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A Danada da nostalgia

Seguir em frente é fundamental. Mas é preciso que o passado estej bem resolvido
Texto Deborah Couto
Por que será que, por mais que a gente tente, muitas vezes é incapaz de abandonar
determinadas memórias afetivas: imagens que construímos de nós mesmos, velhos
amores, antigos padrões de comportamento? E parece que não adianta mesmo fugir – tais
memórias são nossa bagagem, estarão sempre a nos acompanhar. Claro que tudo isso
depende do uso que fazemos do nosso passado. Pois uma coisa é ter o tempo pretérito
como referência – é por meio do exemplo de pessoas e ações que vieram antes de nós
que procuramos não perpetuar os erros de outrora ou que nos espelhamos para construir
um presente melhor. Isso é essencial em todas as culturas, do velho pajé que conta
antigas proezas da tribo aos mais jovens até os livros de história que nos ensinam sobre
os capítulos sombrios da nossa civilização.

Outra coisa bem diferente (e daninha) é a fixação no passado, quando remoemos aquilo
que já está longe no tempo e no espaço, ou idealizamos (alguém, uma situação, um estilo
de vida) a ponto de não mais conseguirmos olhar para a frente e aproveitarmos o presente
– nosso tempo – em todo seu potencial. Aí entra a danada da nostalgia. Sim, porque a
nostalgia, essa palavra grega que significa algo como “saudade de um lar que não mais
existe ou nunca existiu”, pode ser um obstáculo para o nosso crescimento. Repare em
como num momento ou outro a gente pensa num tempo bom que não volta nunca mais,
numa “era de ouro” (completamente idealizada, uma ficção que mistura memória e desejo)
em que tudo tinha cores mais belas. Ah, antigamente...

Faz mal?

Em The Future of Nostalgia (“O futuro da nostalgia”, sem edição brasileira), Svetlana
Boym, professora de literatura comparada na Universidade de Harvard, nos Estados
Unidos, explica que o conceito de nostalgia, diferentemente do que muitos pensam, não
vem da poesia ou da política, mas da medicina, e data do século 17. Naquela época,
alguém que padecesse de nostalgia podia apresentar sintomas tão variados e nefastos
como náusea, perda de apetite, febre alta chegando até mesmo a complicações físicas
extremas, como inflamações no cérebro e ataques cardíacos. Em suma: nostalgia,
naquele tempo, fazia parte de um temível rol de doenças classificadas pela ciência médica
do período.

“Nos velhos tempos, nostalgia era uma doença curável. Perigosa, mas não letal”, escreve
Svetlana Boym. O tratamento mais difundido era feito com emulsões hipnóticas e ópio. No
século 19, o escritor e médico brasileiro Joaquim Manuel de Macedo (que entraria para os
compêndios como o popular autor do romance A Moreninha) arrolava em sua tese
Considerações sobre a Nostalgia, apresentada à Faculdade de Medicina, complicações
como disenteria e febres. A doença nostalgia era constantemente atribuída aos soldados
em guerra e aos imigrantes vindos do interior. A coisa parecia mesmo tão grave, num
tempo que ainda não vira o aparecimento da moderna psicologia e de todo o aparato
farmacêutico, a ponto de Joaquim Manuel de Macedo tratála como uma espécie de
demência.

Hoje em dia, no entanto, não se toma a nostalgia como uma condição patológica como se
supunha no passado. Ao ser comparada à depressão e à melancolia, por exemplo, a
nostalgia pode ser considerada um estado de espírito, quando a depressão e a melancolia
são doenças em si. “A nostalgia pode ser vista como algo que desperta para a ideia de
que também no presente coisas boas serão possíveis. Somente quem viveu momentos
belos e felizes é que é invadido pela nostalgia, diferentemente daquele que passou pela
vida e não viveu. Por isso, nostálgicos voltam ao passado no qual amaram e foram
amados. Na melancolia ou depressão: nunca foram amados ou amparados”, afi rma a
psicanalista Maria Olympia França.
Faz sofrer

Você certamente conhece a figura: aquele eterno insatisfeito, o tipo de pessoa de quem
mais se ouve que antigamente... – ah! antigamente, como as mulheres eram mais bonitas
(a beleza natural), as ruas mais limpas e o ar mais puro. É bem possível mesmo que a
vida fosse mais amena. O custo de vida era mais baixo e o trânsito, muito menos
estressante. E, lógico, havia menos gente no mundo. Acontece que esse “antigamente”
idealizado nunca mais voltará. Fato é que fabricamos muitas das nossas memórias e não
temos certeza do passado, por isso mesmo é que o tempo pretérito nos parece ter cores
tão mais definidas e ostenta uma cenografia tão impecável. É como um quadro que
pintamos em nosso cérebro. Para Maria Olympia, a nostalgia é uma espécie de
reaproveitamento da tristeza. “Ainda que difusa, ela sinaliza algo que foi bom. Eu era feliz
e não sabia”, afirma a psicanalista. Isso denota o estado fantasioso da nostalgia em
relação ao presente.

Claro que é impossível voltar ao passado, mas trazer seus elementos agradáveis de volta
ao presente é algo bastante concreto. Se você gostava, por exemplo, de tocar violão, mas
não pratica há anos, que tal treinar de vez em quando? Se sente muita falta da casa da
mãe, comer um arroz com feijão no fim de semana pode dar um gostinho do lar para
sempre desaparecido. Não é que vá matar a saudade. Até porque nostalgia e saudade são
coisas diversas. “A nostalgia é um estado mais amplo, mais difuso que um sentimento de
saudades. Enquanto este diminui quando reencontramos o objeto faltante, a nostalgia
pode permanecer mesmo quando reencontramos aquilo de cuja falta nos demos conta”,
diz a psicanalista. Mas ajuda a acalmar o sofrimento.

Pois nostalgia e perda são sentimentos tão parecidos que muitas vezes podem se
confundir. A dor imensa que representa a perda de um filho é um exemplo de situação-
limite que instaura uma condição nostálgica – e que pode desencadear uma baita
depressão, já que as lembranças do passado se convertem em um fardo insuportável.
“Nesses casos, a tristeza levará à impotência, ao sentimento de fracasso e de culpa. Nada
mais é recuperável”, diz a psicanalista. Aí o recomendável é que se trate a depressão
advinda desse processo.
Quando a perda é coletiva, como no caso dos fluxos migratórios (os imigrantes europeus
na virada do século 20 que desembarcaram no Brasil e em outras nações das Américas,
os migrantes do Nordeste que vieram ajudar a construir a riqueza de São Paulo), há a
criação daquilo que se chama uma “memória cultural”. No caso de imigrantes, segundo
estudos, é notada a criação de nichos específicos e a apreciação de locais determinados,
o que a gente pode facilmente reparar em nosso dia a dia. Quem mora em São Paulo ou
em outra grande metrópole, por exemplo, e não conhece uma “turma” muito unida que veio
de outra cidade? Ou restaurantes típicos – cantinas italianas, churrascarias, casas de
sushi – frequentados por grupos específicos? Isso é muito comum. O pessoal elege alguns
lugares, como bares ou casas de amigos, para frequentar e manter o contato com as
próprias raízes. Pois Svetlana Boym explica essa manutenção da memória cultural através
de um “estranhamento e sentimento de solidariedade entre os membros do grupo
estrangeiro, que geram afeto e reflexão”, além de uma “vulnerabilidade ao lugar”.

É universal

Falando assim, até parece que a nostalgia é um estado psicológico exclusivo de


determinados casos: na verdade, a maioria das pessoas a vive sem sequer se dar conta
dela, mesmo que seja de uma vida que não é a sua. Nostalgia do que não viveu parece
complexo demais? Então basta observar o mercado de consumo. O design, a arquitetura,
a moda, o cinema, as telenovelas, tudo está preparado para atender a demandas por
artefatos vindos diretamente do passado. São festas “anos 80” com sucessos da Blitz e da
Xuxa, remakes de filmes clássicos, o Fusca renascido no neorretrô New Beetle, a volta
dos discos de vinil ao mercado. De onde vem esse desejo de eterno retorno? Das
memórias afetivas, das contingências do mercado, é um traço geracional?

De tudo isso um pouco. Cíntia Teixeira, professora de filosofia e coordenadora do IPPEX


(Instituto de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão da Faced), de Minas Gerais, afirma que
a necessidade de trazer elementos de outras épocas para o presente é uma alternativa ao
inevitável progresso do esquecimento. E além disso é um traço geracional, marca
daqueles que estão entre os 20 e poucos e 30 anos. “Em larga escala, a geração Y
participa de grandes eventos culturais com o intuito de rememorar o passado, sem ter a
clareza do que foi e qual a real importância daquela geração e de reviver essa situação”,
diz. E tem mais: o passado trazido de volta tem um bocado de presente. “Os eventos do
passado são manipulados e reconstituídos perante uma audiência do presente,
estabelecendo-se dessa forma uma conexão dinâmica entre ambos os tempos”, afirma.
“Essa onda de nostalgia do passado é muito mais vivida por pessoas que sequer existiam
naquele tempo homenageado que pelas pessoas que de fato estavam lá.”

Svetlana Boym observa que nostálgicos são geralmente pessoas de sentidos mais
apurados. Ora, são os sentidos (audição, olfato, paladar...) que nos arrastam com mais
força para as memórias afetivas. Talvez estejam nos sentidos as memórias afetivas que
movem tais vontades e sensibilidades. Já é folclórica a história do escritor francês Marcel
Proust que, provando um biscoitinho chamado madeleine, foi acometido por um verdadeiro
ataque de nostalgia – o que gerou um dos maiores monumentos da história da literatura, o
romance Em Busca do Tempo Perdido.

Outro escritor, o jovem brasileiro Daniel Galera, autor dos romances Mãos de Cavalo e
Cordilheira, entre outros, diz que, embora não considere a nostalgia característica
predominante em seus personagens, assume vivê-la em seu personagem da vida real. “Eu
tenho nostalgia de uma vida mais solitária, às vezes. Parece que em algum momento vivi
no interior ou numa praia quando era criança, e que tenho saudade disso. Mas sempre
morei em cidades grandes e fui a lugares isolados apenas como visitante ocasional. Esse
tipo de nostalgia quase sempre é uma armadilha, porque é mera construção mental. Você
sente que já viveu aquilo e sente falta, mas não é verdade. É uma narrativa ilusória da
memória”, diz Galera.

Criação e memória, eis os pilares da nostalgia. Julia Valle é estilista e costuma


desenvolver, no mínimo, três coleções por ano. Para cada uma delas precisa buscar
inspirações totalmente novas. Acontece que o totalmente novo demonstra sinais de
esgotamento, dando lugar à repetição, por isso ocorre uma tendência de retorno a épocas
anteriores: “Soa fresco de uma forma, mas ao mesmo tempo já tem aquela garantia de
que foi amplamente aceito em algum momento da história”, diz a jovem estilista, que
confessa que gostaria de ter vivido nos anos 1920.

É particular Márcia e Sílvio (os nomes foram trocados para manter a privacidade das
fontes) se apaixonaram no trabalho: o processo de produção de um curta- metragem. Ele,
o diretor, bem mais velho, tinha uma postura jovem para a idade. Ela, atriz na ocasião, se
sentia compreendida em sua pretensa maturidade. Márcia lembra que a experiência do
filme foi poderosa emocionalmente e a lua de mel durou cerca de um ano. “Foi quando
algo se rompeu e começaram a se abrir feridas, traições descobertas e muita dor”, diz,
afirmando que a partir daí o caso começou a ser tão intenso quanto avassalador. “Perdi as
contas de quantas vezes terminamos e voltamos. Já não sabia mais para o que queria
voltar. Queria um resgate, não conseguia deixar as boas lembranças.” Márcia chegou a se
mudar de cidade para abandonar a memória, em vão. Ela afirma que ainda acreditava ser
mais feliz com Sílvio. “Retomamos inclusive a distância, o que quase me levou à
depressão. Estava prestes a largar tudo diante da doença que nossa vida em casal se
tornou”, admite. Márcia diz que hoje Sílvio a procura de tempos em tempos e ela tem de se
esforçar para não fantasiar um passado que ficou enterrado. “Guardo nossas memórias
com carinho, mas hoje sei que é impossível resgatá- las”, afirma.
Casos como o de Márcia são mais comuns do que pensamos e servem como lembrança
(sem trocadilhos) de que é muito importante ter cuidado com as fantasias. Elas podem
literalmente nos prender a uma realidade inexistente e impedir um desenvolvimento no
presente, além de uma possibilidade de vislumbrar o futuro. Uma saudade dos velhos
tempos ou uma fantasia sobre certo fato do qual você adoraria ter participado podem
alimentá-lo, mas, quando essas sensações se tornam obsessivas, é melhor ficar atento:
finque o pé no presente e bola pra frente.

LIVROS

The Future of Nostalgia, Svetlana Boym, Basic Books


A dor da perda
Será possível escapar de uma grande dor? Não. Mas existem maneiras de atravessar
esse duro capitulo da vida. E, quem sabe, encontrar o lugar justo para abrigá-lo no
coração.
Foi com o peito ainda dilacerado pelo fim do seu casamento que Flávia M. entrou no
Museu de Arte de Montevidéu. Quis ver uma exposição temporária de máscaras africanas,
sem compromisso, durante uma viagem rapidamente providenciada pela família para que
ela pudesse se distrair e relaxar. Ao examinar máscaras e utensílios expostos, seus olhos
foram bater numa cuia ritual usada numa cerimônia realizada para aliviar o sofrimento. A
cuia era mergulhada num grande recipiente com um líquido amargo e passada de mão em
mão para que cada um dos integrantes da tribo sorvesse sua parte e a passasse adiante.
“Saber que a dor que estava sentindo não iria durar para sempre me aliviou demais. Vi que
era minha hora de beber da cuia, mas que, depois, ela seria passada à frente, para que
outra pessoa pudesse experimentála”, conta Flávia. Quer dizer, de uma vez só e num
curto passeio, a moça aprendeu algumas das grandes lições da vida: que o sofrimento nos
torna iguais enquanto seres humanos, que todos passamos por ele e que exatamente por
haver provado desse gosto é que podemos ser solidários com quem experimenta seu
quinhão de amargor. A dor da perda pode sintetizar todas as dores. Ou seja, algo que se
tinha como garantido simplesmente nos escorreu pelos dedos e não dá mais para
recuperar. Acabou-se. Seja a perda de um amor, seja de um trabalho, da saúde, do
prestígio ou da autoestima, enfim, de qualquer coisa que julguemos nossa, o fato é que
nos encontramos diante da dor inexorável de quem perdeu. E esse sentimento pode nos
afetar profundamente. A sabedoria, porém, está em saber que há diferentes maneiras de
viver e reagir diante da perda, e ao doloroso período que a segue. É útil que conheçamos
ao menos algumas delas. Porque, mais cedo ou mais tarde, vai nos chegar a hora da cuia.

Estádio vazio

As perdas permeiam o cotidiano. Desde as mínimas, as ínfimas, aquelas que a gente mal
percebe e que incomodam como uma pedrinha no sapato. Ou também as médias,
chatinhas, como o celular roubado ou o voo de avião perdido. São tantas que, se
fossemos fazer as contas, teríamos uma boa dezena delas por dia. Muitas vezes elas
causam um sofrimento não proporcional a seu tamanho: uma perda boba pode nos
chacoalhar sem dó nem piedade, enquanto podemos passar batidos por algo que deveria
nos derrubar no chão. Isto é, elas dependem não só delas mesmas, mas igualmente de
nós.

São também tão variados os sofrimentos causados pelas perdas que poderiam até gerar
um dicionário. Nessa hipotética enciclopédia, o escritor uruguaio Eduardo Galeano
incluiria, por exemplo, até a dor do torcedor causada pela derrota de seu time. Ele o
imagina “no silêncio retumbante do estádio vazio, onde a noite cai e o derrotado continua
sentado, sozinho, incapaz de se mexer, em imensas arquibancadas sem ninguém”. Tem
maior expressão de desconsolo e solidão, diante de uma perda menor, que essa?

E as dores parecem desproporcionais ao que acontece porque são frutos de uma soma
incontável: não choramos por uma única perda, mas por várias que já nos ocorreram
durante a vida. É um sofrimento cumulativo. Quando desabamos por nada, é porque a
gota d‟água transbordou. “A reação àquilo que perdemos depende muito do histórico
anterior da cada um”, diz o neuropsiquiatra francês Boris Cyrulnik ao analisar o sofrimento
gerado por traumas e choques.

Ele também diz que as pessoas que reagem bem às pequenas perdas (com um alto índice
de resiliência, ou capacidade de voltar a seu estado normal) são as que mais bem se
recuperam diante de um caso mais grave. Quem não admite perder nem em jogo de
buraco obviamente vai ter muito mais dificuldade de superar uma dor intensa. Portanto,
procurar elaborar as perdas menores do cotidiano pode nos preparar para acontecimentos
mais difíceis.

Outro grande fator de recuperação, segundo Boris Cyrulnik, é o apoio que as pessoas
recebem num momento difícil. Quanto mais se sentem amparadas durante e
imediatamente após a situação de dor, melhor será sua resposta. Ajuda também nesse
processo ter experimentado vínculos afetivos anteriores satisfatórios, sejam da família,
sejam de amigos ou de um grupo. “Nesse caso, o sofrimento pode ser bastante atenuado”,
afirma Cyrulnik. “As recordações que temos das ligações afetivas com alguém que nos
amou muito influem enormemente na recuperação, mesmo que elas venham da tenra
infância”, diz ele. Quem foi muito amado costuma reagir melhor às perdas e traumas
porque elas não parecem ser totais e absolutas. “Temos outras referências internas de
amor e afeto em que nos apoiar”, diz. Existe um lastro afetivo que nos segreda que elas
são possíveis de serem superadas.

Em resumo, esta é uma das razões por que as reações emocionais diante do mesmo tipo
de acontecimento variam de pessoa para pessoa: cada um vem com uma mochilinha
diferente nesta vida, e dela fazem parte vivências anteriores. Influem também
características de personalidade e jeitos diversos de se expressar: as pessoas podem
sentir profundamente sem se expressar na mesma proporção ou pouco sentir e fazer um
escândalo. O coração alheio é terra que não se conhece e ninguém pode julgar ninguém.

E quem não foi muito amado na vida ou não treinou o suficiente no cotidiano? Vai ter de
contar com outros recursos, como procurar ajuda entre amigos e grupos de apoio ou fazer
terapia quando a dor ocorrer. Como na vida, querer fazer tudo sozinho nesses casos é
sempre mais complicado.
Vomitando a raiva

Falar sobre a própria dor, desabafar, é igualmente muito importante. “É o começo da


recuperação”, afirma Cyrulnik. “Verbalizar torna a pessoa mais consciente do que
aconteceu. Pela fala, ela se apropria do evento e pode começar a elaborá-lo
psiquicamente. Nesse processo, pode compreender melhor a situação e ultrapassá-la.”

Nesse momento, porém, podemos entrar em contato com uma raiva que escondemos até
de nós mesmos. “Quando uma pessoa perde um companheiro de muitos anos, por
exemplo, ela pode se sentir abandonada – e com raiva de quem partiu. O problema é que,
em nossa sociedade, não se pode falar mal ou criticar quem já morreu”, afirma a psicóloga
junguiana Mônica Giacomini. Essa raiva, não manifestada, passa então para o
inconsciente. “Enquanto não a tocarmos e a elaborarmos, torna-se difícil iniciar um
processo de recuperação”, diz Mônica, que fornece recursos durante a terapia para que o
paciente possa entrar em contato com seus sentimentos mais agressivos.

Outra reação característica é a criação de fantasias, que podem ser essenciais num
primeiro momento, mas que depois impedem o processo de volta à normalidade. A
advogada paulista Regina Pontes manteve o banheiro do seu filho intocado por seis
meses, com a escova de dentes sobre a pia, como se ele tivesse acabado de usá-la. Ela
também não deu as roupas dele, que ficaram no armário, mantinha a cama feita e na
secretária telefônica era a voz do garoto que ainda dava o recado. “Tinha a perfeita
consciência de que mantinha uma fantasia, a de que meu filho ainda estava vivo de
alguma maneira, mas simplesmente não tinha forças para desfazer tudo e assumir que ele
nunca mais iria voltar”, conta Regina. A dor do “pedaço arrancado de mim”, do filho que
morreu, é tão pungente que a pessoa pode ficar, como ela, um mês em estado de choque.
Regina só conseguiu sair dessa situação com apoio de terapia – e do próprio tempo.

E o período de luto não acontece só por uma pessoa que morreu, mas também por uma
relação amorosa que acabou, por uma demissão que gerou uma profunda sensação de
incapacidade e outras situações imponderáveis. “A perda da autoimagem e do amor, por
exemplo, é capaz de gerar um luto tão intenso quanto a morte de uma pessoa querida”, diz
Mônica, que trabalhou durante 17 anos no Hospital das Clínicas de São Paulo dando apoio
psicológico a pacientes que tiveram braços ou pernas amputados. Ela assistiu muitas
vezes ao sofrimento visceral por esse tipo de perda e às reações de luto por isso. São as
mesmas de quem sofre a perda por morte, inclusive com as mesmas fantasias. “No caso
de quem amputa uma perna e posteriormente recebe uma prótese, a pessoa pode reforçar
a fantasia de que tudo voltou ao normal, pois geralmente ela não é percebida debaixo da
roupa”, conta a psicóloga. Algumas mulheres voltam a querer seduzir – e conseguem –,
mas param diante da possibilidade de um envolvimento profundo, que inclua relações mais
íntimas que revelem a prótese. Como nos casos de morte, essa fantasia pode ajudar por
algum tempo, mas depois pode se tornar um empecilho no enfrentamento da realidade.
“Enquanto rejeitar a si mesmo e o que aconteceu, a pessoa vai projetar essa mesma
rejeição nos outros. Para ela, ninguém será capaz de aceitar algo que ela mesma tem
dificuldade de assimilar”, diz Mônica.

Outro luto profundo é o dos pais que têm filhos com problemas físicos ou mentais. “Eles
vão ter de sacrificar a imagem da criança saudável e linda que acalentaram durante a vida.
É também um luto, e muito dolorido, porque muitas vezes não é consciente, já que
socialmente não se permite que o pai e, principalmente, a mãe tenham uma reação de
rejeição com relação ao filho”, afirma Mônica.

A recuperação de todos esses casos inclui utilizar recursos criativos que permitam
assimilar a dor e, ao mesmo tempo, desenvolver maneiras de superá-la. Com isso, a moça
que perdeu a perna será capaz de aceitar sua deficiência e saber que não precisa impedir
sua expressão amorosa por causa de sua limitação e a mãe poderá acolher seu filho do
jeito que ele é, porque terá abandonado a imagem de uma criança idealizada. Às vezes é
mais fácil do que se pode imaginar.
Preparada para a perda?

Vamos passar por perdas ao longo da vida. Por isso, aprender a superar é uma tarefa
infinita

Por Soninha Francine

Olho para ele ressonando na minha cama, aconchegado, esquecido de si e do mundo, seu
corpo quente junto ao meu. Uma reflexão invade o silêncio do quarto como nuvem escura:
“E pensar que um dia vou ver esse corpo sem vida”.

Já vivi esse momento algumas vezes – não muitas, porque não tive assim tantos amores
dormindo ao meu lado. A mente se engaja nos pensamentos, não sei se por autodefesa ou
mania de argumentar: “Talvez você morra primeiro. Talvez vocês morram juntos”. São
ideias algo românticas, com a tristeza dramática das grandes histórias de amor. “Talvez
vocês já estejam separados e distantes quando ele morrer”. Essa é a mais “absurda”. Ele
se vai e eu fico sabendo por alguém que vem me contar, algum tempo depois. Vou me
espantar, entristecer, mas não sofrer com sua falta porque já não estaremos juntos?
Impossível!

Ou seja: até na hora de imaginar a perda, de lembrar e antecipar a dor da impermanência,


a sensação de que as coisas são “para sempre” se impõe. Um de nós vai morrer, talvez os
dois juntos – é da vida. Mas é claro que nosso amor é para sempre, só a morte irá nos
separar. E esse dia está longe, muito longe.

Quando comecei a pensar e escrever sobre “ele” dormindo gostoso na minha cama,
fazendo dela seu ninho, não estava pensando em nenhum dos meus ex-maridos (foram
três #momentohollywood). A lembrança deles veio depois. Estava falando sobre meu
gatinho querido.

Olhei para o bichinho enrolado sobre o cobertor, dormindo como se a cama fosse dele.
Sorri morrendo de ternura, pensando em como pode ficar tão quieto quem é tão vivo, tão
agitado. E pensei na imobilidade e silêncio sem volta. Pensei que um dia meu gatinho ia
morrer, era inevitável, e em como eu ia sentir o fim de toda sua graça, seu carinho e sua
companhia. Mas estava longe, muito longe esse dia.

Não estava. Dali a poucos dias, meu gatinho morreu, atingido por um carro. Eu não vi, me
avisaram que ele estava caído na rua.

Sofri barbaridades e chorei por vários dias. Ainda dói quando me lembro. Sinto a falta dele
correndo pela casa, brincando de esconde-esconde, provocando o cachorro com suas
molecagens. Fico perplexa: “Não existe mais”.

Vejo que o que me mata é a saudade, – mas também o amargo reconhecimento da minha
ingenuidade, meu engano. Então eu pensei que estava preparada para a perda? Que
nada, fui pega de surpresa, caí do cavalo. Agora é deixar o tempo me ajudar a superar.

Aprender é tarefa infinita. Amar, ficar junto, não amar mais, separar, continuar amando,
separar. Quantas vezes ainda vamos passar por isso na vida? Não sei. Sei que vou adotar
outro gatinho e experimentar o amor outra vez.
A hora e a vez

É preciso ter iniciativa – mas também é necessário saber se preparar para o momento
certo de abraçar as oportunidades, sem temer o fracasso nem amarelar diante sucesso

Durante cerca de 20 anos, o escritor catarinense Cristóvão Tez za adiou o projeto


de um livro sobre a crise por qual passou ao se tornar pai de um menino com síndrome de
Down. Quando finalmente lançou a obra autobiográfica, em 2007, conquistou sete prêmios
literários. Sem dúvida, Tezza tornou-se um escritor mais reconhecido. Mas, para o autor, a
grande repercussão ocorreu na vida pessoal. “Finalmente, pude largar a universidade para
me dedicar apenas à literatura”, disse, em um bate-papo na Flip – Festa Internacional
Literária de Paraty, no último mês de agosto. Uma das razões para Tezza ter demorado
tanto a empreender O Filho Eterno foi o medo do fracasso, já que trataria de um tema com
grandes chances de cair na pieguice. Mas o tempo passou e a ideia persistiu.
Principalmente, porque o escritor precisava compartilhar sua história com os leitores.
Assim como Tezza, todo ser humano investe em uma maneira de atender aos próprios
anseios. E o combustível para ir adiante nada mais é do que a iniciativa.

Já dizia a filósofa alemã Hannah Arendt, em A Condição Humana: “Os homens são
impelidos a agir”. O verbo agir, do grego archein, signifi ca justamente “começar”, “ser o
primeiro“, “imprimir movimento a alguma coisa” – e até mesmo “governar”. Ao contrário do
senso comum, a iniciativa não está necessariamente vinculada a um feito extraordinário –
um cargo novo na empresa, um prêmio Nobel ou qualquer outro tipo de notabilidade. Veja
que, para Tezza, escrever O Filho Eterno ajudou, acima de tudo, a reestruturar sua vida
profissional. Nos 20 anos em que a obra não saiu, ele deve ter buscado soluções em uma
série de outros projetos, trabalhos, relações e ideias. “Tentar é natural do ser humano,
assim como inovar”, escreve Hannah.

O que pode inibir a tentativa – e, portanto, a iniciativa – é o receio. Tezza precisou lutar
contra o medo do fracasso e levar em conta o que realmente o motivava a escrever o livro.
Não apenas ele, mas todos nós, vivemos constantemente nesse embate interno. “A gente
é pressionada a não confiar na condição de que tentar é humano e se retrai com medo das
consequências de mudar de emprego, enfrentar o chefe, dizer o que pensa à esposa”, diz
a terapeuta existencial Dulce Critelli, diretora do Existentia – Centro de Orientação e
Estudos da Condição Humana, em São Paulo. Muitas vezes, falta-nos perceber a
grandiosidade do que já temos nas mãos. Como sugere a escritora Clarice Lispector na
crônica “Para Não Esquecer”, é preciso embriagar-se de si mesmo, sem se perder no
querer do que já se tem. Ou seja, tudo o que somos é fruto de uma iniciativa, nem sempre
planejada. “Ela pode ser consciente ou inconsciente, desejada ou indesejada”, diz Dulce
Critelli. Como exemplo, a terapeuta cita o filme Herói por Acidente (1992), em que um
sujeito cujo último objetivo era ajudar os outros de repente se vê salvando vítimas de um
desastre. Por essas e outras, só mesmo recapitulando nossas vidas é que conseguimos
reconhecer as verdadeiras iniciativas.

Ação e discurso

Indo mais a fundo, existir como ser humano é o primeiro passo para se iniciar algo. É por
meio da sua existência que você expressa as próprias ideias. Só assim você pode
estabelecer relações e, a partir delas, gerar frutos. “A ação e o discurso são os modos
pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos
físicos, mas como pessoas. Essa manifestação, em contraposição à mera existência
corpórea, depende da iniciativa”, afirma a filósofa Hannah. Por não sermos só um corpo
que precisa de água e comida, e sim movidos pelo desejo de dar um sentido à vida,
estamos em constante transformação. O que implica rever conceitos e posturas à medida
que o tempo passa. Portanto, não pense que aquele seu amigo pão, pão, queijo, queijo –
há 20 anos chefe da mesma equipe na mesma empresa – é um exemplo de quem tem
iniciativa. “Há pessoas „cheias de atitude‟, mas cuja vida roda sempre em torno das
mesmas coisas”, afi rma Dulce.

O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung observou no ser humano dois fatores que
contribuiriam para que tivesse mais ou menos iniciativa. Ao nascer, o homem tenderia a
ser extrovertido – agir impulsivamente, sem pensar – ou introvertido – pensar muito antes
de agir, se é que vai agir. “Um dos primeiros sinais da iniciativa se dá logo que a criança
entra em contato com o mundo”, diz a psicóloga Regina Nanô, de São Paulo. Enquanto o
bebê mais atirado engatinha pelo novo parquinho e quer subir em todos os brinquedos, o
introvertido observa o ambiente antes de tocar em qualquer coisa. E na iniciativa, segundo
Regina, o que pesa mais é a extroversão. Ao longo dos anos, conforme o indivíduo cresce,
essa característica se reforça ou enfraquece no contato social – incluindo relação com
amigos, colegas da escola e do trabalho e, principalmente, com a família. São
experiências que ajudam a definir nossas reações ora mais intempestivas, ora mais refl
exivas.

A introversão foi um mal que pegou Sérgio Vasconcelos de Luna quando garoto. Segundo
conta, sentia-se uma pessoa inibida porque sua mãe vivia repetindo: “Faça o que eu digo,
mas não faça o que eu faço”. Hoje, psicólogo e professor da PUC-SP, Sérgio acredita ter
construído novos processos para lidar com diferentes situações ao longo de sua história,
descobrindo uma maneira pessoal de dar respostas. “O mais importante não é fazer para
acertar, mas tentar; continuar emitindo um comportamento em direção a uma situação”, diz
Luna. Por outro lado, se tem uma pedrinha que insiste em fi car no seu sapato, nada o
impede de pensar em como usá-la para coçar o pé. Imagine uma criança crescer levando
sustos do próprio pai, um adulto para quem essa é a melhor forma de educar um filho.
Pois dessa maneira foi criado o cineasta inglês Alfred Hitchcock, morto há 30 anos e até
hoje reconhecido como o mestre do suspense, que um dia, ainda na infância, foi
encarcerado durante algumas horas para aprender a não transgredir. Qual não seria o
susto do velho William Hitchcock se houvesse testemunhado o êxito do filho?

Obra coletiva
Muito embora cada um de nós seja movido pelo próprio existir, dependemos também da
construção de relações com pessoas que, ao longo da vida, tornam- se coautoras de
nossos feitos. Em um bate-papo na cidade de Joinville (SC), a atriz Lucélia Santos
relembra seu percurso de atriz televisiva, ainda jovem aclamada como protagonista de A
Escrava Isaura (talvez a única novela brasileira a girar o mundo), mas diz ter se sentido
em sintonia consigo ao se afastar da TV em prol da militância política e ambiental. “Fiz o
que acreditava ser certo”, conclui. De uns tempos para cá, envolvida com produção
cinematográfica, estabeleceu uma parceria com a China – graças à infl uência da
inestimável Isaura, à convicção de sua intérprete e, principalmente, aos acordos que
Lucélia conseguiu firmar por lá. Mesmo sendo autêntica, a atriz precisou chegar a um
consenso com desejos alheios para dar início a uma nova etapa de sua vida. “A iniciativa é
conjunta, e, consequentemente, a construção de nossas vidas acaba sendo uma obra
coletiva, sob influência de todos os lados”, diz a terapeuta Dulce. Até mesmo nas ações
mais íntimas, que implicam rever valores pessoais, estabelecer novas relações e fechar
ciclos, existe uma parceria autoral. Em Tomates Verdes Fritos, filme do início dos anos
1990, a dona de casa Evelyn está com a vida entre a balança e um curso para salvar o
casamento, até que conhece uma simpática velhinha. Graças às incríveis histórias dessa
octogenária, que lutou pela mulher amada em plena década de 1930, Evelyn percebe o
quanto se anulava ao tentar se encaixar nos padrões da “bela mulher” e “esposa dedicada”
que a sociedade exigia. Para o psiquiatra Flávio Gikovate, esse aspecto da iniciativa
remete também ao sentido de liberdade. “É sempre bom refl etirmos profundamente sobre
nossos pontos de vista para sabermos se são nossos de fato ou se foram „inoculados‟
pelos instrumentos de pressão de que o meio social dispõe”, diz Gikovate no livro A
Liberdade Possível.

Em maior escala, as iniciativas conjuntas são capazes de estabelecer novas condições de


existência da humanidade como um todo. A alemã Hannah Arendt já destacava, no fim
dos anos 1950, a infl uência que os feitos científicos tinham e teriam sobre o planeta.
Segundo Gikovate, referindo-se à visão do escritor anglohúngaro Arthur Koestler (1905-
1983), a razão e a criatividade do homem serviriam até mesmo para ultrapassar os limites
da natureza. É o caso do surgimento das estratégias de controle da natalidade, para citar
um exemplo. “Os anticoncepcionais alteraram o destino biológico de nossa espécie”,
observa o psiquiatra.

Até o fim

Aristóteles dizia que todo homem teria uma finalidade. E que essa finalidade estaria no
próprio ato de buscá-la. Para o filósofo grego, as ações e escolhas pessoais já nos
tornariam realizados como ser humano e autossuficientes. “Essencialmente, o fim é aquilo
que você se torna a cada momento. Somos filhos do acontecimento”, conclui o filósofo
Luiz Fuganti, fundador da Escola Nômade de Filosofia, em São Paulo. Há pouco tempo,
em uma feira de livros catarinense, perguntaram à ítalo-brasileira Marina Colasanti se
começou a escrever contos de fadas por causa das filhas. “Eu só os escrevi porque caí
dentro deles sem querer. Assombrada, resolvi ficar”, disse a escritora. Sua relação com a
literatura fantástica se manifestou por volta dos 20 anos de idade, graças a uma urgência
no fechamento de uma edição da revista onde trabalhava. Um dia antes de o material ir à
gráfica, faltava um texto. Foi quando Marina decidiu cobrir o buraco reinventando um conto
de fadas. Hoje, aos 73, tem mais de 30 livros publicados, entre contos, crônicas e poemas
– para adultos e crianças.

Sem perceber, usamos ainda nosso “faro” animal para cada novo começo. “Desde bebês,
estamos atentos como um sapo imóvel que apreende cada movimento do mosquito até
lançar-lhe um golpe certeiro”, descreve Fuganti. A partir daí, nada do que fizemos pode ser
desfeito. Como afirma a terapeuta Dulce num de seus artigos, a cada ação, inicia-se uma
cadeia de respostas e consequências que fogem do nosso controle e tornam seus
resultados imprevisíveis. Mas sempre reveladores de nós mesmos. Tal como na física, a
cada tomada de posição há uma reação: é um processo contínuo, cujas consequências
fogem ao nosso controle e tornam seus resultados imprevisíveis. Mas sempre reveladores
de nós mesmos.

LIVROS
A Condição Humana, Hanna Arendt, Forense Universitária
A Liberdade Possível, Flávio Gikovate, MG Editores
Fim de papo?
A conversa é a base das nossas relações. Mas em tempos em que a
velocidade das coisas nos domina, em que a tecnologia monopoliza nossas
formas de comunicação e em que os textos têm pouco mais de 100
caracteres, como fica o bom e velho diálogo?
texto Rafael Tonon I

Oi, tudo bem? Você está muito ocupado agora? Queria ver se tem alguns minutos
porque eu gostaria de ter uma conversa com você... Pode ser? Então senta aí, fica
confortável. O papo é sério, mas acho que te interessa muito também. Bom, melhor falar
logo de uma vez, né?! Sem rodeios, sem firulas... O que eu tenho para dizer – e espero
que você não me leve a mal – é que nossa relação está um pouco desgastada. E,
quando falo “nossa relação”, não falo só da gente, eu e você, não. Porque, afinal, nem
nos conhecemos há tanto tempo assim, né (faz pouco mais de três anos que eu tenho
frequentado as páginas da VIDA SIMPLES e cruzado com você em uma ou outra
edição). A “nossa relação” que eu digo é a relação interpessoal, os relacionamentos
humanos. E esse desgaste tem a ver – e é isso que eu estou tentando dizer desde o
começo – com uma crise na nossa comunicação, na nossa dificuldade de dialogar com
as pessoas. Pode reparar: vivemos em um mundo em que os povos não se entendem,
em que dentro de casa as pessoas perderam a interação, em que colegas de trabalho
não conversam sobre as tarefas do escritório e até as relações diplomáticas estão
afetadas pela carência de uma melhor comunicação. Enfim, está faltando diálogo!

E, como para nos relacionarmos precisamos conversar com as pessoas e nos fazer
entender, essa falta de diálogo está atrapalhando nossos relacionamentos. Afinal, nosso
bemestar e nossa felicidade dependem de nós, mas também das pessoas com as quais
nos relacionamos e com o mundo em que vivemos. E o diálogo que estabelecemos com
esse mundo e com essas pessoas é imprescindível para nossa qualidade de vida.
Quando bem-sucedidos, os diálogos nos trazem o entendimento, a compreensão, a troca
e a paz de espírito que tanto buscamos. E é sobre essa questão que eu vou falar aqui,
na esperança de que isso interesse, entretenha e beneficie você, leitor – que é meu
interlocutor nesta conversa que estamos tendo implicitamente, mesmo que você só
possa me responder de forma silenciosa. Claro que você não precisa concordar com
tudo o que eu disser, mas, só de ouvir o que eu tenho para falar, já tenho certeza de que
nossa conversa vai valer a pena.

Sinal de evolução A verdade é que as pessoas têm uma necessidade enorme de se


comunicar, de conversar. Falar é uma necessidade orgânica dos seres humanos – das
tribos africanas aos palácios ingleses. E essa interação que o diálogo nos propicia é uma
característica exclusivamente humana. Outros animais até se comunicam, mas
conversar, trocar ideia, isso só nós podemos. Cientistas do comportamento teorizam que
passamos 80% das nossas vidas na companhia de outras pessoas e entre seis e 12
horas todos os dias falando com elas. É um tempo considerável, não?

Segundo alguns deles defendem, foi a aquisição da linguagem, aliás, que determinou
uma série de avanços para os seres humanos, como a organização da sociedade e o
desenvolvimento da nossa capacidade de pensar. “Os homens, unidos com o intuito de
se proteger melhor das circunstâncias adversas e resolver suas necessidades,
estreitaram seus elos graças à constituição de uma linguagem comum”, diz o
psicoterapeuta Flávio Gikovate. Só evoluímos por causa da nossa capacidade de nos
comunicarmos – e não o contrário. A linguagem, aliás, antecedeu ao pensamento. Foi o
esforço para comunicar palavras que desenvolveu nosso cérebro de tal forma que
começamos a pensar. Afinal, precisamos pensar para falar (pelo menos, na maioria das
vezes) e nosso empenho para que a outra pessoa nos entenda através de ideias claras
também ajuda nosso próprio entendimento. Quando você explica alguma coisa para
alguém, você mesmo acaba entendendo melhor o que disse, já que precisa organizar os
pensamentos e sentimentos (e não é esse, afinal, o princípio básico da terapia? Dizer a
seu terapeuta para dizer a si mesmo?).

Antes mesmo da capacidade de falar, nossos ancestrais já se comunicavam pelos


gestos e pelas expressões faciais que faziam parte de seu vocabulário não-verbal.
“Ainda hoje o contato físico é a primeira linguagem que aprendemos”, diz Dacher Keltner,
professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e autor de Born to Be Good: The
Science of a Meaningful Life (“Nascido para ser bom: A ciência de uma vida significativa”,
sem edição em português). “E ele continua sendo nosso meio mais rico de expressão
emocional.” Keltner liderou estudos sobre essa forma de interação pelo tato e descobriu
que ela é capaz de comunicar uma gama ainda mais ampla de emoções que os gestos e
com mais rapidez e precisão que as palavras.Hoje, vivemos numa sociedade que dá um
peso enorme para as palavras. E, numa época em que nos comunicamos quase que
exclusivamente através delas (em e-mails, mensagens de texto, redes sociais), não
percebemos que elas não conseguem sustentar uma conversa sozinhas. É claro que as
palavras são capazes de revoluções, de mudar os rumos do mundo, de escrever
histórias, de narrar sentimentos... Mas não bastam para uma conversa franca.

Muito mais que palavras A conversa tal qual a conhecemos, na sua definição, é aquela
que acontece quando duas (ou mais) pessoas estão frente a frente e se falando. Isso
porque ela envolve a linguagem corporal, os feromônios que invariavelmente emitimos,
os gestos, as expressões faciais, o olhar, o toque. Não é apenar abrir a boca e soltar
palavras; é muito mais que isso. “A conversa quase sempre contém informações
pragmáticas e expressões puras de emoção. É uma arte humana de grande importância
produzida pelas pessoas em todos os cantos”, define o jornalista e escritor Daniel
Menaker, autor de A Good Talk (“Um bom papo”, sem edição brasileira), livro que
esmiúça a história e a importância da conversa nas nossas relações e que acaba de ser
lançado nos EUA. Conversar é uma experiência única, que não pode ser reproduzida.
“Nenhuma transcrição, gravação em vídeo, nem mesmo uma ressonância magnética do
cérebro pode precisar o que acontece na nossa mente durante uma conversa.”

Pensemos em dois exemplos tirados da nossa música popular – duas canções que
ajudam a definir momentos históricos a respeito da conversa, “Conversa de Botequim”
(1935), de Noel Rosa, e “Sinal Fechado” (1969), de Paulinho da Viola (veja as letras no
site: www.revistavidasimples.com.br). A letra de Noel é uma longa conversa do cliente do
estabelecimento comercial com o garçom que o está servindo. Embora a voz do garçom
não apareça ao longo da canção, é notável como a voz do cliente é articulada, convida
ao diálogo, parece fundada em uma vontade de comunicar. Bem diferente da letra de
Paulinho da Viola, em que o discurso é fragmentado, estanque, todo entrecortado. Dos
anos 30 ao fim dos anos 60 do século passado, não foram poucas as transformações
pelas quais passou o hábito de trocar palavras com outros seres humanos, como
atestam essas joias do cancioneiro.

Isso porque uma conversa transcende a questão prática e representa uma das formas
mais genuínas de relacionamento entre as pessoas. “Por isso, o principal ingrediente de
um bom papo é o despropósito, na mais neutra definição da palavra”, escreve Menaker.
Despropósito no sentido de não necessitar de razão específica para acontecer. É algo
que fazemos sem esperar ganhar nada em troca e, por isso mesmo, uma boa conversa
pode ser tão gratificante e interessante. “Qualquer um de nós não consegue recusar um
bom papo. Ou, como diria Agatha Christie, „uma pessoa não consegue resistir à
oportunidade que a conversa dá a ela de se revelar e expressar sua personalidade‟.”
Pelo menos quando a pessoa que está na nossa frente vale um colóquio.
Fala que eu te escuto Já para a comunicação assertiva, por exemplo, o diálogo
acontece quando estão presentes duas habilidades essenciais da conversação: a escuta
ativa e a expressão transparente e verdadeira de suas opiniões, sentimentos e vontades.
Ou seja, uma comunicação ética entre o emissor e o receptor, pautada por respeito,
tolerância e empatia. Empatia, aliás, é palavra-chave de qualquer diálogo onde haja uma
relação emocional e afetiva. Porque o diálogo exige um interesse genuíno pelo outro, de
querer ouvi-lo, conhecer o que de novo ele pode oferecer e compartilhar coisas que
vocês tenham em comum. “A escuta ativa tem um papel fundamental porque ajuda na
transformação do mero ouvinte em um parceiro comprometido com um verdadeiro
diálogo”, diz a especialista em medicina comportamental Vera Martins, autora do livro
Seja Assertivo. Saber ouvir é uma qualidade rara nos dias de hoje – e uma reivindicação
de grande parte da ala feminina, conforme eu tenho escutado (com atenção, juro!) por aí.
“Quando sou ouvido, torno-me capaz de rever meu mundo e continuar. É incrível como
alguns aspectos, que antes pareciam insolúveis, tornam-se passíveis de solução quando
alguém nos ouve”, tascou o psicólogo americano Carl R. Rogers, um dos precursores da
psicologia humanista.

Mas, como a conversa sempre depende de duas pessoas, se tem algum para ouvir, é
porque tem alguém para falar. E talvez seja nessa tarefaque estejamos falhando mais. A
comunicação começa quando expressamos nossas opiniões e sentimentos. O problema
é que nem sempre fazemos isso da melhor forma. “Uma pessoa que apresenta um
comportamento agressivo, por exemplo, tem facilidade de dizer o que pensa e utiliza
uma linguagem direta e reta. E jura que está sendo assertiva. Mas eu diria que não”,
afirma Vera. Muita gente confunde saber se expressar com dizer o que tem de ser dito
com sinceridade, “doa a quem doer”. E aí se instauram os conflitos. Boa parte das vezes
por causa de palavras mal colocadas – e mal compreendidas. Um diz uma coisa, outro
entende outra. “Uma pessoa assertiva usa uma linguagem positiva, sem ingredientes
agressivos. Busca a cooperação do outro para solucionar um conflito entre eles e cuida
para não invadir os direitos do outro e para se expressar de forma franca, mas
garantindo que o outro vai entender o que ele quer dizer.”

E essa preocupação vale não apenas para o que dizemos, mas também para a forma
como dizemos. “Dizer as palavras certas não basta se você não as diz da maneira certa”,
diz Daniel Menaker. “As palavras precisam ser proferidas com a entonação correta, com
a emoção que queremos passar ao nosso interlocutor.” É comum uma pessoa fazer um
elogio ou um comentário positivo e ser interpretada de forma errada, como se tivesse
feito uma crítica. A jornalista Vera Longuini sabe bem como é isso. Autêntica, ela
costuma ter sempre opiniões sinceras sobre as coisas. Mas é por causa da sua voz
grave e de uma maneira “meio italiana de falar”, como ela mesma define, que acaba
sendo mal-entendida. “Sei que as pessoas me acham grossa ou indelicada. Tento me
policiar para ser menos direta, menos ríspida”, diz.

Vamos conversar! A principal falha na comunicação está em apontar o problema no


outros em vez de interpretar o que ele causa em nós. “Porque é mais fácil encontrar no
outro o culpado para nossas divergências, projetar em alguém ou terceirizar a
responsabilidade de disseminar o diálogo”, diz a consultora de comunicação Renata Di
Nizo. Tenho uma pessoa muito querida (que aqui vamos chamar de Luísa) que viu seu
relacionamento terminar por falta de conversa. O marido um dia estourou, disse que não
estava satisfeito e que, por causa disso, estava saindo de casa. Ela tentou mostrar a
importância de eles se entenderem, mas ele estava irredutível. Foi embora no mesmo
dia. “O que mais chateou foi ele não querer sequer conversar sobre uma chance para a
relação, de não tentar corrigir o que pudesse não estar bem”, diz ela.

O grande segredo para resolver as discórdias é buscar a solução e não o culpado. Você
pode compreender a opinião do outro e pensar diferente.
Mas isso significa discordar do pensamento do outro e não da pessoa do outro (e muitas
vezes interpretamos a discordância como uma não-aceitação). “A partir do momento em
que as pessoas falam o que precisam, em vez de apontarem o que está errado com o
outro, o entendimento aumenta”, afirma Renata. “Ao compreender a importância do
diálogo, você assume a responsabilidade sobre sua expressão e
sobre seus relacionamentos.”

Novas tecnologias Se, para estabelecer conversas mais significativas, precisamos


reaprender a forma como falamos, imagine quando nos deparamos com meios de
comunicação que são totalmente novos. Não é de estranhar que estejamos tateando
para fazer ajustes na forma como nos comunicamos por meio do e-mail e das redes
sociais. John Freeman, o editor da prestigiosa revista literária Granta, acredita que é a
velocidade com que estamos nos comunicando que está prejudicando nossas relações.
Como as mensagens, os e-mails, os chats estão cada vez mais rápidos, nós nem sequer
damos muita atenção ao que escrevemos. Mal começamos a digitar e logo estamos lá,
apertando “Enviar”. Por isso, Freeman escreveu um manifesto a favor de uma “slow
comunication” no livro The Tyranny of E-mail (“A tirania do e-mail”, sem edição
brasileira). Ele questiona que a conversa real perdeu o território para as conversações
online. Falamos com 50 amigos por dia online, mas com quantos deles batemos um bom
papo? É isto que Freeman defende que está se perdendo: a importância de prestar
atenção no que ouvimos ou falamos, de pensar em cada frase que escrevemos.

Mas é preciso entender que os meios de comunicação podem mudar o modo como nos
falamos, mas não vamos deixar de falar por causa deles. “A comunicação é algo muito
anterior aos meios de comunicação; eles têm de ser vistos como acessórios, não
empecilhos”, afirma a cientista social Heloisa Pait, que pesquisa nossa relação com
esses meios. Nós vamos aos poucos aprendendo o papel de cada um deles. “Quando o
celular entrou em nosso cotidiano, as pessoas interrompiam a conversa para atendê-lo,
como se tivessem ouvido um alarme.” Até que esse aprendizado ocorra há, sim, um
grande desafio. “Não é fácil mesmo, estamos aprendendo o que tem sentido e o que não
tem. E aí, o que conta não é mais a tecnologia; é nosso interesse no outro”, diz. Essa é a
lição que deve ficar para pautarmos todas as nossas formas de comunicação – sejam
elas reais ou virtuais. Estamos conversados?

LIVROS Born to Be Good: The Science of a Meaningful Life, Dacher Keltner, W.W.
Norton A Good Talk, Daniel Menaker, Twelve Seja Assertivo, Vera Martins, Campus

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