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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Vivência de Corpo e Alma

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Capa e Ilustração/Edição Fotográfica/diagramação e Layout:
Renata Silva e Vivian Souza
Entrevista com os prficionais responsáveis pela intervenção:
Vivian Souza
Entrevista com os pacientes da casa de Saúde Anchieta:
Carolina Robortella
Pesquisa:
Renata Silva

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

“...Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,


a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?...”

Carlos Drummond de Andrade

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Agradecimentos

Fazer um trabalho como este requer tempo, disciplina e


paciência, mas não apenas vindas de nós, autoras deste
livro. Sem as pessoas à nossa volta, com certeza não teríamos
chegado ao fim desta etapa. Elas nos deram a força que
precisávamos, na hora certa, mesmo com todas as
dificuldades do dia-a-dia.
Primeiramente, agradecemos aos nossos entrevistados, e
também às pessoas que nos ajudaram de todas as formas,
para tornar nosso trabalho possível.
À nossa orientadora, Helena Gomes, somos eternamente
gratas. Sabemos que não é fácil orientar vários grupos ao
mesmo tempo, como aconteceu com você. Mas mesmo com
esta dificuldade, demonstrou atenção e paciência nas horas
mais precisas, nos mostrou o caminho no momento mais
difícil, e, o mais importante, soube respeitar nossas idéias,
e, por outro lado, quando era preciso nos deu a “bronca”
necessária nos momentos de confusão.
Agradecemos também à professora Karina Batista, que
além de amiga nos deu uma grande ajuda com a diagramação
deste livro.
Este trabalho significa o fim de uma importante fase de
nossas vidas: o final da faculdade. Sabemos que, de agora
em diante, como jornalistas formadas, os obstáculos só irão
aumentar de tamanho. Não sabemos o futuro que nos espera,
mas temos em mente que não chegaríamos até aqui sem a

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confiança e a paciência deles: nossos pais e parentes.
À Osvaldo, Suzana, Mariana, Oswaldo e Jenny, família da
Carolina; Gercio, Albertina, Cristina, Alynne e Isabella, família
da Renata; Carlos, Tânia, Manuela e Vitor, família da Vivian,
e a todos os nossos demais familiares, agradecemos todo o
esforço feito para que nós chegássemos até aqui. Difícil
descrever o quanto vocês nos ajudaram, e o tamanho da
gratidão que sentimos... São imensuráveis.
Não poderíamos deixar de agradecer aos nossos amigos e
namorados, que nos entenderam nos momentos de
preocupação, e nas horas de estresse, muitas vezes nos
dando palavras de apoio e tranqüilidade em momentos
extremamente importantes.
Agradecemos também a todos os professores do curso de
Jornalismo da Unimonte, e aos nossos colegas de sala, que
passaram por este momento conosco nos apoiando com a
troca de experiências.
E por fim, porém mais importante, a Deus, que nos
possibilitou a vida, nos privilegiando com as nossas familias,
e essas pessoas à nossa volta, fazendo com que nossa
existência fizesse sentido.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Sumário

Prólogo ..................................................................... 11
Capítulo 1 - O início da nossa história ......................... 19
Capítulo 2 - A influência da arte .................................. 35
Capítulo 3 - Os NAPS ................................................. 51
Capítulo 4 - Os Pacientes ........................................... 67
Capítulo 5 - Luta antimanicomial ............................... 101
Capítulo 6 - A fábula ................................................ 105
Cronograma ............................................................ 109
Arquivo Fotográfico .................................................. 113
Bibliografia ............................................................. 122

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Prólogo

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Os problemas psiquiátricos não fazem parte apenas da recente história


da humanidade. Há milênios, o ser humano trava um intenso e cruciante
combate com forças mentais até agora pouco conhecidas e, invariavel-
mente, perde a batalha em meio a conflitos reais ou imaginários.
Quando revisamos relatos de épocas remotas e seguimos rumo aos dias
atuais, percebemos claramente que a “loucura” sempre esteve, está e
provavelmente continuará presente na humanidade.
Fato relevante é notar que não há uma relação direta com o fator
sócio-financeiro daqueles que desse fel sentem o gosto e os efeitos.
Pobres, ricos, negros, brancos, todas as raças, das mais desenvolvidas
até aquelas recém-descobertas em meio a florestas ainda virgens, todas
as comunidades em todos os tempos têm suas histórias reais sobre esse
mal que afeta não apenas quem o sente no corpo e na alma, mas também
a todos em seu meio.
O assunto é fértil e propicia as mais acaloradas divergências de opini-
ões, justamente por se tratar de algo que ainda não podemos dominar com
a exatidão da matemática, com a comprovação da física e, portanto, sobra
espaço para pesquisa e estudos, opiniões e observações sempre valiosas.
Várias são as correntes que “entendem” o assunto a seu modo. Alguns
pela formação acadêmica e pelos anos no tratamento a pacientes portado-
res de problemas psiquiátricos. Outros pelas crenças religiosas. Mas, na
realidade, o caminho para o entendimento total e domínio do assunto pare-
ce ser sinuoso e de difícil acesso.
A mente humana, até agora, é algo indecifrável. Passamos do amor ao
ódio, do desejo a repulsa, da compreensão ao aniquilamento animalesco
de nossos semelhantes de maneira incompreensível. Inconcebível se le-
varmos em conta que somos seres dotados de capacidade de discernimento
e inteligência superior a todas as outras criaturas que conhecemos em
nosso planeta.
Neste livro, o leitor encontrará um apanhado de fatos diante de um
mundo vasto e desconhecido, caminhos trilhados por tantos seres huma-
nos forjados na dor e no sofrimento, no esquecimento e abandono, nas

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internações intermináveis, nos atos desumanos sofridos e praticados, en-
fim, na vida vazia e intrínseca de alguém cuja mente obscurece o corpo e a
alma que anima uma matéria incompreensível. São depoimentos de ex-
pacientes da Casa de Saúde Anchieta, propriedade privada que começou a
funcionar em 1951.
Os internos estereotipados como “loucos” eram torturados, marginaliza-
dos e esquecidos desde aquela época. A sociedade os excluía de seu meio.
Era cômodo fazer de conta que essas pessoas que sofriam de algum distúr-
bio mental simplesmente não existiam. Parecia simples, fácil, deixar de lado
tantas almas inquietas, subjugadas em um mundo cujo corpo material, bem
maior do ser humano, não fizesse a menor diferença no mundo em que nós,
“seres perfeitos”, vivemos no esplendor mental.
A história da Casa de Saúde Anchieta começou a ser notória em 1989,
quando aconteceu sua intervenção pela Prefeitura de Santos. A princípio,
a realidade de maus-tratos, conhecida apenas na região, não demorou a
ser fato discutido em nível nacional, chegando ao ápice de divulgação
quando se tornou assunto de interesse mundial.
Conhecido como “Casa dos Horrores”, o local exibia um quadro de
superlotação, medicação sem controle, falta de atendimento clínico ade-
quado aos pacientes, aplicação de eletrochoques como meio de tratamen-
to e até o relacionamento pernicioso entre aqueles que deveriam aplicar a
terapia e os pacientes da instituição. Casos de abuso de poder por parte
dos médicos que deveriam tratar dos pacientes são inúmeros, assim como
brigas, descaso dos familiares e até mortes ocorridas no Anchieta. Tudo
isto você irá encontrar no decorrer deste livro.
O processo de intervenção se iniciou com uma avaliação clínica dos
doentes que se encontravam em total estado de abandono. Muitos apre-
sentavam ferimentos infeccionados e casos de desidratação, entre outros
problemas. Além disto, as instalações da instituição eram degradantes e
assustadoras. Havia cadeados nas portas que davam acesso aos pátios de
circulação interna, enfermarias trancadas, dias pré-determinados e horári-
os rígidos para as visitas, falta de chuveiros com água quente e até prisões

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de pacientes no chamado “chiqueirinho” (área de confinamento dos consi-


derados perigosos).
Tendo em vista este modo desumano de tratamento, foi acionado,
então, um grupo de profissionais de saúde a fim de melhorar as condições
de vida daquelas pessoas. Médicos, enfermeiros e pessoas da área da
saúde, com poder de fazer muito pela saúde mental, se uniram com o ideal
de acabar com aquela situação.
A partir da intervenção do Anchieta, foram criados por estes profissio-
nais os Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), com uma nova forma de
tratar os doentes mentais, pioneira no país, que seria depois “copiada” por
várias outras cidades. Os pacientes passaram a ser tratados, então, de
uma forma completamente diferente, sendo respeitados como pessoas,
com acesso aos direitos mínimos que todo cidadão tem, como um local
limpo para dormir, roupas limpas e diversas, banhos diários em chuveiros
quentes, comida de qualidade. Além disso, começaram a ter acesso à arte,
música, passeios pela cidade, participação de eventos. Enfim, os pacientes
são tratados como “gente”. Este acontecimento gerou mudanças na cida-
de, no país e no mundo, servindo de exemplo para muitos outros hospitais.
Um fato mostrou que a sociedade está mudando, buscando dizer o que
pensa e fazer o mundo melhor, prezando, sempre, a dignidade humana.
Uma das autoras do livro, a Carolina, quando tinha 8 anos de idade,
acompanhou de perto o momento da intervenção. Ela viveu aquele aconte-
cimento por ser filha de um dos profissionais chamados para fazer a inter-
venção, a psiquiatra Suzana Robortella, que será apresentada em um dos
nossos capítulos. Vários profissionais, que atuaram na intervenção, tam-
bém foram entrevistados para este livro.
Não podemos deixar de relatar o quanto nos apavorou os momentos em
que nos víamos em situações parecidas com as vividas por pacientes que
recebem tratamento psiquiátrico. Foi então que nos lembramos de um dita-
do popular que nos tranqüilizou: “de médico e louco, todo mundo tem um
pouco”. Todas as experiências vivenciadas por nós enquanto produzíamos
este livro serviram para nos deixar seguras na hora de escrever sobre um

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tema que não é apenas complexo, mas também fascinante.
Um momento difícil foi quando fomos entrevistar os ex-pacientes do
Anchieta. Logo nos veio à cabeça: como será entrevistar doentes men-
tais? Durante os quatro anos de faculdade, aprendemos que, ao escrever
sobre algo, temos que responder às perguntas do “lead”, o primeiro pará-
grafo da matéria jornalística: que, quem, quando, onde, como e por que.
Mas... e quando não temos nenhum destes fatores? O que acontece quan-
do nossos entrevistados provavelmente não sabem falar o que passaram
no Anchieta, seja porque não se lembram ou porque sua “doença” não traz
à tona o que realmente aconteceu? O que pensar no instante em que o seu
entrevistado responde “4 mil anos” à pergunta: “há quanto tempo você
esteve em tratamento?”
Pessoas perdidas, que não sabem dizer o que pensam, não conseguem
descrever o que ocorreu com elas nos momentos tão pavorosos de suas
vidas. O que se esconde por trás daquelas vozes dopadas por remédios,
das cicatrizes de maus-tratos, das tentativas de suicídio e seus cortes
grotescos em rostos, pulsos, no corpo e na alma?
Para estes pacientes, todo o sofrimento, a falta de humanidade com
que eram tratados no passado, acaba fazendo com que eles mesmos se
achem um fardo para a mesma sociedade que os exilou. Perdem a vontade
de conseguir voltar a conviver normalmente nas ruas, em meio à coletivi-
dade, tentando levar uma vida normal. Tudo isto se agrava com a falta de
incentivo e auxílio por parte da família e até mesmo de alguns profissionais
da área de saúde. Mesmo assim, os pacientes nos deram um pouco de seu
tempo e pensamentos. Nos deram a chance de poder contar, mesmo que
apenas em fragmentos, como foi para eles aquele momento tão intenso no
Anchieta. Sabemos que não é nada fácil lembrar momentos ruins da vida e
muito mais difícil contar para alguém que mal conhecemos um momento tão
íntimo, tão sofrido, que, com certeza, não será esquecido.
Um dia aqui, outro ali, marcamos hora, conversamos com jeito, explica-
mos para os pacientes que faríamos um livro sobre a intervenção no An-
chieta. Acabamos conseguindo que estes pacientes compartilhassem

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conosco o que foi vivido entre aquelas paredes, hoje envelhecidas pelo
tempo e pelo esquecimento, mas não pelas almas que por ali vagaram em
dor, angústia, revolta e, com certeza, muito sofrimento em comum.

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CAPÍTULO 1
O início da nossa história

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“Olho a baía de Botafogo, cheio de tristeza. Não acho tão bela


como sempre achei. Ao longe, os Órgãos não se vêem; estão
mergulhados em névoa. As montanhas de Niterói estão sem o
cobalto de sempre; (...) o casario está mergulhado, confuso,
não se desenha bem no horizonte. Tudo é triste. O céu muito
baixo, cheio de fuligem, fumaça. O pão de Açúcar está emoldu-
rado de nuvens brancas, parecem abaixar do cume. Vê-se o
chalé do caminho aéreo. A Urca, também chanfrada, é de uma
estupidez diante daquele cenário! A Urca não Muda.” (Lima Bar-
reto)

De dezembro de 1919 a janeiro de 1920, o jornalista e escritor Afonso


Henriques de Lima Barreto foi internado no hospício Dom Pedro II, primeiro
manicômio da América Latina, situado no Rio de Janeiro. Durante essa
internação, escreveu sobre toda sua experiência, que deu origem às obras
O cemitério dos vivos e Diário íntimo. Ele morreu em 1922, de um colapso
cardíaco, aos 41 anos.
Pessoas com mentes brilhantes e talentosas, muitas vezes são vistas
como perturbadas e incompreendidas desde os tempos mais remotos. As-
sim como no caso do escritor Lima Barreto, muitos intelectuais famosos e
outros talentos anônimos sofriam e sofrem até os dias de hoje com o
preconceito da sociedade que não tem entendimento da visão diferenciada
da mente de cada ser.
Uns nascem com vocação para desenho, outros para exercer a medici-
na. Bem, não importa qual a ocupação do indivíduo. A verdade é que
sempre quando alguém se sobressai com idéias que fogem do comum, do
habitual, causam um impacto que leva a um distanciamento por parte dos
que se consideram “normais”.
Não raro, familiares, amigos e até vizinhos buscam internar pesso-
as com problemas relacionados ao uso de drogas, sejam elas legais
(caso das bebidas alcoólicas) ou ilegais (maconha, cocaína e tantas
outras). O caminho encontrado, em geral, ainda é o que termina nas

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casas de saúde.
O desconhecimento sobre o assunto, aliado ao sofrimento por que pas-
sam e vêem passar alguém tão próximo, levam a pessoa comum a imaginar
a internação em tais instituições como a solução ideal para recuperar a
sanidade mental daqueles a quem quer ajudar.
Por muito, muito tempo, não apenas pensamos assim, como agimos
exatamente dessa maneira. Grande engano.
Sabemos hoje, felizmente, que há outras alternativas que possibilitam a
readaptação, quando não a recuperação total do indivíduo e sua reinserção
na sociedade, sem que haja a necessidade de se trilhar os caminhos de
antigamente.
Grupos de auto-ajuda constituem hoje importante papel na recuperação
do indivíduo, auxiliando-o a entender e a buscar a lucidez, o equilíbrio
emocional, o autocontrole e, principalmente, como se manter afastado da
causa principal de seus males.
Os métodos utilizados por tais grupos são tão simples e práticos que,
a princípio, é difícil crer em sua eficácia. Entretanto, nem todos obtêm
os resultados desejados, já que vários são os fatores que impedem tais
conquistas.
Podemos, sem constrangimento, citar algumas situações que dificul-
tam ou até impedem a recuperação de pessoas, tais como a recusa
absoluta em aceitar e admitir sua doença, a idéia fixa de que é capaz de
se controlar diante daquilo que lhe causa os problemas que enfrenta,
velhos hábitos e o afastamento precoce das reuniões em grupo. Isto
torna o indivíduo, efetivamente, o ser estigmatizado que, com alguma
razão, chamamos de “louco”.
Por definição, a perda do controle emocional, ainda que temporária,
transforma o indivíduo em “louco” aos olhos da sociedade, pois, nesse
lapso de tempo, ele pode agir de forma tresloucada, tomando atitudes e
reagindo de forma desequilibrada mentalmente. Este comportamento pode
lhe causar sérias conseqüências e complicações, colocando em risco não
apenas sua segurança e integridade física, mas de todos que atravessam

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seu tortuoso caminho.


Há uma variedade substancial de causas para que um indivíduo che-
gue às raias da “loucura”. A ciência evolui e pesquisa a mente humana a
cada novo amanhecer. Portanto, não devemos desanimar diante do qua-
dro desolador da figura de um ser humano tomado pela “loucura”. Antes,
devemos crer na determinação dos pesquisadores e cientistas que cer-
tamente encontrarão alguma luz capaz de iluminar os obscuros cami-
nhos da mente humana.
O tema é simplesmente fascinante e, ao mesmo tempo misterioso, pois
podemos conduzi-lo de várias maneiras. Para alguns, a “loucura” é um
castigo de Deus. Para outros, é uma provação a ser suportada. Não faltam
aqueles que, incrédulos, só vêem os fatos segundo sua própria conveniên-
cia. Há, ainda, a ciência que busca, pesquisa, experimenta e desenvolve
novos modelos e métodos para encontrar a cura do mal.
Nosso desejo é tentar compreender uma determinada época que se
tornou um marco na reforma psiquiátrica do país. Por isso, vamos ao
tema principal deste estudo: Casa de Saúde Anchieta, de propriedade
particular, situada no litoral sul de São Paulo, na cidade de Santos.
Fundada em 1951, era o único hospital psiquiátrico da região e abrigava
toda a classe excluída e marginalizada pela sociedade da época. O tra-
tamento neste local era, no mínimo, espantoso, além de ser comum
encontrar pacientes sendo maltratados ou até mesmo à mercê da pró-
pria sorte, sem receber os tratamentos adequados.
Em 1989, a situação chegou ao extremo, com três mortes que ocorre-
ram dentro do hospital. No dia 3 de maio, aconteceu a intervenção do
Anchieta pela Prefeitura de Santos, sob o comando da prefeita Telma de
Souza, do Partido dos Trabalhadores (PT).
O processo da intervenção teve início com uma avaliação clínica de
todos os pacientes. Muitos estavam com ferimentos infeccionados e
também tinham outros problemas de saúde, conseqüência do modo como
eram mal cuidados. Fora isso, problemas nas instalações tornavam o
local ainda mais perturbador. Era possível se deparar com cadeados nas

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portas de acesso aos pátios. Normalmente, as enfermarias ficavam
trancadas. Existia até uma área de isolamento dos internos tidos como
perigosos, locais que pareciam prisões e que eram chamados de
“chiqueirinho”. Os pacientes eram obrigados a tomar banhos gelados,
pois faltavam chuveiros com água quente.
A instituição era chamada pela população de “Casa dos Horrores” por
vários motivos, como o caos da superlotação, o atendimento clínico precá-
rio, a utilização de eletrochoques como forma de tratamento, a falta de
controle nas medicações, entre outros graves problemas. Casos de abuso
de poder por parte dos médicos, que deveriam tratar desses pacientes,
são inúmeros, além de brigas e descaso por parte dos familiares. Era uma
verdadeira desorganização.
Com todos os problemas que começaram a fugir do controle e se
tornaram inaceitáveis, a administração municipal decidiu intervir com
o objetivo de resgatar a dignidade dos internos. Neste momento, os
pacientes passaram a receber cuidados com o objetivo de reintegrá-
los à sociedade.
A partir daí, foi formada uma comissão que contava com técnicos da
Secretaria Municipal de Saúde comandada pelo psiquiatra Roberto
Tykanori Kinoshita, representantes da OAB, entidades da sociedade
civil, a Comissão de Direitos Humanos e vários veículos de comunica-
ção da cidade. A realidade cruel do Anchieta se tornou de conheci-
mento geral.
Segundo trecho do livro Anchieta 15 anos, de Paulo Matos:

“Eram cinqüenta pessoas que tiveram a oportunidade de confe-


rir, naquela hora, o absurdo da situação que descrevemos, da-
queles seres. (...) A imprensa descreve o quadro encontrado:
homens e mulheres caminhando em círculos ou deitados pelo
chão. (...) A maioria não presta atenção e nem tem condições
de manter os olhos abertos, por culpa dos medicamentos
fortíssimos e eletrochoques”.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

A INSPIRAÇÃO PARA O ANCHIETA

O Programa de Saúde Mental de Santos foi baseado na experiência da


reforma psiquiátrica da cidade italiana de Trieste, coordenada pelo psiquia-
tra Franco Basaglia (1924-1980). O médico teve importante peso nas mo-
dificações ocorridas na política de saúde mental da Itália.
Basaglia mantinha um movimento que era conhecido como Psiquiatria
Democrática, que se preocupava com a humanização do tratamento pres-
tado aos doentes mentais, eliminando todas as formas de confinamento e
os métodos abusivos de clinicar.
Estudando os conceitos do filósofo francês Michel Foucalt (1926-1984),
Basaglia concordava com a idéia de que o manicômio era obsoleto, fruto do
iluminismo e do capitalismo.
O Serviço Psiquiátrico de Trieste foi reconhecido pela Organização Mun-
dial de Saúde (OMS) como a principal referência mundial para a reformulação
da assistência em saúde mental. E por fim, em 1978, foi aprovada na Itália
a lei 180 de Reforma Psiquiátrica, que também é conhecida como lei Basaglia.
Alguns profissionais brasileiros trouxeram as experiências de Trieste e
observaram ser plausível o tratamento dos “loucos” sem a exclusão social.

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“Por isso o sistema foi
À mais completa falência
Somando dez em fracasso
Zero em eficiência
Permitindo que nascesse
Uma nova consciência”
Manuel Monteiro
Literatura de Cordel

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

O INTERVENTOR

“É preciso levar a sério o que pequenas desavenças significam


para o paciente. Mas o ideal é que a internação passe a ser um
sofá amigo e não uma cama de hospital”

Roberto Tykanori Kinoshita, psiquiatra


Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta em 1989
Entrevista realizada em 19/9/2005

Convidado por David Capistrano, Secretário de Saúde de Santos na


época, Roberto Tykanori, com apenas 30 anos de idade, assumiu a defesa
da humanização do sistema de saúde mental da cidade. Baseado nas novas
técnicas terapêuticas desenvolvidas no Centro Psiquiátrico Regional de
Trieste, na Itália, onde passou um ano, Tykanori, deu início ao trabalho
conhecido como “A Intervenção do Anchieta”.
O psiquiatra foi para Itália quando estava no quinto ano da faculdade de
medicina, no início dos anos 80. Em Trieste, ingressou na condição de
voluntário da Saúde Mental, acompanhando de perto a reforma psiquiátrica
articulada pelo médico Franco Basaglia e aprendendo como lidar com o
problema que já havia se instalado por anos no Anchieta. “Tinha gente
machucada, com diarréia, infecções, pessoas sem braços de tanto ficarem
amarradas”, lembra Tykanori ao se referir ao Anchieta. Ele precisou come-
çar do zero: reorientar profissionais, treiná-los, criar condições para o
trabalho. “Nada se resolve na porrada”, explica Tykanori.

ARQUIVO DESORGANIZADO

Quando Tykanori chegou ao Anchieta havia muitos pacientes em condi-


ções de receber alta, mas isto não ocorria por que não existia o interesse
de reavaliação dos quadros clínicos de nenhum paciente por partes dos
profissionais que já trabalhavam no local.

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O arquivo do hospital estava entulhado de envelopes empoeirados com
as fichas dos pacientes. A maioria dessas fichas não esclarecia quase
nada da história dos internos. “Algumas pessoas foram internadas várias
vezes por motivos diferentes, e, no histórico, só constava o motivo da
primeira internação”. O paciente entrava no Anchieta e era rotulado com
algum tipo de distúrbio psicológico. Sempre que voltava ao hospital, con-
tinuava sendo tratado com base no mesmo diagnóstico que havia causa-
do a primeira entrada.
Tykanori procurou mudar essa situação. “Uma das nossas maiores preo-
cupações foi a de reconstruir a identidade, a história pessoal dos pacientes”.

A DOENÇA DA INTERNAÇÃO

Muitos dos pacientes haviam perdido totalmente os laços com a socie-


dade ou não eram mais aceitos por suas famílias. “Essas pessoas se torna-
ram parte do processo de cronificação da doença mental incentivado pela
estrutura convencional de tratamento”, relata Tykanori. As assistentes
sociais concentraram seu trabalho na tentativa de colocação profissional
desses pacientes. O processo foi lento e complicado, principalmente devi-
do à resistência inicial da sociedade em aceitar alguém que, durante algum
tempo, foi rotulado como doente mental. “Os trabalhos interno e externo
foram complementares e indissociáveis”, explica Tykanori.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

“A exclusão social,
A falta de meio antigo
A imposição das regras
Por quem não parece amigo
Eom vez de curar aumentam
As dimensões do castigo”

Manuel Monteiro
Literatura de Cordel

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EM SITUAÇÕES DIFÍCEIS, A MELHOR ATITUDE:
ESCUTAR E APRENDER

“Ninguém bate sem motivo, nem mesmo o louco. Se você apa-


nhar, pode ter certeza que lá no fundo você deu oportunidade
para que o motivo, mesmo que banal e sem sentido para mui-
tos. Para o louco houve um bom motivo!”

Fátima Michellet, Assistente Social


Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta de 1989 a 1990
Entrevista realizada em 22/8/2005

O COMEÇO

A experiência da intervenção foi inovadora para muita gente. Uma incrí-


vel lição de doação, competência e, acima de tudo, a descoberta de como
trabalhar com pessoas que estão em posição menos privilegiada. Com Fáti-
ma, não foi diferente. Na época, havia se formado há somente três anos e
tudo era muito novo e desafiador. “Nós fazíamos de tudo”, declara Fátima.
Os profissionais mais experientes cuidavam dos mais novos e ajudavam
muito para que aprendessem cada vez mais. “A gente podia dizer: eu não
sei!”. Quando ela não sabia como fazer alguma coisa, Tikanori dizia:
- Não sabe isso, mas sabe outra coisa, então vamos lá!
Isto era muito interessante. O assistente social precisa ter bastante
noção de cidadania, liberdade, respeito e direito. E isto, com certeza,
quem não tinha aprendeu.
Fátima já havia trabalhado na área da saúde, mas nunca tinha visto
nada parecido com o novo desafio que aceitou.
Ela diz que o começo foi muito difícil. Com somente 23 anos, muitas
vezes sentiu uma certa invasão corporal com o assédio dos pacientes, que
não estavam acostumados com pessoas de fora. Eles a puxavam pelos
braços. “Eles pegavam na gente o tempo todo, uns suplicavam pelas famí-

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

lias, outros imploravam atenção ou reclamavam. Sempre estavam pedindo


algo. Isso é enlouquecedor!”.
Fátima confessa que, muitas vezes, sentiu até medo dos gritos e atitu-
des de alguns pacientes que poderiam agredi-la. “Certa vez, sai correndo
em direção à porta e bati desesperadamente. Ela só abria por fora e eu
gritava para que Jesus (o apelido do guarda responsável pela porta) abris-
se logo aquela porta para que eu saísse e não voltasse nunca mais. Foi aí
que Tikanori me chamou pra conversar e tomar um café. Ele me acalmou e
fez com que eu ficasse”.

VOLTANDO PARA CASA

Pelo fato de haver muitas pessoas internadas no Anchieta por um longo


período sem contato com as famílias, foi instaurada uma comissão de alta.
Este era o serviço de reintegração do paciente com a família e a socie-
dade. Essa comissão de alta iniciou então alguns testes que funcionavam
da seguinte maneira: o paciente passava o final de semana em casa e, na
segunda-feira, todos se reuniam, família, paciente e profissionais, para
uma avaliação. Parece uma coisa muito fácil, porém contratempos existem
para que sejam criadas novas maneiras de agir. Sobre o caso de Ercílio, um
dos pacientes, vale a pena deixar a própria descrição de Fátima:

“Muitas famílias não iam até o Anchieta e a gente não tinha o


telefone e endereço de muitas. Então, tínhamos que ir até a
casa do paciente que, muitas vezes, nem lembrava onde era.
Num certo dia, uma colega foi com o Ercílio procurar a família,
que morava em São Vicente.
Entraram na perua a assistente social, o motorista e aquele
homem de cabelos compridos e chinelão no pé, o Ercílio. Quan-
do a perua do Anchieta parou em frente à casa dele, foi ape-
drejada pela população. O motorista voltou correndo e eles
retornaram para o hospital.

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As pessoas tinham pavor do Ercílio, porque se lembravam dele
em crise indo para o Anchieta. Nesta época, o Renato (Di Renzo)
começou a trabalhar teatro com o Ercílio que, por sua vez,
começou a se sentir com o poder, se sentia artista.
Um belo dia, o Renato nos convidou para ir à casa do Ercílio
novamente. Domingão, entramos na perua, só que desta vez
com um frango assado e um refrigerante. A partir desse almo-
ço, a relação de Ercílio com sua família começou a mudar. Hoje
em dia, ele mora com ela no mesmo lugar em São Vicente e
trabalha no Lixo Limpo (um programa de reciclagem do lixo)
para sustentar a casa. Hoje ele é o cidadão Ercílio”.

O processo de reintegração familiar, formulado pela comissão de alta,


iniciou um novo seguimento na parte da reintegração social, pois eram
cometidas atitudes nada convencionais para que o paciente pudesse vol-
tar ao lar. Certa vez, Fátima chegou a simular com um juiz uma ordem
judicial. Ela atendia uma família que tinha uma casa velha e em péssimas
condições de moradia. Até pés de feijão brotavam dentro da casa. Um
dos filhos dessa família denunciou o pai dele, que foi chamado para uma
audiência no Fórum.
No dia da audiência, Fátima foi ao Fórum e conversou com o juiz. Pediu
para que ele retirasse o processo e simulasse uma ordem para que a família
permanecesse unida e não perdesse a casa. O juiz “deferiu” a seguinte
sentença: o pai deveria organizar a casa dentro de um prazo e deixar que
as pessoas o ajudassem nesta organização.

A DOENÇA ALÉM DA LOUCURA

Havia no Anchieta um paciente bastante polêmico. Vamos chamá-lo de


João. Ele veio da Bahia e não tinha parentes na região. Começou a fazer
uso de bebidas alcoólicas e foi internado no Anchieta. Lá se deu inicio a
melhora de João. Psicologicamente, ele estava cada vez melhor, porém,

32
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

fisicamente, estava definhando.


“Um dia, João veio até mim e disse que iria embora para a Bahia, que
havia contraído HIV e que queria morrer na terra dele”, conta Fátima.
Fátima insistiu para que João ficasse e se tratasse, mas foi em vão. Ele
queria somente morrer junto à sua família.
João, mesmo doente, estava feliz em poder rever seus familiares e levou
para eles vários presentes, roupas e sapatos. Por falta conhecimento so-
bre a doença, seus parentes queimaram tudo o João havia levado. “Uma
cena triste que presenciei foi João voltando da Bahia completamente deto-
nado”, desabafa Fátima.
Foi dado início a uma grande batalha. Agora teriam que tratar de João.
“Ninguém queria interná-lo porque ele era portador de HIV e era louco”,
afirma Fátima.
Com a ajuda de muita gente, Fátima conseguiu tratamento para João,
que viveu ainda alguns anos, unindo os dois programas, o de AIDS e o de
saúde mental.

A INTERVENÇÃO COMO ESCOLA

Atualmente, Fátima, aos 46 anos, diz que aprendeu muito mais do


que uma profissão, que aprendeu a viver. Aprendeu a se relacionar me-
lhor com as pessoas e que tem uma ótima experiência de vida para
passar para seus alunos na Universidade Católica de Santos, onde leci-
ona. “Procuro contar a historia do Anchieta para os meus alunos logo no
primeiro ano em que estão na faculdade. Foi um momento muito intenso
e não pode ser esquecido”.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

CAPÍTULO 2
A influência da arte

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36
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Existem diversos tipos de tratamento para pessoas que sofrem de trans-


tornos mentais, mas muitos desses meios são grotescos e desumanos. Não
levam em consideração que se trata de indivíduos que merecem receber
toda a assistência necessária, com o máximo de respeito e dignidade.
Foi pensando em tudo isso que, em 1946, a psiquiatra Nise da Silveira
começou a usar a terapia ocupacional como um novo método de tratamen-
to para os doentes mentais. Empregando apenas atividades como pintura,
modelagem e xilogravura, fazia com que os pacientes consolidassem seus
sofrimentos, angústias e medos. A técnica resultava em uma suavização
dos problemas dos que estavam em tratamento. Os médicos conseguiam
melhores resultados, fazendo com que a terapêutica com remédios ga-
nhasse uma grande força.
Todos os tipos de arte (não apenas as pinturas, mas tudo que envolva a
criatividade e a sensibilidade do indivíduo) são de notável importância no
tratamento dos que sofrem de algum desvio mental. Nós mesmos podemos
notar o quanto é relaxante ouvir uma boa música, escrever um poema,
assistir a um bom programa de TV, apreciar, ou até mesmo arriscar fazer um
quadro ou uma escultura. Isso nos dá a impressão de estarmos sendo
úteis, importantes, nos permitindo expressar nossos desejos inconscientes
e libertar nossas mentes, que normalmente estão presas às coisas do
cotidiano. O novo procedimento, a Terapia Ocupacional, só foi reconhecido
de fato, como tratamento médico, na década de 60.
O fundamental para Nise era desvendar qual seria a importância das
imagens para os pacientes. E foi exatamente esse fato que a levou a se
dedicar e se aprofundar nos desenhos e símbolos feitos por cada indivíduo.
A psiquiatra não se conformava com os métodos de tratamento usuais
daquela época e resolveu ajudar da sua maneira, mostrando a importân-
cia da humanização, afeto e reconhecimento de capacidade de cada
paciente. Os trabalhos perpetuados pelos pacientes foram tantos e tão
bem recebidos pelo meio artístico que acabaram dando origem ao Museu
de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952, no Rio de Janeiro.
Todas as obras foram reconhecidas e participaram de várias exposições

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pelo Brasil e no exterior.
Vale ressaltar que o aspecto mais importante era, sem dúvidas, o lado
científico do acervo, já que todas as obras expressavam somente imagens
do inconsciente de pacientes que, em sua maioria, sofriam de esquizofrenia.
O museu tem hoje mais de 350 mil obras e constitui um dos maiores acer-
vos do gênero no mundo.
Nise morreu em 1999, mas deixou sua luta e seu intenso trabalho de
dedicação aos doentes mentais, o que hoje serve de inspiração para todos
aqueles que se interessam por causas humanitárias, justas e nobres. Seu
trabalho fica na história da reforma psiquiátrica do País e será sempre uma
referência na saúde mental.

JÁ NO ANCHIETA...

A Associação Projeto TamTam, desenvolvida por Renato Di Renzo, teve


início no Hospital Anchieta, no ano de 1989, época da intervenção. O
trabalho, realizado com base no conceito artístico do ser humano, visava
gerar a felicidade e a alegria mental, contribuindo assim para o aumento da
qualidade de vida e de saúde mental de toda uma população. Começou
com aulas de teatro para os internos do hospital e logo se estendeu para a
pintura, música e dança.
Quando chegou ao Anchieta, Renato se espantou com a quantidade de
pacientes isolados do mundo e resolveu se dedicar a mudar essa situação.
A partir daí, a rotina do hospital começou a mudar.
O início do trabalho consistia em ganhar a confiança dos pacientes para
que eles mesmos pudessem identificar suas próprias vontades e desejos.
Começaram a produzir o jornal TamTam Urgente, que tinha oito páginas
sobre o hospital. Era uma produção dos ex-internos. Na área da pintura,
faziam painéis e coloriam as paredes das alas, o que possibilitava uma real
reabilitação e relação entre os internos.
Criaram uma grife, a TamTam Line, pintando a mão camisetas que eram
cobiçadas por toda população da cidade. Houve também a TV TamTam,

38
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

uma produção de vídeos com o cotidiano do Anchieta, que chegou até a


ser premiada em um concurso de vídeos de Santo André. Apenas o
primeiro contou com a colaboração de uma produtora. As outras grava-
ções já foram feitas exclusivamente pelos internos e ex-internos. Então,
surgiu o principal, a Rádio TamTam, que a princípio funcionava apenas
dentro do Anchieta. Mas cresceu tanto que acabou se expandindo e, no
dia 5 de novembro de 1990, deixou de ser interna e passou a ser trans-
mitida pela AM.
E aqui reproduzimos uma abertura do programa da Rádio TamTam,
publicada no encarte da edição nº 257 do jornal D.O. Urgente de 3 de
maio de 1990:

“A Rádio vem aí!


E agora, no ar... Rádio TamTam!
A ousadia era tanta que se já não bastasse a TV TamTam e
surge então... TamTamratam, Rádio TamTam. A pioneira a trans-
mitir nas ondas malucas de um hospital psiquiátrico, para o
mundo dos sãos e também para quem não é.
A programação, como não poderia deixar de ser, será bem vari-
ada, isso para não fugir à regra. Os equipamentos já estão
encaixotados em algum “canto” do hospital. Os locutores afi-
nando suas gargantas. Logo surgirão aulas de dicção, portugu-
ês, mixagem, aulas para disque jóqueis etc etc.
Não se surpreendam se um dia, ao ligarem a rádio de seus
carros, tiverem o grande prazer de viajar ao lado da agradável
companhia de um paciente do Anchieta”.

A Rádio era feita de forma simples e bem coloquial, produzida com a


intenção de levar a sociedade para dentro da realidade do Anchieta. E
nada melhor do que um veículo de comunicação para expressar a nova
realidade que começava a fazer parte do dia-a-dia das pessoas.
Foi assim, seguindo o exemplo dos projetos realizados por Renato, que

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começaram a surgir em várias partes do Brasil e até mesmo fora do País
organizações como Rádio e TV Pinel (Rio de Janeiro), Grupo Biruta (São
Vicente), Projeto e Rádio Lokomotiva (Natal) e Rádio La Colifata (Buenos
Aires), entre outros.
Sem sede fixa desde 1997, a principal ação da ONG TamTam vem acon-
tecendo no Espaço Cultural Café Teatro Rolidei, um multiplicador e mantenedor
das atuais ações da ONG. Desta forma, mantém acesa a discussão sobre a
exclusão/inclusão social e seus estigmas e rótulos, sob a ótica da arte e de
sua ação junto à sociedade contemporânea. Não como terapia, mas sim
como qualidade de vida e opção ética e estética na construção de uma
nova ordem e na desconstrução dos saberes absolutos e indissolúveis.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

“Quem ‘sabe criar’ e quer


é estimulado a isso
mas cria com liberdade
sem limite ou compromisso
porque as regras embaçam
da arte o brilho e viço”
Manuel Monteiro
Literatura de Cordel

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A NOVELA DA RAZÃO

“Quando você está com dor de barriga e vai ao médico, ele não
manda tirar a barriga. Ele manda tirar a dor. Com a loucura, é a
mesma coisa. Você não tira a loucura e sim a dor. Se arrancar-
mos a loucura, perderemos sonhos, utopias, a vontade de viver!”

Renato Di Renzo, Arte-Educador e pós-graduado em Pedagogia


Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta de 1989 a 1990
Entrevista realizada em 17/8/2005

O DESTINO

Convidado pela psiquiatra Suzana Robortella para trabalhar no Anchieta,


Renato ficou empolgado com a idéia. Nascido na cidade de Santos, ele
teve uma experiência um tanto peculiar com o hospital.
Quando criança, Renato morava na rua ao lado do Anchieta e costuma-
va ficar do lado de fora dos enormes muros do hospital ouvindo os gritos
dos pacientes. Seus amigos já previam o destino da criança que mais tarde
se tornaria um dos grandes contribuintes para a melhoria da saúde mental
do País. Em tom de brincadeira, a garotada sempre dizia para Renato:
- Você ainda vai acabar parando no Anchieta!

A ARTE COMO VEÍCULO DO DESEJO À VIDA

O modelo de reforma psiquiátrica era muito preso à cidade de Trieste, na


Itália, onde este trabalho foi iniciado. No Brasil, ainda faltava alguma coisa.
O arranque deveria ser dado, mas precisava ser de forma inovadora. Era
preciso criar uma nova cultura.
Para Renato Di Renzo, fundador do projeto Tam-Tam, o próprio projeto
não passava de uma loucura dentro da loucura. “Tirar pessoas que estão
há 18 anos internadas, ou até mais, e recolocá-las na sociedade, é coisa

42
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

de doido! Estávamos quebrando uma cultura já fixada”, lembra.


A diferença do que foi feito em Santos para o que era feito no restante
do mundo foi uma só: o meio com que a arte foi usada. “Oficinas terapêu-
ticas existem em todos os lugares. Na Inglaterra, por exemplo, há oficinas
e comunidades terapêuticas. Trazer artistas para desenvolver um trabalho
todo mundo faz. Desde que eu era moleque e ia lá, no Juquery, porque
estudava em São Paulo, já existia gente ensinando os doidos a pintar. O
grande boom é que encontramos uma nova maneira. Fizemos diferente:
colocamos a arte no processo de vida dessas pessoas. Somente aprender
a pintar é insignificante. É preciso tirar disso um novo significado para a
vida da pessoa”.
O movimento artístico não consiste em transformar um paciente em
artista para que ele deixe de ser louco e sim para que ele comece a se
inovar, com vontade de fazer algo. O importante é recuperar o desejo
dessas pessoas. Todo o resto vem junto. “Quando se recupera o desejo,
também se recupera o desejo de uma melhor comida, melhor moradia,
melhor família”.

A PRIMEIRA CENA

Um dos pacientes perguntou para Renato o que ele tinha ido fazer lá.
Renato respondeu:
- Teatro!
“Ele ficou me olhando com uma cara de quem não tinha entendido.
Foi aí que olhei no pátio e vi que tinha uma TV. Então, eu disse: ‘vim
fazer novela!’”.
A idéia de novela foi entendida imediatamente.
Esse mesmo paciente disse que tinha vontade de fazer o papel do Papa.
Outro paciente queria ser um pirata.
Pronto! Já estava montada a peça. O pirata ia para o Vaticano roubar
todo o dinheiro do Papa e fugir de barco.
Enquanto uns pacientes montavam um roteiro improvisado, outros as-

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sistiam, surpresos. “Perguntei aos outros se eles haviam gostado do
que eu tinha ido fazer lá. Entusiasmados, me responderam que sim”,
lembra Renato.

O ENCONTRO

Renato disse aos pacientes que poderiam fazer novela juntos e lhes
propôs um encontro. Marcaram, então, um dia, hora e local para que esse
encontro acontecesse. Todos que gostariam de participar da cena deveri-
am estar no pátio perto de um dos muros. “Foi a coisa mais engraçada do
mundo. Quando cheguei lá, os enfermeiros estavam todos intrigados por-
que tinham vários pacientes encostados no muro desde cedo”.
Quando o artista disse aos enfermeiros que os pacientes estavam lá
porque ele havia marcado um encontro com eles, os enfermeiros gargalha-
ram. Não acreditavam que loucos pudessem respeitar horários e compro-
missos sem que lhes fosse imposto.
“Quando os vi encostados no muro, tive a certeza de que ia dar certo!”,
conta Renato. Os acordos eram respeitados porque os pacientes eram,
antes de tudo, consultados sobre eles. Estavam começando a se sentir
importantes, a perceber que não eram bichos e sim seres humanos.
Ainda havia no Anchieta o problema da restrição em juntar homens e
mulheres. Os técnicos do local queriam evitar a mistura por receio de
envolvimentos emocionais e sexuais. “Eu ia na ala feminina e combinava com
as meninas de ir para a ala masculina para desenvolver um trabalho. Quem
não tivesse a fim de trabalhar não precisava ir”, conta Renato. Desta manei-
ra, conseguiu, para a surpresa de muitos, integrar os pacientes homens e as
pacientes mulheres sem que ocorresse qualquer tipo de problema.

CONTRATO VERBAL

Renato ressalta que o importante para que tudo corresse bem era sem-
pre fazer as coisas marcadas e bem combinadas com os pacientes.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Certa vez, Renato chamou alguns pacientes e avisou:


- Preciso sair para buscar umas coisas. Vou trabalhar. Quem quer
trabalhar comigo?
Quatro pacientes decidiram acompanhá-lo. No caminho, um dos
pacientes perguntou:
- Será que a gente pode dar uma paradinha na praia pra fumar um baseado?
E Renato respondeu:
- Foi isso que nós combinamos?
Assim, o paciente não insistiu. “Procuro trabalhar assim. É muito impor-
tante manter uma linha de respeito, chamar o paciente pelo nome, ouvir o
que ele diz. A gente pode fazer tudo, brincar de tudo, desde que sejamos
convidados a entrar no metro quadrado de cada um”, explica Renato.

INFORMATIVO TAMTAM

O Jornal TamTam começou pela necessidade que havia de comunicação


entre os pacientes, médicos e técnicos. A comunicação interna em geral
precisava de alguma coisa nova que, além de informar, trouxesse inspira-
ção para os pacientes.
A elaboração das pautas e dos textos do jornal era feita por Renato,
juntamente com os internos.
As matérias falavam sobre os acontecimentos do hospital. “Teve um dia em
que um açougue doou vários quilos de filé mingnon para o hospital e tivemos
um almoço maravilhoso. No dia seguinte, o Ministério da Justiça mandou retirar
a carne que havia sobrado. Foi assim que saiu a matéria: O boi deu bode”.
Também era publicada no jornal uma agenda sobre os eventos do local.
Quando o NAPS 1 (Núcleo de Apoio Psicossocial) foi inaugurado, o pes-
soal do TamTam pintou todas as paredes do local. Foi quando saiu a edição
número zero do jornal, com as ilustrações que enfeitavam, além das pare-
des do NAPS, as páginas do informativo.
Com o passar das edições, o jornal foi ficando cada vez melhor. “Inven-
tamos colagens e várias outras formas de aprimoramento”.

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A GRANDE FESTA

Antes da intervenção, ninguém se lembrava da rua São Paulo, onde


se localizava o Anchieta. Muitos nem sabiam que ela existia. Ninguém
poderia imaginar que, com a intervenção, se tornaria um local onde as
pessoas tinham vontade de passar, de ver e conhecer. Renato se em-
polga ao relembrar a festa feita em comemoração a um ano de inter-
venção. “Nós abrimos as portas do hospital. Algumas pessoas que fazi-
am parte do TamTam e eu pintamos o prédio inteiro com várias cores,
colocamos plantas na rua, trouxemos a banda do colégio Ateneu San-
tista, que veio desfilando pelo Canal 2 até entrar na rua São Paulo.
Dentro do hospital, a festa teve bolos, preparados com ingredientes
cedidos por uma fábrica de farinha. Fizemos churrasco e uma série de
coisas. Convidamos todos os parentes dos pacientes internados. Aqueles
que já estavam com a família também foram chamados. Foi uma bela
festa, com queima de fogos e tudo! O mais interessante é que nenhum
paciente aproveitou para fugir”.
A festa foi um grande marco na história da saúde mental santista. Havia
cartazes nas ruas. A mobilização dos vizinhos foi enorme. Eles ajudaram a
pintar o prédio durante a noite, colocavam seus carros em frente ao local
com os faróis acessos para iluminar o local, levavam cafezinhos e sucos
para quem estava trabalhando na reforma, inclusive para os pacientes, que
colaboravam para que tudo ficasse muito bom. “Imagina um bando de
loucos, que tomam remédios para dormir, acordados durante a madrugada
pintando a fachada do prédio!”.

LOUCURA À SOLTA

Para Renato Di Renzo, o primeiro recurso usado para a


desinstitucionalização do hospital foi o de “imitar” a Itália. Mas o que deu
certo mesmo foi criar um novo caos dentro do caos já existente. Foi
quebrar a barreira do “não”, parar com o “não pode isso” ou “não pode

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

aquilo”. Hoje, a loucura está solta em todos os lugares. Existem muitos


tipos de depressões e, com isso, a indústria farmacêutica também cres-
ceu bastante. O motivo é que agora existe remédio específico para cada
tipo de loucura.
“Muitos têm síndrome do pânico. A gente vê a garotada tomando medi-
camento como se fosse chiclete”, afirma Renato. “Você pode ter uma de-
pressão chamada doença do afeto, que é uma falta de equilíbrio para
distribuir seu afeto”. Então, para o artista, a loucura está em tudo e em
todos. Qualquer motivo simples pode desencadear uma síndrome.
O próprio sistema educacional é uma grande loucura. “A escola que
nós temos hoje é uma escola que castra as pessoas. Você pega uma
criança na melhor fase no sentido de evolução, quando ela tem toda
energia do mundo, tudo funciona, não tem dor na cervical, não tem dor
no braço, não tem nada, está tudo fresquinho, e põe trancada numa
sala de aula, por cinco ou seis horas, às vezes em período integral.
Quando a criança chega em casa fica mais umas oito horas em frente a
uma televisão ou um computador. Colocam na escola um monte de psi-
cólogos. Qualquer coisa que a criança faça é desvio de comportamento
e, na verdade, nada mais é do que uma manifestação de criança. Isto é
castrar, é amordaçar a loucura”.

A LOUCURA COMO FUGA

Renato explica que afetos e carinhos são bons para o indivíduo em


qualquer situação. Ser lembrado, independente da maneira que for, é o
mais importante. Tanto faz para uma criança ser colocada de castigo ou
ser elogiada. A professora se lembrou dela: ou porque é boa ou má. Isto
também acontece com as crianças de rua. “As pessoas têm medo do mole-
que de rua, mas ele sabe que, de alguma maneira, desperta a atenção de
muitos, seja por medo, desconfiança ou até mesmo dó. Ele é lembrado”.
Também é costumeiro ouvir a frase:
- Coitadinho do louco...

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Mas, se pensarmos de outra maneira, poderemos entender um pouco do
motivo pelo qual um indivíduo enlouquece. “Eu não tenho coisa alguma, mas
passo a ter a partir do momento em que enlouqueço, começo a ter assistên-
cia, a colocar medo, a ter poder, a ser classificado. Como louco, todos têm
uma classificação na sociedade. Agora sou o louco esquizofrênico no quarto
número quatro. Sou uma porcentagem! A pessoa consegue uma requalificação
através da dor”.
A padronização das pessoas é feita porque é muito mais fácil para classificá-
las. “Ninguém vai para um baile para dançar com o mais feio. A gente apren-
deu que existe um padrão e temos que seguir. Hoje, o homem tem que tirar
os cabelos do peito. Teve uma época que pêlo no peito era sinal de virilida-
de. As mulheres adoravam”.

CAFÉ TEATRO ROLIDEI

Atualmente, a ONG TamTam não tem sede própria. Seu único


mantenedor é o Café Rolidei. Trata-se de um espaço de cultura, onde
cerca de 500 pessoas, por final de semana, se reúnem para dançar e
assistir a peças elaboradas pelo grupo teatral Orgone. O Café fica den-
tro do Teatro Municipal de Santos, em um cantinho bem escondido.
“Vários empresários olharam esse lugar e disseram que era um lixo, que
nada poderia ser feito. Então eu disse: ‘me dá que eu quero!’”. Renato
esclarece que a primeira tentativa desse tipo de bar foi feita na época
em que o ex-prefeito de Santos, David Capistrano ainda era vivo. Mas o
bar que se chamava ZAZARAZÁ não durou muito, apenas quatro meses.
O lugar era muito sofisticado e faltava uma pitadinha de loucura.
Agora o Rolidei é conhecido por muitos em Santos e até mesmo nas
cidades vizinhas, o que traz ótimas perspectivas para a ONG TamTam,
já que os lucros do local são revertidos para a entidade. É interessan-
te ressaltar que os atores são os garçons, faxineiros, divulgadores.
Eles fazem todos os tipos de serviços voluntariamente e são dirigidos
por Renato.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

COMO RENATO DI RENZO ESTÁ HOJE?

“O Renato continua do mesmo jeito que era naquela época do An-


chieta, só que com menos cabelos. Continuo trabalhando muito”. É
assim que Renato descreve sua vida atual. Além da ONG TamTam, ele
dirige a escola de teatro da Secult.
Aos 52 anos, ele diz: “poucas pessoas da minha idade podem dizer
que fizeram coisas que as deixasse bem. Eu posso”.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

CAPÍTULO 3
Os NAPS

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Era necessário dar continuidade aos cuidados dos doentes mentais, ao
mesmo tempo em que se buscava encontrar algum meio de melhorar e modifi-
car o modelo até então existente. Foi assim que teve início a criação de uma
nova proposta: os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS), que cuidam da
assistência aos pacientes, e os Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), que,
além dos pacientes, cuidam também de suas famílias e de toda a sociedade.
Existe ainda o Selab, um Serviço de Abrigo, para os pacientes com casos
crônicos . Estes pacientes são muito mais graves do que os dos NAPS.
O principal objetivo era inovar no tratamento, que não seria mais de internação
e exclusão, mas sim de uma readaptação com a sociedade, pois havia ficado
evidente a ineficiência do antigo modo de tratamento.
Os CAPS e NAPS são baseados no trabalho em equipes formadas por
profissionais de diversas áreas dentro da saúde, assim como psiquiatras,
psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, musicoterapeutas, auxiliares de
Enfermagem, visitadores domiciliares e monitores de oficinas. As responsabi-
lidades são distribuídas igualmente e cada um exerce um papel importante no
desenvolvimento individual dos pacientes.
A organização deste novo meio de tratamento também contou com
a comunidade e, principalmente, com a família dos que necessitam
desses serviços.
Hoje é possível encontrar unidades dos CAPS e NAPS beneficiando vári-
os estados e municípios do Brasil, como São Paulo, Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Ceará, Bahia, Paraná, Paraíba, Goiás e Pernambuco.

NA CIDADE DE SANTOS

O primeiro NAPS a ser inaugurado foi o da Zona Noroeste em 1989. O


tratamento era destinado aos internos da Casa de Saúde Anchieta. No início do
programa, coube aos assistentes sociais uma pesquisa intensa e aprofundada
tanto sobre a situação dos pacientes quanto de seus familiares. Este núcleo
também contava com acompanhamento psiquiátrico com o propósito de ir libe-
rando gradualmente os doentes, para que estes continuassem o tratamento

52
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

fora do estado de internação.


Outro benefício oferecido pelo NAPS era a preocupação em proporcionar
procedimentos terapêuticos apropriados para conter as crises sofridas pelos
pacientes, oferecendo abrigos temporários aos que não fossem capazes de
ficar em suas casas.
Depois da unidade da Zona Noroeste, foram organizados mais quatro núcleos
que ficam nos bairros Encruzilhada, Boqueirão, Vila Mathias e Campo Grande.
Eles oferecem os mesmos recursos.
As unidades oferecem diversas atividades artísticas que visam possibilitar e
incentivar o lado criativo e produtor. Há a possibilidade do paciente passar o dia
todo no núcleo e retornar para casa apenas para dormir, ou o inverso também.
Não podemos deixar de mencionar que essas pessoas têm necessidades espe-
ciais e diferenciadas, o que torna o trabalho mais intenso e personalizado.
Vale deixar registrado a Lei 10.216, sancionada em 6 de abril de 2001,
pelo deputado Paulo Delgado (PT), cuja maior importância é a descrição dos
direitos concebidos às pessoas que sofrem de transtornos mentais.

“- Proíbe a internação em instituições com características asi-


lares (hospícios e manicômios, por exemplo).
- Determina a necessidade de autorização médica para
internação.
- Exige a notificação compulsória do Ministério Público, no pra-
zo de 72 horas, em caso de internamento contra a vontade
expressa do paciente.
- Diagnóstico e terapia passam a depender de autorização do
paciente ou de seu responsável legal”.

E O ANCHIETA?

Aos poucos, os pacientes da Casa de Saúde Anchieta foram sendo encami-


nhados para os NAPS e Selab. O prédio onde funcionava o hospital ainda existe.
Hoje, inúmeras famílias moram no local, que foi transformado em cortiço.

53
“Quem quiser que seu doente
volte logo ao gozo da razão
pode aplicar-lhe na veia
amor e compreensão
que a resposta será
breve recuperação”
Manuel Monteiro
Literatura de Cordel

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

UM NOVO CONCEITO EM PISIQUIATRIA

“É possível ficar louco, o que não dá é para ficar na solidão!”

Suzana Robortella, Médica Psiquiatra


Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta em 1989
Trabalhou no NAPS de 1989 a 1992
Entrevista realizada em 7/9/2005

MEMÓRIAS

Os maus-tratos que os pacientes do Anchieta sofriam não marcaram


somente a vida deles. Também deixaram muitas “marcas” em quem passou
pelo local para intervir na selvageria indiscriminada.
Este é o caso de Suzana, hoje com 29 anos de psiquiatria, que lembra
fatos mais do que emocionantes do ano de 1989, quando trabalhou na
desativação do Anchieta e na criação do primeiro Núcleo de Apoio Psicos-
social (NAPS).
O primeiro contato de Suzana com o hospital psiquiátrico havia sido
anos antes da intervenção, como estagiária, quando estava no quarto ano
da faculdade de medicina. É interessante ressaltar que maus-tratos não
prejudicam somente quem os recebe, como também quem assiste a eles.
Um grande exemplo disso é que Suzana apagou da mente a fase em que foi
estagiária, guardando somente uma lembrança: mulheres colocadas contra
uma parede, todas nuas, com os cabelos raspados, enquanto uma funcio-
nária do local dava banho nelas com uma mangueira de água fria. “A ima-
gem era semelhante à imagem de um campo de concentração”, explica.

O CONVITE

Suzana não trabalhava no Anchieta no início da intervenção, mas se


lembra com exatidão da data em que voltou a pisar no local. Um mês após

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o começo da desmontagem do hospital, no dia 21 de junho de 1989, Suza-
na deu o primeiro passo para uma nova experiência profissional, que tam-
bém trouxe mudanças em sua vida pessoal.
Antes, ela trabalhava na psiquiatria do Hospital Guilherme Álvaro, exis-
tente até os dias atuais. Como não havia certeza se o proprietário do
Anchieta conseguiria reverter a intervenção municipal na justiça, Suzana
não sabia se seria de fato contratada pela Prefeitura. Corria o risco de ficar
sem emprego.
Porém, ao receber a proposta para trabalhar na intervenção, Suzana se
viu com uma grande oportunidade nas mãos.

DESAFIANDO A FORMAÇÃO ACADÊMICA

Na época com 13 anos de profissão, ela estava acostumada ao concei-


to aprendido na faculdade: as pessoas com problemas mentais tinham que
ficar trancafiadas e, muitas vezes, amarradas. Como viveu o período da
ditadura, a idéia de abrir as portas dos hospitais, criar uma comunidade
terapêutica e disponibilizar novos serviços era uma coisa totalmente dife-
rente da que estava acostumada.
Suzana chegou no Anchieta no dia de uma festa junina. Foi quando
conheceu o psiquiatra italiano Franco Rotelli, que vinha sempre dar pales-
tras e contar suas experiências na cidade de Trieste, na Itália. “Tudo era
muito interessante. Poder sair às ruas e fazer passeata no dia da luta
antimanicomial, ver um novo movimento libertário e, acima de tudo, estar
junto com os pacientes”, diz Suzana.

PACIENTE TAMBÉM ENSINA

A convivência com os pacientes foi um grande marco na vida de Suza-


na. Foi a partir daí que seus conceitos começaram a mudar. “Eles me
perguntavam: ‘doutora, já tomou sua medicação hoje?’. Me confundiam
com eles. Esta proximidade me ensinou muito do que eu sei. Talvez mais do

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

que a faculdade tenha me ensinado. Foi esse aprendizado que eu tive


com os pacientes no dia-a-dia. Aprendendo a respeitar, ouvir, entender
os motivos deles”.
Às vezes, Suzana achava que era necessária a mudança de medica-
ção, mas, se o próprio paciente não concordava, então ela voltava
atrás ou esperava um tempo para que ele entendesse e se acostumasse
com a mudança.
Esta aproximação era muito importante para o relacionamento médico-
paciente. Fazia com que eles confiassem uns nos outros. O tratamento
poderia, assim, seguir com mais tranqüilidade. Melhores resultados eram
obtidos. “Ao invés do doutor que é o dono da verdade, que sabe o que é
melhor para o outro, eu consegui encontrar o lugar de quem está junto,
porque é o que realmente funciona”.
Suzana diz que aprendeu muito e que todos os profissionais envolvidos
com a intervenção tiveram ganhos na vida pessoal. As relações se estrei-
taram, muitas pessoas se conheceram, houve casamentos e nasceram
crianças, estas chamadas de “filhos da intervenção”. Para a médica, a
explicação deste acontecimento é que todo esse processo foi muito
enriquecedor. As pessoas estavam mais abertas e sinceras, o que fez com
que ocorressem muitas possibilidades afetivas.

AS DIFICULDADES

O fato de existir uma batalha jurídica era um dos maiores obstáculos ao


sucesso da nova proposta terapêutica. Por três vezes, a justiça decretou
o final da intervenção. “A gente tinha que sair do hospital, voltavam os
antigos administradores, voltava tudo ao que era. Havia nisso um sofrimen-
to muito grande, por parte dos pacientes e da gente, porque não consegu-
íamos colocar o trabalho para funcionar”, conta a psiquiatra.
A notificação da terceira decisão judicial que ordenava a saída dos
interventores, por algum motivo, não chegou às mãos do responsável.
Houve uma comoção geral por parte da comunidade, pacientes e profissio-

57
nais em geral. Como o comunicado oficial não foi feito, ninguém saiu do
hospital. “A gente achava que não deveria sair para não colocar em risco a
vida dos pacientes, o projeto que estava se desenvolvendo, porque a
gente acreditava muito que valia a pena”.
As pessoas iam se revezando, passavam a noite junto aos pacientes,
tudo para não correr o risco de não poder continuar o trabalho. “A gente
ficava lá, mas também havia voluntários, gente de todos os lugares, sindi-
catos, igrejas, estudantes e vizinhos, ao invés das pessoas quererem sair
de lá, todo mundo ia entrando!”.
Suzana conta que o papel da imprensa no caso foi muito importante. As
emissoras de TV exibiam em sua programação o drama do Anchieta, os
jornais publicavam todo o processo da intervenção, fazendo com que hou-
vesse uma comoção geral e apoio em nível nacional, o que dificultava o
decreto do final da intervenção. “Acho que o apoio da imprensa foi deter-
minante para que as coisas pudessem continuar”.
Enquanto essa notificação não era feita oficialmente, foi tramitando
outro processo paralelo em instância superior da Justiça, que deferiu a
intervenção de uma vez por todas.

ZONA NOROESTE

O Núcleo de Apoio Psicossocial 1 (NAPS 1) foi montado em cima de um


posto de saúde na Zona Noroeste. O preconceito por parte as pessoas
que trabalhavam nesse posto de saúde era muito grande. “Me lembro de
uma faxineira que não queria limpar os colchões, para que os nossos
pacientes dormissem. Ela dizia que limpar colchão de louco a faria pegar a
loucura”, diz Suzana.
Fazer com que a comunidade da Zona Noroeste aceitasse seus doentes
de volta não foi uma tarefa fácil. “Ninguém mais os conhecia”.
Suzana fez jus à expressão “dar um jeitinho brasileiro”. O marido dela
possuía um Fusca. Então, ele guiava o seu veículo para alguma praça ou
rua e exibia o vídeo que tinha sido feito na intervenção. “Ele parava em

58
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

frente às igrejas, praças, qualquer lugar que tivesse gente. As pessoas


assistiam e a gente promovia um debate sobre o assunto. Era incrível a
reação e a tristeza das pessoas”, relembra Suzana.
Durante bastante tempo, também foram realizadas no NAPS reuniões,
festas e bailes. Os moradores da área sempre estiveram presentes. “A
Zona Noroeste era muito carente de atividades de lazer e a gente propor-
cionava isso para a comunidade”, explica. Como a comunidade ia ao NAPS
para ter esse momento de lazer, segundo Suzana, era inevitável o contato
com os loucos. Aos poucos, as pessoas foram aceitando os novos vizinhos.
Mesmo com todas as dificuldades, as coisas estavam acontecendo bem.
A Prefeitura estava ao lado dos interventores, o que fez com que os paci-
entes pudessem freqüentar as escolas públicas, trabalhar e se integrar à
sociedade novamente. “A gente teve que tecer de novo o tecido da vida
social das pessoas. Estava tudo esgarçado”.

RELATOS DE AJUDA

Suzana diz que os pacientes a ajudavam bastante no tratamento de


outros pacientes. A própria médica nos conta como:

“A primeira experiência marcante que eu tive no NAPS foi com


uma jovem paciente.
Ela estava grávida e não podia tomar medicação. E, para piorar,
tinha um problema cardíaco.
Essa paciente estava muito acelerada, andava pelo corredor de
um lado para o outro. No corredor tinha umas pinturas que
alguns pacientes fizeram com o Renato Di Renzo, criador do
projeto TamTam. Na primeira fase do TamTam, os desenhos eram
todos escuros. Havia várias cores, vermelho, azul preto, mas
todas muito fortes.
A paciente grávida cismou que o desenho da parede era um
demônio e isso fazia com que ela ficasse mais agitada. Ela

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esmurrava o demônio, ficava muito brava.
A gente tinha que ficar andando com ela para frente e para
trás, sem saber o que fazer. Ela descia as escadas, ia para o
posto de saúde, e lá estavam pessoas da comunidade, mulhe-
res grávidas, mães com bebês, pessoas que estavam fazendo
algum tratamento. Tínhamos medo de que ela fizesse alguma
coisa com essas pessoas.
Eu não tinha uma equipe de profissionais grande, ninguém
queria trabalhar lá. Eu cheguei a ser uma médica para 300
pacientes. Não tinha muita gente para ajudar nesses casos.
Um outro paciente do NAPS ficou muito preocupado e deu
uma sugestão:
- Vamos pegar um lençol e cobrir o desenho.
O paciente mesmo foi e cobriu a parede. Conversou com a
paciente grávida, dizendo que o demônio tinha ido embora. A
partir daí, ela começou a se aquietar.
Outro acontecimento em que precisei da ajuda de paciente foi
durante um plantão.
Eram umas oito horas, o pessoal da noite não tinha chegado e o
do dia tinha ido embora. Eu estava sozinha com os pacientes.
Já estava chegando a hora de servir o jantar. Enquanto eu
estava resolvendo o jantar, tinha uma paciente em crise e che-
gou uma outra no posto de saúde quebrando tudo. Ela entrou
no consultório dentário e começou a quebrar todos os vidrinhos,
os ferrinhos, as cadeiras.
Eu, lá de cima, ouvia a quebradeira lá embaixo. Tinha que resol-
ver as coisas e estava com a paciente em crise junto de mim.
Me lembro que ela dizia:
- Estou mal, estou em crise.
E eu disse para ela:
- Olha, tem alguém lá em baixo quebrando tudo, e essa pessoa
está pior do que você. Então, você não quer descer comigo pra

60
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

ver o que está acontecendo?


Descemos, a paciente e eu. E combinei com ela:
- Como você está melhor do que ela, vai lá e a segura, pois
amanhã a gente vai ter que dizer para a diretora por que o
consultório está quebrado. Vou levar uma bronca. A gente não
pode deixar ela continuar quebrando tudo!
E nós fizemos isso. Foi uma doida em crise que me ajudou a tirar
outra doida em crise do consultório dentário”.

Este relato mostra como é possível o médico fazer parcerias


com os doentes. “Quando a gente pede ajuda e eles percebem
que a gente está do lado deles e que eles são úteis, são muito
leais e fiéis. Eles ajudam para valer”. Suzana diz que muitos de
seus pacientes viraram seus amigos.

COMO ESTÁ SUZANA HOJE?

Aos 52 anos, Suzana fica bastante feliz em falar das suas lembranças da
intervenção. Atualmente, coordena o Centro de Apoio Psicossocial (CAPS)
de Diadema, em São Paulo.

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“Hoje os especialistas
Já têm plena conciência
Que os distúrbios mentais
Poderão ser consequência
Do estresse progressivo
Do pavor da violência”

Manuel Monteiro
Literatura de Cordel

62
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

RESGATANDO DIREITOS PARA A LIBERDADE RACIONAL

“É necessário transformar as relações que existem entre as


pessoas com a experiência do sofrimento psíquico e suas redes
sociais, para que não pareça que só o louco é o problema,
quando a sociedade também está neste contexto!”

Maria Fernanda de Silvio Nicácio, Terapeuta Ocupacional


Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta em 1989
Trabalhou no NAPS I de 1989 a 1996
Entrevista realizada em 15/8/2005

VINDO PARA SANTOS

Na época da intervenção, Fernanda fazia parte da Plenária dos Traba-


lhadores de Saúde Mental de São Paulo. E foi pela Plenária que ela acabou
indo trabalhar no Anchieta. “Quando foi decretada a intervenção, eu co-
mecei a vir para Santos. Na época, eu vinha uma ou duas vezes por
semana”, conta a terapeuta.
Em 1989, Fernanda também era professora do curso de Terapia Ocupa-
cional da Universidade de São Paulo (USP), onde leciona até hoje.

POSSIBILIDADES DE INOVAÇÕES

Surgiu em Fernanda a idéia de agrupar suas atividades. Então ela arti-


culou na universidade um trabalho chamado de extensão ao serviço à
comunidade. Os alunos vinham uma vez por semana estagiar no Anchieta.
Porém, este projeto não durou muito. “Era um tempo pequeno semanal e
também foi um tempo pequeno em termos de duração, porque logo fui
fazer um trabalho muito maior no NAPS (Núcleo de Apoio Psicossocial)”,
explica Fernanda.
Entretanto, por causa de um convênio mantido entre a USP e a Prefei

63
tura de Santos, os alunos continuaram a estagiar na cidade até 1996.
Em setembro de 1989, quando foi criado o primeiro NAPS, Fernanda se
envolveu totalmente nesse novo trabalho. “O NAPS é um lugar muito inten-
so. Procurávamos manter todas as relações bastante abertas, interagindo
com os pacientes”, conta Fernanda. Ela conta que exisita a preocupação
de fazer com que não fosse criado um manicômio de portas abertas, já que
a internação hospitalar para os pacientes em estado mais graves ainda era
mantida. ”Os NAPS deveriam representar a base do novo sistema de Saúde
Mental”, justifica Fernanda.

RELACIONANDO A VONTADE

Desenvolver relações era um dos maiores objetivos da terapeuta. “A


idéia de transformar as relações das pessoas no geral, para que elas te-
nham participação igual a do resto da sociedade, fazia com que se iniciasse
um processo de verificação dos meios de desejo”, conta Fernanda.
Um bom argumento para o resgate das relações é construir junto com os
familiares a capacitação pessoal do paciente.
Mas o que fazer? Pensar em projetos terapêuticos a partir da necessi-
dade de cada um. Para Fernanda, é assim que se deve tratar o louco. “É
claro que estes projetos são bastante complexos, mas a questão funda-
mental é tentar pensar em emancipações”, explica. “O direito de ser acima
de tudo cidadão, de fazer parte da sociedade e mais ainda o direito de ter
direitos é o que deve ser resgatado”.

O RESGATE

Para Fernanda, o primeiro passo é pensar a partir da reconstrução da


história do indivíduo, do seu jeito de estar no mundo. “Encontrar aquilo que
o indivíduo tem, mas não sabe”, argumenta a terapeuta.
O paciente precisa produzir e sentir que tem valor social. Aí são várias
as possibilidades. “Para algumas pessoas é a arte, o trabalho ou a recons

64
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

trução de suas relações. E também voltamos na questão do direito, por


que na discussão com o louco existe uma série de questões em que ele não
tem direito”, explica Fernanda.

TRABALHAR COM AMOR

Fernanda Nicácio se envolveu totalmente no processo de intervenção


da Casa de Saúde Anchieta até chegar à supervisão do NAPS. Hoje, aos 46
anos, ela foi bastante receptiva quando convidada a relembrar de todo
processo de reestruturação da saúde mental santista. A paixão com que
fala de seu trabalho é surpreendente. “Foi para isso que me formei!”, co-
menta, entusiasmada.
Sua tese de mestrado foi baseada na experiência da intervenção do
Hospital Anchieta.
Experiência que ela descreve em sua tese como:
“Uma experiência na qual mergulhamos, tecida por muitas mãos, pai-
xões e loucuras...”.

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Capítulo 4
Os Pacientes

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Arte: Rodrigo Stipp; Foto: Vivian Souza

Frigidez do Ser

Em meio a tanta gente,


Me sinto tão sozinha.
A caminhar nesse beco, estreito e escuro.
Sinto o gosto gelado em mim, nesse beco,
Beco gelado e seco.
Com jeito manso e largo de ser
Indo fundo em mim.
Gosto de ser paciente.
Pois a calma é dos pacientes.
Pois a paciência traz a paz.
Paz tranqüila do ser.
Paz que me traz a calma e a paciência,
De viver todo dia, os momentos futuros.

Rita Moreira de Oliveira


Paciente psiquiátrica

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UMA SENHORA MUITO VAIDOSA...

Júlia (nome fictício), 76 anos, paciente do Anchieta de 1970 a 1989


Atual paciente do Serviço Lar Abrigo (Selab), em Santos-SP
Entrevista realizada em 23/8/2005

Júlia chegou até nós com a maior timidez, mas disposta a nos dar aten-
ção. “Vocês vão me entrevistar mesmo?”.
Super preocupada com o visual, pediu para esperarmos enquanto ela
passava um batom nos lábios. Júlia, com 76 anos, é a mais vaidosa dos
pacientes, segundo os funcionários do Selab.
Sempre com uma bolsa a tiracolo, roupas arrumadas, cabelo penteado,
mesmo sabendo que não vai sair daquele local tão cedo, Júlia faz questão
de estar bela. No decorrer da nossa entrevista, percebe-se que tudo isso
faz muito bem. Ela cuida de si, mesmo longe de sua família e amigos.
Júlia sabe muito bem se virar sozinha, mas não foi sempre assim. Aos 47
anos, foi internada na Casa de Saúde Anchieta, com o diagnóstico de
depressão. “Meu ex-marido me colocou lá porque eu estava doente,
depressiva”. Ela não culpa o marido. Não guarda rancor, não reclama. É um
exemplo de força de vontade.
Pelo pouco tempo que passamos com Júlia, já nos sentimos bem. É uma
pessoa com um astral incrivelmente positivo, que gosta de conversar, de
falar sobre sua vida. Apenas uma coisa a incomoda muito: a dificuldade que
tem de falar, pois, para quem a ouve, é preciso fazer uma força para
entendê-la e estar sempre olhando para os seus lábios, a fim de realmente
identificar o que diz.
Algumas vezes, em nossa entrevista, Júlia repetiu três ou quatro vezes
a mesma coisa para que a entendêssemos. A impressão que tivemos ao
entrevistá-la é que a única coisa que a impede de sair daquele local e viver
normalmente é o seu modo de falar, pois ela é totalmente “sã” do que diz,
lembra-se de tudo o que aconteceu com ela, dentro do Anchieta e fora
dele também. E fala muito bem das pessoas que tratavam dela após a

70
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

intervenção. O que ela não lembra com gosto é do modo como era tratada
no Anchieta antes do fechamento da Casa dos Horrores...

A chegada

“Foi na Copa de 70, no mês de julho”, disse Júlia sobre a primeira vez em
que esteve no Anchieta. “Eu tomava remédio três vezes por dia. Falavam
que era pra eu ficar boa”.
Segundo o livro Manicômios, Prisões e Conventos, de Erving Goffman, o
processo de chegada do paciente ao manicômio (chamado pelo autor de
processo de admissão) é dividido em várias fases. Desde este momento, já
se percebe que a pessoa começa a perder as suas características individu-
ais devido aos maus tratos:

“O internado descobre que perdeu alguns dos seus papéis em


virtude da barreira que o separa do mundo externo. Geralmen-
te, o processo de admissão também leva a outros processos de
perda e mortificação. Muito frequentemente verificamos que a
equipe dirigente emprega o que denominamos processos de ad-
missão: obter uma história de vida, tirar fotografia, pesar, tirar
impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens
pessoais para que sejam guardados, despir, dar banho, desinfe-
tar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar ins-
truções quanto a regras, designar um local para o internado”.
Segundo o autor, os processos de admissão podem ser chama-
dos de “arrumação” ou “programação”, pois, ao ser “enquadra-
do”, o novato admite ser conformado e codificado em um obje-
to que pode ser colocado conforme as regras do local, modela-
do suavemente pelas operações de rotina. “Muitos desses pro-
cessos dependem de alguns atributos – por exemplo, peso ou
impressões digitais - que o indivíduo possui apenas porque é
membro da mais ampla e abstrata das categorias sociais, a de

71
ser humano. A ação realizada com base em tais atributos ne-
cessariamente ignora a maioria de suas anteriores de auto-
identificação”.

Ainda segundo o autor, “os processos de admissão e os testes de obedi-


ência podem ser desenvolvidos numa forma de iniciação que tem sido de-
nominada ‘as boas-vindas’ - onde a equipe dirigente ou os internados, ou
os dois grupos, procuram dar ao novato uma noção clara de sua situação.
Como parte desse rito de passagem ele pode ser chamado por um termo
como ‘peixe’ ou ‘calouro’, que lhe diz que é apenas um internado, e, mais
ainda, que tem uma posição baixa mesmo nesse grupo baixo.
O processo de admissão pode ser caracterizado como uma despedida e
um começo, e o ponto médio do processo pode ser marcado pela nudez.
Segundo Goffman, outro momento que marca muito esta desfiguração das
características do paciente é a perda da identidade, pois em alguns mani-
cômios, os pacientes não são chamados pelo nome”.

NÃO DOÍA...

Além dos remédios, que na sua maioria serviam para dopar o paciente
para que este ficasse mais fácil de ser manipulado, Júlia passou por um
momento vivido pela maioria dos pacientes entrevistados por nós: o
eletrochoque. “Eles colocavam borracha na minha boca, na hora do
eletrochoque. Não doía, mas não me falavam pra que servia aquilo”.
O tema eletrochoque gera muitas discussões entre pessoas da área de
saúde. Alguns especialistas defendem este tipo de tratamento, mas as
pessoas envolvidas na intervenção do Hospital Anchieta são contra, em
sua maioria. Segundo o interventor Roberto Tykanori, o eletrochoque para
alguns serve como forma de punição. Neste caso, uma mesma sessão de
eletrochoques é dada várias vezes ao paciente para que ele fique
“abobalhado” e sem vontade de contradizer o que os outros mandam.
“Tira-se o poder de expressão daquela pessoa”, explica Tykanori.

72
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Ainda segundo Tykanori, outros dizem que uma sessão de eletrochoque


apenas é capaz de melhorar o paciente em alguns aspectos. Desde
quando dar choque em alguém vai ajudar essa pessoa a se sentir cuida-
da? Pelo que vimos em nossas entrevistas, este tipo de tratamento não
fez bem a ninguém...

MORANDO NO ANCHIETA

“Eu não queria fazer nada no Anchieta, só chorar”. Júlia virou a mão, olhando
tristemente para nós, e mostrou sua cicatriz no pulso. “Cortei o pulso”.
Ela nos contou que, antes da intervenção, ficava trancada em um quar-
to, como se fosse uma prisão, com mais duas moças. “Eu ficava o dia
inteiro naquele quarto. Só saía para o banho de sol, que não durava muito,
e depois voltava. A gente acordava cedo para tomar banho, às 5h da
manhã. Mas o banho não era frio, não. Era quente”.
Então perguntamos o que é inesquecível para ela sobre o Anchieta.
Esperávamos uma resposta emocionada, algo de ruim que alguém tives-
se feito com ela, os eletrochoques, os maus-tratos. “Não me esqueço
de quando me mandavam arrumar as camas, todo dia, em troca de
cigarro e cerveja”.
A troca de favores, como arrumar a cama e varrer, por coisas que o
paciente gosta é uma prática comum em alguns manicômios.
Como diz Goffman: “haja muito ou pouco trabalho, o indivíduo que no
mundo externo estava orientado para o trabalho, tende a tornar-se des-
moralizado pelo sistema de trabalho do manicômio. Um exemplo dessa des-
moralização é a prática, em hospitais estaduais para doentes mentais, de
‘tapear’ ou ‘usar o trabalho de outro’ em troca de uma moeda de dez ou
cinco centavos que pode ser gasta na cantina. As pessoas fazem isso,
embora no mundo externo considerem tais ações como abaixo de seu amor-
próprio” (1992:22).
Como pode alguém que sofreu tanto não ter guardado rancor de tudo
aquilo e ter como inesquecível a cerveja e o cigarro? Júlia nos impressionou

73
muito pelo desprendimento com o que sofreu naquele local. Ela contou
ainda que passava a semana toda com a mesma roupa, porque, segundo
ela, todos os pacientes trocavam de roupa apenas nos finais de semana. E
ela não gostava disso. E quem gosta?
A última coisa que ela se lembra é da comida do Anchieta. “Era horrível!
Aqui é bem melhor!”, desabafa, aliviada.

FAMÍLIA

Júlia tem um filho e três netos. Mas sua historia não é tão boa quanto
parece. Faz quatro anos que não os vê...
Através de pesquisas feitas com os profissionais que cuidam dela hoje,
soubemos que, realmente, não é nada boa a relação dela com sua família.
Elizete da Silva, a coordenadora do Selab, nos contou que tentou uma
aproximação dos netos com Júlia... Isto aconteceu há quatro anos. Um de
seus netos a encontrou, porém, nunca mais voltou, nem a procurou. “A
impressão que dá é que ele se assustou com a situação dela hoje”, conta a
coordenadora do local. “Mas vamos continuar tentando”.
Júlia segue a vida, de cabeça erguida, sempre vendo o lado bom dos
acontecimentos. “Hoje estou bem melhor”, resumiu.
Aproveitamos a descontração do momento e perguntamos sobre namo-
rados... Já que é tão vaidosa, não é possível que alguém não tenha se
interessado por ela. Júlia ri, fica encabulada, e faz questão de deixar claro:
“Não tenho namorado...”. E, olhando discretamente para nós, completou:
“Só com meu marido”. Nem precisávamos perguntar ao que ela se referia...

DEPOIS DO ANCHIETA

“Quem me ensinou a pintar foi a Dirce e a Antonieta. Eu gosto muito de


pintar”. Júlia se lembrou dos momentos de arte que os pacientes tinham,
coordenados pelo artista Renato Di Renzo. No local onde ela se trata hoje,
encontramos um desenho seu. Seus trabalhos mostram, na maioria, casas

74
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

e árvores. O que será que ela quer dizer com eles? Será que sente falta de
casa? Será que desenhou o local que está hoje? Será que ela gostaria de
estar morando no campo? Esta é uma pergunta que todos que a tratam
costumam fazer.
Na época da intervenção do Anchieta, Júlia pintava, enquanto outros
pacientes faziam esculturas, quadros. O que mais ajudou no tratamento
daquelas pessoas foi a Rádio TamTam e o Jornal Tam- Tam Urgente, que,
assim como aquele momento histórico na cidade de Santos, foram exem-
plos para muitos outros hospícios do Brasil. Pipocou, em cada hospital, uma
nova rádio, um novo jeito de fazer música. Estas rádios eram totalmente
feitas pelos pacientes, os “loucutores”, que escolhiam as músicas e os
temas a serem abordados nos programas.
Para o coordenador destes trabalhos, Renato Di Renzo, os trabalhos de
arte fazem com que os pacientes voltem a sonhar e usar a imaginação, e,
segundo ele, sonhar é extremamente importante para a recuperação deles.
Nossa entrevistada não foge à regra do que Renato diz sobre sonhos.
Com certeza, Júlia ainda sonha em voltar a ver sua família e ter uma vida
normal novamente. Trinta e cinco anos em ambientes psiquiátricos a fize-
ram sofrer muito. No entanto, não foram o suficiente para que ela desistis-
se de seus ideais.
Eis uma pessoa de quem Júlia e todos os pacientes entrevistados não
esqueceram: David Capistrano. Hoje falecido, na época era secretário de
Saúde da cidade, e, juntamente com Roberto Tykanori, chegou à conclu-
são de que aquele modo desumano de tratar as pessoas precisava acabar.
Júlia lembra-se dele com carinho.

O MUNDO HOJE

Atualmente, Júlia vive no Selab, juntamente com outros pacientes, al-


guns deles vindos do Anchieta como ela, e outros mais novos, cada um
com um diagnóstico diferente. Ali ficam doentes mais graves, enquanto nos
NAPS ficam pacientes menos graves.

75
Júlia dorme em um dos quartos do local, que abrigam de dois a três
pacientes. Divide o quarto com duas pacientes, cada uma com uma cama e
um armário para colocar seus pertences.
No momento da entrevista, aconteciam em Brasília várias denúncias de
corrupção, envolvendo os partidos do governo e outros também. Como
percebemos que nossa entrevistada era muito inteligente, aproveitamos
para perguntar: o que a senhora acha do que está acontecendo agora
com o Brasil? Ela respondeu na mesma hora: “uma roubalheira, né?”. E
começou a rir...
Júlia ainda quis falar mais: “acho que o Lula não tem nada a ver com o
que está acontecendo. Ele não tem culpa. Quem tem culpa é quem está
acusando ele!”.
Pois é, nossa primeira entrevistada nos mostrou que, mesmo tendo pas-
sado por momentos tão difíceis, não se deixou abalar. E segue com seus
sonhos de um dia reencontrar sua família...

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Arte: Rodrigo Stipp ;Foto: Vivian Souza

Sempre

Inda choram dentro de mim,


choro longo
tão triste,
nunca tem fim.

Qualquer dia pego elas:


angústia e dor,
enterro bem fundo
em cima boto flor.

Íris Erica Koehler Bigarella


Paciente psiquiátrica

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DE OUTRO MUNDO...

Vanda (nome fictício), 38 anos, paciente do Anchieta de 1987 a 1993


Atual paciente do Serviço Lar Abrigo (Selab), em Santos-SP
Entrevista realizada em 23/8/2005

Fomos um dia antes das entrevistas ao Selab para ver quais seriam os
nossos entrevistados para este trabalho. Afinal, já sabíamos que não seria
de uma hora para outra que conseguiríamos arrancar dos pacientes um
momento tão difícil quanto o tempo que eles passaram no Anchieta. Che-
gando lá, fomos recebidas por um dos funcionários do local, o Ciro, que já
sabia quais eram as nossas intenções, já que passamos a semana anterior
inteira ligando para marcar o melhor dia para as entrevistas.
Logo fomos apresentadas a cada um dos pacientes que haviam passado
pelo Anchieta por algum motivo. Conversamos com cada um, explicamos
nosso objetivo, e fomos muito bem recebidas por eles, mesmo sabendo
que, em sua maioria, são pessoas com patologias muito graves. Ao final da
visita, recebemos um cumprimento... “Oi! Tudo bem?”, ouvimos de algum
lugar. Viramos para trás e cumprimentamos aquela moça aparentemente
nova, que sorria ao falar conosco. Ela nos fez refletir sobre a carência de
atenção que aquelas pessoas sofrem. Então, fomos embora, já preparadas
para a maratona de entrevistas do dia seguinte.
Chegada a hora das entrevistas, na manhã seguinte, Ciro nos lembrou
de que havia mais uma paciente do Anchieta que ele não nos apresentara
no dia anterior. E, para surpresa nossa, fomos apresentadas a Vanda, aquela
moça sorridente!
Vanda trajava um vestido florido, com a saia na altura do joelho. De
cabelos bem curtos, tipo “Joãozinho”, magra e não muito alta, conversou
conosco logo após a entrevista com Julia. Vanda não conteve sua vontade
de nos contar o que passou no Anchieta, mas, diferentemente da impres-
são que nos deu no dia anterior, ela mantinha uma expressão fechada...
Sentou-se na cadeira que havíamos colocado à nossa frente, para os

78
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

entrevistados, e esperou pelas perguntas. Começamos pela mais simples,


para ver o rumo que nossa conversa tomaria, para sentir se Vanda estava
mesmo disposta a falar conosco...
- Quantos anos você tem?
- 48 - respondeu ela.
Então, já fomos direto ao assunto:
- Você se lembra da época do Anchieta?
- Lembro mais ou menos. Eu não tinha muita visita lá.
Vanda nos deu esta resposta com um jeito tristonho. Com isso, já
desconfiávamos de fatos que, ao final da entrevista, seriam confirma-
dos. Vanda era uma pessoa muito sozinha quando paciente da Casa
dos Horrores. Tanto que o primeiro fato que se lembrou foi das poucas
visitas que recebia...
- Quem ia te visitar lá?
- Minha vó. E, em outros dias, era a assistente social que ia visitar...
Vanda nos contou o nome da assistente social – Cecília – e olhou de um
lado para outro como se procurasse alguém, ou como se quisesse ver o que
acontecia ao seu redor. Mas somente o que enxergava eram pacientes
andando para diversos lados, dentro do pátio grande e fechado em que
estávamos, e um enfermeiro sentado em uma mesa, olhando para os paci-
entes, preparando o remédio que deveriam tomar naquele momento.

CHOQUES DE LEMBRANÇA

Não é à toa que nossa entrevistada exibia um ar melancólico. Pergunta-


mos a ela sobre o aspecto físico do Anchieta...
- Era bonito lá dentro?
Vanda nos olhou com aquele jeito desconfiado, mexendo em seu ves-
tido florido:
- Era...
Ela pára, pensa mais um pouco...
- Era nada! Davam choque na gente!

79
A partir daí, Vanda nos contaria toda a sua impressão sobre as seções
de eletrochoque a que era submetida. Não foi nada fácil para ela.
- Grudou na minha fronte e eu gritei: AI!
Assim como nossa primeira entrevistada, Vanda se recorda muito bem,
com detalhes, do que viveu no Anchieta. Foi direta ao dizer que coloca-
vam um protetor para que ela não se machucasse... que hipocrisia!
“Doía. É que grudava na fronte. Colocavam pano, borracha, alguma coi-
sa para não mordermos a língua”. E continuou: “eles davam muito cho-
que em mim. Eles fingiam que iam dar choque. E eu me escondia, mas
eles viam onde eu estava. Eles queriam que eu tomasse, mas eu não
tomava, não. Eu me escondia”.
Descobrimos que Vanda já havia passado por vários hospitais psiquiátri-
cos do Estado e que, em todos eles, era submetida a eletrochoques. Além
de se esconder, empurrava algumas enfermeiras que iam buscá-la, dava
pontapés, coisas deste tipo. Com isso, ela conseguia fugir deste “trata-
mento”, mas nem todos os pacientes eram ágeis como ela. Acabavam
tomando várias sessões de eletrochoques.
É impressionante como as pessoas que tratam o paciente ficam na
memória dele. Mesmo 16 anos depois de tudo acontecer no Anchieta,
Vanda se lembra do nome dos médicos e, principalmente, dos que a trata-
vam mal, do que eles faziam para que ela ficasse “abobalhada”.
É possível perceber que ela é paciente psiquiátrica pelo fato de apre-
sentar um jeito meio “perdido”. Os olhos da paciente vagam pelos lugares,
sem rumo, parecendo que não sabem para onde vão. Mas, mesmo assim,
no caso de Vanda, seu olhar triste vai sendo explicado a cada palavra,
principalmente no caso do eletrochoque e das visitas que não recebia.

MORANDO NO ANCHIETA

Vanda nos contou que, na época do Anchieta, tomava remédio três


vezes ao dia, um pela manhã, outro à tarde e outro à noite. “Quando a
gente tomava remédio, ia pro pátio. E ia pra lá também depois de tomar

80
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

banho”. Segundo ela, os pacientes tomavam banho todos os dias e após a


sessão de eletrochoques também.
O pátio era o lugar onde a maioria das coisas acontecia. “A gente pas-
sava o dia todo lá”. Não tinha televisão, jogos, nenhuma forma de ocupa-
ção para aquelas pessoas. Elas só passaram a se ocupar após a interven-
ção, pintando, fazendo programas de rádio, entre outras atividades já
citadas neste livro.
Vanda ficava em um quarto. “Eu dormia em uma cama, que eu mesma
arrumava”. Ao contrário de Júlia, Vanda não ganhava cigarro e cerveja para
arrumar outras camas. Ela se lembrou da dificuldade que tinha para dormir.
“Eu demorava pra dormir, não tinha sono. Até aqui eu não tenho sono. Não
consigo dormir...”. Por que será que Vanda tem insônia até hoje? Mesmo
não sendo maltratada como era nos hospitais por onde passou, algo lhe
persegue: a solidão.
Ao perguntarmos a ela sobre filhos, sua resposta foi curta e simples.
“Não. Eu não sou mais virgem, mas não tenho filhos”.
- Nunca casou também?
- Nunca.
E foi tudo o que disse sobre família. Sempre que entrávamos neste
assunto, Vanda dava um jeito de desconversar. Sabendo disso, o que pas-
sou por nossos pensamentos é que a explicação para toda essa tristeza é
a falta de alguém que a ame. Ela não quis falar de mãe, pai e irmãos, enfim,
não quis entrar no assunto.
Segundo Erving Goffman, há uma explicação para que Vanda não
esteja ligada à sua família. Conforme explica o autor, o novato chega
ao hospital psiquiátrico com uma idéia de si mesmo que se tornou
possível por algumas disposições sociais estáveis no mundo onde ele
vivia até chegar ali. Ao entrar, logo deixa de ter o apoio que tinha no
“mundo exterior”. Como sempre aconteceu nos manicômios de todo o
mundo, de acordo com o livro, começa, então, uma série de rebaixa-
mentos, degradações e humilhações interiores do paciente. Sua indivi-
dualidade, naquele momento, é morta. Ele perde todas as suas carac-

81
terísticas individuais. “O paciente, então, começa a passar por algu-
mas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta
pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que tem a seu
respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele”
(1992:24).
Em vista disto, percebemos que Vanda “esqueceu” o que viveu
antes, os maus-tratos ao longo da sua passagem pelos vários hospi-
tais. É como se, para ela, nunca tivesse existido uma família.

OUTROS MUNDOS

Como já mencionamos, Vanda passou por “outros mundos” que não


o do Anchieta apenas. O primeiro, pelo que ela nos contou, foi o
Hospital Municipal de Pirituba, em São Paulo. Reparamos umas cicatri-
zes em seu rosto, pareciam arranhões, na região das têmporas. “Pode
ser do grampo que me arranharam, quando eu tava no Hospital Pirituba”.
As marcas no rosto de Vanda têm um sentido muito mais
profundo do que apenas cicatrizes. Segundo Goffman, elas
são ruins para o paciente pelo fato de marcarem fisicamen-
te e interiormente.

“Além da deformação pessoal que decorre do fato de a


pessoa perder sua identidade, existe também a desfigura-
ção pessoal que decorre de mutilações diretas e permanen-
tes do corpo – por exemplo, marcas ou perda de membros”
(1992:29). O autor explica que é comum o fato de estas
marcas gerarem a perda de um sentido de segurança pesso-
al. “Pancadas, terapia de choque, ou, em hospitais para
doentes mentais, cirurgia – qualquer que seja o objetivo da
equipe diretora ao dar tais serviços para os internados –
podem levar estes últimos a sentirem que estão num ambi-
ente que não garante sua integridade física”(1992:29).

82
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

CROCHÊ

- Você já foi pro Juquery?


- Já...
- E como era lá? Era pior ou melhor do que o Anchieta?
Vanda nos passou a impressão de não ter achado o Juquery tão ruim
quanto o Anchieta. “Me lembro de uma moça que ficava fazendo crochê,
junto com as filhas dela. Lá era um pouco melhor que o Anchieta”.
- Por quais outros hospitais você passou?
- Vila Mariana, Sanatório Vera Cruz, que foi o primeiro hospital que eu
entrei, e o de Botucatu.
Como podemos ver, Vanda conhece “outros mundos” muito bem, mas,
mesmo assim, tem o Anchieta como o pior deles...

MAIS LEMBRANÇAS

A cada minuto a mais que conversávamos com Vanda, mais víamos a


sua necessidade por carinho e mais aprendíamos com ela sobre aquele
momento tão ruim de sua vida. Como quem tem pena de si, sempre que
falava dos maus-tratos que sofria, contava com o máximo de detalhes para
que sentíssemos pena dela. Não de propósito, claro, mas indiretamente era
o que ela fazia.
Perguntamos o que, na visão dela, é melhor: as pessoas que tratam dela
hoje ou quem tratava dela na Casa dos Horrores. Lógico que já sabíamos a
resposta, mas queríamos ouvir as palavras que Vanda daria, do jeito dela. E
então, começou a contar de um caso em que ela se machucou...
- Bati a cara na porta e eu sentei e fiquei com os olhos fechados. E
todas as moças falando, nossa, coitada, a menina tá com os olhos incha-
dos, fechados e... Credo, tá horrível isso! Elas falavam...
Vanda falava assim mesmo. Sem pausas. Sem esquecer de um detalhe
daquele momento. E continuou nos contando, dessa vez, lembrando de
uma pessoa que cuidava dela:

83
- E, depois, na hora de chamar a gente pra dormir, a tia Angela chama-
va nós pra dormir e ela falava.... Que foi isso no seu olho, hein, menina? E
eu falei é que eu amanheci com os olhos pretinhos... E ela falou que eu
não ia subir a escada com esse olho inchado, não, vai dormir aqui. E
depois eu dormi lá...
Sem perder o ritmo da fala, Vanda quis nos contar ainda sobre o remédio
usado para “sarar os olhos pretinhos”: “... e eu levantei e pingaram remé-
dio, colírio, pra ver se sarava, mas não adiantou nada”. Ela não se esque-
ceu da febre e nem de como foi tratada neste momento:
- E eu acordei quase de manhã e a tia Angela pôs a mão aqui em mim. E
falou que eu tava com febre. E ela pôs o termômetro e depois eu não fiquei
mais com febre.

AS PIORES LEMBRANÇAS

- Qual é a coisa mais triste que a senhora lembra de lá?


Vanda olhou para nós, pensou, fez como se quisesse falar algo...
- A Ana já bateu... Ah, não vou falar, não...
Mesmo assim, nós insistimos...
- Conta pra nós...
- ...É que ela já bateu na enfermeira que queria dar remédio pra ela.
Ana (nome fictício) também foi paciente da Casa de Saúde Anchieta e
hoje está no Selab. Foi apresentada para nós no dia em que fomos conhe-
cer a todos, mas, segundo o funcionário Ciro, ela não teria condições de
conversar conosco, por ser uma paciente extremamente grave. Ele nos
contou que ela passou por muitas seções de eletrochoque. É uma daquelas
pessoas que não suportaram o tratamento levado no Anchieta. Nem todos
se lembram nitidamente do que passaram, como Júlia e Vanda.
Mais uma vez, Vanda nos mostrou que queria muito contar o que passou
e como era maltratada. Começou a falar de um médico que não gostava, o
que ele fazia para ela e como ela reagia a isso:
- Quando o Dr. Márcio (nome fictício) queria ser o meu médico, ele me

84
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

chamava pra conversar com ele, e eu não queria. Eu ficava sentada no


chão, embirrada de não querer conversar com ele. E uma moça veio por
trás de mim e me deu gravatada.
A relação paciente-profissional é bastante complicada. Nos ma-
nicômios, existe uma divisão básica entre um grande número dos
internados, os pacientes, e uma pequena equipe de profissionais.
Segundo Goffman:

“geralmente, os internados vivem na instituição e têm


contato restrito com o mundo existente fora de suas pa-
redes; a equipe profissional muitas vezes trabalha num
sistema de oito horas por dia e está integrada no mundo
externo. Cada grupo tende a conceber o outro através
de estereótipos limitados e se opondo a ele – os profissi-
onais muitas vezes vêem os internados como amargos,
reservados e não merecedores de confiança; os interna-
dos muitas vezes vêem os que os tratam como arbitrári-
os e mesquinhos. Os participantes da equipe de profissi-
onais tendem a sentir-se superiores e corretos; os inter-
nados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sen-
tir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados”.

REBELDIA

Vanda fez questão de dizer o que ela fez para essa moça que a
pegou. Não teve medo de mostrar como era rebelde...
- E eu fiz força, dei pontapé, e virei assim, dei pontapé na “opera-
ção” dela, e falei bem feito pra você! Ela perguntou por que eu tinha
dado pontapé e eu respondi que era porque ela me pegou de trás, de
gravatada, pra me levar pra conversar com o médico. E nem o doutor
eu obedeci ele. Fiquei sentada lá no chão um pouquinho e saí de perto
pra não conversar com ele.

85
Segundo os funcionários do Selab, os pacientes como Vanda tendem
a ficar violentos no caso de serem provocados, ou seja, quando al-
guém faz com que eles fiquem assim. Vanda sabia que, se fosse “con-
versar” com o médico, ele faria algo de ruim a ela, pois já havia feito
antes. E, com isso, ela usou a violência para se defender.
Aproveitando que Vanda estava se abrindo conosco, sem medo, fi-
zemos uma pergunta mais forte.
- A senhora sabe de alguém que morreu dentro do Anchieta?
Ela não pensou muito para responder.
- Lá eu nunca vi ninguém morrer, não. Só uma moça, que comeu
sabão em pó e levaram ela deitada, segurando nas mãos e nos pés
dela, pro pátio, até que ela morreu mesmo.

DEPOIS DO ANCHIETA

Mas não é apenas das coisas ruins que Vanda se lembra. Ela viveu o
período da intervenção, aquele momento histórico da cidade que trouxe
nova vida a todas as pessoas internadas no Anchieta. E sabe muito bem o
que significou aquele momento...
Perguntamos a ela o que é melhor: a época do Anchieta ou os dias de
hoje. Nossa entrevistada não hesitou ao dizer que hoje é muito melhor.
- Por quê?
- Por que não tem mais choque... É melhor morar aqui porque nós
temos tudo de comer e temos tudo de tomar, do que andar na rua feito
maloqueira. E, às vezes, eu ficava na rua pedindo cigarro e ninguém
queria morar comigo...
- Depois que o Anchieta fechou, você tomou choque?
- Não, nunca. Fui pro Manequinho.
O “Manequinho” a que Vanda se referia era a República Manequinho,
uma casa para onde eram levados alguns pacientes que não tinham
família, logo após a intervenção. A casa levou este nome graças ao seu
primeiro morador, o Manequinho, um paciente com Síndrome de Down.

86
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

ANIMAIS

Vanda é mais uma prova do que um manicômio, como o Anchieta, é


capaz de fazer a uma pessoa. Totalmente perdida em sua vida, sem so-
nhos, sem lembranças, sem amor, sem família. Pacientes psiquiátricos que
foram tratados como animais, sem vontades e sem esperanças. E do tanto
que são maltratados, acabam por achar que são realmente animais. E se
esquecem de si...

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Arte: Rodrigo Stipp; Foto: Vivian Souza

Olhar nos Olhos

Às vezes me vejo
Olhando em meus olhos
Procurando por mim mesmo
Passo por vários lugares
Sem que ninguém me veja.

Três sombras em minha frente


Todas elas eram minhas
Nenhuma delas era eu

Juventino José Galhardo Jr.


Paciente psiquiátrico

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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

MARCAS ETERNAS

Marco (nome fictício), 49 anos, paciente do Anchieta de 1989 a 1990


Atual paciente do Serviço Lar Abrigo (Selab), em Santos-SP
Entrevista realizada em 23/8/2005

Chegamos perto do Marco para entrevistá-lo. Ele vestia uma bermuda


azul e uma camiseta branca. Estava sozinho em um canto do pátio do
Selab, sorridente, pensativo... Já havíamos conversado com ele antes,
quando perguntamos se poderíamos entrevistá-lo para nosso trabalho. E
neste segundo contato, assim que chegamos, ele falava conosco como se
nos conhecesse há tempos... E falou:
- Dona Regina...
Queríamos “entrar no papo” dele, para que se sentisse vontade de con-
versar conosco...
- Dona Regina?...
E ele continuou:
- Aí passou a dona Iraíde. Eu imaginava de um pavilhão, pavilhão mais
alto, mais novo, do Anchieta, eu imaginava uma moça de motoca. Jaquetão
de couro, calça de couro, e tudo. Aí tinha um maiorzinho...
- Maiorzinho, quem? Um profissional?
- Paciente.
Mesmo estando no auge de suas alucinações, como foi dito a nós por
um dos enfermeiros do Selab, sentimos que Marco estava realmente
disposto a falar conosco. E conseguimos um “gancho” para começar
nosso assunto:
- Ah! Paciente! Você se lembra dos pacientes do Anchieta?
Marco tinha a expressão calma, mas seus olhos estavam como os de
Vanda, perdidos. Ele respondia as perguntas sempre repetindo as nossas
palavras, como fez na resposta a esta questão que fizemos:
- Lembro de paciente...
- E você se lembra das pessoas que cuidavam de você?

89
Sua resposta nos deixou mais calmas. Descobrimos que o que ele nos
falava no início da entrevista não eram alucinações! Ele já estava tentando
se lembrar do Anchieta, já que o havíamos avisado que iríamos conversar
sobre isso. A resposta dele foi a seguinte:
- Tá faltando uma lá que eu não sei o nome, além da Regina.
Regina! Aquela a que ele se referiu no início... E então perguntamos a
ele se lembrava de quando fechou o Anchieta. Mais uma vez com poucas
palavras, ele respondeu:
- Lembro.
- Você se lembra de quem estava lá dentro?
- Tinha o Carlos, tinha... Por nome não me lembro, lembro por fisionomia.
Então vimos que estávamos realmente enganadas por acharmos que
Marco é um paciente “totalmente fora de si”, que não fala “coisa com
coisa”, como pensamos no início. Na maior parte das vezes, ele não res-
pondia com muitas palavras ao que perguntávamos. Mas, de repente, ele
falou o que mais nos marcou entre todos os pacientes que entrevistamos...
- Então, eu tô com dificuldade pra falar com você sobre o Anchieta,
porque aconteceram coisas ali que me marcou muito, meu corpo inteiro,
minha alma, meu coração, me marcou muito... Me marcou muito...
Silêncio. Fomos pegas de surpresa.

LEMBRANÇAS E MAIS LEMBRANÇAS...

Percebemos uma lágrima se insinuando em seus olhos, meio tímida. Ele


nos olhava diretamente, sem vergonha ou timidez.
Quem o olha pode pensar que Marco não “bate muito bem” da cabeça,
pois ele fala pouco, observa muito e, como já mencionamos, seu olhar
perdido dá realmente a impressão de que ele não está bem. Mas quem
poderia imaginar que, além de se lembrar do que vivera, ele saberia falar
destas coisas de um modo tão simples, mas bonito? Aquilo ficou em nossas
mentes por muito tempo...
Após aquela revelação interessante, tínhamos que dar continuidade à

90
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

nossa entrevista. Ele voltou a ser repetitivo...


- Era muito ruim pra você aquela época, né?
- Foi muito ruim, foi muito ruim.
- O senhor nem gosta de lembrar, né?...
- Nem gosto de lembrar.
Quando questionado sobre o tratamento no Anchieta, Marco nos
surpreendeu mais uma vez...
- No Anchieta? No Anchieta não! A minha vida não precisa de hos-
pital. Eu não preciso de hospital, em toda minha vida eu nunca preci-
sei de hospital.
Ele tem a consciência de que um manicômio torna uma pessoa pior.
Sabe que está assim só por ter entrado ali.
Como havíamos feito com os outros entrevistados, perguntamos a
ele sobre o banho e a comida. Achamos interessante falar sobre isso,
por que estes dois serviços do hospital psiquiátrico mostram bem o
modo como estas pessoas eram tratadas ou, pelo menos, como elas
percebiam que eram tratadas. Observamos que, realmente, cada um
dava o seu ponto de vista.
Na maioria das vezes, os pacientes do Anchieta tomavam banho e
comiam da mesma forma, mas, mesmo assim, ouvimos histórias dife-
rentes de cada um.
- Tomei banho de banheira uma vez. Uma vez só. O banho era bom.
- Era você sozinho ou com várias pessoas?
- Com várias, com várias. Era com chuveiro, chuveiro quente.
Ao perguntarmos sobre a comida, foi interessante. Para falar a verdade,
não conseguimos, ao final, entender muito bem como era a comida ali. Per-
guntamos sobre isto duas vezes e, nas duas, Marco respondeu lembrando-
se de outras coisas. Não sabemos se ele estava falando mesmo sobre a
comida ou se estava tendo mais uma alucinação...
- Comida era... Quando eu fugi daqui e eu passei por lá, eu percebi que a
comida era melhor lá, a comida era um pouquinho melhor que aqui...
Até aí entendemos. Mas depois disto, Marco começou a contar de uma

91
vez que foi ao dentista, que fugiu... Foi aí que ficamos confusas...
- ... Porque eu cheguei a bater a cabeça na perua, quando eu fui
no dentista, uma “força maior” me fez incorporar na placa dentista. Eu
passei. Quando eu fugi, eu passei lá, no dentista...
Complicado de entender. Um pouco depois, perguntamos novamente
sobre isso.
- A comida lá no Anchieta, você lembra?
- Lembro, lembro. Eu lembro até que alguém fez a mesa lá no pátio
do colégio lá que eu jogava petequinha com a moça, com uma moça
loirinha, eu jogava petequinha, né...
Foi interessante. Não entendemos o que ele quis dizer sobre a comi-
da, mas descobrimos uma coisa que ele gostava de fazer - jogar pete-
ca! Marco nos lembrou um pouco Julia. Ele tem as marcas dos maus-
tratos, ainda mais do que ela, mas ainda conseguiu manter o bom
humor e as boas lembranças.

OS ELETROCHOQUES E OS REMÉDIOS...

Perguntamos a ele: “Você chegou a tomar eletrochoque?”


- Cheguei. Tomei.
- Era muito ruim? O que você lembra?
Desta vez, nos lembramos de Vanda falando dos eletrochoques que
tomava, de quando ela se escondia, do pavor que sentia...
- Eu não lembro de nada, eu não lembro de nada. Eu me lembro quando
eu tomei a primeira vez, eu me lembro que tinha uma senhora da cozinha
que teve pena de mim e me protegeu. Me protegeu com as mãos pra não
dar o choque elétrico.
E, então, descreveu o que sentia quando passava por isto...
- Mas apagava a mente da gente, apagava tudo, queimava a pele.
Machucava muito.
A última pergunta que fizemos a respeito do Anchieta foi sobre os remé-
dios. “Ah, remédio eu sempre tomei, né!”, respondeu ele, sorrindo.

92
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

COM O FECHAMENTO DA CASA DOS HORRORES...

Perguntamos a Marco se sua vida melhorou após o fechamento da Casa


de Saúde Anchieta...
- Melhorou bastante, melhorou bastante.
- O que o senhor lembra que mudou?
Marco olhou para nós, coçou a cabeça...
- Eu lembro que mudou assim...
Pausa...
- Quando fechou o Anchieta?
Tivemos que repetir a pergunta.
- Isso. Depois que fechou o Anchieta você foi para onde, você lembra?
- Não lembro não...
Aproveitamos para ver se ele nos falava das festas que eram feitas
após a intervenção.
- Tinha festa lá no Anchieta, depois da intervenção?
- Tinha festa.
- Você gostava das festas?
- Tinha música da Xuxa a noite inteirinha.
Será que para ele as músicas da Xuxa a noite inteira era bom? Pergun-
tamos sobre as pessoas que tocavam violão e sanfona, pois sabíamos que
isto acontecia.
- Lembrei! Lembrei! Era no pavilhão de cá, era um tal de seu José que
tocava, parece...
A última coisa que lhe perguntamos foi como ele é tratado no Selab,
hoje. Marco nos deu a entender que as pessoas falam muito dele, e que é
muito difícil estar ali por isso...
- Acho que é pela minha força de vontade. Acho que é pela minha força
de vontade, o que fala no meu ouvido, entra por um lado e sai pelo outro.
Perguntamos a ele se as pessoas falam muito dele no Selab.
- Não falam muito, mas eu acho que eu consigo as coisas pra mim, o
meu valor, corretamente, só que dá mais um tempinho e já destrambelha

93
tudo já. Já sai tudo fora do normal...
Sentimos que foi um desabafo de Marco. Percebemos que ele tem ainda
sonhos e vontades. Mas vive as angústias que todos nós vivemos, as
frustrações, as coisas que não dão certo. Percebemos que ele está que-
rendo melhorar e ir atrás de seus desejos. E isto é muito bom.

94
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Arte: Rodrigo Stipp; Foto: Vivian Souza

Tempo
Tempo, tempo, tempo passa
O cérebro passa
As plantas morrem
Os pássaros passam
O dia passa
O cérebro passa
A vida passa
E eu passo, passo e passo
Mas não adianta nada
Eu fico...

José Hélio Mazorra Neto


Paciente psiquiátrico

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DEZENOVE ANOS

Rosa (nome fictício), 37 anos, paciente do Anchieta de 1989 a 1992


Atual paciente do Serviço Lar Abrigo (Selab), em Santos-SP
Entrevista realizada em 23/8/2005

Quando fomos apresentadas a Rosa, logo fomos avisadas de que ela


seria a pessoa mais difícil de se conversar. E logo percebemos isto... Os
outros três pacientes entrevistados dormem, hoje, em quartos da casa
onde funciona o Selab, com outros pacientes, mas sem a vigilância dos
enfermeiros. Eles têm até alguma liberdade para ficarem em seu canto, em
sua cama, fazendo suas atividades. Mas Rosa, não...
Ela dorme na enfermaria do local, vigiada 24 horas por dia, pelos enfer-
meiros e outros técnicos. Não tem apenas o olhar parado, conforme repa-
ramos nos outros. Rosa é uma paciente com todos os sintomas da época
em que ficou no Anchieta. Segundo as pessoas que cuidam dela, sua
doença chama-se Esquizofrenia.
Rosa despertou nossa curiosidade sobre o que ela contaria da época do
Anchieta, mesmo não se lembrando bem das coisas. Queríamos saber como
é conversar com uma pessoa como ela. E mais: queríamos mostrar em
nosso livro o que um manicômio é capaz de fazer com seus pacientes...
Um dos funcionários do local nos disse que ela já havia passado também
pelo Juquery. Aproveitamos para começar a conversa neste ponto.
- Você veio do Juquery, né?
- Eu vim - respondeu ela.
- Durante quanto tempo você ficou lá?
- 4 mil anos...
Já começou deste momento nosso cuidado para conversarmos com a
paciente. Vimos que, realmente, não seria fácil fazer com que ela nos
contasse sobre tudo o que passou na Casa dos Horrores. Com certeza, não
foram coisas boas...
- Você se lembra como foi quando você entrou no Juquery?

96
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Nenhuma resposta. Rosa olhava para todos os lados do pátio, com os


olhos totalmente perdidos.
Então tentamos outra pergunta.
- O primeiro hospital que você entrou foi o Juquery, não foi?
- Foi.
Ufa! Ao menos, uma resposta. Perguntamos se ela se lembrava de quem
a colocou no Anchieta. “Foi um rapaz chamado Neto”, respondeu.
- Você lembra o que você sentiu neste dia?
- Não.
Sempre rápida em suas respostas, Rosa, pela primeira vez, falou algo
sem perguntarmos.
- Eu saí do Juquery doida...
Pois é. Sabíamos que, infelizmente, não íamos conseguir pegar muitas
informações com ela.

MORANDO NO ANCHIETA

No decorrer da nossa conversa, percebemos mais uma característica de


Rosa. Ela respondia ao que perguntávamos como uma jovem, uma adoles-
cente. Queríamos saber a idade dela...
- Eu tenho 19 anos.
Aí então, entendemos. Ela realmente fala como uma adolescente de 19
anos. A esquizofrenia pode fazer com que as pessoas pensem que são
outra pessoa, ou os faz pensar que são bem mais novos do que agora.
Continuamos conversando com ela...
- Então, quando estava no Anchieta, você era bem novinha... Você não
se lembra mais.
- É (risos). Eu me lembro sim. Eu me lembro, mas não posso falar que
isso é feio.
Insistimos...
- Com a gente não tem problema, você pode falar. O que você
lembra de lá?

97
- Eu não tenho lembrança disso mais. Como é que eu vou falar?
Rosa disse esta última frase com o tom exato de uma garota com a
idade que ela disse ter, meiga, um pouco ingênua, com jeito de menina.
Perguntamos a ela quando a levaram para o Anchieta e fomos surpreen-
didas. Ela ficou chateada.
- Quando mandaram a senhora para o Anchieta?
- Não sou senhora ainda!!! Sou menina-moça!
Ficamos um pouco sem jeito, mas continuamos...
- Você se lembra como foi, quando você foi para o Anchieta?
- Eu não posso falar. Posso falar os anos que estou aqui, 4 mil anos.
Mais uma vez, ela teimou em dizer os 4 mil anos. O que será, na cabeça
dela, que isto significa? Queríamos saber o que ela achava do Anchieta.
Então a questionamos se ela gostava de lá.
- Eu não gostava, mas eu ia, ficava lá internada.
- O que você fazia lá?
- Eu tomava remédio, não sarei, sarei aqui.
Ela sabe que o Anchieta não curou ninguém... Então perguntamos sobre
as pessoas que trabalhavam na Casa dos Horrores...
- Eu não me lembro de nome, lembro de moços e moças, umas mulheres
e homens. Eles davam remédio pra mim e pra todo mundo que tava lá.
- O que acontecia quando a senhora tomava remédio. Dormia?
- Eu tava cansada e sem dormir.

QUANTO AOS CHOQUES...

- Você chegou a levar choque?


- Eu cheguei a levar choque. Tomei.
Rosa não percebeu, ao longo dos anos de internação, que o choque era
dado como punição. Na opinião dela, servia para melhorar sua situação.
Perguntamos sobre a dor...
- Doía nada. Ele punha no meu corpo pra eu sarar.
- Era na cabeça? Como era?

98
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

- Na boca, na boca.
Rosa não nos deu as informações exatamente como queríamos. Mas
forneceu algo muito maior. Muito mais do que colher dados exatos sobre o
momento, muito mais do que ver exatamente como era antes e depois do
Anchieta, ela nos mostrou que, apenas por estarmos falando com ela,
naquele momento, por ela nos ter dado atenção e tentado se lembrar do
que viveu, já era uma vitória para nós. Rosa é o exemplo do que um
manicômio é capaz de fazer com uma pessoa. Se era isto o que queríamos,
no início de nossa pesquisa sobre este trabalho, foi isto o que tivemos.
Não se pode esperar de uma pessoa como ela respostas diretas e fá-
ceis. E nem explicações sobre o que ela fala. O objetivo de fazer estas
entrevistas com os pacientes é exatamente lidar com o conceito de “mun-
do real” e “mundo imaginário”. É estar junto com eles neste pensamento,
tentar entender e ver que o mundo não é só o que passamos no dia-a-
dia... Existem pessoas, como eles, que vêem a vida de uma forma total-
mente diferente.
Para terminar a parte do “antes” da intervenção no Anchieta, como de
praxe, perguntamos sobre banho e comida.
- Durante o dia, o que você fazia, além de tomar remédio?
- Eu não lembro mais...
- Como você tomava banho? Você lembra?
- Tinha dois banheiros, um de um lado, outro de outro.
Para Rosa, a comida do Anchieta era melhor do que a do Selab, hoje. Ela
fala bem do refeitório do Anchieta, de como era a comida no geral.
- E, na hora da refeição, o que vocês comiam, como era? Era tipo um
refeitório grande?
- Era. Tinha mesmo um lugar grande de comer na cozinha, com cadeira,
mesa. Era bonzinho...
Questionamos o gosto da comida no Anchieta.
- Era boa, era feijão, arroz, pão e doce. Era gostoso.
- O que você come aqui?
- Nossa... feijão sem sal, arroz sem sal, carne sem tempero, tudo ruim a

99
comida daqui. Lá a comida era boa, tinha sabor, aqui não tem sabor.

DEPOIS DA INTERVENÇÃO

Rosa não se lembra do dia da intervenção. Quando falamos sobre isso,


percebemos que ela não entedia.
- Você se lembra quando eles fecharam o Anchieta e você teve que sair
de lá? Você se lembra como foi? Você se lembra daquele dia?
- Não, não me lembro.
Outra pergunta que fizemos a todos foi sobre as festas. Perguntamos a
ela se haviam festas, depois da intervenção, mas ela não se lembrou.
- E você chegou a participar de alguma festa hoje em dia?
- Aqui dentro teve festa. É boa!
- O que a senhora faz nessas festas?
- Por que senhora? Eu chamo você!
Ops! Esquecemos que estávamos falando com uma moça de 19 anos...
Rosa foi a paciente mais grave que entrevistamos, mas foi a que mais
nos ajudou a entender o mundo do doente mental. Estávamos frente a
frente com o resultado de maus-tratos manicomiais, e crônicos, pois se-
gundo a coordenadora do local, Elizete da Silva, provavelmente e infeliz-
mente, Rosa nunca mais voltará “ao normal”.

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Capítulo 5
Luta Antimanicomial

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Familiares dos portadores de sofrimentos mentais, cansados e revolta-


dos com o modo de tratamento fornecido a essas pessoas que precisam
de cuidados especiais, começaram a se reunir e estudar as possibilidades
de estarem contribuindo de alguma maneira para a melhorar a situação.
Formaram um movimento contra os manicômios.
Desde o início, contaram com o importante apoio, desempenho e parti-
cipação de profissionais da área da saúde mental.
Mas as obras do movimento só começaram a ser notórias com a 1ª
Conferência Nacional de Saúde Mental e com o 2º Congresso Nacional
dos Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru, no dia 18 de maio de
1987. A data ficou, desde então, registrada como o dia da luta
antimanicomial. A proposta desses encontros era trazer de volta a ci-
dadania dos pacientes que haviam perdido grande parte de suas vidas
trancados e excluídos da sociedade.
O movimento contou com diversas iniciativas políticas, sociais, cultu-
rais, administrativas e jurídicas que procuravam modificar aquela situação,
garantindo assim um tratamento digno e decente.
Hoje existem grupos antimanicomiais em diversos estados do País. Eles
organizam encontros, palestras e caminhadas, entre outros eventos, em
prol da luta contra os antigos regimes de tratamento. Persistência e de-
terminação traduzem exatamente este trabalho humanitário.

CENÁRIO ATUAL

A saúde pública, mesmo que precariamente, tem compreendido a


importância de atendimentos diferenciados para cada caso de distúrbio
mental. Entende-se hoje que os problemas de alcoolismo e drogas,
causadores de transtornos psiquiátricos graves, também necessitam de
tratamento adequado, tanto para os que utilizam desses males, quanto
para seus familiares, que precisam aprender a lidar da melhor forma
possível com o problema.
A modificação no modelo hospitalar com uma forte base comunitária é a

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proposta principal para uma organização extra-hospitalar.
O maior desafio é conseguir fortalecer políticas de saúde, estabilizando
e aumentando as redes comunitárias de tratamento, implantando meios de
geração de empregos aos portadores de distúrbios mentais e, por último,
mas com maior importância, um aumento de recursos no orçamento do SUS
destinado à saúde mental do País.

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Capítulo 6
A Fábula

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O livro A Instituição Negada, do psiquiatra Franco Basaglia, cita uma


história que consegue mostrar bem o que acontece com o paciente de
manicômios quando ele é totalmente dominado pela instituição psiquiátrica.
Como aconteceu com todos os nossos entrevistados...

“Uma fábula oriental conta a história de um homem em cuja


boca, enquanto ele dormia, entrou uma serpente. A serpente
chegou ao seu estômago, onde se alojou e de onde passou a
impor ao homem a sua vontade, privando-o assim da liberdade.
O homem estava à mercê da serpente: já não se pertencia. Até
que uma manhã o homem sente que a serpente havia partido e
que era livre de novo. Então se dá conta de que não sabe o que
fazer da sua liberdade: ‘No longo período de domínio absoluto
da serpente, ele se habituara de tal maneira a submeter à
vontade dela a sua vontade, aos desejos dela os seus desejos,
e aos impulsos dela os seus impulsos, que havia perdido a ca-
pacidade de desejar, de tender para qualquer coisa e de agir
autonomamente’. ‘Em vez de liberdade ele encontrara o vazio’,
porque ‘junto com a serpente saíra a sua nova ‘essência’, ad-
quirida no cativeiro’, e não lhe restava mais do que reconquistar
pouco a pouco o antigo conteúdo humano de sua vida.”

O homem da fábula foi dominado e destruído pela serpente, assim como


os pacientes de manicômios são destruídos pelo modo como são tratados,
chegando muitas vezes a perder toda a memória do que aconteceu antes
de pisarem pela primeira vez em um hospital psiquiátrico. Estas pessoas
acabam virando escravas deste novo sistema.
Júlia, Vanda, Marco e Rosa são apenas alguns exemplos do que pacien-
tes psiquiátricos vivem. Certamente existem pessoas, em todo o mundo,
com muito mais histórias de vivências pessoais para contar, outras pessoas
que tenham sofrido tanto quanto eles, ou até mais do que eles. Muitos
livros já foram escritos em todo o mundo sobre este assunto. E muitos

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ainda serão escritos. Mas nenhum será capaz de fazer o leitor sentir real-
mente o que aquelas pessoas viveram, sabendo do tamanho sofrimento
que elas passaram. Elas, e somente elas, sabem realmente o quanto se
sofre nas garras de um manicômio como era a Casa dos Horrores.
Ainda hoje existem pacientes psiquiátricos sofrendo tanto quanto nos-
sos entrevistados, em todo o mundo. Ainda há muito que se fazer para que
estas pessoas nunca mais sofram estes maus-tratos. Ainda existem pesso-
as achando que, para tratar um doente mental, é preciso trancafiá-lo
como um animal, ou até, em muitos casos, pior do que animais.
Mesmo com o avanço das tecnologias e das novas ciências, o ser huma-
no muitas vezes teima em continuar com seus velhos pensamentos. E não
são apenas os hospitais psiquiátricos que têm cenas desumanas em seus
corredores e salas. Não é preciso ir muito longe...
Em cada esquina, a cada dia, temos provas de que as figuras estão
trocadas. Em manicômios como o Anchieta, os profissionais na verdade é
que são os loucos, por se acharem os donos da verdade, defendendo que
doentes mentais não são dignos de respeito. Mas, no nosso dia-a-dia, se
repararmos bem, veremos que isto também acontece bem ao nosso lado.
Políticos roubam nosso dinheiro pelas costas e ainda se classificam de
inteligentes e dignos de respeito. O cidadão trabalha o mês inteiro e, mui-
tas vezes, gasta todo o seu salário para pagar as taxas impostas por estes
políticos, que, claro, não precisam pagá-las, pois eles são muito importan-
tes para isso. Percebe a troca de lugares?
Pois é, vivemos em um grande manicômio...

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Cronograma:
Em respeito ao nosso leitor, aqui está um cronograma dos fatos ocorri-
dos em 1989 na intervenção da Casa de Saúde Anchieta.

21 de abril – David Capistrano denuncia irregularidades e estabelece pra-


zo de uma semana para que sejam sanadas. Prefeitura ameaça intervenção.

3 de maio – Prefeitura vistoria hospital. Persistem as irregularidades.


A prefeita Telma de Souza decreta a intervenção, pelo prazo de 120
dias, prorrogáveis.

4 de maio – Sehig implanta medidas de emergência e começa avaliação


do hospital e dos doentes.

10 de maio- 1ª Vara de Fazendas Públicas do Fórum de Santos concede


liminar aos proprietários, suspendendo a intervenção.

11 de maio – Prefeitura entra com recurso junto ao Tribunal de Justiça


do Estado, pedindo a cassação de liminar.

16 de maio – Suds/52 ameaça descredenciar o Anchieta.

17 de maio – Prefeitura retoma intervenção, depois de o Tribunal de


Justiça de São Paulo cassar a liminar obtida pelos proprietários no dia 10.

19 de maio – Prefeitura promove debate sobre Saúde Mental, na Facul-


dade de Serviço Social, com exibição de vídeos sobre a situação encontra-
da no Anchieta.

20 de maio – Volta a assistência odontológica no Anchieta, há muito

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suspensa pela instituição.

25 de maio – Estagiárias de Psicologia começam a atuar no hospital.

27 de maio – Limitado atendimento a alcoólatras.

2 de junho – David Capistrano denuncia movimento para sabotar a políti-


ca de tratamento implantada pela Prefeitura. Funcionários do hospital aban-
donam o trabalho, dizendo-se ameaçados pela falta de maior controle dos
internos. A situação é contornada com reforço da equipe médica.

7 de junho – Prefeita assina decreto declarando o Anchieta de utilidade


pública, para fins de desapropriação.

8 de junho – Funcionários recebem aumento salarial de 100%.

17 de junho – Franco Rotelli, diretor do Centro Psiquiátrico Regional de


Trieste, Itália, visita o Anchieta.

23 de junho – Juiz Ricardo de Almeida Dias, da 1ª Vara de Fazendas


Públicas, ameaça suspender a intervenção.

26 de junho – Comunidade, funcionários, pacientes e familiares fazem


ato público defronte do hospital, defendendo intervenção.

28 de junho – Telma de Souza inaugura no Anchieta o Ambulatório de


Apoio Psicossocial, para os pacientes com alta.

3 de julho – Despacho do Tribunal de Justiça de São Paulo suspende os


efeitos da sentença de Juiz de Santos. Continua a intervenção.

13 de julho – Marcos Pacheco de Toledo Ferraz, diretor da Divisão

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Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, visita o Anchieta e


aprova intervenção. À noite, faz palestra sobre Implantação Política de
Saúde Mental.

1º de agosto – É divulgado despacho do presidente do Tribunal de Justiça


de São Paulo. Nereu César de Moraes, considerando “um retrocesso inad-
missível ao retorno da Casa de Saúde Anchieta a administração particular”.

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Arquivo Fotográfico

FOTOS RETIRADAS DA HEMEROTECA MUNICIPAL DE


SANTOS “ROLDÃO MENDES ROSA” ESPAÇO LYGIA FEDERICH

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Prefeita Telma confere o

estado do Anchieta

A inação fazia parte do

dia-a-dia do hospital

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Médicos cuidaram dos pacientes com maiores problemas

O descaso com os pacientes era evidente e preocupante

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O famoso “chiqueirinho”: exclusão e sofrimento

A triste situação das fichas médicas e documentos do Hospital

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O interventor Roberto Tykanori

Psiquiatra Suzana Robortella

O artista Renato Di Renzo

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Jô Soares recebe Renato com o pessoal do projeto TamTam

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Os “loucutores” agitam as ondas do rádio com o TamTam

Oficina de arte dentro do Anchieta

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A arte cada vez

mais presente

Com paredes

pintadas pacientes

em nova fase

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Bibliografia
D. O. Urgente, 03.05.1990 – Encarte da edição nº 257 do jornal - 1
ano depois
D.O. Urgente, 06.05.1989 – “Não há recusa de doentes”.
D.O. Urgente, 11.05.1989 – Anchieta: Liminar susta intervenção
D.O. Urgente, 12.05.1989 – Voltam os problemas – José Roberto Fidalgo
D.O. Urgente, 18.05.1989 – Volta a Intervenção - José Roberto Fidalgo
D.O. Urgente, 16.06.1989 – Em Santos, a nova psiquiatria – José
Roberto Fidalgo
D.O. Urgente Especial, 14.08.1989 – As varias etapas da intervenção
Jornal Candura – espaço coberto para um novo pensamento, 06.2005
Documento da Prefeitura Municipal de Santos – Saúde Mental, 1993.
Jornal do Brasil, suplemento cidade, 24.07.1991 – Os 150 anos da loucura
Jornal Folha de São Paulo, 18.05.1991 – Pais desmonta “indústria”
psiquiátrica
Jornal O Globo, 29.10.1989 – “Psiquiatria Democrática” avança no Brasil
– Mauri Alexandrino

www.paulodelgado.com.br
www.saudemental.med.br/CAPS1.htm
www.orgone.com.br
http://noticias.uol.com.br/saude/ultnet/2005/03/24/ult11u2412.jhtm
Centenário de Nise da Silveira: Psiquiatra revolucionou tratamento de
doentes mentais – Juliana Lopes – 24/03/2005 – 14h32

Revista Viver Psicologia – Matéria Especial “Para Onde Vão os loucos”


Revista Isto É, 30.05.1990- Contra o Apartheid mental

MATOS, Paulo. Anchieta 15 anos. Cegraf: Gráfica e Editora Ltda – ME.


Santos / SP, 2004.

122
VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Pers-


pectiva S.A., 1992.
ASSIS, Machado de. O Alienista.
BASAGLIA, Franco. A Instituição Negada. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1985.

Manuel Monteiro, Novos Tempos para o Doente Mental - Literatura de


Cordel, distribuição: Prefeitura de Campina Grande-PB, maio 2004

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