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Capa e Ilustração/Edição Fotográfica/diagramação e Layout:
Renata Silva e Vivian Souza
Entrevista com os prficionais responsáveis pela intervenção:
Vivian Souza
Entrevista com os pacientes da casa de Saúde Anchieta:
Carolina Robortella
Pesquisa:
Renata Silva
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
Agradecimentos
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confiança e a paciência deles: nossos pais e parentes.
À Osvaldo, Suzana, Mariana, Oswaldo e Jenny, família da
Carolina; Gercio, Albertina, Cristina, Alynne e Isabella, família
da Renata; Carlos, Tânia, Manuela e Vitor, família da Vivian,
e a todos os nossos demais familiares, agradecemos todo o
esforço feito para que nós chegássemos até aqui. Difícil
descrever o quanto vocês nos ajudaram, e o tamanho da
gratidão que sentimos... São imensuráveis.
Não poderíamos deixar de agradecer aos nossos amigos e
namorados, que nos entenderam nos momentos de
preocupação, e nas horas de estresse, muitas vezes nos
dando palavras de apoio e tranqüilidade em momentos
extremamente importantes.
Agradecemos também a todos os professores do curso de
Jornalismo da Unimonte, e aos nossos colegas de sala, que
passaram por este momento conosco nos apoiando com a
troca de experiências.
E por fim, porém mais importante, a Deus, que nos
possibilitou a vida, nos privilegiando com as nossas familias,
e essas pessoas à nossa volta, fazendo com que nossa
existência fizesse sentido.
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
Sumário
Prólogo ..................................................................... 11
Capítulo 1 - O início da nossa história ......................... 19
Capítulo 2 - A influência da arte .................................. 35
Capítulo 3 - Os NAPS ................................................. 51
Capítulo 4 - Os Pacientes ........................................... 67
Capítulo 5 - Luta antimanicomial ............................... 101
Capítulo 6 - A fábula ................................................ 105
Cronograma ............................................................ 109
Arquivo Fotográfico .................................................. 113
Bibliografia ............................................................. 122
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Prólogo
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internações intermináveis, nos atos desumanos sofridos e praticados, en-
fim, na vida vazia e intrínseca de alguém cuja mente obscurece o corpo e a
alma que anima uma matéria incompreensível. São depoimentos de ex-
pacientes da Casa de Saúde Anchieta, propriedade privada que começou a
funcionar em 1951.
Os internos estereotipados como “loucos” eram torturados, marginaliza-
dos e esquecidos desde aquela época. A sociedade os excluía de seu meio.
Era cômodo fazer de conta que essas pessoas que sofriam de algum distúr-
bio mental simplesmente não existiam. Parecia simples, fácil, deixar de lado
tantas almas inquietas, subjugadas em um mundo cujo corpo material, bem
maior do ser humano, não fizesse a menor diferença no mundo em que nós,
“seres perfeitos”, vivemos no esplendor mental.
A história da Casa de Saúde Anchieta começou a ser notória em 1989,
quando aconteceu sua intervenção pela Prefeitura de Santos. A princípio,
a realidade de maus-tratos, conhecida apenas na região, não demorou a
ser fato discutido em nível nacional, chegando ao ápice de divulgação
quando se tornou assunto de interesse mundial.
Conhecido como “Casa dos Horrores”, o local exibia um quadro de
superlotação, medicação sem controle, falta de atendimento clínico ade-
quado aos pacientes, aplicação de eletrochoques como meio de tratamen-
to e até o relacionamento pernicioso entre aqueles que deveriam aplicar a
terapia e os pacientes da instituição. Casos de abuso de poder por parte
dos médicos que deveriam tratar dos pacientes são inúmeros, assim como
brigas, descaso dos familiares e até mortes ocorridas no Anchieta. Tudo
isto você irá encontrar no decorrer deste livro.
O processo de intervenção se iniciou com uma avaliação clínica dos
doentes que se encontravam em total estado de abandono. Muitos apre-
sentavam ferimentos infeccionados e casos de desidratação, entre outros
problemas. Além disto, as instalações da instituição eram degradantes e
assustadoras. Havia cadeados nas portas que davam acesso aos pátios de
circulação interna, enfermarias trancadas, dias pré-determinados e horári-
os rígidos para as visitas, falta de chuveiros com água quente e até prisões
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tema que não é apenas complexo, mas também fascinante.
Um momento difícil foi quando fomos entrevistar os ex-pacientes do
Anchieta. Logo nos veio à cabeça: como será entrevistar doentes men-
tais? Durante os quatro anos de faculdade, aprendemos que, ao escrever
sobre algo, temos que responder às perguntas do “lead”, o primeiro pará-
grafo da matéria jornalística: que, quem, quando, onde, como e por que.
Mas... e quando não temos nenhum destes fatores? O que acontece quan-
do nossos entrevistados provavelmente não sabem falar o que passaram
no Anchieta, seja porque não se lembram ou porque sua “doença” não traz
à tona o que realmente aconteceu? O que pensar no instante em que o seu
entrevistado responde “4 mil anos” à pergunta: “há quanto tempo você
esteve em tratamento?”
Pessoas perdidas, que não sabem dizer o que pensam, não conseguem
descrever o que ocorreu com elas nos momentos tão pavorosos de suas
vidas. O que se esconde por trás daquelas vozes dopadas por remédios,
das cicatrizes de maus-tratos, das tentativas de suicídio e seus cortes
grotescos em rostos, pulsos, no corpo e na alma?
Para estes pacientes, todo o sofrimento, a falta de humanidade com
que eram tratados no passado, acaba fazendo com que eles mesmos se
achem um fardo para a mesma sociedade que os exilou. Perdem a vontade
de conseguir voltar a conviver normalmente nas ruas, em meio à coletivi-
dade, tentando levar uma vida normal. Tudo isto se agrava com a falta de
incentivo e auxílio por parte da família e até mesmo de alguns profissionais
da área de saúde. Mesmo assim, os pacientes nos deram um pouco de seu
tempo e pensamentos. Nos deram a chance de poder contar, mesmo que
apenas em fragmentos, como foi para eles aquele momento tão intenso no
Anchieta. Sabemos que não é nada fácil lembrar momentos ruins da vida e
muito mais difícil contar para alguém que mal conhecemos um momento tão
íntimo, tão sofrido, que, com certeza, não será esquecido.
Um dia aqui, outro ali, marcamos hora, conversamos com jeito, explica-
mos para os pacientes que faríamos um livro sobre a intervenção no An-
chieta. Acabamos conseguindo que estes pacientes compartilhassem
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conosco o que foi vivido entre aquelas paredes, hoje envelhecidas pelo
tempo e pelo esquecimento, mas não pelas almas que por ali vagaram em
dor, angústia, revolta e, com certeza, muito sofrimento em comum.
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CAPÍTULO 1
O início da nossa história
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casas de saúde.
O desconhecimento sobre o assunto, aliado ao sofrimento por que pas-
sam e vêem passar alguém tão próximo, levam a pessoa comum a imaginar
a internação em tais instituições como a solução ideal para recuperar a
sanidade mental daqueles a quem quer ajudar.
Por muito, muito tempo, não apenas pensamos assim, como agimos
exatamente dessa maneira. Grande engano.
Sabemos hoje, felizmente, que há outras alternativas que possibilitam a
readaptação, quando não a recuperação total do indivíduo e sua reinserção
na sociedade, sem que haja a necessidade de se trilhar os caminhos de
antigamente.
Grupos de auto-ajuda constituem hoje importante papel na recuperação
do indivíduo, auxiliando-o a entender e a buscar a lucidez, o equilíbrio
emocional, o autocontrole e, principalmente, como se manter afastado da
causa principal de seus males.
Os métodos utilizados por tais grupos são tão simples e práticos que,
a princípio, é difícil crer em sua eficácia. Entretanto, nem todos obtêm
os resultados desejados, já que vários são os fatores que impedem tais
conquistas.
Podemos, sem constrangimento, citar algumas situações que dificul-
tam ou até impedem a recuperação de pessoas, tais como a recusa
absoluta em aceitar e admitir sua doença, a idéia fixa de que é capaz de
se controlar diante daquilo que lhe causa os problemas que enfrenta,
velhos hábitos e o afastamento precoce das reuniões em grupo. Isto
torna o indivíduo, efetivamente, o ser estigmatizado que, com alguma
razão, chamamos de “louco”.
Por definição, a perda do controle emocional, ainda que temporária,
transforma o indivíduo em “louco” aos olhos da sociedade, pois, nesse
lapso de tempo, ele pode agir de forma tresloucada, tomando atitudes e
reagindo de forma desequilibrada mentalmente. Este comportamento pode
lhe causar sérias conseqüências e complicações, colocando em risco não
apenas sua segurança e integridade física, mas de todos que atravessam
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portas de acesso aos pátios. Normalmente, as enfermarias ficavam
trancadas. Existia até uma área de isolamento dos internos tidos como
perigosos, locais que pareciam prisões e que eram chamados de
“chiqueirinho”. Os pacientes eram obrigados a tomar banhos gelados,
pois faltavam chuveiros com água quente.
A instituição era chamada pela população de “Casa dos Horrores” por
vários motivos, como o caos da superlotação, o atendimento clínico precá-
rio, a utilização de eletrochoques como forma de tratamento, a falta de
controle nas medicações, entre outros graves problemas. Casos de abuso
de poder por parte dos médicos, que deveriam tratar desses pacientes,
são inúmeros, além de brigas e descaso por parte dos familiares. Era uma
verdadeira desorganização.
Com todos os problemas que começaram a fugir do controle e se
tornaram inaceitáveis, a administração municipal decidiu intervir com
o objetivo de resgatar a dignidade dos internos. Neste momento, os
pacientes passaram a receber cuidados com o objetivo de reintegrá-
los à sociedade.
A partir daí, foi formada uma comissão que contava com técnicos da
Secretaria Municipal de Saúde comandada pelo psiquiatra Roberto
Tykanori Kinoshita, representantes da OAB, entidades da sociedade
civil, a Comissão de Direitos Humanos e vários veículos de comunica-
ção da cidade. A realidade cruel do Anchieta se tornou de conheci-
mento geral.
Segundo trecho do livro Anchieta 15 anos, de Paulo Matos:
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“Por isso o sistema foi
À mais completa falência
Somando dez em fracasso
Zero em eficiência
Permitindo que nascesse
Uma nova consciência”
Manuel Monteiro
Literatura de Cordel
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O INTERVENTOR
ARQUIVO DESORGANIZADO
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O arquivo do hospital estava entulhado de envelopes empoeirados com
as fichas dos pacientes. A maioria dessas fichas não esclarecia quase
nada da história dos internos. “Algumas pessoas foram internadas várias
vezes por motivos diferentes, e, no histórico, só constava o motivo da
primeira internação”. O paciente entrava no Anchieta e era rotulado com
algum tipo de distúrbio psicológico. Sempre que voltava ao hospital, con-
tinuava sendo tratado com base no mesmo diagnóstico que havia causa-
do a primeira entrada.
Tykanori procurou mudar essa situação. “Uma das nossas maiores preo-
cupações foi a de reconstruir a identidade, a história pessoal dos pacientes”.
A DOENÇA DA INTERNAÇÃO
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“A exclusão social,
A falta de meio antigo
A imposição das regras
Por quem não parece amigo
Eom vez de curar aumentam
As dimensões do castigo”
Manuel Monteiro
Literatura de Cordel
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EM SITUAÇÕES DIFÍCEIS, A MELHOR ATITUDE:
ESCUTAR E APRENDER
O COMEÇO
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As pessoas tinham pavor do Ercílio, porque se lembravam dele
em crise indo para o Anchieta. Nesta época, o Renato (Di Renzo)
começou a trabalhar teatro com o Ercílio que, por sua vez,
começou a se sentir com o poder, se sentia artista.
Um belo dia, o Renato nos convidou para ir à casa do Ercílio
novamente. Domingão, entramos na perua, só que desta vez
com um frango assado e um refrigerante. A partir desse almo-
ço, a relação de Ercílio com sua família começou a mudar. Hoje
em dia, ele mora com ela no mesmo lugar em São Vicente e
trabalha no Lixo Limpo (um programa de reciclagem do lixo)
para sustentar a casa. Hoje ele é o cidadão Ercílio”.
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CAPÍTULO 2
A influência da arte
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pelo Brasil e no exterior.
Vale ressaltar que o aspecto mais importante era, sem dúvidas, o lado
científico do acervo, já que todas as obras expressavam somente imagens
do inconsciente de pacientes que, em sua maioria, sofriam de esquizofrenia.
O museu tem hoje mais de 350 mil obras e constitui um dos maiores acer-
vos do gênero no mundo.
Nise morreu em 1999, mas deixou sua luta e seu intenso trabalho de
dedicação aos doentes mentais, o que hoje serve de inspiração para todos
aqueles que se interessam por causas humanitárias, justas e nobres. Seu
trabalho fica na história da reforma psiquiátrica do País e será sempre uma
referência na saúde mental.
JÁ NO ANCHIETA...
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começaram a surgir em várias partes do Brasil e até mesmo fora do País
organizações como Rádio e TV Pinel (Rio de Janeiro), Grupo Biruta (São
Vicente), Projeto e Rádio Lokomotiva (Natal) e Rádio La Colifata (Buenos
Aires), entre outros.
Sem sede fixa desde 1997, a principal ação da ONG TamTam vem acon-
tecendo no Espaço Cultural Café Teatro Rolidei, um multiplicador e mantenedor
das atuais ações da ONG. Desta forma, mantém acesa a discussão sobre a
exclusão/inclusão social e seus estigmas e rótulos, sob a ótica da arte e de
sua ação junto à sociedade contemporânea. Não como terapia, mas sim
como qualidade de vida e opção ética e estética na construção de uma
nova ordem e na desconstrução dos saberes absolutos e indissolúveis.
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A NOVELA DA RAZÃO
“Quando você está com dor de barriga e vai ao médico, ele não
manda tirar a barriga. Ele manda tirar a dor. Com a loucura, é a
mesma coisa. Você não tira a loucura e sim a dor. Se arrancar-
mos a loucura, perderemos sonhos, utopias, a vontade de viver!”
O DESTINO
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A PRIMEIRA CENA
Um dos pacientes perguntou para Renato o que ele tinha ido fazer lá.
Renato respondeu:
- Teatro!
“Ele ficou me olhando com uma cara de quem não tinha entendido.
Foi aí que olhei no pátio e vi que tinha uma TV. Então, eu disse: ‘vim
fazer novela!’”.
A idéia de novela foi entendida imediatamente.
Esse mesmo paciente disse que tinha vontade de fazer o papel do Papa.
Outro paciente queria ser um pirata.
Pronto! Já estava montada a peça. O pirata ia para o Vaticano roubar
todo o dinheiro do Papa e fugir de barco.
Enquanto uns pacientes montavam um roteiro improvisado, outros as-
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sistiam, surpresos. “Perguntei aos outros se eles haviam gostado do
que eu tinha ido fazer lá. Entusiasmados, me responderam que sim”,
lembra Renato.
O ENCONTRO
Renato disse aos pacientes que poderiam fazer novela juntos e lhes
propôs um encontro. Marcaram, então, um dia, hora e local para que esse
encontro acontecesse. Todos que gostariam de participar da cena deveri-
am estar no pátio perto de um dos muros. “Foi a coisa mais engraçada do
mundo. Quando cheguei lá, os enfermeiros estavam todos intrigados por-
que tinham vários pacientes encostados no muro desde cedo”.
Quando o artista disse aos enfermeiros que os pacientes estavam lá
porque ele havia marcado um encontro com eles, os enfermeiros gargalha-
ram. Não acreditavam que loucos pudessem respeitar horários e compro-
missos sem que lhes fosse imposto.
“Quando os vi encostados no muro, tive a certeza de que ia dar certo!”,
conta Renato. Os acordos eram respeitados porque os pacientes eram,
antes de tudo, consultados sobre eles. Estavam começando a se sentir
importantes, a perceber que não eram bichos e sim seres humanos.
Ainda havia no Anchieta o problema da restrição em juntar homens e
mulheres. Os técnicos do local queriam evitar a mistura por receio de
envolvimentos emocionais e sexuais. “Eu ia na ala feminina e combinava com
as meninas de ir para a ala masculina para desenvolver um trabalho. Quem
não tivesse a fim de trabalhar não precisava ir”, conta Renato. Desta manei-
ra, conseguiu, para a surpresa de muitos, integrar os pacientes homens e as
pacientes mulheres sem que ocorresse qualquer tipo de problema.
CONTRATO VERBAL
Renato ressalta que o importante para que tudo corresse bem era sem-
pre fazer as coisas marcadas e bem combinadas com os pacientes.
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INFORMATIVO TAMTAM
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A GRANDE FESTA
LOUCURA À SOLTA
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Mas, se pensarmos de outra maneira, poderemos entender um pouco do
motivo pelo qual um indivíduo enlouquece. “Eu não tenho coisa alguma, mas
passo a ter a partir do momento em que enlouqueço, começo a ter assistên-
cia, a colocar medo, a ter poder, a ser classificado. Como louco, todos têm
uma classificação na sociedade. Agora sou o louco esquizofrênico no quarto
número quatro. Sou uma porcentagem! A pessoa consegue uma requalificação
através da dor”.
A padronização das pessoas é feita porque é muito mais fácil para classificá-
las. “Ninguém vai para um baile para dançar com o mais feio. A gente apren-
deu que existe um padrão e temos que seguir. Hoje, o homem tem que tirar
os cabelos do peito. Teve uma época que pêlo no peito era sinal de virilida-
de. As mulheres adoravam”.
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CAPÍTULO 3
Os NAPS
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Era necessário dar continuidade aos cuidados dos doentes mentais, ao
mesmo tempo em que se buscava encontrar algum meio de melhorar e modifi-
car o modelo até então existente. Foi assim que teve início a criação de uma
nova proposta: os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS), que cuidam da
assistência aos pacientes, e os Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), que,
além dos pacientes, cuidam também de suas famílias e de toda a sociedade.
Existe ainda o Selab, um Serviço de Abrigo, para os pacientes com casos
crônicos . Estes pacientes são muito mais graves do que os dos NAPS.
O principal objetivo era inovar no tratamento, que não seria mais de internação
e exclusão, mas sim de uma readaptação com a sociedade, pois havia ficado
evidente a ineficiência do antigo modo de tratamento.
Os CAPS e NAPS são baseados no trabalho em equipes formadas por
profissionais de diversas áreas dentro da saúde, assim como psiquiatras,
psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, musicoterapeutas, auxiliares de
Enfermagem, visitadores domiciliares e monitores de oficinas. As responsabi-
lidades são distribuídas igualmente e cada um exerce um papel importante no
desenvolvimento individual dos pacientes.
A organização deste novo meio de tratamento também contou com
a comunidade e, principalmente, com a família dos que necessitam
desses serviços.
Hoje é possível encontrar unidades dos CAPS e NAPS beneficiando vári-
os estados e municípios do Brasil, como São Paulo, Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Ceará, Bahia, Paraná, Paraíba, Goiás e Pernambuco.
NA CIDADE DE SANTOS
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E O ANCHIETA?
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“Quem quiser que seu doente
volte logo ao gozo da razão
pode aplicar-lhe na veia
amor e compreensão
que a resposta será
breve recuperação”
Manuel Monteiro
Literatura de Cordel
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MEMÓRIAS
O CONVITE
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o começo da desmontagem do hospital, no dia 21 de junho de 1989, Suza-
na deu o primeiro passo para uma nova experiência profissional, que tam-
bém trouxe mudanças em sua vida pessoal.
Antes, ela trabalhava na psiquiatria do Hospital Guilherme Álvaro, exis-
tente até os dias atuais. Como não havia certeza se o proprietário do
Anchieta conseguiria reverter a intervenção municipal na justiça, Suzana
não sabia se seria de fato contratada pela Prefeitura. Corria o risco de ficar
sem emprego.
Porém, ao receber a proposta para trabalhar na intervenção, Suzana se
viu com uma grande oportunidade nas mãos.
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AS DIFICULDADES
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nais em geral. Como o comunicado oficial não foi feito, ninguém saiu do
hospital. “A gente achava que não deveria sair para não colocar em risco a
vida dos pacientes, o projeto que estava se desenvolvendo, porque a
gente acreditava muito que valia a pena”.
As pessoas iam se revezando, passavam a noite junto aos pacientes,
tudo para não correr o risco de não poder continuar o trabalho. “A gente
ficava lá, mas também havia voluntários, gente de todos os lugares, sindi-
catos, igrejas, estudantes e vizinhos, ao invés das pessoas quererem sair
de lá, todo mundo ia entrando!”.
Suzana conta que o papel da imprensa no caso foi muito importante. As
emissoras de TV exibiam em sua programação o drama do Anchieta, os
jornais publicavam todo o processo da intervenção, fazendo com que hou-
vesse uma comoção geral e apoio em nível nacional, o que dificultava o
decreto do final da intervenção. “Acho que o apoio da imprensa foi deter-
minante para que as coisas pudessem continuar”.
Enquanto essa notificação não era feita oficialmente, foi tramitando
outro processo paralelo em instância superior da Justiça, que deferiu a
intervenção de uma vez por todas.
ZONA NOROESTE
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RELATOS DE AJUDA
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esmurrava o demônio, ficava muito brava.
A gente tinha que ficar andando com ela para frente e para
trás, sem saber o que fazer. Ela descia as escadas, ia para o
posto de saúde, e lá estavam pessoas da comunidade, mulhe-
res grávidas, mães com bebês, pessoas que estavam fazendo
algum tratamento. Tínhamos medo de que ela fizesse alguma
coisa com essas pessoas.
Eu não tinha uma equipe de profissionais grande, ninguém
queria trabalhar lá. Eu cheguei a ser uma médica para 300
pacientes. Não tinha muita gente para ajudar nesses casos.
Um outro paciente do NAPS ficou muito preocupado e deu
uma sugestão:
- Vamos pegar um lençol e cobrir o desenho.
O paciente mesmo foi e cobriu a parede. Conversou com a
paciente grávida, dizendo que o demônio tinha ido embora. A
partir daí, ela começou a se aquietar.
Outro acontecimento em que precisei da ajuda de paciente foi
durante um plantão.
Eram umas oito horas, o pessoal da noite não tinha chegado e o
do dia tinha ido embora. Eu estava sozinha com os pacientes.
Já estava chegando a hora de servir o jantar. Enquanto eu
estava resolvendo o jantar, tinha uma paciente em crise e che-
gou uma outra no posto de saúde quebrando tudo. Ela entrou
no consultório dentário e começou a quebrar todos os vidrinhos,
os ferrinhos, as cadeiras.
Eu, lá de cima, ouvia a quebradeira lá embaixo. Tinha que resol-
ver as coisas e estava com a paciente em crise junto de mim.
Me lembro que ela dizia:
- Estou mal, estou em crise.
E eu disse para ela:
- Olha, tem alguém lá em baixo quebrando tudo, e essa pessoa
está pior do que você. Então, você não quer descer comigo pra
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Aos 52 anos, Suzana fica bastante feliz em falar das suas lembranças da
intervenção. Atualmente, coordena o Centro de Apoio Psicossocial (CAPS)
de Diadema, em São Paulo.
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“Hoje os especialistas
Já têm plena conciência
Que os distúrbios mentais
Poderão ser consequência
Do estresse progressivo
Do pavor da violência”
Manuel Monteiro
Literatura de Cordel
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POSSIBILIDADES DE INOVAÇÕES
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tura de Santos, os alunos continuaram a estagiar na cidade até 1996.
Em setembro de 1989, quando foi criado o primeiro NAPS, Fernanda se
envolveu totalmente nesse novo trabalho. “O NAPS é um lugar muito inten-
so. Procurávamos manter todas as relações bastante abertas, interagindo
com os pacientes”, conta Fernanda. Ela conta que exisita a preocupação
de fazer com que não fosse criado um manicômio de portas abertas, já que
a internação hospitalar para os pacientes em estado mais graves ainda era
mantida. ”Os NAPS deveriam representar a base do novo sistema de Saúde
Mental”, justifica Fernanda.
RELACIONANDO A VONTADE
O RESGATE
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Capítulo 4
Os Pacientes
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Frigidez do Ser
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UMA SENHORA MUITO VAIDOSA...
Júlia chegou até nós com a maior timidez, mas disposta a nos dar aten-
ção. “Vocês vão me entrevistar mesmo?”.
Super preocupada com o visual, pediu para esperarmos enquanto ela
passava um batom nos lábios. Júlia, com 76 anos, é a mais vaidosa dos
pacientes, segundo os funcionários do Selab.
Sempre com uma bolsa a tiracolo, roupas arrumadas, cabelo penteado,
mesmo sabendo que não vai sair daquele local tão cedo, Júlia faz questão
de estar bela. No decorrer da nossa entrevista, percebe-se que tudo isso
faz muito bem. Ela cuida de si, mesmo longe de sua família e amigos.
Júlia sabe muito bem se virar sozinha, mas não foi sempre assim. Aos 47
anos, foi internada na Casa de Saúde Anchieta, com o diagnóstico de
depressão. “Meu ex-marido me colocou lá porque eu estava doente,
depressiva”. Ela não culpa o marido. Não guarda rancor, não reclama. É um
exemplo de força de vontade.
Pelo pouco tempo que passamos com Júlia, já nos sentimos bem. É uma
pessoa com um astral incrivelmente positivo, que gosta de conversar, de
falar sobre sua vida. Apenas uma coisa a incomoda muito: a dificuldade que
tem de falar, pois, para quem a ouve, é preciso fazer uma força para
entendê-la e estar sempre olhando para os seus lábios, a fim de realmente
identificar o que diz.
Algumas vezes, em nossa entrevista, Júlia repetiu três ou quatro vezes
a mesma coisa para que a entendêssemos. A impressão que tivemos ao
entrevistá-la é que a única coisa que a impede de sair daquele local e viver
normalmente é o seu modo de falar, pois ela é totalmente “sã” do que diz,
lembra-se de tudo o que aconteceu com ela, dentro do Anchieta e fora
dele também. E fala muito bem das pessoas que tratavam dela após a
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intervenção. O que ela não lembra com gosto é do modo como era tratada
no Anchieta antes do fechamento da Casa dos Horrores...
A chegada
“Foi na Copa de 70, no mês de julho”, disse Júlia sobre a primeira vez em
que esteve no Anchieta. “Eu tomava remédio três vezes por dia. Falavam
que era pra eu ficar boa”.
Segundo o livro Manicômios, Prisões e Conventos, de Erving Goffman, o
processo de chegada do paciente ao manicômio (chamado pelo autor de
processo de admissão) é dividido em várias fases. Desde este momento, já
se percebe que a pessoa começa a perder as suas características individu-
ais devido aos maus tratos:
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ser humano. A ação realizada com base em tais atributos ne-
cessariamente ignora a maioria de suas anteriores de auto-
identificação”.
NÃO DOÍA...
Além dos remédios, que na sua maioria serviam para dopar o paciente
para que este ficasse mais fácil de ser manipulado, Júlia passou por um
momento vivido pela maioria dos pacientes entrevistados por nós: o
eletrochoque. “Eles colocavam borracha na minha boca, na hora do
eletrochoque. Não doía, mas não me falavam pra que servia aquilo”.
O tema eletrochoque gera muitas discussões entre pessoas da área de
saúde. Alguns especialistas defendem este tipo de tratamento, mas as
pessoas envolvidas na intervenção do Hospital Anchieta são contra, em
sua maioria. Segundo o interventor Roberto Tykanori, o eletrochoque para
alguns serve como forma de punição. Neste caso, uma mesma sessão de
eletrochoques é dada várias vezes ao paciente para que ele fique
“abobalhado” e sem vontade de contradizer o que os outros mandam.
“Tira-se o poder de expressão daquela pessoa”, explica Tykanori.
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
MORANDO NO ANCHIETA
“Eu não queria fazer nada no Anchieta, só chorar”. Júlia virou a mão, olhando
tristemente para nós, e mostrou sua cicatriz no pulso. “Cortei o pulso”.
Ela nos contou que, antes da intervenção, ficava trancada em um quar-
to, como se fosse uma prisão, com mais duas moças. “Eu ficava o dia
inteiro naquele quarto. Só saía para o banho de sol, que não durava muito,
e depois voltava. A gente acordava cedo para tomar banho, às 5h da
manhã. Mas o banho não era frio, não. Era quente”.
Então perguntamos o que é inesquecível para ela sobre o Anchieta.
Esperávamos uma resposta emocionada, algo de ruim que alguém tives-
se feito com ela, os eletrochoques, os maus-tratos. “Não me esqueço
de quando me mandavam arrumar as camas, todo dia, em troca de
cigarro e cerveja”.
A troca de favores, como arrumar a cama e varrer, por coisas que o
paciente gosta é uma prática comum em alguns manicômios.
Como diz Goffman: “haja muito ou pouco trabalho, o indivíduo que no
mundo externo estava orientado para o trabalho, tende a tornar-se des-
moralizado pelo sistema de trabalho do manicômio. Um exemplo dessa des-
moralização é a prática, em hospitais estaduais para doentes mentais, de
‘tapear’ ou ‘usar o trabalho de outro’ em troca de uma moeda de dez ou
cinco centavos que pode ser gasta na cantina. As pessoas fazem isso,
embora no mundo externo considerem tais ações como abaixo de seu amor-
próprio” (1992:22).
Como pode alguém que sofreu tanto não ter guardado rancor de tudo
aquilo e ter como inesquecível a cerveja e o cigarro? Júlia nos impressionou
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muito pelo desprendimento com o que sofreu naquele local. Ela contou
ainda que passava a semana toda com a mesma roupa, porque, segundo
ela, todos os pacientes trocavam de roupa apenas nos finais de semana. E
ela não gostava disso. E quem gosta?
A última coisa que ela se lembra é da comida do Anchieta. “Era horrível!
Aqui é bem melhor!”, desabafa, aliviada.
FAMÍLIA
Júlia tem um filho e três netos. Mas sua historia não é tão boa quanto
parece. Faz quatro anos que não os vê...
Através de pesquisas feitas com os profissionais que cuidam dela hoje,
soubemos que, realmente, não é nada boa a relação dela com sua família.
Elizete da Silva, a coordenadora do Selab, nos contou que tentou uma
aproximação dos netos com Júlia... Isto aconteceu há quatro anos. Um de
seus netos a encontrou, porém, nunca mais voltou, nem a procurou. “A
impressão que dá é que ele se assustou com a situação dela hoje”, conta a
coordenadora do local. “Mas vamos continuar tentando”.
Júlia segue a vida, de cabeça erguida, sempre vendo o lado bom dos
acontecimentos. “Hoje estou bem melhor”, resumiu.
Aproveitamos a descontração do momento e perguntamos sobre namo-
rados... Já que é tão vaidosa, não é possível que alguém não tenha se
interessado por ela. Júlia ri, fica encabulada, e faz questão de deixar claro:
“Não tenho namorado...”. E, olhando discretamente para nós, completou:
“Só com meu marido”. Nem precisávamos perguntar ao que ela se referia...
DEPOIS DO ANCHIETA
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
e árvores. O que será que ela quer dizer com eles? Será que sente falta de
casa? Será que desenhou o local que está hoje? Será que ela gostaria de
estar morando no campo? Esta é uma pergunta que todos que a tratam
costumam fazer.
Na época da intervenção do Anchieta, Júlia pintava, enquanto outros
pacientes faziam esculturas, quadros. O que mais ajudou no tratamento
daquelas pessoas foi a Rádio TamTam e o Jornal Tam- Tam Urgente, que,
assim como aquele momento histórico na cidade de Santos, foram exem-
plos para muitos outros hospícios do Brasil. Pipocou, em cada hospital, uma
nova rádio, um novo jeito de fazer música. Estas rádios eram totalmente
feitas pelos pacientes, os “loucutores”, que escolhiam as músicas e os
temas a serem abordados nos programas.
Para o coordenador destes trabalhos, Renato Di Renzo, os trabalhos de
arte fazem com que os pacientes voltem a sonhar e usar a imaginação, e,
segundo ele, sonhar é extremamente importante para a recuperação deles.
Nossa entrevistada não foge à regra do que Renato diz sobre sonhos.
Com certeza, Júlia ainda sonha em voltar a ver sua família e ter uma vida
normal novamente. Trinta e cinco anos em ambientes psiquiátricos a fize-
ram sofrer muito. No entanto, não foram o suficiente para que ela desistis-
se de seus ideais.
Eis uma pessoa de quem Júlia e todos os pacientes entrevistados não
esqueceram: David Capistrano. Hoje falecido, na época era secretário de
Saúde da cidade, e, juntamente com Roberto Tykanori, chegou à conclu-
são de que aquele modo desumano de tratar as pessoas precisava acabar.
Júlia lembra-se dele com carinho.
O MUNDO HOJE
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Júlia dorme em um dos quartos do local, que abrigam de dois a três
pacientes. Divide o quarto com duas pacientes, cada uma com uma cama e
um armário para colocar seus pertences.
No momento da entrevista, aconteciam em Brasília várias denúncias de
corrupção, envolvendo os partidos do governo e outros também. Como
percebemos que nossa entrevistada era muito inteligente, aproveitamos
para perguntar: o que a senhora acha do que está acontecendo agora
com o Brasil? Ela respondeu na mesma hora: “uma roubalheira, né?”. E
começou a rir...
Júlia ainda quis falar mais: “acho que o Lula não tem nada a ver com o
que está acontecendo. Ele não tem culpa. Quem tem culpa é quem está
acusando ele!”.
Pois é, nossa primeira entrevistada nos mostrou que, mesmo tendo pas-
sado por momentos tão difíceis, não se deixou abalar. E segue com seus
sonhos de um dia reencontrar sua família...
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
Sempre
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DE OUTRO MUNDO...
Fomos um dia antes das entrevistas ao Selab para ver quais seriam os
nossos entrevistados para este trabalho. Afinal, já sabíamos que não seria
de uma hora para outra que conseguiríamos arrancar dos pacientes um
momento tão difícil quanto o tempo que eles passaram no Anchieta. Che-
gando lá, fomos recebidas por um dos funcionários do local, o Ciro, que já
sabia quais eram as nossas intenções, já que passamos a semana anterior
inteira ligando para marcar o melhor dia para as entrevistas.
Logo fomos apresentadas a cada um dos pacientes que haviam passado
pelo Anchieta por algum motivo. Conversamos com cada um, explicamos
nosso objetivo, e fomos muito bem recebidas por eles, mesmo sabendo
que, em sua maioria, são pessoas com patologias muito graves. Ao final da
visita, recebemos um cumprimento... “Oi! Tudo bem?”, ouvimos de algum
lugar. Viramos para trás e cumprimentamos aquela moça aparentemente
nova, que sorria ao falar conosco. Ela nos fez refletir sobre a carência de
atenção que aquelas pessoas sofrem. Então, fomos embora, já preparadas
para a maratona de entrevistas do dia seguinte.
Chegada a hora das entrevistas, na manhã seguinte, Ciro nos lembrou
de que havia mais uma paciente do Anchieta que ele não nos apresentara
no dia anterior. E, para surpresa nossa, fomos apresentadas a Vanda, aquela
moça sorridente!
Vanda trajava um vestido florido, com a saia na altura do joelho. De
cabelos bem curtos, tipo “Joãozinho”, magra e não muito alta, conversou
conosco logo após a entrevista com Julia. Vanda não conteve sua vontade
de nos contar o que passou no Anchieta, mas, diferentemente da impres-
são que nos deu no dia anterior, ela mantinha uma expressão fechada...
Sentou-se na cadeira que havíamos colocado à nossa frente, para os
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
CHOQUES DE LEMBRANÇA
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A partir daí, Vanda nos contaria toda a sua impressão sobre as seções
de eletrochoque a que era submetida. Não foi nada fácil para ela.
- Grudou na minha fronte e eu gritei: AI!
Assim como nossa primeira entrevistada, Vanda se recorda muito bem,
com detalhes, do que viveu no Anchieta. Foi direta ao dizer que coloca-
vam um protetor para que ela não se machucasse... que hipocrisia!
“Doía. É que grudava na fronte. Colocavam pano, borracha, alguma coi-
sa para não mordermos a língua”. E continuou: “eles davam muito cho-
que em mim. Eles fingiam que iam dar choque. E eu me escondia, mas
eles viam onde eu estava. Eles queriam que eu tomasse, mas eu não
tomava, não. Eu me escondia”.
Descobrimos que Vanda já havia passado por vários hospitais psiquiátri-
cos do Estado e que, em todos eles, era submetida a eletrochoques. Além
de se esconder, empurrava algumas enfermeiras que iam buscá-la, dava
pontapés, coisas deste tipo. Com isso, ela conseguia fugir deste “trata-
mento”, mas nem todos os pacientes eram ágeis como ela. Acabavam
tomando várias sessões de eletrochoques.
É impressionante como as pessoas que tratam o paciente ficam na
memória dele. Mesmo 16 anos depois de tudo acontecer no Anchieta,
Vanda se lembra do nome dos médicos e, principalmente, dos que a trata-
vam mal, do que eles faziam para que ela ficasse “abobalhada”.
É possível perceber que ela é paciente psiquiátrica pelo fato de apre-
sentar um jeito meio “perdido”. Os olhos da paciente vagam pelos lugares,
sem rumo, parecendo que não sabem para onde vão. Mas, mesmo assim,
no caso de Vanda, seu olhar triste vai sendo explicado a cada palavra,
principalmente no caso do eletrochoque e das visitas que não recebia.
MORANDO NO ANCHIETA
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
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terísticas individuais. “O paciente, então, começa a passar por algu-
mas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta
pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que tem a seu
respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele”
(1992:24).
Em vista disto, percebemos que Vanda “esqueceu” o que viveu
antes, os maus-tratos ao longo da sua passagem pelos vários hospi-
tais. É como se, para ela, nunca tivesse existido uma família.
OUTROS MUNDOS
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
CROCHÊ
MAIS LEMBRANÇAS
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- E, depois, na hora de chamar a gente pra dormir, a tia Angela chama-
va nós pra dormir e ela falava.... Que foi isso no seu olho, hein, menina? E
eu falei é que eu amanheci com os olhos pretinhos... E ela falou que eu
não ia subir a escada com esse olho inchado, não, vai dormir aqui. E
depois eu dormi lá...
Sem perder o ritmo da fala, Vanda quis nos contar ainda sobre o remédio
usado para “sarar os olhos pretinhos”: “... e eu levantei e pingaram remé-
dio, colírio, pra ver se sarava, mas não adiantou nada”. Ela não se esque-
ceu da febre e nem de como foi tratada neste momento:
- E eu acordei quase de manhã e a tia Angela pôs a mão aqui em mim. E
falou que eu tava com febre. E ela pôs o termômetro e depois eu não fiquei
mais com febre.
AS PIORES LEMBRANÇAS
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
REBELDIA
Vanda fez questão de dizer o que ela fez para essa moça que a
pegou. Não teve medo de mostrar como era rebelde...
- E eu fiz força, dei pontapé, e virei assim, dei pontapé na “opera-
ção” dela, e falei bem feito pra você! Ela perguntou por que eu tinha
dado pontapé e eu respondi que era porque ela me pegou de trás, de
gravatada, pra me levar pra conversar com o médico. E nem o doutor
eu obedeci ele. Fiquei sentada lá no chão um pouquinho e saí de perto
pra não conversar com ele.
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Segundo os funcionários do Selab, os pacientes como Vanda tendem
a ficar violentos no caso de serem provocados, ou seja, quando al-
guém faz com que eles fiquem assim. Vanda sabia que, se fosse “con-
versar” com o médico, ele faria algo de ruim a ela, pois já havia feito
antes. E, com isso, ela usou a violência para se defender.
Aproveitando que Vanda estava se abrindo conosco, sem medo, fi-
zemos uma pergunta mais forte.
- A senhora sabe de alguém que morreu dentro do Anchieta?
Ela não pensou muito para responder.
- Lá eu nunca vi ninguém morrer, não. Só uma moça, que comeu
sabão em pó e levaram ela deitada, segurando nas mãos e nos pés
dela, pro pátio, até que ela morreu mesmo.
DEPOIS DO ANCHIETA
Mas não é apenas das coisas ruins que Vanda se lembra. Ela viveu o
período da intervenção, aquele momento histórico da cidade que trouxe
nova vida a todas as pessoas internadas no Anchieta. E sabe muito bem o
que significou aquele momento...
Perguntamos a ela o que é melhor: a época do Anchieta ou os dias de
hoje. Nossa entrevistada não hesitou ao dizer que hoje é muito melhor.
- Por quê?
- Por que não tem mais choque... É melhor morar aqui porque nós
temos tudo de comer e temos tudo de tomar, do que andar na rua feito
maloqueira. E, às vezes, eu ficava na rua pedindo cigarro e ninguém
queria morar comigo...
- Depois que o Anchieta fechou, você tomou choque?
- Não, nunca. Fui pro Manequinho.
O “Manequinho” a que Vanda se referia era a República Manequinho,
uma casa para onde eram levados alguns pacientes que não tinham
família, logo após a intervenção. A casa levou este nome graças ao seu
primeiro morador, o Manequinho, um paciente com Síndrome de Down.
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ANIMAIS
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Arte: Rodrigo Stipp; Foto: Vivian Souza
Às vezes me vejo
Olhando em meus olhos
Procurando por mim mesmo
Passo por vários lugares
Sem que ninguém me veja.
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
MARCAS ETERNAS
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Sua resposta nos deixou mais calmas. Descobrimos que o que ele nos
falava no início da entrevista não eram alucinações! Ele já estava tentando
se lembrar do Anchieta, já que o havíamos avisado que iríamos conversar
sobre isso. A resposta dele foi a seguinte:
- Tá faltando uma lá que eu não sei o nome, além da Regina.
Regina! Aquela a que ele se referiu no início... E então perguntamos a
ele se lembrava de quando fechou o Anchieta. Mais uma vez com poucas
palavras, ele respondeu:
- Lembro.
- Você se lembra de quem estava lá dentro?
- Tinha o Carlos, tinha... Por nome não me lembro, lembro por fisionomia.
Então vimos que estávamos realmente enganadas por acharmos que
Marco é um paciente “totalmente fora de si”, que não fala “coisa com
coisa”, como pensamos no início. Na maior parte das vezes, ele não res-
pondia com muitas palavras ao que perguntávamos. Mas, de repente, ele
falou o que mais nos marcou entre todos os pacientes que entrevistamos...
- Então, eu tô com dificuldade pra falar com você sobre o Anchieta,
porque aconteceram coisas ali que me marcou muito, meu corpo inteiro,
minha alma, meu coração, me marcou muito... Me marcou muito...
Silêncio. Fomos pegas de surpresa.
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
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vez que foi ao dentista, que fugiu... Foi aí que ficamos confusas...
- ... Porque eu cheguei a bater a cabeça na perua, quando eu fui
no dentista, uma “força maior” me fez incorporar na placa dentista. Eu
passei. Quando eu fugi, eu passei lá, no dentista...
Complicado de entender. Um pouco depois, perguntamos novamente
sobre isso.
- A comida lá no Anchieta, você lembra?
- Lembro, lembro. Eu lembro até que alguém fez a mesa lá no pátio
do colégio lá que eu jogava petequinha com a moça, com uma moça
loirinha, eu jogava petequinha, né...
Foi interessante. Não entendemos o que ele quis dizer sobre a comi-
da, mas descobrimos uma coisa que ele gostava de fazer - jogar pete-
ca! Marco nos lembrou um pouco Julia. Ele tem as marcas dos maus-
tratos, ainda mais do que ela, mas ainda conseguiu manter o bom
humor e as boas lembranças.
OS ELETROCHOQUES E OS REMÉDIOS...
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
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tudo já. Já sai tudo fora do normal...
Sentimos que foi um desabafo de Marco. Percebemos que ele tem ainda
sonhos e vontades. Mas vive as angústias que todos nós vivemos, as
frustrações, as coisas que não dão certo. Percebemos que ele está que-
rendo melhorar e ir atrás de seus desejos. E isto é muito bom.
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Tempo
Tempo, tempo, tempo passa
O cérebro passa
As plantas morrem
Os pássaros passam
O dia passa
O cérebro passa
A vida passa
E eu passo, passo e passo
Mas não adianta nada
Eu fico...
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DEZENOVE ANOS
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
MORANDO NO ANCHIETA
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- Eu não tenho lembrança disso mais. Como é que eu vou falar?
Rosa disse esta última frase com o tom exato de uma garota com a
idade que ela disse ter, meiga, um pouco ingênua, com jeito de menina.
Perguntamos a ela quando a levaram para o Anchieta e fomos surpreen-
didas. Ela ficou chateada.
- Quando mandaram a senhora para o Anchieta?
- Não sou senhora ainda!!! Sou menina-moça!
Ficamos um pouco sem jeito, mas continuamos...
- Você se lembra como foi, quando você foi para o Anchieta?
- Eu não posso falar. Posso falar os anos que estou aqui, 4 mil anos.
Mais uma vez, ela teimou em dizer os 4 mil anos. O que será, na cabeça
dela, que isto significa? Queríamos saber o que ela achava do Anchieta.
Então a questionamos se ela gostava de lá.
- Eu não gostava, mas eu ia, ficava lá internada.
- O que você fazia lá?
- Eu tomava remédio, não sarei, sarei aqui.
Ela sabe que o Anchieta não curou ninguém... Então perguntamos sobre
as pessoas que trabalhavam na Casa dos Horrores...
- Eu não me lembro de nome, lembro de moços e moças, umas mulheres
e homens. Eles davam remédio pra mim e pra todo mundo que tava lá.
- O que acontecia quando a senhora tomava remédio. Dormia?
- Eu tava cansada e sem dormir.
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
- Na boca, na boca.
Rosa não nos deu as informações exatamente como queríamos. Mas
forneceu algo muito maior. Muito mais do que colher dados exatos sobre o
momento, muito mais do que ver exatamente como era antes e depois do
Anchieta, ela nos mostrou que, apenas por estarmos falando com ela,
naquele momento, por ela nos ter dado atenção e tentado se lembrar do
que viveu, já era uma vitória para nós. Rosa é o exemplo do que um
manicômio é capaz de fazer com uma pessoa. Se era isto o que queríamos,
no início de nossa pesquisa sobre este trabalho, foi isto o que tivemos.
Não se pode esperar de uma pessoa como ela respostas diretas e fá-
ceis. E nem explicações sobre o que ela fala. O objetivo de fazer estas
entrevistas com os pacientes é exatamente lidar com o conceito de “mun-
do real” e “mundo imaginário”. É estar junto com eles neste pensamento,
tentar entender e ver que o mundo não é só o que passamos no dia-a-
dia... Existem pessoas, como eles, que vêem a vida de uma forma total-
mente diferente.
Para terminar a parte do “antes” da intervenção no Anchieta, como de
praxe, perguntamos sobre banho e comida.
- Durante o dia, o que você fazia, além de tomar remédio?
- Eu não lembro mais...
- Como você tomava banho? Você lembra?
- Tinha dois banheiros, um de um lado, outro de outro.
Para Rosa, a comida do Anchieta era melhor do que a do Selab, hoje. Ela
fala bem do refeitório do Anchieta, de como era a comida no geral.
- E, na hora da refeição, o que vocês comiam, como era? Era tipo um
refeitório grande?
- Era. Tinha mesmo um lugar grande de comer na cozinha, com cadeira,
mesa. Era bonzinho...
Questionamos o gosto da comida no Anchieta.
- Era boa, era feijão, arroz, pão e doce. Era gostoso.
- O que você come aqui?
- Nossa... feijão sem sal, arroz sem sal, carne sem tempero, tudo ruim a
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comida daqui. Lá a comida era boa, tinha sabor, aqui não tem sabor.
DEPOIS DA INTERVENÇÃO
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Capítulo 5
Luta Antimanicomial
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CENÁRIO ATUAL
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proposta principal para uma organização extra-hospitalar.
O maior desafio é conseguir fortalecer políticas de saúde, estabilizando
e aumentando as redes comunitárias de tratamento, implantando meios de
geração de empregos aos portadores de distúrbios mentais e, por último,
mas com maior importância, um aumento de recursos no orçamento do SUS
destinado à saúde mental do País.
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Capítulo 6
A Fábula
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ainda serão escritos. Mas nenhum será capaz de fazer o leitor sentir real-
mente o que aquelas pessoas viveram, sabendo do tamanho sofrimento
que elas passaram. Elas, e somente elas, sabem realmente o quanto se
sofre nas garras de um manicômio como era a Casa dos Horrores.
Ainda hoje existem pacientes psiquiátricos sofrendo tanto quanto nos-
sos entrevistados, em todo o mundo. Ainda há muito que se fazer para que
estas pessoas nunca mais sofram estes maus-tratos. Ainda existem pesso-
as achando que, para tratar um doente mental, é preciso trancafiá-lo
como um animal, ou até, em muitos casos, pior do que animais.
Mesmo com o avanço das tecnologias e das novas ciências, o ser huma-
no muitas vezes teima em continuar com seus velhos pensamentos. E não
são apenas os hospitais psiquiátricos que têm cenas desumanas em seus
corredores e salas. Não é preciso ir muito longe...
Em cada esquina, a cada dia, temos provas de que as figuras estão
trocadas. Em manicômios como o Anchieta, os profissionais na verdade é
que são os loucos, por se acharem os donos da verdade, defendendo que
doentes mentais não são dignos de respeito. Mas, no nosso dia-a-dia, se
repararmos bem, veremos que isto também acontece bem ao nosso lado.
Políticos roubam nosso dinheiro pelas costas e ainda se classificam de
inteligentes e dignos de respeito. O cidadão trabalha o mês inteiro e, mui-
tas vezes, gasta todo o seu salário para pagar as taxas impostas por estes
políticos, que, claro, não precisam pagá-las, pois eles são muito importan-
tes para isso. Percebe a troca de lugares?
Pois é, vivemos em um grande manicômio...
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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA
Cronograma:
Em respeito ao nosso leitor, aqui está um cronograma dos fatos ocorri-
dos em 1989 na intervenção da Casa de Saúde Anchieta.
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suspensa pela instituição.
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Arquivo Fotográfico
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estado do Anchieta
dia-a-dia do hospital
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Médicos cuidaram dos pacientes com maiores problemas
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O interventor Roberto Tykanori
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Os “loucutores” agitam as ondas do rádio com o TamTam
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mais presente
Com paredes
pintadas pacientes
em nova fase
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Bibliografia
D. O. Urgente, 03.05.1990 – Encarte da edição nº 257 do jornal - 1
ano depois
D.O. Urgente, 06.05.1989 – “Não há recusa de doentes”.
D.O. Urgente, 11.05.1989 – Anchieta: Liminar susta intervenção
D.O. Urgente, 12.05.1989 – Voltam os problemas – José Roberto Fidalgo
D.O. Urgente, 18.05.1989 – Volta a Intervenção - José Roberto Fidalgo
D.O. Urgente, 16.06.1989 – Em Santos, a nova psiquiatria – José
Roberto Fidalgo
D.O. Urgente Especial, 14.08.1989 – As varias etapas da intervenção
Jornal Candura – espaço coberto para um novo pensamento, 06.2005
Documento da Prefeitura Municipal de Santos – Saúde Mental, 1993.
Jornal do Brasil, suplemento cidade, 24.07.1991 – Os 150 anos da loucura
Jornal Folha de São Paulo, 18.05.1991 – Pais desmonta “indústria”
psiquiátrica
Jornal O Globo, 29.10.1989 – “Psiquiatria Democrática” avança no Brasil
– Mauri Alexandrino
www.paulodelgado.com.br
www.saudemental.med.br/CAPS1.htm
www.orgone.com.br
http://noticias.uol.com.br/saude/ultnet/2005/03/24/ult11u2412.jhtm
Centenário de Nise da Silveira: Psiquiatra revolucionou tratamento de
doentes mentais – Juliana Lopes – 24/03/2005 – 14h32
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