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Ciclo de seminários

Fórum Social Brasileiro, Belo Horizonte, 7 e 8 de novembro de 2003

Um projeto Ibase, em parceria com ActionAid Brasil, Attac Brasil e


Fundação Rosa Luxemburgo

Tendências da nova ordem mundial e o lugar do Brasil

César Benjamin

A esquerda tem debatido há vários anos a possibilidade de uma crise do


capitalismo, em escala mundial. Alguns chegam a defender que essa
crise já se instalou. Não compartilho dessa opinião. De um lado, ela
banaliza a expressão “crise”, conferindo - lhe um sentido elástico demais;
de outro, perde de vista a especificidade do capitalismo. O aumento da
exclusão social, a concentração da riqueza, as tendências militaristas e
realidades afins, tão visíveis no mundo contemporâneo, não devem ser
apresentados como argumentos e evidências nesse sentido, pois o
funcionamento normal do sistema pode provocar esses efeitos. O
capitalismo só entra em crise quando o processo de acumulação de
capital se interrompe. Sob este ponto de vista, ele permanece
funcionando, com as dificuldades e contradições que lhe são inerentes.

A idéia de uma “crise iminente”, por sua vez, não é despropositada, se


usarmos como referência teórica a análise clássica de Marx. Porém, as
leis formuladas por ele são insuficientes para compreender a dinâmica
que predomina em cada momento. É preciso observar a configuração

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real do sistema, o modo como ele se articula em determinado período.
Era assim, aliás, que o próprio Marx trabalhava, estabelecendo todo o
tempo uma relação estreita entre teoria e história (sua crítica a Ricardo,
por exemplo, insistia na importância da forma dos processos, aspecto
que o grande economista inglês subestimava). Para ele, a história nunca
foi um conjunto de fatos a serem selecionados para legitimar uma
teoria. A história constitui organicamente a teoria, de modo que esta
não existe sem aquela. “O modo dialético de exposição só é correto
quando conhece seus próprios limites”, escreveu nos Grundrisse, onde
descreve seguidamente como são insuficientes os raciocínios baseados
apenas em arranjos lógicos de conceitos. Por isso, ele nunca pensou
que pudesse fazer previsões a partir das leis fundamentais que
formulou, às quais, aliás, deu o nome de leis de tendência, o que
pressupõe a existência de contratendências, que freqüentemente
prevalecem (não fosse assim estaríamos diante de leis positivas,
absolutas).

Desejo propor outra abordagem. Ela parte da constatação de que os


elementos potenciais de crise sistêmica, reiteradamente apontados,
estão presentes há muitos anos. Por que, então, essa crise ainda não se
instalou? Como tem sido adiada? Até quando será adiada?
Indefinidamente? Que elementos têm permitido o prolongamento de
uma espécie de “fuga para a frente” do próprio sistema?

Para responder a questão assim reformulada, muitas análises enfatizam


o desenvolvimento tecnológico, ou a chamada Terceira Revolução
Industrial. Também me parece um caminho insuficiente. É verdade que
a mutação tecnológica contém dois elementos capazes de adiar a crise.
De um lado, tem permitido expandir o espaço geográfico abrangido
pela acumulação capitalista, incorporando vastas regiões e populações
(antes só marginalmente incorporadas) ao sistema produtivo
diretamente controlado pelo capital; por essa via, grande quantidade de

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trabalho vivo e novos mercados em ascensão, não saturados, tornaram -
se disponíveis para o capital nas últimas décadas, somando- se aos
“estoques” mais antigos. De outro, o desenvolvimento técnico permitiu
encurtar o tempo da acumulação, ou o ciclo do capital, tornando mais
rápido o circuito de produção, circulação e realização de bens e serviços
— o que, como se sabe, também é um mecanismo de sustentação das
taxas de lucro (“Circulação sem tempo de circulação é a tendência do
capital”, dizia Marx).

Ao permitir simultaneamente expandir o espaço (leia- se, incorporar


populações) sob controle efetivo do capital e contrair o tempo da
acumulação, a mutação da base técnica pode ter contribuído, de fato,
para que a crise potencial não se instalasse, como já aconteceu em
outros momentos da história (não há nada de novo nisso: esta é a mais
importante função do progresso técnico no capitalismo). Mas,
paradoxalmente, essa mesma mutação contém também elementos que
deveriam apressar a crise: o aumento da produtividade tem sido muito
superior ao aumento da produção; a capacidade de incorporar trabalho
vivo nas regiões “velhas” (especialmente nas mais desenvolvidas)
diminui dramaticamente; a acumulação fictícia (D- D’) crescu muito mais
que a acumulação produtiva; a tendência à superprodução se torna mais
nítida em um mundo no qual o desemprego aumenta, os salários reais
diminuem, os gastos anticíclicos dos Estados nacionais se contraem.

Com a integração plena do planeta em uma economia- mundo e a


realização de uma acumulação “na velocidade da luz”, a expansão do
espaço e a compressão do tempo atingem limites não ultrapassáveis.
Assim, a ênfase no desenvolvimento técnico deveria, ao fim e ao cabo,
repor e aprofundar a idéia de uma crise iminente. Privilegiando- se essa
abordagem, as segundas tendências (as tendências à crise) deveriam
acabar prevalecendo necessariamente sobre as primeiras (as tendências
ao adiamento da crise). A questão que formulamos acima — por que a

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crise iminente não se transforma em crise real — permaneceria sem
solução.

Para resolver a nossa questão precisamos reduzir o nível de abstração.


Poderemos então observar algumas características muito importantes,
que chamarei de anomalias, presentes na configuração atual do sistema.
Destacarei três delas, relacionadas entre si.

A primeira: a economia mais importante do mundo funciona com


déficits externos colossais e tornados permanentes. O déficit comercial
norte- americano só tem feito crescer, superando hoje, com folga, US$
500 bilhões por ano. A ele se soma um déficit fiscal que também
atingirá US$ 500 bilhões neste ano. Para perceber a enormidade desses
números, basta lembrar que, quando o déficit comercial brasileiro
atingiu “apenas” US$ 8 bilhões por ano, nosso país – que não é pequeno
– mergulhou em crise aguda, que forçou a mudança de seu regime
cambial.

Em tese, uma economia não poderia funcionar como a americana o faz.


Isso, aliás, era o que pensavam os arquitetos da ordem capitalista do
após- guerra, que criaram o Fundo Monetário Internacional (FMI)
exatamente para construir maneiras de reequilibrar balanços de
pagamentos em desequilíbrio, considerados incompatíveis com o
funcionamento normal do sistema internacional.

Só podemos compreender o padrão de funcionamento da economia


americana quando o observamos junto com uma segunda anomalia:
essa economia gigantesca e altamente deficitária emite, sem lastro e
sem regras de emissão, a moeda do mundo. Por isso, sua capacidade de
endividamento é incrivelmente elástica, em uma escala quase
impensável nos moldes tradicionais. Recordemos como chegamos a
isso: ao transformar o dólar em moeda de referência internacional, a

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Conferência de Bretton Woods (1944) entregou a senhoriagem da
economia capitalista mundial aos Estados Unidos, mas impôs a esse
país duas regras de emissão: a conversibilidade dólar- ouro e a paridade
fixa entre os dois. Ambas as regras foram garantidas em tratado
internacional assinado pelo Estado americano.

Criou- se assim um sistema em que a reserva americana de ouro


lastreava o dólar, que por sua vez era a referência para as demais
moedas, de acordo com taxas de câmbio fixas (ajustáveis segundo
certas regras). Nesse contexto, o poder de senhoriagem do Estado
americano era contido e disciplinado, pois a emissão de dólares
representava a hipoteca de sua reserva de ouro e, de alguma forma, era
limitada por ela. Em 1972, como se sabe, 28 anos depois de Bretton
Woods, os Estados Unidos romperam unilateralmente o tratado e se
descomprometeram com as regras de emissão nele previstas.
Desvincularam o dólar e o ouro, repudiando a conversibilidade, e em
seguida desvalorizaram a moeda, abandonando a paridade, tendo em
vista recuperar a competitividade de sua economia. Os demais países
tiveram de seguir caminho semelhante, efetuando suas próprias
desvalorizações competitivas, logo tornadas sucessivas.

O sistema de Bretton Woods deixou de existir, dando lugar a um “não-


sistema” de moedas sem lastro e câmbios flutuantes. Desenvolveram - se
então, vigorosamente, os processos que viriam a formar o que mais
tarde foi chamado “globalização”, especialmente a financeirização da
riqueza, pois os mercados de câmbio (estreitamente vinculados aos de
juros) tornaram - se fontes de receitas extraordinárias para empresas,
fundos e bancos multinacionais capazes de operar simultaneamente em
diferentes moedas e praças financeiras, realizando todo tipo de
operações de arbitragem.

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Como o sistema internacional não tinha – e ainda não tem – substituto
para o dólar, o Estado americano reteve, na prática, o direito de
senhoriagem sobre a economia internacional, agora porém sem as
limitações das regras de emissão. Não foi uma decisão técnica.
Relacionou- se, antes de tudo, com um ambicioso projeto de retomada
(ou reafirmação) da hegemonia norte- americana, àquela altura
ameaçada pelo vigor das economias alemã e japonesa reconstruídas, o
poderio político- militar soviético em aparente ascensão e as veleidades
contestadoras de grande parte do então Terceiro Mundo. Sem
compreender esse projeto, em todas as suas dimensões (econômica,
militar, política, cultural, ideológica), nada se compreende da evolução
da conjuntura internacional nas últimas décadas. (Reiteremos, de
passagem, este aspecto da história: o chamado processo de
globalização deslancha a partir do momento em que é impulsionado
pelo Estado nacional hegemônico, em defesa de seus interesses;
confundir “globalização” e “enfraquecimento [ou fim] da ação dos
Estados” não tem sentido nenhum.)

Para o que nos interessa aqui, ressaltemos que um Estado nacional


passou a emitir, sem regras e praticamente sem limites, a moeda do
mundo. Trata- se de uma situação que não pode perdurar
indefinidamente, pois introduz uma assimetria estrutural nas relações
internacionais. Imaginá- la como uma situação normal e permanente é
admitir que os demais integrantes do sistema aceitarão passivamente,
para sempre, uma posição subordinada, o que contraria toda a
experiência histórica.

Vimos, porém, que a decisão norte- americana data da década de 1970.


Só muito recentemente surgiu uma possível resposta a ela, com a
criação do euro, que ainda engatinha. Por que esta segunda anomalia se
prolonga tanto?

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Um primeiro motivo é claro: é muito difícil transitar de um padrão
monetário a outro. O trânsito da libra para o dólar, por exemplo, só se
completou muito depois de a Inglaterra ter perdido, de fato, a
hegemonia mundial, e a fase de transição exigiu duas guerras mundiais.
O segundo motivo nos interessa mais, pois remete à terceira anomalia
do sistema internacional atual, a que me referi antes: a região
ascendente do sistema – o Leste da Ásia – é estruturalmente
superavitária. Não poderia funcionar se não tivesse como formar e para
onde escoar o seu enorme superávit. O déficit americano – ou seja, a
necessidade de financiamento da economia americana – é que abre
espaço para a acumulação acelerada na Ásia e para a reciclagem do
capital sobrante dessa região. Essa afirmação pode ser generalizada,
sem nenhuma perda de rigor: o déficit americano cria aquele que é, de
longe, o mais importante pólo de demanda efetiva para a economia
internacional, pois os dois outros grandes centros – a Europa e o Japão –
vivem períodos prolongados de recessão ou baixo crescimento.

Se esta visão é correta, o que mantém em funcionamento a ordem


mundial atual, chamada de neoliberal, não é o que ela anuncia como
sendo seu grande trunfo (o desenvolvimento tecnológico e a formação
de uma “nova economia”), mas sim um mecanismo tipicamente
keynesiano: a sustentação da demanda efetiva por meio da emissão de
dívidas. Emissão incrivelmente elástica porque o mesmo agente, de um
lado, se endivida e, de outro, fabrica a moeda (não lastreada) em que
sua dívida deve ser paga.

Esse padrão monetário, que podemos chamar de dólar- flexível, produz


conflitos no núcleo do sistema mundial de poder. A posição especial do
Estado americano incomoda, pois sua hegemonia está inscrita nas
regras do jogo, tal como elas existem hoje, que são regras viciadas.
Mas, além de conflito, também há cooperação, pois se o dólar desabar todos
desabam, já que todos são credores do dólar. Eis o paradoxo: o mecanismo

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que mantém a economia mundial funcionando (a capacidade de
endividamento americana) depende da posição especial do dólar;
porém, enquanto essa posição perdurar, os Estados Unidos manterão
um grau de hegemonia que não é facilmente tolerado pelos demais
participantes do grande jogo de poder mundial.

Em outras circunstâncias históricas isso poderia se resolver por meio da


guerra entre os integrantes do núcleo do sistema, mas esta
possibilidade está afastada. Hoje, a guerra é alternativa para lidar com
regiões periféricas. Não há, pois, via rápida e radical de promover
mutações, nem pela economia (pois a ruptura do padrão monetário
seria dramática para todos) nem pela confrontação militar. Por isso, a
atual configuração só pode se modificar lentamente. A posição do dólar é
o elemento-chave para o desenlace da crise latente. Esta posição, embora já
muito instável e precária – pois é evidente a tendência à desvalorização
–, se beneficia da inexistência, hoje e pelos próximos anos, de
alternativas à moeda norte- americana como reserva de valor no sistema
mundial.

A abordagem que estamos desenvolvendo permite enfocar as duas


dimensões fundamentais do sistema – riqueza e poder –, que não são
compreensíveis isoladamente. Muitos não se dão conta disso,
enfatizando apenas a dimensão da riqueza, ou da economia, e sendo
capturados pela ênfase abusiva nos modos de produzir. Terminam
enxergando apenas, ou principalmente, o enfoque da técnica. Marx
nunca pensou assim, nem mesmo em suas obras especificamente
econômicas (basta lembrar as centenas de páginas que escreveu sobre o
dinheiro nos Grundrisse, que formam, talvez, a parte mais complexa e
fascinante de sua vasta obra).

Se incorporarmos a dimensão do poder como fundamental para explicar


os movimentos do sistema internacional, devemos admitir, quase

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axiomaticamente, que em condições normais esse sistema tende a
algum tipo de multipolaridade. Na economia- mundo contemporânea, a
existência de um só centro, esmagadoramente hegemônico, só pode ser
uma situação excepcional e transitória. A unipolaridade criada no imediato
após-Guerra Fria não é uma configuração estável.

Se essa abordagem está correta, a leitura da conjuntura internacional


precisa tentar decifrar um grupo delimitado de questões: como a
configuração unipolar, intrinsecamente instável, está se desdobrando na
direção de uma nova multipolaridade? Qual a forma desse processo? Em
que ritmo ele avança? Que dificuldades enfrenta? Como se comportam
os principais agentes? Será que já se podem ver os contornos da
configuração que virá? Tais questões permitem diferentes abordagens
que não posso desenvolver aqui. Privilegiarei duas delas. A primeira
abordagem possível é de natureza regional. Vejamos, passo a passo, o
que ela nos mostra.

Os Estados Unidos vivem o auge de seu poder e ocupam um duplo


centro: o centro da economia- mundo e o centro de uma área econômica
regional já constituída pelo Nafta. Em seu entorno imediato, temos uma
América Latina sem projeto próprio, em trânsito para ser tragada pela
área regional americana. Assim ampliada, esta área regional poderá vir a
ser, explicitamente, a futura “área do dólar”, se outras regiões
conseguirem escapar da senhoriagem norte- americana.

Grandes movimentos estruturais em curso na região apontam para o


fortalecimento dessa condição: a proposta de criação da Área de Livre
Comércio das Américas (Alca) em 2005, que extingue os espaços
econômicos nacionais e cria um só espaço hemisférico, centrado na
economia americana; o enfraquecimento e abandono de diversas
moedas nacionais, com a dolarização progressiva do continente; a
desnacionalização galopante dessas economias; a transformação dos

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Estados nacionais em reféns do sistema financeiro internacional; o
isolamento ideológico e enfraquecimento das forças armadas do
continente; a intervenção direta dos Estados Unidos na região
amazônica, importante depositária de recursos estratégicos para o novo
ciclo econômico de longo prazo que se inicia (pela primeira vez na
história, essa intervenção inclui a montagem de bases militares
americanas dentro da região).

Se não forem contidos e revertidos, esses movimentos redefinirão


profundamente a geopolítica continental ainda nesta década.

Continuemos nossa viagem. Para compensar a relativa fraqueza de seus


Estados- membros, tomados isoladamente, a Europa acelerou seu
processo de unificação. Formou uma região econômica integrada cuja
capacidade produtiva se equipara à dos Estados Unidos; constituiu uma
área monetária própria, iniciando um incipiente movimento de escape
em relação à senhoriagem do dólar; harmonizou sua legislação em
quase todos os âmbitos; unificou seu mercado de trabalho e concedeu
cidadania continental às suas populações; está em processo de
unificação de suas forças militares, dotando- as de alta capacidade de
intervenção.

O que é isso, se não a criação de um novo Estado?

Enquanto nossas elites vocacionadas para a subalternidade saúdam o


“fim do Estado”, assistimos no centro do sistema ao surgimento de um
megaestado, um Estado continental, multinacional, que manterá as
sociedades européias no grande jogo mundial da riqueza e do poder no
século XXI. É um projeto geopolítico de fôlego, cujas maiores
dificuldades atuais parecem ser as seguintes: (a) na esfera econômica,
destaca- se a assimetria decorrente da existência de um Banco Central
europeu e de Tesouros ainda submetidos aos Estados nacionais, o que

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impede a adequada coordenação de políticas monetárias e fiscais; sem
essa coordenação (que o Estado norte- americano realiza com grande
competência, graças a uma arquitetura institucional que garante elevada
sintonia entre Banco Central e Tesouro), a Europa perdeu a capacidade
de realizar políticas anticíclicas e deixou - se prender na armadilha do
baixo crescimento; a própria Alemanha já percebeu a necessidade de
alterar essa situação, mas todos os movimentos da União Européia, por
sua própria natureza, são especialmente complexos e lentos; (b) na
esfera política, destaca- se a dificuldade de definir uma política externa
européia unificada, por motivos históricos e geopolíticos, que se
traduzem por exemplo na tendência alemã de olhar para o hinterland do
Leste, de um lado, e na elevada dependência da Inglaterra (que continua
a ser uma praça financeira importante e a deter uma capacidade militar
também importante) em relação aos Estados Unidos, de outro; (c) as
incertezas que cercam o futuro da Rússia e de várias ex- repúblicas
soviéticas, que pesam diretamente sobre o continente.

A África está fora do jogo; nas palavras de um alto tecnocrata


internacional, “é um problema para a Cruz Vermelha”. A Rússia ainda
luta para conter sua própria decomposição, para então reposicionar - se.
Mantém - se na arena internacional graças ao peso de seu arsenal
atômico, mas ele é inútil para ajudá- la a lidar com o mosaico de
contradições internas resultantes da falência do socialismo burocrático,
de uma transição inepta ao capitalismo (que a lançou em uma inusitada
acumulação primitiva de capital privado em uma sociedade
industrializada) e das múltiplas questões de natureza social, étnica e
nacional que a paralisam.

Ao lado da América Latina – mas num patamar de importância muito


superior –, o Oriente Médio é a outra área de intervenção direta
permanente dos Estados Unidos. O abastecimento de petróleo é uma
conhecida vulnerabilidade americana. Com reservas, em seu território,

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de 28,6 bilhões de barris e um consumo diário de 19,5 milhões de
barris, os Estados Unidos têm petróleo próprio para abastecer- se
durante apenas quatro anos. A evolução do cenário no Oriente Médio foi
favorável à posição americana até recentemente: a principal potência
regional não subordinada, o Iraque, fora destruída na Primeira Guerra
do Golfo e permanecia sob bloqueio, remetida a uma posição passiva e
defensiva, e a maioria dos Estados árabes já reconhecia (ou se dispunha
a reconhecer) Israel. Com o fim da União Soviética, desaparecera o
espectro de uma guerra entre Estados na região, pois os países árabes
ficaram sem retaguarda. O regime iraniano trabalhava para sua própria
consolidação e não parecia capaz de uma ação desestabilizadora. O
conflito reduzira- se a uma escala local na Palestina, de baixa
intensidade, envolvendo helicópteros e grupamentos de soldados, de
um lado, homens- bomba e atiradores de pedra, de outro, em
escaramuças suficientes para alimentar noticiários, mas incapazes de
colocar em risco a oferta de petróleo.

A evolução recente do quadro regional, porém, traz complicadores,


causados em parte, paradoxalmente, pela ação dos próprios Estados
Unidos na segunda guerra do Iraque, que resultou num atoleiro.
Multiplicam - se grupos que pretendem estimular uma desestabilização
de regimes pró- americanos instalados na região, mas, até onde se pode
ver, é improvável que tenham êxito. A resposta dos Estados Unidos seria
igualmente imediata e violenta, apoiada por inúmeros Estados cuja
existência seria ameaçada por um movimento pan- islâmico desse tipo.
Mesmo assim, a situação atual é claramente mais explosiva do que a de
alguns anos atrás.

A médio e longo prazos, a Ásia – e não o Oriente Médio – é a grande


incógnita do sistema. Tem a segunda maior economia nacional do
mundo (o Japão), a potência emergente (a China), grandes massas
demográficas dotadas de alta laboriosidade, elevado dinamismo

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tecnológico, experiências de desenvolvimento rápido, empresas e
bancos de grande porte, Estados nacionais vigorosos, poder nuclear
(ainda claramente inferior ao dos Estados Unidos e da Rússia, porém
crescente). Será uma jogadora de grande peso no século que se inicia.

Mas tem limites: está longe de criar uma área econômica integrada e
nem se vislumbra a possibilidade de que algum dia venha a constituir
um megaestado continental, em moldes europeus. Não se vê sequer
como poderia constituir uma área monetária. Mantém- se altamente
dependente do mercado norte- americano e do dólar, moeda em que
estão denominadas suas volumosas reservas. Além disso, abriga
grandes populações em estado de pobreza e é portadora de enormes
tensões internas de natureza nacional, étnica e religiosa. Não consegue
marchar junta. A Índia permanece às voltas com um grave contencioso
com o Paquistão, a China (que ainda não completou seu processo de
reunificação nacional) precisa ganhar tempo, o Japão tem fraquezas
estruturais de grande monta, e assim por diante.

A ordem mundial norte- americana não foi – e não será – capaz de


enquadrar a Ásia, que por isso ainda não encontrou sua posição no
sistema- mundo contemporâneo. É grande demais e forte demais para
ser engolida (como a América Latina), marginalizada (como a África) ou
derrotada (como a Rússia). Ali ocorrerão os principais processos de
transformação da ordem internacional.

Do ponto de vista dos Estados Unidos, a Ásia tem de ser mantida


dividida, até mesmo por uma questão de estratégia militar. O
Departamento de Estado considera que o quarto objetivo estratégico da
geopolítica americana é o mais difícil de ser mantido no longo prazo. Ele
é assim definido: “Que nenhum poder, ou conjugação de poderes, do
hemisfério oriental possa desafiar o domínio norte- americano sobre os
oceanos.” Compreende- se a preocupação: como as armas atômicas

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prestam- se muito mais à dissuasão do que ao uso efetivo, o controle
simultâneo dos oceanos é, de longe, o elemento central na supremacia
militar em escala mundial. Tendo- o conquistado, os Estados Unidos
detêm o monopólio da capacidade de deslocar e projetar suas forças em
qualquer parte do planeta.

Criar uma poderosa marinha de guerra exige recursos imensos,


incompatíveis com manter grandes exércitos envolvidos com questões
territoriais. Daí o permanente esforço americano de fazer com que seus
competidores potenciais – especialmente os asiáticos – mantenham - se
às voltas com ameaças terrestres, que os próprios Estados Unidos, por
sua posição geográfica – tendo como vizinhos apenas o Canadá e o
México –, não enfrentam. Esse tem sido, há muito tempo, o jogo
americano na Ásia. Quando a extinta União Soviética começou a
desenvolver uma marinha de guerra de alcance mundial, baseada em
porta- aviões, os Estados Unidos, em um lance de gênio, a atolaram em
uma prolongada guerra terrestre no Afeganistão, puxando - a de volta
para dentro.

Tensões duradouras no coração da Ásia – se necessário, ampliando - se


as diversas guerras civis latentes na região – ajustam - se perfeitamente
aos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Enquanto essas
turbulências persistirem, todos os Estados asiáticos precisarão manter -
se voltados para questões regionais, com forças militares territoriais,
relativamente estáticas. Assim, a grande esquadra americana poderá
continuar a navegar pelo mundo, soberana. Essa condição geopolítica,
que é estrutural, mostra uma importante fraqueza da Ásia, quando
considerada como pólo de poder mundial.

Não se vê, pois, nem mesmo a médio e longo prazos, o surgimento de


um contrapoder à altura de desafiar a capacidade de projeção do poder
militar do Estado norte- americano. Mas já se podem ver os limites deste

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poder: (a) os Estados Unidos são capazes de atacar e derrotar países não
portadores de armas nucleares, como o Iraque e o Afeganistão,
independentemente de sua posição geográfica; porém, para
estabilizarem sua dominação, dependem da existência de grupos de
apoio minimamente legítimos nas sociedades locais; se esses pontos de
apoio lhes são negados, sua vitória militar inicial se transforma em um
pesadelo; (b) países portadores de armas nucleares permanecem
invulneráveis à máquina militar norte- americana, por sua capacidade de
causar danos inaceitáveis aos próprios Estados Unidos ou a seus
aliados; é o caso da Coréia do Norte, cujos mísseis podem alcançar as
principais cidades japonesas e as bases militares americanas em toda a
região; por isso, aliás, a agressividade dos Estados Unidos pode
desencadear uma corrida, de conseqüências imprevisíveis, em direção à
posse dessas armas por parte de países que se sintam ameaçados; (c)
ações militares unilaterais têm altos custos políticos, diplomáticos e
financeiros; em princípio têm de ser financiadas inteiramente pelo
atacante; (d) embora, pelo sólido controle dos oceanos, os Estados
Unidos venham a manter por muito tempo o monopólio da capacidade
militar ofensiva em escala planetária, nada impede que outros países
desenvolvam estratégias defensivas eficazes em escala regional;
ninguém poderá competir com a esquadra dos Estados Unidos em alto-
mar, mas alguns poderão capacitar- se, com custos acessíveis, a impedir
que ela se aproxime de seus territórios.

A posição do Brasil é, em larga medida, definida por sua condição de


integrante do espaço regional latino - americano, a cujo destino imediato
já me referi. Porém, nosso país mantém uma especificidade importante:
somos o grande país periférico das Américas, um dos cinco ou seis grandes
países periféricos do mundo, que podem ser chamados de “países
intermediários”. Essa constatação nos introduz em um segundo recorte
possível para a abordagem do sistema internacional. Tentemos
entendê- lo.

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Desde sua constituição, nas origens do mundo moderno, o sistema
internacional foi fortemente polarizado por um centro relativamente
pequeno e uma grande periferia. Processos de crescimento rápido, fora
dos países centrais, ocorreram basicamente em regiões que dispunham
de abundantes recursos naturais (potencial agrícola, minérios),
eventualmente valorizados. Quando esses recursos se esgotavam ou
perdiam importância, suas regiões produtoras caminhavam para a
decadência, reafirmando sua condição periférica.

O século XX alterou parcialmente esse padrão. Nele, economias não


centrais conheceram casos notáveis de crescimento que não se
basearam na exploração de recursos naturais abundantes, mas em
processos intensivos de industrialização. Esses ciclos de crescimento –
que, em diversos casos, promoveram mutações nos sistemas produtivos
locais – foram impulsionados de diferentes formas, por diferentes
regimes, que se baseavam em diferentes classes sociais, anunciavam
diferentes metas e valores, mas tinham um traço comum: lançavam mão
de mecanismos de coordenação supramercado para acelerar a
industrialização e processos correlatos de modernização. As sucessivas
disputas pela hegemonia no centro do sistema, que marcaram
fortemente o período que Hobsbawm chamou de “breve século XX”
(1914- 1991), criaram condições favoráveis a esses projetos que se
desenvolviam em alguns espaços tradicionalmente periféricos.

Surgiu assim um grupo de países intermediários, ou semiperiféricos,


alguns de grande porte, entre os quais o Brasil. As condições estruturais
desses países, somadas aos processos de modernização que
experimentaram no século XX, os tornaram suficientemente fortes para
que não devam ser confundidos com os países mais pobres e
desassistidos, em geral de pequeno ou médio porte, que neste

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momento enfrentam dificuldades insuperáveis para sustentar projetos
emancipatórios próprios.

Justo por isso, um dos fenômenos mais importantes na construção da


“nova ordem” mundial no fim do século XX foi a desarticulação
sucessiva das diferentes estratégias desses países intermediários que
buscavam industrializar - se e diminuir a distância em relação ao centro
(ou, no caso da União Soviética, disputar o centro). A primeira vaga de
desarticulação, associada às crises das dívidas externas na primeira
metade da década de 1980 e ao desdobramento na direção de políticas
neoliberais, destrói os projetos em curso na América Latina. A segunda
vaga, que ocorre no fim da mesma década e início da seguinte,
desarticula a antiga União Soviética e os países de sua área de
influência. Em meados da década de 1990, chega a vez do acerto de
contas com as estratégias de emparelhamento em curso em países da
Ásia. Só a China resiste, apoiada em sua configuração estrutural –
território, recursos, população –, em sua vontade política e na
especificidade de seu sistema, cuidadosamente preservado, na medida
do possível, das ondas de choque oriundas do sistema internacional (a
experiência chinesa de crescimento rápido é recente, pertence a uma
“nova geração”, sendo difícil fazer qualquer prognóstico claro sobre seu
desdobramento de longo prazo).

Todos os elementos comuns dos processos de desarticulação, a que nos


referimos, estão contidos na estratégia de recuperação da hegemonia
americana: o choque dos juros, a aceleração da corrida armamentista, a
financeirização da riqueza e assim por diante.

É claro que essas desarticulações sucessivas só se tornaram possíveis


porque as diferentes estratégias dos países intermediários continham
importantes fraquezas. Não é o caso de analisá- las aqui, caso a caso.

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Observemos apenas um aspecto geral, especialmente relevante para
entender a desarticulação do projeto brasileiro.

Nas relações econômicas internacionais, obtêm vantagens os países que


conseguem controlar uma parte maior do excedente produzido no
conjunto do sistema. Para ocupar uma posição de vanguarda, um país
deve estruturar sua economia em torno de atividades geradoras de um
ganho diferenciado, situado acima – preferencialmente, muito acima –
da média. Tais posições são, por definição, excludentes (caso contrário,
o ganho que propiciam não seria diferenciado). Portanto, tal como está
organizado, o sistema econômico internacional é estruturalmente
assimétrico.

Como as atividades que garantem ganho diferenciado modificam - se ao


longo do tempo, a conquista e manutenção de uma posição de
vanguarda não podem depender do controle de um setor, uma
tecnologia ou uma mercadoria específicos (um setor, uma tecnologia ou
uma mercadoria que garantem ganho diferenciado hoje podem deixar
de fazê- lo amanhã). Elas exigem liderança sobre o processo de
inovação, ou seja, capacidade permanente de criar novas combinações
produtivas, novos processos, novos produtos. Por isso, sob esse ponto
de vista, o núcleo do sistema internacional são os espaços que concentram em
si a dinâmica da inovação. Eles capturam sucessivamente as posições de
comando justamente porque conseguem recriá- las, obtendo dessa
forma benefícios extras na divisão internacional do trabalho. No outro
pólo, a dependência também se repõe dinamicamente.

Visto sob essa óptica, torna- se claro que o esforço desenvolvimentista


brasileiro (1930- 1980) manteve- se preso aos limites de uma
modernização periférica e nunca nos aproximou, de fato, do centro do
sistema mundial. Conseguimos internalizar progressivamente atividades
produtivas que, em algum momento, sustentaram a liderança dos países

18
centrais. Mas o problema é que tais atividades perdem essa
característica diferencial justamente quando a periferia em via de
modernização consegue capturá- las, pois aí elas ficam sujeitas a uma
pressão concorrencial que diminui sua importância e sua rentabilidade.
Quando isso acontece, essas atividades são relegadas a segundo plano
pelas economias centrais, que renovam sua posição privilegiada
alterando as combinações produtivas mais eficazes. A desigualdade se
repõe.

Uma impossibilidade lógica impede que “estratégias de


emparelhamento”, do tipo usado pelo Brasil e por outros países em seus
ciclos desenvolvimentistas, alterem as posições relativas no interior do
sistema. Não se consegue superar a condição periférica nem mediante o
uso extensivo de recursos naturais nem mediante a cópia de produtos e
tecnologias (e seus estilos de vida associados) que já estão maduros nos
países centrais. O desafio aberto às grandes economias retardatárias —
ou “países intermediários” — é duplo: internalizar seletivamente
elementos técnicos e culturais do paradigma vigente e, ao mesmo
tempo, preparar condições para um salto que lhes permita romper a
lógica da dependência, lançando- as na vanguarda de um novo
paradigma. Este, por sua vez, já não pode ser pensado apenas no
âmbito da técnica e da economia (neste caso, na melhor das hipóteses,
haveria um desdobramento do mesmo paradigma), mas
fundamentalmente das relações sociais. A problemática do rompimento
da dependência se articula, pois, com a questão mais geral da transição
a um novo tipo de sociedade.

É fácil ver por que a construção da nova ordem econômica mundial


associou - se à desarticulação de estratégias antes disponíveis aos países
intermediários. A ordem “globalizada” atinge as sociedades de forma
completamente diferente. No caso dos países centrais, o âmbito da
economia e da técnica, de um lado, e o âmbito das decisões políticas (aí

19
compreendidas aquelas que têm desdobramentos militares), de outro,
permanecem estreitamente vinculados, pelo forte vínculo entre
megacorporações empresariais e Estados nacionais poderosos. No caso
dos demais, esses âmbitos se dissociam, pela dispersão geográfica das
cadeias produtivas, em escala mundial, feita sob o comando de
corporações empresariais que não têm compromissos com os Estados e
sociedades mais fracos, onde apenas instalam filiais.

De modo mais ou menos geral – ressalvada a exceção da China –, as


capacidades diplomáticas, econômicas, militares e culturais desses
Estados e sociedades, bem como suas próprias vontades de desenvolver
essas capacidades, foram quebradas. O centro do sistema sustou a
penetração dos intrusos. Mas isso não os eliminou da história. Eles
continuam a existir, mesmo enfraquecidos. Contam com massas
demográficas muito expressivas, detentoras de capacidade técnica,
associada aos processos de industrialização experimentados. Seus
projetos de desenvolvimento, tal como definidos em períodos
anteriores, foram desarticulados, mas essa capacidade não desapareceu;
em larga medida, continua depositada em seus povos. Além disso,
mantêm sua vocação de pólos de sustentação de projetos regionais de
desenvolvimento e podem constituir uma importante rede internacional
de apoio recíproco. Seus territórios podem ser defendidos de qualquer
ameaça externa pela formação de infantarias extensas, imbatíveis em
seu próprio terreno.

A condição desses países é cheia de tensões e potencialidades.


Simultaneamente atraídos e repelidos pelo centro do sistema – com suas
economias profundamente inseridas nos processos internacionais de
acumulação, porém sem acesso às benesses monopolizadas pelos que
controlam tais processos –, eles podem vir a constituir um elo fraco da
nova ordem capitalista, pois podem ensaiar movimentos de ruptura,
hoje bloqueados no centro. Por outro lado, vimos que a configuração

20
atual evolui de uma situação de unipolaridade para alguma outra
configuração multipolar. Com o tempo, os espaços de manobra dos
países intermediários tenderá a voltar a crescer. Por isso, é vital que
consigamos impedir que, neste curto intervalo de unipolaridade, o Brasil e a
América Latina sejam tragados pela área regional americana, o que tornaria
“permanente” — ou, pelo menos, muito prolongada e custosa — uma
condição marcada pelo estreitamento de possibilidades.

O Brasil pertence a esse elo fraco do capitalismo contemporâneo, o


conjunto de países intermediários. Nossa crise é imensamente grave,
mas o potencial para superá- la é igualmente imenso. Para que isso
ocorra, dependemos, de um lado, dos espaços que vão se abrir para nós
naquela evolução do sistema como um todo: historicamente, nossos
espaços aumentam em períodos em que a hegemonia está em disputa,
sendo redefinida; de outro, dependemos da nossa própria capacidade
de colocar importantes mudanças internas na ordem do dia. Grandes
países periféricos, como os Estados Unidos e a China, já passaram por
desafios semelhantes, cada um ao seu jeito, e só obtiveram êxito
quando ousaram contrariar o lugar que lhe fora atribuído pela ordem
internacional de seu tempo. Isso tem custos. O problema é saber se
estamos dispostos a pagá- los.

Prevalece neste momento a tendência de voltarmos a ser um país


primário exportador, inserido de forma subordinada em um sistema
regional. A primeira condição é a de que resistamos a isso. Nossa
estratégia, hoje, começa por tentar preservar a possibilidade de termos
uma estratégia, o que depende da recuperação dos instrumentos
necessários para exercer nossa soberania. Em paralelo, deveríamos
buscar uma posição independente, fortalecida pela formação de um
bloco regional autônomo, capaz de manter relações extensa e
geograficamente diversificadas e, com o tempo, assumir um papel
próprio no mundo. O Brasil é insubstituível na criação do núcleo

21
histórico de um novo rearranjo regional de cooperação e
desenvolvimento — latino e americano —, que poderá vir a configurar
um novo bloco, ou um novo megaestado, no futuro. Por isso, em última
análise, as negociações em torno da Alca são negociações entre Brasil e
Estados Unidos sobre o destino do continente.

Qual a nossa chance de alterar o curso atual das coisas?

Depois de mais de dez anos de experimento neoliberal, uma parte


minoritária da sociedade brasileira efetivamente alterou seus padrões de
consumo, suas expectativas e seus valores, adotando os padrões,
expectativas e valores das populações afluentes do capitalismo
globalizado. Esse processo conquistou setores expressivos das classes
médias e penetrou até a medula de nossas elites. Bem- posicionados
para participar diretamente do mercado mundial — como sócios
menores, rentistas ou consumidores —, esses grupos ficam cada vez
mais tentados a desfazer quaisquer laços de solidariedade local,
desligando seu próprio destino do destino da sociedade como um todo.
Suas opções apontam para o rompimento dos vínculos históricos e
socioculturais que até aqui mantiveram juntos, em algum nível, os
cidadãos. Essa parte da sociedade brasileira – proporcionalmente
pequena, mas a mais influente – verá o ingresso formal do Brasil na
“área regional americana” como uma enorme benesse.

Outra parte da sociedade ainda deseja preservar direitos sociais


abolidos ou ameaçados, mantendo por isso alguma referência, ativa ou
difusa, em partidos, sindicatos, movimentos ou organizações não
governamentais. Sozinha, ela não tem peso para alterar o rumo das
coisas: não é maioria numérica nem detém os principais aparatos de
poder. Exerce uma influência às vezes importante, mas não decisiva.

22
Resta a maioria do nosso povo, que foi, simplesmente, desligado desses
processos. Refiro- me aos grandes contingentes humanos de que o
capitalismo não mais necessita. Sobrevivem no desemprego, no
subemprego, na economia informal, em atividades sazonais, incertas ou
ilegais. Por insistirem em sobreviver e por estarem relativamente
concentrados, ameaçam. E, de alguma forma, se organizam. São
dezenas de milhões. Mas, até aqui, não se tornaram agentes da
transformação. Este é o desafio central colocado para a esquerda, o
ponto cego de qualquer estratégia transformadora.

Pelo menos desde o fim do escravismo, nunca os diversos componentes


da nação viveram situações tão desiguais e tiveram interesses tão
conflitantes. Isso mostra que o modelo neoliberal tem menos potencial
estruturante da sociedade – e, nessa medida, menos potencial
hegemônico – que o modelo de acumulação anterior. A necessidade de
se buscar alternativas é mais evidente a cada dia. Mas ninguém é capaz
de prever o que virá pela frente, pois o Brasil atual é um país muito
mudado e muito desconhecido. É como um quebra- cabeças que
ninguém montou. Peças isoladas, ou encaixadas em pequenos grupos,
nos trazem fragmentos de informação, mas não temos uma nítida
imagem de todo o conjunto. Creio que três mudanças estruturais mais
ou menos recentes são especialmente importantes, por suas
implicações para o nosso futuro imediato.

Durante a maior parte do século XX, o Brasil foi uma economia


capitalista dependente, desigual, geradora de pobreza, concentradora
de renda e de propriedade, porém foi também, ao mesmo tempo, uma
economia muito dinâmica. Nossa capacidade produtiva cresceu 7% ao
ano, em média, durante cinqüenta anos. Hoje, somos uma economia
capitalista dependente, desigual, etc., e de baixo crescimento. Ficamos
com o que havia de ruim, perdemos o que havia de melhor. Não nos
iludamos com os anúncios, sempre reiterados e sempre frustrados, da

23
“retomada do crescimento”. Há duas décadas não temos nada parecido
com crescimento sustentado, mas apenas miniciclos de crescimento
dentro de uma economia travada. Nada indica que essa condição tenha
sido alterada. Essa transição estrutural – de uma economia dinâmica
para uma economia de baixo crescimento – é muito importante, pois o
grande dinamismo da economia brasileira até 1980 foi um fator decisivo
para conferir relativa estabilidade a uma sociedade tão desigual como a
nossa.

A ela se soma uma segunda transição. Em nossos 500 anos de história,


durante 470 anos fomos um país cuja maioria da população estava no
campo. O primeiro censo demográfico que indicou um equilíbrio
campo/cidade foi o de 1970. Hoje, mais de 80% da nossa população já
estão vivendo nas cidades. Quase 40% da população total do país
concentram - se em apenas nove aglomerados urbanos, as Regiões
Metropolitanas, já que, como regra geral, também a rede de pequenas
cidades perdeu dinamismo. É outra mudança estrutural cheia de
conseqüências. Destacarei apenas uma delas: famílias que vivem em um
pedaço de terra, no campo, têm uma casa, uma roça, um pomar e uma
criação de animais. A relação direta com a natureza lhes garante o
mínimo essencial para sobreviver. Precisam de dinheiro para comprar
aquilo que não conseguem produzir. Na cidade, a vida é muito
diferente. Ninguém tem roça ou criação, e freqüentemente não se tem
nem mesmo uma casa própria. Essa família urbanizada precisa agora
obter uma renda em dinheiro para cobrir todas as suas necessidades.
Para a grande maioria, essa renda depende de um emprego.

A terceira mutação, a que me referi, é a seguinte. Muitos estudos


indicam que, até mais ou menos 1990, apesar de injusto como sempre
foi, o Brasil contava com vários mecanismos que garantiam à sua
população, na média, mobilidade social ascendente: os setores
modernos da economia absorviam força de trabalho; a fronteira agrícola

24
estava em expansão; o Estado aumentava sua oferta de serviços e
contratava mais gente; chegou a existir em muitas regiões uma escola
pública de razoável qualidade, etc. Na década de 1990, porém, todos
esses mecanismos foram quebrados, e o resultado disso é que
represamos a mobilidade social. Os pobres não conseguem mais sair do
lugar. Nem a oferta de trabalho, nem o deslocamento no espaço, nem a
possibilidade de estudo abrem mais alternativas significativas. As
periferias das Regiões Metropolitanas viraram depósitos de gente sem
perspectivas.

Ninguém sabe dizer como nossa sociedade se comportará. Porém,


contrariando as aparências e o pessimismo de muitos, nunca o povo
brasileiro ocupou uma posição potencialmente tão forte. Essas
multidões concentradas em grandes cidades, com acesso a redes de
informação e sem alternativas dentro do sistema são – em tamanha
escala – um fenômeno novo em nossa história. Já ensaiaram mover- se
nas diretas- já, na campanha de 1989, no impeachment de Collor. Três
vezes em oito anos. Ensaiaram mover- se, mas ainda não aprenderam a
caminhar firmemente sobre os próprios pés, nem a levar suas demandas
até o fim. Não entraram no palco para valer. Mas já podem entrar. O
destino da nação está em suas mãos.

Vou concluir, recapitulando.

(a) A unipolaridade que marca o mundo após- Guerra Fria está dando
lugar, gradativamente, a uma nova configuração multipolar muito
complexa. O trânsito entre as duas situações é lento, pois há
disputa e cooperação no centro do sistema. A solução pela guerra
está afastada, e a conjugação de três anomalias econômicas criou
até hoje uma possibilidade muito elástica de adiamento de uma
grande crise. Isso desaparecerá se o dólar perder sua
centralidade atual, o que só poderá ocorrer em um prazo de pelo

25
menos dez ou quinze anos. Não está clara a configuração exata
da nova ordem multipolar, que dependerá crucialmente dos
acontecimentos na Ásia.

(b) Os Estados Unidos estão em via de incorporar formalmente todo


o Hemisfério Americano em sua área regional de controle direto,
que poderá vir a ser, explicitamente, a “área do dólar”,
contrastada à “área do euro” e a algum tipo de arranjo asiático
que ainda não é claro.

(c) O destino do Brasil está atrelado ao do seu continente, porém


com uma importante especificidade: somos o grande país
intermediário da região, um país que ainda tem alguma margem
de manobra. É fundamental usá- la, apostando em uma nova
multipolaridade futura e preparando um outro caminho: a
formação de um bloco regional latino - americano com presença
global. Isso impõe uma estratégia de enfrentamento das
pretensões norte- americanas no hemisfério.

(d) A base social interna dessa nova estratégia é o povo brasileiro,


cujo destino depende inteiramente do destino que terá o Brasil.
As elites podem, no máximo, negociar certas condições para
nossa inserção subordinada no projeto americano. Por isso, um
reposicionamento estratégico no mundo e a realização de
profundas reformas políticas e sociais internas, que garantam a
hegemonia popular, são faces gêmeas de um mesmo projeto.

(e) O Brasil experimentou, em pouco tempo, mutações estruturais


de largo alcance, cuja combinação aponta para contradições
graves e, eventualmente, explosivas: deixou de ser uma economia
dinâmica e passou a ser uma economia de baixo crescimento, que

26
não gera empregos; urbanizou maciçamente sua população, que
agora, mais do que nunca, precisa de empregos para sobreviver;
destruiu os caminhos abertos à mobilidade social, nos níveis
(insuficientes) que já tivemos. A crise do modelo neoliberal, que
se projetará pela nova década adentro, terá como pano de fundo
essa crise maior, que questiona as estruturas do capitalismo
dependente brasileiro.

Esse é o contexto dentro do qual temos de nos posicionar. Justamente


nele, a maior parte da esquerda brasileira se convenceu de que não é
possível propor mudanças importantes, de que mais vale uma bolsa-
família na mão do que uma soberania no ar, de que grandes
transformações não estão na ordem do dia, e assim por diante. A
história a julgará.

27
Ciclo de seminários
Fórum Social Brasileiro, Belo Horizonte, 7 e 8 de novembro de 2003

Um projeto Ibase, em parceria com ActionAid Brasil, Attac Brasil e


Fundação Rosa Luxemburgo

As culturas brasileiras da participação democrática

Juarez Guimarães
Professor de Ciências Políticas da UFMG

Introdução

O objetivo desta exposição é responder a uma pergunta básica: por que o


Brasil é hoje um dos países do mundo com uma maior participação
democrática e riqueza associativa? Trata- se de investigar as mudanças
recentes na cultura política dos brasileiros e que dizem respeito a
desenvolvimentos de processos enraizados socialmente e que já se
configuram em tradições.

Não possuímos um painel comparativo entre países. Mas creio que é


possível fundamentar a afirmação contida na pergunta. Do ponto de vista
das tradições socialistas, em qual país do mundo observamos tanta
vitalidade e expansão de um partido político (o PT, que nas eleições de
2002 tornou - se o partido de maior expressão eleitoral do Brasil, mas não

1
apenas ele), de uma central sindical de trabalhadores (a CUT recém
realizou o maior congresso de sua história) e de um movimento de
trabalhadores rurais (O MST tem ampliado significativamente a sua
atividade nos últimos meses)? Em várias capitais do país, a realização de
orçamentos participativos indica experiências de democracia participativa
sem paralelo nas democracias ocidentais. Movimentos sociais, em
particular, na área da saúde, reforma urbana e assistência, vêm
construindo todo um trabalho de participação institucional. O cálculo de
estudiosos da participação popular animada pela Igreja Católica (Frei Beto,
Helena Salem, Rogério Valle e Marcelo Pitta, Pedro Ribeiro de Oliveira)
estima em cerca de 70 mil Comunidades Eclesiais de Base atuando no
Brasil (agrupando em torno de dois milhões de fiéis). A realização dos
Fóruns Sociais Mundiais tem estimulado o florescimento de ONGs e redes
associativas que percorrem todo um espectro de temas de questionamento
à globalização neoliberal. Em São Paulo, este ano realizou- se uma das
maiores passeatas do Orgulho Gay do mundo. A participação eleitoral no
Brasil vem crescendo e hoje o país é seguramente uma das maiores
democracias eleitorais do planeta. Também o Direito e o sistema judiciário
vem sendo objeto de um processo permanente de reivindicações e
construção de novos direitos, mais claramente após o processo da
Constituição de 1988.

O que anima todo este trabalho democrático?

Não seremos capazes de responder a esta pergunta se nos fixamos em


uma perspectiva que fica retida no par sociedade tradicional/ sociedade
moderna, tão típica das visões preconceituosas erigidas na ciência política
norte- americana sobre a sociedade brasileira. Por esta visão, somos
católicos e latinos, logo, incapazes de criar cultura cívica, submissos à
dominação patriarcal ou patrimonial, cevados pelo coronelismo e pelo

2
clientelismo, sem tradição de verdadeiros partidos, afeitos à corrupção e
ao favoritismo etc etc. Educarmo- nos para a democracia implicaria em
afastarmo- nos de nossas origens e aproximarmo - nos do padrão anglo-
saxão.

Não se trata aqui de fazer apologia do iberismo ou da tradição política


brasileira, construindo uma visão idílica e adocicada das vertentes
agressivas de dominação e violência nela contidos. Mas de visualizar a
trajetória do trabalho reflexivo das tradições republicanas brasileiras, no
sentido de trasnformá - las por dentro, atualizando e democratizando seus
fundamentos e valores. Dois exemplos apenas. É evidente que a cultura
socialista brasileira transformou profundamente seus valores nas três
últimas décadas em relação aos padrões dominantes nas décadas
anteriores, estabilizados a partir da influência central do antigo Partido
Comunista Brasileiro. Por outro lado, a Igreja Brasileira em seu conjunto foi
profundamente modificada pelo Comunitarismo Cristão e pela Teologia da
Libertação. Seus valores, sua percepção da sociedade brasileira, suas
relações com o poder foram profundamente transformadas em relação ao
padrão dominante até os anos cinqüenta. É a análise deste trabalho das
tradições que nos permite entender as mudanças na cultura política dos
brasileiros.

Entender a direção, a profundidade e o ritmo destas mudanças em curso é


um grande desafio. Penso que podemos aqui apenas indicar cinco grandes
vetores:

❧ um deslocamento para a centro- esquerda e para a esquerda dos


valores de identidade política dos brasileiros;

3
❧ uma retomada profunda da identidade da experiência da civilização
brasileira consigo mesma, ao mesmo tempo, latina, universalista e
cosmogônica;
❧ uma expansão da identidade feminina, que se alimenta
continuamente da conquista de posições no mercado de trabalho e
na educação;
❧ uma pressão política e cultural cada vez mais intensa no sentido da
democratização racial do país;
❧ a expansão libertária dos Eros, em uma sociedade que nunca foi
marcada pela ascese puritana e nem nunca aceitou a divisão
platônica cristã do corpo /alma, com as suas vertentes sacrificiais,
mas sempre se pautou pelos ritos da festa e do lúdico.

Todo este processo de mudança de valores e atitudes convive com


dimensões regressivas ( culto da violência, das linhas esterilizantes do
mass media, da regressão social) mas parece- nos tendencialmente
dominante. Esta dominância do dinamismo democratizante exige e reclama
o encontro das tradições republicanas brasileiras, sua mútua configuração,
que estudaremos a seguir.

O comunitarismo cristão

O fato decisivo para a construção desta tradição brasileira foi a fundação


da CNBB, liderada por Dom Hélder Câmara, em 1952. Esta fundação já
traduzia uma primeira síntese no interior da tradição católica brasileira que
recebia, então, o impacto de pensadores como Jacques Maritain e
Emmanuel Mounier. No processo de radicalização vivido pelo país naquele
contexto, nascia assim a esquerda católica brasileira como expressão do
que, poderíamos chamar, de a ala esquerda do comunitarismo cristão. No

4
período do regime militar, esta tradição ganhou vasto enraizamento social
com a experiência das CEBs.

Assim, quando houve uma reação conservadora, desde o centro da Igreja,


nas últimas décadas às teses do Concílio Vaticano II, esta tradição já havia
alcançado um nível de sedimentação social que lhe permitiu resistir,
renovar- se e continuar expandindo - se.

O que parece é que, longe de exaurir - se, esta tradição renovou - se no


encontro com a democracia brasileira em reconstrução, relacionando o seu
associativismo de base com os marcos institucionais, direcionando a opção
preferencial pelos pobres para os temas da cidadania, incidindo sobre a
cultura política brasileira com as exigências cristãs da solidariedade, da
ética e da igualdade. O seu impacto na problemática agrária, indígena e na
crítica ao neoliberalismo nos anos noventa não pode ser subestimado. Nos
anos recentes, esta tradição tem se aberto ao ecumenismo, ao tema dos
direitos das mulheres, embora conserve uma atitude conservadora frente
aos desafios que, em sua visão, comprometem a vida familiar (direito do
aborto, direitos dos homossexuais, permissividade etc).

A última conferência da CNBB parece ter sido marcada por uma dinâmica
unitária entre as tradições herdeiras da Teologia da Libertação e as
correntes mais moderadas, inclusive aquelas vinculadas aos carismáticos.
O fundo comum desta dinâmica que desdramatiza as diferenças entre os
compromissos sociais e espirituais da Igreja parece ser exatamente o
comunitarismo cristão quem sempre buscou manter um equilíbrio entre as
duas dimensões.

O nacional-desenvolvimentismo

5
Nenhum outro país da América Latina viveu no pós- guerra um
florescimento da cultura nacional- desenvolvimentista como o Brasil.
Herdeira do primeiro ciclo varguista, ela se conformou e se enraizou no
período que vai de 1945 - 1964, recebendo o impacto da tradição da Cepal
no continente, combinando projetos sistêmicos de nação com uma agenda
de inclusão social e florescimento dos sentimentos e criações de
identidade cultural. A criação da Petrobrás, do BNDE, da Sudene, de
Brasília, entre outros, tornaram - se marcos duradouros da afirmação
brasileira. O período foi marcado também por uma agenda especialmente
criativa no plano das artes, marcando o amadurecimento estético de toda
uma geração formada no Modernismo de 1922 – Cinema Novo, Bossa
Nova, CPC etc.

É interessante que mesmo o regime militar brasileiro não foi


desnacionalizante mas desenvolveu um projeto de integração ativa na
ordem internacional, inclusive com pretensões geopolíticas no continente.
A tradição nacional- desenvolvimentista permaneceu, então, como uma
espécie de repertório que retornou no período após o regime militar. Nos
anos noventa, alimentou a crítica ao neoliberalismo e hoje participa
ativamente da base política, social e intelectual do governo Lula, como na
condução de sua política externa.

A importância desta tradição está exatamente em ter desenvolvido, em


civilizações criadas a partir de uma experiência de colônia e submetidas a
graves processos de desvalia de amor próprio, a consciência cívica da
nação, a noção de um pertencimento e de um destino comuns. Em um país
marcado por tão fortes heterogeneidades e clivagens de classe, ela
contribui para estabelecer um solo republicano comum.

6
O nacionalismo, em uma certa cultura acadêmica, foi criticado desde
sempre como mistificador dos interesses de classe. A crítica é
simplificadora em dois sentidos. Em primeiro lugar, pelo fato de que o
nacionalismo expressou- se através de muitas vertentes, desde a direita até
à esquerda, passando pelo centro. Em segundo lugar, porque mesmo o
desenvolvimento da consciência das classes trabalhadoras no Brasil não
pode ser pensado por meio de um padrão europeu, separado das
condições nacionais de sua existência e experiência social, isto é, de seu
lugar no mundo do capitalismo, de sua cor, de sua religião etc.

Quando encontrou a cultura democrática, as vertentes mais decisivas deste


sentimento nacional – como aquela desenvolvida na obra de Celso Furtado
– expressaram- se não através da idéia de uma autarquia mas de uma
autonomia nacional, não de expansão subimperialista mas de integração
soberana em uma ordem mundial transformada.

O socialismo democrático

O grande animador da luta democrática e do protagonismo organizativo no


Brasil nas últimas duas décadas tem sido o Partido dos Trabalhadores.
Junto a ele, há um conjunto de forças políticas que se reclamam do
socialismo democrático que têm exercido um papel importante.

São poucos os países do mundo hoje em que partidos de esquerda têm tal
enraizamento social e força eleitoral. Isso se explica, a nosso ver, por três
razões.

7
Em primeiro lugar, por ser um partido de esquerda tardio, crítico às
tradições do estalinismo e da social- democracia européia. Esta identidade
de origem explica porque este partido conseguiu resistir à crise definitiva
da URSS no final dos anos oitenta e nem se pasteurizou nas chamadas
“Terceiras Vias” dos anos noventa. O seu pluralismo matricial transformou -
se em certas condicionalidades democráticas de sua vida interna e sistema
de decisões que tem permitido até agora a experiência se desenvolver em
um grau alto de pluralismo e de divergências internas.

Em segundo lugar, ele soube desde o início recusar o dualismo


sociedade/Estado, movimentos sociais/institucionalidade, buscando de
forma criativa combinar estas duas dimensões em sua experiência. É esta
dialética entre vida social e vida político institucional que tem permitido
este partido renovar- se nas diferentes conjunturas brasileiras desde o seu
nascimento.

Em terceiro lugar, o PT alcançou nos anos noventa uma dimensão rara na


vida dos partidos brasileiros, um enraizamento nacional, crescendo no
nordeste e no norte do país. Sua base social também se diversificou muito,
para além da origem classista original. De alguma forma, o PT tornou - se
brasileiro, acolhendo em seu interior diferentes dimensões étnicas,
regionais e religiosas.

A chegada ao centro do Estado brasileiro não deixa de ser, no entanto, um


grave desafio que expõe todas as carências programáticas, de unidade e
capacidade de gestão de um partido cuja experiência governativa é
basicamente municipal e apenas limitadamente estadual.

8
O liberalismo ético

Uma característica particular da experiência democrática brasileira tem


sido um grande dinamismo no que diz respeito à juridificação de novos
direitos, procedimentos e salva- guardas democráticas. Este dinamismo
constitucional contribui de modo decisivo para a institucionalização da
vida democrática em expansão.

Seria incorreto falar, deste ponto de vista, de uma ordem jurídica fechada,
cristalizada, marcada por um conservadorismo. Se a segunda metade dos
anos oitenta foi profundamente galvanizada pela experiência constituinte,
os anos noventa foram seguidos de um reformismo constitucional, em
geral direcionadas por uma pauta neoliberal. A experiência democrática do
governo Lula dá- se, assim, em meio a uma ordem institucional em
movimento, híbrida, aberta à renovação.

É neste contexto que cabe falar da presença central e importância decisiva


de um liberalismo ético, de vertente social e receptivo à defesa dos direitos
do cidadão. Esta tradição sempre foi expressiva na vida cultural brasileira
mas marginal na ordem política. Ela atingiu um ponto de fixação na alta
cultura brasileira por meio da obra de Raymundo Faoro, que estruturou
uma narrativa de nossas origens, identidades e destinos vocacionada para
a crítica de todo projeto de modernização assentado em um Estado avesso
à democracia e à separação das esferas do público e do privado.

Nos anos recentes, a cultura jurídica brasileira tem sido dinamizada pelas
correntes do direito alternativo, do comunitarismo cristão, da legitimidade
discursiva, enfim, pela criação coletiva e social dos direitos. É este
dinamismo jurídico que pode distensionar conflitos, dar cobertura
institucional a novas práticas associativas e deliberativas, além de exercer

9
uma pressão civilizatória sobre a ordem mercantil excludente e
concentradora.

Cultura popular

Por fim, caberia identificar uma fonte difusa mas vital da civilização
brasileira: a cultura popular. Rousseau nos dizia que as festas populares
são como que o momento lírico de expressão da vontade geral. No Brasil, a
vida associativa e participativa sempre se alimentou de um sentimento
comunitarista que coube a nossos grandes criadores transformar em
expansão de nossa imaginação civilizatória.

Excluído da comunidade política, não tendo reconhecida a dignidade de


seu trabalho, o povo brasileiro refez- se através da cultura. Ali ele foi, ao
longo do tempo, republicanizando o país, cindido pela escravidão, pela
diferença social e pelo mercado. Conformou, assim, uma espécie de casa
comum dos brasileiros, para além da adscrição de raça, origem, credo,
classe, sexo ou ideologia.

Mário de Andrade já no final dos anos vinte identificou na música a


expressão de vanguarda dessa matriz civilizatória. Nos anos do
nacionalismo, o samba fez- se expressão da identidade nacional, tornando -
se irradidador do que poderíamos chamar de o contágio benigno da
fraternidade. Entre os países ocidentais, o Brasil ,junto com os EUA, é o
único país cujo mercado de consumo musical é basicamente nacional, sem
deixar de verter para uma identidade própria todo tipo de ritmos e
experiências de musicalidade do planeta.

10
É mais que provável que no próximo período, em compasso com avanços
democráticos, vivamos uma nova época de ouro da cultura brasileira tão ou
mais rica que a dos anos que precederam o golpe militar de 64.

11
Ciclo de seminários
Fórum Social Brasileiro, Belo Horizonte, 7 e 8 de novembro de 2003

Um projeto Ibase, em parceria com ActionAid Brasil, Attac Brasil e


Fundação Rosa Luxemburgo

Democracia versus Guerra Civil Global


Qual é a agenda pós-Neoliberal?

Mark Ritchie
Economista

Este fórum social está voltado para três dimensões específicas do mundo
que estamos tentando criar.

Primeiro, as cidadanias individual e coletiva – nosso papel e


responsabilidades dentro do desenvolvimento humano sustentável.

Segundo, a questão sobre como produzimos e tornamos disponíveis os


produtos de que necessitamos para sobreviver – sem esquecer daqueles
com quem devemos compartilhar este planeta agora e no futuro.

Foi- me solicitado que focalizasse um terceiro aspecto, os elementos-


chave das relações – recíprocas, ou no conjunto – entre nações- estado,
instituições internacionais e povos. Minha missão específica é a de falar
sobre a nova situação e os desafios que se configuraram depois de
Cancun, especialmente à luz das crescentes ameaças de unilateralismo,
mercantilismo, nacionalismo neo- conservador e militarização.

1
O que se pode dizer no espaço de um breve paper sobre temas tão amplos
é, obviamente, limitado. Meu objetivo, nestes poucos minutos que tenho
com vocês, é simplesmente o de iniciar um debate, focalizando apenas um
dos elementos- chave da ordem internacional – o comércio e a principal
instituição de elaboração de políticas de comércio, a Organização Mundial
do Comércio (OMC). Usando a OMC como exemplo, investigarei alguns
dos pensamentos que emergiram do seio da sociedade civil sobre as
maneiras de reformular nosso sistema global de forma que tanto os
estados- nação como as agências internacionais possam nos dar um
melhor auxílio na nossa tarefa coletiva de construir um desenvolvimento
humano social, econômica, ecológica e politicamente sustentável.

Como introdução às minhas observações, permitam - me determinar qual é


a minha opinião geral sobre comércio, a Organização Mundial do
Comércio e a legislação e política de comércio como um sistema mais
amplo. Primeiramente, sou a favor do desenvolvimento e da preservação,
ao máximo possível, das culturas, das comunidades e das economias
locais. Criar e defender um alto grau de diversidade econômica, social,
cultural, artística, política e biológica é tanto uma questão básica de
direitos humanos quanto de sobrevivência humana. Minha tendência a
pensar desta forma é cada vez mais intensa, à medida que meu temor vai
aumentando diante do desconhecimento sobre os riscos relacionados à
predominância atual de um modo de vida baseada na indústria centrada
no hidrocarboneto.

Ao mesmo tempo, sou viciado em café e vivo num país cujo clima frio e
sem montanhas não é apropriado para se produzir essa droga
maravilhosa. Isto significa que preciso ser muito simpático para com as
pessoas que vivem no Brasil e em outros países produtores de café para
que eu possa suprir minha dose de cafeína diária e a um preço que eu
possa pagar. Ademais, preciso produzir alguma coisa que os produtores e

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trabalhadores que me fornecem o café queiram em troca – do contrário,
fico na dependência da caridade alheia que pode ser, no caso dos
brasileiros, extremamente generosa mas certamente não sem limites.
Tenho de produzir ou dar como moeda de troca algo que seja econômica,
ecológica e socialmente sustentável para ambos – senão, não vai durar e
as condições serão entendidas como uma forma de exploração das
pessoas e/ou do nosso planeta.

Dado que meus objetivos se complementam – apoio ao comércio local ao


mesmo tempo em que se beneficiam da troca de produtos e serviços à
longa distância – estou sempre buscando o equilíbrio entre os dois. Um
bom exemplo deste equilíbrio, do meu ponto de vista, é o selo de
certificação de comércio justo utilizado em inúmeros produtos e
commodities, que vão desde bolas de futebol até o café. Outro exemplo é a
Convenção sobre Diversidade Biológica que determina as condições de
comércio visando a proteger nossa herança genética. Um terceiro exemplo
é a Bolsa Amazônia que promove o comércio que protege especificamente
a ecologia na bacia do rio Amazonas. O que há em comum entre cada uma
dessas disposições sobre comércio legal é um conjunto de regras de
comércio estabelecidas de comum acordo. Tenho a forte convicção que o
comércio pode e deve ser organizado de forma a promover o
desenvolvimento humano sustentável e a solução para isso seria através
do comércio de importação e exportação baseado em normas
estabelecidas que sejam monitoradas e cumpridas.

Uma vez que o comércio na sua maioria é realizado por empresas – e não
por governos – a chave para a elaboração de normas consistentes e que
num momento posterior podemos ver o cumprimento delas estaria na
combinação de forças – inclusive de negócios bem instruídos,
consumidores conscientes, governos nacionais e agências/instituições
internacionais progressistas. Dados os atuais desequilíbrios em nível
mundial em termos de poderio econômico e militar, creio que esses

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acordos têm de ser forjados e buscados em todos os níveis e em
combinações diversas a fim de proteger o nível local e promover a
sustentabilidade econômica, ecológica e social.

Acredito que de fato saibamos como organizar o comércio para que ele
seja sustentável, mas isto não acontecerá por acidente, ou pela magia das
mãos invisíveis ou dos punhos calçados com luvas de veludo. O comércio,
como todos os outros negócios, tem de ser administrado em prol da
sustentabilidade – preços justos, lucros e salários para que cada um possa
estar contribuindo com o produto final. O comércio sustentável inclui o
crescimento contínuo em termos da produção de produtos com maior
qualidade a baixo custo para o meio ambiente e, portanto, para
consumidores e para a sociedade como um todo.

Dada esta perspectiva, como vejo a OMC e a política de comércio, no


geral, na próxima etapa?

Sou otimista quanto à próxima fase por três razões principais.

Primeiro, graças à feliz convergência de muitos fatores, inclusive pela


importante liderança do governo brasileiro, a OMC inicia um processo de
transição, passando de meramente uma extensão dos acordos neo-
coloniais pós- Segunda Guerra Mundial – onde uns poucos países ditavam
ordens à maioria – para uma nova maneira de operar que pode ajudá- la a
se tornar uma verdadeira instituição da economia internacional. A reunião
ministerial da OMC em Cancún, na minha opinião, foi a primeira vez na
história dessas conversações sobre comércio – voltando lá atrás no
passado, desde a Conferência de Havana, em 1947 –, que as negociações
sobre comércio chegaram perto de ser realmente globais. Sobre os dois
temas mais importantes que estavam em discussão, agricultura e os temas
de Cingapura propostos, cerca de 100 países do mundo em
desenvolvimento engajaram- se num debate verdadeiro e em duras

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negociações com as meras duas dúzias de países industrializados que
compõem a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCED). Como órgão do sistema global das Nações Unidas, as
instituições que elaboram políticas de comércio historicamente têm
produzido parte do mais avançado pensamento e da retórica nessa área.
Infelizmente, na prática, nunca cumpriram sua missão progressista de
pleno emprego, justiça e processo democrático globais.

Segundo, a OMC tornou - se a instituição de economia internacional sobre a


qual a sociedade civil e cidadãos individualmente detêm mais informação e
sobre a qual suas ações de exigibilidade (advocacy) têm sido as mais
eficazes. A natureza altamente reservada e anti- democrática do GATT, a
antecessora da OMC, e as conseqüências bastante negativas sofridas por
produtores, trabalhadores e pelo meio- ambiente, resultantes das
negociações anteriores, que combinadas fizeram da OMC o alvo
provavelmente do maior movimento mundial desde a guerra do Vietnam.

Tanto através da ação direta e organizada de exigibilidade como da


participação ampliada pelo trabalho dos parlamentares, cidadãos do
mundo todo vêm contribuindo na definição de uma agenda e
influenciando no próprio processo. Somente agora estamos começando a
compreender o processo de lobby e exigibilidade mundiais e, com certeza,
somos fracos em muitos aspectos, porém dentre todas as ações de
exigibilidade cidadã em nível mundial do momento, a ação frente a OMC é
a mais avançada. As lições tiradas de outras importantes iniciativas da
cidadania mundial, como o boicote à Nestlé, o Tratado de Minas
Terrestres, e a Convenção sobre Diversidade Biológica, começam a se
fundir e amalgamar, depois de quase 20 anos de ação de exigibilidade
cidadã frente ao GATT e a OMC, para então tomar a forma de uma
estrutura de efetiva ação de exigibilidade cidadã em nível global. Essa
estrutura que está se formando não é sinônimo de democracia global, mas
ainda assim é importante.

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A terceira razão tem a ver com a estrutura da OMC. Nela é necessário
haver consenso em muitas áreas para que as negociações possam
prosseguir e isso a torna uma instituição ideal para a construção de
acordos verdadeiramente globais – aqueles que são bons tanto para o
Norte quanto para ao Sul. A Índia esteve praticamente isolada na sua
posição quanto aos temas de Cingapura durante a reunião ministerial da
OMC realizada anteriormente em Doha, no Qatar. Em Cancún, a Índia
integrou uma enorme coalizão. O ativismo cidadão sobre essas questões
foi crucial para que os governos pudessem perceber o que estava em jogo
e compreender que havia espaço para resistir, porém esta resistência teria
sido inútil caso a Índia não tivesse se posicionado com firmeza em Doha.
Se por um lado a pressão e o desrespeito sofridos pelos países que
exercem seu direito de dizer não aos EUA e a EU ainda sejam
extremamente fortes – insuportáveis para alguns –, por outro lado, a
reunião de Cancún mostrou que alguns governos, em especial quando se
articulam numa ampla coalizão, conseguem exercer seus direitos dentro
desse modelo de consenso.

Considero Cancún um sucesso. Esse ponto de vista tem sido criticado por
alguns amigos que acreditam que Cancún foi um fracasso, uma vez que os
governos perderam a chance de avançar em algumas questões
importantes e de preocupação para o mundo em desenvolvimento. Se
Cancún se constituiu verdadeiramente num novo começo ou meramente
em outra oportunidade que se deixou escapar, somente daqui a cinco ou
dez anos será possível avaliar melhor. O importante, entretanto, é que
nós, que acreditamos no sistema multilateral, devemos tomar esse
caminho que se vê através da janela aberta em Cancún, apropriando - nos
do “momentum” que foi gerado, para avançar no desenvolvimento humano
sustentável. A História nos julgará não pelo que fizemos em Cancún, mas
pelo que fizemos de Cancún.

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Mas o que isto significa em termos concretos para cidadãos e movimentos
sociais? Creio que existem cinco tarefas importantes à nossa frente.

Primeiro, temos de prosseguir na orientação geral de tornar as


negociações realmente globais. Isto significa dar apoio a todo e qualquer
esforço para se obter um maior engajamento de todos os países membros
da OMC numa participação ativa nos debates importantes. Isto poderá
demandar o desenvolvimento de uma relação de consultoria técnica junto
às ONGs e mesmo a realização de treinamento e elaboração de programas
e material didáticos. Por exemplo, se as políticas agrícolas do governo
federal americano tendem a ser um tema de suma importância, então o
melhor a fazer seria dar treinamento aos negociadores e seus assessores
sobre o real conteúdo e abrangência dessas políticas, do que ter uma
retórica sobre política agrícola vazia e desprovida de instrução que tão
freqüentemente ouvimos tanto da parte das ONGs quanto da parte dos
governos.

Segundo, temos de ampliar de forma significativa nossos esforços junto às


pessoas e às organizações buscando elevar o nível de conscientização,
análise crítica e capacidade de desenvolver propostas alternativas. Em
alguns setores, como o da agricultura, há muitas pessoas que já estão
capacitadas nesses aspectos, entretanto é preciso um trabalho anterior
com elas para que possam efetivamente produzir algo inovador e realizar
ações de exigibilidade em arenas globais. Isso tem de ser buscado em
todos os níveis – na base (p.ex.: junto a cada grupo formados nas igrejas)
e na mídia de massa –, utilizando todos os meios disponíveis. Trazer mais
dos nossos representantes, democraticamente eleitos, especialmente os
parlamentares, para dentro do processo de elaboração de políticas de
comércio também faz parte desse esforço. A presença em Cancún, pela
primeira fez, de um grande número de parlamentares federais e estaduais,
bem preparados, talvez tenha tido mais impacto no resultado das reuniões
do que a presença das ONGs.

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Terceiro, precisamos usar este momento na história da OMC – onde parece
haver uma abertura para um novo pensamento e para a reformulação – e
pressionar por reformas estruturais no modo de operação dessa
instituição. Por exemplo, uma boa maneira de começar seria através de um
processo de revisão, aberto e público, dos potenciais candidatos ao cargo
de Diretor Geral, e do estabelecimento de normas de procedimento de
negociação que fossem monitoradas e cumpridas. A metodologia usada na
realização das sessões de negociação – “informalidade”, participação
limitada de representantes e inexistência de documentação sobre as
posições tomadas pelos negociadores – tornam o processo de negociação
não transparente. Essa situação pode ser revertida executando - se
reformas no procedimento, tais como as que foram propostas por países
membros antes de Cancún.

Quarto, precisamos esclarecer qual o papel de uma gama de instituições


regionais e globais em relação à política de comércio e dar um sentido a
esse grupo de instituições. Por exemplo, a maioria dos assuntos
“explosivos” levantados pelos governos do Terceiro Mundo em Cancún,
como os problemas desastrosos enfrentados pelos produtores de café e
algodão no mundo em desenvolvimento, são questões relacionadas a
commodities que normalmente seriam tratadas no âmbito da Conferência
das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). A
propósito, a 11 a. Conferência Ministerial da UNCTAD será realizada em São
Paulo, em junho do próximo ano. Um dos principais focos dessa reunião
tratará do aspecto do suprimento no comércio. Em todo o globo há muitas
pessoas sérias, inclusive líderes conservadores como o ex- primeiro
ministro canadense, Brian Mulroney, pedindo por uma Segunda
Conferência de São Francisco, numa alusão à fundação das Nações Unidas
em São Francisco há quase 60 anos atrás. O secretário geral da ONU, Kofi
Annan, já pôs em andamento uma ampla revisão do sistema das Nações

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Unidas que poderia formar a base de uma séria reforma de todo o sistema
de Bretton Woods.

Quinto, precisamos atacar alguns problemas globais mais prementes, os


quais os governos parecem incapazes de tratar no momento. Por exemplo,
a persistência dos baixos preços globais para o algodão, café e outras
commodities continuam sendo um entrave ao comércio e ao
desenvolvimento sustentáveis. A natureza dramática das intervenções dos
governos da África Ocidental, que se encontram perigosamente
dependentes dos preços mundiais para o algodão, que não têm controle
sobre coisa alguma, foi um dos pontos culminantes da reunião de Cancún.
Pequenos produtores dos estados mexicanos de Chiapas e Oaxaca falaram
com eloqüência sobre a situação desesperadora dos cafeicultores do
mundo inteiro. Temos experiência suficiente e somos capazes de
apresentar soluções concretas que podem ser implantadas com ou sem
apoio governamental.

Estes e outros assuntos

Se eu estiver correto, então a OMC entrou num processo de mudança de


composição e enfoque, distanciando- se do papel de ser apenas uma via
por onde os EUA e a EU impõem seus acordos e aproxima - se de um lugar
onde as políticas de comércio são avaliadas e negociadas em termos do
seu alcance para concretizar metas de desenvolvimento.

Há dezenas de questões que emergiram antes e durante Cancún que


exigem propostas concretas e campanhas mundiais para que sejam
implementadas. O que está faltando é a constituição de um processo
global de apropriação das melhores idéias que estão aí borbulhando e
transformá- las em propostas concretas, e talvez competitivas. Estas,
depois, vão passar pelos vários canais e processos nos níveis da
sociedade, do comércio e dos governos para constituir um consenso

9
global. Com o surgimento do Fórum Social Mundial estamos começando a
caminhar em direção a um processo de produção de consenso no âmbito
da sociedade, o que cria a perspectiva real de algum dia irmos em direção
a um verdadeiro processo global.

Entretanto, a minha interpretação otimista dos resultados da reunião


ministerial de Cancún e a oportunidade de termos um avanço no nível
global, ao que se pode denominar Momento Cancún, não é a única
interpretação. Aqueles que preferem o unilateralismo, o mercantilismo, e o
uso da força sobre o cumprimento da lei, estão tirando outras lições de
Cancún.

Dentro dos EUA, existem quatro grandes classificações das visões sobre o
papel do comércio na política externa. Primeiro, há aqueles que estão no
poder e aprovam o unilateralismo como a forma mais eficiente e efetiva de
exercer o poder americano para manter o acesso privilegiado a matérias
primas, mercados e pontos estratégicos para o posicionamento avançado
de forças militares. Há inúmeros congressistas e altos funcionários da
Casa Branca que retirariam os EUA das Nações Unidas e da Organização
Mundial do Comércio imediatamente, se pudessem fazê- lo impunemente.

Num segundo grupo estão aqueles que acreditam que a forma mais
eficiente de manter os EUA no poderio mundial é manifestando este poder
através do multilateralismo e através de instituições globais, como o
sistema das Nações Unidas, que inclui a OMC. Uma vez que acredito que
os recursos mundiais precisam ser compartilhados de forma mais
eqüitativa e que isso requer uma redefinição do atual equilíbrio de forças
no mundo, não aceito essa suposição de que o sistema multilateral deva
ser usado para manter o status quo. No entanto, acredito que possa me
articular com pessoas que vêem nesse pensamento a perspectiva de
formar alianças táticas.

10
Um terceiro e grande grupo de pessoas, e me incluo nele, acredita na
cooperação mundial e no multilateralismo como um meio de alcançar o
desenvolvimento sustentável, os direitos humanos, a justiça e a igualdade.
Isto nos coloca numa posição difícil às vezes, já que nos encontramos
pelejando tanto contra os unilateralistas, que substituiriam o sistema
global seguindo as ordens de Washington, como contra aqueles que
apóiam o multilateralismo, mas que o fazem principalmente para
preservar esse inaceitável status quo.

Este é um dilema terrível para nós que acreditamos firmemente no


multilateralismo e na cooperação mundial. Isto nos obriga a fazer duras
críticas às muitas das ações praticadas por estas instituições quando
percebemos que sua principal motivação está no desejo de manter o status
quo. Todavia, nossa crítica deve ser encaminhada de tal forma a nos
distinguir dos ataques feitos à ONU e a OMC com o propósito de destruir
totalmente a idéia de um sistema internacional. Temos de deixar claro que
apoiamos o sistema mundial, porém não apoiamos muitas das ações
perpetradas por importantes instituições. Nossa crítica deve vir
acompanhada de sugestões de reformas que fortaleçam o sistema como
um todo, ao invés de enfraquecê- lo.

Um elemento - chave dessa corrente de pensamento é o desenvolvimento


de idéias sobre as formas de reduzir o poder ou o escopo de instituições
globais que tenham extrapolado seus mandatos ou competências, ou que
sejam obviamente incapazes de liderar. Importantes demandas vindas das
muitas vozes críticas à globalização demonstram a necessidade de
reforma radical, inclusive propostas feitas por governos do tipo
“Enxugamento ou Encerramento”, referindo - se ao escopo da OMC. Uma
demanda conseqüente dessa posição é a do movimento global de
produtores exigindo a “Retirada da OMC da Agricultura”, como uma forma
de resolver as muitas injustiças e problemas relacionados à segurança
alimentar que são, em parte, resultantes do atual Acordo Agrícola da OMC.

11
Há um quarto ponto de vista compartilhado por muitos amigos e aliados
que acreditam que as instituições estão tão cooptadas por interesses
especiais e tão comprometidas por manobras da guerra fria há cinqüenta
anos, e outros elementos da luta geopolítica global, que muitas
instituições globais devem simplesmente ser fechadas. Esta visão também
é compartilhada por alguns dos fundadores das principais instituições
globais.

Há dez anos atrás, minha organização reuniu os fundadores das


instituições de Bretton Woods qua ainda estão vivos, para discutir sobre o
que desejavam e o que pensavam do qüinquagésimo aniversário de
fundação do Banco Mundial e do FMI. Acompanhei várias dessas
discussões noite adentro, onde alguns desses fundadores debatiam entre
si sobre qual dessas instituições teriam se desviado em muito de sua
missão original e qual deveria ser fechada primeiro. A veemência de suas
críticas e a urgência com que manifestavam a necessidade de reforma
fundamental, ou de extinção dessas duas instituições, eram muito mais
fortes do que as que ouvi no Fórum Social Mundial ou em outros
encontros.

Existe o grande perigo de que a terceira e quarta correntes – e mais as


nossas duras críticas às muitas ações realizadas pelo sistema multilateral –
sejam utilizadas por alguns integrantes da administração Bush para
incrementar a contínua retirada dos EUA das questões globais e promover
a agenda unilateralista. Acredito que encontros como os fóruns sociais
tenham um papel vital na garantia de que nossas críticas não sejam
apropriadas e usadas para destruir o sistema no seu todo.

Qual deveria ser o perfil da Agenda Pós-Neoliberal / Neo-Conservadora?

12
Enquanto muitas das normas globais, supervisionadas pela OMC, foram
negociadas numa época onde a agenda neoliberal era preeminente, agora
estamos numa nova era – num tempo onde a agenda neo- conservadora
dos assuntos externos e militares está casada com políticas neo- liberais
para os assuntos de negócios e da economia. Enquanto os efeitos
desastrosos dela podem ser vistos em cada lugarejo do planeta, as
chances de mudança como resultado desse casamento arrasador são
igualmente dramáticas. Eu argumentaria que sem os resultados cruéis da
sinergia entre comércio e o militarismo neo- conservadores, a articulação
entre o governo brasileiro e o G- 20 em Cancún não teria sido possível. A
combinação entre a perpetuação de políticas de comércio mercantilistas
(você tem de comprar conosco, mas nós evitaremos comprar de você, ou
se possível não vamos comprar nada) e “hegemonia global”, através de
uma política externa militarizada, criou uma situação política quase
insustentável para os EUA.

Enfraqueceu a parceria entre os EUA e Europa de forma drástica –


impossibilitou que formassem um front sólido em Cancún. Significou que
os EUA ignoraram os apelos desesperados de países sem recursos, como
as nações dependentes do comércio do algodão na África Ocidental, que
deixaram perfeitamente claro que, sem uma flexibilização, eles não teriam
razão para negociar nada. Em cima dessas questões específicas de política
havia também a arrogância e a cegueira decorrentes da motivação
ideológica. Muitos integrantes da delegação americana, tanto do governo
quanto do setor empresarial, ficaram bastante satisfeitos com o resultado
de Cancún. Viram ali a oportunidade para colher argumentos em favor de
sua causa pelo futuro abandono do processo multilateral e pelo uso das
negociações bilaterais e regionais, como a ALCA, como o espaço onde os
EUA podem obter tudo o que querem sem ter de fazer concessões, além
das promessas de que se empenharão ao máximo.

13
Talvez o que vou dizer seja excessivamente otimista, mas meu palpite é
de que temos a chance de desbancar os domínios tanto neoliberal quanto
neo- conservador exatamente porque estão evidentes agora. Até há pouco
tempo, a separação entre essas agendas – por exemplo, na administração
anterior – tornava quase impossível reunir forças tanto dentro quanto fora
dos EUA para se criar um autêntico desafio a qualquer uma dessas duas
forças. Hoje, porém, podemos comemorar o início da verdadeira
negociação do comércio no âmbito da OMC – graças em grande parte aos
esforços empreendidos pelo Brasil e o G- 20 em Cancún – e agora
estaremos nos ocupando de um debate concreto no nível global sobre o
papel das Nações Unidas, da força militar e do unilateralismo.

Talvez, tão importante quanto ter alçado essas questões ao nível global
seja, ao mesmo tempo, ver a projeção delas dento dos Estados Unidos.
Não vou me atrever a fazer uma crítica de todos os pormenores desse
extenso debate hoje, mas permitam - me dizer que em toda a minha vida
nunca vi uma época de maior perigo político nos EUA – e isso inclui o de
Richard Nixon e outros – e nunca houve um momento de maior debate
público sobre o papel do governo nos assuntos internos e externos, e o
papel dos EUA especificamente nas questões globais. Como nação, fomos
partidos ao meio sobre a guerra mantida pela administração Bush contra o
Iraque e continuamos profundamente divididos hoje. O importante,
entretanto, não são os números das pesquisas sobre a política de guerra,
mas o nível, a profundidade e o escopo do debate em que estamos
engajados. Grande parte da sociedade – muito, muito mais do que jamais
possa me lembrar – está engajada na discussão de questões importantes
sobre economia, comércio, direitos humanos, guerra e paz. Esse debate se
intensificará à medida que entrarmos nas próximas eleições.

Nossa agenda política externa e interna depois do neoliberalismo e neo-


conservadorismo tem de ser um retorno à democracia e prevalência da lei.
E temos de dar uma ênfase especial à garantia de que estamos todos,

14
através de procedimentos democráticos e dos direitos humanos, aptos a
participar da criação de leis que nos governarão.

Vivo em um país onde as questões de raça são o elemento definidor da


vida pública. Até hoje, apesar de anos de trabalho com afinco, sacrifício, e
grandes avanços, uma raça, e grande parte da classe governante pertence
a essa raça, elabora a maioria das leis que outros devem obedecer.
Sabemos que o governo da elite pela elite não funciona na realidade nos
níveis local e nacional. Não é difícil de adivinhar que no nível global fariam
o mesmo. Uns poucos elaborando leis, como insignificantes instrumentos
de governança, em benefício de si mesmos. A agenda pós- neoliberal é a
democracia em todos os níveis – os detalhes ficam por conta daqueles que
virão depois de nós. Porém se, e somente se, tivermos êxito em suplantar
o domínio desses poucos, que é imposto com armas de destruição em
massa e podem ser usadas contra os muitos. Até que de fato suplantemos
esta elite e sua forma de governança aterradora, continuaremos todos a
ser aterrorizados pela guerra civil em escala global.

Devemos rechaçar qualquer opção que nos faça rolar ladeira abaixo em
direção à guerra civil. É um futuro demasiado terrível para se imaginar.
Devemos contrapô- la tomando o caminho da democracia, reiteradamente
defendida através da não- violência. Esta tem de ser a nossa agenda pós-
neoliberal e neo- conservadora.

Nove anos atrás, reunimos os fundadores da maioria das instituições


criadas depois da II Guerra Mundial – incluindo ONU, FAO, Declaração
Universal dos Direitos do Homem, e de todas as agências de Bretton
Woods, como o Banco Mundial e o FMI. O motivo do encontro era o 50º
aniversário da Conferência de Bretton Woods. Aprendi muitas coisas
naquele encontro, mas sem termos de comparação, a mais importante
lição foi quando insistiram firmemente em dizer que a fundação desse
sistema deu- se principalmente e acima de tudo numa tentativa

15
desesperada de encontrar um caminho para a Paz Mundial e assegurar a
justiça econômica, social e política. Precisamos retomar esse foco
primordial – este é o momento de maior abertura, mas não vai durar
muito. Esse futuro democrático, porém, não nos será entregue nas mãos.
Teremos de trabalhar dia e noite para superar aqueles que escolheram a
guerra civil mundial ou como forma de defender seus privilégios, ou como
forma de resistência à exploração.

Talvez a agenda pós- neoliberal para muitos de nós seja rigorosamente a


mesma de antes. Devemos continuar a usar a não- violência assertiva e
mesmo agressiva na luta pela segurança, sustentabilidade, e por um
sentido de comunidade dentro de um contexto global. Devemos ser
contrários à guerra civil nos níveis local, nacional e global através da luta
pela contínua expansão da democracia e dos direitos humanos dentro da
arena internacional.

A democracia em todos os níveis – no local de trabalho, em nossas cidades


e nações, na arena global – deverá ser ganha, depois ganha de novo, e
depois novamente ganha outra vez.

Devemos fazer isso por nós mesmo e por outros que nunca
conheceremos.

Devemos fazer isto pelo hoje e por eras que jamais veremos.

16
Ciclo de seminários
Fórum Social Brasileiro, Belo Horizonte, 7 e 8 de novembro de 2003

Um projeto Ibase, em parceria com ActionAid Brasil, Attac Brasil e


Fundação Rosa Luxemburgo

O imperativo do pleno emprego no Brasil contemporâneo

J. Carlos de Assis
Economista

Gostaria de abordar o tema deste painel na perspectiva do exercício da


liberdade. Liberdade, essencialmente, como direito de escolha. Foi
proposta a discussão de um novo modo de produção e de consumo de
massas. Supõe- se talvez que tenhamos esgotado, no capitalismo, algum
padrão único de produção e consumo que seria único, e que devamos
procurar uma alternativa, ou eventualmente valorizar alternativas já
existentes. É este, pelo menos em parte, o pressuposto latente da proposta
dos organizadores.

Vou cometer uma pequena descortesia, de uma forma muito fraterna, aos
que me convidaram para este seminário. Não vou falar das escolhas ou das
alternativas, mesmo porque não sou um especialista no assunto. Vou falar
das condições objetivas para que as escolhas mencionadas, qualquer delas,
possam ser feitas. Não é uma fuga completa do tema, porque outros itens

1
– na realidade, todos os demais itens da ementa que me deram – serão
abordados. Mas é a questão das condições de escolha que me interessa
focar centralmente.

Para se escolher com liberdade um outro modo de produção e consumo é


preciso ter acesso, pelo menos em tese, ao modo de produção e consumo
dominante. Do contrário, não se estará fazendo uma escolha real. Muito
provavelmente, se estará seguindo uma das muitas estratégias de
sobrevivência a que milhares, na verdade milhões de brasileiros, de latino-
americanos e de marginalizados de outros países procuram trilhar por
imperativo das circunstâncias sociais e econômicas. Isto, insista- se, não é
escolha. Nem liberdade.

As circunstâncias que estão produzindo e reproduzindo o fenômeno de


marginalização em massa nos nossos países não são uma característica
intrínseca do capitalismo. São uma característica intrínseca, sim, do
liberalismo. O capitalismo é um modo de produção relativamente flexível.
A Europa do Norte é capitalista, os Estados Unidos são capitalistas, o Japão
é capitalista, a China avança segundo o modelo de produção capitalista.
Ninguém dirá, obviamente, que o modo de vida e mesmo a busca
individual de felicidade sejam nestes países exatamente iguais. Poucos
ignoram que estes países vivem ou viveram em algum momento situações
de virtual pleno emprego.

O capitalismo é uma categoria econômica. O liberalismo econômico – para


o distinguir do liberalismo político, que é outra coisa – é uma categoria
política. É o liberalismo econômico, na sua radicalização na defesa do
primado absoluto da propriedade privada, que torna o capitalismo um
modo de produção anti- social e um coveiro da liberdade de escolha. Pois o
supremo ato de propotência liberal consiste exatamente em privar

2
desnecessariamente milhões de pessoas do trabalho remunerado, pelo que
a maioria delas não têm escolhas reais a fazer, a não ser a busca
desesperada da sobrevivêncica.

O desemprego em massa tem sido, nas duas últimas décadas, um


instrumento deliberado de política fiscal e monetária para assegurar
estabilidade financeira e de câmbio, de uma forma “amigável” para os
especuladores financeiros planetários. No tempo de Marx, falava- se em
exército industrial de reserva. Era considerado, porém, um fenômeno
conjuntural do ciclo capitalista determinado pela concorrência tecnológica.
Do fim dos anos 70 para cá, tornou - se crônico, e aceito politicamente
como tal, desde a Europa (exceto do Norte) até a América Latina, para não
mencionar a África e outros países do Oriente.

Os ideólogos do capitalismo liberal, tendo os economistas vulgares à


frente, cunharam a expressão desemprego estrutural como uma fatalidade
permanente, diante da qual todos, inclusive o mundo político, deveriam se
acomodar. Aqui entre nós, acadêmicos pouco escrupulosos inventaram a
expressão “crise de empregabilidade”, pela qual atribuíram a culpa pelo
desemprego aos próprios desempregados. Não vou perder tempo com a
refutação dessas sandices: o desempenho norte- americano dos anos 90
mostrou que o capitalismo de ponta não precisava ter crise de desemprego
mesmo com grandes avanços tecnológicos. E candidatos com curso
superior completo na fila de 131 mil pretendentes a uma das 800 vagas de
gari da Comlurb no Rio de Janeiro, no segundo trimestre deste ano,
evidenciaram a falácia da “empregabilidade”.

A crise de desemprego por que passa a América Latina e, com menos


intensidade, os países industrializados da Europa Continental é
consequência direta da política macroeconômica ditada pela ressurgência

3
liberal nos anos 80. Ela só tem um paralelo na história: a Grande
Depressão dos anos 30. Também na Grande Depressão a prolongação da
crise de desemprego depois do crash da bolsa de Nova Iorque resultou de
políticas liberais, exatamente as mesmas que nos recomendam agora,
baseadas no que chamam de “austeridade” fiscal e “finanças saudáveis”.
Por uma estratégia de marketing, chamam agora o velho liberalismo de
neoliberalismo. É essencialmente a mesma coisa, com os mesmos
resultados.

No caso brasileiro, por ainda não sermos industrializados, a Depressão dos


anos 30 nos atingiu apenas marginalmente, via queda do mercado de café.
Já a crise atual nos atinge em cheio. Em 2000, pelos resultados do Censo,
o desemprego no país todo atingia 15,04% da força de trabalho. Os dados
mais recentes de amostras do IBGE dão conta de uma taxa de desemprego
aberta de 13% nas seis maiores metrópoles, seguida de perto por uma taxa
de 13,5% de ocupados com remuneração inferior a um salário mínimo. Já
as taxas do DIEESE apontam desemprego de 20% em São Paulo e de quase
30% em Salvador e no Recife. É uma situação que pode caracterizar- se
como depressão profunda.

Para se ter uma base de comparação, o pico do desemprego nos anos 30


nos Estados Unidos e na Alemanha foi 26%. Tratava- se então, como se
trata agora, de uma tragédia social. Por trás do emprego vem o
subemprego, por trás do subemprego a marginalidade, por trás da
marginalidade o aumento da violência, a perda da auto- estima, a
marginalização, o fim da liberdade. E a revolta. É justamente aí que mora o
perigo, mas é também aí que mora a salvação. Pois a revolta, sem
condução política coerente, não vai além das sublevações. Entretanto, ela
também pode ter direção política bem definida, no rumo da regeneração e
da prosperidade. É a isso que voltarei mais adiante.

4
Nos anos 20 e 30, que assinalam a primeira grande crise do capitalismo
numa situação de cidadania ampliada – onde pobres, trabalhadores e
mulheres passaram a participar plenamente do corpo político via direito de
voto e de ser votado - , abriram- se, diante da grave crise social, quatro
alternativas de projeto nacional: o fascismo italiano (o desemprego na Itália
já era excessivamente alto nos anos 20), o nazismo alemão, a social-
democracia sueca e o New Deal norte- americano. Os dois primeiros,
embora bem sucedidos no campo do combate ao desemprego,
degeneraram em guerra; o último, junto com o modelo sueco, definiria o
perfil das sociedades industriais no pós- guerra.

O New Deal, no próprio coração do sistema capitalista, foi uma revolução


política sem precedentes. Contrapôs ao capitalismo liberal o capitalismo
regulado, e ao liberalismo econômico a democracia social. O êxito do New
Deal se projetou sobre o quarto de século do pós- guerra no mundo
industrializado, caracterizado como a era do ouro do capitalismo. Era de
ouro não apenas por conta do tremendo desenvolvimento tecnológico,
mas, sobretudo, em razão da notável afluência social. O desemprego
praticamente desapareceu e a prosperidade avançou rapidamente nos
países industrializados avançados. Entretanto, foi justamente este êxito
espetacular que está na origem da contra- revolução liberal.

Na economia, os anos da idade de ouro caracterizaram- se pela aplicação


de políticas keynesianas expansivas, baseadas no crédito generoso e
barato para a produção, e no gasto público, inclusive deficitário, para
melhorar e ampliar os serviços públicos básicos e a infra- estrutura
econômica. Nós próprios, no Brasil e na América Latina, participamos na
margem desse processo, através das chamadas políticas
desenvolvimentistas iniciadas por Vargas. Foram políticas visionárias, que

5
lançaram os alicerces de nossa industrialização, mas que ficaram a meio
caminho no campo social, por razões, a meu ver, políticas.

O mundo industrializado convergiu, com diferenças apenas de grau, para


um projeto comum de sociedade de bem estar, solidária, com a coesão
interna mantida pela situação real ou virtual de pleno emprego. Era o
único projeto compatível com a realidade política de cidadania ampliada.
Como ficara demonstrado nos anos 30, teria sido impossível manter a
estabilidade política num quadro em que a maioria do corpo político era
vítima direta ou indireta de uma taxa alta de desemprego, de subemprego
e de marginalização. Nós, contudo, marchamos na direção inversa: antes
de nos defrontarmos com as demandas da cidadania ampliada, limitamos,
manipulamos ou cerceamos a liberdade política e os direitos de cidadania.
Nesse sentido, não fizemos a revolução da sociedade do bem estar porque
a própria sociedade não tinha meios políticos de demandá- la.

Disso já fora um prenúncio a reação brasileira à crise do café, o mais


notável efeito da Grande Depressão sobre a economia brasileira. A queima
dos estoques determinada por Vargas foi uma típica medida keynesiana
avant la lettre (Keynes ainda não havia escrito a sua “Teoria Geral do
Emprego, do Juro e da Moeda”). Em termos econômicos, era um expediente
inteiramente defensável de se proteger a demanda efetiva e o emprego.
Contudo, a força política que estava por trás da decisão não foram
naturalmente os trabalhadores urbanos e rurais do café, cuja maioria
sequer votava, mas a oligarquia cafeeira que participava do condomínio do
poder.

Se fizemos a industrialização, sem que o desenvolvimento social a


acompanhasse, foi porque tínhamos um corpo político dissociado do corpo
social. Na medida em que o corpo político foi- se ampliando, incorporando

6
pobres, trabalhadores, mulheres, as classes dominantes tiveram que ceder
de alguma forma às demandas da sociedade. Os conservadores,
tradicionais donos do condomínio do poder, burlaram por todas as formas,
inclusive pelo recurso a ditaduras, as demandas sociais crescentes, sendo
que os seus intelectuais orgânicos sempre tentaram desqualificar estas
últimas como populismo.

Foi pelo atraso político – isto é, pela negação da cidadania a uma grande
parte da população não proprietária – que nos marginalizamos, assim
como foi pelo avanço político rumo à cidadania ampliada que os países
industrializados convergiram para uma sociedade do bem estar. É claro
que estávamos todos, industrializados ou não, no contexto da Guerra Fria,
e isso teve influência considerável no processo. Só que, nos países
industrializados avançados, o progresso social foi uma resposta ao perigo
vermelho, enquanto, entre nós, o perigo vermelho foi o pretexto para a
reincidência no atraso político e no autoritarismo.

A derrocada do autoritarismo em toda a América Latina abriu novas


perspectivas políticas e econômicas para nossos povos a partir dos anos
80. No Brasil, tivemos uma experiência singular de democratização
pacífica, confirmada pela Constituição- cidadã de 88, que consagrou entre
nós a cidadania ampliada. De fato, reconhecemos o direito de voto do
analfabeto – ainda uma parte considerável da população não proprietária –
e até a menores acima de 16 anos. Hoje, a população maior de idade
coincide com o corpo político virtual. E a história política brasileira das
últimas duas décadas é um testemunho eloquente da força da cidadania
em influir nos processos de poder, que se manifestou tanto na eleição de
presidentes contra as classes dominantes, quanto na destituição de um
presidente que traiu o mandato popular.

7
Entretanto, continuamos um país atrasado socialmente. E são nossas
condições sociológicas, mais que as condições econômicas, que nos
diferenciam dos países industrializados avançados. É que, na economia,
construímos alguns espaços de modernidade que se articulam através da
globalização com os espaços mais avançados do Primeiro Mundo.
Constituiu - se assim uma mesma rede de relações de dominação que
mantém estrito controle sobre o sistema econômico interno, levado a se
atrelar, dos anos 80 para cá, às formas mais especulativas do capitalismo
monetário e financeiro, responsável último pelas políticas fiscais e
monetárias que generalizaram o desemprego e o subemprego tanto em
alguns dos países industrializados quanto em quase toda a América Latina.

Entretanto, nosso desemprego não é da mesma natureza do desemprego


numa economia de bem estar social. Países como Alemanha, França, Itália
e Espanha, os mais populosos da Europa Ocidental, exibem taxas médias
de desemprego de 10%, o que é extremamente elevado para seus padrões
históricos. São, por outro lado, nações de cidadania ampliada, que criaram
nas últimas décadas uma forte tradição de democracia política e social. A
pergunta que se faz é: Como essas sociedades toleram taxas de
desemprego tão elevadas, por tanto tempo?

A resposta mais superficial é que não toleram. As eleições européias,


desde os anos 80, mas sobretudo a partir dos 90, têm revelado uma
frenética troca de partidos no poder, independentemente de coloração
ideológica, o que indica uma clara insatisfação com o poder político
incumbente, qualquer que seja. Mas há uma razão de fundo, de natureza
sociológica. O declínio da Idade do Ouro do capitalismo coincide com o fim
do acordo de Bretton Woods, que garantia a estabilidade monetária
internacional, e com o início de um processo inflacionário renitente em
escala planetária – exceto no bloco socialista. A instabilidade inflacionária e

8
monetária criou o ambiente de cassino nas relações financeiras
internacionais, e os donos do cassino, para atender a sua clientela,
passaram a propor um tipo de estabilidade que preservasse o jogo.

As políticas keynesianas de expansão fiscal e monetária, de notória eficácia


para reverter uma recessão e garantir o pleno emprego, verificaram - se
impraticáveis para o controle da inflação. Por outro lado, como
consequência de seu próprio êxito, moldaram uma sociedade de classes
médias afluentes, despreocupadas com o desemprego (havia se perdido a
memória dos anos 30) e incomodada pela inflação, que corroía sua renda e
seus ativos financeiros acumulados. Em uma palavra, inverteu- se a
motivação da maioria do corpo político nos países industrializados: antes,
ela queria proteção social e garantia de emprego; agora, tendo- se tornado
afluente, passou a reivindicar estabilidade financeira, demanda de que logo
se apropriaram os ideólogos liberais.

Sem a rememoração desses processos seria incompreensível a eleição de


Margareth Thatcher na Grã- Bretanha e de Helmut Kohl na Alemanha.
Thatcher, antes de Reagan, simboliza o grande momento inicial da contra-
revolução keynesiana. Mais sofisticada intelectualmente que o presidente
norte- americano, ela recolheu os destroços do velho liberalismo e os
remontou numa doutrina coerente de suposta modernidade, ancorada no
primado da iniciativa privada e na liberdade irrestrita dos mercados, em
confronto não apenas com o socialismo moribundo mas com a própria
social democracia européia.

É evidente que a classe dirigente de uma antiga potência industrial


decadente, nas bordas da Europa, não teria como formular a ideologia do
mundo industrializado e exportá- la para a periferia, não fosse por sua
associação com Reagan, alimentada por motivações idênticas. Neste caso,

9
porém, ficamos diante desses casos singulares da história em que a
potência hegemônica absorve uma ideologia, pratica uma outra e exporta,
através de seus mecanismos de influência, principalmente o crédito, uma
terceira.

É justamente isso o que foi o Governo Reagan: um missionário do


liberalismo retórico, fazendo gigantescos déficits fiscais na melhor tradição
keynesiana, e impondo ao resto do mundo, através das agências
multilaterais que controla, o FMI e o Banco Mundial, as políticas fiscais e
monetária mais restritivas de que se tem notícia. A União Européia, ao
contrário, alinhou - se fielmente ao neoliberalismo: pelo Tratado de
Maastricht impôs aos países membros tremendas restrições fiscais (déficit
orçamentário máximo de 3% do PIB, dívida pública máxima de 60% do PIB)
e, através do Banco Central Europeu, restringiu extremamente a política
monetária – de forma que, nem pela política fiscal, nem pela política
monetária, qualquer país da União pode fazer hoje políticas anti- cíclicas de
pleno emprego. (Contudo, Alemanha e França já avisaram que vão romper
os limites do déficit.)

Não se pode perder de vista, porém, as condições sociológicas diversas


dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Nesta última, a sociedade do
bem estar avançou muito mais que na América. Por isso, a sociedade
americana tolera menos o desemprego que a sociedade européia, onde a
proteção ao desemprego é muito mais abrangente. O fato realmente
extraordinário dessas últimas duas décadas não são as ambigüidades
políticas das nações do Centro do sistema capitalista, mas a forma
subalterna como as nações da periferia, com a Argentina e o Brasil à frente,
aceitaram alinhar sua economia a um modelo em total contradição com a
sua realidade sociológica.

10
E aqui, depois dessa longa volta, regressamos ao ponto inicial: como pode
a sociedade brasileira, que não é uma sociedade de bem estar, e cuja
maioria do corpo político não é formada por afluentes, mas por miseráveis,
acatar uma doutrina econômica e incorporá- la na política cotidiana quando
isso implica tolerar taxas de desemprego de 20% e até 30% em algumas
metrópoles?

Não há uma resposta simples para esta pergunta, sobretudo porque não há
uma classificação simples da sociedade brasileira. A extrema
heterogeneidade, recoberta por um dos mais elevados índices de
concentração de renda e de riqueza do mundo, reflete- se necessariamente
numa grande ambigüidade no corpo político, ideologicamente dominado
pelas classes afluentes. Mesmo assim, é um equívoco supor que os
resultados das quatro últimas eleições presidenciais tenha sido produto de
manipulação. Os candidatos vitoriosos, sem exceção, se apresentaram
como portadores de mudanças que eram objetivamente reclamadas pela
maioria do eleitorado.

Numa época em que a inflação atingia sobretudo as classes baixas, não


protegidas pela moeda indexada, Collor não se apresentou como o
campeão do neoliberalismo, o que acabou sendo, mas como o único capaz
de liquidar a inflação. Não conseguiu, nem poderia conseguir com seu
plano maluco, e acabou posto para fora. Itamar, no seu curto mandato,
percebeu que sairia como um fracassado se não vencesse a inflação. Deu a
Fernando Henrique a oportunidade de acabar com ela e, com isso, eleger-
se. A vitória contra a inflação de décadas rendeu a Fernando Henrique não
uma, mas duas eleições. Não conseguiu, porém, fazer o sucessor. E não
conseguiu porque incorporou, com o neoliberalismo, a indiferença em
relação ao desemprego, que recrudesceu a partir de 99. Lula pareceu ao
povo mais confiável neste terreno do que o candidato oficial.

11
O que acontecerá com o governo Lula se não conseguir reverter o
desemprego? Escrevi recentemente um ensaio, que está no site do
Movimento Desemprego Zero, sustentando que Lula está entre a alternativa
de manter a estabilidade financeira à custa do agravamento do quadro
social, ou de enfrentar a crise social impondo uma mudança nas regras da
economia financeira. É uma decisão de economia política, não
simplesmente de política econômica. Alguém terá de perder, não em
termos de estoques de riqueza, mas de expectativas de ganhos
especulativos, para que possamos enfrentar a crise social a partir do
revigoramento do sistema produtivo pela retomada do desenvolvimento e
do emprego.

Na verdade, nosso desafio é refazer o caminho percorrido por Roosevelt no


New Deal: deslocar o eixo de acumulação capitalista do sistema monetário
especulativo para o sistema produtivo. O neoliberalismo foi o caminho
inverso: desestruturou os sistemas produtivos seguindo sucessivamente
pela liberação cambial, pela liberação monetária e financeira, e pela
completa liberalização comercial. Quer continuar avançando, criando uma
constituição de liberdade ampla para os investimentos, as patentes, as
compras governamentais, ou impondo o acordo assimétrico da Alca, numa
verdadeira marcha forçada sobre empresas e empregos dos países do
Terceiro Mundo, os quais, como nós, estão regredindo à situação de
primário - exportadores e povoando nossas metrópoles e nossas zonas
rurais de mais desempregados e subempregados.

Para confrontar com eficácia essas políticas, não podemos nos limitar a
criticá- las. Temos que apontar alternativas. Foi este o sentido do Manifesto
dos Economistas, que lançamos em junho último. E é este o sentido do
Movimento Desemprego Zero – Por uma Política de Promoção do Pleno

12
Emprego no Brasil, reunindo vários movimentos sociais e com um portal na
Internet (www.desempregozero.org.br) . Para ter êxito, qualquer proposta
alternativa deve estar colada à realidade sociológica. E como a realidade
sociológica que nos caracteriza é a realidade do desemprego generalizado,
inspiramos nossa proposta no New Deal dos anos 30, o grande plano de
Roosevelt que reverteu a Grande Depressão.

O Movimento Desemprego Zero não é uma iniciativa de gerar empregos de


um ponto de vista microeconômico. Isso, como dito acima, corresponde a
estratégias de sobrevivência que temos de respeitar, seja na forma de
camelôs ou perueiros, de vendedores ambulantes ou sacoleiros, de
pequenos artesãos a coletadores de lixo. Entretanto, não pode se constituir
num projeto de sociedade. O Movimento Desemprego Zero é uma proposta
política. A política de pleno emprego, num plano mais geral, é um projeto
de sociedade solidária, politicamente coesa, um ponto intermediário para o
socialismo democrático.

Tecnicamente, no plano econômico, a política de pleno emprego pode ser


resumida em três pontos: (i) aumento do dispêndio público, via redução ou
eventual eliminação do superávit do orçamento primário; (ii) redução
drástica da taxa de juros básica para patamares internacionais e expansão
do crédito interno; (iii) controle da conta de capitais e administração do
câmbio, sem o que é inviável estabelecer as duas medidas anteriores. No
que diz respeito ao aumento do dispêndio público, a prioridade deve ser a
reforma agrária (as classes dirigentes brasileiras nos devem isso desde
19850), a educação, a saúde, a segurança, a habitação, o saneamento, a
Defesa, assim como a infra- estrutura. Todos são setores que podem ser
contemplados com pesados investimentos internos sem pressionar as
importações e sem gerar tensões inflacionárias, gerando, ao contrário,
milhões de empregos.

13
Os neoliberais contestam a política de pleno emprego sob o argumento de
que gera inflação. É uma falácia técnica. Enquanto houver alto desemprego,
o dispêndio público, mesmo deficitário, não gera inflação de demanda. E
na medida em que a economia se aproximar do pleno emprego, pode- se e
deve- se recorrer a políticas de rendas, no âmbito de um grande pacto
social, para compatibilizar as reivindicações salariais com o aumento da
produtividade, contra a alternativa perversa de usar a política monetária de
juros estratosféricos, como temos feito, para conter a inflação. Aliás, a
relativa estabilidade da Idade do Ouro do capitalismo na Europa Ocidental
se deveu fundamentalmente aos pactos sociais em torno de políticas de
rendas.

Não se trata de uma fantasia, pois a política de pleno emprego já foi


aplicada com êxito para enfrentar as anteriores grandes crises de
desemprego no capitalismo: foi aplicada na Suécia, na Alemanha, nos
Estados Unidos antes da guerra. E praticamente em todos os países
industrializados depois da guerra, até a contra- revolução liberal dos anos
70. Poderia ter sido aplicada aqui, e num sentido limitado o foi, se não
tivéssemos classes dominantes tão dissociadas das demandas sociais por
um sistema político restrito. Agora, porém, estamos numa situação de
cidadania ampliada, e já votamos num Presidente que se comprometeu a
gerar em seu mandato 10 milhões de novos empregos.

Ele não poderá fazer isso a não ser por uma política de promoção do pleno
emprego. Para aplicá- la, terá de romper com o modelo neoliberal. Terá de
ser um Roosevelt brasileiro, um campeão do capitalismo regulado, um
realizador de esperanças.

14
Quero terminar apresentando uma visão concreta das políticas de pleno
emprego, a fim de inspirar uma antevisão do que pode vir a ser no Brasil.
No New Deal, o governo norte- americano criou uma agência, a Works
Progress Administration, para gerenciar todos os programas governamentais
de estímulo à economia e ao emprego. Sob esta agência, foram
construídos ou reconstruídos 820 mil quilômetros de rodovias (temos 54
mil km de rodovias federais!), 124 mil pontes e viadutos, 120 mil prédios
públicos, várias hidrelétricas, projetos de regularização de três cursos de
grandes rios junto projetos de irrigação; milhares de artistas foram
contratados pelo Estado para dar concertos de graça, pintores foram
contratados para ornamentar prédios públicos com obras de arte, milhares
de professores, médicos e enfermeiros foram contratados para os
programas de educação e saúde. Em uma palavra, o New Deal fez dos
Estados Unidos a potência que são hoje.

Nós não podemos nos privar do sonho de também chegar lá, com uma
sociedade mais justa e solidária que a sociedade norte- americana, apenas
por conta dos preconceitos liberais que seus ideólogos tentam nos impor
através da manipulação das nossas necessidades financeiras, que eles
mesmos fizeram escalar com choque dos juros dos anos 80. De fato, o
cordão umbilical que une ao neoliberalismo é a dívida externa. É por causa
da dívida externa que capitulamos às políticas do FMI e do Banco Mundial.
Temos de romper este cordão. A forma de fazer isso não é não pagar, mas
só pagar com o crescimento do produto, da renda e sobretudo do emprego
internos.

15
Ciclo de seminários
Fórum Social Brasileiro, Belo Horizonte, 7 e 8 de novembro de 2003

Um projeto Ibase, em parceria com ActionAid Brasil, Attac Brasil e


Fundação Rosa Luxemburgo

Limites e potencialidades da expansão democrática no Brasil

Leonardo Avritzer
Cientista político, Universidade Federal de Minas Gerais

O século XX foi um século de intensa disputa em torno da questão


democrática. Essa disputa, travada ao final de cada uma das guerras
mundiais e ao longo do período da guerra fria, envolveu dois debates
principais. Na primeira metade do século, o debate centrou- se na
desejabilidade da democracia (Weber,1919; Schmitt,1926; Kelsen,1929;
1
Michels,1949; Schumpeter,1942) . Se, por um lado, tal debate foi
resolvido em favor da desejabilidade democracia como forma de
governo, por outro lado, a proposta que se tornou hegemônica ao final
das duas guerras mundiais implicou em uma restrição das formas de
participação e soberania ampliadas em favor de um consenso em torno
1

Este debate iniciara- se no século XIX pois até então e por muitos séculos a democracia
tinha sido considerada consensualmente perigosa e, por isso, indesejada. O seu perigo
consistia em atribuir o poder de governar a quem estaria em piores condições para o
fazer:a grande massa da população, iletrada, ignorante e social e politicamente inferior.
(Williams,1976:82;McPherson,1972)

1
de um procedimento eleitoral para a formação de governos
(Schumpeter,1942). Essa foi a forma hegemônica de prática da
democracia no pós- guerra, em particular nos países que se tornaram
democráticos após a segunda onda de democratização.
O segundo debate que permeou a questão no pós- segunda guerra
mundial foi acerca das condições estruturais da democracia (Moore,1966;
O’Donnell,1973; Przeworski,1985), que foi também um debate sobre a
compatibilidade ou incompatibilidade entre a democracia e o capitalismo
2
(Wood,1996) . Nos anos sessenta, Barrington Moore inaugurou esse
debate por meio da introdução de uma tipologia de acordo com a qual se
poderia indicar os países com propensão democrática e os países sem
propensão democrática. Para Moore, um conjunto de características
estruturais explicariam a baixa densidade democrática na segunda
metade do século XX: o papel do estado no processo de modernização e
sua relação com as classes agrárias; a relação entre os setores agrários e
os setores urbanos e o nível de ruptura provocado pelo campesinato ao
longo do processo de modernização. (Moore,1966).

O objetivo de Moore era explicar por que a maior parte dos países não
eram democráticos nem poderiam vir a sê- lo senão pela mudança das
condições estruturais. Entretanto, um segundo debate se articulava ao
dos requisitos estruturais da democracia, o debate sobre as virtualidades
redistributivas da democracia. Tal debate partia do pressuposto que na
medida em que certos países venciam a batalha pela democracia, junto
com a forma de governo, passavam a usufruir de uma certa propensão
distributiva caracterizada pela chegada da social democracia ao poder
(Przeworski,1985). Haveria, portanto, uma tensão entre capitalismo e

2
Este debate, como de resto quase todos os outros sobre a democracia, tinha sido
antecipado por Rousseau quando afirmava no Contrato Social que só poderia ser
democrática a sociedade onde não houvesse ninguém tão pobre que tivesse necessidade
de se vender e ninguém tão rico que pudesse comprar alguém.

2
democracia, tensão essa que, uma vez resolvida a favor da democracia,
colocaria limites à propriedade e implicaria em ganhos distributivos para
os setores sociais desfavorecidos. Por isso, no âmbito desse debate
discutissem- se modelos de democracia alternativos ao modelo liberal: a
democracia popular nos países da Europa de Leste, a democracia
desenvolvimentista dos países recém- chegados à independência.

A discussão democrática da última década do século XX mudou os


termos do debate democrático do pós- guerra. A extensão do modelo
hegemônico e liberal – para o sul da Europa ainda nos anos setenta e,
posteriormente, para a América Latina e a Europa do Leste (O’Donnell e
Schmitter,1986) – tornou desatualizadas as análises de Moore e de
Przeworski. Parecem pouco atuais as perspectivas sobre a democracia da
segunda metade do século XX com as suas discussões sobre os
impedimentos estruturais da democracia, na medida em que passamos a
ter muitas dezenas de países em processo de democratização – países
esses com enormes variações no papel do campesinato e nos seus
respectivos processos de urbanização. Reabre- se, assim, a discussão
sobre o significado estrutural da democracia, em particular para os assim
chamados países em desenvolvimento ou países do Sul.

A medida que o debate sobre o significado estrutural da democracia


muda os seus termos, uma segunda questão parece também vir a tona: o
problema da forma da democracia e da sua variação. Essa questão
recebeu a sua resposta mais influente na solução elitista proposta por
Joseph Schumpeter, de acordo com a qual o problema da construção
democrática em geral deveria ser derivado dos problemas enfrentados na
construção da democracia na Europa no período de entre- guerras. A
partir dessa resposta funda- se o que poderíamos chamar de concepção
hegemônica da democracia. Os principais elementos dessa concepção

3
seriam a tão apontada contradição entre mobilização e
institucionalização (Huntington,1968; Germani,1971); a valorização
positiva da apatia política (Downs,1956); a concentração do debate
democrático na questão dos desenhos eleitorais das democracias
(Lijphart,1984); o tratamento da pluralismo como forma de incorporação
partidária e disputa entre as elites(Dahl,1956;1971) e a solução
minimalista ao problema da participação pela via da discussão das
escalas e da complexidade (Bobbio,1986; Dahl,1991).Todos esses
elementos que poderiam ser apontados como constituintes de uma
concepção hegemônica da democracia não conseguem enfrentar
adequadamente o problema da qualidade da democracia que voltou a
tona com a chamada “terceira onda de democratização”. Quanto mais se
insiste na formula clássica da democracia de baixa intensidade, menos se
consegue explicar o paradoxo de a extensão da democracia ter trazido
consigo uma enorme degradação das práticas democráticas. No caso da
América Latina, em pouco mais de uma década de democracia, três
presidentes foram impedidos por corrupção e, no caso da Argentina, dois
em quatro presidentes eleitos não conseguiram completar os seus
mandatos.

Ao mesmo tempo e paradoxalmente, o processo de globalização (Santos,


2002) suscita uma nova ênfase na democracia local e nas variações da
forma democrática no interior do Estado nacional, permitindo a
recuperação de tradições participativas em países como o Brasil, a Índia.
Renova- se, assim, a propensão a se examinar a democracia local e
democracia participativa a partir da recuperação de tradições
participativas solapadas no processo de construção de identidades
nacionais homogêneas, tal como foi o caso no Brasil e na Índia. O Fórum
Social Mundial pode trazer contribuições decisivas nesse processo: por
um lado, ele coloca em evidência experiências participativas no Brasil,

4
especialmente o orçamento participativo que, tal como o Fórum, tem sido
reconhecido pela sua marca porto - alegrense. Mas, a contribuição do FSM
pode e deve ir muito mais além: pode colocar em contato as experiências
de países do Sul sem que elas passem pela mediação das experiências do
Norte. E pode, pela primeira vez, tornar as experiências dos países do Sul
referência no debate democrático global.

Nesse artigo, que faz parte do eixo extensão da democracia participativa


do seminário “Pos- neoliberalismo: alternativas estratégicas para o
desenvolvimento humano democrático e sustentável”, iremos partir da
experiência do OP para mostrar a sua contribuição para o debate atual
sobre democracia participativa. Também iremos apontar alguns dos
limites que, uma vez ultrapassados, podem tornar o OP referência
obrigatória no debate internacional sobre democracia participativa.

Surgimento do orçamento participativo

O Brasil é um dos países cujo panorama político foi profundamente


alterado pela terceira onda de democratização. Portador de um sistema
político altamente instável no período do pós- guerra, no qual todos os
presidentes enfrentaram tentativas de golpe de estado ou tiveram suas
eleições questionados como ilegítimas, o Brasil experimentou uma
ruptura da ordem democrática em 1964. Entre 1964 e 1985, o país
sofreu a sua pior experiência autoritária: o Congresso foi fechado duas
vezes pelo regime autoritário, uma em 1968 e a outra em 1977. As
eleições para presidente foram suspensas e a partir de 1968 a maior
parte das garantias civis também foi suspensa.

Ao mesmo tempo, a forte desigualdade social que caracterizava o país


cresceu. Em 1984, o último ano de vigência do autoritarismo no país,

5
mais que 35% da população era pobre ou muito pobre e, no caso do
Nordeste, mais de 50% da população era pobre ou muito pobre. O
processo de modernização econômica do Brasil gerou enormes
iniqüidades sociais no âmbito local. As maiores cidades brasileiras
cresceram a taxas inacreditáveis entre 1950 e 1980 e se tornaram os
principais locais de concentração da pobreza. No caso da cidade de São
Paulo, a sua população passou de 2.198.000 habitantes para 8.493.000
habitantes nesse período; no caso de Belo Horizonte, sua população
passou de 352.000 habitantes para 1.780.000 e, no caso de Porto
Alegre, a sua população passou de 394.000 habitantes para 1.125.000
nesse mesmo período (IBGE,1983). O aumento da população urbana e a
criação e expansão de uma administração pública racional não foram
seguidas por um aumento proporcional dos serviços públicos. Pelo
contrário, na maior parte das cidades brasileiras as carências de serviços
urbanos eram enormes no início da década de 80. Em 1984, somente
80,2% da população do Sudeste do Brasil – a região mais rica do país – e
59,6% da população da região Sul tinha acesso à água tratada. O acesso à
rede de saneamento era ainda menor: somente 55% da população urbana
tinha acesso à rede de saneamento (Santos, 1985).

A democratização brasileira envolveu momentos de continuidade política


e momentos de inovação democrática derivadas de propostas trazidas
pelos movimentos populares para o interior da Assembléia Nacional
Constituinte. No interior da Assembléia Nacional Constituinte propostas
de fortalecimento do poder de influência dos atores sociais foram
apresentadas através das chamadas “iniciativas populares”, levando, com
a sua aprovação, a um aumento da influência dos atores sociais em
diversas instituições. O artigo 14 da Constituição de 1988 garantiu a
iniciativa popular como iniciadora de processos legislativos. O artigo 29
sobre a organização das cidades requereu a participação dos

6
representantes de associações populares no processo de organização das
cidades. Outros artigos requereram a participação das associações civis
na implementação das políticas de saúde e assistência social. Sendo
assim, a Constituição foi capaz de incorporar novos elementos culturais
surgidos no âmbito da sociedade na institucionalidade emergente. São
esses elementos que estão na origem do orçamento participativo.

O orçamento participativo é uma política participativa local que responde


a demandas dos setores desfavorecidos da população urbana por uma
distribuição mais justa dos bens públicos nas cidades brasileiras. Ele
inclui atores sociais, membros de associações de bairro, e cidadãos
comuns em um processo de negociação e deliberação dividido em duas
etapas: uma primeira etapa na qual a participação dos interessados é
direta e uma segunda etapa na qual a participação corre por meio da
constituição de um conselho de delegados.

O orçamento participativo foi implantando pela primeira vez na


administração Olívio Dutra, em Porto Alegre no ano de 1990. O Partido
3
dos Trabalhadores venceu as eleições para a Prefeitura de Porto Alegre
em 1988 e, depois de um ano de gestão, começou a implementá- lo. O
orçamento participativo em Porto Alegre consiste em um processo de
decisão pela população sobre as prioridades de obras da Prefeitura do
município. Esse processo envolve duas rodadas de assembléias regionais
intercaladas por uma rodada de assembléias em âmbito local. Em uma
segunda fase, ocorre a instalação do Conselho do Orçamento
3
Está além dos objetivos desse artigo traçar uma história dos Partido dos Trabalhadores
no Brasil. Valeria a pena, no entanto, ressaltar que o PT é criado no decorrer do processo
de organização da sociedade brasileira contra o autoritarismo e teve como seus
fundadores membros do chamado novo sindicalismo, membros das Comissões de Base
da Igreja Católica e intelectuais e membros dos movimentos de classe média. Nesse
sentido, ele esteve próximo à luta dos movimentos comunitários no Brasil desde a sua
fundação ainda que a sua concepção de governo não fosse a princípio dirigida para
esses atores. Vide (KECK, 1991 E UTZIG, 1996).

7
Participativo, um órgão de conselheiros representantes das prioridades
orçamentárias decidas nas assembléias regionais e locais. A confecção
administrativa do orçamento ocorre no Gaplan (Gabinete de Planejamento
da Prefeitura), órgão ligado ao gabinete do prefeito.

Porto Alegre é uma cidade dividida em 16 regiões administrativas (vide


mapa 1). Na primeira fase do OP são realizadas 16 assembléias regionais
e as assembléias temáticas (vide figura 1 abaixo).

8
01 Humaitá/Ilhas/Navegantes
02 Noroeste
03 Leste
04 Lomba do Pinheiro
05 Norte
06 Nordeste
07 Partenon
08 Restinga
09 Glória
10 Cruzeiro
11 Cristal
12 Centro Sul
13 Extremo Sul
14 Eixo Baltazar
15 Sul
16 Centro

9
As assembléias são realizadas em cada uma das 16 regiões com a
presença do prefeito. O número de participantes constituirá a base para
o cálculo do número de delegados que irão participar na próxima fase
nas assembléias intermediárias e nos fóruns de delegados. Os moradores
se inscrevem nas assembléias individualmente. No entanto, a sua
participação em associações civis é indicada no processo de inscrição nas
assembléias. Critério para retirada dos delegados: até cem presentes na
primeira assembléia regional, 1 delegado para cada dez presentes; entre
101 e 250 presentes, 1 delegado para cada 20 presentes; entre 251 e
400, 1 delegado para cada 30 presentes; mais de 401 presentes, 1
delegado para cada 40 presentes. Todos os presentes têm direito a um
voto.

O conselho do Orçamento Participativo é instalado no mês de julho de


cada ano. Sua composição é a seguinte: dois conselheiros por cada
regional (32) + dois conselheiros eleitos por cada assembléia temática
(10) + um representante da Uampa (União das Associações de Moradores
de Porto Alegre) e um do Sindicato dos Servidores da Prefeitura. Total de
membros: 44. Suas atribuições são: a) debater e aprovar a proposta
orçamentária do município confeccionada no Gaplan, tendo como base as
decisões sobre hierarquização e prioridades de obras tomadas nas
assembléias intermediárias; b) rever a proposta orçamentária final
elaborada pela Prefeitura; c) acompanhar a execução das obras
aprovadas; discutir os critérios técnicos que inviabilizam a execução de
obras aprovadas.

É possível afirmar que a introdução do orçamento participativo pela


administração Olívio Dutra durante o ano de 1990 marca um divisor de
águas em termos de políticas participativas no Brasil. Se, por um lado, é
verdade que a conjuntura política da democratização já apontava na

10
direção de políticas participativas, devido à introdução da forma conselho
e de outras formas de participação durante o processo constituinte
(Raichellis, 1999; Dagnino, 2002), por outro lado, nenhuma cidade
abraçou tão rapidamente e tão amplamente a idéia de participação
quanto Porto Alegre. Alguns dados empíricos podem corroborar essa
afirmação: em primeiro lugar, a baixa participação inicial no orçamento
participativo em algumas regiões de Porto Alegre como a do Cristal,
Navegantes e a Glória com médias entre 10 e 15 participantes mostram a
enorme vontade política por trás da decisão inicial de implantação do OP.
Em segundo lugar, o enfrentamento do conflito político criado pelo OP,
que levou a demissão do primeiro secretário do Planejamento da
administração Olívio Dutra e à criação do Gaplan (Fedozzi,1997), mostra
uma determinação de enfrentar os conflitos políticos em torno da
continuidade e das características do OP. Em terceiro lugar, o enorme
envolvimento das associações civis nos primeiros anos do OP, período no
qual 71,28% dos participantes eram vinculados a associações
comunitárias (Fedozzi et all,1993), mostra o apoio à proposta no interior
da sociedade civil. Todo esses dados quando comparados, por exemplo,
com a experiência limitada do orçamento participativo em São Paulo no
mesmo período, mostram que a introdução da proposta e a vontade
política capaz de forjar o seu sucesso inicial apenas poderiam ter
ocorrido em Porto Alegre devido às condições anteriormente descritas.

É possível também caracterizar o sucesso distributivo do orçamento


participativo em Porto Alegre. Se partirmos de um conjunto de variáveis
relacionadas com a desigualdade social em cidades brasileiras: baixo
rendimento nominal médio do chefe de família; porcentagem de mães
com primeiro grau incompleto; número de domicílios irregulares e o
número de habitantes com menos de quinze anos por família podemos
perceber que o orçamento participativo tem um impacto na redução

11
dessas realidades na cidade de Porto Alegre (Marquetti,2003). Esse
argumento é extremamente importante para a discussão sobre
democracia participativa porque consegue corroborar a idéia de formas
4
de racionalidade associadas às formas ampliadas de participação , isto é,
mostra que os atores sociais quando devidamente munidos da
capacidade de deliberação conseguem identificar lacunas distributivas na
sociedade e agir de forma a corrigi - las. O argumento mostra também
que os atores sociais são capazes de realizarem rankings de prioridades
e, até mesmo, agirem altruisticamente na medida em que o ator médio
que participa do OP de Porto Alegre – caracterizado como um indivíduo
de renda familiar até quatro salários mínimos (Baierle, 1999) – consegue
identificar que existem indivíduos mais carentes do que eles e privilegiá-
los no processo de distribuição de bens públicos.

É possível mostrar também, no caso do orçamento participativo, o


impacto da forma ampliada de democracia na organização do Estado.
Dois tipos de evidências podem corroborar esse argumento: a
capacidade do Estado de melhorar a proporção entre o número de
funcionários dedicados às atividades meio em relação aos funcionários
que se dedicam às atividades fins da administração pública; a capacidade
do estado de melhorar o seu desempenho em áreas críticas, tais como, a
coleta de lixo e a capacidade de instalação de pontos de luz. Esse
argumento é relevante para nos posicionarmos em relação à
determinadas discussões sobre reforma do Estado e teoria do Estado.
Afinal, o espectro huntingtoniano da pressão das massas ainda assombra

4
Essa é uma questão polêmica no interior da teoria democrática contemporânea. A
teoria hegemônica a esse respeito, o assim chamado elitismo democrático, supõe que a
participação constitui apenas uma forma de pressão das massas sobre o sistema
político. Apesar de uma série de críticas teóricas a essa perspectiva terem sido
formuladas (Avritzer,1996), o trabalho de Marquetti aponta na direção de uma crítica
empírica.

12
alguns intelectuais brasileiros (Reis,2000). O OP nos fornece elementos
para pensarmos as sinergias entre reforma do Estado e formas ampliadas
de participação ao mostrar que a pressão da população sobre a
administração local melhora a performance da máquina administrativa.

É possível mostrar também que existe uma correlação entre o efeito


distributivo do OP e a capacidade da administração municipal de
aumentar a oferta de serviços públicos. Em 1990, a capacidade de
investimento da prefeitura era de 8,4% do orçamento municipal. Nos
anos de consolidação do OP (1992,1993 e 1994) passa para 14,5%
chegando a 18,6% em 1994. A variável capacidade financeira de realizar
investimentos foi fundamental para que as obras decidas no OP
pudessem de fato ser realizadas. Essa questão pode ser mostrada
avaliando o aumento da oferta de três serviços: coleta de lixo, número de
pontos de iluminação pública e metros quadrados de asfalto utilizados
na conservação ou construção de novas vias. Em todos os três itens,
aumentos significativos que implicam em melhora da capacidade
administrativa: a quantidade de lixo coletada dobra entre 1988 e 1998 ao
passo que ela havia diminuído ligeiramente nos seis anos anteriores
(1982- 1988); o número de pontos de luz instalados se multiplica por
quatro, e mais uma vez, é necessário observar que esse número diminuiu
entre 1982 e 1988; e, finalmente, a quantidade de metros quadrados de
asfalto usados na construção e manutenção de novas vias praticamente
triplica ao passo que ela havia pouco mais que duplicado entre 1982 e
1988 (Marquetti,2003).

Assim, podemos afirmar que o sucesso do orçamento participativo em


Porto Alegre se assenta em pelo menos quatro pilares, todo seles
ligados, a uma proposta alternativa de democracia que tem sido
discutida pelo Fórum Social Mundial: o primeiro deles é o pilar da

13
ampliação da democracia expresso no caso da experiência porto
alegrense tanto na capacidade de crescimento da participação no OP. O
FSM trabalha com a idéia de uma democracia de alta intensidade, isso é,
uma democracia na qual atores sociais com preferências fortes têm um
papel ampliado no sistema político. OP reforça essa visão ao mostrar a
viabilidade das formas de participação ampliadas. O segundo pilar é o
associativo- deliberativo, expresso no caso porto alegrense por diversos
elementos tais como, a presença constante das associações de
moradores no OP e a capacidade do OP de ter se tornado a forma
dominante de distribuição de recursos públicos na cidade, diminuído
sensivelmente, senão anulando, o papel do clientelismo na distribuição
de bens públicos. Mais uma vez, o Fórum Social Mundial e o OP parecem
ter uma afinidade eletiva.

Uma das linhas norteadoras do FSM é a idéia de uma contribuição


positiva das associações civis e ONGs no debate público. O OP mostra
essa viabilidade e reforça essa concepção. O terceiro desses pilares é
constituído pelas características específicas do desenho institucional: a
capacidade de introduzir as assembléias regionais conciliando - as com a
forma conselho, assim como a capacidade de redesenhar as regiões da
cidade de modo a adequá- las ao processo deliberativo e a capacidade de
criar novas instituições. Mais uma vez, acreditamos existir uma relação
entre essa característica do OP e concepções de fundo presentes no FSM.
Nesse caso, trata- se de reforçar uma visão de democracia que não aceite
como dadas as instituições políticas existentes, mas vá mais além
incentivando o surgimento de instituições que associem mais
intimamente participação e distribuição, dois dos eixos fundamentais dos
debates propostos pelo FSM.

14
O quarto elemento é a capacidade distributiva do OP abordada acima e
sua vinculação com o processo de reforma do Estado. Nesse caso, o OP
aponta para uma diferente perspectiva de entender o estado, que
poderíamos localizar justamente no eixo do pós- neoliberalismo. Nessa
perspectiva, a eficiência estatal não se dá pela diminuição do tamanho do
estado e sim pela inversão da relação entre funcionários ligados à
máquina e funcionários ligados a atividades fins das políticas sociais.
Mais uma vez, entendemos haver uma afinidade eletiva entre essa visão e
as concepções defendidas pelo FSM.

No entanto, defender a adoção do orçamento participativo como


paradigma de uma possível extensão da democracia participativa exige
mais do que apontar essas afinidades recíprocas. Afinal, não poderia o
OP ser um caso de “glocalização” (Robertson,1992; Santos, 1996), isto é,
de experiências locais que se tornam conhecidas globalmente mas que
são indissociáveis do seu contexto de surgimento? Na próxima seção
deste artigo, irei discutir a expansão do orçamento participativo no
Brasil.

Expansão do orçamento participativo no Brasil

O orçamento participativo constitui hoje, no Brasil, o principal motor da


expansão da democracia participativa no país. Entre 1989 e 1992,
apenas 12 municípios praticaram o OP em todo o Brasil. Entre 1993 e
1997, 36 municípios realizam o OP e entre 1997 e 2000, 103 municípios
praticaram o OP. (Teixeira, 2003). Estamos falando, portanto, de uma
forte expansão do OP como prática democrática – ainda que
percentualmente essa prática vigore apenas em 5% do total dos
municípios brasileiros. O que torna o OP influente enquanto proposta de
democratização do orçamento é o peso dos municípios nos quais ele é

15
praticado. No ano de 2002, o OP foi praticado nos municípios de São
Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, cidades com um enorme
peso nacional e regional. No entanto, discutir, a prática do OP é também
reconhecer as enormes variações que existem entre essas cidades ou
entre os 103 municípios que praticaram o OP entre 1997 e 2000. O OP
foi praticado entre 1997 e 2000 em 9 cidades com mais de 500 mil
habitantes (entre elas, 4 cidades com mais de 1 milhão de habitantes).
(Teixeira, 2003, Ribeiro e Grazia, 2003). Por outro lado, o OP tem a
maioria das experiências a ele relacionadas localizadas em cidades entre
20 mil e 100 mil habitantes. Assim vemos dois elementos distintos na
extensão do OP: a sua extensão para pequenas cidades das regiões Sul e
Sudeste e sua extensão para grandes capitais das regiões Sul, Sudeste e
Nordeste (no caso a cidade do Recife).

Estimativas preliminares apontam para mais de 300 experiências de


orçamento participativo no Brasil entre 2000 e 2004 (Avritzer, 2003). O
orçamento participativo tem mostrado também uma capacidade de
expansão em países da América Latina: o Peru recentemente aprovou
uma lei propondo a realização de um orçamento participativo nacional; a
Venezuela tem discutido essa proposta. Existem rudimentos de
experiências de orçamento participativo em diversas cidades latino-
americanas, entre as quais valeria a pena destacar, Montevidéo, Buenos
Aires, Córdoba e Vila Salvador, esta última no Peru. Portanto, a questão
que se coloca no debate sobre a extensão do orçamento participativo é a
seguinte: teria o OP potencial para se tornar uma política participativa
geral, capaz de organizar, a distribuição de políticas sociais, a
incorporação de minorias culturais e o debate participativo? Ou, estaria o
OP condicionado às pré- condições que o geraram, isto é, uma situação
de alta organização da sociedade civil e dos movimentos comunitários
em uma situação de carências urbanas acentuadas? Se for possível

16
estender o OP, em quais condições ele pode funcionar? Dois tipos de
evidências contraditórias podem ser apresentadas para
problematizarmos essa questão: (1) o desempenho do OP no decorrer
das tentativas de torná- lo uma política social; (2) o desempenho do OP
em relação a integração de setores desfavorecidos, minorias culturais e
problemas de gênero.

Em relação aos problemas de política social foram feitas algumas


tentativas em Porto Alegre e em Belo Horizonte de expandir o OP nessa
direção. Afinal, se tomamos os planos de obras do OP em Porto Alegre,
Belo Horizonte e na recente experiência na cidade de São Paulo esse
parece ser um problema constante: o OP parece ser uma boa forma de
discutir novos investimentos em infra- estrutura, mas não parece ter sido
capaz até o momento de introduzir novas políticas sociais. A Tabela 1
mostra as principais prioridades do OP de Porto Alegre por região no ano
1999. A análise da Tabela 1 mostra que, no caso das chamadas
assembléias regionais em Porto Alegre, a grande maioria das decisões
continua envolvendo distribuição de recursos materiais e não programas
de governo. No caso das primeiras prioridades em Porto Alegre em 1999,
6 decisões foram relativas à pavimentação, 6 foram relativas à política
habitacional, perfazendo um total de 12 decisões relativas à questão
material no total de 16. Em apenas uma região a educação apareceu
como prioridade. Ou seja, a maioria das decisões são decisões sobre
obras públicas. Tais decisões não envolvem alteração do perfil dos
gastos de custeio das prefeituras e tampouco envolvem uma
democratização das decisões sobre alternativas de políticas, tais como, o
tipo de educação pública, a concepção de saúde pública, a concepção de
preservação do meio ambiente.

17
Tabela 1
Prioridades escolhidas em Porto Alegre em 1999
Região 1ª Prioridade 2ª Prioridade
Nota 5 Nota 4
Humaitá/ Saúde – ampliação e Saneamento básico – Esgoto
Navegantes construção de postos de pluvial –
/Ihas saúde DEP
Noroeste Áreas de lazer Política habitacional –
Reassentamento

Leste Política habitacional – Pavimentação


Regularização fundiária
Lomba do Pavimentação Saneamento Básico – Esgoto
Pinheiro cloacal

Norte Política habitacional – Saneamento básico – Arroio


Regularização fundiária (drenagem e dragagem)
Nordeste Educação – Ensino Política habitacional –
fundamental Urbanização
Partenon Pavimentação Política habitacional –
Regularização fundiária
Restinga Saneamento básico – Educação – Educação infantil
Esgoto cloacal
Glória Pavimentação Saneamento básico – Esgoto
pluvial –
DEP
Cruzeiro Política habitacional – Pavimentação
Regularização fundiária
Cristal Política Habitacional- Saneamento básico – Esgoto
Regularização Fundiária pluvial –
DEP
Centro- Sul Pavimentação Saneamento básico – Esgoto
pluvial –
DEP

18
Extremo- Sul Pavimentação Saneamento básico – Rede de
água –
DMAE
Eixo da Política Habitacional – Saúde – Reforma, ampliação
Baltazar Reassentamento e construção de postos de
saúde
Sul Pavimentação Saneamento básico – Esgoto
pluvial –
DEP
Centro Política habitacional Educação – Programa SEJA
Construção de U.H.
Fonte: Prefeitura de Porto Alegre.

Em 1999, Belo Horizonte começou um movimento no sentido de delegar


à população que participa do OP o controle sobre algumas políticas de
governo em um processo chamado de “OP Cidade”. A alteração
introduzida pela Prefeitura de Belo Horizonte tem a intenção de tornar a
população co- partícipe na decisão sobre prioridades de políticas sociais.
No assim chamado “OP Cidade”, a Prefeitura apresenta à população a
forma como ela prioriza programas de diversas secretarias e a população
através da sua participação pode aceitar o ranking proposto pela
Prefeitura ou propor um ranking alternativo. No caso de divergência uma
assembléia da cidade com poder de decisão de 50 + 1 porcento decide a
ordem de prioridades. É muito cedo para avaliar os resultados desse
processo, mas tudo parece indicar que um movimento na direção da
participação da população no estabelecimento de prioridades entre
programas é o caminho que o OP deve seguir para ampliar a participação
da população na gestão local.

A Tabela 2 mostra o tipo de priorização de políticas sociais feita pelo OP-


Cidade. Na curta experiência em Belo Horizonte, foi possível observar

19
que à medida que avança o OP- Cidade encontra mais opositores na
administração pública e entre o pessoal técnico da prefeitura. Tal
oposição parece lógica, tendo em vista que esses são os casos nos quais
o OP redireciona preferências da máquina administrativa ou exige dos
administradores públicos mudanças nas suas preferências em relação a
políticas. No entanto, se o OP não pode ser apenas um programa de
ampliação do acesso a obras públicas, ele tem que envolver ampliação do
acesso a políticas e em alguns casos, mudanças na orientação dessas
políticas.

Tabela 2
Prioridades do “OP Cidade” em Belo Horizonte na área de assistência
social

Classificação dos Classificação do


Programas da programas segundo programa segundo
Secretaria de critério interno da decisão do OP Resultado
Assistência Social Secretaria Cidade” final

Criança e 1° 1° 1°
adolescente
Qualificação 2° 2° 2°
profissional
Portadores de 3° 6° 5°
deficiência
Criança 00 a 06 4° 4° 4°
Famílias 5° 3° 3°
População carente 6° 8° 6°
Meninos de rua 7° 9° 9°
Idosos 8° 7° 8°
População de rua 9° 10° 10°
Geração de renda 10° 5° 7°

20
Adolescente 11° 11° 11°
infrator
Dependente 12° 12° 12°
químico
Criterio da Prefeitura. Peso: 0,49 Decisão do “OP Cidade”.
Peso:0,51
Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte

Um segundo fator parece importante de ser discutido em relação à


participação: trata- se das desigualdades internas da população,
especialmente na sua composição de gênero e de minoriais culturais, e a
forma como ela tem afetado a participação no OP. Em relação à questão
de gênero essa parece ser uma variável relevante no conjunto dos
movimentos sociais brasileiros. A maior parte desses movimentos
especialmente aqueles com dimensões comunitárias tem uma forte
participação das mulheres, mas os dados não indicam uma representação
similar das mulheres em posições de liderança (Alvarez, 1990). Pesquisa
da organização não- governamental Cidade em conjunto com a Prefeitura
de Porto Alegre mostra uma evolução no padrão de participação das
mulheres no OP ao longo do tempo. Essa participação saltou de 46,7%
em 1993 para 51,4% em 1998, passando então a constituir a maioria dos
5
participantes do OP . Se esse fato parece ser positivo no que diz respeito
à possibilidade de políticas participativas virem a se constituir em formas
igualitárias de participação, é necessário notar que a participação das
mulheres diminui à medida que passamos da participação em
assembléias para a participação qualificada como conselheiros do OP, tal
como mostra a Tabela 3.

5
É necessário mencionar que a margem de erro da pesquisa é de aproximadamente 5%.
No entanto, a margem de erro da pesquisa não invalida o fato de haver uma série
histórica com margem de erro semelhante e nessa série histórica a participação das
mulheres ter aumentado em cada uma das pesquisas realizadas.

21
Os dados da Tabela 3 nos permitem afirmar que a eqüidade entre
gêneros se expressa mais na participação ampliada do que na escolha de
lideranças compatíveis com o perfil dos participantes. Fenômeno
semelhante pode ser identificado no OP- SP, como no caso de Porto
Alegre, a participação das mulheres é alta, mas não se traduz em
presença semelhante nas formas de coordenação do OP. Essa questão se
torna ainda mais grave quando pensamos em setores mais
marginalizados na sociedade brasileira, como, por exemplo, os
indígenas. Na experiência de orçamento participativo estadual no Rio
Grande do Sul, os índios guaranis que somam setecentas pessoas no
estado não foram atendidos em suas reivindicação de demarcação de
terras, entre outros motivos, porque não conseguiram maiorias em
reuniões do OP.

Mais uma vez, esse tipo de questão parece ser extremamente relevante
quando pensamos na extensão da experiência do OP para outros lugares
da América Latina ou do mundo na medida em que minorias étnicas são
mais importantes em países como Peru ou tradição de exclusão das
mulheres são ainda mais fortes em alguns desses países. Por outro lado,
valeria a pena saber quais tentativas de inclusão das mulheres foram
tentadas nessas outras experiências e quais aportes elas poderiam
fornecer ao OP.

Tabela 3
Participação no OP por gênero
Sexo IBGE/POA 1993 1995 1998 Delegados(as) Conselheiros
(as)
Mulhere 53,2% 46,7% 46,8% 51,4% 45,3% 48,7%
s
Homens 46,8% 47,6% 52,2% 48,4% 54,7% 51,3%
Nr – 5,7% – 0,2% – –

22
Fonte: Cidade

Reflexões pouco conclusivas: OP e o FSM

A guisa de conclusão, podemos afirmar que o orçamento participativo no


Brasil avança a prática democrática em dois pontos fundamentais:em
primeiro lugar, na capacidade de associar mais participação com mais
eqüidade distributiva. Por muito tempo, esse elemento esteve no debate
sobre a democracia associado exclusivamente à criação de condições
para a limitação do capitalismo (Przeworski, 1978; Moore, 1966) ou
criticado devido aos seus elementos corporativistas (Lowi,1970;
Schimtter, 1980).

O orçamento participativo abre uma outra via para pensá- lo que é a da


integração de atores sociais menos favorecidos no próprio processo de
discussão e deliberação. Isso torna o OP menos corporativista do que
versões anteriores das políticas participativas, tal como, as diversas
formas de corporativismo sindical ou de acesso de grupos privilegiados a
recursos públicos (vice a experiência dos vigilantes na Bolívia).

Um segundo aspecto que o OP avança em relação a políticas


participativas anteriores é na maneira como integra a participação com a
institucionalidade política. O OP consegue ser uma política participativa
de esquerda, ligado a vitórias político- eleitorais dos partidos de
esquerda, sem se tornar uma política distributiva atacada pelos setores
conservadores. Os motivos que explicam essa façanha são
provavelmente, a sua capacidade de aumentar a eficiência da máquina
administrativa, como mostramos acima, de aumentar o controle da
população sobre o gasto do governo. Mais uma vez, o OP aporta uma

23
contribuição ao debate democrático porque esse tendia a identificar o
aumento da participação com a instabilidade institucional ou com o que
ficou conhecido como “pretorianismo das massas”. Hoje e dia o debate
sobre participação se move na direção da melhor distribuição dos gastos
públicos na direção dos setores desprivilegiados, da melhor utilização
dos recursos públicos, da correção em deixar a própria população
apontar suas prioridades. Provavelmente, esses são os fatores que fazem
do OP uma forma de deliberação sobre recursos públicos tão atraente no
Brasil e em outros países da América Latina.

No entanto, é preciso notar que o OP só realizará o seu potencial de se


tornar uma política participativa de referência se ele superar a
contradição entre participação e distribuição, de um lado, e pluralização
e integração de minorias de outro. Sem nenhuma dúvida o OP se
qualifica como a experiência mais avançada de distribuição de bens
públicos para populações carentes implantada nos últimos anos. No
entanto, ele necessita de alguma maneira se livrar da oposição entre
distributivismo e pluralismo. Para tal, ele precisa ser capaz de integrar
grupos minoritários que demandam direitos (caso dos indígenas no
Brasil) ou grupos majoritários cuja participação não corresponde as suas
posições de liderança (caso das mulheres no Brasil). Tornar o OP mais do
que uma forma de deliberação sobre obras públicas deve envolver uma
tentativa de fundir diversos “horizontes de políticas participativas” em
diferentes tradições nacionais, isso é, deve procurar associar elementos
positivos da experiência do OP com elementos positivos de outras
experiências, em particular em países da América Latina e do Sudeste
Asiático que tem demonstrado uma preocupação semelhante com a
participação. No caso da índia, os Panchayats, uma instituição secular de
participação foi retomada com força nos anos 90 tanto na região de
Bengal quanto na região de Kerala. Alguns sucessos da experiência dos

24
Panchayats devem ser apontados: a sua capacidade de integrar a
participação das mulheres, pelo menos no caso da experiência de Bengal
que reservou 40% das posições de coordenação de Panchayats para as
mulheres com resultados extremamente positivos. Vale a pena também
pensar algumas experiências de participação popular mais ampliada que
conseguiram incluir a discussão de um cardápio mais ampliado de
políticas públicas, tal como parece se o caso de Vila Salvador em Lima.
Entendemos que o Fórum Social Mundial pode desempenhar um papel
central na fusão de horizontes participativos.

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28
Ciclo de seminários
Fórum Social Brasileiro, Belo Horizonte, 7 e 8 de novembro de 2003

Um projeto Ibase, em parceria com ActionAid Brasil, Attac Brasil e Fundação


Rosa Luxemburgo

Debates sobre Estado, pobreza, participación y desarrollo1

Mayra Paula Espina


CIPS, Cuba

Introducción

El tema de la pobreza y de las políticas para su enfrentamiento se ha


convertido en uno de los ejes centrales de investigación y discusión al
interior de las ciencias sociales y en el debate político. Dada la magnitud,
intensidad y persistencia de este fenómeno las estrategias para su reducción
y eliminación son materia obligada de los programas de cualquier partido
político, de las ONGs y de cualquier organización de la sociedad civil
ocupada en temas sociales.

1
Esta ponencia fue elaborada gracias a la contribución del Consejo Latinoamericano de
Ciencias Sociales (CLACSO), a través del esfuerzo conjunto del Programa Regional de
Becas y el Programa CLACSO/CROP de estudios sobre pobreza en América Latina y el
Caribe. El trabajo forma parte de los resultados del Proyecto “Políticas de atención a la
pobreza y la desigualdad. Examinando el rol del estado en la experiencia cubana”, que fue
premiado con una beca de investigación en el Concurso para investigadores senior "La
economía política de la pobreza" 2003.. Este texto no puede ser publicado sin la autorización
de CLACSO.

1
Aunque las cifras sobre la dinámica de la pobreza en América Latina son
bastante conocidas no han perdido su fuerza impactante:

América Latina
Evolución de la magnitud de la pobreza y la indigencia
1980-1999
Porcentaje de hogares pobres Porcentaje de hogares
indigentes
Años total urbana rural total urbana rural
1980 37,7 25,3 53,9 15,0 8,8 27,5
1990 41,0 35,0 58,2 17,7 12,0 34,1
1994 37,5 31,8 56,1 15,9 10,6 33,5
1997 35,5 29,7 54,0 14,4 9,5 30,3
1999 35,3 29,8 54,3 13,9 9,1 30,7
Fuente: CEPAL Panorama social de América Latina 2001

Claro que no existe un consenso en las explicaciones que desde las ciencias
sociales o de la práctica de toma de decisiones políticas se dan a esta
evidente persistencia de la pobreza en la región, muy especialmente en lo
que concierne a sus causas y a las fórmulas más eficaces para revertirla, lo
que hace que la cuestión de los roles del Estado o de otras estructuras y de
actores no estatales, en el manejo de las desventajas sociales, así como la
de las políticas sociales, sus contenidos, niveles, coberturas y dimensiones
más adecuados, hayan reforzado su centralidad como temas privilegiados de
debate.

Para la vertiente de pensamiento que, como CEPAL, identifica una relación


directa – discutible relación, enjuicia L. Tavares (2002) – entre crecimiento
del Producto Interno Bruto y reducción de la pobreza, el problema principal
radica en que hay que crecer más. Recientemente, Rolando Franco, director
de la Dirección de Desarrollo Social de CEPAL, ha dicho “(…) incluso en los
años de crecimiento de la década pasada siguió incrementándose el número
absoluto de pobres en la región. El hecho de que ni siquiera cuando la
economía se desempeño relativamente bien se haya logrado frenar el
aumento de la pobreza, es un nuevo acicate para preocuparse por volver a
crecer” (Franco, 2003).

2
Evitando comprometerse con un economicismo reducionista y mecánico,
Franco aclara que si bien la afirmación de que “la mejor política social es una
buena política económica”, “tiene una cuota de verdad”, ella debe matizarse,
y propone otra variante “una buena política económica es condición
necesaria pero no suficiente para la equidad”. Explica la insuficiencia de esta
condición argumentando que altas tasas de crecimiento logradas a partir de
una sobreexplotación de los recursos naturales o de utilización de mano de
obra poco calificada y mal remunerada no pueden mantenerse en la
perspectiva. Propone, por el contrario, “otro estilo de desarrollo” sustentado
en el aprovechamiento del capital humano, lo que hace emerger la necesidad
de políticas sociales, como instrumento de generación de dicho capital. A ello
añade que este matiz debe incluir el énfasis en la importancia del crecimiento
económico, en tanto este genera empleos, con ello remuneración salarial y
formas autónomas de solventar la satisfacción de necesidades básicas y
provoca sensación de optimismo que aumenta la viabilidad de medidas
redistributivas. (Franco, 2003).

Aunque la posición cepalina en materia de crecimiento económico y


desarrollo es mucho más amplia y complicada que lo que aquí se reseña
sucintamente, y no es posible negar la vocación histórica de la CEPAL por
rescatar la problemática social del desarrollo, lo expuesto permite ilustrar una
posición critica que, sin embargo, no logra romper radicalmente la postura
“produccionista” que subordina la política social y las estrategias de manejo
de la pobreza al desempeño económico, y donde lo social adquiere
relevancia solo en su condición de capital.

Desde esta óptica, las mejores políticas sociales son entonces aquellas que
potencian las cualidades de las personas para funcionar como capital, para
competir en mejores condiciones en el mercado. En concordancia con esta
posición, en su Panorama Social en América Latina y el Caribe (2000/2001)
CEPAL explica que la reducción a la mitad de la indigencia en la región
exigirá un crecimiento del PIB per cápita de al menos un 2,3 % anual hasta el
2015 y que una reducción similar de la pobreza dependerá del crecimiento
entre el 3 % y el 4 % en el período señalado. Teniendo en cuenta la situación

3
económica de nuestros países y las difíciles condiciones para que estos
logren mejorar su inserción en la economía global, estas son noticias muy
desalentadoras.

En contraste, otras vertientes de pensamiento, se acercan al problema de la


pobreza y las inequidades, considerando que lo social, en si mismo, es lo
central y que el mejoramiento de los desempeños sociales no se legitiman
por su posible contribución a funcionamientos mercantiles, sino que tienen
una legitimidad ética y lo económico se le subordina. Aquí, crecer
económicamente posibilita mejores desempeños sociales, pero estos pueden
alcanzarse accionando sobre los resortes distributivos, aun en condiciones
de poco o ningún crecimiento. De ello se desprende que no es necesario
esperar al 2015 para obtener reducciones significativas de la pobreza. La
condición de ser humano, no la de capital, es la que otorga derecho a la
inclusión social.

En esta breve presentación se hace un recorrido por las perspectivas


actuales en materia de estrategias de reducción de la pobreza, se discute el
rol que en ellas se asigna al Estado y la pertinencia de entroncar dichas
estrategias con políticas sociales centradas en la promoción de desarrollo, en
la participación y en la universalidad del acceso al bienestar.

Estrategias de enfrentamiento a la pobreza

Probablemente sea este uno de los campos de las ciencias sociales donde
con más fuerza se ha expresado el perfil propositivo de estas y su vocación
de vínculo con la toma de decisiones, de construcción de una articulación
directa entre la investigación y la propuesta de acción, entre el discurso de
diagnóstico y explicación y la transformación.

Desde las primeras revisiones bibliográficas se perciben dos grandes troncos


diferenciados en las estrategias de enfrentamiento a la pobreza: el que las
concibe formando parte integral de políticas sociales mas amplias, orientadas
al desarrollo y a proveer acceso general al bienestar para toda la población y

4
el que las trata como estrategias relativamente autónomas, de acción
selectiva y focalizada hacia poblaciones precarizadas.

El primer tronco viene de dos tradiciones, la del Estado de bienestar y la de


las experiencias socialistas europeas y de otras regiones geográficas.
Salvando las grandes diferencias entre ambas tradiciones, que tienen que
ver que sus respectivas explicaciones de las causas y condiciones de
reproducción de la pobreza y de los basamentos y roles de la desigualdad,
queremos destacar que en ambas hay un apego a un concepto de política
social definida como el conjunto (con aspiración de sistema integrado) de
estrategias, programas, planes y proyectos, y de las acciones que de ellos
dimanan, que se diseñan y ponen en práctica con la finalidad de producir
una elevación sistemática del nivel y la calidad de vida y del grado de
satisfacción de las necesidades de la población de un país en su conjunto,
en sus diferentes escalas territoriales, y de los sectores sociales particulares
que la integran, donde, sin desconocer otros agentes y la necesaria
participación social, el estado desempeña la función central y tiene la máxima
responsabilidad en el diseño , ejecución, control y evaluación de las políticas.

Desde la óptica de sus áreas de contenido, comúnmente se identifican las


llamadas políticas sectoriales: de educación, empleo, alimentación, salud,
seguridad y asistencia social, cultura, vivienda, deporte, recreación, etc.

En este esquema, la pobreza es una situación que exige una atención


especial, pero dentro de una concepción de universalidad, de derecho al
bienestar de todos, pobres y no pobres, y ella puede ser superada,
fundamentalmente promoviendo acciones que aseguren que los pobres
accedan a los mecanismos de integración social que la sociedad debe
asegurar para todos (empleo, educación, salud, etc.) Son políticas de
desarrollo mediante la integración social.

El segundo tronco es el que se corresponde con la versión neoliberal del


enfrentamiento a la pobreza. La avalancha globalizadora neoliberal arremetió
contra este tipo de intervención estatal, vigente en nuestra región en toda la

5
etapa de desarrollo de sustitución de importaciones, culpabilizándolo de una
interferencia ineficiente en los mecanismos de mercado y haciendo su
propuesta de Estado mínimo, y concibiendo la lucha contra la pobreza
desgajada de empeños mas abarcadores, como rehabilitación y rescate de
poblaciones en situación de pobreza, a través de estrategias focalizadas y
selectivas.

Anete Ivo caracteriza la sustitución de la primera variante por la segunda


explicando que el nuevo cuadro de las estrategias de lucha contra la pobreza
en América Latina “implica el tránsito de un tratamiento universal hacia un
tratamiento parcial y mitigador de la pobreza, fuera de la estructura de los
derechos sociales inscritos como base regulatoria de la sociedad del trabajo”
(Ivo 2003:10).

Esta colega brasileña identifica las siguientes concepciones generales que


inspiran las estrategias de reducción de la pobreza en la actualidad:

– Control de los pobres: visión represiva de la pobreza que supone que su


aumento induce un descontento creciente de los sectores empobrecidos
y, eventualmente, del incremento de la conflictividad social y la violencia,
lo que exige y legitima una intervención pública de control de las áreas
marginales y de fortalecimiento de las instituciones de seguridad.

– Refilantropía de la pobreza: asume que una distribución mas justa de los


recursos, como instrumento de enfrentamiento a la pobreza, es una
condición de desarrollo humanitario, afirmando la lucha contra las
desventajas sociales como un compromiso de toda la sociedad en la
constitución de amplias redes de sociabilidad comunitaria, basadas en
prácticas solidarias, alternativas a la ausencia de acción estatal.

– Concepción movilizativa de los pobres: considera que las estrategias de


atención a la pobreza deben incluir la organización directa de los
beneficiarios y la potenciación de sus capacidades. Este planteo toma
tres supuestos: necesidad de integrar la acción de la sociedad civil en los

6
programas de combate a la pobreza; el carácter territorializado,
microsocial y comunitario de las políticas; orientación focalizada hacia
públicos específicos. Esta concepción se desgaja en tres variantes: la
neoliberal (aprovechamiento de la capacidad y los activos de los pobres
para insertarlos en el mercado); el discurso afirmativo de la pobreza
(integración de políticas de gasto social para satisfacción de necesidades
básicas, las de apoyo a la economía popular y la autonomía de los pobres
como sujeto capaz de desarrollar procesos de autogestión); perspectiva
tecnocrático-progresivista (incluye las estrategias difundidas por los
organismos internacionales como el BID, la CEPAL y el PNUD, y postula
el apoyo público a la economía popular).

Por su parte, el Banco Interamericano de Desarrollo (1992) divide los


instrumentos de política existentes en dos clases: -de vía indirecta, los que
priorizan el uso de recursos para acelerar el crecimiento, en el entendido de
que este tendría un efecto positivo sobre el ingreso de los pobres y su nivel
de vida; -de vía directa, establece la atención a las necesidades de los
pobres a través de la provisión de servicios públicos, mediante un sistema de
transferencias que financian dicha satisfacción, accionando sobre la
redistribución de los ingresos.

Como consecuencia de que la vía indirecta en su versión pura , no dio los


resultados esperados, las recomendaciones de los organismos
internacionales en los últimos años apelan a estrategias que combinen
ambas rutas y un repertorio amplio, donde gastos públicos eficientes y bien
dirigidos se complementen con la rehabilitación de activos, las iniciativas
autogestivas, la economía popular y la acción privada., lo que hace que se
hable de la existencia de una Nueva Agenda de Reducción de la Pobreza
(Lipton y Maxwel 1992.), que recoge elementos de todas las estrategias
anteriores, pero especialmente del Banco Mundial, del PNUD y de la CEPAL”
(Parodi 2001:379).

Esta agenda incluye los siguientes principios: consideración multidimensional


del concepto de bienestar, que no reduce las estrategias a acciones sobre el

7
nivel de ingresos o de consumo de los pobres, sino a sus capacidades;
prioridad de las estrategias orientadas ayuda a los pobres para que estos
puedan generar establemente condiciones adecuadas de existencia; rol
esencial del Estado que se concreta en la provisión de información, la
generación de un entorno institucional y de la infraestructura que garantice el
acceso de los pobres al bienestar; orientación prioritaria hacia el crecimiento
del trabajo intensivo, hacia un acceso creciente de los pobres a los servicios
sociales y hacia la construcción de un sistema efectivo de transferencias que
aseguren protección ante imprevistos; incorporación del criterio de
sustentabilidad, garantizando el aseguramiento de la satisfacción de las
necesidades de los pobres sin comprometer las de las generaciones futuras.
(Parodi 2001)

Un requisito básico que exige la aplicación de esta agenda es la focalización


precisa de los destinatarios de las ayudas (well-targeted transfers) y necesita,
además, un entrono internacional apropiado, consistente en la posibilidad de
acceso de los países de bajos ingresos a los mercados globales, esquemas
flexibles para la negociación d e a deuda externa y programas de ayuda con
una adecuada focalización.

Como puede apreciarse, la mayoría de las concepciones generales, de las


vías y agendas de las propuestas en curso en la lucha contra la pobreza,
aunque se separan de un economicismo ramplón, no lo superan totalmente y
mantienen de alguna manera la supremacía de lo económico y de las
estrategias que abordan el bienestar social desde la gestión de la
distribución, obviando las relaciones de producción. Sería prácticamente
imposible reseñar aquí, aunque solo fuera sumariamente, el amplio abanico
de posturas críticas que se han estructurado en torno a este tema.
Seleccionamos, como muestra ilustrativa del conjunto, cuatro acercamientos
críticos que se han construido considerando la experiencia latinoamericana
de la última década.

Un primer acercamiento crítico a las estrategias neoliberales de alivio de la


pobreza se orienta a recuperar una articulación más armoniosa entre lo

8
económico y lo social, a rescatar la pertinencia de una gestión estatal
eficiente y de la participación ciudadana y la igualdad como valor social. Una
variante de esta postura ha surgido dentro del propio Banco Interamericano
de Desarrollo. Desde aquí, Bernardo Klisberg identifica los diez supuestos
mas comunes (“falacias”, les llama por su carácter erróneo y de inversión de
la realidad) que han sustentado las políticas sociales en la América Latina de
las reformas neoliberales:

1) desjerarquización de la pobreza como problema social, bajo el entendido


de que siempre, y en todas partes, ha habido pobres;
2) la solución de la pobreza como cuestión de tiempo (“paciencia histórica”),
del tiempo necesario para cumplir las metas económicas que permitan contar
con recursos para emprender las metas sociales;
3) el crecimiento económico como condición suficiente para solucionar la
pobreza y alcanzar desarrollo social;
4) la naturalización de la desigualdad como fase irremediable, necesaria y
superable del desarrollo, considerando que la concentración de recursos en
grupos reducidos genera capacidades de inversión que se revierten en
crecimiento económico, y así sucesivamente;
5) desvalorización de la política social por su carácter no prioritario,
secundario y subalterno con relación a políticas mayores (ampliación de la
capacidad productiva, logro de los equilibrios monetarios y
macroeconómicos, crecimiento tecnológico, etc.) y por su naturaleza de
gasto social o inversión ineficiente;
6) deslegitimación del Estado como actor del desarrollo, asociándolo
fatalmente con corrupción, ineficacia y burocratización, en oposición a la
eficacia del sector privado y el mercado;
7) desvalorización del rol de la sociedad civil como agente de cambio
progresivo a partir de la superioridad del mercado en este ámbito y de la
fuerza de los incentivos económicos, la maximización de las ganancias y la
gerencia de negocios;
8) participación social controlada en la gestión de los asuntos públicos, que
son materia de dirección especializada, tecnocrática;
9) elusión ética, donde la racionalidad técnico-instrumental sustituye la

9
centralidad de los valores y elude el debate sobre los fines;
10) ausencia de caminos alternativos.

A partir del manejo de datos sobre el desempeño económico y social


latinoamericano y de otras regiones del mundo, Klisberg demuestra lo
erróneo de estos supuestos y critica severamente su efecto de devaluación
de la política social y su incapacidad para resolver el problema de la pobreza.

En lo concerniente a la desigualdad, distingue 5 tipos de esta: inequidad en


la distribución de ingresos, en el acceso a activos productivos y al crédito, en
los logros educativos y en el acceso a la informática, demostrando
empíricamente la relación inversa entre inequidad y desarrollo y los nefastos
impactos económicos de políticas sociales de bajo perfil que obstaculizan la
formación del capital social calificado a escala ampliada. Con esto se pone
en evidencia la necesidad de estrategias de cambio social sustentadas en lo
ético y que reconozcan sus efectos de estímulo sobre la economía.

En una línea de pensamiento similar a la anterior, Alejandro Medina (2002)


considera que las estrategias de reducción de la pobreza y el diseño de
políticas sociales en general en América Latina han sido guiadas por doce
mitos que han inducido a graves errores:

1) La pobreza es un problema exclusivo del volumen de recursos;


2) El crecimiento económico reduce la pobreza y la desigualdad;
3) La creación de empleo reduce la magnitud de la pobreza;
4) Una baja inflación reduce la pobreza de manera automática;
5) Los microcrédictos son un reductor potente de la pobreza;
6) Todo gasto social deja beneficio y mejora la situación social;
7) La evaluación del impacto de los proyectos y programas sociales es
excesivamente costosa;
8) La universalidad y la focalización son estrategias excluyentes;
9) La descentralización reduce la pobreza;
10) Los programas sociales y los servicios públicos son mas eficientes
cuando se gerencian con criterios empresariales y de mercado;

10
11) El mercado surge por generación espontánea;
12) El criterio de éxito de la política social es reducir el porcentaje de
población que se encuentra en situación de pobreza.

El autor opone a los mitos argumentos empíricamente documentados que


muestran un panorama diferente al que estos suponen Entre los análisis que
incluye en su crítica aclara que .si bien el gasto social en América Latina
siempre ha sido bajo, aún en los 90s, cuando evidenció una tendencia
creciente, no cristalizó un proceso de reducción de la pobreza, porque,
según el punto de vista del autor, mas importante que el volumen de recursos
que conforma el gasto es la eficiencia de su asignación, ejecución y
evaluación. Igualmente, el efecto de derrame no se verificó, aún en países
que mantuvieron una tendencia de crecimiento importante, y el incremento
del empleo corrió a cuenta de sectores poco dinámicos o en ocupaciones
con ingresos insuficientes, con lo que no logra revertirse la situación de
pobreza. En cuanto al micro crédito, la experiencia internacional apunta hacia
el hecho de que no siempre colocar un amplio volumen de recursos en esta
dirección, lograr altas tasas de recuperación y crear un alto número de
microempresas, constituyen indicadores de superación de la pobreza, porque
con demasiada frecuencia no son los pobres, o los mas pobres, los que
pueden aprovechar esta opción y ella favorece a quienes no tenían
necesidades tan acuciantes, dándose también el caso de que muchas de las
pequeñas empresas no logran rebasar el nivel de subsistencia y llegar a la
acumulación.

En lo que se refiere a la descentralización, Medina explica que para que esta


tenga un impacto positivo en el incremento del acceso al bienestar de las
poblaciones pobres debe acompañarse de la creación de un marco
normativo adecuado, del incremento de l capacidad de gestión de las
unidades descentralizadas, de la consolidación de sistemas redistributivos
que cuenten con diversas fuentes e inducir una alta participación ciudadana
en la construcción de la agenda social.

11
De todo ello desprende que, siendo la pobreza un fenómeno de carácter
heterogéneo, que presenta diversas intensidades y modalidades, las políticas
públicas deben ajustarse a tal heterogeneidad, teniendo en cuanta las
características del estrato al que van dirigidas en lo que el llama “estrategias
diferenciadas de política social, (…), programas y proyectos para cada
situación específica (…) que en su conjunto se constituyen como una política
pública articulada para reducir la pobreza, enfrentar la vulnerabilidad, y
contribuir a mejorar la distribución del ingreso y apuntalar el crecimiento”
(Medina 2002:22).

En esta perspectiva de las estrategias diferenciadas se destaca, por


combinar diversas opciones, la de formación y redistribución de activos
productivos, incluyendo en estos el capital natural (por ejemplo, el agua y la
tierra); el capital humano (educación y salud, claves para romper la
reproducción intergeneracional de la pobreza); capital financiero
(oportunidades de crédito a pequeñas, micro y medianas empresas); capital
social (capacidad de las comunidades para su autoorganización y el
gerenciamiento de proyectos productivos , basados en redes de reciprocidad,
confianza y cooperación).. Si la pobreza es interpretada como situación
generada por la falta de activo productivos o por la falta de capacidad para el
uso eficiente de los que se poseen, la mejor política de combate a la pobreza
sería la que lograra dotar de estos a los vulnerables.

Un segundo camino crítico es el que se vincula a lo que podemos llamar


modelo ético, término que nos sugiere la definición de política social
elaborada por el brasilero W. Santos, y comentada por su compatriota Laura
Tavares, que considera que esta no es una estrategia entre otras, con el
mismo orden lógico, sino una metapolítica, que justifica el ordenamiento de
cualquier otra política, el ordenamiento de “selecciones trágicas”. Vista de
esta forma, la política social quedaría fuera del cálculo económico y se
ubicaría en la contabilidad ética, en el área del conflicto entre valores,
Constituiría una metapolítica en tanto se configura como matriz de principios
ordenadores de selecciones trágicas, principios de naturaleza cambiante y
contradictoria. (Tavares, 2000)

12
Esta definición apunta hacia la complejidad de las decisiones en materia de
política social y de su implementación práctica, particularmente porque estas
no pueden diseñarse con recetas generales y universales
descontextualizadas, y porque están siempre colocadas, al menos en las
sociedades periféricas, ante el imperativo de establecer prioridades entre
opciones dramáticas, de vida o muerte, con recursos muy limitados. El
imperativo se bifurca en uno de eficiencia económica y en otro de naturaleza
ética que, aunque no son caras fatalmente inarticulables, difícilmente se
conjugan sin contradicción.

La tercera vertiente crítica que nos interesa resaltar, es la de inspiración


marxista, centrada en la noción de Estado como instrumento de dominación
de clase.

En su orientación gramsciana, esta postura argumenta que toda acción de un


Estado y, por ello, toda política social, debe ser interpretada como parte de
una estrategia de hegemonía de la clase dominante, en tanto pretende
construir y controlar la unidad de las diferentes fuerzas políticas, y mantener
la cohesión desde la concepción del mundo que la fuerza hegemónica
impone (Vasconcelos 2000). Las políticas de lucha contra la pobreza no
avanzarán mas allá de lo que esa fuerza hegemónica considere necesario
para mantener la cohesión y su propia dominación y lo que los bloques
populares logren hacer valer en esa negociación.

De especial interés es la posición que estructura la crítica develando que es


imposible eliminar la pobreza con políticas sociales que operan en la esfera
de la distribución y el consumo, cuando deberían accionar en la esfera de la
producción, donde se estructuran las relaciones de desigualdad y los proceso
de exclusión y enajenación.

Una cuarta dirección es la de la perspectiva holística (Trputec 2001). Para


esta perspectiva la principal debilidad de las estrategias de lucha contra la
pobreza mas extendidas en la región, y en el mundo, es que estas parten de

13
un supuesto erróneo, al considerar que la pobreza es una parte del sistema
socio-tecno-ambiental que posee una causalidad interna propia y reducida,
sobre la cual es posible actuar. Pero, de hecho, es la sinergia del sistema
como un todo, con sus interacciones y causalidades, la que determina la
dinámica de las partes que lo constituyen... En consecuencia, solo una
estrategia que no se concentre en la pobreza, sino en la estructura y la
dinámica del sistema en su totalidad, incluyendo su componente territorial
global, sería eficiente. Desde esta perspectiva se somete a crítica en su
totalidad la forma global de concebir y gestionar el desarrollo y se coloca la
lucha contra la pobreza dentro de una reconceptualización de este.

Pobreza, desarrollo y participación

Un reconocido economista y profesor europeo, con una larga experiencia de


vínculo con ONGs que trabajan en Centroamérica, en un interesantísimo
ensayo comenta “(...) no cabe mucha duda de que las prácticas dominantes
en países subdesarrollados siguen todavía apegadas a las políticas
neoliberales y al combate a la pobreza como su complemento social, y no a
un concepto integral y teóricamente elaborado del desarrollo” (Trputec 2002).

Después del recorrido conceptual anterior y a través de las concepciones


sobre las estrategias de lucha contra la pobreza, considero que no es posible
encarar esta lucha, sin insertarla en otra más amplia por el desarrollo, porque
solo de esta forma podrían encontrarse opciones que interrumpan la
reproducción sistemática de las condiciones que generan dicha pobreza.

La postura contraria no logra construir verdaderos actores


autotransformativos e insertarlos en una lógica de sustentabilidad de las
acciones de cambio.

Con esta intención mínima, de insertar algunos ejes de problematización en


el debate (ejes que no son nuevos, solo que no han recibido soluciones
satisfactorias y deben seguir ocupando nuestra atención) me limitaré a
enunciarlos aquí sumariamente como interrogantes:

14
Primera interrogante: ¿Qué noción de ser humano informa las políticas de
enfrentamiento a la pobreza más extendidas?

Lla mayor parte de la gestión de políticas contra la pobreza en nuestra región


parten de conceptualizarla, de forma general, como un estado de carencias,
individual o familiar, que impide a los sujetos un acceso adecuado a los
bienes imprescindibles para la satisfacción de sus necesidades, con la
correspondiente aclaración de que este es un fenómeno histórico cultural, por
lo que las necesidades y los elementos que las satisfacen, si bien presentan
dimensiones universales, no pueden ser analizadas aisladas del contexto
social en que se construyen.

Lo esencial aquí es llamar la atención sobre el hecho de que tanto la noción


de necesidades básicas, como la de estándar de vida, aun en su versión más
amplia, está apelando a un sujeto que estaría confinado a satisfacer solo
necesidades de muy bajo perfil, elementales, considerando la complejización
de las necesidades y de sus satisfactores que ha tenido lugar en la sociedad
contemporánea. Desde esta óptica, para dejar de ser pobre bastaría con un
poco mas de ingresos, aunque se permanezca excluido casi completamente
de la mayoría de los bienes materiales y espirituales que producen las
sociedades actuales. Este no puede ser un sujeto del desarrollo, es un sujeto
de la subsistencia, típico del asistencialismo.

En un reciente texto Marcel Claude caricaturiza esta perspectiva de la


pobreza medida y gerenciada a través de necesidades y canasta básica con
los siguientes comentarios “(...)la idea de sociedad implícita en la línea de
pobreza se aproxima a las primitivas sociedades anteriores al descubrimiento
del fuego, en las que disponer de una cueva para protegerse y de un mazo
para cazar y obtener las proteínas necesarias, constituían el umbral para
saber si ese hombre primitivo satisfacía sus necesidades o no (...).
Obviamente este criterio no corresponde al de una sociedad moderna y
compleja, donde las necesidades pasan no solo por comer y cazar, sino

15
también por adquirir energía (...), transportarse, vestirse, lavarse la cara y los
dientes, calentar los alimentos, recrearse” Claude, 2002).

Como base para mediciones diferentes, Claude introduce el concepto de


Umbral de Satisfacción Mínimo, que “busca determinar el costo en términos
monetarios que una persona enfrenta para poder vivir de una manera
aceptable en una sociedad moderna” (Claude, 2002).

Todavía este umbral no supone un sujeto del desarrollo, pero al menos ubica
la problemática de la pobreza y las carencias que ella implica en el contexto
de necesidades típicas de sociedades modernas con lo que ensancha el
horizonte de rasgos de la pobreza.

Aunque la mayor parte de las definiciones de desarrollo que han sido


elaboradas desde la aparición de esta categoría, especialmente las que se
centran en las dimensiones económicas, también operan con una
primarización del sujeto, no por lo reducido de las necesidades que
consideran, sino porque su satisfacción incrementada se asocia casi
exclusivamente al consumo creciente, siempre superior, si nos apegamos a
nuevas perspectivas críticas del desarrollo, encontraremos elementos que
permiten producir un viraje en la forma de entender al sujeto y sus
necesidades. Se trata de un tránsito desde un sujeto elementalizado,
primitivizado, hacia un sujeto complejo y autotransformador y desde una
visión de “desarrollo para el sujeto” hacia la de “desarrollo del sujeto”.
(Trputec 2002). Retomaremos este tema con mayor extensión mas adelante.

Segunda interrogante: ¿Las formas usuales de medición de la pobreza


permiten construir una imagen multidimensional y compleja de la misma?

En parte esta pregunta ya fue respondida, negativamente, dentro de la


anterior. Se trata aquí de añadir algunos otros elementos comúnmente
ignorados en estas mediciones. Como antes señalamos las definiciones y
cálculos de la pobreza se fundamentan en carencia, ausencia de bienes,
limitaciones en el consumo que se considera mínimo imprescindible, sin

16
embargo, debates recientes apuntan hacia la exigencia de ampliar este
campo hacia el del consumo de males “ la distribución y el consumo de los
males del progreso económico de una sociedad” (Claude, 2002).

Claude afirma que existe (para Chile, dice él, pero parece obvio que es una
idea aplicable en un margen mucho más amplio) una doble condición de
injusticia (de pobreza, añado) y propone que, a la cuantificación de las
desigualdades y desventajas asociadas a las asimetrías en la distribución de
bienes habría que agregar las referidas a la distribución de males, que es
también asimétrica, e incluye dentro de ellos la acumulación de basura, la
contaminación tóxica, la depredación de los ambientes naturales, las
enfermedades psicológicas.

Podríamos hacer una voluminosa lista de estos males y evaluar su impacto


sobre la satisfacción de necesidades básicas o, más radicalmente, el
despliegue de las potencialidades humanas, pero lo significativo es
comprender la profundidad que permite esta postura en la comprensión de la
pobreza y las maneras de enfrentarla.

Tercera interrogante: ¿Qué concepción de desarrollo sería la más adecuada


como sustrato de las estrategias de enfrentamiento a la pobreza, que
contribuya a alejarla del asistencialismo y la primarización del sujeto?

Por supuesto que esta interrogante desborda ampliamente las posibilidades


de estos breves comentarios y no pretendo responderla, pero es
imprescindible al menos bordear el tema y dejarlo latente, como la pregunta
meta más relevante que debería marcar todas las acciones de manejo de la
pobreza.

Si valoramos el itinerario histórico descrito por el concepto de desarrollo


encontraríamos que este ha pasado por cinco grandes etapas que, por su
lógica de entrelazamiento, describen como se ha producido el viraje desde
desarrollo para el sujeto a desarrollo del sujeto. Sintéticamente esas etapas
son las siguientes:

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Primera etapa o de generación: abarca desde el siglo XIV hasta la primera
mitad del XIX

Se caracteriza por el tránsito desde una concepción cíclica del cambio social
hacia otra progresivista, universalista y ascencional, con carácter de
inevitabilidad histórica y de ley sociológica.

Segunda etapa o de universalización (segunda mitad del XIX a 1945)

En ella queda bien definido un concepto de desarrollo y se produce su


operacionalización ,identificándolo con modernización, entendida esta como
el paso desde sociedades tradicionales a sociedades modernas a través de
procesos crecientes de industrialización, urbanización, diferenciación,
institucionalización, democratización alta capacidad para la innovación y el
cambio, la innovación tecnológica productiva sistemática, y el logro de niveles
de producción y productividad cada vez mayores (Smelser, 1959 y Germani,
1962).

Se consolida la creencia en el carácter de ley del desarrollo y de su


naturaleza causal-lineal y universal. Los factores económicos y tecnológicos
se configuran como los determinantes y con capacidad para impulsar el resto
de las esferas de la vida social. El crecimiento económico se convierte en el
núcleo central del desarrollo.

Tercera etapa o de “encantamiento” (desde 1945 hasta inicios de los años


70s)

En este período de posguerra se produce un convencimiento universal de


que los desfases en el desarrollo eran una amenaza constante a la paz y
precisamente la organización de Naciones Unidas nace teniendo entre sus
fines el de promover desarrollo y de alguna manera tratar de igualar a las
naciones como una fórmula de fomento de la paz y de evitación de los
conflictos armados y de la violencia mundial. En la teoría del desarrollo la

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nación queda configurada como el escenario propio del desarrollo y el estado
como su protagonista o agente y garante principal. Es el período del diseño
de modelos de desarrollo y puesta en práctica de políticas concretas para
lograrlo.

Cuarta etapa o de crisis del discurso desarrollista o del desencanto por el


desarrollo (de la segunda mitad de los 70s hasta la década del 80 y
principios de los 90)

En apretadísimo resumen pude decirse que la crisis del concepto de


desarrollo se caracteriza por el abandono de la creencia de que el modelo
economicista, productivista y tecnologicista era capaz de proveer bienestar a
las amplias mayorías y de igualar a las naciones, por la radicalización de la
crítica a dicho modelo, en tanto le es consustancial la conservación de las
bases de la desigualdad entre naciones y grupos sociales, la reproducción de
la pobreza, la exclusión y la dependencia y el deterioro imparable del
patrimonio natural y cultural de los pueblos, por su falta de sensibilidad para
la comprensión de las diferencias y su pretensión homogenizadora, y por sus
efectos de anulación de los sujetos del cambio social al asumirlos como
objetos, beneficiarios pasivos de estrategias generales diseñadas desde
fuera de sus realidades particulares y sin la incorporación de los saberes
populares cotidianos.

Quinta etapa o de reemergencia crítica del concepto de desarrollo (desde los


90s a la actualidad)

A mi juicio, aún no ha cuajado esa nueva concepción, integradora y sintética,


del desarrollo que percibimos como posibilidad, pero resulta alentador que el
perfil propositivo de las ciencias sociales en este terreno se ha activado y
conviven hoy diferentes perspectivas que se ubican dentro de una visión
alternativa. Me refiero a teorizaciones y experiencias de transformación
alentadas desde las perspectivas del desarrollo local, el ecodesarrollo, el
desarrollo humano, la sustentabilidad, el autodesarrolo del pueblo, entre
otras.

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Tratando de sintetizar el debate crítico en este campo, encontramos rasgos
y cualidades que esa proposición integradora, sintética y crítica del
desarrollo no podría dejar de incluir:

La legitimidad de una noción universal de desarrollo, ya no como progreso


lineal, homogenizante, sino en un sentido ético-utópico, de proyecto de
humanidad solidaria, donde lo más genuinamente universal es la diversidad
como riqueza, (vs. la diversidad como rémora), la capacidad
autotransformativa, de generación de desarrollo, que tienen todos los actores
sociales. El carácter de proceso del desarrollo, más que el énfasis en el
resultado final, desarrollo como formas de relacionamiento cotidiano, fundado
en participación, en solidaridad, en relaciones simétricas. De no-explotación
ni enajenantes, y donde la participación y la autotransformación son,
simultáneamente instrumentos y productos del desarrollo. La condición del
desarrollo como proceso de despliegue creciente de las potencialidades de
autocrecimiento individuales y colectivas, participar y autotransformarse,
lograr un aprendizaje.

La sustentabilidad como cualidad intrínseca del desarrollo, vista en la


relación sociedad-naturaleza y en el uso de todas las riquezas, naturales,
culturales, humanas, históricas tecnológicas y de todo tipo y sobre todo,
sustentabilidad como posibilidad de continuidad autopropulsada,
autoregenerativa, impulsada por los agentes intervinientes en el proceso de
cambio, como un compromiso de solidaridad con la naturaleza, la cultura, las
generaciones que conviven en un espacio presente y en el futuro.

La centralidad de los actores sociales, individuales y colectivos, entendidos


como sujetos con capacidad de reflexividad, de generar un conocimiento
sobre ellos mismos, sobre los otros y su entorno y, sobre esta base, de
diseñar y poner en práctica acciones de cambio.

La simetría de la reflexividad. Todos los actores están dotados de esa


capacidad o potencialidad, el desarrollo es también la creación de

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condiciones para el despliegue de esa cualidad de actor y de agente de
cambio.

En esta última dirección, el desarrollo como proceso de configuración, de


construcción n de actores sociales, como construcción de grupos con
conciencia de metas comunes y de posibilidades de reestructurarlas, de
negociarlas con otros actores y de llevarlas a la práctica, en oposición a una
visión naturalista-determinista y estructurista de los sujetos sociales.

El carácter participativo del desarrollo, en tanto construcción colectiva de


relaciones horizontales, tanto en al matriz productiva como en la distributiva,
que debería excluir la posibilidad de intervención de un poder enajenante y
de manipulaciones externas, enfatizando las cualidades de autoorganización
de los actores de la escala de que se trate.

El desarrollo como proceso contradictorio, de tensión entre tendencias de


avance y retroceso, entre la tradición y la innovación, y conflictual, por la
interacción de actores con intereses y necesidades diferentes, e incluso
opuestas.

La dimensión cultural del desarrollo en su doble condición de conservación


de la tradición y de generación de posibilidades de innovación, de encontrar
acciones originales, no inscritas en los repertorios tradicionales de acción de
los actores, ni contenidas en la historia o las constricciones estructurales
actuantes en circunstancias concretas.

El siguiente concepto es una expresión de lo anterior:

“Consecuentemente, el desarrollo humano es el proceso consciente, libre y


participativo de transformación de relaciones de las personas entre sí y de
ellas con su entorno físico (natural y producido por los humanos) que trata
de conseguir para todos el acceso legítimo y efectivo al uso y la producción
de los bienes materiales, sociales, culturales y ambientales como las
condiciones que llevan al pleno despliegue de las potencialidades de cada

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persona. Este proceso, por su forma, su contenido y su sentido, tiene que
garantizar la viabilidad para esta generación y las generaciones futuras”
(Trputec 2002).

Cuarta interrogante: ¿Qué posibilidades reales de generación de condiciones


para el desarrollo tienen los programas y proyectos de enfrentamiento a la
pobreza ubicados en la escala local, hiperfocalizados y descentralizados?

Una parte considerable de los esfuerzos para eliminar la pobreza, se ubican


en la escala local comunitaria.Esta es una tendencia lógica, que se asocia a
los fuertes procesos de reterritorialización que han acompañado a la
globalización neoliberal, la que , por su marcada selectividad, ha generado
impactos de exclusión e inclusión económica territorial, remarcando el vínculo
entre el espacio y las desigualdades socioeconómicas, haciendo emerger lo
local como escenartio de transformaciones globales, ya sea por conexión con
la economía mundializada o por su total exclusión de ella.Todo esto se
produce en circunstancias en que el Estado se achica y se retrae de sus
tareas como agente principál del desarrollo. El espacio local excluído se
configura como el ámbito ideal para impulsar acciones de lucha contra la
pobreza.

Pero lo que sucede con frecuencia mayor a la deseada es que lo local


excluido es tomado como menor, que solo puede destinarse a una economía
de pobreza, que permita subsistir con dignidad y con apego a las tradiciones
y formas culturales de relacionamiento comunitario, pero sin romper las
condiciones de economía subalterna.

Este es probablemente uno de los retos mas complejos para las estrategias
de lucha contra la pobreza, porque las maneras en que se ha estructurado la
conexión espacial de la econonía globalizada neoliberal amplifican la
naturaleza explotadora y desigualitaria de las relaciones capitalistas y
generan inevitablemente excluidos que solo podrían insertarse con un golpe
de suerte que los convierta en poseedores de venatjas comparativas y

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competitivas explotables por las grandes transnacionales, golpe de suerte
que no alcanza para todos y es también excluyente.

Todo ello reforzado, además, al desdibujarse el pais, el espacio nacional y su


Estado, como las dimensiones apropiadas para el diseños de políticas de
desarrollo, sin que surja otro espacio y otro sujeto integrador.

Pero no por ello puede pasarse por alto la necesidad de que estas
estrategias aspiren a impulsar un entrelazamiento sinérgico entre la escala
micro local del desarrollo, la economía comunitaria, y otras de mayor
generalidad, regional, nacional, extranacional, global, consecuentemente, la
exigencia de construir actores en todos esos niveles, incluyendo a la
sociedad civil y de comprensión de lo local como ámbito legítimo del
desarrollo, no como el reducto para la economía solidaria de los pobres y
opción menor de los excluidos, sino como espacio de alternativas
proveedoras de inserción social, de acceso al bienestar.

Estas cuatro interrogantes no agotan, ni lejanamente, toda la


problematización crítica que el pensamiento social produce hoy día en lo que
concierne a la relación pobreza-desarrollo, pero señalan cuatro direcciones
relevantes de este análisis que de alguna manera guiarán, como meta
interrogantes, el examen del caso cubano que esta investigación ha
emprendido, intentando ubicar el problema concreto que nos hemos
propuesto analizar, la relación estado-mercado en la distribución y su
relación con las formas de enfrentamiento a la pobreza en diferentes
momentos de la experiencia socialista cubana.

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