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A relação turismo e literatura:

um processo de construção dos espaços turísticos brasileiros

Patrícia Fabiane Amaral da Cunha*

RESUMO
Este trabalho tem o intuito de discutir o papel exercido pelo discurso literário na construção dos
espaços turísticos brasileiros. Considerando a literatura como um processo de construção ide-
ológica e cultural, procurar-se-á demonstrar como o discurso literário – em especial, a Carta do
Descobrimento, de autoria de Pero Vaz de Caminha – seria atuante na constituição e na perpetu-
ação das imagens que têm caracterizado os espaços turísticos brasileiros ao longo do tempo.
Palavras-chave: Espaços turísticos; literatura; identidade cultural; mercado turístico.

1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo ava- cobrimento, de Pero Vaz de Caminha, buscando
liar em que medida o discurso literário estaria delimitá-la como sendo o discurso fundador para
vinculado à imagem turística que caracteriza o a constituição da identidade brasileira e, conse-
Brasil tanto nacional como internacionalmente. qüentemente, para a própria imagem associada
Nesse sentido, estaremos buscando desvelar ao Brasil e à sua nação no decurso do tempo.
como a literatura e, em especial, a Carta do Des- Para que possamos realmente avaliar como o
cobrimento, de autoria de Pero Vaz de Caminha, discurso literário pode atuar para a construção da
seriam atuantes na construção da imagem que, imagem que caracteriza um país, devemos con-
ao longo do tempo, vem sendo atribuída ao Brasil siderar a íntima e inquestionável relação que há
no mercado do Turismo. entre o discurso literário e o discurso histórico e
O mercado turístico, como qualquer outro entre os literatos e os historiadores, já que tanto
mercado, visa a atribuir ao produto comercializa- a literatura como a história estariam em busca
do uma imagem que seja atrativa e que venha a de uma imagem verbal da realidade:
satisfazer os anseios dos consumidores. No caso Mas o principal objetivo do escritor de um
do Turismo, a importância da imagem adquire romance deve ser igual ao do escritor de
uma dimensão ainda mais significativa, uma vez uma história. Ambos desejam sustentar uma
imagem verbal de realidade (WHITE apud
que os consumidores não têm condições de
LEPECKI, 1984)
avaliar fisicamente o produto no momento exato
da compra. O fator propulsor para a compra de Considerando que o discurso literário, assim
produtos turísticos por parte dos consumidores como o discurso histórico, seria indubitavelmen-
seria, então, a imagem que lhes é apresentada e te relevante para que possamos compreender
oferecida. Vale ressaltar que a imagem formulada como a imagem e a identidade brasileiras têm
em torno de um determinado produto turístico sido construídas, analisaremos a Carta do Desco-
não se constrói de maneira aleatória ou fortuita. brimento, que constitui a primeira manifestação
Na verdade, ela se configura como resultado da documental e literária do Brasil, com o intuito de
atuação dos meios de comunicação bem como discutir como a primeira imagem que foi associa-
dos discursos histórico e literário. da ao Brasil a partir da chegada dos portugueses
ainda permanece no imaginário coletivo e exerce
Dentro dessa perspectiva, tentaremos cir-
um importante papel no mercado do Turismo.
cunscrever o papel exercido pela Carta do Des-
De acordo com SÁ (2002, p. 109-121), cinco

* Professora da Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora. Mestre em Letras/Lingüística pela UFJF. Doutoranda
em Estudos Lingüísticos pela UFMG.

imagens turísticas seriam preponderantemente turístico exterior, é apresentado como uma
relacionadas ao Brasil: terra de indubitável grandiosidade e exube-
rância. Como teremos a oportunidade de
a o Brasil do brasileiro: ao Brasil estaria re-
observar, a Carta de Pero Vaz de Caminha,
lacionada a idéia de que o povo brasileiro
que integra a literatura informativa produzida
seria um povo especial, caracterizado por
nos primórdios da colonização do Brasil,
um comportamento hospitaleiro, cordial e
seria a gênese dessa visão paradisíaca do
livre de preconceitos.
Brasil que está arraigada tanto ao imaginário
b o lugar da libertinagem: o Brasil seria o lugar nacional como, primordialmente, ao imagi-
da beleza, da sensualidade e, por associa- nário estrangeiro.
ção, da libertinagem.
Para que possamos verificar como a Carta do
c o país do Carnaval: o Brasil seria reconhecido Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha, seria
mundialmente pelo epíteto “o país do Car- a gênese de uma visão paradisíaca em torno
naval”. No imaginário internacional, o Brasil do Brasil, faremos uma incursão pelo momento
seria visto como o país das grandes festas e histórico-ideológico em que esse texto foi com-
das grandes manifestações populares. posto. Produzida durante o período das Grandes
d o lugar do exótico e do místico: ao Brasil Navegações, a Carta do Descobrimento possui
seriam associadas também as idéias de um inequívoco valor documental e histórico e
misticismo e religiosidade devido, principal- se apresenta como um reflexo direto da política
mente, à presença de uma vasta heteroge- expansionista desenvolvida por Portugal, já que
neidade racial. ela reflete os interesses que norteavam os portu-
gueses e, de modo geral, os europeus a empre-
e o Brasil Paraíso: imagem fortemente vincula- enderem viagens marítimas com o objetivo de
da ao Brasil desde a época do descobrimen- propagar a fé cristã e, principalmente, de auferir
to. O Brasil, principalmente para o mercado conquistas territoriais e materiais.


2 A produção da Carta do Descobrimento: um reflexo da política ex-
pansionista européia

Entre os séculos XIV e XVI, a Europa Ocidental Antigüidade Clássica, o Renascimento primou
se encontrou diante de um conjunto de mudan- pela valorização da arte pagã, o que pode ser
ças que atingiram as camadas urbanas após o comprovado a partir da constante menção de
período de estagnação que caracterizou a Idade figuras mitológicas em obras compostas durante
Média. Durante esse período, a Europa assistiu esse momento.
a uma reativação do progresso e vivenciou um O Brasil, como estava ainda passando por
intenso processo de descobertas e de inven- um processo de descoberta, não vivenciou
ções. A grande característica desse momento diretamente o Renascimento. Na verdade, as
foram as Grandes Navegações, já que as nações manifestações literárias ocorridas no Brasil que
buscavam superar os entraves medievais que correspondem à introdução da cultura européia
impediam o desenvolvimento da economia mer- em terras brasileiras, durante o século XVI, re-
cantil por meio dos empreendimentos marítimos. cebem a denominação de Quinhentismo. Vale
Através das Grandes Navegações, o mundo teve ressaltar que, nesse momento, não podemos
a possibilidade de ser interligado pela primeira falar em uma literatura do Brasil – aquela que
vez na história. reflete a visão do homem brasileiro –, mas sim
A partir da expansão ultramarina, a Europa em uma literatura no Brasil, ou seja, uma lite-
buscava estabelecer novas rotas de comércio e ratura relacionada ao Brasil, mas que reflete a
empreender conquistas territoriais e materiais. visão, as ambições e as intenções do homem
Seguindo essa política expansionista, Portugal foi europeu. Destarte, espelhando diretamente o
o primeiro país europeu a se lançar às Grandes momento histórico vivenciado pela Península
Navegações devido, principalmente, à insufici- Ibérica, o Quinhentismo compreendeu uma lite-
ência de metais preciosos para a cunhagem de ratura informativa, na qual se insere a Carta do
moedas, à falta de produtos agrícolas e de mão- Descobrimento, e uma literatura jesuítica.
de-obra, ao interesse de expandir a fé cristã e A literatura informativa é composta por textos
à necessidade de novos mercados. Além disso, escritos por viajantes europeus que procuravam
Portugal, já no século XV, praticava intensamente desvelar para o mundo as particularidades en-
a navegação em decorrência de suas atividades contradas no Novo Mundo. As crônicas realiza-
pesqueiras, o que teria levado os lusitanos a se das pelos viajantes eram extensamente lidas e
dedicarem, desde muito cedo, ao desenvolvi- difundidas na Europa, visto que permitiam aos
mento de estudos náuticos. europeus obter informações sobre as novas des-
Com o renascimento comercial e urbano, a cobertas territoriais empreendidas. O objetivo
cultura européia sofreu igualmente alterações. principal dos textos informativos era, portanto,
As transformações culturais que representa- fazer um levantamento da “nova terra”, descre-
vam os valores da burguesia – classe social vendo minuciosamente para o Velho Mundo sua
em ascensão durante esse período – e que se fauna, sua flora e sua gente, já que foi notável
manifestaram na literatura, nas artes plásticas, o impacto que a descoberta das Américas cau-
na ciência e na filosofia são reconhecidas pelo sou no imaginário europeu dos séculos XV e
termo Renascimento Cultural. XVI. A passagem a seguir expressa o fascínio
O Renascimento Cultural se caracterizou pela de Américo Vespúcio diante do Novo Mundo
recuperação dos valores e modelos da Antigüi- encontrado:
dade Clássica e pelo advento de uma concepção Dias passados bastante amplamente te escrevi
antropocêntrica do mundo, que, ao considerar da minha volta daqueles novos países, os quais
o homem como a medida para tudo, se opôs à com a armada e com as despesas e mandado
deste sereníssimo rei de Portugal procuramos
concepção teocêntrica medievalista.
e descobrimos; os quais Novo Mundo chamar
Ao promover a retomada do pensamento da é lícito, porque entre os antepassados nossos


de nenhum deles teve conhecimento, e a Além dos textos informativos, houve também
todos aqueles que isso ouvirem será novíssi- no Brasil a produção de textos jesuíticos. Os
ma coisa, visto que isto a opinião de nossos jesuítas, norteados pelos princípios da Contra-
antepassados excede, uma vez que a maior
parte diz que além da linha equinocial para Reforma e pela necessidade de expandir o cato-
o meio-dia não há continente, só o mar, o licismo pelos domínios europeus, se dedicaram
qual chamaram Atlântico. (VESPÚCIO trad. à catequização dos indígenas e à elaboração de
de 1984, p. 89) hinos, autos e cartas que prestavam contas a
respeito do processo de catequese no Brasil.


3 O valor histórico e documental do texto de Pero Vaz de Caminha

Parte integrante de uma literatura informativa, zem o menor caso de encobrir ou de mostrar
a Carta do Descobrimento se configura como o suas vergonhas e nisso têm tanta inocência
primeiro documento de que dispomos acerca como em mostrar o rosto. (CORTESÃO, 1967,
do espaço brasileiro e de seus habitantes. Por p. 226)
meio do relato de Pero Vaz de Caminha, os por- Falava, enquanto o Capitão esteve com ele,
tugueses e, por extensão, os europeus tiveram perante nós todos, sem nunca ninguém o
o primeiro contato com a nova terra encontrada entender, nem ele a nós quantas coisas lhe
pela frota de Pedro Álvarez Cabral. O texto de demandávamos acerca douro, que nós dese-
Caminha assume um papel ainda mais relevante jávamos saber se na terra havia. (CORTESÃO,
quando o consideramos como sendo o discurso 1967, p. 239)
fundador para a construção da própria identidade Embora a Carta do Descobrimento não possa
brasileira, já que a visão que caracterizou pela ser considerada uma produção da literatura bra-
primeira vez a “nova terra” permanece fortemen- sileira – já que o texto de Caminha reflete a visão
te arraigada à imagem que o mundo tem acerca que os portugueses apresentavam em relação à
do Brasil. terra encontrada –, ela evidencia, além de um va-
Na expedição comandada por Pedro Álvares lor histórico, um valor também literário. Caminha,
Cabral, Pero Vaz de Caminha assumia a posição ao relatar para o rei o que foi encontrado pela
de escritor-escrivão. Caminha não se limitou a esquadra de Cabral, não se restringe a uma des-
registrar e contabilizar os fatos da viagem, já que crição fria e meramente burocrática dos fatos (Cf.
ele vai além de um registro frio e burocrático dos RONCARI, 1995, p. 24). Em verdade, Caminha
fatos. Na verdade, ao fornecer dados de natureza atribui a seu texto um caráter eminentemente
quantitativa bastantes precisos, Caminha busca visual, permitindo que nós, os leitores, tentemos
ser preciso e minucioso a fim de representar para imaginar aquela terra e aqueles homens que são
a Europa as dimensões da “nova terra”: descritos a partir de cores variadas e de formas
Dali avistamos homens que andavam pela bastante acentuadas:
praia, obra de sete ou oito, segundo disseram Outros [homens] traziam carapuças de penas
os navios pequenos por chegarem primeiro. amarelas; outros, de vermelhas; e outros,
(CORTESÃO, 1967, p. 223) de verdes. E uma daquelas moças era toda
tingida, de baixo a cima, daquela tintura; e
Ali acudiram logo obra de duzentos homens,
certo era tão bem feita e tão redonda e sua
todos nus, e com arcos e setas nas mãos”
vergonha que ela tinha tão graciosa, que a
(CORTESÃO, 1967, p. 229)
tantas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais
Como documento de valor histórico, a Carta feições, fizera vergonha, por não terem a sua
do Descobrimento disponibiliza numerosas in- como ela. (CORTESÃO, 1967, p. 232)
formações acerca dos hábitos e dos costumes
Além disso, não podemos nos esquecer de
dos indígenas, permitindo que conheçamos a
que a temática desenvolvida na carta – os in-
reação que os portugueses tiveram diante de
dígenas e a exuberância da natureza brasileira
uma cultura tão diferente. Além disso, o texto
– foi amplamente retomada pela posteridade, o
produzido por Caminha deve ser considerado
que vem, inclusive, a corroborar o valor literário
historicamente por revelar, também, os valores
do texto de Caminha. Outro fator que atribui um
que norteavam os portugueses em sua busca
valor literário à Carta do Descobrimento seria a
por novos territórios e pela conseqüente ex-
interlocução estabelecida por Pero Vaz de Cami-
pansão de seu Império. As passagens abaixo
nha durante seu texto. Seguindo a sua função
nos permitem, respectivamente, ter acesso aos
de escritor-escrivão, Caminha dirige a carta a um
hábitos apresentados pelos índios e corroborar
leitor bem definido: o rei português D. Manuel.
os anseios expansionistas portugueses:
Embora Caminha se porte como um servidor
Andam nus, sem cobertura alguma. Não fa- de uma empresa real e assuma um tratamento

respeitoso em relação ao rei, predispondo-se cabeleiras que, de as muito bem olharmos,
a fornecer-lhe informações bastante precisas não tínhamos vergonha nenhuma. (CORTE-
sobre a “nova terra”, na maior parte do texto, SÃO, 1967, p. 231)
perdemos de vista o rei, que é o interlocutor Caminha, ao produzir a Carta do Descobri-
declarado. Na verdade, diante da exuberância mento, foi o responsável por construir a primei-
do novo, Caminha se desprende de seu papel ra imagem acerca da magnificência brasileira.
de mero cronista do rei para se dirigir a um leitor Doravante, buscaremos comprovar que a visão
mais geral. O que podemos observar, nesse sen- paradisíaca que se encontra arraigada ao Brasil
tido, é o caráter impressionista das descrições encontra sua gênese no texto de Caminha. O
de Caminha, já que ele mesmo se deslumbra deslumbramento com o qual os portugueses
com o objeto de sua narrativa: viram o Brasil pela primeira vez teria permaneci-
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, do, no decurso do tempo, como uma base para
bem moças e bem gentis, com cabelos muito a projeção da nação brasileira e de seu povo para
pretos e compridos pelas espáduas, e suas todo o mundo.
vergonhas tão cerradinhas e tão limpas das


4 Caminha e a expressão do contraste de valores entre os “bons sel-
vagens” e os portugueses
Por meio da Carta de Caminha, podemos de impor a visão de mundo européia para os
perceber, de forma bastante clara, os valores indígenas, Caminha se mostra interessado em
éticos e materiais que orientavam o interesse identificar alguma relação de poder entre os
português. Enquanto os portugueses demons- índios. Ele, ao procurar perceber elementos de
travam um nítido interesse pelo ouro que haveria sua cultura entre os indígenas, chega, inclusive,
na nova terra descoberta, os índios encaravam a acreditar que um dos índios que ele observava
os portugueses simplesmente como homens exercia alguma relação de poder em relação aos
diferentes com os quais eles almejavam trocar demais. As passagens abaixo confirmam esse
objetos: notável confronto entre a visão portuguesa e a
Davam-nos daqueles arcos e setas por som- visão indígena:
breiros e carapuças de linho ou por qualquer O Capitão, quando eles vieram, estava sentado
coisa que homem lhes queria dar. (CORTESÃO, em uma cadeira, bem vestido, com um colar
1967, p. 230) de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés
Uma prática muito comum utilizada pelos uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar,
europeus era mostrar às populações das novas Simão Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia,
terras diversos objetos para ver se elas os co- e nós outros que aqui na nau com ele vamos,
nheciam. No caso do Brasil, observamos que sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se
os portugueses realmente demonstravam um as tochas. Entraram [os dois indígenas]. Mas
grande interesse na descoberta de ouro, visto não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao
que eles, de acordo com o texto de Caminha, Capitão nem a ninguém. (CORTESÃO, 1967,
mostravam aos índios objetos de ouro para p. 227)
ver se eles poderiam identificar aquele tipo de Andava aí um que falava muito aos outros que
material: se afastassem, mas não que a mim me pare-
Porém um deles pôs o olho no colar do Capitão cesse que lhe tinham acatamento ou medo.
e começou de acenar com a mão para a terra (CORTESÃO, 1967, p. 235)
e depois para o colar, como que nos dizendo Segundo RONCARI (1995, p. 46), Pero Vaz
que ali havia ouro. (...) Mostraram-lhes um de Caminha, com o objetivo não declarado de
carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes “amansar” os indígenas e de empreender seus
uma galinha: quase tiveram medo dela; não propósitos colonizadores e expansionistas,
lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram assume que os indígenas, por serem seres
como que espantados. (CORTESÃO, 1967, p. inocentes, poderiam facilmente incorporar a fé
227) cristã. Caminha chega, inclusive, a exortar o rei
De acordo com SANTIAGO (1987), a colo- a difundir o catolicismo ente os índios:
nização pela propagação da fé e do Império Segundo a intenção de Vossa Alteza, se hão
seria a negação dos valores do outro, ou seja, de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à
os europeus, ao buscarem conquistar novos qual praza Nosso Senhor que os traga, porque,
territórios, estariam eminentemente preocupa- certo, esta gente é boa e de boa simplicidade.
dos em ver sua imagem repetida e reafirmada E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer
por todo o mundo. A partir dessa perspectiva, cunho, que lhes quiserem dar. (CORTESÃO,
podemos observar, na Carta do Descobrimento, 1967, p. 250)
um confronto entre a visão européia e a visão
indígena. Durante seu texto, Caminha deixaria A Carta do Descobrimento realmente fornece
transparecer o sistema hierárquico europeu com evidências a respeito dos interesses expansionis-
base nas relações de poder da própria expedição tas de Portugal. Cremos que as considerações
da qual faz parte. Além disso, com o objetivo acerca do contraste de valores entre os portu-


gueses e os indígenas vêm reafirmar a importân- apresenta para o mundo, não podemos nos
cia desse texto para a construção da identidade furtar à necessidade de considerar o texto de
do Brasil. Em sua carta dirigida ao rei português, Caminha como sendo o discurso fundador para
Pero Vaz de Caminha foi capaz de representar a própria concepção de nosso país. A seguir, nos
com bastante expressividade as impressões e deteremos na importância da Carta de Caminha
os interesses que foram despertados a partir para a construção da imagem paradisíaca que,
do contato com a “nova terra”. Nesse sentido, ao longo do tempo, tem atuado para caracterizar
se quisermos compreender a visão que o Brasil o Brasil no mercado turístico.


5 A Carta de Caminha: a gênese da visão paradisíaca em torno do
Brasil
Durante o século XVI, a Igreja teria passado inferno-paraíso, contribuindo para construção do
pela maior crise de sua história. A indisciplina e a imaginário da época.
leviandade de muitos membros do clero haviam A visão paradisíaca em relação às novas con-
gerado um sentimento de descrença e de repulsa quistas européias seria representada por meio de
entre os fiéis. Além disso, a Igreja Católica se uma descrição exuberante da natureza. Por sua
apresentava como um entrave para as ativida- vez, o Novo Mundo seria associado à imagem
des da burguesia, já que o comércio, o lucro e a do inferno com base na descrição de criaturas
usura eram veementemente condenados. Diante monstruosas, de cenas de canibalismo e de ri-
dessas condições, ocorreu o estabelecimento tuais antropofágicos. BELLUZZO (1996 apud SÁ,
da Reforma Protestante, que foi o movimento 2002, p. 82) afirma que as primeiras imagens da
responsável por questionar a conduta da Igreja América, que circularam no século XVI, seriam
e por levar à formação do protestantismo. inquietantes e destacariam a presença de hábitos
Em decorrência de seu enfraquecimento e canibais, o que enquadraria o Novo Mundo como
da perda de um grande contingente de fiéis e o lugar do desconhecido.
de boa parte de seus bens, a Igreja Católica Na Carta do Descobrimento, ao apresentar a
deu início a um movimento de Contra-Reforma terra encontrada para o Velho Mundo, Caminha
com o objetivo de reagir à expansão das seitas opta por uma descrição edênica e, diante da exu-
protestantes. Como medidas que visavam à berância com a qual se defronta, ele se propõe a
recuperação de seu prestígio e de seu poder, a anunciar para toda a Europa a existência de um
Igreja tomou um conjunto de medidas, como, paraíso terrestre (Cf. RONCARI, 1995, p. 43). A
por exemplo, reafirmar seus dogmas, depurar a imagem que Pero Vaz de Caminha e, conseqüen-
doutrina, proibir a venda de indulgências, fundar temente, todo o mundo teve acerca do Brasil no
seminários para educar os padres católicos e momento de seu descobrimento teria vindo ao
estabelecer a Companhia de Jesus, cujo intuito encontro dos objetivos expansionistas europeus
seria atuar no ensino das elites européias e na e dos interesses da Igreja Católica. Caminha,
catequese dos indígenas das colônias. sendo o escrivão-mor da frota comandada por
Destarte, observamos que o século XVI assis- Pedro Álvarez Cabral, precisava justificar para o
tiu tanto à retomada do paganismo da Antigüi- rei e para Portugal, de modo geral, a empresa
dade Clássica como à necessidade da Igreja em marítima da qual ele fazia parte. Ao descobrir um
expandir a fé cristã. Nesse sentido, os interesses lugar marcado com uma natureza exuberante e
da Igreja e das monarquias convergiram, uma habitado por seres considerados dóceis e pací-
vez que a difusão da fé cristã entre os povos ficos, o discurso de Caminha estaria lançando
das colônias conquistadas era considerada um as bases para a exploração portuguesa e, pa-
meio de pacificação. A Carta do Descobrimento ralelamente, para a concretização do anseio da
se configura, nesse sentido, como um exemplo Igreja Católica de propagar pelos novos domínios
concreto da necessidade de se expandir a fé cris- territoriais a fé cristã.
tã como um instrumento para o próprio processo A opção por descrever o Brasil a partir da
de expansão do domínios de Portugal. metáfora do paraíso teria, portanto, trazido para
De acordo com SÁ (2002, p. 80), a literatura Portugal uma possibilidade real de expandir sua
composta nessa época estaria fundamentalmen- fé e seu território. Todos os elementos encontra-
te relacionada ao discurso da Igreja, refletindo dos no Brasil foram percebidos de acordo com as
o dualismo inferno-paraíso. Toda a classificação necessidades vivenciadas por Portugal naquela
que a Europa fez em relação a seus novos do- época, refletindo apenas o que os portugueses
mínios ter-se-ia realizado a partir dessa perspec- realmente pretendiam enxergar. Um exemplo
tiva. A descrição dos povos, das plantas e dos bastante concreto seria a própria descrição que
animais encontrados teriam seguido o binômio Caminha faz dos indígenas: os portugueses,

ao travarem contatos com os índios, não valori- Descobrimento, temos o seguinte:
zam, por exemplo, a sua cultura, a sua visão de Passou-se então além do rio Diogo Dias, al-
mundo e as suas possíveis crenças. Na verdade, moxarife que foi de Sacavém, que é homem
Caminha procura descrever o elemento indígena gracioso e de prazer; e levou consigo um
como um elemento tão exótico como a própria gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com
eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles
natureza encontrada, buscando afirmar, durante
folgavam e riam, e andavam com ele muito
todo o texto, sua índole pacífica e sua propensão bem ao som da gaita. (CORTESÃO, 1967, p.
para adotar a fé católica. 240)
Os índios são caracterizados como “bons-sel- A natureza também assume um papel pre-
vagens”, ou seja, como seres inocentes, puros e ponderante para a construção do Brasil-Paraíso.
livres do pecado original, o que atende perfeita- Caminha, ao descrever a “nova terra” para o rei,
mente à visão do paraíso que é defendida pelos identifica a existência de um paraíso terrestre
preceitos do Catolicismo. Além disso, Caminha com base na exuberância da fauna e da flora e no
procura reafirmar que a inocência dos indígenas aspecto fértil e exuberante da terra encontrada.
seria uma comprovação de que, na nova terra, a Os portugueses se mostram surpresos diante
harmonia entre o homem e o mundo ainda não de cada elemento natural que conseguem iden-
teria sido perdida: tificar. Desse modo, os camarões encontrados
Andam nus, sem cobertura alguma. Não fa- no Brasil são considerados os maiores, a terra é
zem o menor caso de encobrir ou de mostrar encarada como extremamente fértil e as águas
suas vergonhas; e nisso tem tanta inocência
são vistas como muito abundantes:
como em mostrar o rosto. (CORTESÃO, 1967,
p. 226) Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar
marisco e apenas acharam alguns camarões
Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal grossos e curtos, entre os quais vinha um tão
que a Adão não seria maior. (CORTESÃO, grande e tão grosso, como em nenhum tempo
1967, p. 255) vi tamanho. (CORTESÃO, p. 236)
Com o intuito de associar à terra encontrada E que lhes davam de comer daquela vian-
uma visão paradisíaca, Caminha atribui aos índios da, que eles tinham, a saber, muito inhame
um comportamento alegre e festivo. Diante dos e outras sementes, que na terra há e eles
portugueses, os índios se comportariam de manei- comem.(CORTESÃO, 1967, p. 245)
ra totalmente pacífica, mostrando-se predispostos Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, gran-
a manter uma relação mais estreita. Novamente, des barreiras, delas vermelhas, delas brancas;
o discurso da Carta do Descobrimento seria a e a terra por cima toda chã e muito cheia de
gênese da imagem que, ainda hoje, caracteriza grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo
praia-palma, muito chã e muito formosa. (...)
o Brasil perante o mundo. A imagem turística de Águas são muitas; infinitas. E em tal maneira
um Brasil alegre, cujo povo é cordial e hospitaleiro, é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-
remontaria, portanto, ao discurso fundador da carta se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
de Pero Vaz de Caminha. Nos termos da Carta do (CORTESÃO, 1967, p. 256)

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6 Conclusão
Embora a relação entre o mercado do Turis- Desconsiderar a literatura para uma compre-
mo e o discurso literário não tenha sido ainda ensão sócio-histórica do Brasil seria, a nosso
muito estudada, acreditamos que a literatura, ver, um grande equívoco. A utilização da Carta
sendo um processo de construção ideológica do Descobrimento para discutirmos a imagem
e cultural, pode fornecer subsídios para que do Brasil no Turismo nos leva a crer que a lite-
possamos discutir e analisar as imagens que ratura, assim como a história e a sociologia,
vêm sendo atribuídas aos espaços turísticos no deve ser considerada como um importante e
decurso do tempo. interessante instrumento que devemos utilizar
Ao determo-nos na Carta do Descobrimen- quando pretendemos ter acesso ao processo de
to, temos a oportunidade de confirmar que a construção de nossa imagem e de nossa iden-
imagem que mais fortemente é relacionada ao tidade perante todo o mundo. Destarte, o Brasil
Brasil no exterior seria a mesma que caracterizou continua a ser tratado como a terra em que “se
o Brasil em seus primórdios. O discurso que querendo aproveitar, nela dar-se-á tudo” (CORTE-
caracteriza, para o mundo, o Brasil de hoje seria, SÃO, 1967, p. 256), isto é, o Brasil de Caminha e
indubitavelmente, o discurso empreendido por dos portugueses do século XVI permanece ainda
Caminha no século XVI. fortemente arraigado à imagem paradisíaca que
o próprio país tem de si mesmo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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