os colégios estran- das relações políticas e o lugar das relações
geiros. O resto era PP, pagou, passou. Para a pessoais. Essa consciência aparece muito cedo
minha mãe, tudo isso era uma alegria muito e aí eu comecei a fazer também as minhas
grande. Ela estudou até a terceira série primária. separações.
Meu pai terminou o primário, e fez, depois de DV – Poderia aprofundar um
adulto, até a segunda série do ginasial, mas pouco essa questão a partir
não completou. Nessa história da mãe fazer do recorte racial?
força pra gente estudar, quando olho pra trás, Itamar – A consciência da questão racial
percebo que ela nunca fez isso com sofrimento. vai acontecer no ginásio, a partir de uma expe-
DV – E quanto a seus irmãos riência marcante na casa do Antonio Trajano,
e suas irmãs? que morava em um prédio em Laranjeiras.
Itamar – Sim, lá em casa todo mundo estu- Estudávamos no Largo do Machado. Ele me
dou. Dos seis, eu, Fatinha e Cleide temos nível convida para ir a casa dele, estou sentado na
superior; Riquinho e Ronaldo fizeram cursos sala quando chega a sua mãe. Ele me apresenta
técnicos, e a outra irmã só fez até a primeira a ela, que chama a empregada: ‘Fulana, vem
série do segundo grau, mas todo mundo teve aqui ver que garoto bonito, olha o nariz dele
oportunidade de estudar. como é afiladinho, as feições tão finas...’. Ali,
DV – Sofreu preconceito na escola? naquele momento, eu sabia que alguma coisa
Itamar – Comecei a perceber isso quando estava acontecendo, mas não tinha repertório
estudei na Escola México, em frente ao Santa para reagir, para falar qualquer coisa, fiquei
Marta. Quando entrei, tinha muitos amigos de muito incomodado. Saí dali com raiva dele e
lá. Já na terceira série, lembro de uma amiga, comentei: ‘Nunca mais volto na sua casa’. Mas
uma menina negra, a Jandira, que estudava na ele não deu muita atenção, não sabia o que
minha sala. Eu era pobre, mas ela era muito estava acontecendo, tínhamos 12, 13 anos. Mas
mais. Foi uma época dramática. Meu sonho de para mim, a minha consciência da questão racial
consumo era ter uma caixa de lápis de cor com ficou clara, primeiro, de que era uma discrimi-
36 cores, que tinha cores que nunca nem havia nação comigo e com a empregada dela, que era
imaginado, mas eu tinha uma caixa pequena, negra também. A partir daí, comecei a buscar
de 12, ela não tinha nenhuma. Ela sofria muita mais informações, a pesquisar essas questões.
discriminação da turma, eu me relacionava Mas não havia muito espaço para discutir isso
bem com todo mundo. Tanto assim que, no nem no morro, nem na minha família.
fim do ano, ela saiu da escola, só retomou os DV – Contou a sua família esse
estudos dez anos depois. Já na quarta série, fato? E seus irmãos, passaram
sou o único da favela naquela escola. Meus por situações semelhantes?
colegas de colégio eram da classe média. Mas Itamar – Só fui contar esse episódio em
nunca consegui desenvolver uma relação muito casa muitos anos depois. Guardei isso pra mim,
profunda com essas pessoas porque eu conti- serviu para marcar um pouco a minha vida.
nuava com minha crença nas favelas. Isso vai Meus irmãos estudaram nas mesmas escolas
me acompanhar para sempre. que eu: primeiro, na Escola México ou na Abílio
DV – Estudava na casa de colegas e Borges, perto do Santa Marta; depois, o ginásio,
os levava para estudar na sua casa? cada um estudou em um lugar. Mas minha irmã
Itamar – Nunca, essa possibilidade jamais Cleide contava casos de discriminação na escola.
foi sequer colocada, eu também não ia na casa Ela sofria muito. Tinha o cabelo curtinho e tinha
deles. Só lembro de um amigo, o Orlando, fui que esticar, mas ela não queria fazer aquilo.
fazer dois trabalhos na casa dele, isso no pri- Minha mãe chegou a ir na escola porque tinha
mário. E no ginásio, lembro de outro amigo, um grupo mexendo com ela.
o Alfredo, um cara branco que morava em DV – Era bom aluno?
Botafogo. Itamar – Nunca fui um aluno brilhante,
DV – E as namoradas, eram mas sempre estive acima da média. Nunca tive
da escola ou da favela? dificuldade de estudar, alguma coisa que me
Itamar – Sempre da favela. Eu vou falar atropelasse. Entrei no ginásio com 11 anos, e
uma coisa forte: nunca me permiti namorar minha primeira participação em passeata foi
alguém de fora da favela. Nesse período, 1977, no colégio Amaro Cavalcanti. O colégio estava

MAIO 2009 39
entrevista

caindo aos pedaços e o pessoal do científico a trabalhar?


fez uma manifestação até o Palácio Laranjeiras, Itamar – Aos 17 anos, comecei como
onde funcionava o governo. No primeiro dia de office-boy em uma financeira que fazia liquida-
aula, estava cheio de ovo na porta, o pessoal do ção extrajudicial chamada Price. Àquela altura,
científico nos impedindo de entrar. Em vez de como pobre, já estava velho para começar a
voltar pra casa, pensei, ‘Já estou aqui mesmo’, trabalhar porque qualquer menino do Santa
e fui junto com a passeata até o Palácio. No Marta, incluindo meus irmãos, começa aos 14
segundo ano, encontrei um grupo de amigos, anos. Mas como minha família sempre me esti-
a gente fazia muita farra e eu acabei repetin- mulou a estudar, e eu não tinha problemas com
do de ano. Foi lamentável, fui muito severo o estudo, meus pais foram tentando segurar
comigo mesmo, cortei a relação com todos o máximo que podiam. Só que, é claro, havia
esses amigos. uma pressão por mais dinheiro. Minha mãe
DV – Mas era 1968, todo mundo trabalhava numa casa cujo patrão trabalhava
ficou com a cabeça meio no Banco Central, que era liquidante dessa
bagunçada, não é? financeira. Esse triângulo era muito comum e
Itamar – As informações que tenho de 68 esse lugar do mensageiro era o lugar do filho
vieram do meu tio Gilson, irmão do meu pai, da empregada, do filho dos pobres. Isso hoje
que estava servindo o Exército. Um dia, ele acabou, o mensageiro não tem mais esse perfil.
teve que ir pra rua para reprimir estudantes e Trabalhei lá por quase três anos.
chegou muito revoltado em casa, comentan- DV – Depois que saiu desse
do essa história. Ele sentia uma certa revolta emprego, foi trabalhar onde?
com esse papel que estava exercendo. Na Itamar – Com 19 anos, fiz um concurso
minha casa, minha avó era getulista na alma, público para a Embratel e passei. Saí de 1 sa-
e meu pai também. Por isso, a questão política lário mínimo para 10 salários. Nesse período,
sempre esteve muito presente, eles ouviam os também entrei na faculdade. Na verdade, só
noticiários políticos pelo rádio. Quando houve pude cursar uma faculdade particular por causa
o golpe, lembro do meu pai chorando em casa do trabalho na Embratel. Trabalhava na parte
ao ouvir a notícia. administrativa, no setor de benefícios.
DV – Com quantos anos começou DV – Não tentou uma vaga

40 Democracia Viva Nº 42
Itamar Silva

em universidade pública? lho, mas a minha agência era de concentração


Itamar – Na época, fiz o vestibular unifica- de piquete, então às vezes, tinha que ir pra lá.
do, a mesma prova para todas as universidades. Isso teve um ônus, a pessoa fica visada, mas
Com os pontos que fiz, cheguei bem perto de passou. Entrei no banco em 1982 e, em 1998,
entrar para o jornalismo vespertino da UFF pedi uma licença sem vencimentos. Em 2000,
[Universidade Federal Fluminense], mas acabei não voltei mais e pedi demissão.
ficando na Faculdade Hélio Alonso (Facha), em DV – Foi quando entrou para
Botafogo. Ter entrado na Embratel e na facul- a Fundação Bento Rubião?
dade ao mesmo tempo foi muito bom. Itamar – A fundação foi criada em 1986.
DV – Por que escolheu fazer No final de 1988, eu ia lá como voluntário. Em
jornalismo? 1991, eles pediram para eu coordenar uma
Itamar – Eu queria ser correspondente de pesquisa, apoiada pela Fundação Ford, sobre
guerra. As grandes revistas naquele momento, mudanças ocorridas nas favelas nos anos 1980.
as quais eu tinha acesso, eram Manchete e Isso me prendeu um pouco mais e comecei a
Fatos & Fotos. Era a cobertura da Guerra do ganhar um pró-labore. Até então, nunca havia
Vietnã, as grandes reportagens eram sobre ganho um tostão a partir do meu trabalho em
isso, eu fiquei interessado nesse outro mundo. movimentos sociais, isso me dava muita liberda-
Quando fiz o segundo grau, cursei técnico em de de ação. Foi muito duro para mim quando,
contabilidade porque meu pai achava que eu no final da licença-prêmio, em 2000, tive que
devia ser contador. Mas quando escolhi o jor- escolher e só receber da Fundação Bento Ru-
nalismo, queria tentar outras praias. O que me bião. Para mim, era um problema gravíssimo
motivou primeiramente foi isso, mas foi uma ficar na dependência de uma relação política
motivação que passou rapidamente também. de um projeto que ajudei a construir. E tinha
DV – O que o motivou a sair da também a questão do salário, não tinha mais
Embratel para o Banco do Brasil? alternativa, tinha que pensar na sobrevivência.
Itamar – Não queria fazer essa prova, já Mas não queria mais voltar para o banco, não
tinha tentado há muitos anos, quando estava tinha como suportar mais essa dualidade. O
com 18 anos, e não passei. Dessa vez, minha trabalho na fundação foi muito importante,
irmã foi fazer a prova, fui fazer companhia, conheci ali vários militantes e lideranças de
acabei passando, e ela não. Quando o banco outras favelas. Isso abriu muito meu leque de
me chamou, fui ganhar menos do que ganha- atuação em favelas, pude ir para zona oeste,
va na Embratel, mas trabalhava só seis horas, zona norte.
foi a glória. Nunca quis trabalhar em agência, DV – O Grupo ECO é o projeto da
sempre trabalhei na parte de apoio, saía dali, sua vida. Como funciona?
esquecia completamente o banco, ia para o Itamar – Eu falo que o Grupo ECO é o
Santa Marta, para a associação. O problema projeto da minha vida porque é mesmo. Tenho
disso é que fiquei 18 anos lá sem conseguir dificuldade de trazê-lo para as instituições
promoção. As promoções dependiam de fazer onde trabalho porque é um projeto autônomo,
hora extra, cursos, eu nunca fazia nada. Isso reflete muito a minha trajetória. Ele foi criado
tudo foi criando um desgaste. Por exemplo, por em 1976, com o Jornal ECO, foi o pontapé da
conta da organização da colônia de férias do minha militância. Em 1977, não se falava de
Grupo ECO, em janeiro, tinha que me ausentar ONGs, havia instituições de assessoria dos movi-
por 15 dias. Quando começa o ano, no Banco mentos populares e os movimentos de base. A
do Brasil, o funcionário tem direito a cinco dias partir de 1980, com a volta de muitos exilados,
de licença, que pode ser tirado quando quiser. começam a aparecer novas instituições, como
A outra semana eu faltava e pronto. Mas nunca o Ibase, que é de 1981. Dentro das favelas, há
fui um funcionário relapso, esse era um ponto uma relação de consultoria e assessoria com
de contradição na minha relação com o banco. essas instituições. Já no início dos anos 1990,
DV – Nem fez movimento político essa relação muda. A cooperação internacional
no banco? passa a financiar diretamente ações no próprio
Itamar – Fui delegado sindical, mas num território e os movimentos passam a se insti-
momento de mudança, quando o Ciro Garcia tucionalizar.
foi presidente do Sindicato dos Bancários, foi O Grupo ECO é um movimento, a gente
um momento difícil. Como delegado sindical, nasceu como um movimento para ampliar a
tinha que estar em todas as greves e piquetes, divulgação sobre a favela, mobilizar. Particu-
nunca ficávamos na própria agência de traba- larmente, tenho muita dificuldade quando as

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entrevista

pessoas chamam o ECO de ONG, pois ONG dentro da favela pra jogar Counter Stricke?’.
tem uma estrutura, uma institucionalidade. É Falei: ‘Hoje, qualquer jovem de classe média
necessário que tenha, senão, não sobrevive. Por joga Counter Stricke, por que esses jovens não
outro lado, acho superimportante ter flexibili- podem jogar? Por que é violento? Então, vocês
dade, estar mais próximo de movimentos que estão querendo dizer que eles vão se tornar
de instituições. Dentro do Grupo ECO, a gente marginais porque jogam Counter Stricke? E os
vive uma tensão forte entre ser uma instituição, outros, não?’. Foi uma luta grande.
uma entidade estruturada e essa possibilidade DV- Atuando em movimentos
de continuar a falar como movimento, não sei sociais e ONGs, quais diferenças
como a gente resolve essa tensão. identifica nessas formas
DV – A colônia de férias é sua de articulação?
iniciativa preferida no grupo? Itamar – As ONGs têm um lugar muito
Itamar – A colônia de férias é o projeto incômodo, sofrem a crítica dos movimentos
que mobiliza mais gente, são 300 crianças sociais porque esses não veem legitimidade na
de 6 a 12 anos, 50 monitores, todos foram atuação de uma ONG nessas relações, acham
crianças da colônia, e são 15 dias consecuti- que o lugar da ONG é sempre o de assessoria.
vos, de domingo a domingo. É uma atividade Houve um momento, principalmente durante
que tem uma repercussão grande, que exige as décadas de 1970 e 1980, que as ONGs ti-
muitos recursos. Imagina ter que deslocar dia- nham esse papel de assessorar os movimentos.
riamente quase 400 pessoas para algum ponto O trabalho direto, a intervenção, a mediação
da cidade. São necessários, no mínimo, seis a política estava dada para os movimentos. Hoje,
sete ônibus, é preciso criar uma dinâmica, uma há um deslocamento desse lugar do papel das
metodologia de lazer, brincadeiras, disputas de ONGS, pela ampliação do seu trabalho e da
conhecimento. E a gente faz isso tudo a cada sua atuação e mesmo pelas possibilidades de
ano sem ter certeza de que, no ano seguinte, novos contextos políticos, que vêm chamando
vamos ter recursos para fazer novamente. Todos as ONGs para outro tipo de atuação. Mas há
os meus amigos sabem dessa minha angústia, uma tensão entre os movimentos e as ONGs. Em
sempre em dezembro. especial, no movimento de favelas, essa tensão
A motivação para criar a colônia veio de é complicada porque como o movimento, ao
um vazio. Na volta das férias escolares, tinha menos no Rio, está fragilizado, as associações
aquela história de ter que fazer redação sobre não redefiniram o seu papel, às vezes, essa
as férias, quem viajou, quem fez o quê. Eu crítica fica muito despolitizada, passa a ser
nunca tinha viajado, não fazia nada diferente. uma crítica oportunista, carece de qualificação.
Ficar soltando pipa no morro, correr morro DV – E qual seria o papel da
acima, morro abaixo, isso eu fazia todo dia, associação de moradores hoje?
não era programa de férias. Uma colônia de Itamar – O lugar da associação mudou e
férias preencheria isso, de forma que as crianças a maioria dos moradores e das lideranças não
tivessem o que contar em seu retorno à escola. percebe. No início dos anos 1980, período de
Essa é a perversidade: há a mistura de classes redemocratização do país, havia novos ares
na escola, e a forma de condução reproduz as sendo soprados para as associações e uma certa
diferenças, os professores não percebem o que crença de que a transformação viria a partir
está acontecendo e o que aquilo pode produzir desse local e que essas instituições tinham um
em cada aluno. papel determinante na relação com o Estado,
DV – Além da colônia, a novos formatos políticos, nova cultura política,
informática é um ponto forte do junto com a discussão partidária, com a chega-
ECO, certo? da de novos partidos.
Itamar – Sim, o Grupo ECO inaugurou Na minha interpretação e na minha expe-
o ensino de informática no Santa Marta. Em riência também, a associação ficou refém da
1995, criamos a escola de informática, depois, burocracia e do fisiologismo, da relação com
criamos o primeiro curso de manutenção de o Estado. Poucas foram as entidades que con-
computadores, depois o FOL (Favela Online), seguiram manter uma certa autonomia nessa
uma rede intranet criada por jovens do nosso relação. A maioria ficou prisioneira não só do
morro pra conectar os jovens do Santa Marta Estado, mas das relações políticas e partidá-
e jogar Counter Stricke. Fomos muito criticados rias. Isso é uma contradição porque nós, do
na época por isso. Em um debate, perguntaram movimento de favelas, sempre dissemos que
para mim: ‘Mas como vocês colocam o jovem o Estado tinha que assumir a luz, a água nas

42 Democracia Viva Nº 42
Itamar Silva

favelas, essa sempre foi a nossa luta, a nossa


bandeira. Quando esse Estado chega, com essa
possibilidade, a gente reclama: ‘E aí, o que so-
bra para a associação fazer, qual o meu papel
nessa história?’ Aí, vem um nó porque não se
conseguiu coletivamente construir uma alterna-
tiva. Hoje, certamente, o papel da associação
mudou, mas a gente não conseguiu redefinir
esse papel. Há uma reprodução do que há de
pior, de tudo o que a gente não gostaria que
fosse, que é a cristalização de lideranças sem a
necessidade do respaldo da maioria, da base,
é um drama que estamos vivendo.
DV – Voltando a sua trajetória,
pelo que descreveu, com apenas 20
anos, você estava no meio de um
turbilhão, certo?
Itamar – Sim, digo que 1976 foi um ano
fundante na minha vida. Nessa época, descubro
uma outra igreja, conheço a família Boff, tanto
o Clodovis como o Leonardo; o Agostinho,
no Santa Marta, um grupo de jesuítas bem
interessante. Em 1980, estávamos começando
a discutir as teses do PT e tinha um grupo de
conhecidos de um amigo meu do Santa Marta
que estava em Goiás, na área de Juçara e Ita-
guaru, na passagem por Goiás Velho. Fiquei
20 dias por lá, durante as minhas férias, para
conhecer essa experiência. Foi quando conheci
Dom Tomás Balduíno, Dom Pedro Casaldáliga, voltei. Aí, vi que havia coisas mais importantes
isso tudo foi um marco para mim. E fiquei en- para fazer na favela, mas fiquei tentado.
cantado ao chegar no sul do Pará e encontrar DV – Quando entrou de fato para
uma comunidade sem padres, mas com irmãs a Pastoral de Favelas?
fazendo as celebrações. Foi um choque e uma Itamar – Na Pastoral mesmo, só vou passar
provocação muito grande. a atuar no início de 1977. A Pastoral começa
DV – Como foi essa viagem a se fortalecer no Rio de Janeiro. Ela compra a
ao Pará? briga contra a remoção do Vidigal. O advogado
Itamar – Essa viagem foi em 1981. No Bento Rubião assume essa causa e entra com
grupo da igreja do Santa Marta, tinha uma uma ação contra a remoção. A partir desse
menina chamada Denise Pena, que é sobrinha evento, a Pastoral passa a se reunir cada mês em
do Dom Alano, bispo do Pará, e foi trabalhar na uma favela. Antes de cada reunião, havia uma
área de saúde de lá e nos convidou para visitar. reunião preparatória, realizada uma semana
Aí entra muito a questão política que estava antes. Eu nunca fui agente de pastoral, nunca
quente na época nessa região, toda a história tive uma militância de grupo jovem de igreja,
do Araguaia, é uma região que concentra nunca fui contratado pela arquidiocese, mas
muitos militantes. Primeiro, fui para Marabá. sempre estive militando nessa área.
De lá vou para Palestina, região onde fiquei por Minha grande frustração, e posso dizer isso
mais tempo, onde há um dos entrucamentos hoje, é que existiam os cursos do Ibrades, curtos
da Transamazônica. Nessa época, trabalhava e longos, de formação de agentes para jovens
na Embratel, já estava há 31 dias no Pará e aqui no Rio, que eram muito bons, formavam
não queria voltar. Tive uma febre muito alta e gente do Brasil inteiro. Meu maior desejo era
estava justamente lidando com o pessoal que fazer um curso desses. Mas eles nunca me
tinha malária, por isso achei que fosse malária. convidaram. Nunca tive nenhum vínculo formal
Mas era só uma infecção porque lá eu comia de com a Arquidiocese ou com a igreja, mas nesse
tudo. Acabei voltando para casa, pensando em período circulei nessa praia.
resolver minha vida e um dia voltar. Mas nunca DV – Qual foi a importância dessa

MAIO 2009 43
entrevista

experiência para a sua formação? Rio. Na época, trabalhava no Banco do Brasil


Itamar – Foi fundamental porque a Pastoral e tinha um conhecido que era secretário de
foi o grande guarda-chuva da esquerda, ao Desenvolvimento Social, e me convidou para
menos na área urbana. Depois, quando veio coordenar o setor de Ação Social. Era um setor
a redemocratização, os partidos, a gente foi pequeno, então resolvi aceitar. Para isso, utilizei
percebendo quem era quem, quem estava no três meses de licença-prêmio. Foi muito difícil.
partido a, b ou c, quem era comunista, quem Cheguei no setor cujo coordenador anterior era
não era. A Pastoral abrigava todo mundo, era do PDT, um “brizolista”, um jornalista querido
um grupo de militantes, voluntários que se pela equipe, que também era partidarizada.
camuflavam ali como católicos militantes e essa Claro, eles tinham certa tolerância comigo
convivência foi muito interessante. Depois, cada porque eu era do movimento, era reconhecido,
um foi encontrando seu nicho. então não havia agressão direta, mas, também,
DV – Nessa atuação, sentia era de uma inércia, de uma letargia absoluta,
alguma tensão ou possibilidade de ninguém fazia nada naquele setor. Fiquei 15
repressão? dias tentando resolver coisas, mas não tinha
Itamar – Esse período foi de final de 1976 nenhuma informação. Depois, tive um proble-
a 1981. O movimento de favelas e a Pastoral já ma burocrático. A secretaria não conseguiu que
estavam entrando na pauta do direito, da ques- o Banco do Brasil me liberasse para fazer esse
tão do uso capião. Naquele momento, existia trabalho. Trabalhei três meses, de graça, voltei
o uso capião rural, de 20 anos, e já havia uma para o banco e deixei a secretaria. Confesso
briga jurídica para se conquistar o uso capião que não tenho saudade e dificilmente repetiria
urbano, que dava o direito àquela terra após essa experiência. A dinâmica do poder público
cinco anos de moradia. Fizemos parte dessa luta é complicada.
por esse instrumento que poderia permitir que DV – E quanto a uma candidatura
as favelas não fossem removidas. mesmo?
O que vamos sentir é que as disputas já es- Itamar – Candidatura ja-mais! Entrei no PT
tão acontecendo dentro do próprio movimento no final de 1981, a quarta zona foi minha base
de favelas. A Pastoral representa apenas uma de militância, fui do diretório nacional. Mas
parte desse movimento, havia outra parte que nunca pensei na possibilidade de me candida-
estava fora e chega por outras conotações, tar. Quando Gilson, meu tio, foi candidato, em
como o chaguismo. O movimento de favelas 1982, havia uma discussão de nomes e o meu
está marcado pelos autênticos, muitos no era uma das possibilidades, eu era presidente
guarda-chuva do MDB, e os chaguistas, que da associação de moradores. Mas acho que não
parte são do MDB, mas, na luta política, já se tenho perfil para parlamentar. Defendo a parti-
distinguiam entre progressistas e reacionários. cipação popular no parlamento, mas eu não sou
A grande disputa que vamos acompanhar a pessoa adequada para isso. Politicamente, é
nesse período foi entre Irineu Guimarães, que importante, mas não é a minha praia, não me
escolhemos para ser nosso ponta de lança, e vejo como parlamentar.
Jonas Rodrigues, que representava o chaguis- Acho que sou meio ingênuo no que se
mo. Essa disputa vai permear todo esse período refere à política. O que busco na minha vida
e vai permitir que novas lideranças apareçam é ser coerente com o que penso, mas a partir
nas associações de moradores de favelas. Vai do exercício da vida, nunca planejo muito, não
permitir também que se explicitem algumas tenho uma meta que queira alcançar, deixo as
diferenças. Por exemplo, o Irineu Guimarães coisas acontecerem. E tenho muito cuidado
passa de nosso representante a inimigo. Quan- de não ser incoerente, não pregar uma coisa
do vem a reformulação partidária, ele assume e fazer outra. Se me perguntarem se eu tenho
a sua porção MR-8, a gente descobre quais um medo na vida, eu tenho! De me pegar
são as correntes políticas nas quais cada um numa incoerência, de falar uma coisa e fazer
estava ancorado. outra, eu não gosto, acho feio. Todo mundo
DV – Na década de 1980, várias pode mudar, mas mudar de forma consciente,
lideranças comunitárias foram assumindo as consequências. Mas deixar que
chamadas para ser agentes a incoerência trace os caminhos é complicado.
administrativos. Você viveu DV – Como foi a experiência à
essa experiência? frente da Faferj?
Itamar – Vivi, foi em 1985, durante o Itamar – Foi muito interessante. Vou par-
governo de Saturnino Braga na prefeitura do ticipar dessa luta contra o Jonas Rodrigues ao

44 Democracia Viva Nº 42
Itamar Silva

lado do Irineu. A gente assume a Faferj em 1981 solvido que eu iria representar a Faferj. Só que,
e aí sai o primeiro jornal dessa nova direção. na reunião seguinte, o pessoal falou: ‘Não é o
Estava-se discutindo a reformulação partidária, Itamar, quem tem que ir é o outro rapaz, que é
aí já estou formado, terminei Jornalismo em comunista. Você não é comunista, Itamar’. Aí,
1980. Então, quis escrever uma matéria e, atre- me articulei bem. Fui para a Pastoral, discuti isso
vido que sou, quis escrever sobre reformulação lá, convocamos outra assembleia e articulamos
partidária. Na reunião de pauta, todo mundo todos os diretores e suplentes. Aí, ficou certo
concordou. que eu seria o representante do movimento de
Fui pra casa, pesquisei em várias publica- favelas nesse encontro.
ções, tentando ser jornalista ao extremo. Fiz DV – Foi a primeira vez que saiu
uma matéria de cinco, seis laudas, e mandei, do país?
porque nessa reunião eu não pude ir. Alguns Itamar – Foi mais do que isso, foi a minha
dias depois, quando o jornal saiu, fui ávido primeira viagem de avião. Nunca tinha ido ali do
procurar minha primeira matéria publicada. Não lado de avião e minha primeira viagem foi para
achei. Até que encontrei na segunda página um Moscou! Naquele momento, a empresa estatal
boxizinho sobre reformulação partidária. Fiquei soviética, Aeroflot, não fazia pouso no Brasil.
louco da vida. Aí é que me dei conta do que Tivemos que sair daqui de ônibus para Buenos
estava acontecendo, a Faferj já estava apare- Aires para pegar o voo para Moscou. Foi uma
lhada. Era um aparelho do MR-8 e não tinha viagem que reuniu um grupo de artistas brasi-
a menor chance de uma matéria que buscava leiros, Martinho da Vila, Fagner, a Blitz, e vários
uma certa isenção sair no jornal. Foi quando grupos culturais chilenos que cantavam músicas
me afastei, comecei a batalhar outras coisas, aí revolucionárias. Daqui do Rio, tinha gente do
já era oposição à Faferj, oposição à oposição. movimento negro, de todos os partidos.
Às vezes, a ficha cai na marra, não discuti isso Quando entramos na cidade de Moscou,
com ninguém, vivi esse momento e aí foi o
rompimento com o Irineu e com o grupo. E
vamos tentar construir um novo caminho até
voltar à Faferj depois, em 1984.
DV – E essa gestão foi mais
tranquila?
Itamar – Aí vai acontecer um outro proble-
ma. Estávamos durante o governo de Brizola,
a gente escolhe como presidente o Naílton,
de Vigário Geral, e são percepções diferentes
também. O grupo se agrega ao Brizola, passa
a ter uma relação muito direta com ele, que
investe na reforma da sede da Faferj. E o grupo
racha novamente, cada um vai para um canto.
Nesse período, um fato que ajudou nesse meu
afastamento foi que, naquele ano, acontecia
em Moscou o Décimo Segundo Encontro da
Juventude. Era um encontro internacional que
acontecia sempre nos países comunistas. Em
1985, esse encontro foi aberto para todas
as forças progressistas, de todos os partidos,
movimentos sociais.
Aqui no Rio, teve a participação do mo-
vimento negro, da Faferj. O James Lewis co-
ordenou a delegação brasileira, mas o Ivanir
[Santos] era o organizador. Um dia, ele chegou
pra mim e disse: ‘Da Faferj, a gente queria que
fosse você, como fazemos isso?’. Eu disse: ‘Não
tem jeito, coloca em discussão na assembleia.
Entre os diretores que têm menos de 29 anos,
só tem eu e outro rapaz, vamos discutir’. Na
reunião, a proposta foi apresentada e ficou re-

MAIO 2009 45
entrevista

as estátuas de Lênin estavam por toda a parte, A gente não aprende África no colégio, ou
porque era aniversário da grande guerra pátria. melhor, aprende sim, mas de uma forma estra-
Havia cartazes, retratos. Foi uma euforia. Para nha. Boa parte da história que aprendemos é
mim, a imagem de Lenin era algo absoluta- sobre o Egito, Mesopotâmia, mas isso não leva
mente clandestino, toda a referência que tinha o nome de África. Passamos anos na escola
do leninismo, de publicação a broches, estava falando de uma determinada cultura, um de-
ligada à clandestinidade, ao que era perseguido. terminado território, mas descolado da África.
E quando chego ali, é o oposto, a ostentação. O que aprendemos sobre a África Subsaariana
Aécio Neves e Sérgio Cabral Filho estavam é aquela pobreza, aquela coisa folclorizada,
nessa delegação, mas participaram de outras escravos, quando, na verdade, é tudo diferen-
atividades. Cultural e politicamente falando, a te. Já estava muito impressionado com toda a
viagem foi muito importante. história de Ruanda e como o mundo olhou para
DV – O que representou conhecer esse enfrentamento, para essa chacina coletiva.
a África muitos anos depois? Parece que não nos damos conta de que são
Itamar – A África é sempre um tema inte- seres humanos que estão sendo dizimados, sem
ressante. A vida toda alimentei, como muitos a participação do mundo em torno disso. Quan-
negros brasileiros, e não negros também, essa do fomos ao Quênia, em 2007, por ocasião
questão de um olhar para a África. Mas há todo do Fórum Social Mundial, pudemos perceber
um desconhecimento, ignorância e preconceito também as diferenças culturais dentro de um
de pensar em uma determinada África. Quando mesmo país, perceber o que o Fórum produziu
fui a Moscou, parei no aeroporto de Senegal, no cotidiano daqueles países que participaram.
fiquei louco, pobre de mim. Volto a África DV – E a visita a Kibera?
quando vou a Tunísia, e encontro um país árabe, Itamar – Temos essa mania de onde chegar,
isso foi em 2006. Lá, não havia nada do que procurarmos favela. Lá no Quênia, encontramos
eu esperava, nem negros, ai meu Deus. Aí, fui uma superfavela, com 1 milhão de pessoas. Foi
aprender mais, entender que aquilo ali também muito estranho, porque todo esse processo que
é África, que a África fisicamente é isso, que vivi, e vivo, de pessoas que vêm visitar a favela,
tem essas diferenças. como uma invasão desse território, eu ali estava
procedendo da mesma forma. Era um invasor,
um turista, queria ser igual, mas ali eu era o
outro, era diferente, não tinha jeito. Isso foi
muito duro e difícil de lidar, essa contradição
nos acompanhou o tempo todo nessa visita
e foi muito importante. O aprendizado é ter
mais tolerância com as relações que vivemos
no cotidiano. Não tem uma receita, mas com
qual respeito, como se permitir relacionar, qual
o limite da aproximação dessas realidades.
DV – A visita a Angola, sendo um
país lusófono, foi diferente?
Itamar – Sim, Angola de fato é um país
muito mais próximo, irmão. Foi muito interes-
sante estar lá. Primeiro, pela questão política.
Sou da geração que lia os Cadernos do Terceiro
Mundo, acompanhei os movimentos de liber-
tação dos países africanos pelos Cadernos. De
alguma forma, tínhamos alguma informação e
uma certa idealização de que um continente so-
cialista, uma nova forma de organização política
estava acontecendo a partir dali. E Angola tinha
essa referência. Mas chegando lá, vou conhecer
um pouco mais da história recente de Angola e
perceber como a guerra, embora a gente pense
que é algo já distante, não é. A guerra civil foi
até 2002, estive lá em 2007, uma guerra que
separou gente, matou gente, as marcas estão

46 Democracia Viva Nº 42
Itamar Silva

fisicamente lá, nos prédios, nas pessoas, na de Nice, de uma noite no Meridien. Depois dis-
cidade. E a gente aqui, amigos Brasil e Angola, so, digo o seguinte: quero todas as mordomias
quase irmãos, assistiu ou nem percebeu que, possíveis quando elas forem possíveis, mas não
durante dez anos, essa população passou por posso perder a dimensão dessa realidade. E a
isso e ficou com essas marcas. Quando chegam volta ao Santa Marta é sempre interessante,
angolanos aqui e a gente discrimina, é impres- não só por encontrar a família, encontrar os
sionante para mim essa relação. O Brasil é o amigos, encontrar o meu lugar. É também a
país de maior população negra fora da África, questão de não me deixar levar pela vaidade.
mas, e vou dizer uma coisa forte: o Brasil não DV – Hoje, com a sua situação,
tem tolerância para os negros que chegam poderia sair do Santa Marta, morar
desta mesma África. O medo que as favelas em outro lugar. Não tem vontade
provocam nesta sociedade também os africanos de fazer isso?
que chegam recebem. E quando a gente chega Itamar – Nada na minha vida é uma decisão
em Angola, se depara com um país que tem pronta, é uma construção. Toda a história que
uma verdadeira idolatria pelo Brasil. Lá, se re- contei aqui com relação à família, a descoberta
produz e se consome tudo do Brasil, até aquilo de cada situação de desigualdade, vai refor-
que a gente não quer, que consideramos lixo çando em mim o quanto é importante estar
cultural, eles estão consumindo com a noção no Santa Marta. Pode ser arrogância da minha
de que ‘isso é Brasil’. E no entanto, isso não é parte, mas acho que contribuo de alguma forma
de mão dupla. Estou desafiado a pensar nisso, estando lá. Hoje, posso sair do Santa Marta,
a mudar essa história. talvez não da forma como eu gostaria. Porque,
DV – Essa experiência de viajar, parece paradoxal, mas eu também tenho so-
conhecer outros lugares, mas nhos burgueses. Quero uma casa grande, com
voltar para a favela, sempre, é uma varanda, voltada para o mar, isso é legal para
marca? todo mundo, não abro mão dessas possibilida-
Itamar – Gosto de viajar, gosto de conhe- des. Mas não tenho condição para isso.
cer novos lugares, mas essas experiências me Embora seja mais fácil, tento sempre resistir
encantam enquanto estou lá, eu aproveito, mas às saídas individuais. É mais fácil pensar no meu
isso não muda o que penso, não faz eu querer caso, mas eu tenho família, irmãos, amigos, é
deixar de estar aqui. A experiência mais forte um conjunto de pessoas das quais gosto muito
que já vivi nesse sentido, me fez rir muito de e que não têm essa mesma possibilidade. Já
mim mesmo. Em 2001, em fui a Nice, França, que, para sair, eu não posso levar todo mun-
e fiquei três dias hospedado em um iate, era do, prefiro transformar esse lugar. Se a favela
um encontro sobre energia. Não podia imaginar é digna para eu morar, ela tem de ser digna
que era possível tanto luxo dentro de um iate, para eu criar meus filhos, para que outros criem
foram três dias comendo do bom e do melhor, seus filhos, para que outros cheguem. É nisso
tomando vinhos. No último dia, não pudemos que eu acredito.
ficar no iate e tivemos de mudar para um hotel, DV – Acredita que outros
mas não nos mudaram para qualquer hotel, era moradores do Santa Marta pensem
o Meridien. Quando eu entrei no quarto, não dessa forma ou se considera
acreditei no que via, o tamanho do quarto, diferente?
a decoração, o banheiro era uma vitrine de Itamar – Não sei, isso é muito pessoal.
perfumaria. Acredito que esse não seja um sentimento
Curti bastante, no dia seguinte, tomei o majoritário, acho que muita gente que está no
avião de volta para casa. Cheguei no Galeão morro, quer sair. Trabalho com adolescentes e
chovendo. Peguei um táxi para o Santa Marta. faço com eles a seguinte dinâmica: daqui a dez
Quando cheguei lá, estava um temporal, o carro anos, pensa onde você vai estar, como estará
não tinha condições de subir. Da escadaria do a sua vida. O que me impressiona é que toda
Santa Marta, desce lama, em uma chuva forte, possibilidade de felicidade desses jovens está
se transforma em uma cascata de lama. E eu fora da favela. É raríssimo aquele que está bem
tinha que sair do carro. Saí, o carro foi embo- e que continua na favela, a maioria absoluta
ra, estava eu com uma mala na mão, olhando está fora. O drama disso é que a maioria vai
aquela cascata de lama descendo. Eu comecei a estar na favela daqui a dez anos, senão nessa,
rir, ri demais. Arregacei as pernas da calça, botei em outra. Isso porque a nossa mobilidade so-
a mala na cabeça e subi o morro às gargalhadas. cial é muito baixa. Ao mesmo tempo, eles não
Sempre fiz isso, mas, desta vez, estava voltando veem ali a possibilidade de construir um futuro

MAIO 2009 47
entrevista

Santa Marta. As pessoas reconhecem minha tra-


jetória, elogiam, mas, certamente, reconhecem
o envolvimento da família nas várias dimensões
da favela. Considero isso uma conquista.
Isso não foi uma receita, foi uma constru-
ção. Por exemplo, o Bloco Carnavalesco Império
de Botafogo, primeiro bloco do Santa Marta,
foi fundado em 1976, na casa do meu pai,
ele era presidente e eu fui diretor durante três
anos. Eu tinha que lidar com dinheiro, me meti
a fazer samba, o primeiro samba que ganhou
foi da minha autoria, tinha que organizar ala,
o nome da minha ala era Ala dos Atrevidos. É
uma mistura grande de estações, não dá para
separar, estamos misturados nessa dinâmica.
DV – Seus filhos estudaram no
Santo Inácio, um colégio particular,
e você chegou a levá-los para a
Disney. Como lidou com isso na
favela?
Itamar – Isso tem a ver com a minha carac-
terística de ir e voltar para a favela, sempre achei
que eles também tinham que exercitar isso. Mas
ter dois filhos estudando em um colégio que
concentra a burguesia carioca me trouxe vários
problemas. Por exemplo, nos aniversários dos
melhor, isso é o mais dramático. E é um ponto meninos, todos os colegas eram convidados e
que insisto muito com meus filhos, sempre digo: apenas dois iam a nossa casa para comemorar
‘O Santa Marta já foi pior, pode ser melhor. Mas com eles. Mas eu também não abri mão de
não adianta acharmos que vai ter uma solução fazer em casa, fazer em casa de festa não tem
mágica, é preciso que hoje e aqui estejamos porque, nossa casa é grande, sempre conversei
construindo para que o amanhã seja melhor’. isso tudo com eles. Eles sentiam um pouco,
DV – Recebe de seus filhos alguma mas têm tantos amigos, tantos primos, isso
pressão para sair de lá? é também uma dimensão legal da vida deles
Itamar – Dos meus filhos, não, da minha na favela. Meus filhos nunca foram criados
mulher, sim. Hoje, um está com 25 e o outro separados dos meninos do Santa Marta, por
com 21. Acho que, quando forem mais velhos isso não sentiam esse vazio, e as festas deles
e tiverem grana, vão escolher morar em outro sempre foram muito animadas.
lugar porque eles querem, um dia, morar so- DV – Comparando o Santa Marta
zinhos. Certamente, se tiverem dinheiro, não da sua infância e o de hoje,
vão querer comprar outro barraco. o que mudou?
DV – Os moradores veem sua Itamar – Agora, fica difícil fazer essa análise
família como elite? porque o Santa Marta está muito em evidência.
Itamar – Não sinto isso com a minha fa- A gente não pode olhar para essas mudanças
mília, talvez por misturar essa questão cultural a partir dos últimos seis meses, porque há
muito fortemente desde cedo, a Folia de Reis, uma exposição muito grande na mídia, um
o samba. Esse lugar que a família ocupa marca investimento desmensurado do Estado nessa
as nossas relações com a favela e a construção favela para ela ser exemplo. Mas digo que o
dela. A porta da minha casa está sempre aberta. Santa Marta vem mudando muito, ao longo
O fato de eu ter estudado poderia fazer com dos anos, fisicamente e na sua composição, e
que as pessoas me olhassem com certa distin- nas dinâmicas internas também.
ção, mas se chover, estou com os pés dentro da Se pensarmos que no Santa Marta, até
vala, limpando como todo mundo. Se cair um 1983, tínhamos que encher barril para pegar
barraco, uma caixa d’água, estou junto. Acho água, isso significava que ter um banheiro com
que isso também vai dando uma outra conota- descarga não era possível. Quem podia tomar
ção sobre o lugar que nossa família ocupa no banho de chuveiro em casa, com água enca-

48 Democracia Viva Nº 42
Itamar Silva

nada, aí sim era elite, isso só havia em meia mídia divulga, Dona Marta. Como
dúzia de casas. Isso tem rebatimento direto isso começou?
na saúde, no tratamento, na vida das pessoas. Itamar – O grupo do qual eu participo vem
Até 1982, a rede de energia elétrica era muito numa militância forte defendendo o nome de
ruim, chegava nove horas da noite, a luz caía. batismo, Favela de Santa Marta. Dona Marta
Quem tinha dinheiro para investir em um trans- entra na história porque o mirante chama-se as-
formador, tinha. O final dos anos 1980 são anos sim, o acidente geográfico chama-se assim. Mas
de mudanças e conquistas no Santa Marta. o nome de Santa Marta veio com o nascimento
Entra a Light em 1982, e aí há uma melhoria da favela, veio de toda a sua trajetória com a
fenomenal na questão da energia elétrica. Isso Igreja Católica. O padre Veloso chegou no pico
permite mudanças também no acesso à água, do morro, a pedra fundamental foi uma capela,
pois se tem um novo reservatório, uma nova e disse; ‘Como Maria e Marta receberam Cristo
bomba, que joga água diretamente para dentro para descansar, aqui vai ser um local de repouso
do morro. Assim, a maioria pode canalizar água desta comunidade’. Esse é o mito de origem do
para dentro de casa, pode ter um banheiro nome da favela, é um lugar de repouso desses
decente, com descarga, chuveiro, não precisa moradores. Isso é muito significativo, é um
mais colher água da chuva pela calha no te- lugar de repouso, mas também de resistência,
lhado. Isso também faz com que as pessoas lugar onde essa população construiu vida e vem
invistam mais nas suas casas. Se olharmos o até hoje. Por isso, é fundamental garantir essa
Santa Marta a partir dos anos 1990, há uma identidade. Quando a imprensa trata de Dona
mudança física mais por dentro das casas do Marta, está desconhecendo essa ocupação, essa
que por fora, é uma diferença abissal. Desde a trajetória, essa história, e está impondo outra
questão dos insetos, ratos, é um impacto direto história, outra dinâmica.
na vida dos moradores que quem está de fora DV – Como avalia a situação da
nem consegue dimensionar. comunidade desde a ocupação
Isso também impõe mudanças culturais, realizada pelo Estado, em
mudanças fortes de relacionamento entre os novembro do ano passado?
vizinhos, mudanças de organização, de circu- Itamar – Todas essas mudanças e a escolha
lação interna. Hoje, também há muito mais do Santa Marta como referência de legalidade
jovens estudando e há uma dinâmica, uma pelo governo do estado me preocupam bas-
sociabilidade a partir da escola bem mais inte- tante, porque as mudanças estão acontecendo
ressante, eles trocam mais, se apoiam mais, são com muita velocidade e os moradores não estão
mudanças perceptíveis. Em relação ao acesso à tendo tempo de absorvê-las, digeri-las. E de
universidade, ainda é uma mudança pequena, novembro para cá, tudo tem acontecido muito
mas já infinitamente maior do que quando eu rapidamente, sem a participação da população,
terminei a universidade. sem a reflexão dessa população, são mudanças
DV – Qual é a população do Santa impostas, e o saldo disso me preocupa bas-
Marta hoje? tante. Não importa se vai por um caminho ou
Itamar – Não há dados fechados sobre isso, por outro, é um caminho do qual a população
há uma discussão. O Grupo ECO, que eu coor- não tem as rédeas, não tem o controle desse
deno, afirma que são 1.500 domicílios e 7.500 amanhã. Essas mudanças físicas estão impon-
moradores. Documento recente da Secretaria do, por exemplo, uma valorização absurda das
de Obras do governo do estado aponta que são casas, um chamamento de entidades, pessoas,
1.300 habitações, o número de moradores bate turistas, e os moradores não sabem lidar com
com o apontado pelo Grupo ECO. Se nos base- tudo isso. A minha preocupação é que quando
armos na pesquisa feita em 2006 pela Semadur, a gente acordar, a cultura, a realidade local já
aponta que o Santa Marta tem 5 mil moradores vai estar completamente desenraizada.
e 1.200 habitações, se você perguntar para a DV – Como vocês estão lidando
associação de moradores, vai escutar que são 10 com a presença constante da
mil moradores. Mas não tem, ficamos entre os polícia?
5.800 a 7.500, sei que é uma margem grande, Itamar – Essa ocupação no Santa Marta
mas é por aí. Posso praticamente afirmar que traz a polícia como elemento central. A jus-
o Santa Marta está com 7 mil moradores, uma tificativa para ocupar é a presença do tráfico,
média disso tudo aí. todo mundo sabe que embora o tráfico no
DV – Existe uma polêmica em torno Santa Marta seja grande, o centro não está ali.
do nome Santa Marta e o que a O maior enfrentamento da PM não se deu no

MAIO 2009 49
entrevista

Santa Marta, que é um lugar controlável. Há mansa. Não há espaço para o exercício da sua
25 anos, o Santa Marta tem um DPO, um posto cidadania, da sua liberdade, da sua crítica.
de polícia na entrada do morro, desde a guerra DV – Como isso tem funcionado?
do “Zaca” e do “Cabeludo”. Há cinco anos, tem Itamar – Da mesma forma que não se
um outro DPO no alto do morro, na casa que podia criticar o tráfico, também não há espaço
foi do Marcinho [Marcinho VP]. Uma favela do para criticar a atuação da polícia. Ao primeiro
tamanho do Santa Marta tem dois DPOs, com momento de crítica que houve, a polícia reagiu
policiamento dia e noite, e continuam falando de forma violenta. Eles tinha proibido bailes
que o tráfico ali é a pior coisa do Rio de Janeiro, depois das duas horas da manhã, quando
tem alguma coisa errada. jovens, voltando de uma noitada, foram para
Ou esse tráfico não é tão ameaçador como rua e começaram a zoar, a fazer barulho perto
se diz, ou os acordos são muito fortes que do DPO. A polícia reagiu com cassetetes, com
permitam essa convivência durante muito bombas. Então, esses mesmos jovens que
tempo. É essa pergunta que a sociedade não sofrem quando o tráfico está presente, são os
se faz. E ela aceita esse discurso. Os moradores mesmos que sofrem o controle, a ação violenta
sofreram outros problemas de opressão, de falta da polícia. Nessa conversa com a comandante
de liberdade, com a polícia do seu lado e sem Priscila, que ocorreu em uma reunião aberta,
poder contar com essa polícia. São 120 homens, comecei dizendo que não ia falar para ela,
todos novos, se você olhar para os policiais que que eu respeitava o lugar dela, eu ia falar para
estão no Santa Marta, são uns garotos, todos os moradores. Já naquele momento, estava
no processo de capacitação, recebendo um preocupado com o muro. Eu digo, a polícia é
plus para fazer um curso e poder atuar nessa a polícia, por mais que a comandante Priscila
frente. Existe toda uma roupagem que sinaliza tenha a voz mansa, um olhar plácido, ela é a
para a sociedade que existe uma nova polícia, PM e tem que responder à lógica da PM. Se a
uma nova forma de lidar com isso. coisa apertar, ela vai agir como PM, não como
Por outro lado, essa inovação tem pouca amiga. Falei para os moradores: ‘Ou a gente se
consistência. Por enquanto, há muita descon- organiza e discute os nossos problemas entre a
fiança, até que ponto isso se sustenta? Acredito gente, com liberdade, e cria uma estratégia de
que o Santa Marta seja controlável, por isso o enfrentar esse momento, ou vamos ficar cada
Estado o escolheu. Agora, é replicável essa expe- vez mais subordinados à dinâmica do Estado’.
riência? Isso a gente vai ter de ver no processo. É o que está acontecendo.
Se, seguindo a proporção do que está sendo Por que cabe à polícia e à comandante
feito lá, a polícia tiver de colocar 120 homens Priscila decidir se uma festa vai até duas, três
em cada favela, vai ter de aumentar muito o ou quatro da manhã? Sobre isso, ela disse para
seu efetivo, abrir mais concursos públicos para mim: ‘O que vale para Ipanema, vale para o
a polícia. Se pegarmos como exemplo Rocinha, Santa Marta, lei é lei’. Eu disse: ‘Não, lei não é
Alemão, Manguinhos, Jacarezinho e pensarmos lei, as leis respondem a determinadas conjun-
nessa proporção para manter o controle, vai turas, a determinados arranjos sociais. Por que
ser complicado. algumas leis pegam lá embaixo e não servem
O problema também tem a ver com o aqui? Você aciona lá embaixo, mas quando
jeito como é feito. A princípio, a ocupação do aciona aqui, elas não têm resultado? E aprovei-
Estado é policial e se deseja partir para uma tando, se lei é lei, por que a comandante pode
ocupação social. Só que o protagonismo estava definir o horário? O que diz a lei? O que vai
sendo da Secretaria de Segurança. Tanto é que definir é um acordo entre esses moradores, essa
a comandante Priscila, que foi escolhida para convivência é que tem que definir quais são as
comandar esses homens, foi escolhida a dedo. normas possíveis aqui nesse lugar’.
É uma mulher, jovem, negra, muito tranquila, Então, essa mediação não é a polícia que
bem preparada, aguenta o tranco, e está lá. deve fazer, tem de ser outro elemento. Isso é
Essa mistura de mãe responsável, para onde complicado, é duro porque, na relação com a
todos os problemas convergem, essa imagem polícia, os moradores ficam nervosos, começam
que foi criada pela imprensa a partir dessa fi- a falar coisas, alguns não sustentam a denúncia
gura, é muito complicada. E isso eu falei para até o final, ficam com medo e a polícia vai neste
a comandante Priscila, porque para o morador ponto, ‘Prova!, Faz a denúncia!’, e a gente sente
de favela só existem duas possibilidades: ou ele a população recuando, isso não é diálogo. A
está sob a batuta do tráfico ou da polícia, ainda polícia já tem um lugar de poder reconhecido
que seja de uma polícia legalzinha, boazinha, e na relação com os moradores, já exerce essa

50 Democracia Viva Nº 42
Itamar Silva

opressão, essa subordinação. pequenas clareiras, plantam verduras próximos Participaram desta
DV – E a questão dos muros as suas casas e se beneficiam da convivência entrevista
nas favelas? com a mata. Esse é um exemplo claro de um Entrevistadores(as)
Itamar – Vejo com indignação a decisão do bom relacionamento entre esses dois espaços. Do Ibase:
governo do Estado de murar as favelas do Rio. Agora, nesse projeto de urbanização, a Ana Bittencourt
Pensei que havíamos superado essa alternativa nossa perspectiva era de que ou o Estado vol- Cristina Lopes
Diego Santos
quando conseguimos dissuadir o então vice- taria a perseguir a proposta inicial, que previa Dulce Pandolfi
-governador Luis Paulo Conde de construir muro a construção de plano inclinado nos dois lados Fernanda Carvalho
na Linha Vermelha, ao longo do Complexo de do morro, ou, aproveitando o hábito dos mo- Francisco Menezes
Gabriel Gonçalves
Favelas da Maré. radores, estimulariam atividades de educação Jamile Chequer
No entanto, a proposta reaparece com ambiental, valorizando essa convivência. No Laura Burocco
força, travestida de proteção ambiental e com entanto, o muro vem na contramão de tudo Marina Ribeiro
Mariana Dias
o apoio da mídia, em especial do jornal O isso e é um entrave na perspectiva daqueles que Nahyda Franca
Globo. Desta vez, o governador apelou para o querem e lutam por uma cidade democrática Patricia Lânes
argumento ambiental, procurando atenuar o e inclusiva. Renata Lins
Rogério Jordão
caráter discriminatório presente nessa política
que reafirma e cristaliza a segregação espaço- Convidados(as):
Cleonice Dias e
-social em nossa cidade. Mario Osava,
A opção de murar favelas e começar pela do Conselho Editorial
zona sul é a evidência de que a iniciativa tem um da DV; e
Paulo Magalhães,
caráter político eleitoral: visibilidade das favelas da CEF
nas áreas de maior poder aquisitivo da cidade.
O Estado quer mostrar que está contendo o Decupagem

crescimento das favelas. No entanto, a favela Ana Bittencourt


Diego Santos
onde vivo, ao longo dos seus mais de 70 anos
de existência, não expandiu sua área de ocu- Edição
pação. Pelo contrário, o Santa Marta encolheu Ana Bittencourt
seu território. Os moradores que vivem mais
Fotos
próximos à mata que ladeia a favela, entram
Marcus Vini
na mata para apanhar frutos, brincam em suas
Produção
Geni Macedo

MAIO 2009 51
artigo
Mario Osava *

Cuba e
Colômbia,
países parados
Cuba e Colômbia ainda mantêm internamente, cada qual a seu modo, muito do clima

de quatro décadas atrás. É claro que muitos aspectos mudaram desde que lá estive entre

1970 e 1972. Há mais restaurantes e cafeterias espalhados pela cidade, principalmente em

Cuba, Havana Velha, que recebe muitos turistas europeus. Também brasileiros e chilenos

a visitam em boa quantidade, me explicou o comissário da Copa Airlines. Já não é aquela

austeridade absoluta e forçada das décadas de 1960 e 70 nem do “período especial” da

década de 1990, de forte escassez após o fim do bloco soviético. Já há um certo patamar

de consumo, digamos de classe média, para quem tem CUC. Hoje, os cubanos estão

divididos entre quem dispõe dessa moeda conversível, equivalente ao dólar, e os que

sobrevivem com o velho peso. O CUC circula em Cuba desde 2004, valendo 26 vezes o

peso. Na verdade, substituiu o dólar, cuja circulação era permitida desde 1993, gerando

dois mercados paralelos. Bens e serviços que se compram com a moeda conversível não

são acessíveis à outra. Criou-se uma desigualdade qualitativa.


Mas muito ainda parece congelado no tempo. O bloqueio econômico imposto pelos Estados

52 Democracia Viva Nº 42
Unidos, desde 1962, continua o mesmo, de- gados milhões de trabalhadores pela guerra,
terminando muito da vida, dos dramas e dos pelas ameaças e atentados de todo tipo. São
sonhos cubanos. O Partido Comunista segue deslocamentos forçados dentro do país e para o
monopolizando o poder de forma inflexível, exílio, na tentativa de salvar a pele. Os desloca-
passando pelo seu crivo quase tudo que ocorre dos internos somaram 4,63 milhões de pessoas
na Ilha. Os expurgos ainda são a parte visível entre 1985 e 2008, segundo a Consultoría para
das reviravoltas na política e o anti-imperialismo os Direitos Humanos e Deslocamentos (Cohdes),
permanece dominante nas palavras de ordem de Bogotá. É pouco mais de 10% da população
e nas ações concretas. total. O governo admite uma cifra menor, 2,93
Na outra ponta do leque ideológico milhões, para um período menor, de 1997 a
latino-americano, a Colômbia também nos fevereiro de 2009.
remete a 40 anos atrás, ao clima do “Brasil, Um estudo da Comissão Colombiana de
ame-o ou deixe-o”. Boa parte da sociedade Juristas, conduzida pela advogada Lina Paola
colombiana, especialmente os movimentos Malagón, listou 2.694 sindicalistas assassinados
sociais, tem seus passos truncados pela arma- nos últimos 23 anos, 685 dos quais dirigentes
dilha do maniqueísmo armado. Quem não é e com total impunidade em 96% dos crimes.
governista, é guerrilheiro, terrorista. Além dos É preciso uma reposição acelerada de líderes,
assassinatos por razões políticas, ou interesses e nisso a Colômbia deve ser campeã, para
particulares mascarados de políticos, têm pro- manter minimamente ativos os movimentos.
porções terríveis os “desplazamientos”. São Grande parte das lideranças morre na tentativa
multidões expulsas das suas terras ou moradias de abrir terceiras vias, rejeitando a adesão a
pelo Exército, pelos paramilitares, a guerrilha, um ou outro lado da confrontação armada, a
o narcotráfico e outros agentes de força que dicotomia entre governo e guerrilha que sufoca
incluem bancos e Justiça (na Colômbia, há um alternativas e justifica o massacre.
movimento “viviendista” que resiste ao desa-
lojamento judicial de mais de 800 mil famílias
Comparações
inadimplentes do financiamento habitacional a
juros de 37% ao ano). Qualquer resistência ou Visitei Cuba em março de 2009, 37 anos após
atitude crítica pode significar risco de morte. ter vivido lá por dois anos e meio. Agora, com
Muitos, como os índios, camponeses, outros olhos, sem as ilusões revolucionárias
professores e sindicalistas, vivem sob perma- da década de 1960, me encantei com Havana
nente fogo cruzado. Em fevereiro, 17 índios Velha e sua restauração, um trabalho que talvez
Awá foram assassinados, 13 deles pelas Forças demande séculos. São milhares de edifícios,
Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), se- igrejas e solares monumentais que merecem
gundo a Organização Nacional Indígena da Co- reviver, após muitas décadas de deterioração.
lômbia (Onic). A guerrilha justificou o massacre Esse imenso patrimônio histórico, cultu-
acusando os índios de terem sido informantes ral e arquitetônico, construído nos séculos 16
do Exército. Por outro lado, muitos mais foram e 17, mais o centro de Havana, bairros como
os índios mortos pelos militares por suposta Vedado e Miramar e as longas “calzadas” rumo
colaboração com a guerrilha. Nos últimos sete à periferia, com seus casarões e colunas sepa-
anos, foram 1.303 assassinatos cometidos por rando as calçadas internas e descobertas, só so-
todas as forças em conflito, Exército, guerrilha, freram alterações pela ação do tempo nesses 50
polícia e paramilitares, e esses crimes se inten- anos da revolução cubana. A degradação pela
sificaram no inicio de 2009, denunciou a Onic. falta de manutenção teve como contrapartida
Parece haver um acordo mesmo entre tropas a conservação arquitetônica e urbanística da
inimigas para massacrar e expulsar os índios cidade, tal qual a encontraram os guerrilheiros
dos seus territórios, acusa Aida Quilcué, líder vitoriosos em 1959. Tivesse Cuba seguido a
indígena do Cauca, departamento do sudoeste lógica capitalista, boa parte dos bairros histó-
que concentra o maior número de índios na ricos teria sido substituída pelos arranha-céus,
Colômbia (ler a respeito entrevista na IPS, dis- shopping centers e edifícios modernos, como
ponível em <http://www.ipsnoticias.net/nota. ocorreu em São Paulo e no Rio de Janeiro.
asp? idnews=91817>). Fica claro por essa herança que Cuba
A debilidade do movimento camponês tinha, em 1959, uma elite e classe média urbana
e sindical na Colômbia é atribuída principal- de uma pujança econômica praticamente sem
mente à alta mortalidade dos seus líderes e similar na América Latina, em proporção à sua
ativistas, além do desterro a que foram obri- população. Algo diferente da imagem de país

MAIO 2009 53
artigo

* Mario Osava pobre e prostituído, “campesino”, que correu o Há uma farta mão-de-obra qualificada e ociosa,
Jornalista da agência mundo nas interpretações da revolução. de custo baixíssimo. Algumas centenas de dó-
de notícias InterPress A restauração de Havana Velha, uma lares (ou CUC) representam uma fortuna para
Service (IPS) e façanha do historiador Eusebio Leal, é provavel- o cubano comum de hoje. Estão disponíveis
membro do Conselho mente emblemática das lentas transformações centenas de milhares, senão milhões, de jovens
Editorial da revista que vive Cuba. Sua administração pela Oficina com formação universitária, cuja ocupação
Democracia Viva do Historiador tem autonomia, com um orça- remunerada em divisas pode ter um grande
mento próprio alimentado pela renda gerada impacto na economia cubana, com provável
internamente, principalmente pelo turismo e a repercussão na vida política. Para o regime, tem
exploração dos espaços e edifícios. Quase toda a vantagem de dinamizar a economia e trazer
a arrecadação é investida em restauração e pro- divisas sem os “inconvenientes” do turismo
jetos sociais do próprio “casco viejo” da cidade. que estabelece o contato entre estrangeiros e
A atividade libertou-se assim, em certa nacionais. Mas só será possível com uma inter-
medida, do sufocante controle que exer- net rápida, menos controlada, e a disposição
cem a burocracia e as rígidas regras sobre a governamental de abrir o país a essa atividade
economia, a política e todos os setores da econômica. Os jovens com quem conversei so-
sociedade. Um restaurante, por exemplo, ain- bre isso são meio céticos. O regime terá outras
da que privado, não pode adquirir produtos prioridades quando o cabo de fibra ótica que
hortícolas diretamente dos produtores, nem se está implantando entre Venezuela e Cuba
mesmo autoabastecer-se contando com uma permitir uma banda larga de fato, acreditam.
chácara própria. É um país ainda amarrado Não se vislumbra nenhum movimento
pela vigilância que aparentemente se exacer- social ou político interno que possa romper
bou pela pressão das “ameaças imperialistas”, as amarras econômicas e políticas. O processo
do bloqueio econômico, em um ambiente de vivido por Cuba nestes 50 anos não fortaleceu
Guerra Fria, e não parece perto de nenhum a sociedade civil, sua participação, sua mobili-
abrandamento – a julgar pelo recente expurgo zação, pelo contrário. Os Conselhos de Defesa
do ex-vice-presidente Carlos Lage, mentor dos da Revolução, organizados nos bairros, hoje em
ajustes econômicos da década de 1990, e do nada lembram o ativismo do inicio da revolução.
ex-chanceler Felipe Perez Roque. Isso faz concentrar as esperanças em um fim
Mas o aspecto que mais impressiona ou relaxamento do bloqueio americano. São
um observador estrangeiro é a quantidade incertos os rumos econômicos. Uma informação
de graduados universitários ocupados em que me surpreendeu foi a de que Cuba hoje
atividades muito abaixo e discrepantes da sua importa açúcar, depois de desativar a maioria
formação. Engenheiros trabalhando como ta- das usinas.
xistas, economistas na recepção de um hotel, Algumas mudanças setoriais são sensí-
biólogos trabalhando em bares. Cuba virou uma veis em Cuba. Já não se reprimem os homos-
grande exportadora de médicos. Os diploma- sexuais, tidos como contrarrevolucionarios nas
dos excedentes se encontram por toda parte, décadas passadas. Mas isso se deve à atuação
em uma inflação educacional que desmoraliza de Mariela Castro, filha do agora presidente
qualquer planejamento. Uma faculdade de Raul Castro, uma psicóloga que defende a
informática forma cerca de 2 mil engenheiros diversidade sexual.
ao ano, quase todos condenados a subutilizar As boas relações atuais de Cuba com
seus conhecimentos em um país onde a banda Colômbia indicam que tudo mudou nas ques-
larga de Internet ainda é um sonho distante, tões que interessam aos dois lados e acabam
mesmo para profissionais de comunicação, por contaminar todas as lutas políticas e sociais
como correspondentes internacionais. Uma da Colômbia, sobrando violência principalmente
linha dedicada de baixa velocidade custa cerca para aqueles que, como os índios, têm seu
de mil dólares mensais. Resultado: o sonho de território disputado. O presidente Álvaro Uri-
muitos desses jovens é emigrar, tentar a sorte be trata de identificar a guerrilha como única
e realizar-se profissionalmente no exterior. São inimiga, identificando com ela toda oposição
raros os autorizados a fazê-lo por ter parentes incômoda.
fora ou algum dos limitados esquemas para
sair da Ilha.
A situação favorece a transformação de
Cuba em uma grande fornecedora de serviços
de offshore outsourcing, a exemplo da índia.

54 Democracia Viva Nº 42
MAIO 2009 55
r e s e n h a

anos da ONG.
As imagens presentes no livro foram
feitas por sete correspondentes comunitários
do Viva Favela, isto é, jovens moradores
de favelas cariocas que foram treinados
como fotógrafos para registrar o cotidiano
das suas comunidades. A princípio, cada
correspondente era responsável por registrar
a sua comunidade, mas logo decidiram que
registrariam também outras favelas, resul-
tando nesse variado panorama das favelas
cariocas presente no livro. Deise Lane, do
Complexo da Maré; Nando Dias, da Rocinha;
Rodrigues Moura, do Complexo do Alemão;
Tony Barros, da Cidade de Deus; Walter
Mesquita, ex-correspondente de Queimados
e atual editor de fotografia do portal; além
Viva Favela das ex-editoras Kita Pedroza e Sandra Del-
gado são os fotógrafos que registraram o dia
Editora Olhares
a dia em favelas como Rocinha, Mangueira,
120 págs.
Morro do Cavalão (Niterói), Cidade de
Deus, Queimados, Cantagalo, Complexo da
Lançado no dia 31 de março, na Livraria Maré, Complexo do Alemão, Carangueijo,
Folha Seca, no Centro do Rio de Janeiro, Pavão/Pavãozinho, Morro da Providência,
o livro Viva Favela é composto por cerca Salgueiro, Morro da Formiga, Morro Santa
de 50 fotografias retiradas do acervo de Marta, entre outros.
quase 50 mil imagens de favelas cariocas, As lentes dos fotógrafos buscam a
produzidas desde 2001 por corresponden- beleza e a poesia na simplicidade do co-
tes comunitários do portal Viva Favela. As tidiano das comunidades e mostram que
imagens revelam uma favela desmistificada, favela é muito mais que miséria, violência e
na qual não predomina o lado espetacular, narcotráfico, sem, no entanto, deixar de lado
normalmente explorado pela imprensa, nem os problemas das comunidades, servindo
a visão estereotipada, comum àqueles que também como ferramenta de denúncia. Em
não conhecem a realidade das favelas e outras palavras, valoriza-se o aspecto huma-
propagam o preconceito e o distanciamento. no das favelas: as alegrias, as dificuldades,
Nas palavras de Zuenir Ventura, que escreveu as tristezas e as manifestações culturais do
o prefácio, as fotografias do Viva Favela cotidiano dos moradores de favelas, uma
“substituem a velha atitude generosa, mas realidade muitas vezes desconhecida pelos
paternalista e distante, por um olhar natural, moradores do asfalto. Crianças brincando,
de dentro, sem estranhamento etnocêntrico”. mulheres trabalhando, jovens dançando no
A edição do material foi realizada pelo Viva baile funk, a tristeza daqueles que perderam
Rio, em parceria com a Editora Olhares, filhos na chacina da Baixada, um muro
para a ocasião das comemorações dos 15 repleto de buracos de balas, resultado de

56 Democracia Viva Nº 42
conflitos entre traficantes e policiais, e o cariocas, levando de volta para os lugares
sincretismo religioso brasileiro são alguns onde foram feitas as imagens premiadas em
dos temas retratados. âmbito internacional.
Grande parte das fotografias que Além das fotografias, integram o livro
compõem o livro integrou a exposição itine- Viva Favela artigos (em versão bilíngüe
rante Moro na Favela, que foi fruto do Open – português e inglês) do diretor executivo
Society Institute Documentary Photography do Viva Rio, Rubem César Fernandes, dos
Distribution Grant, prêmio internacional de responsáveis pelo projeto editorial, Otávio
estímulo à fotografia documental acerca dos Nazareth e Mayra Jucá, que também é coor-
direitos humanos, conquistado pelo Viva Fa- denadora do Viva Favela, e do professor da
vela em 2005, em Nova Iorque. Durante um New York University e da The New School
ano, a exposição percorreu as comunidades University, Peter Lucas.
A coordenadora do portal Viva Favela
relembra a sua inauguração, o primeiro portal
da internet totalmente dedicado ao cotidiano
dos moradores das favelas do Rio de Janeiro,
em 2001. A iniciativa, segundo Mayra, partiu
do estímulo de moradores de favelas que
buscaram o apoio do Viva Rio para tentar
mudar a forma como eram retratados pela
imprensa. “Através do projeto, surgiram,
Nando Dias

pela primeira vez na internet, reportagens


fartamente ilustradas e ensaios fotográficos
que contribuíam para aproximar, desmis-
tificar, instigar a curiosidade dos ‘de fora’
e restaurar a autoestima dos ‘de dentro’ da
favela”, explica.
Em seu artigo, Peter Lucas reforça a
posição da coordenadora do Viva Favela, ao
defender que o portal não é apenas uma revis-
ta online sobre as comunidades cariocas, mas
Tony Barros

sim uma espécie de ponte virtual que busca


encurtar as distâncias entre as realidades da
favela e do asfalto, sem depender da mídia:
“É parte de um movimento internacional de
inclusão visual para transformar a mídia do-
minante. Um de seus objetivos é influenciar
a maneira como a grande imprensa retrata as
favelas”, escreve.
Walter Mesquita

Graciela Bittencourt
Jornalista, assessora de imprensa do Viva Rio
Pedidos: <www.editoraolhares.com.br>

MAIO 2009 57
do planejamento regional e urbano às utili-
zações das novas tecnologias da cartografia,
passando pela história e antropologia como
subsídios do trabalho de pesquisa. Vendo
e lendo livro algum, catálogo de arte com
expressões da geografia cultural, o trabalho
nos remete a um segundo pensamento, que a
geografia no Brasil tem uma feliz ancestra-
lidade que Rafael dos Anjos bem preserva.
Olhando o trabalho, me lembra as
ricas ilustrações e destreza da cartografia e
geografia de gênio intelectual de Theodoro
Sampaio do século retratado nesse livro.
Vendo os refinamentos de detalhes etnográ-
ficos me lembra o piauiense Julio Romão
da Silva. Andando pela densidade teórica
Quilombos – do texto, mas pela simplicidade e clareza
Geografia africana, da exposição, temos o pensamento em
Milton Santos. É livro bonito, bem escrito,
cartografia étnica com uma composição gráfica impecável,
e territórios onde o texto baila como uma explosão de
tradicionais fotografias e mapas que nos permite uma
viagem pela história e pelos ambientes
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos
Editora Mapas & Consultoria geográficos de origem da população afri-
190 págs. cana que transplantam para o Brasil e suas
expansões. Atesta que o africano, apesar
de submetido ao escravismo criminoso,
A criatividade e a perfeição talvez sejam colonizou o Brasil com as suas bagagens
as paixões do autor Rafael do Anjos. Estas culturais e econômicas, dando origens a ci-
ele as utiliza na riqueza dos resultados clos das economias agrícolas, mineradoras
da pesquisa que deu origem ao livro e na e pecuárias brasileiros.
qualidade da exposição que nos põe diante A introdução ao texto, feita em cinco
de um catálogo de arte sobre a ancestrali- línguas, das quais se destaca o Kikongo,
dade africana e sua espacialidade no Brasil da região de Angola, Congo, bem explica
na qual o livro se transformou. O autor é o projeto da obra, nos abres para o Brasil
geógrafo por formação e por paixão, ver e como território constituído pelas matrizes
ler esse trabalho nos faz refletir sobre dois africanas, noções não muito usuais nas ci-
fatos importantes. O primeiro é sobre a plu- ências humanas brasileiras, mas de preciosa
ralidade da formação do autor, que transita referência para quem queira compreender a

58 Democracia Viva Nº 42
r e s e n h a

complexidade da nossa formação social e Anjos na literatura da imagem cartográfica-


econômica. A geografia como ciência dos -fotográfica nos traz a poesia do concreto
territórios, nas suas dimensões múltiplas da África para o Brasil, em sequências
inter-relacionadas, processando a cultura, temporais territoriais.
a política, a economia, e produzindo povos Do texto, por fim, aprendemos as
expressivos pelas suas identidades. Todas tipologias das construções e das diferen-
essas dimensões postuladas numa amálga- ciações de vilas quilombolas, produzindo
ma da fotografia, da cartografia e do texto uma rica possibilidade de reflexão para os
como suportes de expressão e reflexão. cursos de arquitetura e urbanismo brasileiro
São os desenhos da nação impostos pela que têm uma dificuldade em expor o fator
expansão econômica escravista. Mas as humano da moradia e da racionalidade do
reações impostas pelos signos da liberdade espaço construído numa perspectiva de
na constituição de um enorme legado qui- Brasil. Rafael nos remete muito mais além,
lombola, de uma diversidade de formas de via uma perspectiva da espacialidade afro-
morar, construir e se inscrever nos espaços -brasileira.
geográficos. O trabalho encontrado neste livro-
Em suma, retomando a tese do an- -catálogo de referência encanta os leitores
tropólogo Frances Roger Bastides, o Brasil e pode ser tido como referência obrigatória
é um território de contrates e complexida- para compreensão da história e cultura
des. O texto é uma memória histórica e brasileira.
geográfica da saga das matrizes africanas
no território brasileiro. Um texto que serve
de referência para diversos públicos e que
comporta diversos olhares. Temos nesse
livro uma contribuição muitíssimo bem-
-vinda para introdução da história e cultura
africana e afrodescendente nos vários graus
educacionais, desde o fundamental ao en-
sino universitário.
Dadas as apresentações das imagens
textuais de África e Brasil, vendo, lendo
e relendo esse livro de Rafael, as minhas
inspirações viajaram pelos textos literá-
rios da Casa D’água, do escritor Antonio
Olinto, que faz a mesma viagem de Rafael Henrique Cunha Junior
Professor titular do Programa de Pós-
no sentido inverso, indo do interior do graduação em Educação Brasileirar da
Brasil, na saga de mulheres negras, para o Universidade Federal do Ceará
interior da África, explorando os conteúdos Pedidos: <quilombo@unb.br>
das falas e dos cheiros. Aqui, Rafael dos

MAIO 2009 59
artigo
José Correa Leite *

Belém
2009:
o Fórum O Fórum Social Mundial (FSM) 2009, que se realizou em Belém do Pará, porta de entrada

para a Amazônia brasileira, representou uma grande experiência socioambiental para

o altermundialismo. O encontro com movimentos de povos indígenas da Amazônia,

dos Andes e de todo o continente, de ribeirinhos, quilombolas e extrativistas, foi, nesta

escala e como diálogo político entre semelhantes, inédito para a esquerda brasileira e

internacional e para seus atores “clássicos”.

Os movimentos indígenas apresentaram para o debate elementos articulados

de uma proposta alternativa para a sociedade, oposta ao insaciável mundo capitalista

em crise – produtivista, industrialista, predatório e consumista, baseado no desper-

dício e na descartabilidade – e também de seu marco político, o Estado nacional.

Sustentaram a proposta de um mundo descolonizado, baseado em justiça ambien-

tal, bens comuns e no bem viver, articulado a partir de direitos coletivos em Estados
plurinacionais. E começaram a construir uma aliança estratégica com o movimento global por

60 Democracia Viva Nº 42
justiça climática e com a nascente coalizão de Mas esse é um aspecto acessório ao
povos sem Estado. evento. Constituíram-se, na última década,
O diálogo aberto pelos movimentos vários “fóruns” para encontros e confrontações
da Panamazônia e da região andina com um entre movimentos, partidos e governos, em reu-
vasto leque de atores sociais e políticos no niões de cúpulas e contracúpulas (a última das
plano continental e mundial pode ser crucial quais foi em dezembro de 2008, em Salvador).
para reconstruir um marco estratégico de luta Mas só o FSM se destina a compartilhar experi-
por uma integração regional alternativa e pela ências, construir alianças, organizar campanhas
transformação social frente a um capitalismo e estimular a reflexão estratégica de entidades
em crise e um planeta que caminha para o e movimentos da sociedade civil. Sem o reforço
colapso ambiental. e a defesa da autonomia dessas organizações
Mas nada disso foi destacado pela im- (e do próprio Fórum), parece evidente que
prensa ou valorizado por alguns dos que com- qualquer força política progressista que alcance
pareceram ao FSM 2009. Terminado o evento, um governo permanecerá refém dos que detêm
abriu-se uma disputa pela sua “interpretação”, o poder econômico e não será capaz de fazer
que está se dando sob a forma de “avaliações” jus a seus compromissos de mudança social.
do Fórum. Mas nenhuma dessas críticas parece
A crítica mais contundente não veio, relevante quando examinamos as atividades
desta vez, da direita, já que os porta-vozes de estruturantes do FSM 2009. Encontramos
Davos estão desmoralizados pela crise global. nelas um cenário em tudo oposto a isto: uma
O discurso buscando a desconstrução do FSM importante rearticulação de iniciativas de mo-
está partindo, agora, de diferenciadas forças da bilizações e lutas globais (estagnadas depois de
esquerda institucionalizada ligadas a alguns go- 2003) e, antes de tudo, uma reflexão inovadora
vernos do continente. Aí se somam posições in- na mais grave conjuntura desde a Segunda
comodadas, seja com o tom geral das atividades Guerra Mundial. Para aqueles com abertura
deste Fórum, fortemente crítico à administração para o novo na história e capacidade de escuta,
Lula – por seu compromisso com o capitalismo encontramos em Belém, principalmente nas
globalizado e uma economia voltada para fora, atividades que convergiram em assembleias
que emergiu claramente nos debates sobre a no dia 1º de fevereiro ou em sínteses políticas,
Amazônia e o “modelo de desenvolvimento” uma profunda renovação da elaboração política
–, seja com as críticas de movimentos sociais radical. O FSM 2009 em Belém poderá, para os
indígenas aos limites de outros governos da que buscam novos caminhos para a esquerda,
região com posições mais à esquerda – como passar para a história como o mais importante
a dos indígenas equatorianos que combatem evento na trajetória do processo.
a lei mineira proposta pelo governo Correa.
O desconforto resulta em discursos que
Ciclos de luta e mobilizações
dizem ser o Fórum um desperdício de energia,
pelo que consideram uma rejeição da política Belém consolidou, a partir de uma nova
pelo social (como se eles pudessem ser contra- metodologia (assembleias de convergências
postos nos projetos de transformação da socie- temáticas e a Assembleia das Assembleias – ao
dade), a negação do que veem como radicali- final, sistematizada pela reunião do Conselho
dade política (que seria privilégio dos governos Internacional do dia 2 de fevereiro), um ca-
ou partidos de esquerda) ou o protagonismo lendário bastante integrado e consensual de
das ONGs oposto ao dos movimentos sociais mobilizações globais para 2009-2010 – onde
(fazendo vistas grossas às clivagens políticas tem destaque a solidariedade com a Palestina e
que perpassam as duas formas de organização). as mobilizações contra o G-20 (28 de março a
Como caricaturas, estes “balanços” já 4 de abril), em defesa da Terra (12 de outubro)
estavam previamente escritos e são agora pu- e por justiça climática contra o que se desenha
blicados em uma operação de “copia e cola”, nos acordos de Copenhagen (12 de dezembro).
sem qualquer exame detido do que se passou Esse calendário será agora testado pe-
em cerca de 2 mil atividades realizadas no FSM. los movimentos, organizações e entidades do
Na mesma direção e ecoando essas posições, “mundo FSM” no seu diálogo com o conjunto
como era de se esperar, a grande mídia cobriu dos movimentos e a sociedade civil global, em
o Fórum essencialmente como o encontro um processo que pode permitir retomarmos
entre chefes de Estado latino-americanos de uma iniciativa análoga à vaga de mobilizações
esquerda. globais de 1999 (Seattle) a 2003 (protesto

MAIO 2009 61
artigo

imposta por Bush, depois da invasão do Iraque,


Fotos: Samuel Tosta / FSM 2009, Belém/PA

em 2003, mudança alavancada pelo ciclo de


forte expansão econômica mundial de 2002
a 2008.
O FSM 2005, em Porto Alegre, já se re-
alizou em uma conjuntura mundial muito mais
adversa, sem que o movimento global tivesse
novas propostas ou capacidade de sustentar o
patamar prévio de mobilização. Fragmentação
e recuo dos movimentos específicos para os
marcos nacionais ou regionais deram a tônica
global nesse período, com a dinâmica de busca
de alternativas na América Latina diferenciando-
-a dos demais continentes (o recuo político na
Europa não foi tão grande como nos Estados
Unidos sob Bush, mas ainda assim foi significa-
tivo). Desenvolveram-se, na nossa região, gran-
des diferenças entre as dinâmicas nacionais,
seus movimentos sociais e os governos ditos
“progressistas” – já presentes em Porto Alegre,
em 2005, no contraponto entre um ato de Lula,
contra a invasão do Iraque). organizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT),
Em suas primeiras edições, o FSM foi e um de Chávez, organizado pelo Movimento
o espaço de articulação do calendário de mo- dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
bilizações contra a globalização neoliberal e As iniciativas do processo Fórum busca-
a guerra. Mas foi capaz de fazer isso porque ram, nestes anos, preservar as conquistas dos
conseguiu consolidar a agenda política da es- quatro primeiros eventos centralizados – sus-
querda da virada para o século 21, inspirando tentando uma ilusão de expansão em 2005 (em
grande número de entidades e movimentos. Porto Alegre), tendo mais sucesso no evento
Ele soube captar as experiências e aspirações descentralizado de 2006 (Caracas, Bamako
da pluralidade de atores que, depois de Seattle, e Karachi), conhecendo uma desacumulação
confrontavam abertamente o G-8 e as insti- importante em 2007 (Nairóbi) ou mantendo
tuições multilaterais, buscando alternativas de uma posição simbólica em 2008 (Dia de Ação
sociedade em escala global. Global). Mas embora nossos fóruns tivessem
O processo desenvolvido em Porto Ale- sido mais ou menos bem sucedidos, eles não
gre de 2001 a 2003 foi bastante enriquecido substituíam os atores que neles se articulavam.
em Mumbai, em 2004. Nesses eventos, os As determinações fundamentais do que se ex-
atores fundamentais da esquerda que ainda pressa no FSM sempre estiveram nas lutas e nos
mantinham uma perspectiva antissistêmica se movimentos da sociedade civil, na vitalidade de
recompuseram e voltaram a criar uma autoi- seu tecido associativo, nas relações de forças
dentificação em escala global, segundo novos globais, nas determinações sociais, geopolíticas
parâmetros, distantes daqueles da esquerda e ideológicas, e não em sua dinâmica interna. E
do século 20, embora ainda reconhecíveis por é bom que assim seja – algo que nunca é aceito
ela (o que não deixou de provocar uma forte pelos críticos do FSM.
reação negativa dos que não conseguiram dar Agora, essa dinâmica parece ter se al-
esse passo – em Mumbai, tivemos até mesmo terado de forma significativa em Belém, tanto
um Fórum paralelo promovido pelos partidos pela crise econômica como pela ação dos seus
maoistas). Tratava-se, em geral, de uma es- sujeitos sociais. A crise é exemplar da acelera-
querda plural e diversa, fortemente internacio- ção do tempo histórico: propostas por décadas
nalista, estruturada horizontalmente em redes consideradas utópicas e irrealistas (como a
e coalizões e critica, não só ao mercado, mas estatização do sistema financeiro dos Estados
também ao estatismo. Unidos), em questão de semanas, não apenas
Mas esse movimento, do qual o FSM é entraram na agenda política do mainstream
uma expressão, não foi capaz de enfrentar a como estão sendo efetivadas por ele. Ela mos-
mudança na correlação de forças estabelecida tra também que se mudanças e reformas não
pela militarização das relações internacionais ocorreram, não foi por falta de recursos, mas

62 Democracia Viva Nº 42
Belém 2009: o Fórum mais importante

por falta de vontade política (e correlação de crítica ao Programa de Aceleração do Cresci-


forças). Contudo, a grande novidade de Belém mento (PAC) do governo Lula no Brasil e sua
foi a presença de novos atores políticos e de projeção continental, a Iniciativa para Integra-
novas demandas de velhos atores, que tem con- ção da Infra-estrutura Regional da América do
dições de oxigenar todo o movimento global, Sul (Iirsa), formulada por Fernando Henrique
oferecendo-lhe agora um norte e um impulso Cardoso (FHC) e alavancada por Lula – expres-
igualmente inovador e radical. sões de um modelo de “desenvolvimento”
destrutivo, extrativista exportador, onde co-
munidades são expropriadas de seus territórios
Nova agenda para a esquerda
e represas, rodovias e portos são construídas
antissistêmica
para impulsionar a mineração, a siderurgia,
A vitalidade política que se expressou em Belém a geração de energia e o agronegócio, cujos
renova, de forma significativa, o processo FSM. produtos são destinados ao mercado mundial.
Ela pode, se consolidada, relançá-lo para um Construímos represas para produzir
protagonismo análogo ao de seus anos iniciais, alumínio para a China ou destruímos a floresta
ainda que com uma arquitetura e com atores para exportar carne e soja para os norte-ameri-
muito diferentes. canos e europeus! Externamente, há um claro
O FSM 2009 foi muito diferente dos imperialismo (ou subimperialismo) do Brasil,
fóruns anteriores – talvez o de Mumbai tenha com Brasília respaldando todo tipo de atitu-
sido o que mais dele se aproximou. Foi um des questionáveis das corporações brasileiras
fórum no qual, ao lado de todas as atividades na região. A pergunta feita pelos movimentos
auto-organizadas pelos atores tradicionais, de justiça ambiental no Brasil e na região é:
tivemos a atuação central de uma série de “progresso” para quê e para quem?
atores sociais amazônidas, até então pouco A tonalidade marcadamente antidesen-
presentes no processo: populações indígenas, volvimentista (isto é, antimercado global) dos
quilombolas, ribeirinhos, extrativistas. E tam- atores populares sul-americanos que compare-
bém uma presença importante dos movimentos ceram a Belém foi reforçada pelo diálogo com o
indígenas da região andina, que vêm susten- movimento por justiça climática lá presente, que
tando, nos últimos anos, forte mobilização e há muito vem apontando o caráter predatório
atividade política – que explica o sucesso e a do crescimento capitalista e de seu modelo de
conflitividade de governos progressistas como sociedade – e rejeita as propostas paliativas
os de Evo Morales e Rafael Correa. que estão sendo construídas pelos governos
Isso introduziu no foco da discussão a

MAIO 2009 63
artigo

nas negociações para a Cúpula de Copenhagen tina Kirchner, como Obama e Sarkosy, apostam
sobre o clima (em dezembro de 2009). no subsídio à venda de automóveis, reforçando
Isso cria um forte conflito com o gover- as emissões de carbono, o caos urbano e a
no Lula no Brasil, em especial nos projetos para desigualdade social. E com o apoio entusiástico
a Amazônia e no seu vínculo umbilical com o dos sindicatos de seus países, que, na maioria
agronegócio (a começar pelos agrocombustí- dos casos, são incapazes de disputar qualquer
veis) e a mineração exportadora; mas também tema que não seja estritamente corporativo,
gera contradições com o “socialismo petroleiro” ignorando a mudança da estrutura da classe
de Chávez – embora, nesse caso, haja uma trabalhadora e neutralizando o debate sobre
simpatia à luta bolivariana tanto pela soberania a indispensável re-estruturação produtiva da
face às ameaças norte-americanas como pelo indústria hoje existente (que terá de ter suas
controle dos recursos naturais pelos próprios atividades reorganizadas em qualquer saída
países da região (ainda que nem sempre pelas popular da crise).
comunidades concernidas). A adaptação ao mercado chega a pontos
O que temos é, portanto, uma posição caricatos, como no estande da Central Única
que rejeita não só a globalização neoliberal, dos Trabalhadores (CUT), que tinha até mesmo
mas também as propostas neokeynesianas e uma maquete da Usina de Belo Monte, comba-
neodesenvolvimentistas que ignoram a crise so- tida pelos movimentos populares e destinada
cioambiental e têm sido o horizonte da maioria a produzir energia para produção de eletroin-
dos governos de esquerda da América Latina. tensivos voltados para a exportação. A paralisia
Frente à crise no terreno industrial, Lula e Cris- imaginativa é forte: mesmo um movimento
social de esquerda importante, como o MST,
tenta reviver, em torno do tema do “pré-sal”,
a campanha nacionalista do “petróleo é nosso”
da década de 1950, ignorando que a Petrobras
tem de ser, antes de tudo, re-estatizada, e que o
debate ecologista aponta a necessidade de uma
rápida e radical mudança da matriz energética
(os indígenas equatorianos sustentam que,
hoje, é melhor que o petróleo fique enterrado
para as gerações futuras, quando talvez tenham
mais sabedoria em lidar com esse recurso, e
não seja queimado e lançado na atmosfera).
Corporações de mineração, energia e
agronegócios, empreiteiras, grandes bancos
são, no Brasil e em toda a América do Sul,
combatidas por importantes movimentos popu-
lares. E isso se combina não só com a luta anti-
-imperialista tradicional focada em Washington,
mas, crescentemente, com a luta contra o
imperialismo (ou subimperialismo) brasileiro na
região, em que grandes capitais controlados por
executivos brasileiros se expandem no espaço
econômico integrado que está se formando no
continente sob a batuta do Banco Nacional de
Desenvolvimento Social (BNDES).
Empresas como Vale do Rio Doce, Petro-
bras, Odebrecht, Camargo Correa, Votorantin,
Itaipu, Friboi, Itau/Unibanco e outras têm de
ser enfrentadas em um movimento integrado
no Brasil e nos demais países da região – como
apontaram várias atividades deste Fórum. E a dí-
vida, como instrumento de dominação externa,
deve ser anulada em todas as suas dimensões,
mesmo aquela contraída pelos países da região
junto no Brasil.

64 Democracia Viva Nº 42
Belém 2009: o Fórum mais importante

Na reconfiguração das relações interna- movimentos populares urbanos no “planeta


cionais em curso, que amplia o espaço regional favela”. E, além do direito à cidade, à moradia
do capitalismo brasileiro na globalização ne- e aos serviços urbanos, a reapropriação do
oliberal, o movimento contra as corporações território urbano pelos seus habitantes exige
nacionais torna-se parte essencial de qualquer uma re-estruturação radical do espaço (para a
proposta real de integração regional dos povos qual um manifesto dos cicloativistas apresentou
do continente. questões instigantes), uma reforma urbana
Mas as aparências não devem nos enga- que adquire um lugar cada vez mais central
nar: sob a superfície do reforço geral da crítica na reorganização da sociedade do ponto de
ao capitalismo, em função da profundidade da vista ambiental. Como lembrou David Harvey
crise, este Fórum evidenciou uma diferencia- na palestra de abertura da Tenda da Reforma
ção política muito importante, inexistente em Urbana, direito à cidade significa direito de
qualquer FSM até agora. A “resposta à crise” todos nós criarmos cidades que respondam às
por parte da esquerda que tem um horizonte necessidades humanas.
neokeynesiano e desenvolvimentista tem pou- A aceitação de que vivemos uma con-
cos pontos de contato com aquela da esquerda vergência de crises e que a busca de um novo
que busca um programa de transição para um modelo de sociedade baseado na justiça social
novo “modelo de civilização” para além do e ambiental é estruturante de qualquer resposta
capitalismo. à ela, posição expressa na assembleia “Trabalho
Isso significa não apenas a ruptura com na crise global”, é significativa das mudanças
o neoliberalismo, mas com o industrialismo, que emergem para os grandes movimentos
o produtivismo e o consumismo, com facetas sociais herdados do século 20 – o sindical e o
do capitalismo que têm sido reproduzidas ou camponês.
permanecem como meta em várias experiências Mesmo se eliminássemos todo desperdí-
do socialismo real. Na crítica a essas propostas cio, inevitável em uma economia de mercado,
postas em xeque pela história do século 20, e substituíssemos a atual economia aberta (ba-
os movimentos indígenas da Bolívia, Peru e seada em um ciclo de produção, distribuição,
Equador têm um papel importante, propondo consumo e descarte) por um circuito fechado
um diálogo amplo com a esquerda global em (produção, distribuição, consumo e reciclagem),
torno do tema “crise de civilização”. parte importante da atividade econômica atual
A ruptura não é só com o economicismo é irracional, ambiental e socialmente, tendo
dominante na esquerda, é também com o hori- um impacto muito destrutivo sobre o planeta
zonte político tradicional do Estado nacional. O e as pessoas.
debate sobre a organização política em Belém Não se trata apenas da produção de ar-
foi marcado não só pela resposta necessária mas, automóveis e da publicidade, mas também
à criminalização dos movimentos sociais e da de parcelas da mineração, da siderurgia, do
pobreza, mas também por questões como di- comércio e da atividade agrícola e pecuária, de
reitos coletivos e Estados plurinacionais (para quase todas as atividades ligadas ao petróleo e
arrepio dos nacionalistas), impulsionando uma ao carvão... A atividade econômica organizada
nova relação das comunidades com o território. segundo uma racionalidade capitalista se mos-
Isso projeta uma reapropriação muito maior da tra crescentemente irracional, não sendo capaz
política pelas populações envolvidas e um ques- de levar em conta os impactos ambientais das
tionamento mais amplo das estruturas políticas atividades produtivas (os mercados de créditos
dominantes, permitindo o diálogo e a ação de carbono, se generalizados, seriam apenas
política conjunta com uma vasta coalizão, que uma caricatura disso...). A humanidade viveria
se expressou com peso, também pela primeira muito melhor sem boa parte daquilo que é
vez neste Fórum, de “povos sem Estado”, de hoje produzido, sob outra lógica econômica,
curdos a catalões, de indígenas sul-americanos ambiental e social, consumindo muito menos
a palestinos, e lançou uma rede mundial. energia e insumos, transitando de uma econo-
Uma esquerda não ossificada, que nos mia do stress para uma economia da qualidade
países centrais assume a centralidade da luta de vida.
dos trabalhadores imigrantes contra o racismo, Isso implica a necessidade não só de
a xenofobia, a exclusão e pela cidadania, pode, uma profunda re-estruturação econômica
na periferia do sistema, tomar essas reivindica- (energia, transporte, indústria, agricultura,
ções políticas como um importante estímulo estrutura urbana), com o desmonte de certos
para repensar também o protagonismo dos ramos e a criação/desenvolvimento de outros,

MAIO 2009 65
artigo

* José Correia mas também uma reversão das tendências ao insistiram várias atividades em Belém.
Leite livre comércio, uma desglobalização em favor O fato do FSM se realizar na Amazô-
Filósofo, professor da de processos de integração regionais mais nia iluminou também o caráter predador da
Fundação Armando fechados em âmbito continental, de modo a grande agricultura capitalista. O agronegócio,
Alvares Penteado (FAAP) permitir que as comunidades possam decidir componente importante do comércio global
e representante do sobre sua própria atividade produtiva sem as de recursos naturais, é estruturante do mode-
Attac/Brasil no Conselho pressões destrutivas do mercado mundial – que lo neoliberal, fornecendo milho e soja para a
Internacional do FSM
hoje têm como parâmetros os custos da força produção de proteína animal, matéria-prima
de trabalho asiática e a ausência de considera- para etanol e biodieseis, comercializando carne
ções ambientais (considerados externalidades e madeira; as iniciativas de soberania alimentar
pela lógica capitalista). devem significar o desmonte das corporações
A adoção de cláusulas ambientais e da grande indústria no campo, cada vez mais
sociais pode ser um componente importante baseada no petróleo – objeto de grande número
no trabalho necessário de desconstrução do de seminários e oficinas neste fórum. A reforma
liberalismo alucinante das últimas décadas, agrária já não pode ser justificada por seu papel
impulsionado pelas finanças globais. O mo- de “desenvolvimento” das “forças produtivas”;
vimento sindical só tem futuro liberto de é uma necessidade de toda a sociedade para a
qualquer corporativismo, como articulação construção de padrões sustentáveis de relação
das lutas do conjunto do mundo do trabalho com a natureza, justiça social, preservação da
em escala global, sob suas formas cada vez biodiversidade e fornecimento de alimentos
mais heterogêneas, e como organização de saudáveis e de qualidade.
sua participação no processo de reorganização
de que a sociedade necessita (mesmo com a
redução radical da jornada de trabalho e a
generalização da garantia de formas de renda
básica para todos). A defesa incondicional dos
postos de trabalho na crise pode, sem isso,
levar o movimento sindical a se chocar contra
as demandas de caráter socioambiental, como

66 Democracia Viva Nº 42
MAIO 2009 67
c r ô n i c a

O futuro
não chega
Tinha por ele a afeição que se devota aos pernas: a decadência física roía um espírito
pais, mas não éramos sequer amigos – como poderoso. Doei-lhe a admiração fervorosa e a
um adolescente, ou menos que isso, poderia compaixão silenciosa da minha adolescência.
dizer-se amigo do pai de seus amigos? Toma- A falta de formação acadêmica era
do por turbulências interiores e fricções com compensada pela curiosidade intelectual e
o mundo, talvez ele sequer prestasse atenção determinação obstinada. Dedicava dias à
em mim – ainda que queiram, meninos não dedução das equações de um instrumento
mudam o voo de pássaros selvagens – mas de medidas obsoleto, a desmontar um velho
ficou inscrito nos meus afetos e sua imagem rádio, trocar componentes e inventar um tele-
resta indelével na minha memória. termostato. Estudou a Teoria da Relatividade
Tenho-na agora, ele diante do fogão, e sugeriu a inclusão de uma constante “k” em
virando a garrafa de café na pequena pa- determinada equação – proeza que o levou
nela sobre a trempe acesa – preferia café às páginas de jornal. Mencionava provas de
denso, preto e amargo, esquentado a cada vida em outros planetas.
vez, várias vezes ao dia. Cabelos revoltos, Cansado das regras da ortografia,
brancos de neve, olhar intenso num rosto cujas exceções e casos particulares atrasa-
de vincos profundos, que fora expressivo, vam a educação, escreveu e publicou uma
era agora frágil na palidez, e a boca oculta Gramática Racional da Língua Portuguesa,
pelo hábito de sobrepor o lábio inferior ao com normas criadas a partir da sonoridade
superior. O tempo pesava e o cansaço tomava das sílabas. Dizia: deve-se escrever viajar e
seu corpo. Após o café, sugava a fumaça de “viajem”, pois se viajar é com “j”, por que
seguidos cigarros, que amarelaram dedos e viagem é com “g”? Se a pronúncia de casa
escureceram dentes. Camisa surrada e cal- é “caza”, por que escrever com “s”? Pela
ças de pijama deixavam à vista as magras racionalidade de suas regras, achava que sua

68 Democracia Viva Nº 42
gramática simplificaria a escrita e extirparia acumular proteções para o frio, a chuva e a Alcione Araújo
o analfabetismo. Como ocorreu a Policarpo tempestade. A vida não está no futuro nem no alcionaraujo@uol.com.
Quaresma, ninguém o ouviu e alguns gra- passado, mas neste fugaz instante que passa.
máticos quase o comeram vivo. Aquele amigo que passou, não morreu – o
Para aumentar a renda de funcionário fim é o esquecimento, não a morte –, resta
público, instalou uma oficina de consertos para sempre comigo. Mas que amizade seria
de TV – a televisão mal chegara ao país. para ele a minha, se nunca fui capaz de lhe
E disse: se os fabricantes se interessassem dizer algo útil, afetuoso, estimulante, ou
em nitidez da imagem, bastaria aumentar o que aplacasse a sua inquietação? Era tal a
número de linhas luminosas na tela – esta é sua volúpia com a palavra, que me consola
a TV de alta definição de que hoje se fala. pensar que me preferia silencioso.
A cabeça aventureira, incendiária e nômade Como um cacto, era áspero, intratável,
daquele homem fascinava o garoto pacato e apenas para conservar pura a água que alivia
delirante que eu era. a sede. Ser inquieto e espírito turbulento,
Num dia que conversávamos – que o vivia extremos: cólera e amor, compaixão e
ouvia é o correto –, após um café, acendeu dor, ternura e violência. Almas intempestivas
o cigarro e soprou frondosa baforada. Talvez criam abismos aos que lhe batem à porta
tenha descoberto ali que habitou o mundo com água fresca. Fecham com pedras a toca
sem entender sua lógica e pressentiu que do coração. No escuro fundo da caverna, a
passara pela vida sem propriamente vivê-la. solidão rói o elã vital. A serenidade veio
Sem ilusões e com a esperança embaçada, tarde, por apatia alcoólica. Nunca teve paz
disse: “Sempre trabalhei pensando no futuro, para sentir a alegria de viver, além do secreto
me casei pensando no futuro, criei filhos orgulho do talento dos filhos: engenheiro,
pensando no futuro, e tudo o que fiz até hoje médico, economista.
foi pensando que um dia o futuro chegaria, Guardo no peito um amigo de quem
e eu então diria: ufa!, tudo está resolvido, a não consegui me fazer amigo – o que nos
vida está ganha e estou feliz. E veja: estou afastava já não nos afasta, vivendo em dois
velho, perto do fim, e o futuro não chegou.” mundos – porque éramos duas pessoas, duas
Morreu, sem que voltasse a vê-lo e dizer-lhe épocas, duas cabeças, dois corações. A cabe-
que o futuro não chega nunca. ça dele falava, eu aprendia; o coração dele
Aturdido, sem alcançar a extensão do gritava, eu não ouvia.
que dissera, intuí o privilégio da confidência,
e nunca esqueci a lição. Vivia tão desprovi-
do de certezas na adolescência que acolhia
as mais duras confissões como mantos que
protegem com as suas verdades. Crescer é

MAIO 2009 69
cul c u lt u r a
José Padilha*

Sobre a

Cerca de 920 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança

alimentar grave e, para alimentá-las minimamente, a Organização

das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estimou a

necessidade de um investimento anual de U$ 30 bilhões. Note que

esse cálculo não está baseado na premissa de uma solução ótima para

cada situação de insegurança alimentar. É uma estimativa global, que

leva em conta, pura e simplesmente, o custo de compra, transporte

e entrega de alimentos. Ou seja, esse montante seria o valor mínimo

necessário para as pessoas cronicamente desnutridas


comerem regularmente. Os países ricos têm recursos suficientes para fazer
Fotos: Alexandre Lima

70 Democracia Viva Nº 42
ura

MAIO 2009 71
c u lt u r a

esse investimento? Uma vez que gastam mais de sua idade. Não é por falta de informação que
U$ 1 trilhão em armamentos, é óbvio que sim. deixamos de combater a fome.
Recentemente, os países ricos mostra- Geralmente, quando encontramos uma
ram que são capazes de se mobilizar rapida- criança que não conhecemos mendigando na
mente para reagir aos problemas que percebem rua, não paramos para cuidar dela. Simples-
como críticos. A alocação de recursos feita mente, não nos sentimos compelidos a fazê-lo.
para salvar o sistema financeiro internacional, Mas se a criança for conhecida, se for o filho
realizada em menos de um ano, envolve valores de um amigo ou de um parente, isso muda de
que resolveriam o problema da insegurança figura. O que diferencia o sofrimento de uma
alimentar grave por mais de 50 anos. Logo, criança conhecida do sofrimento de uma criança
pode-se concluir que convivemos com a insegu- qualquer? A resposta para essa pergunta, e
rança alimentar grave porque não a percebemos muitas outras de natureza semelhante, parece
como um problema crítico. ser a seguinte: os seres humanos tendem a
Todavia, os dados da fome estão dis- reagir com indiferença ao drama das pessoas
poníveis e são bem divulgados. Basta escrever que desconhecem. As relações pessoais tendem
a palavra “fome” em um serviço de busca da a produzir solidariedade, as impessoais, não.
Internet para descobrir que, todos os dias, Muitas explicações já foram propostas
mais de 16 mil crianças morrem por causas para esse fato conhecido da psicologia experi-
relacionadas à fome; uma em cada três pessoas mental, algumas de ordem biológica, outras de
morre prematuramente ou desenvolve deficiên- ordem sociológica. Seja qual for a explicação
cias físicas e intelectuais por má nutrição; nos correta, ela tem fortes implicações para a ques-
países em desenvolvimento, 26% das crianças tão da fome. Afinal, a fome crônica não atinge
com menos de 5 anos estão moderada ou os amigos e parentes das pessoas que estão
severamente desnutridas; 10% destas crianças integradas na economia mundial, das pessoas
estão muito abaixo do seu peso; e que 32% que vivem nos países que têm recursos para
delas estão abaixo da altura padrão para a combatê-la. A fome sequer é testemunhada
pela maioria dessas pessoas. As crianças que
morrem de desnutrição são anônimas, desco-
nhecidas.
Essas considerações parecem indicar que
o problema da insegurança alimentar grave
envolve uma questão de representação. Existe
alguma maneira de se apresentar o problema da
desnutrição crônica de forma que a população
dos países ricos o perceba como crítico?
Um filme, um documentário, uma peça
de teatro ou um livro sobre a fome são quali-
tativamente diferentes da veiculação de dados
sobre o assunto. Dados informam; as obras de
dramaturgia, quando bem feitas, aproximam
o público dos seus protagonistas. Assim, uma
representação dramatúrgica tem, pelo menos
em princípio, mais chance de romper a bar-
reira da indiferença. Afinal, a dramaturgia é
um conjunto de técnicas desenvolvidas para
este fim. Claro que a representação da fome
na dramaturgia não vai, por si só, inserir o
problema da insegurança alimentar grave na
lista de prioridades dos países ricos. Mas pode
contribuir para isso.
Todavia, muitos artistas e críticos reagem
quanto se deparam com a dramaturgia que
tem a miséria como tema. A ideia que a fome
e a miséria são assuntos que não deveriam ser
abordados por questões éticas referentes à rela-
ção entre o representador e o representado tem

72 Democracia Viva Nº 42
Sobre a representação da fome na arte

bastante aceitação. Não sei quantas matérias já


foram publicadas em grandes jornais e revistas
brasileiros criticando os artistas de classe média
ou alta que representam a miséria em suas
obras. Ora, quem faz esse tipo de crítica sabe
que as pessoas que lutam contra a insegurança
alimentar grave não têm condições de fazer
dramaturgias de si próprias. Assim, pode-se
concluir que esse tipo de crítica, supostamente
baseada em questões éticas, no fundo, defende
a ideia que filmes sobre a miséria e a fome não
devem ser feitos.
É certo que existem questões éticas
importantes envolvendo quem constrói a re-
presentação e o indivíduo que vive o drama.
Sobretudo, quando esse indivíduo está em uma
situação de fragilidade em relação a quem o
representa. Todavia, essas questões éticas não
são insolúveis a priori, como a crítica faz pensar.
Afinal, são várias as relações possíveis entre o
representador e o representado. Além de expli-
car o que pretende fazer, o representador pode
tornar as pessoas que representa beneficiárias
da obra que constrói, pode doar ou ceder essa
obra para organizações que combatem a mi-
séria, pode usá-la para criar pressão política a
favor de quem representa, e assim por diante.
Em suma, é possível, pelo menos em princípio,
que o representador construa uma relação com
seus representados de modo a satisfazer os
padrões éticos da sociedade na qual vive.
É bastante comum, também, a ideia que
as representações dramatúrgicas da pobreza
são estetizações da miséria e que, por isso, não
devem ser feitas. De fato, qualquer represen-
tação artística da miséria vai, necessariamente,
estetizá-la. Afinal, toda obra de arte se sustenta
sobre opções estéticas. Logo, as críticas à esteti-
zação da miséria são, na realidade, a imposição
de um determinado padrão estético, e não uma
crítica à estetização em si.
Usualmente, essa imposição parte da
ideia que a arte pode construir representações
totalmente fidedignas da realidade que preten-
de representar e que, quanto mais uma repre-
sentação artística se afasta dessa representação
ideal, mais estetizante ela é. O preto e branco
trabalhado das fotografias de Sebastião Salga-
do, por exemplo, seriam estetizantes porque a
realidade é colorida e não têm os contrastes
trabalhados nas suas fotografias. O mesmo
valeria para o uso da música no documentário
ou da alteração das cores no cinema.
Evidentemente, o princípio estético que
está implícito nessa posição crítica trata a arte
como se ela fosse ciência. Os cientistas, de fato,

MAIO 2009 73
correta das cores? Qual o volume e a distribui-
ção ideal dos sons em uma sala de cinema?
Qual o melhor estilo literário? Nenhuma dessas
perguntas tem resposta satisfatória, dado que o
padrão idealizado que deveria balizá-las sequer
pode ser coerentemente definido. Segundo,
porque o processo de representação na arte
requer a transposição do real para a mídia
do representador, que é sempre mais “pobre”
do que a realidade que retrata. Foi, em parte,
por isso que a arte engajada desenvolveu uma
série de técnicas de expressão que permitem
enriquecer as suas representações. Guernica não
é um quadro realista, mas nem por isso deixa
de representar a tragédia da guerra. Exigir o
realismo em arte equivale a ter uma concepção
bastante limitada da mesma.
É claro que as representações dramatúr-
comparam as suas representações com um gicas da fome e da miséria podem, e devem,
padrão e tentam construi-las de maneira a re- ser passíveis de crítica. Todavia, é estranho
presentar esse padrão da forma mais fidedigna que as duas posições críticas enunciadas sejam
possível. Quanto mais uma teoria se “aproxima” tão repetidas a despeito da sua fragilidade
das leis da natureza, melhor ela é. Todavia, no intelectual. Por quê? Uma resposta possível
caso da arte, que lida com percepções e não seria: porque os seus critérios não podem ser
com representações matemáticas de leis uni- satisfeitos a priori. Ver os outros passando fome
versais, a utilização de um padrão regulador incomoda, sobretudo quando quem passa fome
desse tipo é, no mínimo, problemática. Afinal, deixa de ser anônimo. A dramaturgia da miséria
não está dado que todas as pessoas têm per- nos força a reconhecer o terrível papel que a
cepções iguais. nossa própria indiferença tem na perpetuação
Qual seria, então, a percepção ideal, que de problemas como o da insegurança alimentar.
serviria como ideia reguladora? Qual o tipo de Uma das maneiras de lidar com essa indiferença
negativo que aproxima mais a percepção de é tentar não confrontá-la.
uma dada realidade? Qual a montagem que
aproxima mais o enredo de um documentário
da realidade que ele retrata? Qual a saturação

74 Democracia Viva Nº 42
Sobre a representação da fome na arte

“Garapa”: além dos relatos * José Padilha


Cineasta, diretor de
Flávia Mattar
Ônibus 174 (2002),
Jornalista, pós-graduada em Arte e Filosofia
Estamira (2004),
Tropa de Elite (2007)
entre outros.
Três famílias cearenses em situação de insegu- mento, ela se cala e revive a dor da falta, que
rança alimentar grave foram acompanhadas se torna indizível. Rosa, apesar de mais calada,
durante um mês por José Padilha. O filme também é uma mulher de ação.
Garapa destaca especialmente o relato de A dor de um cotidiano à deriva parece
mulheres: Robertina (11 filhos), que vive nas mais visível por meio dos homens. O marido
proximidades da cidade de Choró; Rosa (três de Robertina, com o olhar distante, o andar so-
filhos), moradora da zona rural em torno da nâmbulo, o entorpecimento pelo álcool como
Vila Olho d’Água, e Lúcia (três filhas), que forma de suportar algo que é forte demais,
mora na periferia de Fortaleza. o capinar de um terreno que se planta para,
Elas têm o papel de relatar a situação de provavelmente, nada brotar. É como o semear
fome e a busca por soluções para driblar o pro- dos corpos, que geram vidas no limiar entre o
blema. Lúcia possui uma verborragia corrida, viver e morrer. Esse homem parece se permitir
difícil de ser entendida, como se quisesse calar ver mais que Robertina, até mesmo porque não
com as palavras, de forma angustiada, uma está entregue à manutenção da vida prática.
realidade sufocante. Ela precisa agir e sua fala Sua postura é mais inquietante, torna mais
subentende que precisa ser rápida. Poderíamos presente esse tempo que passa arrastado, sem
dizer que a proximidade com a suspensão da muitas perspectivas de mudança.
ação ocorre apenas quando é informada pela Gritante é a imobilidade do chefe de
funcionária do posto de saúde – detentora da família da zona rural em torno da Vila Olho
verdade sobre a melhor saída para a sua vida – d’Água, o aprisionamento de seu corpo a um
que sua filha precisa ficar em observação por mundo muito restrito, o território de sua casa.
desnutrição moderada. Então, Lúcia parece Ele não transita e raramente fala. Quando fala,
alcançar, por alguns instantes, um não-saber é para ressaltar a repetição: assim como ele
como agir, o que dizer. nunca conseguiu fazer três refeições ao dia,
Robertina, aparentemente com uma seus filhos não conseguem e, provavelmente,
postura menos acelerada, também é uma seus netos não conseguirão. A imobilidade de
mulher de ação. Tenta levar na brincadeira a seu corpo – muitas vezes, estirado ao chão,
má qualidade dos alimentos que sua família esperando o tempo passar – expressa a cruel-
ingere ou até mesmo a inexistência deles. O dade de uma vivência que passa de geração
indizível parece ser mostrado apenas quando em geração.
ela volta ao passado e se permite ver/viver a O terceiro homem, que vive na periferia de
cena de um de seus filhos pedindo merenda, Fortaleza, é mais falante. Mas sua fala acaba
sem que ela tenha algo para dar. Então, ela sendo um relato às avessas, ou um relato que
explica que, às vezes, responde que não tem não tem nenhum comprometimento com a
merenda, mas, às vezes, ela chora. Neste mo- verdade. Entregue à bebida, ele constrói sua
irrealidade, e sua imobilidade não é menor
que a dos outros dois homens. Ele está preso
ao bar onde bebe. Quando a mulher o manda
trabalhar, ele diz que não pode, porque teve
seu carro roubado. É como se a mobilidade de
suas pernas já estivesse comprometida.
Poderíamos dizer que os homens, mais que
as mulheres de Gapara, expressam, com mais
intensidade, a crueldade da existência, a agres-
são de uma vida sem perspectivas. Por não
estarem entregues à ação – em uma situação
em que qualquer ação parece desnecessária
ou apenas capaz de adiar o inevitável –, eles
são mais capazes de fazer saltar o silêncio, o
indizível, lá onde as palavras não alcançam. É
preciso ficar atento para que a profusão de
relatos e ações das mulheres não apague ou
ofusque o que esses coadjuvantes têm a dizer
(ou silenciar).

MAIO 2009 75
artigo
Evandro Vieira Ouriques*
Coordenador do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (NETCCON.ECO.UFRJ), consultor organizacional, coordenador do curso Jornalismo de
Políticas Públicas Sociais (NETCCON.ECO.UFRJ e ANDI – http://territoriojpps.ning.com), é criador da metodologia Gestão da
Mente Sustentável, o Quarto Bottom Line, pós-doutor em Estudos Culturais pelo PACC.FCC.UFRJ e diretor
de Comunicação e Cultura do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP
(http://evouriques. wordpress.com e evouriques@terra.com.br).

“As entidades do candomblé, para permanecerem ativas,


devem ser cultuadas e, para isso, têm de comer.

Disso depende o axé, a força que as mantêm vivas.


Caso não seja nutrido, ele declina, desfalece.

Os fiéis são, portanto, obrigados a “dar de comer à cabeça”


(o que nos rituais de iniciação é obedecido ao pé da letra).

A inquietação intelectual tem algo de semelhante, ela exige


que se “alimente a cabeça”, cultive-se uma atitude de
1 ORTIZ, Renato. Octávio
Ianni: a ironia apaixonada.
insatisfação em relação ao peso do senso comum acadêmico”.
Sociologias, Porto Alegre, ano
10, nº 20, jun./dez. 2008, p.
319-328
http://www.scielo.br/pdf/soc/
Renato Ortiz 1

n20/a14n20.pdf

76 Democracia Viva Nº 42
É muito mais frequente e comum psicossocialmente construídas, nas quais ou
do que gostaríamos o fato que indivíduos, o indivíduo3, rede, movimento e organização,
grupos, redes, movimentos e organizações apropria-se, pela desobediência civil mental4,
apresentem atitudes antidemocráticas na do poder, tornando-se assim, cada um deles,
maneira como conversam internamente, portador de voz própria, ou é então domi-
articulam suas ações intersetoriais e procu- nado pelo discurso que o atravessa – o que
2 Ver a oficina Construção de
ram mobilizar os segmentos sociais com os é muito fácil hoje, quando os valores me- Atitudes Mentais Democráticas:
o nó górdio do direito à
quais trabalham em favor da cidadania, da diatizados tendem a embeber a todos como comunicação, que propus
democracia, das políticas públicas sociais, se fossem esponjas –, tornando-se, assim, e conduzi no Congresso da
Intercom Sudeste, que ocorreu
das intervenções em comunidades e da res- repetidor de mais do mesmo nos territórios, na Escola de Comunicação
da UFRJ, em 7 e 8 de maio
ponsabilidade socioambiental. esta categoria hoje central na análise das de 2009. <http://evouriques.
wordpress.com/2009/04/25/
Quando verificamos ao longo da His- questões sociais e que só revela sua potência conduzirei-oficina-no-intercom-
tória, e do presente, a extensão dos prejuízos de produção de autonomia interdependente sudeste-sobre-construcao-de-
atitudes-mentais-democraticas-
causados por essas atitudes mentais para os quando alimentada por mudanças efetivas o-no-gordio-do-direito-a-
comunicacao/>.
movimentos de transformação social, pode- nas relações de poder, que são – sempre e
3 Refiro-me ao indivíduo como
mos afirmar que se trata de uma alarmante apenas – determinadas por atitudes mentais. o que permanece no sujeito
igual apenas a ele mesmo,
pandemia no território mental, que pode ser É por isto que André Mattelart5 vem como mostra Charles Melman,
portanto o que está nele,
superada apenas pela re-ligação dos saberes insistindo que a liberdade política não pode para além da dissolução das
sobre a sociedade com aqueles sobre a eco- mais ser apenas o exercício da vontade, mas identidades defendida pela
pós-modernidade, esta que
nomia psíquica dos indivíduos. passa – necessariamente – pelo domínio do provavelmente já terminou,
de acordo com Terry Eagleton,
A desconexão entre essas dimensões processo de formação da vontade, de manei- e com o que estou de pleno
acordo. A identidade é aquele
é que faz tão frequente, na ação pela trans- ra a que, como tenho sustentado6, o desejo território mental em relação
ao qual que, como mostram
formação social, o oposto dela: a traição, o hoje mediatizado no reconhecimento pelo Maturana e Varela em A Árvore
cinismo, a vaidade, a violência, o autorita- capital, vale dizer no reconhecimento pelo do conhecimento, “na rede de
interações linguísticas na qual
rismo, o roubo de projetos, a concentração outro, seja, ao contrário, e a um só tempo, nos movemos, mantemos uma
contínua recursão descritiva –
de poder, a manipulação de assembleias e liberdade e vinculação socioambiental.7 que chamamos de “eu”–,
[e] que nos permite conservar
reuniões, o nepotismo, o fluxo hierarquizado Isto só é possível por meio da observa- nossa coerência operacional
e cristalizado de informações, a não escuta, ção do fluxo dos estados mentais (pensamen- linguística e nossa adaptação
ao domínio da linguagem.”
a mentira deslavada, a distorção do que é tos, afetos, sentimentos, emoções, perceptos (p. 254)

dito, a supressão de informações decisivas, etc.), que ocorrem no território mental, para 4 OURIQUES, Evandro Vieira.
Desobediência Civil Mental e
a competição antiética por patrocínios, a o que é decisiva a arqueologia dos conceitos, Mídia: a ação política quando
o mundo é construção mental.
perseguição e menosprezo dos “derrotados” ainda com Mattelart, pois apenas assim é Anais do 10º Encontro Nacional
de Professores de Jornalismo.
em geral etc., etc., etc., como se faz, nacio- possível fazer surgir os significados e os usos Goiânia, Goiás. 2007. ISSN:
nalmente, com o futebol, como se este ato político-sociais sedimentados em cada termo, 1981-5859

de violência, que vai até a supressão física do lembro eu, como é o objetivo também da 5 MATTELART, Armand. História
das Teorias da Comunicação.
outro, não estivesse mimetizando, em uma história conceitual e do enfoque colingwoo- Edições Loyola, São Paulo,
2003. p.187
pedagogia social, o regime de servidão, no diano da Escola de Cambridge.8
6 Por exemplo, por meio de
qual um sujeito transfere sua potência para Conforme sintetiza Jardim, “o con- minhas disciplinas Construção
de Estados Mentais Não-
o outro. ceito (...) aparece como fenômeno da lin- violentos na Mídia, que criei
Ao propor território mental como guagem com consequências para “fora da em 2005/2 e Construção de
Utopias, que criei em 2006/1,
conceito político, o faço, como Deleuze tão linguagem”, porque conforma a própria vida na ECO.UFRJ.

bem recomendava, para ajudar a resolver histórica, enquanto elemento fundamental 7 OURIQUES, Evandro Vieira.
Comunicação, Educação e
o problema que é o entrave sistêmico que da disputa política. A afirmação de um con- Cidadania: quando Diversidade
e Vinculação Social são apenas
encontramos naqueles que se empenham teúdo – de um conceito – é a vitória de um Um. in Saúde e Educação
para a Cidadania. Revista da
em tornar viva a democracia, como se ela determinado projeto, de uma determinada Decania do Centro de Ciências
pudesse surgir apenas na dimensão que se maneira de ver as coisas”.9 da Saúde/UFRJ. Ano 1, no.
02, Março de 2006. UFRJ. Rio
denomina social, sem que se entenda e se Como comprova o biólogo cognitivo de Janeiro. pp. 33-36 www.
ccsdecania. ufrj.br/extensao/
exercite que a democracia apenas vigora, Maturana, “as palavras são nodos de redes edicao02.pdf

de fato, na capacidade que tenhamos de de coordenação de ações, não representantes 8 FERES JÚNIOR, João &
JASMIN, Marcelo (orgs.).
construir atitudes mentais democráticas2 nas abstratos de uma realidade independente História dos conceitos: diálogos
e a partir das inter-relações. de nosso quefazer. [...] As palavras que usa- transatlânticos.
Ed. PUC-Rio: Ed. Loyola: IUPERJ,
Para isto, é necessária uma mudança mos não revelam apenas nosso pensar, mas 2007.

de rumo, pois é no território mental que se projetam o curso do nosso quefazer. [...] Os 9 http://www.puc-rio.br/
editorapucrio/autores/autores_
dão concretamente as relações de poder seres humanos, somos o que conversamos: entrevistas_jasmin.html

MAIO 2009 77
artigo

esse é o modo como a cultura e a história se hábito de naturalizar a violência, a política


encarnam em nosso presente”.10 como luta, a vida como guerra, como algo
Ou seja, apenas pelo enfrentamento transcendental sobre o qual não teríamos
das relações de poder que se dão na tensão controle algum, pois as palavras com as quais
conceitual (uma vez que somos cultura e, designamos e construímos tais estados men-
portanto, linguagem), no território mental, é tais, e os consequentes atos físicos por eles
que os sujeitos podem tornar-se editores de criados, são de responsabilidade exclusiva da
suas falas no mundo, uma vez que treinem cultura, e não da natureza.
suas mentes para a ação política e deixem de Dito de outra forma, construímos na
ser movidos por impulsos reativos e impul- Grécia o que chamamos de cultura, que se
sivos, e portanto a-críticos, e, assim, deixem tornou, ao final de cerca de dois mil anos,
de ser atravessamentos de discursos. Não insustentável social e ambientalmente, ar-
é à toa que o maior valor patrimonial das gumentando que esta cultura, e a filosofia
corporações nestes tempos de cultura da dela, é a ruptura do continuum do processo
produção e de culturalização da economia natural. O que fazemos é de nossa exclusiva
são suas marcas, pois elas são conceitos do responsabilidade, o fizemos e fazemos em
que a vida seja ou do que se é com elas nos nome da liberdade e, ao invés de assumirmos
territórios. a responsabilidade, construindo a democracia
Qual é, portanto, a responsabilidade em nosso território mental, responsabiliza-
democrática que temos sobre nossos estados mos uma suposta natureza humana por isto,
mentais? Os discursos que identificamos retiramos os estados mentais das agendas
como nossos são nossos mesmo? O quanto “para não nos ferirmos”, e acabamos, claro,
a Diferença que sustentamos é democrática? nos ferindo ainda mais pelo desencontro,
As metodologias que empregamos para to- retrabalho, desconfiança, desânimo, e pelo
mar decisões, para escutar nossos públicos, péssimo exemplo de pseudotransformadores
são democráticas mesmo ou vazamentos dos que damos às próximas gerações que muitos
valores com que fomos impregnados pelas acusam de serem despolitizadas.
Velhas Mídias, pela Velha Teoria, pela Velha É assim que de maneira dominante
Gestão e assim repetimos erros do passado? a teoria social, a teoria política, a teoria da
Nenhuma outra atividade humana comunicação, a teoria da cultura, a filosofia
precisa tanto do discurso quanto a ação, da linguagem, a teoria psicanalítica etc.,
uma vez que, como diz Hannah Arendt, “o insistem em dizer que a violência, a vontade
discurso corresponde ao fato da distinção e de dominação/opressão, o regime de servidão
é a efetivação da condição humana da plu- psicossocial, são tendências naturais do ser
ralidade, isso é, do viver como ser distinto humano e que seria ingenuidade construir
e singular entre iguais”11, já que, de volta qualquer pensamento que diga o contrário.
a Maturana, a origem da linguagem como Aí está a questão. As múltiplas resis-
um domínio de coordenações consensuais tências, agentes e agências de resistência ao
de conduta exige um espaço de reencontro mal-estar da civilização precisam instalar-se
na aceitação mútua suficientemente intensa no território mental, pois é lá que se dá
e recorrente, espaço este que só é possível, ou não a autonomia, esta questão central
digo eu, quando os comportamentos ditos do pensamento de Castoriadis12 e central,
privados passam a ser focados, aceitos, por exemplo, quando se quer comunicação
acolhidos, tratados e superados de maneira compartilhada, empoderamento das peri-
10 MATURANA, Humberto.
Emociones y Lenguaje en
corajosa e transparente nas parcerias, asso- ferias, ouvir a voz das comunidades. Como
Educacion y Política. Dolmen ciações, redes, movimentos e organizações. lembra Marilena Chauí, se está, ou se pensa
Ediciones, Santiago de Chile.
1997. pp 105-6 Ora, quando como observadores en- “perdida a autonomia, o que resta senão o
11 ARENDT, Hannah. tendemos as palavras como designadoras de silêncio?”.13
A condição humana. Forense,
Rio de Janeiro. 2005. p. 191 objetos ou situações no mundo, o que de fato É por isto que tenho insistido na re-
12 CASTORIADIS, Cornelius. estamos fazendo é falar de um acoplamento cuperação do primado da autonomia e da
Figures du pensable. Éditions
du Seuil, Paris. 1999;
estrutural que não reflete o funcionamento criatividade, a base esquecida de constituição
e L’institution imaginaire de do sistema nervoso, uma vez que o sistema do Ocidente, em sua reação ao Mito, aquele
la société. Seuil. Paris, 1975.
nervoso não funciona com representações de ponto central em relação ao qual só nos
13 http://www.ciranda.net/spip/
article1784.html mundo e, portanto, não há legitimidade no restaria adequarmo-nos. Insisto neste ponto,

78 Democracia Viva Nº 42
Território mental, o nó górdio da democracia

uma vez que permanece na pós-modernidade “paternalista e distante”14, claro, pois isto
e hoje no que a sucede, um impressionante não é generosidade, porém mais opressão)
fundo metafísico nas forças que trabalham mas como a que permite o envolvimento15;
pelo avanço da consolidação democrática. (5) atribui estas atitudes a uma suposta
natureza humana; (6) e nega, ao mesmo
Explico. Acredita-se:
tempo, em nome da garantia da liberdade,
1. que a dominação é feita de forma a existência desta mesma natureza humana
exclusiva por “eles”, que seriam um quando se trata de encontrar princípios de
fora absoluto, e portanto metafísico igualdade que possam orientar a ação cole-
– o capitalismo, a classe dominante, o tiva, de sermos iguais na diferença?
neoliberalismo, a corporação, os pais, Para avançar mais, é prudente focar-
os jovens, a periferia, a classe média, mos o ponto cego do processo. Por exemplo,
os traficantes, o outro time, o outro na recente e importante iniciativa do MinC de
gênero, a outra raça, o consumo, a selecionar 78 Pontos de Mídia Livre no país,
mídia, as drogas, e assim por diante, o critério utilizado para se ter certeza de que
entendidos todos e quaisquer outros a mídia selecionada é “livre” e de que assim
como a sede por definição do mal se está cumprindo “a missão de democratizar
absoluto, suposta exterioridade abso- a comunicação social feita no Brasil” para
luta que garantiria a desnecessidade que “iniciativas que estão fora das grandes
de tratar-se de maneira responsável corporações midiáticas tenham voz e expres-
as relações de poder que se dão no sem o anseio de suas comunidades” é o de
território mental, uma vez que se considerar como “iniciativas de comunicação
supõe que seríamos necessariamente compartilhada e participativa aquelas que
os “puros”, já que o mal aqui não reúnem pelo menos dois membros em sua
residiria; equipe editorial e que buscam interatividade
com o público”.16
2. e que a via de transformação está
Nada é falado quanto aos valores
igualmente fora, ou no produtivismo
que circulam nos territórios mentais destas
da ação não-crítica, da ação pela ação,
iniciativas (por exemplo a antidemocrática
em atitude totalmente sincrônica a
e usual conexão conceitual entre liberdade,
do consumismo que criticamos; ou
progresso, desenvolvimento e civilização),
na tecnologia, no caso das forças
nem nas metodologias que elas utilizam
que se querem democráticas, espe-
para garantir que estão de fato escutando e
cificamente a cultura digital, a mídia
expressando os anseios de suas comunidades,
livre, a convergência tecnológica e
nem a respeito do território mental destas
comunicação compartilhada.
comunidades que se supõe espontaneamente
Isto é muito grave. Uma pergunta: democrático malgrado saibamos da concen-
como uma espécie (1) constrói-se como tração de mídia e da qualidade da educação
cultura rompendo radicalmente com o que no Brasil. Parte-se do pressuposto de que
chama de natureza; (2) colhe cerca de dois basta não ser corporativo, portanto o lugar
mil anos depois como resultado a insus- do mal, que se é socialmente democrata. 14 VIVAFAVELA. Viva Favela.
Prefácio de Zuenir Ventura. Viva
tentabilidade socioambiental; (3) nega-se a Quando fiz parte do grupo que or- Rio. 2009.
http://portalliteral.terra.com.br/
responsabilizar-se pelo controle dos estados ganizou o Fórum de Mídia Livre-Rio, em artigos/viva-favela-por-zuenir-
ventura
violentos de dominação e opressão que 2008, argumentei que tínhamos nele duas
15 OURIQUES, Evandro Vieira.
ocorrem em seu território mental e dele se tendências: a da verba livre, que entende que Comunicação, palavra e
políticas públicas: a importância
alastram pelos territórios, inclusive em sua a distribuição das verbas publicitárias estatais do conceito envolvimento para
face de territórios descontínuos, como os também para mídias de novo “livres”, ga- a construção da cidadania
sustentável. Revista Z.
das grandes cidades; (4) eterniza na teoria rantiria mais democracia; e a do verbo livre, Programa Avançado de Cultura
Contemporânea-PACC.FCC.UFRJ.
social e no senso comum a afirmação de que que entende que a cultura digital garantiria Junho de 2009. Ano V no.2

as ações humanas são movidas apenas pelo o mesmo. Argumentei que faltava a força 16 Todas as citações deste
parágrafo são do edital em
interesse e pelo poder auto-referenciados (“a da mente livre. Consegui realizar lá a oficina http://www.cultura.gov.br/site/
vida é uma luta”); deixa sem respaldo teórico Mente Livre, Mídia Livre, que teve o maior wp-content/uploads/2009/01/
edital_pontos_de_midia_livr_-_
as ações movidas pela generosidade (não número de inscritos de todas as do FML, e publicado.pdf

aquela a que Zuenir Ventura referiu-se como nela trabalhei a construção de uma mente

MAIO 2009 79
artigo

livre17 (conceito então cunhado), de uma “uma teoria comum, do que necessitamos
mente sustentável 18 (conceito cunhado em é de uma teoria da tradução que torne as
2005), sem a qual é impossível a autonomia. diferentes lutas mutuamente inteligíveis e
Para Castoriadis, a sociedade autôno- permita aos actores colectivos ‘conversarem’
ma é aquela que se autoinstitue através da sobre as opressões a que resistem e as aspira-
atitude, que ele entende revolucionária, de ções que os animam”.24 É neste sentido que
seus membros fazerem valer o que imaginam proponho o conceito de território mental,
em termos de instituições, leis, tradições, va- dentro da economia psicopolítica da comu-
lores e comportamentos. Ou seja, o contrário nicação a que venho me dedicando como
de sociedades e ações heterônomas19 como esta teoria da tradução.
as presentes, nas quais a vida privada está Para que os atores conversem sobre
divorciada da ação política e os atos ditos as opressões a que resistem, eles precisam
pessoais, como já disse, fora das agendas, estar no território mental, o único a rigor
relegados quase sempre à malidicência e humano, pois território enquanto espaço
17 Ver minha entrevista à rádio-corredor, até que se dê a exclusão + relações de poder é conceito também
sobre o assunto em http://
forumdemidialivre.blogspot. daquele que apresenta um comportamento aplicado aos animais não humanos. De que
com/2008/06/mdia-s-livre-
quando-mente-livre.html que dificulte o trabalho ou que questione outra maneira podemos potencializar nossas
18 OURIQUES, Evandro Vieira. a maneira como ele vem sendo realizado. aspirações, que nos animam, senão pela
Gestão da Mente Sustentável®,
o Extended Bottom Line: o
Trata-se de esgotos mentais a céu aberto tomada de posse do território que de fato
desenvolvimento socioambiental nos territórios, que não são vistos e para é o único que é realmente nosso, ou seja, o
como questão da consciência e
da comunicação. In GUEVARA, os quais não se pensam políticas públicas e nosso território mental?
Arnoldo José de Hoyos, et
al. (orgs.). Consciência e metodologias de saneamento. Um dos muitos exemplos atuais
desenvolvimento sustentável
nas organizações. Editora
Trata-se pois, de evitarmos engrossar da desconexão entre democracia social e
Campus, Rio de Janeiro. 2009.
pp. 195-203.
o regime de servidão20, no sentido da clínica democracia nas inter-relações são as au-
social da psicanálise21, ou seja, de pessoas diências públicas nas câmaras legislativas.
19 Autonomia é o exercício de
reger-se por si mesmo. que ao transferirem sua potência para um Elas se transformaram em mesas-redondas,
Do ponto de vista do Direito,
podemos exemplificar com outro, passam a dele depender em estado onde inexiste escuta apropriada do público,
o contrato. Trata-se de um
acordo entre as partes, não de perversão22, como de uma droga, em restrita ao formato superado de dar, sob a
imposto por terceiros.
Já a heteronomia, por exemplo
adição, sempre fundamentalista, ao que se pressão do tempo então exíguo, a palavra ao
no Direito, fala de norma pode chamar de “ego auxiliar” que pensa e final de tudo. Quando existem metodologias
jurídica imposta coercitivamente
ao indivíduo, independente de sente por ele. para levantar o imaginário do público, o que
sua vontade.
Essa é uma atitude devocional, e eles querem, se dispõem e podem de fato se
20 BIRMAN, Joel. Arquivos
do mal-estar e da resistência. quando se espera milagres (ou não é esperar comprometer a fazer.
Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
um milagre que as máquinas que criamos
sejam mais inteligentes do que nós?), é
21 LEBRUN, Jean-Pierre. Território mental e ação intelectual
Um mundo sem limites: ensaio
para uma psicanalítica do
a morte da política, como disse Hannah
social. Companhia de Freud. Arendt: “a questão se a política ainda tem Por fim, gostaria de falar brevemente da
Rio de Janeiro. 2004.
de algum modo um sentido remete-nos ne- importância do conceito de território mental
22 MELMAN, Charles.
O homem sem gravidade: gozar cessariamente de volta à questão do sentido para a ressignificação em curso do conceito
a qualquer preço. Entrevistas
por Jean-Pierre Lebrun. da política; e isto ocorre exatamente quando de intelectual, que desde a década de 1970
Companhia de Freud Editora,
ela termina em uma crença nos milagres – e tem passado por mudanças profundas em
Rio de Janeiro, 2003.
em que outro lugar poderia terminar?”23. suas antigas representações identitárias
23 ARENDT, Hannah.
A dignidade da política. Relume Neste sentido, é emblemática recente associadas à intelligentsia diante do fim do
Dumará, Rio de Janeiro, 1993.
p. 122 manchete no jornal laboratório de uma na- regime militar, da profissionalização dos in-
24 Apud PÉREZ, Carmen Lúcia cionalmente conhecida escola de comunica- telectuais no Estado e na indústria cultural
Vidal. A lógica e o sentido
da formação: heterotopias, ção brasileira, cuja edição é toda dedicada ao (esta desde a década de 1960), da queda do
acontecimentos e sujeitos.
Rev. Dep. Psicol.,UFF [online].
que devocionalmente supõe ser o “ilimitado” Muro de Berlim, da construção de um novo
2007, vol.19, n.1 [cited espaço da Internet, em matéria que trata do socialismo, da revalorização da democracia,
2009-05-15], pp. 127-143.
Available from: que chama “feroz campanha de adesão à fé da individualidade e dos movimentos popula-
<http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid cibernética”. Eis a manchete: “Hereges da res espontâneos etc., o que resultou, grosso
=S010480232007000100010
&lng=en&nrm=iso>. Internet resistem à conversão”. modo, na substituição de seu compromisso
ISSN 0104-8023. doi: 10.1590/
S0104-80232007000100010.
Quando reflete sobre o que é necessá- com a ruptura coletiva com o subdesenvol-
Acesso em 15 de maio de rio para a transformação social, Boaventura vimento nacional e a exploração das classes
2009.
de Sousa Santos afirma que mais do que para o empenho no acesso individual ao

80 Democracia Viva Nº 42
Território mental, o nó górdio da democracia

desenvolvimento globalizado.25 precisamos rever profundamente nosso terri- 25 RIDENTI, Marcelo.


Em busca do povo brasileiro:
Com a eclosão das novas tecnologias tório mental para que não voltemos a pensar artistas da revolução, do CPC à
era da TV. Editora Record, Rio de
da informação, da cultura digital, das possi- que a revolução é possível de ser feita sem Janeiro, 2002.
bilidades da comunicação compartilhada26 e conexão com a totalidade dos humanos. Ou, 26 Refiro-me ao conceito como
definido a partir do Fórum
das culturas das periferias, no quadro da ação como ele prefere, com a multidão, que, claro, Social Mundial, em Porto Alegre,
política rizomática, improvisada, anônima e também pensa e faz e, digo eu, com uma em 2002, e desde então em
discussão. Por exemplo ver
enxameada defendida por Deleuze, Guattari, nova e operativa teoria, sustentada claro por <http://diplonarede.org.br/
tudo-num-espaco/o-que-e-
Rolnik, Negri e outros, o intelectual confi- um discurso síntese de ação compromissado comunicacao-compartilhada>
que ao estimular a discussão on
gura-se hoje como mediático, condição na não com a torre de marfim, mas com o sa- line deste conceito inspirou-me a
desenvolver o argumento deste
qual está dissolvido o monopólio discursivo neamento do esgotos mentais, estejam eles artigo, que eu vinha escrevendo
da intelligentsia, já foi dito, num pluralismo onde estiverem. para a revista Democracia Viva
do Ibase por convite de Ana
mediático: em certo sentido, desdobra-se Quando proponho o conceito territó- Cristina Bittencourt, que honrou-
me ao ser minha aluna da 5ª
no intelectual operador 27 recentemente rio mental, da forma que o faço, concordo edição do curso de extensão
JPPS-Jornalismo de Políticas
proposto por Marcus Vinicius Faustini28, ou com Terry Eagleton, que “com o deslanchar Públicas Sociais, que coordeno.
seja, aquele que em vez de produzir grandes de uma nova narrativa global do capitalismo, 27 Refiro-me aqui à palestra
discursos de síntese de ação, dispara ações. junto com a guerra ao terror, pode muito dada por Faustini na Reunião
Mensal do Programa de
Dessa forma, os sentidos do conceito bem ser que o estilo de pensamento conhe- Pós-doutorado do Programa
Avançado de Cultura
dados por exemplo por Gramsci de intelectual cido como pós-modernismo esteja agora [ele Contemporânea-PACC-Fórum
de Ciência e Cultura da UFRJ,
orgânico (e de suas vinculações com a ironia afirmou isto em 2003] se aproximando de um realizada no dia 30 de abril
de 2009, quando tratamos
apaixonada, como prefere Renato Ortiz29) e fim. Foi, afinal, a teoria que nos assegurava dos temas “Aproximações na
por Sartre de intelectual engajado, têm es- que as grandes narrativas eram coisa do Compreensão  do Território
usado Enquanto Categoria de
tado abalados e/ou retraídos em prol de seu passado. Talvez sejamos capazes de vê-lo, Análise Social”, por Anita Burth
Kurka, Doutora em Serviço Social
entendimento, em certos meios consensual, em retrospectiva, como uma das pequenas pela PUC-SP; “Violência, Medo e
Estigma: efeitos sócio-espaciais
como função intelectual presente em toda narrativas que ele próprio tanto apreciava. da ‘atualização’ do ‘mito da
a sociedade, como defendido, por exemplo, Isso, no entanto, propõe à teoria cultural marginalidade’ no Rio de
Janeiro”, por Fernando Lannes,
por Félix Guattari, e isto é muito importante, um novo desafio. Se for para se engajar Doutor em Geografia Urbana
pela UFRJ e Coordenador Adjunto
mesmo que a tecnologia vista como poderosa numa ambiciosa história global, tem que ter do Observatório de Favelas, na
Maré; e “A Linguagem e a Vida
via de democratização tenha deixado sin- recursos próprios adequados, tão profundos São uma Coisa Só: Estratégias
Estéticas de Circulação na
cronicamente de ser suporte do capital para e abrangentes quanto a situação que de- Cidade”, por Marcus Vinícius
tornar-se meio direto da acumulação capita- fronta. Não se pode dar o luxo de continuar Faustini, Cineasta, Diretor Teatral
e Secretário Municipal de Cultura
lista, na qual a investigação é em grande par- recontando as mesmas narrativas de classe, e Turismo  de Nova Iguaçu/RJ.

te substituída por modos de conhecimento raça e gênero, por mais indispensáveis que 28 Como Secretário de Cultura e
Turismo de Nova Iguaçu, ele tem
determinados economicamente de maneira sejam esses temas. Precisa testar sua força, se mostrado inovador. Recorro
a Kari Palonen em seu estudo
fragmentada em meio à compressão espaço- romper com uma ortodoxia bastante opressi- sobre Tempos da política e
temporalização conceitual:
-temporal identificada por David Harvey30, va e explorar novos tópicos, inclusive aqueles um novo programa para a
ao que soma-se a substituição do intelectual perante os quais tem mostrado até agora [...] história conceitual quando afirma
que “políticos conceitualmente
pelo especialista supostamente competente a uma timidez excessiva”31. inovadores são aqueles que usam
essa falta de controle
quem está confiada a missão de dizer o que É exatamente no sentido desta contri- no uso dos conceitos a seu favor
e que gostam de brincar com
se deve pensar sentir, fazer e esperar. buição que desde a década de 1960 persisto as ambiguidades das palavras
É importante pois superarmos a em que a questão central da teoria e da ação e detectam novas dimensões
e importância em conceitos já
dicotmia entre pensar e fazer, trabalho in- social é a fonte de referência que o indivíduo, existentes”. In Ver FERES JÚNIOR,
João & JASMIN, Marcelo (orgs.).
telectual e trabalho braçal, que tanto marca parceiros, associados, grupo, comunidade, História dos conceitos: diálogos
transatlânticos. Ed. PUC-Rio:
ainda nosso país, e portanto faz todo o rede, movimento e organização utiliza para a Ed. Loyola: IUPERJ, 2007.
pp41-42
sentido o surgimento da potência operati- decisão comunicativa, que é sempre e apenas
29 ORTIZ, Renato. Octávio Ianni:
va de transformação do conceito território política, uma vez que sua ação é definida a ironia apaixonada. Sociologias,
mental, pois ele incorpora, ao dissolvê-las, pelos valores nos quais ele se referencia, Porto Alegre, ano 10, nº 20, jun./
dez. 2008,
dias dicotomias da dominação: a do pensar consciente ou inconscientemente. Portanto p. 319-328 http://www.scielo.br/
pdf/soc/n20/a14n20.pdf
e do fazer, e a do social e do psíquico, pois do domínio do que ocorre em seu território
30 HARVEY, David. Condição Pós-
para que os intelectuais desempenhem o mental. moderna. Loyola, 1989.

seu papel na promoção e na sustentação da 31 EAGLETON, Terry. Depois da


teoria: um olhar sobre os Estudos
vida no planeta, como quer Antonio Negri, Culturais e o pós-modernismo.
revolução que para ele só se faz hoje com Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro. 2003. p. 297
inteligência e amor (estes outros nomes para
mim da generosidade, do espírito público),

MAIO 2009 81
s u a o p i n i ã o

Colaboração Envio de artigo


Gostaria de saber qual o procedimento para Sou apreciador desta publicação e gostaria
submissão de artigos para a revista Democracia de colaborar. Sou graduado em Comunicação
Viva. Social pela Universidade Federal de Alagoas;
Júlio Cesar Andrade de Abreu mestrando do programa de Pós-graduação
Bolsista IFP – International Fellowships Program/UFBA em Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco; pesquisador do Grupo de Pesquisa
Resposta da redação: agradecemos pelo
Comulti – Ufal/ COS/ CNPq, no grupo de estudo
contato e pelo interesse em colaborar com a
Mídias, Processos Sociais e Economia Política da
revista Democracia Viva. Em caso de sugestão
Comunicação e, finalmente, articulista do portal
de artigo, o ideal é que o senhor nos envie um
Profissão Mestre. Desde já, tomo a liberdade de
resumo sobre o tema e a linha que deseja adotar
enviar uma colaboração para a livre apreciação
em sua análise para podermos avaliar se tem a
da redação, visando a publicação. Trata-se da
ver com a linha editorial da revista. Os artigos
resenha: “Gradual e não linear – a afirmação
para a revista têm, em geral, cerca de 12 mil
dos direitos humanos no mundo”.
caracteres (cerca de 4 laudas).
Tiago Eloy Zaidan
Maceió/Al

Em sala de aula
Gostaria de solicitar o envio dos exemplares
da revista Democracia Viva para minha escola.
Prof. Sergio Andrade Campos
Ciep Doutor Adelino da Palma Carlos
Jacarepaguá/ RJ
Nota da redação
Agradecemos ao público leitor por todas
Resposta da redação: agradecemos pelo conta-
as mensagens e todos os artigos recebidos
to e pelo interesse em receber a revista. O nosso no endereço eletrônico da revista e no
público-alvo são professores(as) e estudantes Portal do Ibase. Informamos que os textos
universitários(as), por outro lado, não há como serão avaliados e, se possível, publicados.
enviar vários exemplares para serem trabalhados Lembramos que também é possível fazer
em sala de aula. Mas podemos inclui-lo como comentários, enviar sugestões e ler o conte-
assinante para que possa receber um exemplar. údo da revista no orkut. Esperamos que esse
Também é possível acompanhar as edições por possa se tornar mais um espaço de troca e
meio do Portal do Ibase <www.ibase.br>. estreitamento de nosso contato com vocês.
Agradecemos, também, por todas as
cartas enviadas, informando que, de acordo
com a necessidade editorial, essas serão
Agradecimento publicadas com cortes.
Prezada diretora Dulce Pandolfi, recebemos o Esperamos que vocês continuem co-
exemplar da revista do Ibase nº 41, de janeiro laborando com a revista Democracia Viva:
de 2009. Agradecemos a gentileza e manifes- escrevam, opinem, critiquem, mantenham
tamos nosso apreço. contato!
<democraciaviva@cidadania.org.br>
Eliane Souza, presidenta
Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro
(Condedine/RJ)

82 Democracia Viva Nº 42
MAIO 2009 83
última página
Nani
42
A agenda da revista Democracia Viva é ampla

VIVA
e aberta, parte do compromisso radical com

DEMOCRACIA
a cidadania e com a democracia.

Democracia Viva não se alinha com partidos

nem religiões, mas toma partido desde que

esteja em jogo a possibilidade de aprofundar

a democracia. Não disputa poder, mas quer

exercer um papel de vigilância, monitoramento

e avaliação; com toda autonomia e independência,

das políticas públicas e das ações governamentais,

bem como das práticas empresariais e das

relações econômico-financeiras. Quer ser ativa

como interpeladora de consciências e vontades,

questionando práticas e valores que limitam

a democracia, estimulando a participação cidadã.

Sua qualidade é a força das reflexões, análises,

propostas e dos argumentos.

MAIO 2009

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