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KAMINSKI, L. F. A Trajetória de Salin: memória, artesanato e comunidades alternativas.

In: Anais do VII Encontro Regional Sudeste de História Oral. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,
ABHO, 2007.

Trabalho apresentado no VII Encontro Regional Sudeste de História Oral, Rio de Janeiro,
2007.

A Trajetória de Salin: memória, artesanato e comunidade alternativa

Leon F. Kaminski
Universidade Federal de Ouro Preto

A década de sessenta ficou famosa pela ascensão dos movimentos de


contracultura, que contestavam os valores conservadores da sociedade e o
“sistema” capitalista, buscando transformá-la pela via do protesto pacífico e
através de mudanças nos modos de vida. No Brasil, que vivia em pleno período
ditatorial, muitos jovens que, entusiasmados com o “paz e amor”, botaram a
mochila nas costas e pegaram a estrada, chegaram na cidade mineira de Ouro
Preto, alguns foram morar em comunidades alternativas formadas em distritos do
município e da região. O início dessa invasão dos hippies na cidade dos
inconfidentes teria se dado em grande parte a partir de 1967, estimulados pelo
clima cultural dos primeiros festivais de inverno promovidos pela Universidade
Federal de Minas Gerais. A partir de então, esse fluxo se ampliaria na década
seguinte e permaneceria nos anos oitenta. Entretanto, num tempo em que
qualquer atitude diferente das estabelecidas como normais provocava suspeição,
esse modo de vida anormal e contestador provocou reações do conservadorismo
ouropretano. Um caso emblemático nesse aspecto foi a prisão do conceituado
grupo teatral Living Theater no ano de 1971 e que gerou repercussão
internacional.

Na década de oitenta ocorre a formação de uma comunidade alternativa


em Santo Antônio do Leite, distrito de Ouro Preto. São pessoas exóticas,
cabeludas e barbudas com roupas multicoloridas, os primeiros hippies que lá
chegaram. Eles passariam por um processo de aproximação com a população
local que havia reagido ao choque cultural. Perseguindo formas auto-sustentáveis
de vida dedicaram-se à produção artesanal. Acabou-se tendo nesse ponto um dos
principais laços que ligariam a população local e os que chegavam de fora. Mais
tarde, essa localidade tornar-se-ia um importante pólo de artesanato em prata. Um
desses jovens era Jamil Assaf, conhecido também como Salin. Rapaz que em
meados dos anos 70, com o intuito de buscar a pedra filosofal, saiu da casa dos
pais e largou o emprego em Belo Horizonte. Vivendo do artesanato e morando em
comunidades na região dos inconfidentes, ele fez parte dessa juventude que
ousou ser diferente.

Este texto se constitui no primeiro produto de minhas pesquisas sobre


as histórias e as memórias do movimento hippie e da contracultura no município
de Ouro Preto. Esse estudo que está em fase inicial e tem como objetivos resgatar
as histórias do movimento hippie em Ouro Preto, suas memórias individuais e
coletivas e suas identidades sociais. A metodologia escolhida para esse projeto é
a História Oral, compreendendo-a como importante ferramenta para a escrita da
história a partir da memória e que contribui para o destaque e o reconhecimento
das diferenças e semelhanças das identidades sociais.

Neste artigo, após uma discussão sobre a contracultura e o movimento


hippie no mundo e algumas de suas manifestações em Ouro Preto, faremos uma
análise das entrevistas realizadas com Jamil Assaf, sua vivência em comunidades
alternativas e o trabalho com o artesanato como forma de identidade.

Contracultura e Movimento Hippie

A contracultura, que teve uma de suas principais origens na geração


beat, manifestou-se de forma heterogênea, expressando-se de diferentes formas
no mundo. Conforme Rosangela Patriota (2005; p.2):

Esse período da história do século XX, sem dúvida, mudou o rosto da


sociedade ocidental. Produziu movimentos que redimensionaram valores,
idéias, objetivos e, ao mesmo tempo, alavancou reações conservadoras.
Em verdade, sob a égide da expressão anos 60, estão agrupadas
experiências díspares e, muitas vezes, contraditórias, que impedem a
uniformização deste universo.

Segundo Luís Carlos Bresser Pereira (1972), a contracultura teria


nascido da contestação ao sistema cultural da tecnoburocracia presente tanto no
capitalismo quanto no comunismo soviético e nos golpes militares nos paises
subdesenvolvidos. Seria ela uma reação contra a civilização da técnica e do
racionalismo utilitarista. No período da guerra fria, esses movimentos eram uma
alternativa à bipolaridade – esquerda/comunismo x direita/capitalismo – que era
oferecida pela sociedade.

Enquanto que nos Estados Unidos a contracultura, devido à guerra do


Vietnã, teve um forte caráter pacifista, na Europa ela vai ter grande força nas
rebeliões estudantis de 68 na França e em diversos outros paises. Segundo
Pereira (1984, p.39), “a juventude européia carregava consigo o peso de uma
longa tradição de luta política de esquerda bastante institucionalizada”, já os
jovens norte-americanos contavam com um “background radical de esquerda bem
menos sólido”. Assim, nos EUA brotaram novas formas de contestação e luta
política onde tiveram um campo mais fértil para se desenvolver. Patrícia
Marcondes de Barros (2001; p.92) coloca que:

Nos Estados Unidos, apesar da Contracultura ter tido grande ressonância


no plano cultural e comportamental, havia também uma grande
contestação de cunho político, eclodindo em movimentos pacifistas contra
a guerra do Vietnã e ao sistema capitalista, caminhando ao lado das
reivindicações dos direitos civis das chamadas minorias, a exemplo do
movimento negro, do movimento feminista, do movimento dos
homossexuais, entre outros, atingindo às classes médias e baixas da
sociedade.

O movimento hippie era uma dessas experiências díspares e


contraditórias ocorridas nos anos 60, citadas por Rosangela Patriota. Ela é
somente uma das manifestações da contracultura norte-americana. Entretanto,
não é de fácil tarefa conceituar ou delimitar o que é um hippie, pois tal movimento
foi altamente multifacetado e heterogêneo. Com relação ao Brasil, essa tarefa se
dificulta ainda mais, uma vez que é uma influência cultural exterior que acabou
sendo também absorvida por parte da juventude como uma moda e não uma
ideologia. Aqui analiso algumas manifestações dessa contracultura norte-
americana presentes na juventude brasileira dos anos sessenta aos oitenta.
Considero a hipótese de que tenha havido um movimento hippie brasileiro, com
todas as suas peculiaridades e bebendo direto da fonte estadunidense. Não uma
extensão, às vezes um híbrido entre as duas (contra)culturas, em outros
momentos uma mera reprodução consubstanciada pela cultura de massa.

No Brasil que vivia sob a égide de um regime autoritário, a principal


influência em termos de contracultura teria sido proveniente dos Estados Unidos,
mas suas manifestações teriam se restringido, conforme Patrícia de Barros, “à
crítica comportamental e cultural de uma classe média insatisfeita” (p.92). Era
visto como algo exótico, despolitizado, uma curiosidade oriunda dos EUA.

Essas preocupações, muitas vezes, não foram devidamente


aprofundadas, porque o combate ao Estado Autoritário tornou-se a
principal bandeira de luta e, ao mesmo tempo, possibilitou que
manifestações afinadas com a contracultura ou críticas à ortodoxia da
esquerda fossem compreendidas como despolitizadas. Assim, no universo
político-cultural brasileiro, a expressão anos 1960 possui significados
particulares, em sintonia com a conjuntura daquele momento histórico.
(PATRIOTA, 2005; p. 3)

O trabalho com o artesanato era uma das formas de crítica à sociedade


capitalista e industrial. Maneira também para os hippies e as comunidades
alternativas se auto-sustentarem. Essa relação é discutida por Edgar Morin em
entrevista1 citada por Manoel Hygino dos Santos (1978. p.55):

Nascem e morrem comunas. As que duram compreenderam que careciam


de uma base econômica e por isso seus integrantes trabalham. Um tipo de
trabalho que não é evidentemente industrial, convencional, mas que, ao
contrário, permite uma união do espírito e do corpo. Assiste-se, assim, ao
retorno ao artesanato sepultado pela civilização industrial e se afirma
como talentos nos objetos de couro feitos à maneira indiana.
1
MANCHETE, no 995, de 15 de maio de 1973, Rio de Janeiro. Citada por DOS SANTOS (1978).
Com relação à contracultura na cidade de Ouro Preto conseguimos
vislumbrar um pouco do seu cenário através informações coletadas por meio de
conversas exploratórias e algumas outras referências que são as bases iniciais
para nossa pesquisa. O professor aposentado da Escola de Belas-Artes da
UFMG, José Tavares de Barros, um dos integrantes da organização do primeiro
Festival de Inverno no ano de 1967, relata:

A cidade histórica vivia mergulhada nas tradições e nos rígidos costumes


da antiga capital. (...) É bom lembrar que a ditadura militar ensaiava os
passos da radicalização, que ocorreria dois anos depois. Ouro Preto seria
também lugar privilegiado de expressão libertária, válvula de escape
contra o clima cinzento de repressão, feito de desconfiança e medo, que
ameaçava o direito universal de ir e vir. Tudo isso provocava a
onipresença de agentes do DOPS e da Polícia Federal, infiltrados entre os
visitantes, de olho na maconha e nos hippies. Estes, acampados em
praças e bairros, vendiam artesanato e contentavam-se com os ecos da
festa. (...) Do palanque da televisão de audiência nacional, o animador
Flávio Cavalcante alertava as mães para o perigo de ir a Ouro Preto: ‘Zelai
pela honra de vossas filhas“. (BARROS, J. T.)

Teria sido nesse período, que Ouro Preto estabeleceu-se como um


ponto de referência no roteiro dos hippies em Minas Gerais. Durante os festivais
de inverno eles tinham a oportunidade de vender seus trabalhos e de interagir com
um grande número de pessoas do país e do exterior interessadas em arte e
cultura. Porém, a reação e a repressão tinham força. Além de o país estar vivendo
uma ditadura militar, havia em Ouro Preto uma forte atuação do movimento
conservador Tradição, Família e Propriedade (TFP). No ano de 1971, o
conceituado grupo de teatro contracultural Living Theater, fundado em Nova York
em 1947 e formado por atores de diversos países, foi preso em Ouro Preto
acusados de subversão e posse de drogas. O grupo, na época, estava realizando
oficinas com os moradores da Saramenha, operários e suas famílias (TROYA,
1993).

Em razão do estilo de vida do grupo e de suas intenções teatrais, um


padre local, após assistir uma das peças, e a organização Tradição,
Família e propriedade (TFP) movem uma campanha contra o grupo que
culmina na prisão dos integrantes do Living (FIUZA, 2006; p. 224).

A prisão deles gerou repercussão na mídia internacional, o governo


brasileiro recebeu diversas cartas de pessoas de renome2 pedindo a libertação
dos atores. Eles ficaram presos por meses, até que a policia não conseguiu mais
sustentar as provas, e o governo a pressão internacional, então eles foram
expulsos do país. Essa exposição da cidade na mídia, vinculando-a a
contracultura teria provocado um aumento da presença e passagem de hippies na
região.

Carlos Tavares (1985) expõe os diversos formatos de organização do


movimento comunitário alternativo, também cita a existência da Associação
Brasileira das Comunidades Alternativas, sediada em São Lourenço, sul de Minas
Gerais. Em relação a esse tipo de comunidade em Ouro Preto, tivemos contato
com informações sobre as que se instalaram nos distritos de Amarantina e Santo
Antônio do Leite, a primeira em meados da década de 70 e a segunda
estabelecida no início dos anos 80. Ambas foram comentadas por Jamil Assaf que
nelas viveu e que discutiremos a seguir.

História Oral, um dos caminhos a serem trilhados

Utilizo-me da definição de Paul Thompson (2002; p.9), compreendo


como História Oral “a interpretação da história e das mutáveis sociedades e
culturas através da escuta das pessoas e do registro de suas lembranças e
experiências”. A História Oral é também uma história “viva”, o pesquisador fica
frente a frente com o sujeito, com a fonte, e essa fonte literalmente fala.

É da experiência de um sujeito que se trata; sua narrativa acaba colorindo


o passado com um valor que nos é caro: aquele que faz do homem um
indivíduo único e singular, um sujeito que efetivamente viveu – e, por isso

2
“Houve pressões contra a prisão e um movimento no estrangeiro reuniu um amplo arco de apoio
dos mais diferentes setores: John Lennon, Yoko Ono, Bob Dylan, Mick Jagger, Jane Fonda, Allen
Ginsberg, Arthur Miller, Susan Sontag, Samuel Backet, Jean Genet, Stephan Brecht (filho de
Bertold Brecht), Bernardo Bertolucci, Pier Paolo Pasolini, Jean-Luc Godard e Jean-Paul Satre”
(FIUZA, 2006; p. 225).
dá vida a – as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão
distantes. (ALBERTI, 2003; p.1)

A autora, do mesmo modo, discute o caráter totalizante da História Oral,


onde as entrevistas constituem num constante esforço de construção de um
sentido e de uma síntese para o passado vivido.

Ora, numa entrevista de história oral, essa busca de sentido e de síntese


se faz a todo momento, não só com relação à trajetória de vida do
entrevistado, como também com relação a todo o passado em questão. Os
relatos vão ganhando sentido à medida em que vão sendo narrados,
acumulando-se uns aos outros. Uma entrevista de história oral é também
um projeto de pôr em ordem, de dar sentido e coerência, de totalizar,
portanto, a experiência antes fragmentada. (ALBERTI, 1998; p.2)

Com relação às fontes existentes sobre contracultura no Brasil, elas


normalmente são frutos de suas produções artísticas, como a música, teatro,
artesanato, imprensa alternativa, etc; ou uma visão dos meios de comunicação de
massa, como jornais e revistas. Esse fato é também devido ao caráter marginal da
contracultura. Apesar do movimento hippie ter tornado-se modismo, sempre
manteve um caráter undergroud; além de fragmentado e heterogêneo, não havia a
sua “voz oficial”, e nem era essa a intenção deles, e também não é a minha. A
utilização de fontes oral nos permite a recuperação de informações que não
encontramos em documentos de outra natureza, a respeito de padrões e
acontecimentos pouco conhecidos (ALBERTI, 1990). Para Thompson (1998), “na
flexibilidade intrínseca do método, baseado numa relação de exploração e
questionamento, no contexto de um diálogo com o informante, estaria o segredo
de seu potencial”.

Mas uma de minhas intenções é o resgate da memória coletiva e


individual do movimento hippie e relações de identidade. Entendo que através da
produção das fontes por meio da História Oral conseguimos captar por base o
individual, o singular, como representação da heterogeneidade do grupo social. “A
memória, como substrato da identidade, refere-se aos comportamentos e às
mentalidades coletivas, na medida que o relembrar individual encontra-se
relacionado à inserção histórica de cada indivíduo” (DELGADO, 2006; p.50).
Cristina Madrazo (1997; p.14) coloca que “a memória coletiva alude ao domínio da
apropriação social do passado; mais concretamente, à construção de uma
história”.

Salin: artesanato, comunidades alternativas e repressão

Assim, no presente trabalho analisaremos a trajetória da vida de Jamil


Assaf, o Salin, que através de seus depoimentos3 expõe em suas memórias os
aspectos contraculturais de uma vida alternativa.

Jamil Assaf é de origem árabe, mas veio para o Brasil ainda criança,
com três anos de idade, indo morar em Belo Horizonte. Seu pai era um ex-militar e
sua família excessivamente conservadora. Estudou mecânica no Senai, pois seu
pai exigia que ele tivesse uma formação, isso o levou a trabalhar na Fiat.
Entretanto, Jamil (2007a) relata que desde criança se interessava por artesanato:

Eu já com dez anos de idade eu já fazia... Eu morava num lugar em que


tinha que pegar o ônibus. O ônibus era em frente de um monte de loja de
couros. Então uma vez eu, com dez anos de idade, mais ou menos, cismei
em comprar um pedaço de couro e fazer uma bolsinha porque na época
tinha moedinhas, então, eu vi uma moedinha que meu avô tinha, achei
interessante, e via aqueles couros, me deu uma coisa. Comprei um
pedacinho de couro. Cheguei em casa cortei e fiz uma bolsinha para
guardar moeda. Aquilo para mim, acho que foi o principio.

Jamil foi dividindo seu tempo entre os estudos e trabalho na Fiat com o
artesanato, até que teve acesso à literatura hermética.

Eu tinha um amigo de Ouro Preto. (...) Esse amigo conseguiu por meio da
família dele uns livros antigos de... Que era de um padre que pertencia à
família dele. E dentre desses livros eu encontrei um de... eu não me
recordo a data ao certo, (...) mas eram tratados herméticos. Então aquilo
me fascinou. Era escrito em espanhol, porém, deu pra entender algumas
coisinhas. Fui pesquisando, pesquisando e... E lendo, assim, na medida
que eu ia entendendo. Foi uma leitura muito demorada, porque além de
ser uma coisa incógnita, escrito em espanhol. (...) E aquilo ali me fascinou.

3
Foram realizadas duas entrevistas com Jamil Assaf, ambas no mês de agosto de 2007.
Por eu ser mecânico não tinha jeito. Então, eu, ah, “se eu vou buscar a
pedra filosofal, se eu vou a busca da pedra filosofal eu tenho que tem uma
forma de viver sem depender da mecânica”. Porque a busca da pedra
filosofal, algo que exigia dez anos de total dedicação. E aquilo, assim, um
rapaz, aquilo me fascinou, sei que alguma coisa em mim tocou para eu
buscar isso. Então, eu deixei a mecânica, deixei tudo, parti para o interior,
vim para Amarantina. (idem, ibidem)

Em Amarantina, distrito de Ouro preto, havia uma comunidade hippie na


qual ele junto foi morar, juntamente com Estela (sua esposa). Jamil relata a
diversidade dos seus moradores e chama a atenção para a presença de diversos
estrangeiros, principalmente latino-americanos. Essa diversidade proporcionava
um clima de troca de experiências, uns ensinando aos outros novas e diferentes
técnicas. Com chilenos e bolivianos, descendentes de indígenas, aprendera
diversas técnicas de trabalho com couro e tecelagem. Esse mesmo tipo de
convívio também é referido em relação à comunidade de Santo Antonio do Leite,
onde ele vai morar após o êxodo ocorrido em Amarantina.

Tanto esses hippies/artesões como as próprias comunidades eram


sustentadas pelo artesanato. Pela venda dos trabalhos ou sua troca. Utilizava-se
muito o sistema de escambo nessas comunidades mais afastadas; nesses
distritos trocava-se, com os moradores locais, trabalhos por lenha e alimentos.
Eles vendiam os artesanatos produzidos nesses dois distritos em cidades como
Belo Horizonte e Ouro Preto. Um dos pontos de referência para muitas das
pessoas com a qual conversei durante as sondagens iniciais da pesquisa foi a
feira hippie da praça da Liberdade. Muitos disseram ter participado dessa feira.

Para mim a praça da liberdade como... na época, assim, como berço


cultural era o que há. Podia-se dizer que o ápice de cultura mesmo, como
se diz, assim, cultura do povo, não aquela cultura elitizada (...), era o teatro
de rua, as músicas de rua, coisa popular, do povo mesmo. (...) Sempre
tinha coisa nova. (...) Até que, pra mim, a praça da liberdade foi um, pode-
se dizer, palco de grandes manifestações culturais. (...) Era um ponto que
se tornou livre. (ASSAF, 2007b)
Outra questão que está muito presente nos relatos de Jamil Assaf é a
repressão que os artesões e hippies sofriam. Na ditadura militar não eram
somente os “comunistas” que eram presos e torturados, mas também, todos que
fugiam das normas ou que tinham uma visão mais libertária sofriam essa política
do terror.

Em Amarantina nós trabalhávamos artesanato e vendíamos em Belo


Horizonte, vendíamos em Ouro Preto. Tanto é que nós somos os
precursores da praça da Liberdade. Na época, assim, da repressão,
artesão era, nossa, perseguido. Foi uma época muito difícil. Artesão não
era nem considerado artesão, era considerado vadio, tinha policia
especializada que prendia, tomava os trabalhos. Batia e ainda chamava de
vagabundo. Era fogo. (idem, ibidem)

Assim como nas organizações de esquerda, os hippies tinham que


praticamente mudar de nome. Desta forma, Jamil Assaf era conhecido como Salin.

Na época, nem meu nome mesmo eu falava. Eu falava para os clientes “é


Salin, Salin”. (...) Por medo, terror, tudo, muitos nem me conheciam
como... Alguns mais íntimos sabiam que eu era Jamil, mas para muitos,
assim, era Salin (...). Muitos, muitos mesmo, por medo da repressão, não
mostravam o nome. Porque o próprio nome já era taxado como
subversivo, já era procurado, então, adotavam um apelido, um nome
fictício. (idem, ibidem)

Uma das razões para Salin e boa parte dos moradores da comunidade
de Amarantina ter ido embora do distrito teria sido a criação de uma certa paranóia
causada pela repressão da época.

Quando não era taxado de vadio era taxado de subversivo. Era um dilema.
Muitos artesões eram, foram taxados como subversivos e até
desapareceram. Tanto é que chegou uma época que em Amarantina
apareceu uma paranóia geral. Que a policia federal ia aparecer lá, e que
todos os hippies iam... E ocorreu aquele êxodo. Da noite para o dia
caravanas de artesões saíram de Amarantina. (Idem, 2007a)

Após isso, Jamil parte para Santo Antônio do Leite, localizada a 8 km de


Amarantina, onde teria sido o primeiro artesão, junto com Estela, a chegar lá e
montar uma comunidade. A chegada dos hippies ao distrito não teve boa
receptividade por parte da população local. Houve um choque cultural, os
habitantes não estavam acostumados com aquelas pessoas “estranhas”, homens
cabeludos e barbudos, mulheres de saião e cheias de brincos. Salin relata que ou
não vendiam para ele ou cobravam mais caro pelos produtos. Gisela Kasten 4
(2007) comenta que

Era uma comunidade pequenininha. Lembro uma época que teve uma
votação para ver se a comunidade [riso] queria a gente ou não lá dentro. O
povo saiu para votar, se era bom ou não era ter o pessoal de fora.

Com o passar do tempo foram estreitando-se as relações e vínculos


entre o povo local e o pessoal “de fora”. Uma das razões dessa aproximação entre
os grupos foram as relações econômicas, os artesões produziam artesanato e
vendiam fora da comunidade, muitos no início vendiam na Feira Hippie da praça
da Liberdade em Belo Horizonte. Então, os artesões traziam recursos de fora e
acabavam injetando parte na própria comunidade, comprando alimentos, aluguel
etc. Quando houve a ampliação da produção de artesanato em prata em Santo
Antônio, os moradores locais começaram a aprender e a fazer jóias em prata,
aumentando os laços e dando “prosperidade” ao distrito.

Uma das razões para Salin ter ido embora da Comunidade de Santo
Antônio do Leite e de Ouro Preto em meados da década de 80, indo para o
Espírito Santo, foi o falecimento de seu filho, ainda bebê, por falta de assistência
médica. Ainda hoje ele trabalha com artesanato e voltou recentemente a morar a
morar no município.

Identidade

Hippie ou artesão? Isso pode causar certa confusão, até hoje muitos
artesãos são confundidos, chamados de hippies, podendo também acontecer o
contrário. Isso costuma ocorrer porque muitos hippies produziam e vendiam
artesanato, muitos deles permanecem nessa profissão. Jamil Assaf não se
considera um hippie. Ele levanta uma outra questão. Sua visão é de que não teria

4
Ex-moradora da comunidade de Santo Antônio do Leite. Entrevistada em agosto de 2007.
existido movimento hippie no Brasil, somente nos EUA que estava envolvido com
a guerra do Vietnã, os hippies seriam os jovens que desertaram para não ir a essa
guerra. Infelizmente não temos espaço para aprofundarmos esse debate aqui,
porém, podemos colocar o seguinte ponto, ele não se identifica com os hippies,
algo o faz negar esse “rótulo”, internaliza uma rede de significações para isso.
Manuel Castells (1999) define significado como “identificação simbólica, por parte
do ator social, da finalidade da ação praticada pelo ator” (p.23). Portanto, ele se
identifica como artesão e não hippie. Jamil constrói essa identificação após uma
um processo de organização dos significados com bases em subsídios históricos
e sociais, entre outros. Giddens (apud CASTELLS, 1999; p.26-7) afirma que “a
auto-identificação não é um traço distintivo apresentado pelo indivíduo. Trata-se
do próprio ser conforme apreendido reflexivamente pela pessoa em relação à sua
biografia”.

Considerações

Através dessas pesquisas e entrevistas iniciais podemos ter um primeiro


panorama da contracultura no município de Ouro Preto e também os desafios que
tal estudo proporciona. Grupos heterogêneos e identidades multifacetadas
distribuídas em um largo espaço de tempo. Mas enxergamos alguns eventos, não
no sentido positivista do termo, que se fazem presentes na memória coletiva e que
podem nos guiar nessa caminhada. Temos também as questões do cotidiano
como o estilo de vida alternativo nas comunidades, a arte, o artesanato e as
cicatrizes causadas sociedade.

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