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ANOTAÇÕES SOBRE ECONOMIA ÉTNICA E RESISTÊNCIA À ASSIMILAÇÃO

ENTRE MUÇULMANOS EM SÃO PAULO

Cristina Maria de Castro


Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - CEBRAP
cristinamcastro@ig.com.br

Resumo
Segundo teóricos da Economia Étnica, estratégias de auto-ajuda e defesa de
imigrantes podem não só contornar desvantagens culturais, sociais e econômicas, como
atuar, em casos de sucesso, de forma efetiva na preservação de aspectos culturais no
contexto minoritário. Através do estudo comparativo entre dois grupos de imigrantes
muçulmanos no estado de São Paulo, um profundamente marcado pela economia étnica e
outro com seus membros atuando de forma relativamente independente na esfera
econômica, tento analisar até que ponto a atividade econômica comum “solda” um grupo
imigrante e o torna mais resistente às pressões do abrasileiramento. Por fim, procuro
analisar como o perfil ocupacional de cada grupo imigrante influencia a interpretação da
própria ética econômica religiosa.
Palavras-chave: Islã, economia étnica, assimilação

Abstract
According to theorists of the Ethnic Economy area, strategies of self-help and
defence of immigrants can get around cultural, social and economic disadvantages, besides
helping to preserve cultural aspects in a minority context. Through a comparative study on
two groups of Muslim immigrants in the state of São Paulo, one deeply marked by the
ethnic economy and another one with members working independently in the economic
sphere, it is analysed to what point a common economic activity “solders” an immigrant
group and makes it more resistant to assimilation pressures in Brazil. Finally, it is studied
how the occupational profile of each group influences the interpretation of the own
religious economic ethic.
Key-words: Islam, Ethnic Economy, assimilation

1
Introdução

A economia étnica descende dos estudos de minorias historicamente dedicadas ao


comércio, como os judeus da Europa, por exemplo. Atualmente, porém, vem dedicando-se
à análise mais ampla da independência econômica dos imigrantes e minorias étnicas em
geral como uma estratégia de auto-ajuda e defesa de seus membros. Procuro mostrar aqui,
como este tipo de atividade econômica contorna as desvantagens do imigrante e funciona,
em casos de sucesso, como elemento fundamental de preservação cultural no contexto
minoritário.
Através do estudo comparativo entre dois grupos de imigrantes muçulmanos no
estado de São Paulo, um profundamente marcado pela economia étnica e outro com seus
membros atuando de forma relativamente independente na esfera econômica, tento analisar
até que ponto a atividade econômica comum “solda” um grupo imigrante e o torna mais
resistente às pressões do abrasileiramento. No primeiro tópico, discorro sobre as razões do
meu corte de pesquisa ser baseado em um critério religioso e não étnico. Posteriormente,
apresento e descrevo os dois grupos estudados. Por fim, volto-me à análise do impacto da
atividade econômica sobre a coesão dos grupos e sua religiosidade.

Identidades, Islã e ética econômica

Os imigrantes comparados neste estudo possuem mesma filiação religiosa, mas


diferentes origens étnico-nacionais. Imagino que talvez seja interessante, antes de entrar no
debate da economia étnica, explicitar as razões que tornam esta comparação possível e
academicamente proveitosa. O Islã, assim como as outras religiões tradicionais, possui uma
ética econômica própria. A vida cotidiana, no entanto, re-significa as categorias religiosas,
inclusive aquelas referentes à esfera econômica do comportamento. A ética econômica do
Islã é re-interpretada a partir de uma seleção de aspectos específicos, realizada por ambos
os grupos pesquisados, independente de seus perfis étnicos distintos, em um processo onde
o resultado produzido é muito condizente com o tipo de atividade econômica predominante
desempenhada por eles.

2
Os muçulmanos costumam ser vistos como um bloco monolítico e homogêneo tanto
por outsiders quanto por insiders. Diferentes interesses permeiam estas visões defensoras
da homogeneidade. Por um lado, todo um modelo de pensamento desenvolvido desde o
século XIX e denominado por Said (1978) “Orientalismo”. Um projeto acadêmico-político
cujo intuito seria a construção de identidades homogêneas onde elas não existem,
identidades homogêneas e inferiores que justificariam a dominação cultural, política e
econômica dos povos e países muçulmanos pelo Ocidente; França e Inglaterra, a princípio,
e, pós-Segunda Guerra, EUA.
Há ainda uma noção nativa para designar o conjunto de muçulmanos pelo mundo, a
Ummah. Esta se apóia no ideal islâmico de sobrepor a identidade religiosa a critérios
étnicos, nacionais, territoriais ou de classe... O único tipo aceitável de diferenciação entre
os homens seria baseado na fé e devoção a Deus. Este tipo de argumento tem facilitado a
expansão da religião pelo mundo. Como afirma Becker, porém, “os valores de qualquer
grupo social são um ideal do qual o comportamento real pode às vezes se aproximar, mas
raramente incorpora integralmente”. (1994, p. 79) Desta maneira, os ideais da Ummah não
impedem o surgimento de escalas valorativas dentro do grupo religioso, baseados em
critérios não necessariamente atrelados à fé.
Além da identidade religiosa definida a partir de múltiplas possibilidades
encontradas dentro da tradição islâmica (sunismo, xiismo e suas subvertentes e escolas), um
muçulmano ainda ostenta muitas outras identidades como a de gênero, classe, etnia, nação,
faixa etária, ocupação... Neste artigo, especificamente, volto-me para o estudo da possível
influência do exercício de uma atividade econômica comum sobre o discurso (inclusive
aquele relacionado à própria ética econômica da religião) e religiosidade de dois grupos
imigrantes muçulmanos em São Paulo. Diferencio-me das abordagens orientalistas ao
refutar a idéia de uma “identidade islâmica homogênea”, explicitando a diversidade
encontrada entres os muçulmanos imigrantes residentes em São Paulo. Além disso, como
convém a um cientista social, não julgo, nem tampouco inferiorizo seus comportamentos e
idéias.
Concluindo, ao enfatizar os muçulmanos como agentes capazes de re-criar e re-
interpretar suas tradições religiosas, em função dos seus diversos perfis e interesses, fujo da
concepção orientalista de homogeneidade ao mesmo tempo em que mantenho a

3
possibilidade de lidar com a variável religiosa, uma vez que ambos os grupos pesquisados,
independente de suas diferenças étnicas, dedicam-se à re-interpretação da ética econômica
da religião, em um processo bastante condizente com o perfil ocupacional de cada um.

A Liga da Juventude Islâmica Beneficente do Brasil

A Mesquita da Liga da Juventude Islâmica Beneficente do Brasil situa-se na divisa


entre os bairros do Brás e do Pari. Foi fundada para atender a necessidade de um local de
orações para os comerciantes de imigração recente que lá se estabeleceram. Como conta o
libanês Muhammad Chedid, um de seus fundadores, no início, os muçulmanos viviam
espalhados em diferentes localizações, Guarulhos, Penha, Vila Formosa, Brás, Santana,
Cambuci. Desta forma, procuraram construir algo central para todos, na Avenida do Estado,
a chamada Mesquita Brasil. Com o crescimento da cidade de São Paulo ficou cada vez mais
difícil deixar os bairros para ir à mesquita, surgindo a idéia de cada comunidade criar seus
próprios locais de oração, em São Bernardo, Guarulhos, São Miguel...
Quando Chedid chegou ao Brasil, em 1987, logo dirigiu-se ao Brás devido ao fato
de muçulmanos de sua cidade já residirem naquele local. Lá não encontrou nenhum espaço
físico comum onde pudessem se reunir para orações e confraternizações: “então nós do
Brás chegamos e não achamos nada que nos “une”, era cada um com seu trabalho e com
sua religião, só representada por si mesmo”. Alugaram um quarto e passaram a freqüentá-
lo, no início, dois, três, quatro fiéis... Visitaram os muçulmanos do bairro e informaram-nos
sobre a nova sede. Aos poucos, a participação dos fiéis foi crescendo até que em 1998
fizeram um projeto de construção de uma mesquita. Procuraram ajuda financeira através de
países árabes e “árabes que estavam bem de vida no Brasil” e em cerca de seis anos de
arrecadação levantaram dinheiro suficiente para construir a sede. Em uma das aulas de
religião da Liga, proferida por um dos participantes de sua fundação, foi comentado que o
dinheiro do exterior demorou tanto a chegar que foi usado para “comprar carpetes, coisas
assim, inclusive o elevador, que não fazia parte do projeto original, mas com a chegada do
dinheiro resolvemos colocar”1. A doação da comunidade residente no Brasil teria sido a

1
Tal comentário indica uma preocupação em mostrar independência do “mundo muçulmano”.

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principal fonte, onde os fiéis doavam quanto podiam, “havia quem doasse 100 e quem
doasse 100 mil...”, segundo o professor.
De qualquer forma, Arábia Saudita, Kuwait e Emirados Árabes Unidos cooperaram
com a construção desta e de outras mesquitas no Brasil. Segundo Chedid, seriam, ao lado
do Egito, os principais colaboradores internacionais do processo de institucionalização do
Islã no Brasil. Além da ajuda financeira para a construção de mesquitas, financiam sheikhs
para dar aula de árabe e religião no Brasil e fornecem educação religiosa para líderes
muçulmanos locais naqueles países.
Cerca de 200 famílias muçulmanas residem no bairro, a maioria da cidade libanesa
de Trípoli. O comércio de jeans tornou-se o principal ramo de atuação desta comunidade,
assim como o comércio de móveis concentrou boa parte dos muçulmanos de São Bernardo
do Campo. É interessante chamar a atenção para o fato de que a cidade e/ou região de
origem constituiu um fator importante para o estabelecimento dos imigrantes libaneses de
origem muçulmana em áreas específicas, assim como ocorreu com os cristãos libaneses.
A socialização oferecida aos recém-chegados fez ainda com que se direcionassem a
um determinado ramo de atuação, como mostra este trecho da entrevista de Chedid:

“Vamos falar assim, eles se juntaram, se uniram pela mesma causa, então vamos ver, as
pessoas que vieram do Líbano de uma certa cidade e viveram em São Bernardo, por
exemplo, mexem com móveis, as pessoas todas que vieram para o Brás, mexem com jeans.
Então, quem quer vir para o Brás, sem querer acaba entrando neste ramo, por que?
Porque acaba aprendendo, conhecendo este ramo, se envolvendo nele...”

Este processo se dá da seguinte maneira:

“Quando o muçulmano vem para cá para o Brasil e vem recém-chegado, ele não conhece
a língua, não conhece as pessoas... Quem vai dar emprego para ele, quem vai ajudá-lo,
quem vai dar oportunidade? Tem que ser os muçulmanos que estão bem sucedidos porque
eles devem abrir esta oportunidade para ele, não quer dizer que vão dar para ele dinheiro,
ou vão dar para ele uma loja, mas de uma certa maneira, acabam empregando ele,
ajudando a aprender a língua, o ramo. Depois disso, acabam fazendo o papel de fiador
quando for montar a própria loja, alugar uma casa...”

Chedid aponta o dever religioso dos muçulmanos bem-sucedidos em ajudar os


recém-chegados, credita à formação islâmica a solidariedade e apoio aos imigrantes mais
recentes. Defendo a idéia de que a região de origem desempenha um papel importante no

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encaminhando dos imigrantes a esta ou aquela cidade ou bairro e a religião islâmica
completa o elo de ligação estimulando a solidariedade e a cooperação mútua. É preciso
lembrar, no entanto, que apesar disso, é possível encontrar pessoas sem qualquer ligação
étnica ou nacional com aquele grupo que são abarcadas por sua rede de solidariedade, pelo
simples fato de professar a mesma fé. Presenciei um número considerável de casos de
convertidas, migrantes do nordeste brasileiro, que foram absorvidas pela rede de
solidariedade dos imigrantes, ao sofrerem desvantagens no mercado de trabalho,
decorrentes da ausência de capital social no contexto paulistano (fora aquele do próprio
grupo religioso) e discriminação religiosa (pelo fato de usarem o véu na esfera pública).
Nos estudos da área de Sociologia da Religião não é novidade encontrar uma grande
quantidade de migrantes, como as nordestinas do Brás, em comunidades religiosas. Estas
últimas oferecem não só conforto espiritual para a nova vida, mas a possibilidade de rápida
formação de um novo capital social que, em não raros casos, se converte em emprego.
Voltando aos imigrantes, convém salientar que após os libaneses, os maiores grupos
são formados por sírios e palestinos. Há também imigrantes de origem africana, conversos
e uma população flutuante formada por visitantes de diversos países em passagem pelo
Brasil: libaneses, sul-africanos, paquistaneses, etc. Segundo Chedid, os conversos
constituem cerca de 100 pessoas, que costumam freqüentar a mesquita com mais
assiduidade aos sábados, uma vez que o trabalho dificultaria em certa medida sua presença
nas sextas-feiras. Afirmou não ter dados a respeito da quantidade exata de fiéis por gênero,
mas acredita que apresentam-se em números equivalentes.

O Centro Islâmico de Campinas

A comunidade muçulmana de Campinas constitui, de certa forma, uma exceção,


entre outros motivos, pela maior heterogeneidade com relação aos demais Centros
Islâmicos paulistas. Tal fato explica-se pela presença da Unicamp, segundo Mohamed
Habib, líder da comunidade da região campineira. Egípcios deixaram seu país devido à
perseguição política do ditador Nasser, alguns tornando-se professores da Unicamp, como o
próprio líder da comunidade e, no momento da pesquisa, Diretor do Instituto de Biologia da
universidade. Os poucos líbios que foram para Campinas o fizeram basicamente em virtude

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de cursos de pós-graduação ou para exercer uma função docente, também naquela
instituição de ensino. Outros grupos, como os sul-africanos de origem indiana gujarati
compõem a comunidade. Estes deixaram seu país fugindo do apartheid e aqui se
estabeleceram trabalhando como empresários, fundamentalmente no setor de ensino do
idioma inglês. Moçambicanos de origem indiana gujarati já chegaram a constituir maioria
naquela comunidade, porém, decepcionados com as crises econômicas brasileiras
desistiram do sonho de “fazer a América” aqui e deixaram, em sua quase totalidade o país
na época do governo Sarney. Talvez isto possa ser explicado pela ausência de uma
economia étnica que os acolhesse. Não possuíam um capital cultural tão alto quanto os
indivíduos vinculados à Unicamp, o que poderia lhes dar alguma chance de lá serem
absorvidos como docentes ou discentes da pós-graduação… Também não possuíam o
capital cultural advindo da língua inglesa, como os indianos gujaratis da África do Sul, o
que explica o porquê de não terem seguido os passos daqueles. O contexto de recessão
marcado pelo governo Sarney também não favorecia o desenvolvimento de uma economia
étnica por eles próprios naquele momento. Por fim, resta citar que em número muito
pequeno ainda encontram-se, dentre aquele grupo, pessoas provenientes da Malásia e das
Guianas.
Vejo a baixa mobilização do capital social interno para o desenvolvimento de uma
economia étnica naquele grupo como decorrente não da heterogeneidade étnica, como
alguns poderiam supor, mas sim do tipo de capital cultural de seus membros. Em
Campinas, ainda mais do que em outros centros islâmicos do país, a identidade religiosa
comum é vista como suficiente para justificar o casamento entre imigrantes de perfis
étnicos distintos. E se a identidade religiosa é suficiente para promover este tipo de ligação,
não há porque imaginar que também não poderia articular aqueles indivíduos em torno de
uma mesma atividade econômica. Acredito que a principal razão para a baixa importância
do uso do capital social interno para fins econômicos naquele grupo seja o capital cultural
diferenciado que seus membros ostentam, o que lhes possibilitou ingressar no corpo
docente ou discente da pós-graduação, na Unicamp, e no ramo de ensino do idioma inglês.
A heterogeneidade étnica presente em Campinas coloca o ideal da Ummah em
destaque, uma vez que torna-se fator quase que exclusivo de formação de uma identidade
coletiva para os membros daquele grupo.

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O impacto da atividade econômica sobre a religiosidade dos grupos

Compartilho da idéia segundo a qual economias - étnicas bem sucedidas soldam o


grupo e o fortalecem contra as pressões de assimilação, uma vez que a permanência traria
mais benefícios do que seu abandono. O exemplo do Brás nos permite ir além mostrando
não só um perfil de maior resistência à assimilação como também uma postura mais
combativa e ousada com relação ao campo religioso brasileiro, em comparação ao que
acontece em Campinas. A própria ética econômica religiosa é re-significada de maneiras
diferentes nos dois grupos, de formas condizentes com o tipo de ocupação predominante
em cada um deles.
Apresentarei a princípio, exemplos de discursos que esclarecem o tipo de posição
que impera em cada grupo com relação ao campo religioso brasileiro e seus atores. O
trecho abaixo, extraído de um sermão de sexta-feira realizado no Centro Islâmico de
Campinas, mostra uma preocupação em mostrar que o Islã e os muçulmanos são bem vistos
pela Igreja Católica, religião majoritária no país:

“A Declaração ‘Nostra Aetate’ sobre as relações da Igreja com as Religiões Não-Cristãs –


Vaticano, 1966, aprovada por 2.221 votos, mais de 96%, define a religião islâmica como:
Quanto aos muçulmanos, a Igreja igualmente os vê com estima e carinho, porque adoram a
um único Deus vivo e subsistente, misericordioso e onipotente, Criador do céu e da terra,
que falou aos homens. A seus semelhantes preceitos esforçam-se por se submeter de toda a
alma, como a Deus se submeteu Abraão a quem a crença muçulmana se refere com agrado.
Não reconhecem Jesus como Deus: veneram-no, no entanto, como profeta. Honram Maria,
sua Mãe virginal e até a invocam às vezes com devoção. Aguardam, além disso, o dia do
Juízo, quando Deus há de retribuir a todos os homens ressuscitados. Como conseqüência,
valorizam a vida moral e honram a Deus no mais alto grau pela oração, esmolas e jejum.”

A tolerância do Islã, por sua vez, frente não só ao catolicismo, como ao


Cristianismo em geral e ao Judaísmo, ou seja, as religiões dos chamados “Povos do Livro”
também é enfatizada em um sermão de Campinas:

8
“Umas das provas mais implícitas da tolerância no Islam e da garantia à liberdade de
crença, bem como da inexistência de imposição religiosa, é a permissão do casamento de
seu adepto com a mulher não muçulmana.”
...
“Analisando o parentesco resultante do casamento do muçulmano com uma judia ou uma
cristã, percebemos que pela natureza humana isto gera o apoio e a cooperação entre os
dois lados. Maravilhoso é o sentimento que nasce entre os filhos e seus tios paternos e
maternos. Isto é a tolerância, o pré-requisito da paz”.

Em entrevista concedida à TV Bandeirantes, em abril de 2004, o engenheiro civil


Nasser Mussa salientou:

“Há um trecho do Alcorão onde é dito que um muçulmano não dorme bem se tiver um
vizinho com problemas, e este vizinho não necessariamente é muçulmano, isto não é
especificado no texto. Ou seja, o muçulmano deve olhar pelo bem estar de seu vizinho,
muçulmano ou não, deve zelar pelo bem da humanidade, sem distinção de religião”,
lembrando ao fim que “rezamos todos para o mesmo Deus”.

Mohamed Habib, líder da comunidade disse em uma das confraternizações


dominicais que “ser muçulmano é acreditar em todas as religiões (abraâmicas)2”.
Como lembra Edward Said (1981), a doutrina islâmica pode ser vista justificando
tanto a tolerância religiosa quanto o exclusivismo. É interessante, portanto, verificar que
dentre as duas opções possíveis, o discurso oficial do Centro Islâmico de Campinas volta-se
para a primeira, atitude compatível com o perfil da comunidade: pequena, dispersa, bem
integrada sócio-economicamente, com alto índice de casamentos mistos, caso do próprio
senhor responsável pelos discursos de sexta-feira, casado com brasileira católica que “só
depois de um bom tempo” de casamento converteu-se ao Islã. Claro que presenciei ocasiões
em que buscaram enfatizar as diferenças entre o Cristianismo e o Islã, tocando no ponto
considerado crucial, a divindade de Jesus, porém em um número realmente reduzido de
situações.

2
O Islã é apresentado como a última e definitiva revelação da palavra de Deus, iniciada por Abrão. O
Cristianismo e o Judaísmo seriam religiões portadoras das primeiras revelações da palavra divina.

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A tolerância religiosa também faz parte do discurso oficial encontrado na Liga da
Juventude Islâmica, no Brás, porém lá o Cristianismo assume um papel muito maior de
fornecedor de características diacríticas da sociedade local para a comunidade imigrante no
processo de construção de identidade deste grupo. A idéia de que é dever do muçulmano
crer nas religiões reveladas previamente (Cristianismo e Judaísmo) e em seus profetas, faz
parte do discurso oficial da Liga da Juventude Islâmica do Brás, presente nos sermões de
sexta-feira, nas aulas de religião ministradas aos sábados e no website da Liga:

“O Islamismo reconhece todas as religiões anteriores, Cristianismo, Judaísmo e (o


muçulmano) tem que reconhecer todos da cadeia dos profetas. São irmãos de uma fonte só,
uma mensagem só 3.”
...
“O Islam considera Jesus (que a Paz esteja com ele), um dos grandes Profetas de Deus, e
o respeita tanto quanto a Abraão, Moisés e Muhammad (que a Paz e a Bênção de Deus
esteja sobre eles), isto está em conformidade com o ponto de vista muçulmano da
Unicidade de Deus, da Unicidade do guiamento Divino, e do papel complementar das
subseqüentes mensagens dos Mensageiros de Deus”4.

O respeito não apenas ao “profeta Jesus” como à virgem Maria (mulher mais citada
no Alcorão, segundo o Sheikh) é bastante salientado. Porém, aqui, ao contrário de
Campinas, as diferenças entre as religiões são muito mais demarcadas. A começar pela
“confiabilidade” dos livros sagrados de ambas as religiões. A idéia de que a Bíblia teria
sido escrita 300 anos após a morte de Cristo, ao contrário do Alcorão que teria sido escrito
enquanto o profeta Muhammad e seus amigos ainda estavam vivos foi encontrada por mim
no website da instituição, em sermões de Sexta-feira, nas conversas das convertidas…. Tal
argumento é utilizado para justificar a presença de erros na doutrina cristã. A veracidade da
mensagem do Cristo não é negada, nem tampouco, a origem divina dos seus ensinamentos,
mas põe-se em questão o registro de sua mensagem, o qual teria sido responsável por
diversos equívocos na transmissão da doutrina de Jesus. “O Islamismo não veio para anular

3
Aula ministrada em maio de 2006.
4
in http://www.ligaislamica.org.br/jesus_no_islam.htm

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as outras religiões, veio para corrigí-las,” disse o professor de religião da turma iniciante da
Liga.
O sucesso econômico dos imigrantes muçulmanos da Liga, atrelado ao dinamismo
de suas jovens lideranças, faz com que estes se vejam como responsáveis pela educação e
informação religiosa dos brasileiros mais pobres e menos estudados ao seu redor. O
discurso do Sheikh daquela mesquita, citado a seguir, sobre os primeiros árabes no Brasil,
esclarece o auto-atribuído papel destes jovens imigrantes junto à sociedade hospedeira:

“os árabes conseguiram fazer com que em cada bar, em cada esquina, fossem vendidas
esfihas, mas e a palavra de Deus? Não passou nem da primeira esquina. Falhamos nisso e
esta deve ser a nossa contribuição aos brasileiros, levar a palavra de Deus até eles”

A função islâmica de correção da mensagem de Deus é exercida pelos muçulmanos


do Brás através de atividades proselitistas, como aulas de religião para curiosos e
convertidos, eventos festivos, almoços... Há toda uma estrutura naquela comunidade para
receber indivíduos exógenos à comunidade imigrante que manifestem o desejo de conhecer
o Islã. O desejo de expansão em terras brasileiras, por sua vez, é percebido e combatido por
pentecostais da região que não apenas chegam a agredir verbalmente muçulmanas trajando
o véu nas ruas, como a distribuir panfletos “denunciando a escravidão” a que as mulheres
muçulmanas estariam sujeitas...
Durante minha pesquisa de campo pude notar uma forte presença de jovens
pentecostais (fundamentalmente da Assembléia de Deus) nas aulas destinadas aos curiosos
e convertidos, na Liga, aos sábados. Alguns convertidos realmente fizeram parte não só
desta igreja como da Universal também e converteram-se posteriormente. Algumas destas
pessoas, porém, jovens do sexo masculino para ser mais exata, não estavam lá com o intuito
de converterem-se. Apresentavam-se como cristãos interessados no diálogo entre as
religiões e na oportunidade de aprender a língua árabe de graça. Sempre polemizavam nas
aulas de religião fazendo perguntas em sintonia com a cobertura da mídia a respeito do Islã
e dos muçulmanos, como por exemplo: “É verdade que quando um homem bomba se mata
ele vai para céu e ganha 72 noivas virgens? E as mulheres, o que ganham?”
Perguntas constrangedoras como estas eram sempre levantadas por aqueles jovens.
O professor nunca perdia a paciência e sempre tentava responder às questões. Algumas

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convertidas, porém percebiam o que estava em jogo naquelas aulas e viam com maus olhos
a presença destas pessoas. Quando comentei com uma delas a grande presença de
“evangélicos” interessados nas aulas de sábado, ela logo respondeu em tom de reprovação:
“Mas não estão aqui interessados em aprender a religião, não, não é para isso que vêm...”
Certos evangélicos podem estar freqüentando as aulas não por interesse em converterem-se,
mas, ao contrário, por visar impedir novas conversões ao Islã, ou quem sabe, aproveitar
aquela oportunidade como um treinamento para missões evangelizadoras no exterior, em
países muçulmanos. Os árabes parecem não perceber segundas intenções por parte destas
pessoas, mas convertidas como a citada anteriormente percebem algo de errado, talvez até
por estarem mais acostumadas com estratégias de evangelização, inclusive por experiências
prévias com religiões pentecostais. Em Campinas, não foi constatado qualquer sinal de
combate pentecostal, provavelmente devido à baixa visibilidade daquela comunidade,
número irrisório de mulheres usando o véu na esfera pública, baixíssimo índice de
conversões e ausência de atividades proselitistas.
Voltando ao caso da Liga, apenas uma vez pude presenciar uma menção direta das
lideranças árabes aos evangélicos e foi referente ao caso do “chute na santa” efetuado pelo
Bispo Von Helder da Igreja Universal, na década de 1990. Na aula inaugural de religião
para iniciantes, realizada na Liga, no dia 11 de fevereiro de 2006, o presidente da União
Islâmica do Brasil e membro fundador da Liga da Juventude Islâmica citou o caso:

“Pegar o Profeta de mais de um bilhão de pessoas e fazer charges não é errado? Isso é
liberdade de expressão? O padre que chutou a santa fugiu do Brasil porque a polícia não
podia protegê-lo. Eu não rezo para imagem, mas considero no mínimo uma baixaria o que
fizeram com a santa. Pisar na bandeira do Brasil é ofender a todos os brasileiros, não é
liberdade de expressão”.

Utilizou a agressão ao símbolo católico, por um membro de outra religião, para


sensibilizar os presentes para a gravidade da ofensa contra o Islã, causada pelos cartunistas
dinamarqueses e justificar a indignação dos muçulmanos. Mais do que isso, foi interessante
o reconhecimento, por parte dele, da imagem da padroeira católica como símbolo deste
país, reconhecimento da força do catolicismo no Brasil. No mesmo dia, porém, enfatizou:

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“Quando o Islã reinou no mundo, não roubou de ninguém. Inglaterra e França roubaram a
África e o Oriente Médio. Não porque os árabes são nobres, mas porque o Islã proíbe que
se faça isso. O Brasil é um país católico graças à tolerância do Islã porque quando (os
árabes) dominaram Portugal, deram liberdade de crença aos cristãos”.

Percebe-se neste trecho uma visão do relacionamento entre as religiões bastante


diferenciada daquela apresentada em Campinas. Enquanto no Centro Islâmico campineiro
preocupam-se em mostrar que o Islã e os muçulmanos são apreciados pela Igreja Católica,
na Liga, lembram que o catolicismo só impera no Brasil, graças à tolerância dos
muçulmanos que deram liberdade de credo aos países ibéricos durante sua dominação.
A economia étnica bem sucedida no Brás, atrelada ao dinamismo de suas jovens
lideranças, contribui para o fortalecimento da identidade religiosa islâmica e o surgimento
de um discurso mais combativo e ousado com relação ao campo religioso brasileiro. Há
também, naquela comunidade, uma maior freqüência à mesquita, somada a um maior uso
do véu e da barba. Sinais de uma religiosidade islâmica vivida com mais afinco. Em
Campinas, o uso do véu é uma exceção. Em 2004, período de realização da minha pesquisa
de campo, apenas quatro mulheres o usavam. Naquele grupo, o véu foi reduzido a uma
“vestimenta de oração”. O uso da barba pelos homens e a presença dos crentes na mesquita
também aparentam ser proporcionalmente menores em comparação com o Brás.
Por fim, discorro sobre a ética econômica islâmica, re-interpretada por cada um
destes grupos, de forma condizente com seu perfil ocupacional. No Brás, a ética econômica
islâmica é utilizada na condenação da cobrança de juros e defesa do empreendedorismo,
como mostra o trecho abaixo, proferido por um dos fundadores da Liga:

“Islã e EUA não se dão porque não combinam em matéria de pensamento. EUA vivem de
juros. Islã é contra a cobrança de juros, viver de juros é pecado. O Islã é um regime
econômico, político, é uma verdadeira constituição, mexe com toda a vida. Como é
proibido viver de juros, aplica-se o dinheiro para abrir uma lavanderia, uma padaria...
Emprega-se pessoas e resolve-se o problema do desemprego. A América detesta o Islã
porque a ideologia do Islã é contra...”

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Em Campinas, também há uma preocupação em esclarecer a importância do ganho
honesto do dinheiro e a condenação da usura. Mas suas críticas focam de forma bem mais
incisiva o materialismo e o consumismo disseminado pelos “países centrais” e o
conseqüente afastamento de Deus, que justificaria, inclusive, o atraso em que se encontram
os países muçulmanos nos dias de hoje:

“Os países centrais têm o total domínio sobre a economia mundial e sobre os países
periféricos; têm o poder econômico e militar; e ainda, criaram seguidores e representantes
em todos os países muçulmanos, tentando substituir a cultura islâmica pela imoralidade e
pela corrupção, tornando-se comunidades materialistas e espiritualmente fracas,
aproximando-se dos interesses mundanos e afastando-se da religião e do Criador; então,
Ele os abandonou”.O Islã seria “o veículo mais seguro para nos levar, de um lado a uma
espiritualidade completa, e de outro lado, a uma sociedade correta”; o modo de vida que
“nos leva à moderação e ao equilíbrio entre o material e o espiritual; isto é, entre a
satisfação mundana e a felicidade celestial”.

O uso da ética econômica islâmica contra a cobrança de juros e em defesa do


empreendedorismo quase não aparece em Campinas. A ênfase no dever do muçulmano de busca
pelo conhecimento, (nas mais diversas fontes e não apenas na religiosa), porém, é algo mais do que
corriqueiro naquele grupo, em conformidade com o tipo de atividade desempenhada por aqueles
muçulmanos, fortemente atrelados ao setor educacional. O uso da ética econômica islâmica em
Campinas é feito, fundamentalmente, na crítica ao materialismo e ao consumismo, o que por sua
vez, aparece de forma mais tímida no Brás, onde muçulmanos vivem do consumo alheio dos bens
materiais que produzem, além deles próprios consumirem de forma mais ostensiva do que os
integrantes do Centro Islâmico campineiro.

Conclusão

A economia étnica desenvolvida pelos imigrantes muçulmanos no bairro paulistano


do Brás, como estratégia de combate às desvantagens culturais, sociais e econômicas, gerou
não só um grupo economicamente bem sucedido, como também uma religiosidade, ao
menos aparentemente, mais sólida e resistente às pressões de assimilação. Em Campinas, o
tipo de capital cultural ostentado por seus membros lhes possibilitou concentrar-se no setor

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educacional superior e no ramo de ensino do idioma inglês, diminuindo a necessidade de
mobilização do capital social religioso para a criação de uma economia étnica. Trabalhando
de forma basicamente independente e habitando diferentes regiões da cidade, os
muçulmanos campineiros apresentam um discurso religioso muito mais comedido e
modesto, muito mais preocupado com a aceitação do que com uma possível expansão, e
uma prática da religião quase invisível na esfera pública.
Por fim, é interessante ressaltar que a forma como cada um dos grupos se apropria
da ética econômica islâmica também mostra-se compatível com o tipo de ocupação
predominante em cada uma delas. Como uma defesa do empreendedorismo no Brás e uma
crítica ao consumismo em Campinas.

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