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AO LADO DA CRÍTICA

Presidente da República
LUIZ I NÁCIO L ULA DA S ILVA

Ministro da Cultura
JUCA FERREIRA

Fundação Nacional de Artes – Funarte


SÉRGIO MAMBERTI
Presidente

Diretoria Executiva
MYRIAM LEWIN
Diretora

Centro de Programas Integrados


TADEU DI PIETRO
Diretor

Gerência de Edições
MARISTELA RANGEL
Gerente

Centro de Artes Cênicas


MARCELO BONES
Diretor

Coordenação de Dança
LEONEL BRUM
Coordenador

Coordenação Geral de
Planejamento e Administração
ANAGILSA NÓBREGA
Coordenadora Geral
Roberto Pereira
Organização

AO LADO DA CRÍTICA
A história recente da dança
carioca através da
crítica jornalística – 1999-2009

VOLUME 2
2005-2009

Rio de Janeiro – 2009


Ao lado da crítica
10 anos de crítica de dança – 1999-2009
Volume 2

© 2009 Roberto Pereira

Todos os direitos reservados


Fundação Nacional de Artes – Funarte
Rua da Imprensa, 16 – Centro – 20030-120 – Rio de Janeiro – RJ
Tels.: (21) 2279-8053 – (21) 2262-8070
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Produção editorial e projeto gráfico


JOSÉ CARLOS MARTINS

Produção gráfica
JOÃO CARLOS GUIMARÃES

Assistentes editoriais
SIMONE MUNIZ
SUELEN BARBOZA TEIXEIRA

Revisão
ANALUIZA MAGALHÃES

Capa
PAULA NOGUEIRA
(recortes do Jornal do Brasil)

Arte-final digital
CARLOS ALBERTO RIOS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Funarte / Coordenação de Documentação e Informação
Ao lado da crítica : 10 anos de crítica de dança : 1999-
2009 / Organização de Roberto Pereira. – Rio de Janeiro, Funarte,
2009.
2 v.
213 p.; 26cm

ISBN 978-85-7507-123-6
978-85-7507-125-0

1. Dança – Brasil – História e crítica. I. Pereira Roberto.

CDD 792.80981
Agradeço a todos que me
ajudaram nesse percurso da crítica.
Nayse López, por ter me convidado
a escrever a primeira crítica.
A todos os editores e colegas
do Jornal do Brasil com quem
tive o prazer de trabalhar nesses
dez anos. Silvia Soter, colega
de ofício, amiga querida.
Sonja Gradel, por tudo, disso tudo.
...e que o mesmo signo que eu
tento ler e ser é apenas um possível
ou impossível em mim em mim
em mil em mil em mil...

C AETANO VELOSO
Sumário

Apresentação / 15 A lição da bailarina / 47


JUCA FERREIRA
Ministro da Cultura Falta coerência e coesão / 49

Ao lado da crítica / 117


7 Espetáculo Esquecidos
SÉRGIO MAMBERTI de Catharina Gadelha / 51
Presidente da Funarte
Tempo de despertar / 52
O ofício da crítica em dose dupla / 19
(para nossa sorte e deleite) Empenho e capricho não
AIRTON TOMAZZONI fazem obra transbordar /53

Introdução / 21 Poético e orgânico / 55


ROBERTO PEREIRA
Uma leve renovação
na dança-espetáculo / 57
20 05
2005
Um tratado coreográfico / 31 Visita musical a um certo
Brasil, um “país imaginário” / 59
O acaso como um
importante parceiro / 33 Objetos como parceiros / 61

O fim do Dança Brasil / 35 Descompassos / 62

Operação arriscada Schoenberg transfigurado /63


no palco do Rival / 37
O corpo fala / 65
Coragem de apostar no novo / 39
O poder de
Coreógrafos e transformação do Grupo Corpo /67
bailarinos em sincronia / 41
A mão dupla do corpo /69
O balé do desencontro / 43
Na onda do revival / 71
Companhia de Goiás
dança com Elis e Tom / 45 O jazzdance sem alegria e sedução / 73

Mimetismo da bossa nova / 46 Um divisor de águas / 75


Ideia de mundo Entre o fio da ciência e da arte / 114
norteia o espetáculo / 77
Maracanã sem a paixão
Noite sem sutilezas / 79 e a surpresa do festival / 115

Garimpagem do corpo / 81 Quando a dança corre


atrás do brilho da música / 117
117
Fragilidades / 83
Projeto corajoso traz
Espetáculo Orfeu preciosos momentos
de Regina Miranda / 85 em meio a excessos / 119

Eloquência sem limites / 87 Territórios abertos


para a expressão masculina / 121
Força da dança
apenas se insinua / 89 A força da presença do
coreógrafo Bill T. Jones / 123
Belos saltos entre
escorregadas feias / 91 A viagem existencialista
e solitária de um coreógrafo / 125

20 06
2006 Pas-de-deux de
Tradição em corpo brasileiro / 95 história e renovação / 126

Versão 2006 traz Dança brasileira


novidades importantes / 97 em ritmo de inovação / 127

Conexões em trânsito / 99 Tradução elegante das


curvas arquitetônicas modernistas / 129
Quando intérpretes
roubam a cena / 10
1011 As curvas de Niemeyer
em corpos que dançam / 130
Presença de espírito do corpo / 103
Carisma e talento da
O vice-versa de Márcia Rubin / 105 solista salvam a noite / 131

Espetáculo Maratona Quintana Para acertar o passo da dança / 132


de Regina Miranda / 107
No sentido da
Balé confirma talento renovação constante / 134
dos bailarinos profissionais / 109
Ensaios de uma política
Descompasso entre para a dança no país / 136
desejo e realização / 110

Frágil identidade / 111 20 07


2007
Entre o clássico
Bertazzo de esqueceu e o contemporâneo / 141
de suas próprias lições / 112
Pretensão de menos
A caminho da felicidade / 113 faz bem ao grupo / 142
Bailarinos em busca de A poética sem
uma filosofia para os movimentos / 143 concessões de Marcela Levi / 165

Novo palco revela Lia Rodrigues faz


limites do trabalho / 144 obra-prima da dor / 166

Novas alquimias entre Bailarino visionário


bailarinos e coreógrafos / 145 em mais um belo desafio / 167

As grandes estrelas O mestre diante do mestre / 169


são os bailarinos / 147
Mistura de gêneros que não dá liga / 1171
71
Festa brasileira no
melhor dos sentidos / 149 A construção de
um novo vocabulário / 1172
72
Reverência ao
passado de olho no futuro / 150 Estranhamento e fricção num
caldeirão de referências urbanas / 1173
73
Tons monotemáticos
abrem temporada de Nem a dama do teatro se ajusta / 1175
75
apresentações no CCBB / 151
O desafio de se tornar profissional / 1177
77
Festival revela o trabalho
da ótima Focus Cia. de Dança / 1152
52 No programa, uma boa
dose de humor eficiente / 1179
79
Sintomas e clichês contemporâneos / 153
O mapa da dança contemporânea / 180
Festival apresentou
pluralidade mas ficou Estreia da Cia. da Ideia surpreende / 181
devendo em coerência / 155
A dança baila entre / 182
Projeto joga novas linhas e entrelinhas
luzes sobre o exercício
do papel da bailarina / 156 Descompasso entre o / 184
tema e a coreografia
Presença, vigor e segurança em
obras a serviço de uma bailarina / 157 Criação como
diálogo de diferenças / 186
De complexo
não há nada. Só exagero / 158 Excesso de devoção em
espetáculo sem desafios / 187
Vigor e beleza que, sozinhos, não
fazem um bom espetáculo de dança / 159 A proposta é clara, mas
a dança é sem ousadia / 188
Municipal respira
ar contemporâneo / 161 Bela récita, apensar dos nós / 189

Bailarinos de até 22 anos O balé de uma nota só / 190


firmes como veteranos / 163
Alegria para encerrar
Tubos de ensaio ainda em estudo / 1164
64 a temporada de balé / 192
A coreografia Entretenimento profissional / 227
como organismo vivo / 193
Dois caminhos
Coreografia precisa, possíveis de apoio à dança / 228
como um ato cirúrgico / 194
Metade do
Os melhores espetáculo já bastaria / 230
espetáculos de dança de 2007 / 1195
95
Bailarinos se entregam / 231

20 08
2008 “Transcriação” shakespeareana / 232
Muita literatura para pouca dança / 20
2011
Desafio é desfazer má
Em busca de uma identidade / 203 impressão da companhia
Russian State Ballet / 233
Voo rasante de uma
companhia com história / 205
Russos continuam devendo / 234
Falta ensaio, falta coesão / 206
Balé para gente pequena / 235
Coreografia cai na
Sobre o palco, um
armadilha da literatura / 207
ofício que se leva a sério / 236
Elenco de primeira,
repertório discutível / 208 Rigor sem espaço para o desvio / 237

Veteranos do movimento Começo bom, mas com


alternam tecnologia, fim frustrante e triste de ver / 239
‘nonsense’ e elegância / 209
Qu’eu isse / 240
Uma celebração pautada
pelo frescor da criação / 211 Recriação que vira futuro / 241

Coreografias inéditas Em processo de


apresentam risco e conhecer seus próprios limites / 243
surpresa no Espaço SESC / 213
Parceria explora
Gesto vira pilar coreográfico / 215 os limites corpóreos / 244

Mistura irregular Na Bienal de Lyon,


de épocas e estilos / 217
217 passado e futuro em harmonia / 245

Giselle mantém a aura de clássico / 219 Uma construção cristalina / 247

Ânimo renovado para a temporada / 221 Quatro corpos descrevem o amor / 249

Verborragia de movimentos A dimensão exata da dança atual / 250


no flerte de Deborah Colker
com a dança-teatro / 223 Espetáculo H3 de Bruno Beltrão / 251

Falta habilidade na coreografia / 225 Cada gesto é um pequeno mundo / 252


Visão genial do cotidiano / 253 Começou mal, mas / 268
terminou com brilho
Longe dos estereótipos da rua / 254

Uma lição de Outros textos


obviedade e perda de tempo / 255
Dança: imitação
De frente para o público / 256 e metáfora / 273

A atualidade que a obra O meme na carne / 276


sugere, mas não mostra / 257
Quando a dança
João Saldanha abre o fala de si mesma / 277
seu processo de criação / 258
A formação de plateias / 279
Poder público quase
mata o ofício da dança / 259 Die Verwirrungen
des Luiz de Abreu / 280

20 09
2009 A arte de criticar / 282
Falta ritmo à
companhia de Andrea Jabor / 265 As agruras de um
projeto não selecionado / 284
Mostra que cruza
a fronteira dos solos / 266 Bibliografia / 291
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
Apresentação

JUCA FERREIRA
Ministro da Cultura

D urante o processo de criação artística, o momento de reflexão e


pesquisa se faz indispensável para o desenvolvimento da obra. A
partir da produção teórica e crítica, a prática é repensada, aperfeiçoa-
da e adequada a novos contextos. Ao editar o livro A o lado da crítica:
10 anos de crítica de dança – 1999-20 09, o Ministério da Cultura e a
Funarte apresentam a artistas, curadores, produtores, pesquisadores e crí-
ticos um poderoso instrumento de trabalho e oferecem ao espectador de
dança a oportunidade de ampliar seu conhecimento sobre o tema.
O livro reúne críticas, publicadas originalmente em jornais de grande
circulação. Juntas, elas revelam um panorama das ideias, práticas e ex-
periências que marcaram a dança brasileira nos últimos dez anos. Os
autores analisam em detalhes espetáculos que exploram linguagens di-
versas do corpo em movimento. Dessa forma, é possível acompanhar as
trajetórias de renomadas companhias, coreógrafos e bailarinos, nacio-
nais e internacionais, em busca de inovações técnicas e estéticas que
dessem fôlego às suas obras e às suas marcas autorais.
Além disso, são traçados os percursos de alguns dos principais festi-
vais brasileiros, que se destacaram por servir de palco a grandes nomes
da dança, a novos talentos e coreógrafos de vanguarda, por terem se
tornado espaços privilegiados de debate de idéias e por ajudarem a for-
mar novas plateias para a dança no Brasil. Esta coletânea traz ainda
textos teóricos que ajudam a inserir o trabalho do crítico no contexto
maior da história da dança.
Com esta publicação, o Ministério da Cultura e a Funarte reafirmam
os compromissos de preservar a memória das artes e promover a refle-
xão sobre as manifestações da cultura brasileira, investindo assim na
formação de consciências críticas e no desenvolvimento do país.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
Ao lado da crítica

SÉRGIO MAMBERTI
Presidente da Funarte

A o lado da crítica oferece ao leitor registros minuciosos dos principais


espetáculos de dança apresentados nos palcos cariocas nos últimos
dez anos. A obra, que vem preencher uma lacuna da produção intelectual
brasileira, tão carente de títulos que promovam uma reflexão sobre a dança
no país, servirá como ferramenta de pesquisa e referência histórica para
todos aqueles que desejem ampliar seu conhecimento sobre o tema.
A edição deste livro faz parte de um conjunto extenso de ações da
Fundação Nacional de Artes – Funarte voltadas para o incentivo à dan-
ça. Desde 2005, quando o Ministério da Cultura criou o Colegiado Seto-
rial de Dança – espaço de debate entre Estado e sociedade civil –, a área
recebeu impulso inédito. Para atender a reivindicações da categoria,
foram desenvolvidos programas específicos de estímulo à produção, cir-
culação, formação, pesquisa e preservação da memória, contemplando
sempre a diversidade criativa dessa linguagem.
Diretores, bailarinos, coreógrafos, produtores, técnicos e outros pro-
fissionais ligados à cadeia produtiva da dança encontram, por meio das
políticas da Funarte, formas de se capacitar, viabilizar projetos, levar seus
espetáculos a outros estados e realizar pesquisas.
Com a publicação de livros como A o lado da crítica, que estimulam o
pensamento sobre a cultura brasileira, a Funarte beneficia artistas, es-
tudiosos e espectadores, a um só tempo. Além disso, ratifica a importân-
cia de sua atuação como órgão fomentador das artes no país.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O ofício da crítica em dose dupla
(para nossa sorte e deleite)

A IRTON T OMAZZONI
Coreógrafo, jornalista e diretor do
Centro Municipal de Dança de Porto Alegre

A palavra crítica vem do grego krimein, que significa “quebrar”, sentido que
também influenciou a formação da palavra “crise.” E, provavelmente, es-
tabelecer uma crise seja o papel decisivo de um crítico. Uma crise pode gerar,
por sua vez, vários estados: percepção, transformação, e até mesmo choque e
reação. Por isso, uma crise, mesmo que em primeira instância possa parecer
algo negativo, tem um papel determinante e fundamental, ainda mais quando
se fala em arte, ainda mais quando se fala em dança, num País de pouca memó-
ria e tão carente de informação qualificada sobre esta arte.
Por isso, é tão importante e significativa a publicação desta obra, reunindo
dez anos de produção sistemática dos críticos de dança Roberto Pereira (Jornal
do Brasil) e Silvia Soter (O Globo). Seus textos foram decisivos tanto para fazer
um retrato da dança na cidade do Rio de Janeiro, no período de 1999 a 2009,
quanto para um refinado exercício de reconhecimento e provocação do que e
como se produzia, do que se assistia, do que se fazia e se deixava de fazer nos
palcos e nos bastidores, na arte e na política do Brasil. Sim, porque o espaço
aberto por estes dois críticos não foi apenas para dar opinião a respeito de es-
petáculos e eventos. Ambos estiveram sempre atentos e dispostos a alertar, co-
brar, revelar ações e omissões que reverberavam diretamente na dança.
Talvez, por esses motivos, eu fale com certa inveja. Com a inveja de quem atua
em um cenário cultural (de Porto Alegre) que não possui, como outros tantos es-
tados desse País, um crítico atuando sistematicamente e com o mínimo conheci-
mento e vocação para tal ofício. Talvez por isso eu perceba com maior ênfase a
falta que faz o acesso a textos de uma escrita clara e precisa, que analisem a produ-
ção de dança, textos com posições devidamente argumentadas, textos que, quando
necessário, se permitem vibrar, amar, odiar, pois são textos de quem vive a dança,
conhece a dança e torce pela dança. Esses atributos fazem a diferença em um
cenário que, muitas vezes, é o de pseudocríticas de dança redigidas por alguém
sem o mínimo conhecimento da história da dança (sim, não apenas temos uma como
várias), de suas referências, de sua realidade local e global e que acha que emitir
impressões com uma escrita “bacaninha” dá conta do recado.

19
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
As críticas de Silvia e Roberto são a constatação da diferença que uma
postura consistente faz e traz. Para tal, não precisamos concordar sempre com
suas opiniões, que não estão ali em busca de uma unanimidade, mas sim de
uma pequena (pois breve) e necessária porção de alteridade. Alteridade no
sentido de também compreender o mundo a partir do olhar outro, sensibiliza-
do pela experiência do contato com a(s) obra(s). E aqui não falo apenas dos
criadores, “alvo” das críticas, mas de todos os leitores que fazem do exercício
da crítica jornalística uma possibilidade de troca de experiência em dança, e
não só o público carioca. Quantas vezes me interessei por coreógrafos sobre
os quais li nos textos de Roberto e Silvia, quantas vezes descobri que os des-
conhecia, quantas vezes levei seus textos para sala de aula, quantas vezes
acolhi apontamentos que serviam como uma luva para o meu trabalho, quan-
tas vezes discordei e estabeleci argumentos para “no dia em que eu falar com
eles”. Enfim, que coisa mais saudável esta que uma boa crítica produz.
Também por isso a importância desta publicação. Por valorizar um ofício cada
vez mais raro. Pela oportunidade de ler esses textos tão fugidios no jornal que
no outro dia pode estar enrolando peixe. Pela chance de lê-los em conjunto. De
poder relê-los. De poder lê-los complementarmente a partir de duas perspecti-
vas tão singulares e capacitadas. Essa coletânea de críticas é um legado, num
cenário ainda árido da produção bibliográfica sobre dança no Brasil e pratica-
mente nulo no que se refere à crítica fora dos jornais e sites. Mas,
independente de tudo isso, o leitor poderá se deleitar com um generoso exercí-
cio de análise e com o olhar apurado de Roberto e Silvia.
Esta obra também pode ser uma forma de talvez começar a perceber a im-
prensa como um dos vértices fundamentais para que uma produção consistente
de dança se firme. Esta publicação, enfim, é um retrato de dois profundos co-
nhecedores, de dois sensíveis cronistas do seu tempo, donos de um texto perspi-
caz e inteligente, de dois apaixonados que fizeram, nesse período, um bocado
daquilo que precisa ser feito, mas poucos se arvoram, pois o ofício da crítica não
é só feito de louros e exige coragem e rigor. Coragem e rigor que sempre pri-
maram tanto Roberto, que nos deixou tão prematuramente e que tanta falta já
faz, quanto Silvia, que espero que prossiga compartilhando com a gente por mais
um bom tempo seus textos.
E que bom que o Roberto teve a ideia desta publicação, bem como a paciên-
cia de organizar seu material e o da Silvia, além de digitar todas as críticas.
Se ele não tivesse pensado e trabalhado por isso, estas continuariam nos arqui-
vos pessoais e não à nossa disposição. E crédito especial à Sonja Gradel, incan-
sável até descobrir uma forma de não ver engavetado todo o trabalho já feito
pelo Roberto.
Parabéns à Funarte, por assumir essa iniciativa e torná-la possível, com sen-
sibilidade e agilidade. Tenho a certeza de que a dança brasileira agradece.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
Introdução

R OBERTO P EREIRA

D ez anos de crítica de dança na cidade do Rio de Janeiro. Oferecer ao pú-


blico a possibilidade de ter reunidas todas as críticas escritas por mim nesse
período, publicadas ou não, é também traçar um diagrama histórico possível,
cujos personagens compartilham com o narrador o mesmo espaço e o mesmo
tempo. Compartilham a contemporaneidade. Tal fato concede, sem dúvida, um
tom peculiar à leitura dos textos que seguem. E corrobora a ideia de que esse
diagrama não está pronto, e nunca estará, felizmente. Aqui, ele aparece recor-
tado, assumindo, de imediato, todas as falibilidades desse recorte.
Reunir críticas jornalísticas em um mesmo volume, em formato de livro, não é
uma novidade. Mesmo em dança, trata-se de uma prática que vem sendo disse-
minada sobretudo a partir do século passado. A importantíssima produção do
século XIX, por exemplo, que encontra no nome do poeta Théophile Gautier uma
de suas maiores expressões, ganhou versão em livro, inclusive em outros idiomas
que não apenas o original francês. Sua organização vem facilitando e muito o acesso
de pesquisadores ao ainda tão presente balé romântico, numa leitura que garan-
te, através dos arroubos poéticos de Gautier, uma reconstrução possível de ima-
gens do que foi aquele período tão caro à dança cênica ocidental.
Se no caso do poeta mais de 150 anos separam suas primeiras críticas jor-
nalísticas de sua organização e posterior publicação, neste livro que ora se
apresenta ao público, esse hiato simplesmente não existe. Tingindo a história
recente da dança carioca com a tinta própria de um olhar crítico que se disse-
mina através de um dos mais importantes jornais da cidade, aqui se promove
um diagrama.
Um diagrama que, ao mesmo tempo, resulta numa leitura plenamente si-
multânea dessa história, mesmo tendo sido organizado com base em um per-
curso absolutamente cronológico, critério assumidamente sintagmático que

21
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
tenta conceder a essa mesma leitura quase um caráter narrativo. E disso, cer-
tamente, um sabor especial advém.
Esse sabor, que muitas vezes deve ter causado dissabores também aos per-
sonagens que habitam essas páginas, está latente em cada uma de suas linhas,
em cada parágrafo. Apenas não se deve esquecer de que, ao retirar essas críti-
cas do seu hábitat original e reagrupá-las em outro lugar, estamos falando mesmo
quase que de uma aventura romântica de preservação. Jornalismo cultural, que
carrega consigo a noção de cotidiano, do aqui e agora, ganha feições de uma
extensão no tempo e no espaço que não fazem parte de sua especificidade.
Implicados aí estão ganhos e perdas. O leitor não deve perder isso de vista, jamais.

***
A crítica de dança que se apresenta aqui é o exercício diário que permitiu mi-
nha formação profissional na área. Na verdade, trata-se de um exercício com-
partilhado principalmente com minha colega, e antes de tudo, amiga, Silvia So-
ter. Escrevemos há dez anos para os dois principais jornais da cidade do Rio de
Janeiro, ela para O Globo e eu para o Jornal do Brasil.
No início, o desafio era novo para ela e para mim: o de se fazer entender por
um público anônimo, de cuja amplitude não tínhamos qualquer dimensão. O al-
cance de cada palavra escrita por nós era algo pouco traçável, nos dois senti-
dos: tanto em direção ao artista criticado, quanto em direção ao público.
Nessa tarefa, a aprendizagem do código se tornou quase um enigma a ser
decifrado dia a dia, texto a texto. O “como se fazer entender por esse público
amplo” teria de vir aliado a outras tantas determinações, muitas vezes alheias
à nossa vontade, ou ao que ainda ingenuamente chamávamos de “estilo”. Dei-
xar claro de que espetáculo está se falando, quem é o artista, onde e até quan-
do ele se apresenta fazia pesar a prática do lead jornalístico quase como uma
bomba num texto que se queria algumas vezes puramente poético. Negocia-
ções começaram a ser feitas. Aqui e ali.
Ou mesmo o tamanho destinado para cada texto determinava a eficácia de
seu conteúdo. Dimensionar isso, exatamente, talvez tenha sido a aprendizagem
mais demorada para mim. Se o espaço é pequeno, cada palavra começava a valer
imediatamente mais. Quase ouro puro. E nada, nada mesmo a tornava substi-
tuível por qualquer outra palavra. A saída era ir sempre testando. Até hoje se
testa. E não há um resultado, um diagnóstico. Há a prática de quem realiza um
ofício cuja formação é um amontoado de aptidões: a facilidade em escrever, o
olhar aguçado, o incessante pesquisar sobre dança, e mais tantos etcs. pertinen-
tes que possam porventura caber aqui.
Outra informação que poucos leitores, e artistas, sabem: não somos nós que
escolhemos os títulos e as legendas que acompanham nossos textos. E também
não escolhemos as fotos que os ilustram. Algumas vezes, o título é pinçado de

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
alguma passagem de nossa autoria. Outras, ganha um colorido estranho, pró-
prio de um título que jamais seria dado por nós. Isso tudo fazia parte do modo
de acontecer de uma redação de jornal. Tudo. Algo muito simples de se enten-
der, mas que fincava de uma só vez uma bandeira que demarcava especificida-
des jornalísticas em minha escrita, área em que não sou formado.
Aliás, qual poderia ser minha formação como crítico? Tinha feito muitas e
muitas aulas de dança, começando meus estudos numa academia de minha ci-
dade natal, São José dos Campos, interior de São Paulo. Como acontecia com
todo rapaz em plena década de 1980, ganhei uma bolsa de estudos de minha
primeira professora, Damares Antelmo, e me lancei ao balé, ao jazz e ao sapa-
teado, mesmo que este último eu tenha abandonado logo de início. Em 1982,
lembro ter ficado impressionado ao assistir na televisão a uma jornalista falan-
do sobre dança de um modo inteiramente novo para mim. Helena Katz, na T V
Cultura, comentava o impacto da movimentação de Michael Jackson nos vide-
oclipes que acompanhavam o lançamento de seu álbum Thriller. E esse modo
reverberou em mim, e o faz até hoje, a certeza de que ali residia uma outra
possibilidade, absolutamente legítima, de se fazer dança também. Fui para a
capital paulista, onde me formei em Letras pela PUC/SP, e parei definitivamente
de fazer aulas de dança. Comecei, então, a participar do grupo de estudos or-
ganizado por Helena. Algumas coisas começaram a se encaixar.
Saí do País, fiz meu mestrado na Universidade de Viena, Áustria, cuja disser-
tação tinha como tema uma antiga paixão: o balé Giselle. Voltei ao Brasil, mais
especificamente ao Rio de Janeiro, em 1997, como convidado de minha irmã que
já era quase uma carioca. Nesse mesmo ano, conheci Silvia. Em dezembro, numa
reunião realizada na sala de ensaio de Lia Rodrigues, localizada no Teatro Villa-
Lobos, combinamos a primeira reunião daquele que viria a ser conhecido como
Grupo de Estudos em Dança do Rio de Janeiro. Começaríamos a nos reunir logo
no dia 19 de janeiro do ano seguinte, no estúdio da Silvia, no Jardim Botânico.
A existência desse grupo foi absolutamente fundamental para meu futuro
exercício da crítica. E logo nas primeiras reuniões, realizadas sempre às
segundas-feiras, às 19 horas, começou-se a delinear um núcleo que seguiria
adiante por mais seis anos: além de mim e da Silvia estavam Beatriz Cerbino,
Dani Lima e Lia Rodrigues.
As leituras, sempre combinadas de antemão, faziam um percurso sugerido no
início por Helena Katz. Depois, nossos desejos foram sendo naturalmente des-
pertos pela própria dinâmica das discussões que se davam nos encontros. Auto-
res como Antonio Damasio, Daniel Dennett e Richard Dawkins apresentavam
um novo universo a todos nós, que ficávamos incumbidos em traçar paralelos entre
toda aquela teoria e a dança. Fazíamos isso, claro, ao nosso modo. E fomos cons-
truindo ali uma ética da pesquisa, mas, sobretudo, uma estética do estar junto.
Lá no finzinho de 1999, em outubro, sai a primeira crítica da Silvia no Segun-
do Caderno do jornal O Globo. Sua incursão naquele universo complementaria

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
de forma exemplar o espaço dado por esse jornal à dança, sobretudo pelo em-
penho da jornalista Adriana Pavlova, responsável pela área até o ano de 2005.
Uma parceria e tanto foi construída ali, dia a dia, ano a ano. E o jornal passou
a desempenhar um papel fundamental nas questões sobretudo políticas que cir-
cundavam a dança carioca. E essa dança ganhou um outro status, diferente
daquele provindo de visitas esporádicas da crítica teatral Bárbara Heliodora a
apresentações de dança, geralmente restritas ao Theatro Municipal. A dança
virou uma prática jornalística também.
Logo em seguida, ainda no mês de outubro, Silvia começou a escrever sobre
o Panorama RioArte de Dança, um dos mais importantes festivais brasileiros
que, naquele momento, era dirigido por sua idealizadora, a coreógrafa Lia Ro-
drigues. Eu, desde o ano anterior, desempenhava ao lado dela o ofício de sua
curadoria. Pouco mais tarde, fui entendendo que curadoria e crítica eram ape-
nas interfaces de uma mesma mediação entre artista, obra e público. Mas como
não havia também nenhuma formação própria para “curador de dança”, tudo o
que eu fazia era ao mesmo tempo testado. E as maiores aulas que tive nesse
sentido vinham da experiência da própria Lia, que também aprendeu fazendo
aquele festival, mesmo que a duras penas, desde 1992.
Era uma experiência nova para mim e para Silvia: meu trabalho estava sen-
do, de alguma forma, criticado por ela. Curioso. Muito curioso.
Para o bem do Panorama e de toda a classe artística da dança carioca, críti-
cas sobre o festival passaram a ser constantes até o ano anterior ao que este
livro contempla. Escritas por Silvia, por Beatriz Cerbino, e mais tarde por mim,
quando deixei a curadoria do festival em 2004, todas as edições dos anos pos-
teriores, excetuando 2005, foram contempladas com críticas nos dois jornais. E
sua leitura, hoje, traça curiosos percursos de um festival que promovia, a cada
ano, estranhamentos poderosos num público que vinha lentamente se formando.
Por outro lado, infelizmente, nenhum dos importantes festivais e mostras que
existiram ou ainda existem na cidade do Rio de Janeiro foram contemplados
com críticas nossas desde seu início ou sem interrupções. O saudoso festival
D ança Brasil, por exemplo, teve sua primeira edição em 1997, com curadoria
de Leonel Brum, e foi a principal e muitas vezes a única investida em dança do
Centro Cultural do Banco do Brasil carioca. Sua última edição foi em 2004,
dando fim a um processo interessante de observação de imbricações entre dança
e outras linguagens artísticas, recorte eleito para balizar sua curadoria. De suas
oito edições, apenas as dos anos de 2000, 2001, 2003 e 2004 ganharam crítica
minha ou da Silvia. E uma inversão outra vez curiosa se deu aí: a partir de sua
sexta edição, Leonel convidou Silvia para dividir com ele a curadoria do festi-
val. E eu, como crítico, passei a criticar o trabalho dela, exatamente o inverso
de como havia acontecido há alguns anos.
E também os Solos de Dança no SESC, mostra de formato inédito entre nós,
e um dos principais eventos de dança do primeiro semestre carioca, que havia

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
se iniciado em 2000, pelas mãos de Beatriz Radunsky, só ganharam aprecia-
ções críticas nossas a partir do ano de 2002. Desde então, até o ano passado,
esta passou a ser uma ação ininterrupta, felizmente.
Mas o Rio de Janeiro contava, sim, com crítica de dança antes de começar-
mos, eu e Silvia, em 1999. Nayse López, então editora do Caderno B do Jornal
do Brasil, acumulava também a função de escrever críticas para sua editoria. E
foi justamente Nayse quem me convidou para escrever minha primeira crítica
(e única daquele ano), que saiu em dezembro de 1999. A partir de então, passei
a, timidamente ainda, dividir com ela esse espaço no Jornal do Brasil, até que,
depois de sua saída do jornal em abril de 2001, assumi sozinho o ofício.
Bem, não totalmente sozinho. Nessas trocas incessantes de posição, algumas
vezes crítico, algumas vezes curador, surgiu a oportunidade de convidar a pes-
quisadora Beatriz Cerbino para que me substituísse no Caderno B, em escritas
sobre o Panorama ou sobre algum espetáculo a que eu não poderia assistir por
uma razão ou outra. Beatriz havia sido minha aluna no Curso de Dança da
UniverCidade, e na época em que começou a escrever, me substituindo, em 2001,
cursava o mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC/SP.
Em nosso segundo ano como críticos de dança, Silvia escreveu 15 textos,
e eu, o dobro do que havia escrito no ano anterior, ou seja, apenas dois textos.
E no ano seguinte, foram dez da Silvia e eu continuava dobrando minha quan-
tidade: quatro textos. Esse número passou lentamente a aumentar, para nós dois.
E nossa prática passou a ser uma dinâmica.
Começamos a perceber o que representava o fato corriqueiro, por exemplo,
de sentarmos lado a lado em uma estreia. Ou como nossos gestos eram lidos
durante ou após os espetáculos. Cada pequeno gesto. E como nossos textos fo-
ram demarcando dois estilos tão diferentes de leituras. E ainda, o que significa-
va fazer parte de um rol tão restrito no País de críticos de dança atuantes, que
encerrou o ano passado contando apenas com Helena Katz, em São Paulo (O
Estado de S.Paulo) e Marcelo Castilho Avellar, em Belo Horizonte (O Estado
de Minas).
Formação? Ela se dá ainda em continuidade. Silvia concluiu o mestrado
em Artes Cênicas pela UniRio em 2005 e eu, o doutorado em Comunicação
e Semiótica pela PUC/SP em 2003. Ambos sobre dança. E ambos os resulta-
dos foram publicados. Organizamos livros, participamos de festivais, comis-
sões, produzimos eventos e continuamos a dar aulas no mesmo curso supe-
rior de dança na UniverCidade. Um repertório que se alarga desde que
começou a existir. No caso da Silvia, quando ela tinha 13 anos e, no meu, quando
tinha 17. Muita dança de lá pra cá. Muita. E num desses mistérios que nos
cercam, essa quantidade toda, pelo menos quando se enfrenta a tela vazia
do computador ao iniciar a escrita de uma nova crítica, se transforma mila-
grosamente em qualidade.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Esse livro reúne críticas escritas por mim em dez anos. Curiosamente, nes-
te ano comemorativo de 2009, uma bailarina rasgou em cena a folha de jor-
nal que estampava uma crítica minha sobre seu espetáculo. Todas as leituras
de atos que se desdobram: algumas mais elegantes, outras mais emergenciais.
Todas legítimas.
Entre tantos erros e acertos, os textos aqui apresentados contam um pouco
da história e da percepção dessa história da dança entre nós, moradores da ci-
dade do Rio de Janeiro, ou apenas brasileiros. Para tanto, resolvi manter mi-
nhas versões originais dos textos. Assim, algumas vezes, temos uma mistura
interessante de títulos e legendas tal como figuram nos jornais e textos em ver-
sões que muito diferem daqueles publicados. Ou mesmo textos que seriam mes-
clados com outros textos de autoria de jornalistas, especialmente em balanços
de fim de ano, e que aparecem aqui apenas nas versões escritas por mim. Esta
era, finalmente, a (única?) chance de eles serem lidos como foram concebidos
originalmente. Resolvi também trazer aqui críticas que, por uma razão ou ou-
tra, não foram publicadas.
Ao leitor, resta meu pedido de lembrar, sempre, que se trata aqui não mais
apenas da crítica de dança, que tem tantas qualidades quando estampada no
suporte do jornal. Mas, antes, trata-se de um registro de um registro e, como tal,
só poderia existir admitindo seu recorte e as falibilidades decorrentes dele, assim
como assumindo as especificidades deste outro suporte, um livro.
Bom diagrama a todos. Um outro jeito absolutamente legítimo de se fazer
dança se inicia na página seguinte.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2005 CRÍTICAS

JORNAL DO BRASIL - 10 DE JANEIRO DE 2005


Um tratado coreográfico
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 15 DE JANEIRO DE 2005


O acaso como um importante parceiro
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 5 DE FEVEREIRO DE 2005


O fim do Dança Brasil
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 25 DE FEVEREIRO DE 2005


Operação arriscada no palco do Rival
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 5 DE MARÇO DE 2005


Coragem de apostar no novo
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 12 DE MARÇO DE 2005


Coreógrafos e bailarinos em sincronia
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 7 DE ABRIL DE 2005


O balé do desencontro
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 10 DE ABRIL DE 2005


Companhia de Goiás dança com Elis e Tom
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 10 DE ABRIL DE 2005


Mimetismo da bossa nova
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 15 DE ABRIL DE 2005


A lição da bailarina
ROBERTO PEREIRA

27
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL - 22 DE ABRIL DE 2005
Falta coerência e coesão
ROBERTO PEREIRA

CRÍTICA NÃO PUBLICADA – 1 DE MAIO DE 2005


Espetáculo Esquecidos de Catharina Gadelha
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 27 DE MAIO DE 2005


Tempo de despertar
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 4 DE JUNHO DE 2005


Empenho e capricho não fazem obra transbordar
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 4 DE JUNHO DE 2005


Poético e orgânico
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 9 DE JUNHO DE 2005


Uma leve renovação na dança-espetáculo
SILVIA SOTER

O GLOBO - 12 DE JUNHO DE 2005


Visita musical a um certo Brasil, um “país imaginário”
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 13 DE JUNHO DE 2005


Objetos como parceiros
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 23 DE AGOSTO DE 2005


Descompassos
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 24 DE AGOSTO DE 2005


Schoenberg transfigurado
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 27 DE AGOSTO DE 2005


O corpo fala
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 2 DE SETEMBRO DE 2005


O poder de transformação do Grupo Corpo
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 3 DE SETEMBRO DE 2005


A mão dupla do corpo
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 14 DE SETEMBRO DE 2005


Na onda do revival
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 30 DE SETEMBRO DE 2005


O jazzdance sem alegria e sedução
SILVIA SOTER

28
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL - 4 DE OUTUBRO DE 2005
Um divisor de águas
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 7 DE OUTUBRO DE 2005


Ideia de mundo norteia o espetáculo
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 7 DE OUTUBRO DE 2005


Noite sem sutilezas
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 28 DE OUTUBRO DE 2005


Garimpagem do corpo
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 29 DE OUTUBRO DE 2005


Fragilidades
ROBERTO PEREIRA

CRÍTICA NÃO PUBLICADA – 12 DE NOVEMBRO DE 2005


Espetáculo Orfeu de Regina Miranda
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 22 DE NOVEMBRO DE 2005


Eloquência sem limites
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 24 DE NOVEMBRO DE 2005


Força da dança apenas se insinua
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 28 DE DEZEMBRO DE 2005


Belos saltos entre escorregadas feias
ROBERTO PEREIRA

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA
SEGUNDA-FEIRA•• 10 DE JANEIRO • 2005

Um tratado coreográfico
Sofisticado espetáculo de João Saldanha,
Soma investiga as estruturas e os códigos da dança

R OBERTO PEREIRA

O ano começa muito bem para a dança


do Rio de Janeiro! Pela segunda vez
consecutiva, o coreógrafo João Saldanha
altera o produto, construindo uma malha
espessa de sincronias de movimentos que
se deslindam pelo espaço. Aliás, o todo pra-
inaugura a temporada carioca, tendo como teado que o público e os bailarinos compar-
abrigo o Espaço SESC, em Copacabana. Na tilham da nova sala do mezanino do Espa-
verdade, mais do que abrigo, não apenas ço SESC, é muito mais do que apenas invó-
para Saldanha, mas para tantos outros lucro: é espaço que se transforma em con-
coreógrafos importantes da cidade, o SESC tinuidade daquilo que se constrói coreogra-
tem funcionado também como um estimu- ficamente.
lador essencial nesse deserto político em Esse procedimento já havia sido experi-
que se encontra a dança por aqui. mentado por João, desde A fase do pato sel-
Soma, que estreou na última quinta-feira vagem e Sopa, suas obras de 1998 e 2000,
e permanece em temporada até o final do respectivamente. Mas em Soma, o espaço
mês,é um tratado coreográfico que se volta vira ambiente, dividindo com a luz sutil e
para as questões próprias da dança, como suas com os delicados figurinos o papel que sem-
estruturas, seus códigos, seu pensamento. pre lhe coube: o de ser parte necessária da
Quase que revestindo a dança moderna de composição. Quase que uma condição para
dança contemporânea, João Saldanha ultra- sua existência.
passa os desafios óbvios da metalinguagem A qualidade dos bailarinos é algo que
para investir num tratamento absolutamen- salta aos olhos. Exigência mínima para a
te atual de uma ideia que só poderia vir ao sofisticação gestual que ali se articula, essa
mundo naquela mídia, naquele movimento, qualidade faz com que eles possam contri-
na soma daqueles elementos. buir cada um a seu modo ao que se propõe o
Lembrando que dança não é mera se- espetáculo. Mas, ao mesmo tempo, não lhes
quência de passos,para a soma “gestálti- escapa, hora alguma, a noção de compor
ca” do coreógrafo a ordem dos fatores organicamente um todo. Mesmo que alguns

31
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
bailarinos estejam mais familiarizados com Com Soma, aquela velha lição que en-
a linguagem do coreógrafo do que outros, sina que uma parte de um organismo car-
como os veteranos Marcelo Braga e Laura rega consigo as informações de seu todo é
Sämy, existe entre eles uma ainda tímida relembrada. Mais que isso: é redimensio-
relação de cumplicidade que desponta em nada em dança, tarefa nada simples, mas
olhares entre si, e em uma presentidade de absolutamente possível, como prova a in-
dança que se dinamiza em processos até o teligência esperta de um coreógrafo como
fim do espetáculo. João Saldanha.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 15 DE JANEIRO • 2005

O acaso como um
importante parceiro
Soma: Espetáculo que não se submete a clichês
ou classificações e que fica na memória do espectador

S ILVIA S OTER

P or mais um ano, coube ao Espaço SESC


abrir a temporada carioca de dança.
Soma, a mais nova criação de João Salda-
Dança que funciona como um processa-
dor de alimentos. Seguindo à risca uma das
importantes lições da dança moderna, de que
nha, inaugura ao mesmo tempo um novo e não há espaço anterior ao movimento, já que
promissor espaço: um teatro totalmente re- é o movimento que o produz, Saldanha vai
formado e adaptado para a dança, no meza- tecendo solos, duos, trios, quartetos e danças
nino do prédio de Copacabana. Nos últimos de conjunto que recortam o espaço em dese-
dois anos,felizmente para o público cario- nhos geométricos. Mas a força e a beleza de
ca, o Espaço SESC tem acolhido João Sal- Soma vão além das figuras espaciais. Soma
danha e sua companhia. é também a experiência do corpo vivido. O
A palavra Soma, como sugere o coreó- corpo como lugar de cruzamento e de trans-
grafo no programa, refere-se aqui às di- formação das mais diversas informações. Em
versas combinações propostas pelo en- tempos em que os criadores parecem com-
contro entre as estruturas de base da co- pelidos a assumir suas inspirações e referên-
reografia e o acaso.O acaso tem sido par- cias de maneira explícita e até emblemáti-
ceiro importante nos últimos trabalhos de ca, Saldanha as assume para transformá-las
João Saldanha, assim como nos de outros em algo íntimo e pessoal. Ele traz à tona re-
criadores contemporâneos que lançam ferências e memórias que vão dos primór-
mão do acaso como recurso para deixar a dios da dança moderna aos dias de hoje, in-
dança sempre viva e com frescor.A soma corporando traços que sugerem Wigman,
dessas partes produz, a cada momento, um Graham, Paxton, ou ainda as polcas do baile
resultado único que se desmancha para finlandês de sua adolescência. No entanto,
se combinar de outro modo,adiante. Em essas referências não se organizam como
Afirmações intencionais: Acidentes,últi- narrativa, colagem ou sobreposição. A dan-
mo trabalho de João Saldanha, essa pes- ça de João Saldanha parece secretada por um
quisa já germinava. corpo que funciona como um processador de

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
alimentos. Nesse caso, os alimentos são dan- essa experiência – conseguem circular pe-
ças, no plural. Referências e memórias que, las diferentes e muitas vezes opostas quali-
depois de transformadas, surgem materiali- dades somáticas que a coreografia solicita,
zadas na movimentação dos intérpretes e no trocando de intensidades, direções e tônus
habilidoso projeto de composição. A peça de como quem troca de roupa. A trilha de Sa-
Saldanha é tecida, então, por linhas de movi- cha Amback e os figurinos de Francisco
mentos de diversos tempos, que se misturam Costa têm o mérito de criar, junto com o
e se fundem, umas nas outras, tramadas pelas espaço cênico metalizado, uma ambienta-
mãos experientes do artista. ção visual e sonora que dá conta de ser, ao
Em Soma, o coreógrafo realiza a façanha mesmo tempo, absolutamente contemporâ-
de fazer uma dança que não se submete a nea e atemporal. Do quarteto ao som de
clichês ou classificações.Seus seis ótimos e Elvis Costello ao final, Soma tem seu ponto
experientes intérpretes – alguns como Mar- alto, fazendo com que a dança que vaza para
celo Braga e Laura Sämy,parceiros de lon- a plateia siga na memória do espectador
ga data e outros recém-incorporados para muito tempo depois da noite terminada.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 5 DE FEVEREIRO • 2005

O fim do Dança Brasil

R OBERTO PEREIRA

A dança carioca, e por que não dizer


também a dança brasileira, acaba de
perder um de seus mais importantes luga-
que a curadoria do festival tentava se ade-
quar como podia às dimensões nem sempre
ótimas do Teatro II, afinal, curadoria no Bra-
res de resistência artística e política. Neste sil só acontece se esse tipo de adequação for
último dia 2 de fevereiro, o Centro Cultural feita, porque as condições quase nunca são
do Banco do Brasil anunciou a lista de seus as melhores, isso em todas as linguagens
projetos selecionados e o festival Dança artísticas.
Brasil não foi mencionado. Claro, tudo bem que o Dança Brasil di-
Tudo bem que o Dança Brasil iria repre- vidia a cena dos eventos mais importan-
sentar em sua nona edição deste ano de tes no primeiro semestre da cidade com
2005 um feito mais que importante neste o Solos de Dança no SESC, contrapondo
país de descontinuidades, sobretudo quan- com o Panorama RioArte de Dança, que
do o assunto é arte e cultura. E que todo o acontece no segundo semestre. Juntos,
sentido de tradição, que dialoga com o sen- esses três festivais compunham um calen-
tido de transformação, só se constrói numa dário invejável que só o Rio de Janeiro
sociedade quando o tempo passa a ser a possuía no Brasil.
chave mestra. E tudo bem também que o Dança Bra-
Tudo bem também que o Dança Brasil sil era assinado por dois importantes pes-
era, se não o único, pelo menos o mais im- quisadores como Leonel Brum e Silvia
portante evento dedicado especificamente Soter, além de ter contado com a primoro-
à dança numa instituição tão importante sa produção de Rossine Freitas e Ailton
como o Centro Cultural do Banco do Brasil. Franco. E que, sempre temático, promovia
Mas, mesmo assim, mesmo com o indiscutí- discussões que instigavam a reflexão de
vel sucesso de suas edições, nunca foi alça- toda a classe da dança junto com seu públi-
do à categoria de um evento digno de ser co, através do projeto Palco Aberto.Em sua
apresentado em seu teatro maior. Tudo bem primeira edição, em 1997, observou-se a

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
relação da dança com a literatura, em 1998, trazia, reunida pela primeira vez na cidade,
com as artes plásticas, em 1999, com a iden- uma gama internacional enorme de produ-
tidade cultural e a noção de brasilidade, em ção de vídeo-dança, oferecida a preços mui-
2000, com o teatro, em 2001, com a tecno- to acessíveis ao público.
logia, em 2002, com as “Seis propostas para Tudo bem tudo isso. Mas é o que o Dan-
o próximo milênio” de Italo Calvino, em ça Brasil representava como lugar de re-
2003, com a música e, finalmente, em 2004, sistência num país cuja política cultural
com a ideia de espaço: todos temas muito para a dança é quase nula o mais premen-
relevantes transformados em um festival de te a ser pensado. Há muito, os festivais se
uma sabedoria muitas vezes pioneira, que tornaram a única possibilidade de nossos
reuniu não menos de 50 grupos e companhi- artistas circularem com seus trabalhos
as ao longo desses 8 anos. para fora de suas cidades. E os cachês pa-
Tudo bem que uma galeria de importan- gos por esses festivais representavam, e
tes coreógrafos cariocas ali se apresenta- ainda representam, muitas vezes, a sobre-
ram, como Lia Rodrigues, João Saldanha, vivência de companhias durante um tem-
Márcia Milhazes, Paula Nestorov, Márcia po considerável. Essa é a grande perda. Ir-
Rubin, Ana Vitória, Dani Lima, Paulo Cal- remediável, para um instituto que agrega
das, Esther Weitzman e Carlota Portella. E em seu próprio nome a ideia de cultura e
tudo bem que a mostra paralela de vídeo a palavra Brasil.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE FEVEREIRO • 2005

Operação arriscada
no palco do Rival
Isto é Brasil: Carlinhos de Jesus cria show
em que o destaque é a qualidade dos bailarinos

S ILVIA S OTER

A nova criação de Carlinhos de Jesus, em


cartaz no Teatro Rival até dia 6 de
março, traz para um palco italiano algumas
O Brasil do coreógrafo gira especial-
mente em torno do Rio de Janeiro e tem no
samba sua marca mais forte. Passeia por
das chamadas danças populares brasileiras. suas diversas origens e formas. Carlinhos de
A operação de retirar danças que se desen- Jesus cria diversas situações teatrais, apoi-
volvem em seus ambientes, em situações ando-se na pantomima para ambientar cada
onde há apenas uma eventual separação quadro e tentar costurar uma cena à outra.
entre aqueles que dançam e aqueles que Sem escapar de alguns clichês, estão presen-
assistem, e levá-las ao palco é sempre tare- tes em cena ícones desse Brasil para inglês
fa arriscada. Em geral, essa transposição do ver: mulheres lindíssimas, sorridentes e sen-
que acontece nas ruas e nos salões para a suais; homens com ginga e a malandragem
situação de espetáculo acaba por carregá- carioca. Nesse show em homenagem ao Rio
lo de cores folclóricas. Dessa armadilha, Isto de Janeiro, Carlinhos de Jesus não poderia
é Brasil não escapa. deixar de fora a Mangueira. A escola de
O coreógrafo e diretor opta, então,pela samba é contemplada com um quadro que
estrutura de show,assumindo a frontalida- se constrói pelas diversas comissões de fren-
de da cena e apresentando as diferentes te criadas pelo coreógrafo.
danças em quadros que se sucedem. É a Carlinhos de Jesus tem plena consciên-
partir desse lugar que Isto é Brasil pode ser cia de que ele também é hoje um ícone do
compreendido: como show.Tudo é derrama- Rio de Janeiro e faz uso disso, em cena, com
do para a plateia: a movimentação,as ex- muita competência. Usa a sua presença no
pressões faciais e a iluminação colorida e lugar de intérprete e de personagem (brin-
exagerada. Essa escolha justifica plenamen- cando, por exemplo, com a paródia que
te sua presença no Teatro Rival ainda que o Marcelo Madureira faz dele) e traz para
palco,estreito e pouco profundo,restrinjavi- acompanhá-lo outra artista que é um dos
sivelmente a movimentação dos bailarinos. orgulhos da cidade: a bailarina clássica Ana

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Botafogo. A sempre bem-humorada e sedu- mato que se utiliza ele se destaca pela qua-
tora presença de Ana imprime mais tempe- lidade dos bailarinos. Todos acompanham
ro às misturas que são exploradas no show. Carlinhos de Jesus com competência e boa
Misturas e influências que tecem o Brasil do presença cênica, com destaque para Shei-
coreógrafo. Talvez Carlinhos de Jesus este- la Aquino.
ja igualmente afirmando o importante lu- A qualidade da equipe e da produção já
gar do balé clássico na dança carioca. aponta para o desafio que se impõe a Carli-
Ainda que Isto é Brasil não escape das nhos de Jesus: conseguir trazer para o palco
armadilhas desse tipo de empreitada, não o brilho e a originalidade com que brinda o
conseguindo trazer novos ares para o for- público carioca no Sambódromo, a cada ano.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 5 DE MARÇO • 2005

Coragem de apostar no novo


Solos de Dança no SESC estreia no Rio
com grandes atuações de quatro bailarinos

R OBERTO PEREIRA

U m espetáculo de bailarinos, mais do


que de dança: talvez seja essa a im-
pressão que resulta dos quatro trabalhos da
que muito se deve ao fato do bailarino já ter
feito parte da companhia de Rodovalho, a
Quasar Cia. de Dança. Entretanto, a ques-
primeira semana da nova edição do Solos tão que ali se impõe é que em momento al-
de Dança no SESC, que se iniciou nesta quin- gum esse vocabulário é amalgamado em
ta-feira. Trabalhando com o novo absoluto, ideia, o que comprova que coreografia não
tanto do ponto de vista do ineditismo das é dança, e que movimento pode se transfor-
obras, criadas especialmente para o evento, mar meramente em passo. A exatidão da
quanto dos encontros de coreógrafos e bai- execução desse vocabulário faz do bailari-
larinos, que nunca trabalharam juntos, o So- no algo ímpar, mesmo que o frescor de sua
los de Dança no SESC, com curadoria assi- juventude deixe visível que ele vem desco-
nada por Beatriz Radunsky, tem, entre outros brindo, dia a dia, o que é sua dança e como
méritos, o da coragem de apostar em ideias. ela acontece em seu corpo.
E assim apostando, traz consigo algo funda- Clébio Oliveira assina o segundo e o mais
mental para a dança, ou seja, deixa eviden- frágil trabalho da noite. Em Há coisas que só
tes as qualidades daquele que cria, tanto na os olhos podem sentir, fica exposta a inabili-
coreografia, quanto em sua execução. dade de Clébio diante da maturidade da
Nesta primeira semana, o que saltou aos mulher e da bailarina Isa Kokay. A dança se
olhos foi, sem dúvida, a excelência da dan- constrói a partir apenas de uma narrativa
ça dos quatro bailarinos ali reunidos em recheada de truques e maneirismos, que vão
quatro trabalhos tão distintos. Abrindo a desde o tema até os movimentos ainda pou-
noite, o bailarino Daniel Calvet mostrou co consistentes que o jovem bailarino cisma
Vela a pilha, resultado de sua parceria com em testar em seus incursos de criação. O ex-
o coreógrafo Henrique Rodovalho. Seu vo- cesso de referências usadas por ele, felizmen-
cabulário de movimentos, já bastante conhe- te, ainda deixa uma brecha para que se pos-
cido, ganha facilmente o corpo de Calvet, o sa observar a qualidade de Kokay, bailarina

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
que já merecia um solo em sua carreira tão (da bailarina? da coreógrafa?) fora de sua
especial na cena da dança carioca. biografia, como tão bem fala o título da obra,
Este parece ter sido também o caso de remete ao encontro inédito entre Esther e
Toni Rodrigues ao executar o terceiro Sueli Guerra. E a honestidade perpassa todo
solo da noite, criado por Alexandre Fran- o trabalho, mostrando ao público como Sue-
co: Corpo de papel nº 1. Marca do coreó- li vestiu-se justamente de Esther, trajando
grafo, a prolixidade que ali impera não apenas o que lhe cabia. O resultado é a
consegue reverberar na dança de Toni, medida exata de uma bailarina que se en-
embora esse bailarino venha provando, trega à coreógrafa, deixando que a maturi-
ao longo de sua carreira, que sabe dialo- dade das duas faça a dança vir à tona, mais
gar com diferentes estilos de diferentes do que qualquer outra coisa.
criadores. Esse deveria ser um dos gran- O crítico francês Roland Barthes, ao fa-
des méritos de qualquer bom bailarino lar de literatura, propunha uma distinção
que, nessa obra, ganha pouca chance de daquilo que denominava de “texto erótico”
acontecer. Entre os textos quase incom- de “texto pornográfico”: enquanto o segun-
preensíveis assinados e narrados pelo do esforçava-se por tudo mostrar, fazendo
próprio Alexandre e a superposição de uso do excesso e do previsível, o primeiro
elementos coreográficos, a ideia não se guardava consigo a qualidade de apenas
constrói, mas delineia-se apenas,resul- insinuar, de propor, convidando o leitor a
tando num tratado de múltiplas referên- preencher suas lacunas deliberadamente
cias muito confuso. ali presentes. Esta talvez seja uma lição para
O trabalho mais consistente da noite foi esse primeiro programa dos Solos de Dan-
o último a se apresentar,A vida fora da bio- ça no SESC. A sorte, porém, é que o texto
grafia,de Esther W eitzman. Duas qualida- dos corpos que ali dançam ainda resguarda
des estão presentes ali: ternura e honestida- o erótico barthesiano, aguardando uma ou-
de, que se transformam belamente em dan- tra oportunidade para se tornarem um tex-
ça. A ternura da (re)construção de uma vida to artístico, em todas as suas propriedades.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 12 DE MARÇO • 2005

Coreógrafos e bailarinos
em sincronia
Segunda semana do Solos de Dança
surpreende pela qualidade

R OBERTO P EREIRA

A segunda e última semana da mostra


Solos de Dança no SESC, que se ini-
ciou nesta quinta-feira e se encerra amanhã,
desconforto aparente.A coreografia, Desa-
pego,de Mônica Barbosa, com parco voca-
bulário de movimentos,permitia que as po-
comporta características bastante distintas ses e os passos de balé surgissem ali quase
da primeira, cuja marca era a preponderân- como uma solução apressada, e não como
cia da qualidade dos bailarinos sobre a de uma necessidade de representação de um
seus coreógrafos. Nesta semana, continuam pensamento, ou do tema tão forte que se
ainda o ineditismo das obras apresentadas impôs sobre a obra.
e o ineditismo das parcerias entre bailari- O segundo trabalho da noite mostra
nos e coreógrafos, mas os ajustes entre um e novos caminhos na tenra carreira do jo-
outro que tal desafio impõe, encontrados an- vem e promissor coreógrafo Carlos Laer-
tes apenas no trabalho assinado por Esther te. Dono de uma habilidade inteligente de
Weitzman, fazem parte da maioria das qua- construir células de movimentos de forma
tro obras apresentadas. orgânica, Laerte pesquisa em Vida a dois
A noite, entretanto, não começa bem. A uma possibilidade cênica para seu exer-
bailarina solista do Theatro Municipal, Bet- cício, ao qual o excelente bailarino Mar-
tina do Dalcanale, trouxe para o palco inti- celo Moraes se presta com justeza. Talvez,
mista do Espaço SESC todo o peso do gesto exatamente por essa sua habilidade, o
dramático característico dos grandes balés coreógrafo devesse tentar minimizar o ex-
que costuma dançar, sem notar que ali, pela cesso de ideias esgarçadas no que resvala
proximidade com o público, o excesso de em seu maior mérito que é o próprio fa-
dramaticidade deveria ser regulado a par- zer coreográfico: a música, excessivamen-
tir de outras bases, já que se tratava de um te narrativa, a iluminação, eloquente de-
outro canal e de uma outra dança. Assim, seu mais,e o figurino.Pelo talento que ali se
corpo parecia postiço num ambiente que a confirma, nada disso se torna tão especial
bailarina ainda desconhece, deixando seu como o movimento que ele tão bem conhe-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
ce e que traduz sua busca por uma lingua- jetivo, serve apenas para tentar traduzir o que
gem toda particular. João Saldanha, em fase brilhante de sua car-
Misturando duas referências muito dis- reira de coreógrafo, consegue tecer no corpo
tintas e ao mesmo tempo tão complemen- da jovem bailarina Mônica Burity. Tudo pa-
tares, Pra continuar a diversão chama a aten- rece convergir para a elegância de uma ideia
ção pelo frescor que esse tipo de encontro que vem ao mundo já configurada em sua
entre bailarina e coreógrafa pode suscitar. plenitude como coreografia, como movimen-
A primeira, Taís Vieira, traz consigo as in- to, como dança. O que é jovem e ao mesmo
formações da dança de rua. Ou seja, em seu tempo competente em Mônica assimila o que
corpo está a inscrição de uma vitalidade é experiência e marca de João, num desses
desafiadora e pouco conformada, caracte- encontros que só se pode agradecer aos deu-
rística dessa técnica e, sobretudo, dessa es- ses por ter um dia ocorrido. A sabedoria que
tética de dança. A segunda, Cristina Moura, se pode ver em Eles assistem e eu danço de-
vem de uma dança contemporânea que sarranja. Comove, no puro sentido do verbo.
dialoga firmemente com a performance, A noite de quinta-feira foi dedicada ao
sempre no intuito de questionar valores so- nosso grande mestre Dennis Gray, que ha-
ciais importantes e, ao mesmo tempo, polê- via falecido naquele dia, aos 81 anos. Um
micos. A mistura é absolutamente corajosa, de seus principais papéis sempre foi o Dr.
permitindo que explodam ali ideias novas Coppelius, do balé Coppélia, um fabricante
e provocadoras. Não à toa, a bailarina conta de bonecas. Na verdade, um fabricante de
em cena que o solo iria se chamar Pitbull. sonhos, que se adequava tão bem à qualida-
A ferocidade está lá. E sempre esteve, nas de da dança do bailarino Dennis. E à quali-
duas, cada uma a seu modo. E surge em es- dade do professor Dennis, cujo trabalho se
tado bruto como dança. espraia, de um jeito ou de outro, entre todos
O último trabalho da noite encerra a os solos desta mostra e de tantas outras que
mostra com um deslumbramento. O substan- ainda estão por vir, fazendo a história da
tivo aqui, carregado de sua qualidade de ad- dança nesta cidade.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 7 DE ABRIL • 2005

O balé do desencontro
Falta unidade no programa e entre bailarinos
marca espetáculo de Julio Bocca

R OBERTO P EREIRA

A primeiro dos dois programas apresen-


tados pelo bailarino Julio Bocca e sua
companhia, o Ballet Argentino, no Theatro
dedicação aos ensaios. A falta de coesão
aqui deixou marcas profundas principal-
mente na obra Anjos sem asas, quando o
Municipal do Rio de Janeiro, na terça-feira grupo, bastante desconectado entre si, difi-
e ontem, respectivamente, deixou eviden- cultava a apreensão do público que lotava
ciado um problema sério de coesão, em duas o teatro da instigante e complicada coreo-
instâncias. grafia de Attila Eherházi. Problema de
A primeira delas, mais geral, relaciona- fácil solução, quando se trata de uma boa
se diretamente com a escolha das obras para companhia como essa.
compor um programa, ou seja, é quase um A noite não começou bem, com o Pas-
problema de curadoria. A falta de coesão dos de-deux Tchaikowsky, dançado pelo pró-
trabalhos esbarra, neste caso, justamente nos prio Julio Bocca com a bailarina Cecilia
dois pas-de-deux clássicos apresentados, ab- Figaredo. Faltou aos dois o quesito mais im-
solutamente dispensáveis no contexto que portante para uma obra de Balanchine: a
se formou a partir das três obras mais con- precisão musical. Embora Bocca apresen-
temporâneas. De qualidades muito diversas tasse sua excelente qualidade técnica, ela
dos clássicos, elas sozinhas teriam compos- não foi suficiente para amenizar a pouca
to um todo mais orgânico, num timing mais habilidade balanchiniana da bailarina.
preciso, que faltou em todo o espetáculo, lon- Já a segunda obra clássica do programa, o
go demais. grand pas-de-deux do balé O corsário, deu
A segunda delas, mais específica, refe- oportunidade a Hernan Piquin de mostrar
re-se à qualidade da performance dos bai- todo seu vigor técnico, perfeito no papel, e
larinos. O jovem grupo carece de unidade, que infelizmente não encontrava na jovem
numa visível falta de entrosamento entre bailarina o seu par mais adequado. Resul-
eles, qualidade que, na dança, é alcançada tado: nos dois pas-de-deux, o destaque ficou
pelo tempo de convivência e também pela com os rapazes.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Já a obra De longe foi, sem dúvida, o cadeira e a mesa, além dos figurinos e da
ponto alto da noite. Com curiosas forma- própria coreografia, deixavam claro que ali
ções de conjunto,a coreografia exigia da era a vez do tango tipo exportação e dos
companhia um desempenho que, sobretu- momentos de virtuosismo técnico, especial-
doali, foi correspondido com toda precisão. mente do próprio Julio Bocca.
Os ótimos bailarinos estavam em plena Aliás, Bocca deixou evidente em todo
sintonia entre si e com a obra, principal- o programa que continua sendo um dos
mente nos belos duos, num momento pon- grandes bailarinos da atualidade. Os domí-
tual de todo o programa. nios técnico e cênico ganharam com a ma-
Finalizando,Piazzola tango vivo era turidade uma qualidade ímpar no bailari-
mais uma daquelas obras que facilmente en- no. Para nós, brasileiros, essa foi, sem dúvi-
cantam o público,mesmo que repleta de cli- da, uma boa oportunidade de revê-lo e de
chês e obviedades.Os indefectíveis objetos conhecer um pouco a ótima dança que nos-
de cena, quando o assunto é tango, como a so país vizinho desenvolve.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 10 DE ABRIL • 2005

Companhia de Goiás
dança com Elis e Tom
Só tinha de ser com você: Quasar encontra a MPB

S ILVIA S OTER

S ó tinha de ser com você, da Quasar Cia.


de Dança é o primeiro espetáculo da
série 4 Movimentos – Cias. de Dança no
tância inexplicável entre o tema aborda-
do e tratamento coreográfico. Só tinha que
ser você mostra que Rodovalho deu um
CCBB, que a partir desse ano ocupa a pro- passo importante no sentido de trazer no-
gramação da instituição no rastro do cami- vos ares e estímulos para flexibilizar seu
nho aberto e consolidado pelos oito anos da material coreográfico, já com característi-
Mostra Dança Brasil. cas bem próprias.
A Quasar, em seus quase vinte anos de Em cena, os excelentes bailarinos explo-
existência, tem o mérito de ser uma das pou- ram com languidez e até humor as qualida-
cas referências de dança brasileira de alta des rítmicas da música de Tom Jobim, brin-
qualidade que sobrevive e cresce fora do cando com a dança a partir do mesmo “des-
eixo Rio-São Paulo. Tarefa árdua que me- pojamento sofisticado” da bossa nova. O que
rece sempre ser lembrada e aplaudida. chega aos ouvidos e aos olhos do público
Nessa peça, Henrique Rodovalho toma entra em harmoniosa sintonia. Os bonitos e
como ponto de partida o clássico álbum Elis eficientes figurinos de Cássio Brasil colabo-
& Tom para ir à busca dos desdobramentos ram como um elemento fundamental para
que essas músicas podem ganhar em dança. acentuar o volume e a leveza da música e
Não é a primeira vez que o coreógrafo inves- da movimentação.
te nas relações entre música popular e dança É pena que, no entanto, a peça perca qua-
– Coreografia para ouvir já brincava em de- lidade todas as vezes que um grupo maior
safiá-las –, mas é nesse trabalho que Rodova- de bailarinos está em cena, já que a insufi-
lho chega em algo que consegue não ser lite- ciente profundidade do palco do Teatro II
ral ou narrativo e, ao mesmo tempo, estar li- impede que a dança se desenvolva espaci-
gado de forma íntima à música em questão. almente de forma plena.
Em suas últimas criações, a Quasar tem Ouvir o álbum Elis & Tom é sempre um
investido em tratar de temas contemporâ- prazer. Através da dança da Quasar, as vo-
neos como a solidão ou a velhice e vem os- zes de Elis Regina e de Tom Jobim ganham
cilando entre uma abordagem ou por de- materialidade agradável, tranquila, bonita
mais narrativa ou que guardava uma dis- e despretensiosa.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 10 DE ABRIL • 2005

Mimetismo da bossa nova


Coreografia de Rodovalho envolve
Tom e Elis nos movimentos da Quasar

R OBERTO P EREIRA

O Centro Cultural do Banco do Brasil


iniciou na quarta-feira o novo forma-
to de sua programação de dança, agora inti-
Elis Regina e Tom Jobim gravaram juntos
em 1974. Ciente do risco que corria com a
fácil armadilha de legendar a música ou as
tulada 4 Movimentos, com o grupo goiano letras das canções, Rodovalho transformou,
Quasar Cia. de Dança, em cartaz até hoje. antes, música em trilha sonora. E os movi-
D urante quatro semanas,quatro grupos se mentos assinados por ele puderam ser, so-
apresentam, em projeto semelhante ao fes- bretudo, dança, justamente através dessa
tival Dança Brasil, que o Centro Cultural passagem tão desafiadora. O que é movi-
abrigava e que foi abruptamente extinto mento impera em diálogo com a trilha, fa-
neste ano. zendo com que a dissonância da bossa nova
Henrique Rodovalho,coreógrafo e di- apareça no corpo que traça percursos inver-
retor da Quasar, é um daqueles raros artis- tidos, revestidos de som.
tas da dança que se dedica a construir um Isso fica claro principalmente porque o
vocabulário próprio de movimento.O re- desempenho dos bailarinos carrega consi-
sultado coreográfico disso,entretanto,nos go a construção desse burilamento de pes-
trabalhos anteriores de sua companhia, quisa de vocabulário a que Rodovalho se
emperrava numa encruzilhada entre o dedica. É o caso, por exemplo, de Gleidson
compromisso de sempre se comprometer Vigne, que traz em seu corpo a informação
atratar de um tema e um outro,muito mais encarnada do coreógrafo, a informação efi-
instigante, do aprofundamento da pesquisa ciente, aquela que comunica fazendo uso,
de vocabulário,justamente.Em Só tinha de inclusive, de seus ruídos. Coisa de artistas.
ser com você, esse segundo compromisso O cenário e principalmente os belos figu-
prevalece e a dança de Rodovalho pôde, rinos, assinados por Shell Jr. e Cássio Brasil,
finalmente, respirar livremente em sua respectivamente, contribuem nesse trajeto
especificidade, sem se impor à tarefa de entre simplicidade, exatidão, elegância e com-
contar algo. plexidade, quase mimetizando a bossa nova.
Talvez um dos grandes responsáveis por Com Só tinha de ser com você, são as compe-
esse ato de coragem de aprofundamento de tências que importam: do coreógrafo, dos bai-
pesquisa de movimento seja o desafio a que larinos, e, para nossos ouvidos, de Tom e Elis.
o coreógrafo se lançou ao escolher como Essa é, com certeza, a verdadeira coreografia
trilha do espetáculo o antológico disco que para ouvir de Henrique Rodovalho.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 15 DE ABRIL • 2005

A lição da bailarina
Flávia Tápias revela coragem
dançando cinco coreografias

R OBERTO PEREIRA

A proposta não é exatamente nova. A


experiência de um bailarino convi-
dar diferentes criadores para coreografar
fluxo contido que se espasma em respirações
e pausas, traduz esse tempo em espaço, um
espaço que se constrói a partir e no corpo
especialmente para ele, e esse conjunto de de Flávia. É nítido que este solo ainda pre-
obras virar um único espetáculo, já havia cisa ser amaciado na bailarina, algo que vem
sido testada pelo excelente bailarino apenas com o convívio entre ela e a obra. A
Vincent Dunoyer há alguns anos. E, aqui iluminação, dada a precisão de como tudo
no Brasil, a bailarina mineira Thembi Rosa se dá no palco, precisa ser mais exata, mais
elaborou seu Ajuntamento,em 2002, com sutil. E o figurino interfere demais no que
a mesma proposta. Entretanto,o que cha- deveria ser apenas o mecânico do tempo e
ma a atenção em Cinco coreógrafos e 1 do espaço, metamorfoseados em corpo e nas
corpo, que Flávia Tápias apresenta no ampulhetas do cenário.
Centro Cultural do Banco do Brasil até do- Semelhante, de Henrique Rodovalho,
mingo,é sua coragem e sua generosidade solo que a bailarina já dança há mais tem-
como bailarina. po, mostra que a familiaridade dela com a
Num momento em que vários jovens se obra concede um caráter diferente das ou-
dedicam apressadamente à função de co- tras apresentadas na noite. Mas o interes-
reógrafos,tarefa nada fácil, Flávia revela sante dessa obra de Rodovalho, que apre-
em sua dança, neste espetáculo, um orgu- sentou sua companhia, a Quasar, na sema-
lho pelo seu ofício de bailarina. E como ela na passada também no CCBB, é como já
é uma bailarina de qualidades múltiplas,a nela o vocabulário de movimentos do co-
coragem com que enfrenta o desafio de reógrafo solicita que ele, e apenas ele, seja
visitar diferentes assinaturas coreográficas a matéria-prima de sua criação, o que ga-
e a generosidade como deixa seu corpo nha sua maturidade máxima em Só tinha de
estar a serviço dessas assinaturas é sua bela ser com você.
lição ao público. O solo mais interessante da noite pare-
A primeira obra da noite, Ballet meca- ce ser justamente Solo, do coreógrafo israe-
nique,de Ana V itória, é quase um tratado lense Rami Levi. A elegância do fluxo de
sobre o tempo.Só que,como é marca desta movimentos, que contrasta com a precisão
coreógrafa, a exatidão dos movimentos, num contida dos solos anteriores, encontra no

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
corpo de Flávia um abrigo próprio de uma a se relacionar, de modo mais óbvio, com
bailarina que acolhe a dança de seu coreó- esse objeto cênico. E a literalidade do tema
grafo. Já em Da família dos crocodilos,afra- fica ainda mais óbvia com a canção que le-
gilidade da obra do diretor de teatro Paulo genda o movimento e vice-versa, no final
de Moraes está em impor a essa bailarina do solo.
uma dramaticidade que escapa ao que é A dança de Flávia Tápias merece toda a
movimento,ou seja, escapa à sua habilida- atenção. Uma jovem bailarina que sustenta
de que é a dramaturgia construída pelo e no em seu corpo tal desafio, com todas as fragi-
próprio movimento,em sua dança. lidades que esses encontros impõem, mas
Finalizando a noite,Giselle Tápias, mãe também com todos seus acertos, ensina para
de Flávia, assina Rede.A beleza da primei- os também jovens da dança que ser uma
ra cena, em que a bailarina parece flutuar verdadeira bailarina, por si só, é um ato de
sobre uma rede, infelizmente se desman- criação. E que apenas alguns estão realmen-
cha no momento em que se obriga a dança te preparados para isso.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
R I O D E J A N E I R O • S E X T A - F E I R A • 22 D E A B R I L • 2 0 0 5

Falta coerência e coesão


A meio caminho do teatro e da dança, o espetáculo
Éticas se perde em clichês moralizantes

R OBERTO P EREIRA

O Centro Cultural do Banco do Brasil


promove, durante todo o mês de abril,
o evento 4 Movimentos – Cias. de dança no
tanto, começa antes no movimento e pouco
chega a abordar o que se pretende.
A construção do movimento no corpo dos
CCBB que, como o nome deixa claro, inten- jovens atores em cena é ainda incipiente, o
ta ser um evento de dança. Como tal, esse que transforma esse movimento em gesto
evento, ao reunir quatro diferentes trabalhos, ensaiado, postiço, carente de uma elaboração
possui uma curadoria e curadoria, sabemos dramática. Tudo ainda está por ser feito an-
nós, é uma ideia que se interpõe entre o pú- tes desses corpos encontrarem a cena. Tudo
blico e a obra antes mesmo dessa ter sido ainda deve ser estudado, burilado como mo-
apresentada. vimento, como gesto e como dramaturgia.
É a partir dessa observação que se pode A dança, também sabemos nós, permite que
entender a inclusão do espetáculo teatral o movimento não faleça pela doença do cli-
Éticas, de Eduardo Wotzik, em cartaz até chê. E Wotzik não faz dança neste seu espe-
domingo, neste evento de dança. E é a par- táculo teatral. Nem dança-teatro.
tir dela também que se pode olhar para esse As cenas, desconexas entre si, embora
trabalho tentando tecer algumas considera- haja explicitamente a vontade se falar so-
ções no que ele se aproxima e no que ele se bre um tema tão espinhoso como a ética,
distancia da própria dança. Movimento e padecem pela obviedade com que as ideias
gesto parecem ser as chaves para isso. são articuladas. Isso é flagrante sobretudo
O diretor Wotzik intenta, aqui, dar cabo na cena da dançarina de dança do ventre
a uma tarefa nada simples: através do que (vestida como tal) e na interminável cena
ele denomina “método da aspiração”, algo do haraquiri (também devidamente muni-
que pretende “desenvolver uma narrativa da com todos os elementos cênicos que tal
corporal fundada no movimento, a partir de cena sugere). Em ambas, tudo contribui para
princípios da dança e do teatro”, há que se o entendimento unívoco do que se quer di-
abordar o tema da ética. O problema, entre- zer, numa estrutura de legenda. Entre todas

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
as cenas, fragilizando ainda mais o todo da e do teatro, como quer Wotzik, demanda
obra, textos recheados de efeitos moralizan- tempo. Éticas pode ser visto como uma
tes teimavam em costurá-las, evidenciando etapa nessa ainda longa trajetória que o
que coesão e coerência, palavrinhas mági- diretor tem pela frente.Trata-se,então,de
cas para um espetáculo (de teatro e de dan- uma experiência. A nós,resta torcer para
ça), haviam sido esquecidas. que o movimento e o gesto que dali pos-
Elaborar um método de construção sam nascer não tenham vida curta por cau-
dramática, a partir de princípios da dança sa do clichê.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
CRÍTICA NÃO PUBLICADA
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 1 D
DEE MAIO • 200
20055

Espetáculo Esquecidos
de Catharina Gadelha

R OBERTO PEREIRA

U ma frase contida no texto do progra-


ma de Esquecidos,espetáculo solo de
Catharina Gadelha que encerrou ontem a
sim o tratamento político que tanto se an-
seia está em sua forma mais acabada e
mais eficaz. O solo do início, por exemplo,
mostra de dança 4 Movimentos,do Centro belamente retomado no final do espetácu-
Cultural do Banco do Brasil, revela o modo lo, é tecido com sutilezas gestuais que con-
como a bailarina e coreógrafa entende trastam com a obviedade dos tiros que vêm
e constrói seu própriotrabalho: “As peças logo em seguida. Ou com a cena quase pa-
de Catharina Gadelha não devem ser en- tética ao som de um miserere nobis. A qua-
tendidas somente como atos corporais,mas lidade da bailarina parece ser antes a de
sim, cada vez mais, como um movimento transitar com toda a competência entre a
político”. técnica de dança que seu corpo abriga e
Esquecidos faladefronteiras,de culturas, uma dramaticidade que não é necessaria-
e claro,toca em questões que envolvem es- mente aquela do teatro, como bem mostra
sas duas instâncias,sobretudo em seu cará- o solo acima citado.
ter político. O problema dessa fala, justa- Fazer dança, desde sempre, é um ato
mente, está na crença de Catharina, como político. As escolhas estéticas, técnicas e éti-
ilustraafrase citada, que o movimento,por cas são escolhas com as quais um artista se
sisó,não é uma escolha e um ato políticos,e compromete desde o momento em que de-
que,para assim torná-lo,é necessárioreves- cide seu caminho profissional. A dança não
ti-lo de um gesto teatral e, ainda mais com- precisa se revestir de dança-teatro para al-
plicado,revesti-lo de um gesto denunciador, cançar isso. E pela qualidade da artista Ca-
explícito, que deixa o poder de qualquer tharina Gadelha, parece que lhe falta acre-
metáfora artística se esvair. ditar que é na sutileza e na poeticidade de
O explícito do espetáculo,que tanto o sua dança que respira a mais veemente po-
fragiliza, permite que pequenas brechas de lítica de fronteiras, de culturas e de esqueci-
poeticidade apareçam, mostrando que ali dos, que ela tanto anseia retratar.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2005

Tempo de despertar
Montagem de A bela adormecida
imprime fôlego ao Ballet do Municipal

R OBERTO P EREIRA

O Ballet do Theatro Municipal abriu sua


temporada 2005 na quarta-feira com
uma obra muito bem escolhida: A bela
nhada pela bailarina Teresa Augusta, que fe-
lizmente encontrou nesse papel o tom exato
de sua interpretação, Francisco Timbó, como
adormecida,balé da dupla infalível Petipa/ o príncipe Désiré mostrou que sua experiên-
Tchaikovsky,estreado em 1890 na Rús- cia faz dele um ótimo partner nos pas-de-deux,
sia e até hoje um grande desafio para as mas pouco além disso. O brilhantismo dos ar-
companhias que se dedicam ao repertó- roubos técnicos e a elegância do personagem
rio clássico. nem de longe encontram no bailarino sua
Para a companhia carioca, sua estreia com melhor versão, o que torna arriscada sua es-
a versão integral foi em 1998 e é dela que colha para uma estreia desse peso.
vemos agora uma nova versão,também assi- Cristiane Quintan como a Fada Lilás e
nada pelo tcheco Jaroslav Slavicky,que re- César Lima como a Fada Carabosse mostra-
montou o balé naquela ocasião.Nesse senti- ram profissionalismo técnico. Mas o único
do,essas duas montagens desse grande balé bailarino que realmente conseguiu deixar
feérico servem como balizadores para se pen- a plateia sem fôlego, tal era a perfeição de
sar a atual situação dessa nossa primeira e seus saltos e de sua vigorosa interpretação
única companhia de balé clássico no Brasil. do Pássaro Azul foi Vítor Luiz, ao lado da
Se na montagem de sete anos atrás o excelente Norma Pinna.
esplendor característico da obra casava Os cenários assinados por Hélio Eich-
perfeitamente com a excelente fase que o bauer e a luz precisa de Maneco Quinderé
corpo de baile atravessava, na desse ano garantem um tom sépia que resulta num
esse mesmo corpo de baile deixa flagrar clima de algo precioso, como esse balé, mas
uma ainda tímida retomada de suas funções, também de nostalgia de alguma coisa que
após uma atribulada direção artística, subs- ainda não foi recuperada. A música, num
tituída muito recentemente,em janeiro. O andamento mais lento que de costume, pa-
novo diretor,Fauzi Mansur,parece acenar rece contribuir para esse clima. E o balé,
com sua A bela adormecida para um proces- que se encerra sem ter mesmo consegui-
so animador de colocar nos eixos o que an- do fazer a bela companhia despertar, mos-
tes cambaleava em termos artísticos. tra que sua nova direção artística inicia-
A estreia foi correta e nada mais.Se a prin- se correta e que daqui em diante tudo
cesa A urora foi competentemente desempe- deve, e pode, melhorar. Aguardemos.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 4 DE JUNHO • 2005

Empenho e capricho
não fazem obra transbordar
A bela adormecida:
À excelência do Ballet do Theatro Municipal,
agora sob os cuidados de Fauzi Mansur,
falta integração com a orquestra

S ILVIA S OTER

A estreia de A bela adormecida,na se-


mana passada, não foi simplesmente
a abertura da temporada do Ballet do The-
Coube à bailarina Teresa Augusta o pa-
pel de Aurora na noite de estreia. Não é di-
fícil tomar Teresa pela jovem Aurora. Sua
atro Municipal em 2005. Foi também a es- construção da personagem se apoia em suas
treia da mais importante companhia na- evidentes qualidades físicas para o papel e
cional de repertório clássico sob os cuida- em sua juventude. A bailarina equilibra ain-
dos de Fauzi Mansur,que passou a dirigi- da suavidade de gestos e técnica segura e
la desde a saída de Richard Cragun, no mostra que essa nova geração já está pron-
final do ano. Essa versão da obra de ta para o desafio. Cristiane Quintan cumpre
Marius Petipa tem coreografia de Jaros- com eficiência o papel da Fada Lilás sem,
lav Slavicky, como aconteceu em 1998, úl- no entanto, emprestar-lhe ainda seu brilho
tima vez que a peça foi apresentada pela especial. Visivelmente tenso, Francisco
companhia carioca. Timbó não aproveita todas as suas qualida-
Fauzi Mansur manteve o movimento in- des como o Príncipe Desiré. Nesse elenco, o
tensificado na gestão anterior de garantir o destaque masculino é sem dúvida Vitor Luiz
revezamento de diferentes elencos na linha que numa passagem meteórica no terceiro
de frente das montagens da casa. Assim, ato como o pássaro azul, mais uma vez se
além das estrelas habituais,outros talento- confirma como um dos melhores bailarinos
sos solistas experimentam em A bela ador- da companhia.
mecida os primeiros papéis.Por exemplo,a Há um evidente cuidado na montagem
princesa A urora será interpretada, ao lon- atual, que reúne vários elementos repre-
go da temporada, por nomes como Teresa sentativos da excelência do Ballet do The-
A ugusta, Claudia Mota, Márcia Jaqueline, atro. Os figurinos são elegantes, adequa-
R enata Tubarão além da experiente Cecília dos e bem acabados, assim como o cená-
Kerche. Cada elenco imprime, evidentemen- rio assinado por Hélio Eichbauer, que
te, marca própria em cada récita. optou por situar o enredo em desenhos que

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
poderiam estar nas páginas dos livros das No entanto, a soma dessas qualidades
fábulas de Perrault. A iluminação de Ma- não resulta num espetáculo de fato grandi-
neco Quinderé consegue integrar de ma- oso. Apesar do empenho da companhia e
neira harmônica os figurinos da Ópera de do capricho da montagem, a força de A bela
Paris – cheios de pequenos detalhes – ao adormecida não transborda o palco para
despojamento dos traços do cenário de conquistar a plateia. Mesmo o terceiro ato,
Eichbauer. Cenário, figurino e iluminação com sua sequência de variações em estilos
constroem uma imagem convincente e distintos,não consegue ganhar ritmo e ga-
atualizada do brilho e da grandiosidade da rantir um final à altura de A bela adorme-
corte de Luís XIV. A companhia, visivel- cida.Paravalorizar a colaboração única de
mente bem ensaiada, mostra grande en- gênios como Petipa e Tchaikovsky, melhor
trosamento nas danças de conjunto, em integração entre orquestra e balé é neces-
especial na valsa do primeiro ato. Essa sária. Numa obra em que música e coreo-
precisão do conjunto é especialmente im- grafia não têm vida independente, esse
portante para a geometria dos desenhos desajuste acaba por obscurecer as inúme-
construídos nas obras de Petipa. ras outras qualidades da montagem.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 4 DE JUNHO • 2005

Poético e orgânico
Por minha parte envolve a plateia

R OBERTO PEREIRA

A cor ocre que permeia a mais nova


obra da coreógrafa carioca Esther
Weitzman, Por minha parte, que estreou
num mesmo terreno, entre quem dança e
quem assiste. Também o figurino, assinado
por Gerah Diaz, permite que o ocre e o solo
quinta-feira no Espaço SESC, parece ser a se traduzam em tecidos, também rústicos,
senha para que se adentre no universo co- como o algodão, mas sempre exatos em sua
reográfico que ali se organiza. Uma das mais elegância de cores e texturas.
fortes características da assinatura de Es- Mas é no movimento e em sua qualida-
ther sempre foi a relação quase orgânica com de que Por minha parte se distingue. Exis-
o solo,acentuando poeticamente o peso dos tem lá continuidades da pesquisa a qual
corpos de seus bailarinos. Nesta obra, esse Esther Weitzman vem se dedicando, como
solo,todo ocre,é desvelado na inspiração da sua relação com o peso, com o corpo que se
coreógrafa – a Região Norte do Brasil –, move deixando que o som desse mover seja
traduzida no cenário,no figurino e,sobretu- matéria bruta a ser tratada, com o par si-
do,no próprio movimento. lêncio/música, com sua dramaticidade.
Nesse sentido,chama atenção a ambiên- Assim, a trilha musical, tocada ao vivo pelo
cia construída no mezanino do Espaço grupo Craquelê, ao mesmo tempo que dei-
SESC,sobretudo o piso rústico,de madeira, xa mais evidente tais relações, ocupa um
que além de registrar rastros de suor dos espaço por vezes amplo demais para aque-
bailarinos, ainda os encarde ao longo do le ambiente tão íntimo, sobretudo por sua
espetáculo. Como a disposição das arqui- eloquência melódica. Parece ser mesmo no
bancadas é em círculo e muito próxima, as silêncio que Esther alcança momentos de
manchas que vão se formando ali parecem exatidão, de justeza de seu pensamento
misturar organicamente o público à dança, coreográfico.
aproximados também com a delicadeza dos Neste espetáculo, a coreógrafa pela pri-
cochichos e dos abraços dos bailarinos. Uma meira vez não toma parte dançando, o que,
intimidade e uma cumplicidade se arranjam com certeza, confere a seu trabalho um aca-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
bamento mais refinado, pela chance de ela lo naqueles corpos, naqueles movimentos,
estar de fora dele, esculpindo o espaço de para que o todo dos bailarinos se torne or-
modo tão delicado e ao mesmo tempo tão gânico como o todo do próprio espetáculo.
vigoroso. A partir disso, mesmo com maturi- Para tanto, nada melhor que o tempo: o cor-
dades tão diversas de seus cinco bailarinos, po precisa aprender com calma o que é te-
Esther vem conseguindo imprimir neles seu cido ali em poeticidade. Por minha parte
vocabulário de movimentos, fruto de anos parece ser, então, apenas uma parte desse
de pesquisa. Claro, falta ainda amalgamá- rico processo.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 9 DE JUNHO • 2005

Uma leve renovação


na dança-espetáculo
Nó: pela primeira vez no trabalho de
Deborah Colker, uso de objetos, marca
da coreógrafa, afeta os movimentos no palco

S ILVIA S OTER

A obra coreográfica de Deborah Colker,


desenvolvida nesses 11 anos de cria-
ção, possui algumas características recorren-
duziu, a seu modo, a partir da relação com
suportes materiais. A primeira parte se de-
senvolve na interação dos bailarinos com
tes. O traço mais essencial é que a coreógra- uma enorme quantidade de cordas que pen-
fa constrói suas peças a partir da explora- dem do teto, ora agrupadas, ora não. As cor-
ção de um suporte concreto, de um objeto, das e a presença de um longo cabelo reme-
na interação com o qual sua coreografia tem, inevitavelmente, a obra do artista plás-
emerge. Explorar as relações do corpo com tico Tunga. Impossível não pensar em suas
algum objeto não é um procedimento inco- tranças evocadas pela cenografia de Grin-
mum na dança contemporânea. Mas para go Cardia.
muitos artistas, uma vez constituída a dança Ainda que as formas de uso da corda
provocada pelo encontro com o objeto, esse sejam, em geral, óbvias, como amarrar a
é deixado de lado. Ele é meio, não é fim. Já si mesmo, amarrar o outro, pendurar, tra-
Deborah o traz para a cena. Suas coreogra- cionar, unir um corpo ao outro, nessa pri-
fias se constroem através desse elemento, em meira parte se opera algo importante em
torno dele, sobre ele, dentro dele, embaixo se tratando do trabalho de Deborah. Tal-
dele. É o que mais uma vez acontece em Nó, vez seja ali que, pela primeira vez, o ob-
que estreou na semana passada e fica em jeto comece também a afetar, mesmo que
cartaz até o fim de julho,no Teatro João de forma descontínua, a dança. As cordas
Caetano.Em Nó,também se constata outra encontram ressonância na movimentação
importante característica da coreógrafa: tra- que atravessa os bailarinos, provocando
balhar com ótimos bailarinos,belos,vigoro- uma qualidade sinuosa nos dorsos, fazen-
sos e possuidores das qualidades plásticas e do emergir, de fato, novas possibilidades
atléticas que sua dança demanda. no repertório de movimentos da coreógra-
Paratratar do tema desse espetáculo,o fa. Isso surge em paralelo, quase que de
desejo humano,Deborah mais uma vez o tra- forma subliminar e é o mais interessante.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O figurino de Alexandre Herchcovitch e força arrebatadora que desorganiza e faz
o desenho de luz de Jorginho de Carvalho mover – assume contornos apolíneos e a
trazem uma cor sombria e tribal à cena. Duas coreógrafa volta a circular por onde domi-
bailarinas são envolvidas pelo longo cabe- na e de onde seduz. Na primeira parte, fe-
lo. As Xipófogas capilares de Tunga são lizmente, o desejo leva a dança de Debo-
citadas e surgem numa nova versão. rah a flertar com o desconhecido e começa
Já no segundo ato,o elemento explora- a ventilar seu vocabulário coreográfico.
do é uma caixa de paredes transparentes, um Se muitos coreógrafos contemporâneos
grande aquário situado no centro do palco. apontam para direções diferentes a cada
Para essa cena, Deborah se inspirou nas vi- nova criação, o trabalho de Deborah pode
trines que expõem garotas de programa em ser caracterizado pela permanência de
Amsterdã. É a coreógrafa a primeira a ocu- marcas claras. A coreógrafa tem operado
par a caixa num bonito solo que acontece, no registro da dança-espetáculo. Suas pe-
de início,dentro dela. Nesse primeiro mo- ças são sempre grandiosas, contam com a
mento, a caixa funciona como uma prisão, participação de muitos bailarinos, com ce-
talvez numa referência à condição de apri- nários e figurinos sofisticados e com trilhas
sionamento imposta por alguns desejos,mas sonoras diversificadas onde o silêncio não
essa ideia se perde.Até o final da coreogra- tem lugar. Espetáculos que atraem até
fia, a caixa deixa de ser tratada pela sua aqueles que no resto do ano não acompa-
possibilidade de restrição e passa a ser ex- nham os caminhos da dança contemporâ-
plorada como suporte. Ela é preenchida por nea. Uma criação de Deborah é como um
homens e mulheres sensuais,ela é escala- jogo da seleção brasileira na final da Copa
da, contornada, empurrada e, finalmente, do Mundo. Até os nada aficionados não
girada. Nesse segundo momento,o desejo – deixam de ver.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 12 DE JUNHO • 2005

Visita musical a um certo


Brasil, um “país imaginário”
Por minha parte: Novo trabalho da
Esther Weitzman Companhia de Dança é um importante
passo à frente de Terras , peça da coreógrafa de 1999

S ILVIA S OTER

P or minha parte, a mais recente criação


da Esther Weitzman Companhia de
Dança, que encerra temporada hoje no
O chão, cor de terra, remete aos terreiros
onde as danças populares acontecem. De
qualquer lugar da plateia, o espectador vê
mezanino do Espaço SESC, deve ser enten- a dança e, obrigatoriamente, o público. Essa
dida como um passo importante num cami- escolha, em se tratando desse trabalho, aju-
nho inaugurado em Terras, peça da coreó- da a criar fricções entre a dança cênica – em
grafa de 1999. Assim como no anterior, nes- que palco e plateia se distinguem – e as
se novo trabalho é a força do coletivo que danças populares onde essa distinção não se
constrói o terreno para a dança. Em Terras, coloca. O modo como os cinco bailarinos
a experiência do exílio fortalecia os elos entram em cena sublinha esse aspecto: eles
entre o grupo – formado apenas por mulhe- surgem de trás das arquibancadas, se ali-
res – cuja dança criava um território itine- nham a elas e ao público, para só depois
rante. Em Por minha parte, dois homens e ocuparem o centro da cena.
três mulheres exploram o terreno a partir A companhia, composta atualmente por
de seus encontros e desencontros. Alysson Amâncio, Carla Reichelt, Edney
A coreógrafa deixa de lado as referên- D’conti, Milena Codeço e Roberta Repetto,
cias à cultura judaica, presença central em mostra familiaridade com as bases do tra-
outras peças, e se aproxima de um certo balho da coreógrafa – que dessa vez não está
Brasil, um “país imaginário”,como ela expli- em cena – ainda que em alguns momentos
ca no programa. A música vigorosa do Cra- não consiga garantir a precisão de gestos e
quelê e os bonitos figurinos de Gera Dias ritmo, centrais na dança de Esther.
ajudam a construir a brasilidade que na Em Por minha parte, Esther visita figu-
dança se materializa. A coreógrafa estrutu- ras e células coreográficas de suas criações
rou o mezanino do Espaço SESC – local des- anteriores. Desse modo, ela inscreve a nova
tinado à dança incorporado aos palcos da criação numa trajetória marcada por memó-
cidade no início do ano – como uma arena. rias e recorrências. O uso do chão como

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
superfície que atrai e acolhe o corpo intei- fazendo surgir uma dança diferente, mais
ro, as batidas ritmadas de pés e mãos no fluida e mais simples, evocando novamente
chão, sacudindo a poeira, e os gestos que as danças populares brasileiras.
acariciam a terra, retornam renovados, O reaparecimento de elementos já
nessa peça. O silêncio entrecortado pela trabalhados em suas criações anteriores
regularidade da percussão do corpo no chão não significa, de modo algum, congela-
está ali, só que dessa vez, dialogando com a mento. Esther costura essas diversas refe-
música ao vivo do grupo Craquelê. A música rências a novos elementos com mãos sá-
ajuda a criar um recorte dentro da cena. Em bias. Essas questões de fundo se oferecem
alguns momentos, ela deixa de acompanhar como um fértil território onde a dança de
a coreografia e ganha o primeiro plano, Esther Weitzman se desenvolve e se renova.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 13 DE JUNHO • 2005

Objetos como parceiros


Espetáculo da Os Dois Cia. de Dança
usa caixa d’água e bancos na coreografia

R OBERTO PEREIRA

O bjeto partner, título do novo trabalho


da Os Dois Cia. de Dança, composta
pela coreógrafa e bailarina Giselda Fernan-
Já em Às vezes banco, o objeto parece
ainda não ter sido transformado completa-
mente em partner, pertencendo mais à cena
des e seu marido, o artista plástico Hilton que ao próprio corpo que dança. Configuran-
Berredo, estabelece o ponto comum entre as do-se antes como um experimento, essa obra
duas coreografias que compõem a noite: ainda precisa deixar que o objeto, muitos
Castelo d’água e Às vezes banco. Esse ponto bancos de plástico branco, deixe-se tingir
comum, o objeto cênico que tenta um diálo- pelo que é orgânico do movimento. Em cer-
go coreográfico com o corpo, talvez pela tos momentos, esse processo se efetiva, mas
própria natureza da companhia, parece vir é logo interrompido por uma outra informa-
antes do lugar das artes plásticas, permane- ção, que não lhe concede tempo para sua
cendo ainda em pleno processo de encon- conclusão. É nesse sentido que as artes plás-
trar na dança o seu lugar. ticas, a partir de Berredo, imprimem na obra
Castelo d’água, obra mais antiga, estrea- uma forte noção espacial, deixando que o
da na 11ª edição de Panorama RioArte de tempo venha em segundo plano. Talvez
Dança, em 2002, é um belo solo em que quando esses dois elementos encontrarem
Giselda e uma caixa d’água parecem divi- um equilíbrio, o movimento, sobretudo aque-
dir a cena, mas não o espaço em que ela acon- le do cotidiano que ali se oferece como
tece. Tal é a relação ali tecida, que objeto se matéria-prima, esteja apto a ser o amálga-
transforma realmente em partner, tornando ma do corpo com o objeto.
o espaço há um só tempo volume e dinâmi- A sofisticação da proposta que se apre-
ca. Trata-se de um solo com fortes tons de senta e a qualidade técnica tanto de Giselda
dança moderna, à qual a bailarina tão bela- quanto da bailarina convidada, Aline Tei-
mente se presta. E esses tons modernos se xeira, fazem da Os Dois Cia. de Dança um
espraiam tanto pela própria movimentação, lugar onde a história do moderno e de sua
grave e precisa, pelo figurino e pela trilha dança seja revisitada com competência. Um
musical, quanto pelo anseio em deixar a dança lugar que, por ser pouco investigado hoje,
falar de si mesma, através de sua relação me- concede à iniciativa, por si mesma, um ca-
talinguística com a coreografia e com o flu- ráter absolutamente importante e inédito na
xo de pensamento que ali de desvela. cena da dança carioca.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 23 DE AGOSTO • 2005

Descompassos
Desarmonia generalizada marca Noite transfigurada

R OBERTO P EREIRA

A homenagem que o Theatro Municipal


e seus corpos estáveis prestam a Ar-
nold Schoenberg, com espetáculo compos-
para Fábio de Mello e não chegaram a lhe
servir como matéria-prima.
O parco vocabulário de movimentos, atra-
to por uma ópera, Erwartung, e um balé, vessado por clichês coreográficos e arroubos
Noite transfigurada, mostrou em sua estreia dramáticos muito em voga nos balés do sécu-
na última sexta-feira que a grande estrela, lo XIX, pouco estabelecia conexões com o que
ao lado da música do compositor austríaco, há de moderno na música e de contemporâ-
são mesmo os cenários assinados pelo artis- neo no cenário. Mas essa disparidade aumen-
ta plástico W altercio Caldas.Trazendo para ta ainda mais com a atuação desigual do gru-
a cena um diálogo com o que há de moder- po de 11 bailarinos que, como intenta Fábio
no na música, Caldas inaugura espacialida- de Mello, representaria a noite. Lembrando
des contemporâneas que, principalmente que tanto o coreógrafo quanto a figurinista,
no caso do balé, ganham papel maior do que Rosa Magalhães, são conhecidos pelos seus
o de mero cenário.E é justamente nesta ou- trabalhos em desfiles do carnaval carioca,
tra dimensão adquirida por sua obra que percebe-se que não é mero acaso que esse
descompassos com os outros artistas, como grupo evolui em cena de forma a lembrar com-
coreógrafo e figurinista, são criados. posições típicas de comissões de frente em es-
O balé,assinado por Fábio de Mello,tenta colas de samba. O descompasso aí é evidente.
resgatar a poeticidade do texto de Richard O que salva a noite é a atuação de Vítor
Dehmel, que havia inspirado Schoenberg a Luiz, pelo ótimo bailarino que é e não pela
compor Noite transfigurada.Para tal tarefa, coreografia que executa, e o último pas-de-
foram chamadas as três primeiras-bailarinas deux, com Botafogo e Misailidis, dupla que
da casa,Ana Botafogo,Nora Esteves e Á urea mostra como a convivência nesses casos pode
Hämmerli, e a solista Sandra Queiroz, que ser a chave mestra para tornar uma dança algo
compunham pares com os bailarinos Marce- além de uma simples sequência de passos.
lo Misailidis,Paulo Ricardo,V ítor Luiz e Jo- Assim, Noite transfigurada de Schoenberg
seny Coutinho,respectivamente.O que já re- ganha sua atualização em Waltercio Caldas,
presentava um desafio ao coreógrafo no que que, infelizmente, permanece sozinho em
se referia à complexidade e à riqueza musi- cena. Tudo mais fica postiço e não compõe, de
cal ficou ainda mais grave devido à heteroge- forma alguma, um todo orgânico. A homena-
neidade do elenco escolhido.Maturidades di- gem, desse modo, fica por conta da ótima en-
versas dos bailarinos foram antes empecilhos cenação da ópera, que antecede o balé.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 24 DE AGOSTO • 2005

Schoenberg transfigurado
Cenários valorizam obra do
compositor alemão, mas não mascaram
fragilidade da coreografia

S ILVIA S OTER

Q uando as cortinas se abrem, o cenário


de Waltercio Caldas sugere um bos-
que durante a noite, uma das ambientações
obra de Schoenberg foi criada – a 1999. Pa-
ralelamente, cada casal representa um mo-
mento da noite: o anoitecer, a própria noite,
icônicas das peças do balé romântico. Em se- a madrugada e a alvorada. Costurando as
guida, os riscos negros e verticais que esbo- cenas, 11 bailarinos representam a noite, to-
çavam longos troncos de árvores atravessa- dos coloridos de azul dos pés à cabeça.
dos por um fio de estrelas, se desfazem, já que Fabio de Mello é um dos coreógrafos
eram as dobras de uma outra cortina. Outro brasileiros que têm investido na flexibiliza-
plano é então revelado. O bosque romântico ção da técnica clássica a partir da introdu-
se despe e dá lugar a uma noite contemporâ- ção de elementos contemporâneos. Em Noi-
nea. Para situar a dança, o cenário de Walter- te transfigurada, essa tentativa se revela
cio Caldas consegue traduzir visualmente pouco eficiente. A presença da dança con-
essa obra de Schoenberg que, sem abando- temporânea parece ser entendida aqui
nar o neorromantismo alemão, já apontava como o enxerto de um conjunto de passos
para outros caminhos. Mas a força da promis- que não caberiam no vocabulário do balé
sora imagem que dá início à Noite transfigu- clássico. E apenas isso. Essa impressão é
rada anuncia algo que, infelizmente, não se agravada pelo fato dos bailarinos parece-
produz em termos coreográficos. rem, por exemplo, ainda pouco à vontade
A proposta de Fábio de Mello também com os rolamentos e entradas no chão, acen-
opera na passagem do tempo,na transição tuando o aspecto artificial dessa outra mo-
do passado para o presente.A partir do vimentação para a coreografia.
poema de Dehmel, o coreógrafo optou por As primeiras bailarinas Nora Esteves,
dividir a peça em quatro momentos distin- Áurea Hämmerli e Ana Botafogo com-
tos: os encontros de quatro mulheres com põem o grupo de mulheres, junto com a
seus homens e um segredo,que se sucedem solista Sandra Queiroz. São acompanhadas
durante um século,de 1899 – ano em que a por Paulo Ricardo, Vítor Luiz, Marcelo

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Misailidis e Joseny Coutinho, respectiva- cam de frente com a elegância dos duos. A
mente. Apesar de pouco inventivos em ter- caracterização do grupo parece completa-
mos coreográficos, os duos conseguem mente fora do tom. Os figurinos de Rosa
guardar uma elegância que se encaixa com Magalhães, exagerados e cheios de brilho,
eficiência na obra de Schoenberg e no ce- operam num outro registro, carnavalizando
nário de Caldas. O casal de 1999, Ana Bo- a cena. A coreografia do grupo, cheia de pas-
tafogo e Marcelo Misailidis, é responsável sos que parecem lá estar apenas para apro-
pelo momento mais convincente da noite. veitar os figurinos, aposta no óbvio. Pela bus-
A afinidade entre ambos e a sensualidade ca de efeitos – como o da imagem que encer-
contida que imprimem no casal da alvora- ra a peça – a delicadeza é abandonada. É
da saltam aos olhos. pena que o coreógrafo não tenha apostado
Já a coreografia e os figurinos do grupo que, em se tratando de Schoenberg e de
de rapazes que interpretam a noite se cho- Waltercio Caldas, menos poderia ser mais.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 27 DE AGOSTO • 2005

O corpo fala
Companhia criada há 30 anos criou
vocabulário coreográfico próprio

R OBERTO PEREIRA

O s trinta anos do Grupo Corpo, come-


morados em 2005, revelam uma tra-
jetória ímpar de uma companhia de dança
de dança que já nasce no palco traz consigo
a marca de seu hábitat em seu DNA. E tal-
vez tenha sido esse um dos diferenciais que
dentro da história brasileira. O que se con- proporcionaram hoje ao Grupo Corpo lan-
figurou ali como uma ideia é fruto da ousa- çar-se hoje à construção de um complexo de
dia de jovens irmãos, os Pederneiras, aliada 18 mil metros quadrados, destinados a cine-
à busca de uma qualidade que foi sempre ma e artes plásticas além de abrigar a com-
sua marca desde o início. panhia, denominado Centro de Arte Corpo.
Sabendo-se que a dança no Brasil che- Mas o que sempre legitimou a trajetória
gou pelas suas margens, vinda da Europa e dessa companhia foi o que ali se constrói em
aportando no litoral, uma companhia nasci- termos de qualidade estética. Fruto de uma
da no interior do País, fora do famigerado conjunção de talentos que estabeleceram
eixo Rio-São Paulo, mostrava que a máxi- um diálogo fino entre criadores (Rodrigo
ma mineira daquele que “come quieto” pa- Pederneiras, como coreógrafo, Paulo Perder-
rece ser mesmo verdade. E desde 1975, além neiras como produtor e iluminador, Freusa
de ter colocado Belo Horizonte no mapa da Zechmeister como figurinista e Fernando
dança que se fazia por aqui, o Grupo Corpo Velloso como cenógrafo), a história da com-
colocou o Brasil no mapa da dança que se panhia mostrava a um Brasil perplexo com
faz no mundo. o que dali nascia que tudo parecia ter vindo
Se a primeira sede da companhia foi a de uma só pessoa, tal era a harmonia alcan-
própria casa da família Pederneiras, com çada entre as áreas diversas que fazem da
pais “expulsos” pelos próprios filhos para dança uma arte tão híbrida. Somado a isso,
que eles pudessem quebrar paredes e cons- a qualidade irretocável dos bailarinos ga-
truir uma sala de ensaios, hoje, a companhia rantia um padrão que mostrava um ensino
tem uma sede invejável, com salas amplas, de dança sistematizado e competente tam-
e um teatro onde os ensaios se dão. Uma obra bém fora do eixo.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Mas, se é para se lançar um olhar agu- lá para cá, alguns marcos importantes: Pre-
çado sobre a dança do Grupo Corpo, é o que lúdios, com música de Chopin, quando a com-
há ali de absolutamente original em ter- panhia completava dez anos, em 1985, e Mis-
mos coreográficos o que salta aos olhos. sa do orfanato, com música de Mozart, qua-
Rodrigo Pederneiras vem construindo o tro anos depois, foram desembocar numa
que raríssimos coreógrafos conseguiram lista de obras que passaram a ganhar trilhas
ao longo do século passado em termos de especialmente compostas. Nomes como
dança contemporânea: um vocabulário Uakti, José Miguel Wisnik, Tom Zé, João
próprio de movimento. O desafio, além de Bosco, Arnaldo Antunes e agora Caetano
sua assinatura no corpo que se move, era Veloso propuseram caminhos traduzidos em
saber que esse corpo vinha (e vem) carre- dança por Rodrigo e toda a equipe de cria-
gando informações de mais de 500 anos da dores que o cerca.
técnica (e, portanto, da estética) do balé O vocabulário coreográfico, no caso do
clássico. Pederneiras conseguiu imprimir Grupo Corpo, propõe, para quem acompa-
nessa marca tão forte e tão poderosa o seu nha seus espetáculos, um desafio nada fácil:
próprio pensamento. Um pensamento de o de saber percorrer com os olhos o que ali
dança brasileiro. se configura nos corpos que dançam como
E esse “brasileiro”, que tanto tem adjeti- aprofundamento de questões que intrigam
vado a produção dessa companhia mineira, o coreógrafo há anos. Um aprofundamento
vem se desenvolvendo desde 1976, com quase obsessivo, mas que garante a excelên-
Maria Maria, de Oscar Araiz, primeiro su- cia da maior companhia de dança brasilei-
cesso que a lançou ao Brasil e ao mundo. De ra no próprio Brasil.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE SETEMBRO • 2005

O poder de transformação
do Grupo Corpo
Onqotô: Nova coreografia da companhia mineira mostra certa
inovação de movimentos criados por Rodrigo Pederneiras

S ILVIA S OTER

Q uebrando o ritmo de estreias a cada


dois anos, chega ao Rio Onqotô, espe-
táculo da merecida comemoração dos 30
se inova, numa relação dos pés com o chão
antes pouco explorada na dança do Corpo.
O cinza das franjas que cercam o palco, o
anos do Grupo Corpo, apenas um ano depois negro dos figurinos e a força do coletivo
de Lecuona. Como a cada vez, as coreogra- reforçam a ideia de comunidade. Aos pou-
fias vêm aos pares. Onqotô é precedido pelo cos, os figurinos de Freusa Zechmeister co-
arrebatador, colorido e já maduro Lecuona. lorem os corpos, recortando-os do ambiente
O programa segue em cartaz no Theatro cinzento. O cenário de Paulo Pederneiras é
Municipal até segunda-feira. eficiente ao criar uma parede permeável
Caetano Veloso e Zé Miguel Wisnik cri- que faz com que os bailarinos irrompam em
aram a música, em inédita parceria. O big cena e dela desapareçam, com velocidade.
bang, o termo anglo-saxão que nomeia a Da massa – nem sempre regular – que dan-
explosão que deu início ao universo, veio ça e percute o chão, alguns bailarinos se
junto com a música como tema para a peça. destacam sem perder o pulsar comum. Ao
Onqotô – corruptela à mineira de “onde longo da peça, essa comunidade ganha ares
que eu estou?” – toca em questões filosófi- mais ou menos primitivos ou urbanos. Ela é,
cas e existenciais pertinentes tanto para re- ao mesmo tempo, tribo e multidão. Ela se
flexão sobre o universo, quanto para pen- presta ao sacrifício e ao carnaval.
sar sobre os 30 anos bem vividos da com- Se para muitos criadores, a música não é
panhia mineira. mais parceira inseparável da dança, isso não
Depois das cores e da sensualidade de é verdade em se tratando de Rodrigo Peder-
Lecuona, Onqotô contrasta pela densidade neiras e seus colaboradores. Uma das infi-
e pelo tom cinzento e sombrio da cena. A nitas qualidades do Corpo é encontrar o
música ganha suporte percussivo no sapa- ponto de equilíbrio exato entre trilha sono-
tear dos bailarinos. A agilidade e a leveza ra e coreografia. Esse equilíbrio se dá, em
da movimentação de Rodrigo Pederneiras geral, quando a coreografia não está lá ape-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
nas para dar visibilidade à música e à dan- partir do poema de Gregório de Matos, On-
ça, sem poder ser imaginada dissociada da- qotô é de tirar o fôlego.
quela música, consegue existir sem a esta Sabendo que nada é acaso na dança dos
se sobrepor. É o que ocorre, por exemplo, em Pederneiras, o contraste entre Onqotô e Le-
Lecuona.Já em Onqotô,esse não é sempre cuona tem efeito de provocação e obriga
o caso. Em alguns momentos,a potência da também o espectador a se perguntar: afinal,
música de W isnik e de Caetano não encon- onde é que estou? Diante do Grupo Corpo,
tra equivalente na dança. Mas quando en- é claro, que há 30 anos se transforma, saco-
contra como, por exemplo, nos dois belos de o que antes foi visto e, felizmente, segue
duos ao som de Mortal loucura de W isnik,a na estrada.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 3 DE SETEMBRO • 2005

A mão dupla do corpo


Harmonia entre ordem e liberdade
criadora salta de Onqotô

R OBERTO PEREIRA

E ntre o big bang e o big mac, a corrup-


tela mineira que pergunta “onde que
eu estou”. Do quintal de casa para o mun-
radas em sincronias são, assim, transforma-
das em dança.
Para falar de origem, Rodrigo Pedernei-
do. O Grupo Corpo comemora seus 30 anos ras, coreógrafo da companhia, enriqueceu
com uma pergunta: Onqotô, espetáculo que ainda mais seu vocabulário de dança e, se-
estreou no Theatro Municipal do Rio de Ja- melhante ao que acontece no próprio título
neiro, na quarta-feira. Na verdade, a per- da obra, cria neologismos de seus próprios
gunta filosófica aplica-se, como toda per- movimentos. O chão aparece forte, como
gunta filosófica, ao micro e ao macro ao que (re)estabelecendo uma ligação com a
mesmo tempo: ao próprio Grupo Corpo e à terra. Para esse retorno, um outro novo ele-
dança, àquele que vem de Minas Gerais e mento: a queda. Ou ainda o som das batidas
àquele que vem de qualquer parte do mun- dos pés dos bailarinos logo no início, quase
do. Em tudo, a questão da origem e do des- tribal, numa percussão de pulso, de pulsão.
tino como setas em mão dupla, sem hierar- Ao mesmo tempo, peso e leveza convivem
quias, sem causalidades. em massas quase uniformes e em pequenos
Para tanto, o velho time mineiro se alia solos e duos, resgatando, a um só tempo, o
a novos parceiros, além de um já conheci- individual e o coletivo.
do: José Miguel Wisnik comparece nova- E mesmo que haja uma liberdade quase
mente para compor a música, num traba- despudorada no uso da frontalidade, e uma
lho conjunto com Caetano Veloso e, com certa obviedade no solo do bailarino ao som
eles, nomes como Luís de Camões e Gre- dos versos de Camões musicados por Cae-
gório de Matos. Um outro parceiro inédi- tano, o que se organiza ali coreograficamen-
to ainda: Nelson Rodrigues, que, ao afir- te é uma harmonia entre a ordem e a liber-
mar que o jogo do Fla-Flu começou 40 dade criadora. Coisa de artista, enfim.
minutos antes do nada, inspira os músicos O figurino, assinado por Freusa
e o coreógrafo. As flechas do tempo dispa- Zechmeister, é minimalista e indicial,

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
formando blocos de cores, mas também a obra, ou seja, aquela indaga sobre o
sugerindo sutilmente o Fla-Flu nas meias onde (e o quando) se está.
dos bailarinos, num breve momento. Comemorar 30 anos de dança num país
O cenário, ou o “não-cenário” como quer como o Brasil, colocando-se uma pergunta,
Paulo Pederneiras, mesmo fazendo lem- parece aliar certezas e desafios e transformá-
brar outras soluções semelhantes (como los em matéria-prima para a criação. Onqo-
o já clássico Stamping Ground, de Jirí tô é essa aliança. Mas como toda aliança que
K ylián ou Rain,de Anne Teresa de Keer- nasce por essas terras, essa também vem cer-
smaeker), cria um lugar de não referen- cada de mistérios, como diz o verso do poeta
cialidade, sem a marca do tempo,refor- Gregório de Matos que compõe o espetácu-
çando ainda mais a questão que nomeia lo: “Mistérios mil que desenterra... enterra.”

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE SETEMBRO • 2005

Na onda do revival
Mergulho de Renato Vieira no
jazzdance poderia ter sido mais profundo

R OBERTO PEREIRA

A sabedoria e a habilidade coreográfi-


cas de Renato Vieira parecem recu-
perar o seu ambiente em Memória do cor-
foram escrevendo como memória em seu
próprio corpo, pelo excelente bailarino
que foi. Lennie Dale, Carlota Portella e
po nº 2 – Suíte jazz, espetáculo que estreou Marly Tavares são três desses mestres que
na semana passada no Espaço SESC e que merecem ser mencionados. E essa última ain-
permanece em temporada até dia 2 de ou- da reencontrou o coreógrafo e ministrou au-
tubro. O que Vieira desvela ali é sua histó- las de jazz para sua companhia, num exercí-
ria, talvez de um modo muito mais reconhe- cio de recuperar um pouco daquela história.
cível do que a primeira versão de Memória O resultado, porém, é ainda tímido,
do corpo, do ano passado. como alguém que apalpa seu terreno para
Há uma razão para isso e essa razão é quase reaprender a andar nele. O jazz vem
justamente o próprio corpo. Não o corpo misturado, como não poderia deixar de ser,
qualquer, mas aquele que carrega inscri- com tudo o que o coreógrafo vivenciou em
ções de uma técnica e de uma estética ab- seus 30 anos de carreira, com hibridações
solutamente importante para a história da com a dança contemporânea, por exemplo.
dança que se faz nesse país, o jazzdance. Mas Vieira poderia ter avançado mais, e
Mesmo que seu tempo áureo tenha sido as oferecido realmente ao público o que ele
décadas de 1970 e 1980, esse modo de pen- várias vezes apenas insinua: a estética do
sar e fazer dança continua bastante eficaz jazz, com sua frontalidade e sua dança em
na formação de grandes bailarinos que fi- conjuntos, além de tantos outros elementos.
guram nas melhores companhias da cha- Nesse sentido, todos os recursos cênicos,
mada “dança contemporânea” atual. E é como música, cenário e iluminação, tor-
dessa eficácia, e com ela, que Renato Vieira nam-se secundários ao se deparar com a
constrói seu trabalho. habilidade puramente coreográfica que é
O retorno é corajoso. Vieira deixou-se apontada ao longo do espetáculo. Isso pode
ouvir o que seus mestres e sua carreira ser visto, sobretudo, no quarteto formado por

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
três rapazes e uma moça, ponto alto do Nesta atual onda de revival dos anos 80,
espetáculo, amálgama de história com o olhar para o jazzdance acaba tendo duas
presente, de memória com coragem. funções: contar a história de sua estética, ao
Para esse retorno, Renato Vieira pôde mesmo tempo que reconhecer sua eficácia
contar com uma companhia muito com- enquanto possibilidade de formação técni-
petente, mesmo que o elenco masculino ca de bailarinos.Parece que estamos viven-
seja um tanto desigual. Mas é por meio do esse momento,desde Espaço de luz,da
de Soraya Bastos e Arthur Marques que mestra Carlota Portella, do ano passado.
se pode reconhecer com mais apuro a Agora é Renato V ieira quem mostra sua
ideia do coreógrafo. Esses corpos ali con- memória, um arsenal de matéria-prima que
tam histórias em movimento. merece ser novamente utilizada.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
R IO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 30 DE SETEMBRO • 2005

O jazzdance sem
alegria e sedução
Memória do corpo nº 2 – Suíte jazz:
Renato Vieira faz releitura hábil e distanciada
da técnica que marcou os anos 80

S ILVIA S OTER

D ando sequência a seu projeto de inves-


tigação da memória inscrita no corpo,
Renato Vieira criou Memória do corpo nº 2
cadeiras cujos pés se apoiam na parede do
fundo do palco. Essa imagem, que tira o es-
pectador da percepção frontal da cena, ser-
– Suíte jazz, em cartaz no mezanino do Es- ve como transporte para um outro lugar e
paço SESC,até este domingo.Na etapa an- um outro tempo e, sobretudo, obriga o espec-
terior da pesquisa, o coreógrafo havia mer- tador a não se esquecer espectador. Essa
gulhado no corpo como receptáculo das ex- báscula de ponto de vista – o público vê o
periências biográficas de seus bailarinos.En- alto da cabeça dos bailarinos, como se esti-
tre essas experiências,aprática de uma téc- vesse num outro plano – já anuncia que o
nica de dança como algo que deixa marcas coreógrafo não tomou o caminho mais fácil
estruturantes no funcionamento do corpo já para trazer o jazzdance de volta ao seu tra-
aparecia como algo importante.Para esse balho. Ele opta por abordá-lo como técnica
segundo trabalho,sobre um estilo de dança corporal e como linguagem de movimentos,
organizado como técnica, Renato traz para em vez de tomá-lo como clima ou na sua
a cena uma etapa fundamental de sua his- forma sedutora de espetáculo. Renato Viei-
tória na dança: sua grande experiência com ra lança mão de grande habilidade coreo-
o jazzdance,de cujo boom no Rio de Janei- gráfica para produzir estranhamento entre
ro,do fim dos anos 70 ao fim dos 80, foi im- o que é apresentado: o jazzdance, e a forma
portante personagem. É sobre esse estilo,es- distanciada como é mostrado. Essa mesma
pecialmente relevante na história da dan- tensão ganha correspondência na trilha so-
ça carioca, que o coreógrafo se debruça. nora assinada por Nino Carlos que apenas
Mas nem tudo é jazz na peça de Renato. insinua, sem ir até o fim, alguns dos hits que
A sedução sorridente e sensual do jazzdan- embalaram os movimentos ondulantes des-
ce e seu caráter espetacular ficam de fora se estilo, nos anos 70 e 80.
no tratamento que a cena recebe. Na primei- Apesar de ter investido para que seus
ra parte, vemos os bailarinos sentados em jovens bailarinos tivessem uma prática do

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
velho e bom jazzdance, convidando a gran- Para os amantes do jazz, nostálgicos de
de mestra Marly Tavares para dar aulas alegria e sedução, Memória do corpo nº 2 –
para a companhia durante a criação,a pou- Suíte jazz não deixa de ser um pouco frus-
ca familiaridade de alguns em relação ao trante. Nessa releitura de Renato Vieira o
estilo fica evidente já que a técnica não jazz passa ao largo do divertimento. É de
está de fato inscrita em seus corpos,o que longe e de cima, como na primeira cena das
enfraquece a proposta. Por outro lado,os cadeiras, que Renato Vieira visita sua his-
ótimos Soraya Bastos e Arthur Marques se tória em que o jazz teve um lugar importan-
mostram absolutamente à vontade em te. Um lugar de onde ele partiu para expe-
cena, pois em seus corpos o jazzdance é rimentar outras formas de criar e para onde
memória viva. ele volta com cuidado, carinho e reticências.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE OUTUBRO • 2005

Um divisor de águas
A criação leva contemporaneidade
ao Ballet do Municipal

R OBERTO PEREIRA

A criação, obra do coreógrafo alemão


Uwe Scholz, que faleceu prematura-
mente aos 45 anos de idade no ano passado,
gir inteira, em sua plenitude. Tal desafio,
nesse sentido, obriga os bailarinos a marca-
rem em sua dança a noção de contempora-
em meio a uma produção coreográfica neidade, mesmo que a obra complete 20
profícua, pode representar uma espécie de anos em 2005.
divisor de águas na história do Ballet do Aos solistas e ao corpo de baile, a
Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Estre- chance de vencer os desafios técnicos que
ado no dia 26 e permanecendo em tempo- a obra propõe também promove uma
rada até o dia 11 de outubro, esse balé, com cumplicidade entre eles, visível ao públi-
música de Haydn e participação do coro e co. Claro, ainda há ajustes a serem feitos,
da orquestra do teatro, vem agregar um sen- mas nada que o tempo e a intimidade da
tido bastante oportuno ao desenvolvimen- companhia com o que se está dançando
to de uma companhia de repertório como não possam vencê-los. Nesse sentido, vale
essa: o sentido de contemporaneidade. destacar o desempenho dos bailarinos
Esse sentido dialoga com as obras clás- Reginaldo Oliveira, Renê Salazar, Bruno
sicas, mas concede aos bailarinos, ao mes- Rocha e Vítor Luiz, provando que o elen-
mo tempo, a oportunidade de experimentar co masculino vem se desenvolvendo
um desafio absolutamente coreográfico, fa- qualitativamente. Cristiane Quintan,
zendo da execução técnica o sentido estéti- Norma Pinna e Bettina do Dalcanale mos-
co de todo o espetáculo. Scholz, em A cria- tram como diferentes gerações de baila-
ção, mostra que sua habilidade de conhece- rinas podem dividir o palco numa mesmo
dor de dança manifesta-se no movimento, obra, construindo uma unidade artística.
em sentido coreográfico puro. Para a nossa Mas é a presença da primeira-bailari-
companhia, essa é a deixa para que o esme- na Cecília Kerche que arrebata o público
ro na atualização desse pensamento seja o pela perfeição de sua dança. Absolutamen-
objetivo maior, para que a obra possa emer- te inserida no ambiente que vem sendo

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
construído, sua aparição no segundo ato Scholz e aprendeu com ele a coreografia.
aponta para a ideia divina da criação a que Talvez seja esse o melhor caminho a ser
a obra se refere. Ali, tudo faz sentido, e os percorrido por ele em sua gestão à frente
três corpos estáveis do Theatro Municipal, de nossa primeira e única companhia de
balé, coro e orquestra, atingem sua coesão balé de repertório do Brasil: deixar que a
máxima. A sensação no público é, no míni- história de dança inscrita em seu corpo seja
mo, de orgulho, nesse momento. um mapa que guie seus bailarinos no sen-
A criação faz parte da história de vida tido de uma contemporaneidade. E o ver-
do atual diretor artístico da companhia, dadeiro sentido de contemporaneidade
Fauzi Mansur.Quando ainda bailarino,no dialoga, inevitavelmente, como sabemos,
B allet da Ópera de Zurich, Suíça, pôde ex- com o sentido de tradição, a marca do
perimentar trabalhar diretamente com Ballet do Theatro Municipal.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2005

Ideia de mundo
norteia o espetáculo
A criação: com coreografia de Uwe Scholz,
Ballet do Theatro Municipal faz montagem competente

S ILVIA S OTER

O nome do coreógrafo Uwe Scholz –


cuja obra foi interrompida no ano pas-
sado por sua morte prematura aos 45 anos –
Uma peça como esta é um presente para
uma companhia do porte da carioca. Além
da presença do Ballet, a montagem conta
remete imediatamente à tentativa de en- com a participação da Orquestra e do Coro
contrar a correspondência perfeita entre o do Theatro Municipal. A criação é um da-
desenvolvimento musical e a escrita core- queles raros balés em que há grande equilí-
ográfica. No caso de A criação, um orató- brio entre música e coreografia, e também
rio de Haydn a partir dos livros Gênesis e entre variações para grandes conjuntos e di-
Paraíso perdido, Scholz trouxe para a cena ferentes solistas.
33 quadros que representam os sete dias de Scholz consegue escapar dos possíveis
criação do universo. A peça, cuja remonta- aspectos narrativos do tema. A simplicida-
gem é assinada por Tatjana Thierbach para de dos figurinos e as coloridas aquarelas do
o Theatro Municipal, segue em cartaz até italiano Francesco Clementes ambientam a
dia 11 de outubro. É a primeira vez que essa coreografia com elegância, criando um es-
obra de Scholz é montada fora da Europa. paço atemporal que coloca em valor músi-
Na leitura do coreógrafo alemão, a ideia ca e dança. É na articulação engenhosa en-
de mundo se mistura com a ideia de espetá- tre as duas que Scholz se apoia. Uma primei-
culo. Quando a cortina se abre, veem-se os ra correspondência é construída pela rela-
bailarinos se aquecendo ao fundo do palco, ção direta entre as vozes do coro e a pre-
na barra, com roupas de ensaio. Antes do sença do corpo de baile e pela aparição dos
toque divino, algo já existe. Diante dos olhos solistas quando os cantores se destacam em
do público, a cena é finalizada para que dan- duetos. Inúmeras outras correspondências
ça e música possam, então, desenvolver-se. acontecem ao longo das duas horas de mú-
Pela dança o mundo será criado. sica e dança, pelo uso criativo dos cânones,
A escolha de A criação para a tempora- dos silêncios e pela generosidade com que
da 2005 do Ballet já é um grande acerto. Scholz se dobra à exuberância de Haydn.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Tanto os solistas como o corpo de bai- Norma Pinna, Cristiane Quintan, Claudia
le garantem uma performance à altura da Motta, Reginaldo Oliveira, René Salazar
coreografia de Scholz. Em forma e muito e Vítor Luiz confirmam, mais uma vez,
bem ensaiada, a companhia se mostra à seus lugares especiais na companhia. To-
vontade em cena, respondendo com agili- talmente integrada no conjunto, Cecília
dade e segurança às exigências técnicas Kerche se destaca trazendo sua luz de es-
e artísticas de A criação.Alguns bailari- trela a cada aparição. A familiaridade com
nos que muitas vezes não encontram lu- que a companhia sempre circulou pelas
gar adequado em peças de repertório fo- peças de repertório aparece em A criação.
ram muito bem aproveitados nessa mon- A competência dessa montagem abre no-
tagem. É o caso dos competentes Bettina vas possibilidades à única companhia clás-
do Dalcanale e Bruno Rocha. Outros como sica do Brasil.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2005

Noite sem sutilezas


Márcia Haydée erra a mão e o tom
em espetáculo no Theatro Municipal

R OBERTO PEREIRA

A principal dificuldade em se criar um


balé nos dias de hoje refere-se jus-
tamente àquilo que é uma de suas maio-
Parece ter sido exatamente isso o que
ocorreu com a companhia chilena: o exces-
so de dramaticidade para contar mais uma
res características, ou seja, a tarefa de se vez a conhecida história da espanhola se-
contar uma história, lançando mão, em dutora buscou fáceis soluções em ritmos cê-
sentido coreográfico, da combinação de nicos oscilantes. E, ainda mais grave, não en-
apenas dois elementos: a pantomima e o controu eco na preparação técnica de seus
passo de dança. Essa parece ter sido a di- bailarinos.
ficuldade enfrentada por Márcia Haydée, Mesmo com um elenco bastante desi-
ao escolher coreografar um balé para a gual tecnicamente, o que mais chamou a
companhia da qual é hoje diretora artísti- atenção no Ballet de Santiago foi a fragi-
ca, o Ballet de Santiago, do Chile, que se lidade na atuação de seus solistas. Na ré-
apresentou no Theatro Municipal na ter- cita de quarta-feira, por exemplo, a ótima
ça e na quarta-feira últimas. primeira bailarina Natalia Berríos apos-
No caso de Haydée, entretanto, a esco- tava numa interpretação óbvia da perso-
lha do tema, a tão decantada história de nagem Carmen, em que o exagero torna-
Carmen, a mulher romântica de Merimée, va da falta de sutileza dramática seu prin-
imortalizada na ópera homônima de Bizet, cipal problema. Por outro lado, incorren-
faz da dificuldade de se contar uma história do no perigo inverso, a atuação ainda ima-
a armadilha a qual a coreógrafa facilmente tura de Rodrigo Guzmán nem de longe
sucumbe. Em Carmen, fica evidente que o captou a intensidade solicitada pela per-
atrito entre pantomima e passo de dança não sonagem de Don José.
resulta necessariamente em balé, e o senti- Além disso, o que era explícito demais
do de narratividade, que tão bem se identi- coreograficamente ficava ainda mais estri-
ficou com a estética do século XIX, aos nos- dente com o figurino, que infelizmente não
sos olhos hoje pode parecer clichê. dialogava com a apenas sugestiva e efici-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
ente cenografia, ambos assinados curiosa- dança com deficiências em suas condições
mente pelo mesmo Pablo Nuñez. técnicas e a do Ballet de Santiago em se
Na noite de quarta-feira, após terem apresentar com um balé como esse, o que
transcorridos alguns 15 minutos do início nesta noite certamente chamou mais aten-
do balé, Márcia Haydée adentrou tempes- ção do público, principalmente por sua dra-
tivamente o palco e interrompeu o espetá- maticidade, foi a forma como a diretora
culo, reclamando da qualidade técnica da Haydée se dirigiu à casa onde ela, justa-
iluminação ali disponibilizada, diante de mente, iniciou sua carreira na dança, ain-
um Theatro Municipal lotado. Afora a cons- da como bailarina. A partir desse momen-
tatação da falta de preparação de ambos, a to, a deixa de como a noite iria continuar
do teatro em receber uma companhia de estava dada, inexoravelmente.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JJANEIRO
ANEIRO • SEXTA-FEIRA • 28 DE OUTUBRO • 2005

Garimpagem do corpo
Em sua quarta edição, projeto baiano
em torno da coreografia abre novos caminhos para a dança
brasileira, mas começa a exigir revisão no formato

R OBERTO PEREIRA

U m novo formato de festival de dança


contemporânea se consolida em Sal-
vador, BA, e ganha projeção nacional por
espaço do principal teatro da capital baiana,
o Teatro Castro Alves, de 1.200 lugares. Dan-
ça contemporânea nem sempre rima bem
sua importância e pelo seu ineditismo. Tra- com amplos palcos e esse detalhe torna o pro-
ta-se do Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, jeto do Ateliê, de cara, algo incomum.
idealizado e produzido por Eliana Pedro- Cinco projetos são selecionados (embo-
so, uma ex-bailarina do Ballet do Teatro ra, neste ano, tenham sido selecionados ape-
Castro Alves e que há muito vem se inda- nas quatro) e, durante dois meses, os coreó-
gando sobre como a dança contemporânea grafos permanecem em Salvador para trans-
poderia conquistar um espaço e um públi- formar sua ideia em espetáculo. E a pala-
co mais amplos do que aqueles confina vra “espetáculo” aqui deve ser lida exacer-
dos em festivais quase sempre voltados bando ao máximo seu sentido mesmo de es-
para si mesmos. petacularidade.
Em sua quarta edição, realizada entre os Uma audição de bailarinos para cada co-
dias 14 e 19 deste mês, o Ateliê provou que reógrafo (que pode escolher até dez elemen-
pertence ao calendário oficial da dança bra- tos para sua obra), cenógrafo, compositor para
sileira, ao mesmo tempo em que já demons- a trilha musical, figurinista e uma produção
tra necessidades de transformações urgen- arrojadíssima ficam à disposição para que tudo
tes em seu projeto inicial, que permaneceu seja desenvolvido da maneira mais competen-
praticamente imutável nos quatro anos de te e profissional possível. Uma rara oportuni-
sua existência. dade para qualquer coreógrafo brasileiro, que
A ideia é instigante: coreógrafos, ou sabe muito bem o quanto custa produzir um
aprendizes de coreógrafos, enviam suas ideias espetáculo, salvo dois ou três que contam com
para uma obra coreográfica na forma de patrocínios de petrobrases da vida.
projetos a serem selecionados por uma Tudo parece perfeito, mas se complica
comissão formada por quatro especialistas, quando a palavra de ordem é a tal “espeta-
de todos os cantos do País, chefiados por cularidade”. A maturidade do coreógrafo
Pedroso. Tarefa nada simples, já que se tra- deve ser tamanha a ponto de não sucumbir
ta aí de selecionar ideias que irão tomar o à enorme possibilidade de aparatos cênicos

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
oferecidos. E maturidade nem sempre se Contando com a narração de Tom Zé do
mede em projetos. Manifesto antropofágico, de Oswald de An-
Permanecer dois meses em uma outra drade, a obra se volta, quase que metalin-
cidade, ganhando R$ 5 mil pelo trabalho, guisticamente, à própria estrutura do Ate-
pode parecer sedutor. Mas para nomes con- liê. Quem “come” quem nesse jogo de infor-
sagrados da dança contemporânea brasilei- mações? O coreógrafo digere o que os bai-
ra pode parecer também complicado, por ter larinos apresentam como material possível
de se distanciar de seus projetos pessoais de composição ou vice-versa?
para se dedicar a um outro produto. O que Mesmo no caso de Evelin, com uma es-
daí advém é a maciça participação de jo- tética europeizante absolutamente presen-
vens coreógrafos, que, uma vez seleciona- te, e, em seu caso, impossível de ser desven-
dos, deslumbram-se facilmente com as opor- cilhada por ele, a antropofagia foi engolida
tunidades oferecidas. Não é o caso, por pelo tempo. E o Ateliê nos deu, corajosamen-
exemplo, de Carlos Laerte, do Rio de Janei- te, mais essa lição: digerir, em dança, antro-
ro, que no ano passado apresentou um belo pofagicamente, tem uma duração própria.
e coerente resultado de seu trabalho. Mas Talvez esse seja o caso de uma outra obra,
salvo exceções de nomes experientes como pertencente a um projeto que ocorre em pa-
Luiz de Abreu (SP), Andrea Maciel (RJ), ralelo ao Ateliê, chamado Solos maior de 40,
Jussara Miranda (RS), Márcia Duarte (DF) que reúne curtas coreografias com bailarinos
e Maria Paula (PE), quase todos os outros importantes com mais de 40 anos. Essa peque-
projetos foram de expoentes que nem sem- na obra mencionada foi assinada por Luiz de
pre sabiam o lugar que ali ocupavam. Abreu para a bailarina, baiana e negra, Fafá
Um outro desafio importante com o qual Carvalho. Os adjetivos aqui são necessários
o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros já se de- por serem eles o tema sobre o que se quer fa-
para é o tempo exíguo de dois meses para lar ali: o que um corpo como aquele pode?
produzir uma ideia de dança, num outro am- A coerência e a coesão explicitadas no
biente, com outros corpos e com outros estí- que a dupla Luiz/Fafá apresentam, num
mulos.A dança, sabemos todos, precisa de tem- teatro pequeno, sem nenhum recurso cê-
po para que sua informação ganhe, literalmen- nico especial, colocam uma pergunta ao
te, corpo. Se não é o caso aqui, como assistir a Ateliê de Coreógrafos Brasileiros e à pró-
esses resultados? Esse dado é compartilhado pria dança contemporânea brasileira: qual
com um público de cerca de 8,5 mil especta- é a competência espetacular de uma ideia
dores que lotam o teatro a cada edição? que vem ao mundo em forma de dança
Talvez seja justamente esse o ponto do contemporânea?
qual trata Self service, obra que faz parte des- Pela pergunta certeira, que deve perma-
ta edição 2005, do piauiense Marcelo Evelin, necer ainda por muito tempo sem resposta,
que reside há mais de 15 anos na Bélgica. Sem a dança brasileira só tem a agradecer ao
dúvida, tem-se aqui o produto mais bem-aca- projeto corajoso e inédito de Eliana Pedro-
bado do Ateliê neste ano, numa edição forma- so. Um projeto que, ao se deixar perguntar
da por estreantes (Jorge Alencar e Clara Trigo, sobre suas competências, se lança ao exer-
ambos da Bahia, e Edvan Monteiro, do Ceará). cício inevitável da antropofagia.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 29 DE OUTUBRO • 2005

Fragilidades
Recurso de fazer graça não funciona em O+ , do Quasar

R OBERTO PEREIRA

D ireto ao ponto: a habilidade do coreó- vem instituindo como sendo a sua “dança
grafo Henrique Rodovalho em “fazer contemporânea”.
graça” como recurso para tratar de um Se o modo de tratar esse universo é tra-
tema específico mostra seu esgotamento mando o “fazer graça” com metalinguagem,
em O+, obra de 2004, para a companhia o que se organiza cenicamente carrega pro-
que dirige, a Quasar Cia. de Dança, que blemas sérios quando justamente a (ótima)
finalmente estreou no Rio de Janeiro,no companhia se lança ao que melhor sabe fa-
Teatro João Caetano, anteontem. A ex- zer: dançar. O que comparece como dança,
pressão parece ser mesmo essa, a de “fa- além de ser o que Rodovalho sabe muito
zer graça”,como se quisesse instaurar um bem fazer, revela, quase a contragosto seu,
fácil canal de comunicação com o público, que investigar (mesmo que comicamente)
em fórmulas já testadas em tantos traba- sobre as questões de uma suposta “dança
lhos anteriores seus. contemporânea” deveria ser algo intrínse-
No caso de O+, esse recurso se esgarça co à coreografia. Como não é, ele lança mão
até mostrar suas fragilidades, embora não de recursos que imprimem um ritmo desi-
pareça ser essa a intenção do coreógrafo. gual ao espetáculo, deixando que cenas ape-
A tarefa à qual ele se impôs dessa vez é nas intercaladas não se resolvam, não se
quase banal: tratar da dança contemporâ- tornem nada além de alternâncias de comi-
nea, num viés metalinguístico primário, cidade e de sequências coreográficas.
deslocado de seu tempo,recheado de anti- Os clichês que são explicitados, as ci-
gas questões.A inda mais porque não se tações claras a outros coreógrafos, tanto
sabe bem à qual dança contemporânea se estrangeiros como até cariocas, tudo isso
refere.A generalização, nesses casos,tor- vem de forma pueril à cena. E acaba por
na quase vulgar o lugar da reflexão,tentan- não contaminar o próprio movimento, há-
do mostrar o patético onde na verdade é bitat quase natural de Rodovalho. Essa
puro espelho do que o próprio coreógrafo apropriação do movimento, a habilidade

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
em tecê-lo, encontra-se de forma exemplar encarnação metalinguística do coreógra-
em seu último trabalho, Só tinha de ser com fo, que tenta proteger também seu legado
você, apresentado na cidade no primeiro se- de fazer rir como recurso para tratar de seus
mestre.Tudo se configura ali como algo que tantos temas. No fundo, esse super-herói-co-
(até) pode ser lido como metalinguagem. E reógrafo sabe que é no movimento que re-
o “fazer graça”, felizmente, deu espaço à side sua sabedoria. E que talvez quanto
simplicidade e à elegância. mais desprotegido, e menos engraçado,
Em O+, existe a figura de um super- mais esse movimento se torne definitiva-
herói, um “protetor da dança contemporâ- mente tema de sua dança. Uma dança, de
nea”.Talvez a personagem seja a própria qualquer modo, contemporânea.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
CRÍTICA NÃO PUBLICADA
R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 2 D E N O V E M B R O • 2005

Espetáculo Orfeu
de Regina Miranda

R OBERTO PEREIRA

A competência da encenação da co-


reógrafa carioca Regina Miranda
pode ser mais uma vez comprovada em
artísticas. Essa é sua marca. E a tradução do
mito parece ter encontrado seu ambiente.
Entretanto, se esse ambiente é quase
Orfeu, espetáculo comemorativo dos 25 mágico, construído com maestria pela co-
anos de sua Companhia Regina Miranda reógrafa, o corpo que o habita encontra-se
Atores Bailarinos e que esteve em tempo- ainda pulverizado demais pelo seu entorno,
rada nas duas últimas semanas no Parque sem chances de mostrar o que carrega como
Lage.Tal competência, que compõe sua construção possível da ideia em movimento
assinatura coreográfica, faz com que a dan- e gesto. Não à toa, quando a companhia traz
ça seja um ponto de partida para dialogar em seu nome a senha “atores bailarinos”, es-
hibridamente com outros elementos, como pera-se aí um zigue-zague entre teatro e dan-
a arquitetura, o teatro,aliteratura e neste ça que, por vezes, em Orfeu, não se efetiva.
caso, também com a psicanálise. Em alguns momentos pode-se ver, sim, ato-
Em Orfeu, esse hibridismo aparece como res-bailarinos e, em outros, bailarinos-atores.
rica possibilidade de construção cênica que Mas, com maior frequência, vê-se atores e
o mito sugere. O país dos mortos,lugar do bailarinos isolados em seu ofício. O trânsito
subterrâneo para onde se dirige o herói em entre linguagens em cada um deles é bastan-
busca de sua esposa, é metaforizado na pis- te desigual, o que dificulta a construção cêni-
cina do Parque Lage,onde toda ação se pas- ca no corpo que dança. O descompasso entre
sa, o que faz com que a cena seja vista pelo a cena e o corpo fica evidente.
público de cima, para dentro.Esse movimen- Isso acontece, talvez, pela escolha de se
to do olhar proposto por Regina recupera trabalhar com bailarinos de maturidades
sinestesicamente o movimento do mito e diversas. Alguns deles, que já convivem há
tudo parece ter um sentido de dança, mas anos com a assinatura da coreógrafa, como
uma dança dissolvida num acontecimento a excelente Marina Salomon, parecem es-
maior, de simultaneidades de linguagens tar à vontade para administrar dramaturgi-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
camente o espaço que lhe é oferecido ceni- efetivamente, sua verdadeira invenção. E
camente. Mas, quando esse desafio é enca- para ele, poucos de seus atores-bailarinos
rado por integrantes mais novatos, a com- estão realmente aptos.
petência do gesto transforma-se em mera Comemorar tantos anos de existência de
execução de movimento. uma companhia de dança hoje no Brasil é,
Quando isso acontece, o que é coreogra- sem dúvida, um feito. No caso desta compa-
ficamente construído desvela a elementa- nhia, talvez valha a pena agora investir
ridade escolar das sequências de movimen- numa cena que leve em conta as inevitáveis
tos, experimentadas à exaustão por Regina diferenças de gerações de bailarinos. Com
em todos os seus trabalhos, pouco transfor- certeza, esse dado pode ser também maté-
madas ao longo desses 25 anos de sua com- ria-prima para a construção do gesto híbri-
panhia. Desse modo, é no gesto que está, do que Regina Miranda tanto investiga.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 22 DE NOVEMBRO • 2005

Eloquência sem limites


Excesso de elementos cênicos ofusca o corpo da artista

R OBERTO PEREIRA

S e uma palavra pudesse traduzir o novo


espetáculo da bailarina e coreógrafa
Ana Vitória, O exercício de Dom Quixote,
ram em assinatura da coreógrafa-bailarina,
ou da criadora-intérprete, aparecem nova-
mente em solo, terreno fértil para ela, que
que estreou nesta última quinta-feira no conhece muito bem os meandros de um cor-
Espaço SESC, em Copacabana, essa palavra po sozinho em cena, dançando. Aqui, ambos
seria eloquência. E parece ser no limite aparecem de forma madura, revelando uma
dessa eloquência com seu excesso que tran- propriedade que parece abolir o hífen que
sita, de forma desigual, o que ali se compõe separa a criadora da intérprete.
cenicamente. Mas ajustar qualquer outro elemento
A empreitada não é a das mais simples: cênico a esse corpo não é tarefa das mais
a busca de traduções em dança do clássico fáceis e a armadilha de sublinhá-lo (sem
de Miguel de Cervantes,que neste ano co- necessidade, pela riqueza que lhe é ineren-
memora seus 400 anos,transformou-se em te) é quase inevitável nesse espetáculo. O
matéria-prima para a coreógrafa, que, feliz- figurino assinado por Cláudia Diniz, a ilu-
mente, descartou a literalidade no gesto minação de Renato Machado e, sobretudo,
parainvestigar a literatura no corpo.O que a trilha sonora de Márcio Tinoco transfor-
resulta disso é um estado quixotesco, como mam eloquência numa espécie de verbor-
se o personagem viesse revestido de inten- ragia. E o excesso dessa sobreposição de
ção no corpo que dança, como um Dom informações embaça o corpo, já tão sofisti-
Quixote contemporâneo,de qualquer um, de cado em sua pureza coreográfica.
todos.Essa intenção de Ana V itória pode ser Já o belo cenário, de Sérgio Marimba,
vista com precisão.Mas é quando esse se dar oferece à coreógrafa planos que metafori-
a ver passa a ser quase explícito é que a su- zam a trajetória da personagem em ques-
tileza da tradução, por vezes, se perde. tão, em pleno exercício de seu ofício, como
O vocabulário próprio de movimento e sugere o título do espetáculo. Trata-se de
o vigor de sua execução, que se transforma- uma trajetória mimetizada na cena, numa

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
simbiose de corpo e espaço, de dança e ce- o que o seu corpo está habilitado a falar em
nografia. A riqueza já está ali. E a tradu- movimento. Pela sua competência nesse
ção, também. falar, há que se buscar agora o registro
Pela felicidade do retorno de Ana Vitó- exato do que o circunda, que pode estar,
ria às suas investidas coreográficas em também, no silêncio, ou na pausa. No gesto
solo, O exercício de Dom Quixote é bem- exato da coreógrafa, não há espaço para
vindo. É nesse lugar que a dança promove excessos.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 24 DE NOVEMBRO • 2005

Força da dança
apenas se insinua
O exercício de Dom Quixote: Montagem bem cuidada
não gera outro olhar sobre o herói de Cervantes

S ILVIA S OTER

A na Vitória é símbolo do que se chama,


na dança contemporânea, de criador
intérprete. Desde cedo, sua carreira estru-
ladores de ferro insinuam os moinhos. O ce-
nário de Sergio Marimba participa da tri-
lha sonora, já que o trabalho da plataforma
turou-se na prática de solos. Construídos por produz ruído de ferragens ao longo de todo
ela e para ela. Valises, Corpo provisório ou o espetáculo, interagindo com a música. A
Sobre o começo e o fim revelam sua habili- iluminação joga com as sombras, projetan-
dade em entender os caminhos de seu cor- do no chão os moinhos em movimento, por
po e, a partir de seus limites e de suas possi- exemplo. O figurino e o visagismo reforçam
bilidades, fazer dança. Sua assinatura como a ideia de personagem. O primeiro referin-
coreógrafa e inevitavelmente, nesse caso, do-se ao metal da armadura e o segundo
como intérprete, caracteriza-se pelo rigor e marcando traços do rosto, como a barba, fa-
pela precisão dos gestos que, trabalhados em zendo do Quixote de Ana Vitória uma figu-
diferentes intensidades e dimensões, ga- ra andrógina e contemporânea. Os signos
nham abstração e viram movimentos de visuais e sonoros criam o ambiente onde a
dança. Depois de experimentar suas marcas coreógrafa faz o exercício de mergulhar no
em outros corpos em algumas de suas peças personagem, o cavaleiro sonhador e solitá-
mais recentes criadas para grupos, Ana Vi- rio. Impossível não pensar na analogia en-
tória retoma o solo em O exercício de Dom tre a solidão de Quixote e a da própria ar-
Quixote como síntese maior de suas ques- tista em cena.
tões na dança. É do personagem Quixote e da história
Instalada no centro da arena do Espaço de Cervantes que a coreógrafa vai extrair
SESC, uma plataforma inclinada de madei- os gestos e as ações que se transformam no
ra e metal define um palco dentro do palco. vocabulário de movimentos dessa peça.
A estrutura elevada aproxima a dança do Transformadas pela habilidade da coreó-
público e cria um outro plano para as ações grafa, ações como cavalgar, lutar ou deba-
e os devaneios de Quixote. Ao fundo, venti- ter-se diante da loucura desfilam pelo cor-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
po da artista como referências explícitas tuem o herói que este ano completa 400
e até ilustrativas do personagem de Cer- anos. Esse é o risco que se corre ao se tra-
vantes. Mas é nessa fronteira entre ilustra- tar de um personagem desse peso. Talvez
ção e abstração que o exercício de Ana por excesso de reverência, em O exercí-
Vitória esbarra. Presa demais a seu ponto cio de Dom Quixote é apenas o persona-
de partida, a peça tem dificuldade em gem que imprime sua marca na intérpre-
avançar além da correspondência imedi- te-criadora, já que o exercício de Ana
ata entre dança e personagem. Na pele de Vitória, apesar de chegar a uma monta-
Quixote, a força habitual da dança de Ana gem coerente, elegante e bem cuidada,
Vitória apenas se insinua, ficando atada não chega a gerar um outro olhar sobre o
demais às citações dos traços que consti- herói de Cervantes.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA
QUARTA-FEIRA•• 28 DE DEZEMBRO • 2005

Belos saltos entre


escorregadas feias
Cancelamento de projetos e apoios não impediu
criação de coreografias enxutas em 2005

R OBERTO PEREIRA

E m 2005, a cidade do Rio de Janeiro foi


palco de grandes momentos da dança
não apenas brasileira, mas também interna-
tão míope que se diz ocupar da dança por
essas terras, sua 14ª edição veio comprovar
que é um dos poucos lugares em que a infor-
cional, ao mesmo tempo em que testemu- mação de qualidade circula, tendo já colo-
nhou duas significativas perdas na área. Co- cado o Rio de Janeiro na rota dos grandes
meçando por elas, vale registrar, de imedi- festivais do mundo.
ato, o cancelamento por parte do Centro Com direção artística de Lia Rodrigues,
Cultural do Banco do Brasil, do festival sua criadora, e curadoria acertada de Nay-
Dança Brasil, após oito bem-sucedidas edi- se López e Eduardo Bonito, o Panorama
ções, comandadas por Leonel Brum. Em seu agrupou espetáculos, performances e pales-
lugar, em formato semelhante, mas sem uma tras. Dois valem a pena ser citados: Isabel
linha curatorial definida, foi oferecido 4 Mo- Torres, solo que leva o nome de uma baila-
vimentos,cujo espetáculo que merece men- rina do Theatro Municipal, idealizado pelo
ção é Só tinha de ser com você, assinado por francês Jérôme Bel, e H2 2005, do jovem
Henrique Rodovalho, da Quasar Cia. de Bruno Beltrão.
D ança, de Goiás.Aliás,trata-se aqui de um Aliás, ambos puderam ser assistidos no
dos melhores espetáculos do ano,com trilha próprio Theatro Municipal, o que representa
musical calcada no histórico disco de To m um ganho inestimável para o festival, assi-
Jobim e Elis Regina, de 1974. nalando o já conhecido cuidado de sua dire-
Outra grande perda, ecoando historica- tora, Helena Severo, com a dança dessa ci-
mente como um retrocesso na política cul- dade, desde seus tempos de secretária da
tural da cidade, foi a inexplicável saída da cultura. Não à toa, visionariamente, ela tam-
Secretaria das Culturas como uma das prin- bém abriu as portas desse mesmo teatro para
cipais realizadoras do principal e mais an- a dança contemporânea carioca, reunindo em
tigo festival de dança carioca, o Panorama 8 domingos os principais nomes da área, em
Rio Dança. Mesmo sem o apoio desta ges- espetáculos com ingressos a R$ 1.

91
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Entretanto, o seu Ballet do Theatro Mu- mento da dança, comemorando os 30 anos da
nicipal apresentou poucas novidades, num principal companhia de dança contemporâ-
ano bastante incipiente para essa que é a nea brasileira, o Grupo Corpo. Entre outras
mais antiga companhia de dança brasilei- estreias relevantes, está Nó, de Deborah Co-
ra. Superado o péssimo efeito deixado por lker, e Orfeu, que também comemorou 25
Noite transfigurada, a qualidade que baliza anos da Companhia Regina Miranda e Ato-
as produções da casa pôde ser novamente res Bailarinos, além de outros eventos impor-
vista em A criação,do alemão Uwe Scholz, tantes como Dança em trânsito, a Conferên-
num dos momentos mais sublimes da histó- cia Internacional da Dança, realizada pelo
ria dessa companhia. Itaú Cultural e pelo British Council, as ações
Um outro elemento que veio se agregar do Cahier de la danse, do Consulado Francês,
ao Panorama, como uma de suas múltiplas e o mais novo, inédito e bem-vindo festival, o
frentes,foi o Espaço SESC,que,na verdade, Dança criança, fruto da profícua parceria
funcionou durante todo o ano como uma es- entre os pequisadores Leonel Brum e Silvia
pécie de “centro coreográfico” da cidade. Soter, com a Caixa Econômica Federal.
R eunindo importantes estreias, encontros Das atrações internacionais, o parco car-
teóricos e funcionando como espaço de ensaio dápio oferecido aos cariocas não impede de
para companhias cariocas,o Espaço SESC foi citar o momento histórico que foi a apresen-
o endereço oficial da dança em 2005. tação da Martha Graham Dance Company,
Dirigido por Beatriz Radunsky,apresen- ao mesmo tempo em que se prefere esque-
tou o já tradicional primeiro evento do ano, cer a lamentável atitude de Márcia Haydée
o Solos de Dança no SESC, cujo trabalho do ao interromper o seu também lamentável
coreógrafo João Saldanha para a excelente espetáculo Carmen, do Ballet de Santiago,
bailarina Mônica Burity,Eles assistem e eu para reclamar publicamente das condições
danço,merece destaque. Saldanha também do nosso principal teatro.
foiresponsável por outro espetáculo,Soma, Entre perdas e ganhos, a dança carioca
estreado no mesmo espaço,que,com certe- mostrou seu fôlego em 2005. Não perdeu
za, figura na lista dos melhores do ano. seu posto de centro agregador de informa-
Mas o Espaço SESC ainda abrigou outras ção na área no País. E mostrou que, mesmo
estreias importantes,como Por minha par- sem a devida política em sua esfera muni-
te,de Esther W eitzman, Memória do corpo cipal, ainda é possível fazer um ano de dan-
nº 2 – Suíte jazz,de Renato V ieirae O exer- ça com qualidade.
cício Dom Quixote,de Ana V itória. Abrigou
ainda, pioneiramente,o 1O Encontro Inter- MELHORES ESPETÁCULOS

nacional de Dança e Filosofia, que reuniu H2 2005 – de Bruno Beltrão (Grupo de Rua de
Niterói)
nomes como Michel Bernard, José Gil e Onqotô – de Rodrigo Pederneiras (Grupo Cor-
André Lepecki, além do Projeto dança em po)
Soma – de João Saldanha
foco, voltado para a produção de videodan- A criação – de Uwe Scholz (Ballet do Theatro
ça nacional e internacional. Municipal do Rio de Janeiro)
Só tinha de ser com você – de Henrique Rodo-
Onqotô, a mais recente obra de Rodrigo valho (Quasar Cia. de Dança)
Pederneiras, representou outro grande mo-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2006 CRÍTICAS

JORNAL DO BRASIL - 16 DE JANEIRO DE 2006


Tradição em corpo brasileiro
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 12 DE MARÇO DE 2006


Versão 2006 traz novidades importantes
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 12 DE MARÇO DE 2006


Conexões em trânsito
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 19 DE MARÇO DE 2006


Quando intérpretes roubam a cena
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 19 DE MARÇO DE 2006


Presença de espírito do corpo
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 8 DE ABRIL DE 2006


O vice-versa de Márcia Rubin
ROBERTO PEREIRA

CRÍTICA NÃO PUBLICADA 27 DE ABRIL DE 2006


Espetáculo Maratona Quintana de Regina Miranda
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 4 DE JUNHO DE 2006


Balé confirma talento dos bailarinos profissionais
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 6 DE JUNHO DE 2006


Descompasso entre desejo e realização
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 7 DE JULHO DE 2006


Frágil identidade
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 15 DE JULHO DE 2006


Bertazzo se esqueceu de suas próprias lições
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 18 DE JULHO DE 2006


A caminho da felicidade
ROBERTO PEREIRA

93
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL - 20 DE JULHO DE 2006
Entre o fio da ciência e da arte
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 22 DE JULHO DE 2006


Maracanã sem a paixão e a surpresa do festival
SILVIA SOTER

O GLOBO - 23 DE JULHO DE 2006


Quando a dança corre atrás do brilho da música
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 5 DE AGOSTO DE 2006


Projeto corajoso traz preciosos momentos em meio a excessos
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 11 DE AGOSTO DE 2006


Territórios abertos para a expressão masculina
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 28 DE AGOSTO DE 2006


A força da presença do coreógrafo Bill T. Jones
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 6 DE SETEMBRO DE 2006


A viagem existencialista e solitária de um coreógrafo
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 12 DE SETEMBRO DE 2006


Pas-de-deux de história e renovação
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 26 DE SETEMBRO DE 2006


Dança brasileira em ritmo de inovação
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 4 DE NOVEMBRO DE 2006


Tradução elegante das curvas arquitetônicas modernistas
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 5 DE NOVEMBRO DE 2006


As curvas de Niemeyer em corpos que dançam
SILVIA SOTER

O GLOBO - 16 DE NOVEMBRO DE 2006


Carisma e talento da solista salvam a noite
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 21 DE NOVEMBRO DE 2006


Para acertar o passo da dança
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 25 DE NOVEMBRO DE 2006


No sentido da renovação constante
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 27 DE DEZEMBRO DE 2006


Ensaios de uma política para a dança no País
ROBERTO PEREIRA

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 16 DE JANEIRO • 200
20066

Tradição em
corpo brasileiro

R OBERTO PEREIRA

E m 1927, a russa Maria Olenewa, baila-


rina egressa das companhias de Anna
Pavlova e Leonide Massine, conseguiu im-
cepção de dança, ou melhor, de balé, cons-
truía-se, também, uma história, um sentido
de tradição.
plementar a primeira escola oficial de dan- Hoje, além de primeira companhia, tra-
ça do País, em sua então capital federal, o ta-se da única oficial a dedicar-se a remon-
Rio de Janeiro. O propósito era, de início, tagens de obras do repertório clássico, de-
que bailarinos fossem preparados para in- safio nada fácil para nós, brasileiros. Além
tegrar as óperas que vinham da Europa, desses balés virem carregados de uma no-
uma medida de economia, ao se trazer me- ção de nobreza europeia que pouco falava
nos artistas para o Brasil. Dez anos mais de nossa realidade, na época em que essa
tarde, em 1936, inevitavelmente, a mesma companhia foi criada assistia-se também à
Olenewa conseguia oficializar esse grupo, criação do samba e suas implicações físi-
batizando-o de Corpo de Baile, hoje, 70 anos cas no corpo que dançava. Desde o início,
depois, Ballet do Theatro Municipal do Rio bailarinos mal pagos no Theatro Municipal
de Janeiro. engordavam um pouco seus cachês em
Ao longo de sua história, essa companhia apresentações em teatros de revista, na
foi delineando para nós uma ideia de tradi- Praça Tiradentes. O diálogo entre o erudi-
ção, algo ainda plenamente desconhecido to e o popular acontecia aqui, então, num
ao se pensar em dança por aqui. Primeiro,a corpo formado pelo balé, mas que deveria
criação de uma escola, que garantia a for- saber sambar. E isso, claro, concedia à nos-
mação de artistas brasileiros,depois,acria- sa tenra tradição em dança ares de uma
ção da companhia, e como consequência, a brasilidade como forma de legitimar essa
formação gradual de um público e, ainda, a arte entre nós.
de uma crítica jornalística que, desde o iní- Além disso, grandes mitos foram cria-
cio,já se queria especializada. Como se vê, dos, como é da especificidade desse tipo
nesse sistema articulado de produção e re- de companhia. Madeleine Rosay, nossa

95
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
primeira bailarina genuinamente brasi- Hoje, 70 anos depois, mesmo sabendo
leira, simbolizava essa mistura, dançando que para sua criação, Olenewa precisou
Tico-tico no fubá nas pontas dos pés.Anos empenhar suas joias e tapetes para que seu
mais tarde, o casal Bertha Rosanova e sonho se tornasse realidade, tudo parece ter
Aldo Lotufo impressionavam plateias ao valido a pena. O empenho continua, com
estrelarem com exímia competência o todas as dificuldades de se remontar gran-
clássico O lago dos cisnes, numa primeira des obras, e os gastos que isso representa.
montagem integral nas três Américas,as- Mas a figura da bailarina clássica, por nós
sinada por Eugenia Feodorova. O reina- popularizada pela diva Ana Botafogo, ain-
do absoluto da mestra Tatiana Leskova da paira num imaginário que aceita, e mui-
imprimia profissionalismo,sobretudo no to bem, que uma bela adormecida desfile
corpo de baile. E assim a tradição ganha- numa escola de samba em plena Marquês
va, naquele templo de erudição, um corpo. de Sapucaí. Esse é o nosso modo de cons-
Um corpo brasileiro. truir nossa tradição. Vamos comemorar?

96
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006

Versão 2006 traz


novidades importantes
Solos de Dança: Este ano, projeto no SESC apresenta
coreógrafos de outros estados e investe no ecletismo de estilos

S ILVIA S OTER

O s Solos de Dança no SESC inaugu-


rar uma temporada carioca da dan-
ça contemporânea 2006 trazendo novida-
da iluminação ganha águas coloridas e mo-
ventes. Apesar da literalidade na forma
como o tema é tratado, tanto espacialmente
des importantes. O resultado das últimas quanto em termos coreográficos, O peixe é
edições já apontava a necessidade de mu- agradável e seduz, sobretudo, pela juventu-
danças para que a proposta de proporcionar de e pela energia de Rafael. Este trabalho
encontros, em geral inéditos, entre intérpre- sugere uma outra qualidade positiva dos
tes e coreógrafos contemporâneos pudesse Solos de dança: a possibilidade de engaja-
produzir algo único, fruto destas parcerias mento dos artistas em propostas que pela
muitas vezes recentes e provisórias. Trazer própria situação não devem e não podem
coreógrafos de outros estados e investir no ser pretensiosas. E Deborah Colker soube
ecletismo de estilos foram pontos essenci- aproveitar bem a oportunidade. Apenas ao
ais para que os Solos seguissem desafiando fim, no momento dos aplausos, Rafael erra
intérpretes, coreógrafos e público. na mão, abandonando a simplicidade com
Nesta primeira semana da mostra, O que conquistou o público e exagerando no
peixe, solo coreografado por Deborah tom e na importância dos agradecimentos.
Colker para o jovem integrante de sua com- Já cai na armadilha do excesso e da pre-
panhia, Rafael Gomes, abre a noite. O Con- tensão. A participação de Steven Harper sob
certo no 5 de Vivaldi acentua a colagem de a direção de Stela Miranda inaugura a pre-
referências que compõe a peça. Na coreo- sença do sapateado nos Solos de Dança. A
grafia de Deborah Colker, os passos do clás- peça começa bem, numa espécie de crítica
sico são mesclados a passos identificados divertida ao próprio universo do sapateado
como dança contemporânea. A circularida- americano, mas rapidamente se desvia e sai
de da arena do teatro é acentuada pelo es- atirando para todos os lados, trazendo entre-
pelho redondo no centro da cena. O peixe vistas de rua sobre o que as pessoas conhe-
de Rafael se desloca neste lago que através cem de sapateado e comentários da própria

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
diretora sobre arte contemporânea e ciên- pretes para que a troca de experiências
cia. A competência de Harper como sapa- possa levar a um caminho único e interes-
teador fica tolhida pela profusão de infor- sante. E como os anos de convívio deixam
mações, pela ausência de costura entre as marcas que também precisam de tempo
ideias e pela falta de desenvolvimento de para esmaecerem.
cada elemento apresentado. Em Tempo líquido, coreografia de Mau-
Para aqueles que vêm acompanhando rício de Oliveira para Maria Alice Poppe, o
a dança contemporânea carioca, os dois úl- que se vê é uma bailarina experiente e de
timos solos da noite trazem questões inte- uma vitalidade rara virar uma página de
ressantes sobre a relação quase simbiótica sua história. Sem abandonar o legado de sua
entre coreógrafos e seus intérpretes de lon- experiência de anos junto à Staccato, com-
ga data. No terceiro solo da noite, Ana panhia de dança que ajudou a fundar com
Amélia Vianna, bailarina ícone da Márcia Paulo Caldas, Maria Alice inaugura nesta
Milhazes Companhia de Dança, põe sua peça uma outra etapa como intérprete. A
maestria a serviço do coreógrafo Rodrigo inteligente coreografia de Mauricio de Oli-
Negri. Por dentro aborda o universo femi- veira, nome pouco conhecido no cenário da
nino e é construída de gestos pequenos e dança carioca, parece tratar também desta
delicados, ao som de Heitor V illa-Lobos. mudança, explorando as possibilidades de
Ana Amélia transita com correção e fami- desarticulação dos movimentos para recom-
liaridade pela proposta do coreógrafo,no biná-los, em seguida. O corpo é investigado
entanto,o que se percebe é a impregnação sem estar submetido a regras impostas pela
das referências do trabalho de sua compa- própria anatomia que parece aqui também
nhia de origem – na gestualidade e tam- ser colocada em questão. A tensão entre
bém na música – sobrepondo-se e abafan- desarticulação e recombinação que se pro-
do algo de novo que poderia surgir deste duz no corpo da bailarina encontra perfeita
encontro.As deficiências de Por dentro correspondência na ótima música de Tato
apenas confirmam como é necessário tem- Taborda, fazendo de Tempo líquido o ponto
po de convívio entre coreógrafos e intér- alto da noite.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006

Conexões em trânsito
Solos de Dança no SESC abre diálogo
entre bailarinos e coreógrafos

R OBERTO PEREIRA

A estreia da sétima edição do Solos de


Dança no SESC, na última quinta-fei-
ra, no Espaço SESC, em Copacabana, deixou
intenta-se uma relação fluida com a impe-
riosa música de Vivaldi, através da imagem
de um peixe, mas o que se constata é uma
claro que o ponto de partida tanto da cura- construção coreográfica quase pueril de
doria, realizada por Beatriz Radunsky, quan- mera sequência de passos. E como já é quase
to das produções das primeiras quatro pe- marca da coreógrafa, a ideia fica aprisio-
ças apresentadas partem dos bailarinos es- nada em uma literalidade que se espalha
colhidos e de suas qualidades, sobretudo téc- no gesto mimético do bailarino, na luz,
nicas. Sendo esse o ponto de partida, o que no cenário, no figurino, por toda obra, en-
fica interessante observar é como os coreó- fim. Até mesmo nos agradecimentos, a gran-
grafos, quase todos trabalhando pela primei- diloquência do que se pretende ocupa o
ra vez com aqueles corpos, estabelecem espaço da metáfora que escorre pelo ralo,
diálogos com as informações ali existentes. sem chance de fazer a ideia traduzir-se
É o trânsito, portanto, entre o repertório (do em dança.
bailarino) e a assinatura (do coreógrafo) Já o segundo trabalho, com o sapateador
que estabelece o jogo proposto, marca des- americano Steven Harper, e com a direção
sa instigante mostra que abre o calendário da atriz Stella Miranda, propõe um check-
de dança da cidade. up da recepção do sapateado no Brasil. Se
Se é, então, no trânsito que está o desa- parte metaliguisticamente do clichê dessa
fio, pois dali emergem novas conexões, e recepção para justamente avaliá-lo, Harper
muitas vezes novos fluxos de pensamentos não percebe que acaba sucumbindo a outros
de dança, vale investigar como esses jogos tantos clichês, sobretudo da dança contem-
se dão nos quatro trabalhos. A noite abre porânea, linguagem com que há tempos ele
com uma peça bastante frágil assinada por almeja dialogar. O que constrange é que a
Deborah Colker, para o bailarino de sua imagem do sapateador é mais valorizada
companhia, Rafael Gomes. Em O peixe, que sua própria dança, como se essa fosse

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
quase um pretexto para o que ele pretende pouco se perceba qual o espaço construído
exibir, sobretudo tecnicamente. E é justa- ali pelo coreógrafo.
mente esse caráter de show que dificulta a Por fim, Tempo líquido, com Maria Ali-
passagem para que a obra exista em sua ce Poppe e Maurício de Oliveira, foi, com
inteireza e não esteja a serviço de uma exi- certeza, o grande momento dessa primei-
bição. Sem se dar conta, a obra reitera o que ra parte dos Solos. A maneira pela qual a
pretenderia denunciar criticamente. bailarina, que também detém um vocabu-
Os dois últimos trabalhos apresentados lário solidamente construído em seu corpo
têm em comum não apenas a excelência de pelos tantos anos de parceria com o coreó-
suas bailarinas, mas também a oportunida- grafo Paulo Caldas, poderia inaugurar no-
de que oferecem de reflexão sobre o trânsi- vas possibilidades de movimento era, sem
to comentado anteriormente. Por dentro traz dúvida, a grande expectativa da noite. O
Ana Amélia V ianna coreografada pelo jo- que se pôde assistir é a conjunção perfeita
vem Rodrigo Negri . A qui, ariqueza de vo- de ideias, tanto da assinatura do coreógra-
cabulário de movimentos que a bailarina fo quanto da dança da bailarina, amalga-
carrega em seu corpo,elaborado através dos mada em um corpo inteligente, que é mui-
anos de trabalho,sobretudo com a coreógra- to mais que suporte, é espaço de fluxo, é
fa Márcia Milhazes,parece ter sido um en- lugar de passagem, limpo, desimpedido.
trave para o diálogo. Negri , bailarino que Tudo se constrói em coesão: a excelente
ainda se encontra em plena formação como trilha, assinada por Tato Taborda, o figuri-
coreógrafo, não possui ainda uma marca no e a iluminação são também dança, como
com força suficiente para poder extrair da a bailarina. E o tempo, tema da obra, encon-
diferença a riqueza de sua criação.O resul- tra sua tradução em espaço preciso (e pre-
tado é a intransponibilidade que se impõe cioso) nesta que é uma das maiores baila-
pela qualidade da bailarina, deixando que rinas que esse país já produziu.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006

Quando intérpretes
roubam a cena
Solos de Dança: Segunda semana de
projeto é mais fraca que a primeira

S ILVIA S OTER

A s peças que compõem a segunda se-


mana dos Solos de Dança no SESC não
formam um conjunto tão interessante quan-
movimento e o tema tratado, perdendo for-
ça quando esbarra em sequências que se
parecem muito com as de aula de dança.
to o da semana de estreia. Como na primei- O encontro de duas bailarinas da mes-
ra parte da mostra, o ponto forte também ma geração, Paula Águas na posição de co-
está nos intérpretes. Mas esta semana, a ca- reógrafa e Fernanda Cavalcanti no lugar
racterística em comum a quase todos os so- de intérprete, resultou em Eu também não
los é o fato de a dança tratar de temas exter- sou. Ainda que trate da situação das baila-
nos a seu próprio fazer. rinas que tiveram uma formação em balé
O trabalho mais bem-sucedido da noite, clássico e que migraram para a dança con-
Abaixo do equador, coreografia de Airton temporânea, tema do universo da dança, a
Tenório para Jean Gama, aborda a frontei- abordagem narrativa de Paula Águas não
ra entre o religioso e o profano das festas dá conta de trazer um novo olhar sobre a
populares, a partir do Círio de Nazaré. Apoi- ideia. O início da peça em que a intérprete
ado na segurança de interpretação do bai- constrói e desconstrói uma segunda posi-
larino, Airton Tenório consegue se aproxi- ção de braços do balé, modulando o tônus
mar de seu objeto com simplicidade, sem e a direção de seus gestos, sugere um cami-
cair no caricato e sem abusar dos clichês. nho interessante que, infelizmente, a core-
Jean Gama transita com sobriedade nestes ógrafa abandona em seguida. A busca de
corpos do ritual e do carnaval e se revela se fazer entender pelo espectador fez a
um intérprete maduro, conseguindo transfe- coreógrafa partir para um tratamento bas-
rir sua larga experiência de dançar em gru- tante didático do tema o que acabou por
po para sua nova condição de solista. esvaziar Eu também não sou. Mesmo assim,
É pena, no entanto, que a coreografia de resta o prazer de ver a precisão e delica-
Airton Tenório não consiga realizar sempre deza da movimentação de Fernanda
a costura necessária entre o vocabulário de Cavalcanti.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
OPNI – objeto poético não identificado da intérprete. Infelizmente, a relação que a
é a única peça da noite que parte de uma coreógrafa pretende criar entre a dança e o
démarche distinta das outras. O coreógrafo cinema se dá de forma muito superficial e
mineiro Rui Moreira, a convite de João Pau- caricata. A escolha dos gêneros e das trilhas
lo Gross, inspirou-se no barroco, no exagero sonoras não ajuda a aprofundar a proposta,
de linhas, círculos e espirais para criar este se restringindo a seus aspectos mais óbvios.
solo, a peça mais densa da noite. A circula- A peça exige qualidades teatrais que Fer-
ridade dos gestos de braços e a repetição das nanda Reis ainda não desenvolveu e, ao
espirais que se inserem em planos do espa- mesmo tempo, não aproveita bem suas evi-
ço distintos a cada vez, sugerem uma gran- dentes qualidades de bailarina.
de influência de Paulo Caldas na movimen- O exercício de combinar intérpretes e
tação do talentoso João Paulo Gross. A tri- coreógrafos em encontros inéditos é sempre
lha sonora acentua a repetição e os desdo- arriscado. Este risco deve ser entendido
bramentos provocados a cada nova investi- como uma qualidade e um importante ali-
da. Ainda que a repetição seja um elemen- mento para que os Solos de Dança cheguem
to central nesta coreografia de Rui Moreira, a mais uma edição sem perder seu interes-
o trabalho se beneficiaria se fosse mais en- se. Como cada peça é criada para o evento,
xuto e não se estendesse demais no tempo. cada semana dos Solos de Dança reserva
Fechando a noite, Curta-metragem cria- surpresas ao público. Às vezes, esta mistura
do por Ana Andréa para Fernanda Reis traz inédita resulta em encontros férteis e pro-
a dança para “falar” de cinema. A proposta dutivos, outras vezes fica evidente a neces-
é explorar alguns gêneros de filmes através sidade de um desenvolvimento maior das
da música, do clima e, como não podia dei- colaborações para que as danças criadas
xar de ser, da qualidade de movimentação cheguem mais maduras à cena.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006

Presença de
espírito do corpo
Talento e técnica de bailarinos superam
fragilidade de coreografias nos Solos de Dança

R OBERTO PEREIRA

A qualidade irretocável dos quatro bai-


larinos que se apresentam na segun-
da parte da mostra Solos de Dança no SESC,
manifestações populares, como o Círio de
Nazaré, indiciado pela corda, por exemplo,
já possuem uma densidade imagética que
que estreou nesta última quinta-feira no Es- poderia ter sido mais bem desenvolvida por
paço SESC, em Copacabana, denuncia uma Tenório. No lugar disso, o coreógrafo prefe-
lacuna séria na formação de coreógrafos, riu se apoiar no figurino, nos elementos cê-
não apenas no Rio de Janeiro, mas certa- nicos e, sobretudo, na música para contar sua
mente em todo o País. história, não percebendo a riqueza de pos-
O que ficou evidente foi que força advin- sibilidades ofertadas somente no corpo que
da das aptidões tanto técnicas quanto dra- ali se movimentava.
máticas de Jean Gama, Fernanda Cavalcan- O segundo trabalho é de autoria da
te, João Paulo Gross e Fernanda Reis con- grande bailarina Paula Águas, para outra
seguiu, para alívio do público, sobrepujar o bailarina, a ótima Fernanda Cavalcanti:
que ali se configurava como elaboração Eu também não sou. Se a intenção era
coreográfica, ao todo bastante frágil. Uma abordar justamente a imagem da bailari-
prova dessa fragilidade está, justamente, na na, universo compartilhado por Paula e
necessidade quase ingênua de uma narrati- Fernanda, com citações bastante óbvias
vidade, marcada principalmente pelo exces- tanto da técnica quanto de obras do balé
so de recursos cênicos, em quase todos os clássico, tentando em seguida se dissolver
trabalhos apresentados. numa suposta “dança contemporânea”,
Abaixo do Equador abre a noite, com essa intenção não apresentou coesão su-
Jean Gama coreografado pelo notável pro- ficiente para sustentar os 15 minutos da
fessor A irton Tenório.A honestidade que obra. E, novamente, o excesso da cena que
permeia todo o solo constrói um universo circunda o corpo da excelente bailarina
fortemente masculino muito bem interpre- sufoca suas capacidades que permanecem,
tado pelo bailarino.Assim, asreferências às infelizmente, em estado latente.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O. P. N. I – Objeto poético não identifi- cinema, funcionando como mero recurso
cado, dançado pelo novo talento João Pau- que aponta diretamente para objeto sobre
lo Gross e assinado pelo bailarino e, segun- o qual se quer falar. E o narrativo espraiado
do o programa, “investigador cultural” Rui na música, no figurino e, sobretudo, na ilu-
Moreira, é o trabalho, de todos os trabalhos minação implode com o que seria um desa-
apresentados, que menos investe na narra- fio de ser construído no corpo repleto de
tiva. A ideia era revisitar o barroco, mas o história da bailarina Fernanda.
que se vê é uma construção coreográfica A mostra Solos de Dança no SESC, ao
com fortes tons modernos. O início do solo promover encontros inéditos entre bailari-
sugere um claro-escuro que poderia ter es- nos e coreógrafos, instaura questões sempre
tabelecido uma ponte interessante entre instigantes para a dança carioca. Nessa edi-
esse moderno e o barroco pretendido, mas ção, duas ficaram claras: a primeira é a de
que logo se desmancha sem conseguir es- que existe ainda uma necessidade de uma
boçar uma ideia. E o vigor do jovem baila- formação mais sólida de novos coreógrafos;
rino não encontra seu lugar na elaboração e a segunda, talvez causa ou talvez conse-
coreográfica. quência da primeira, é a de que existe uma
Por fim, Curta-metragem marca o encon- crença de que ser coreógrafo é ser algo a
tro novamente de duas grandes bailarinas: mais do que simplesmente bailarino. Os
a experiente Fernanda Reis e a inquieta quatro excelentes bailarinos que se apresen-
Ana Andréa. Aqui, o excesso do linear e do taram nessa noite puderam provar muito
facilmente identificável não funciona como bem que se trata de um equívoco. Ao detec-
matéria-prima para falar da linguagem do tar esses problemas, já vale a mostra.

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JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 8 DE ABRIL • 2006

O vice-versa
de Márcia Rubin
Teatro é dança e dança é teatro na gramática de Teorema,
espetáculo da coreógrafa inspirado na poesia concretista

OBERTO PEREIRA

O Centro Cultural do Banco do Brasil


abriu nesta quinta-feira sua única in-
vestida anual no mundo da dança: a mostra
elaboração. Nem por isso, seu trabalho dei-
xa de suscitar questões importantes.
Mais do que estabelecer conexões com
4 Movimentos, que neste ano é temática, a literatura, interesse antigo na carreira de
apresentando obras que relacionem a arte Márcia, que já trabalhou com o universo
coreográfica à literatura. Na verdade, tra- poético de Ana Cristina César, por exemplo,
ta-se de um formato já experimentado pelo Teorema apresenta uma íntima relação com
extinto e saudoso festival Dança Brasil, do uma outra linguagem, o teatro, fazendo do
próprio CCBB,que inclusive,no ano de 1997, espetáculo um mapa de investigação que
em sua primeira edição,jápropunha a mes- coloca a palavra entre o gesto e o movimen-
ma relação entre dança e literatura, perpas- to de dança. Nada mais concreto. Um acer-
sado por um pensamento de curadoria bas- to, portanto.
tante apurado. Márcia Rubin, além da literatura, sempre
Para a abertura da mostra, foi convida- flertou com o teatro, não apenas em seus pró-
da a coreógrafa e bailarina carioca Márcia prios trabalhos, que contavam com atores em
R ubin, que apresenta seu Teorema até ama- cena, tal como acontece com esse, mas em
nhã, às 19 horas. A qui, a ideia original se- trabalhos em que participa como diretora de
ria uma pesquisa sobre a poesia concreta, movimento para atores. Sua competência
movimento liderado pelos irmãos Campos, nesse tipo de articulação parece tê-la habili-
Haroldo e A ugusto,e Décio Pignatari na dé- tado a compor sua assinatura coreográfica
cada de 1950, e que propunha, entre outras como suporte de uma trama onde teatro e
coisas,uma relação pictórica e lúdica com a dança são interstícios de uma mesma cena,
palavra escrita no poema. Bastante instigan- sempre ricamente estruturada.
te,tal desafio,entretanto,não parece ter sido Ao lado de dois competentes atores,
levado a cabo pela coreógrafa, que mostra César Augusto e Oscar Saraiva, ambos já
sua pesquisa ainda em pleno processo de familiarizados com o formato cênico da co-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
reógrafa, Márcia coloca no palco uma bela modo drástico daquele usado pelos atores:
questão: como o gesto dos atores se trans- o que poderia ser um diagrama de ideias
forma em movimento dançado pela baila- torna-se fissura nas continguidades entre
rina? E como isso se processa em vice-ver- dança e teatro.
sa? O que parece ficar bastante evidente é Assim, o que parece unir esses dois univer-
que existe ainda um largo trajeto a ser con- sos é a própria palavra, transformada em cam-
quistado para que as competências de po comum entre os dois atores e a bailarina/
quem dança e de quem atua estejam em coreógrafa. Quem acompanha a trajetória de
absoluta sintonia. O que ainda por vezes se Márcia Rubin, pode perceber que sua inteire-
torna evidente, sobretudo nos momentos za em Teorema está toda em cena, não ape-
mais coreografados, é que o movimento nas como artista, mas como mulher, mãe, pro-
marcado não está ainda organicamente as- fessora,e,sobretudo,como pensadora da cena
similado pelos atores, deixando que a opor- contemporânea. Trata-se, portanto, de uma
tunidade de mantê-los apenas como gesto grafia de sua vida. No namoro com a literatu-
se esvaia. E essa brecha é ainda mais acen- ra, é possível falar aqui em bio-coreografia.
tuada, por exemplo, com o complicado fi- E é justamente nos hifens entre bio,coreo e
gurino usado por Márcia, que destoa de grafia que esse espetáculo emociona.

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JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 27 DE ABRIL • 2006

Espetáculo Maratona Quintana


de Regina Miranda

OBERTO PEREIRA

M aratona Quintana, último espetá-


culo da mostra de dança 4 Movi-
mentos, do CCBB, estreou nesta quarta-feira
olhos, a começar pela chamada “criação de
movimento”,passaporte para esse espetácu-
lo poder constar na programação de uma
trazendo a marca da coreógrafa carioca Re- mostra de dança. Coreograficamente pueril,
gina Miranda e suas conhecidas hibridações quase óbvio e quase elementar, lembrando
cênicas com dança, teatro, psicanálise e, nes- exercícios de sala de aula, o que se configura
te caso, literatura. Aqui, o poeta gaúcho Ma- ali como pesquisa beira o inacreditável,
rio Quintana foi chamado à cena para ocu- quando se pensa no lugar que ocupa, ou seja,
par um lugar que deveria ser o destaque no um palco de um dos mais importantes cen-
espetáculo, desafio bastante complicado nes- tros culturais da cidade. O que torna tal “cri-
sas investidas de traduções entre linguagens ação” ainda mais problemática é que o cor-
artísticas. E é justamente em como sua lírica po da atriz/bailarina (?) não possui maturi-
é tratada nessas hibridações o ponto frágil dade técnica para executá-la, deixando que
neste solo assinado por Miranda, responsá- a pouca qualidade de movimento transforme-
vel por sua direção e pelo texto. se em algo ainda mais postiço, não incorpo-
A idealização, a interpretação e a cria- rado e, também aqui, não poético.
ção de movimento (ao lado de Camila Fer- Já a “interpretação” fica fadada à incom-
si) foram os três ofícios que ficaram a car- preensibilidade do texto de autoria de Mi-
go da jovem Natasha Corbelino, que de- randa, que carrega em tons psicologizantes
monstrou em seu desempenho uma imatu- a poética de Quintana. Num registro de le-
ridade constrangedora na difícil tarefa de genda entre fala e gesto, Natasha parece ter
estar sozinha num palco, dançando, atuan- confundido literatura com literalidade. As-
do e, até, cantando (outras três importan- sim, o que não se consegue, por pura falta
tes habilidades). de habilidade, no que se apresenta como
Se tais ofícios forem observados com acui- sendo dança, tenta-se apressadamente recu-
dade, alguns sérios problemas saltariam aos perar no que sobra como teatro. Não há re-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
lação entre as duas linguagens. E, novamen- Em Maratona Quintana, entretanto, não
te, o poético se esvai. existe esse tempo, nem o processo de cons-
Por fim, a “idealização” do espetáculo: o trução dele, nem o lugar propício. O corpo da
intrincado processo de tradução entre lin- atriz/bailarina precisa antes aprender qual
guagens artísticas, ou “transcriação”, como é sua habilidade, para somente então se lan-
quis outro poeta, exige que o artista conhe- çar a tantas tarefas difíceis. A maturidade de
ça suficientemente bem os universos com os Miranda não dialoga com a imaturidade de
quais elegeu trabalhar. Nada como o tem- Corbelino. E nem como processo isso se insi-
po para isso, coisa que Regina Miranda cer- nua. E a poética de Quintana, desse modo, não
tamente conhece, como evidenciam seus poderia estar também em nenhum lugar e
tantos trabalhos que trazem essa marca. em nenhum tempo do espetáculo.

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RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 4 DE JUNHO • 2006

Balé confirma talento


dos bailarinos profissionais

OBERTO PEREIRA

O Ballet do Theatro Municipal do Rio de


Janeiro comemora seus 70 anos apos-
tando no futuro, mas sem deixar de olhar seu
bem construído por Paulo Arguelles). Vitor
Luiz, como Franz, pôde apenas mais uma
vez mostrar que é nosso primeiro bailarino,
passado. Ao menos foi isso que se pôde ver já que a cada temporada se mostra mais se-
na estreia de Coppélia, na quinta-feira, por guro e artisticamente mais refinado.
si só uma ótima escolha para festejar uma Entretanto, se os papéis principais foram
data tão importante para esta que ainda é a muito bem desempenhados, o mesmo não se
primeira e a única companhia de balé clás- pode falar do corpo de baile, que carece ain-
sico do País. da de maior acuidade em sua coesão. Pelas
Coppélia é importante para a história do constantes trocas de direção artística que a
Theatro Municipal por váriasrazões. Como companhia sofreu recentemente, é justa-
vem sendo apresentado desde a década de mente no conjunto que se vê refletidas suas
1950, em diferentes versões,transformou-se consequências. Nada grave, apenas uma
em ótima oportunidade para revelar novos questão de afinação.
talentos da casa, sobretudo por seu papel Este é o primeiro resultado da curta ges-
feminino,Swanilda. Eleonora Oliosi e Ana tão de Marcelo Misailidis à frente da dire-
Botafogo são dois belos exemplos,duas de ção. Bailarino que se formou artisticamen-
nossas melhores intérpretes que deixaram te no próprio Theatro Municipal, conhece
sua marca na história da companhia justa- seus meandros e sua história. A julgar pela
mente por seu desempenho neste balé. noite de estreia, tão emocionante com as ho-
Como não poderia deixar de ser,a ver- menagens aos 25 anos de carreira de Ana
são desse ano revelou para o público cario- Botafogo e ao excelente Dennis Gray, fale-
ca o nome de Karina Dias,que mostrou, na cido no ano passado e um dos maiores Dr.
estreia, possuir todos os atributos para uma Coppelius que esse mundo já conheceu, os
verdadeira primeira bailarina. Tecnicamen- sete meses que ainda restam a Misailidis
te impecável, tem timing para as pantomi- prometem. Passado, futuro, história e tradi-
mas,como foi comprovado no 2º ato,quan- ção: quando se fala em balé, esse movimen-
do contracena com Dr. Coppelius (muito to parece ser mesmo fundamental.

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JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 6 DE JUNHO • 2006

Descompasso entre
desejo e realização
OBERTO P EREIRA

A extensão do corpo em sua relação com


a tecnologia parece ser mesmo um
tema inevitável para a dança contemporâ-
Desvelando ainda mais o descompas-
so, todo o investimento metalinguístico
de um espetáculo que se revela falando
nea que investiga a imagem através das no- dele mesmo é ainda mais postiço. As bai-
vas possibilidades midiáticas. E é nesse de- larinas que acompanham a experiente
sejo que se insere o trabalho da coreógra- Andréa Maciel carecem de ajustes bási-
fa gaúcha, residente no Rio de Janeiro, An- cos que só a maturidade poderia conce-
dréa Maciel. Ao longo de sua carreira, a der. Ouvi-las conceituar sobre a felicida-
cultura pop esteve sempre presente, fun- de, por exemplo, ou combinar sequências
cionando como uma marca que se afina aos de movimentos como se estivessem num
registros que o ambiente virtual tem a ofe- ensaio, soa quase pueril, deixando esca-
recer à cena que constrói. Essa é sua pes- par não o “de dentro” do espetáculo, mas
quisa e sua assinatura. sim sua fragilidade mais óbvia.
Seu mais novo trabalho, Gravidade zero, Nesse sentido, mesmo a pesquisa coreo-
estreado no último dia 2 e que fica em tem- gráfica precisaria ser repensada. Andréa
porada até o dia 18 de junho, na Sala Multiu- Maciel, ótima bailarina e inteligente coreó-
so do Espaço SESC, em Copacabana, também grafa, sempre indiciou em suas obras um
não escapa desse seu desejo. Mas sucumbe a instigante percurso de qualidade de movi-
ele. Tecnologia fica fora do corpo que dança, mento, que assumia sua relação com o pop
um corpo que ainda precisa se construir a ao mesmo tempo em que oferecia um novo
partir de algo que parece lhe ser mais pre- olhar sobre ele. Em Gravidade zero, tudo
mente nesse momento: a própria técnica. parece reciclagem do que ela já tanto ex-
Se a vontade é estabelecer contatos en- perimentou. Mas reciclagem que assim per-
tre dança e vídeo, essas linguagens perma- manece, sem resultar em novo produto.
necem ainda justapostas em Gravidade Pelo uso da tecnologia que escolheu, a
zero. Não há a técnica que faz a tecnolo- coreógrafa talvez necessitasse rever o que,
gia ser incorporada e o vídeo se torna antes, se materializa como técnica em seu
mero adereço. Nenhuma nova possibilida- corpo e transformá-la em ideia. Ou seja,
de se apresenta e a tal gravidade, mesmo precisa entender que para lançar-se à aven-
nos truques quase primários de imagem, tura de ser pós-moderna, ou contemporânea,
está lá, bem presente, mas longe do zero, teria que revisitar o que o moderno ainda
como intenta o título da obra. poderia lhe render.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2006

Frágil identidade

OBERTO PEREIRA

M anual de instruções é o novo espetá-


culo da coreógrafa carioca Dani Lima,
em temporada no Teatro Nelson Rodrigues
Algumas cenas permanecem em esta-
do latente, solicitando à coreógrafa que as
dissolva em dança. A questão da frontali-
até domingo. Na verdade, ele faz parte de um dade, por exemplo, um mal que assola a
projeto maior, denominado Vida real de 3 ca- dança cênica há tantos séculos e que bidi-
pítulos, que conta ainda com uma performan- mensionaliza os corpos em cena, é um belo
ce e uma instalação. Costurando as três ações, tema a ser explorado, mas se desmancha
a discussão sobre a identidade torna-se tema sem se ajustar, sequer, à questão da identi-
central que, aliás, já faz parte das investiga- dade. Seria o caso, aqui, de se falar de uma
ções artísticas de Dani desde seu espetáculo identidade da dança? O que essa frontali-
anterior, Falam as partes do todo?. dade nos acusa e nos causa como pensa-
Em Manual de instruções, entretanto, a mento, como dança?
identidade aparece problematizada em ou- Dani Lima parece experimentar possi-
tros modos de pensá-la, denunciando, inclu- bilidades e expor seus experimentos ao pú-
sive, suas perguntas no próprio corpo que blico, deixando-os em estados mesmo de
dança. Nesse sentido, outro elemento, bas- meras possibilidades. A pergunta é se isso
tante caro à dança, ganha a cena: o espaço e não pode se transformar em maneirismo
suas implicações tanto físicas (para esse dela mesma, que contaria sempre com a
corpo) quanto simbólicas (para essa dança). eficácia de truques na cena e deixaria a
O problema, justamente, é como essas coragem para aprofundamentos – coreográ-
duas questões, identidade e espaço, se articu- ficos, inclusive – em segundo plano.
lam no espetáculo. Algumas vezes, o que pa- Para que não se transforme em um da-
rece é que Dani Lima ficou atada em seu queles indecifráveis, e por isso mesmo pou-
levantamento de dados sobre essas questões, co eficazes, manuais de instruções que acom-
denunciando a séria pesquisadora que sem- panham nossos produtos de consumo, seu
pre foi, mas que não conseguiu transformá- novo espetáculo mereceria traçar uma re-
los em matéria-prima de sua obra. O resulta- lação mais exata entre o que se discute e o
do permanece quase que como uma justapo- que se apresenta. Para que nós, e até os pró-
sição de elementos que ora se ajustam à ideia prios bailarinos, saibamos para que servem
de identidade e ora à de espaço. E a dança, todos os comandos de ação naquela dança
intercambiante, cambaleante, não se dá. que ali se apresenta.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 15 DE JULHO • 2006

Bertazzo se esqueceu
de suas próprias lições
OBERTO P EREIRA

T alvez uma trilha bastante intrigante


para se entender o espetáculo Milá-
grimas, concebido e dirigido por Ivaldo Ber-
ser complacente com o que ali fragilmente
se organiza. Para atermos apenas a um dado,
o que se constrói naquele corpo-cidadão,
tazzo, seja aquela aberta pelo pequeno dis- usando uma ideia bertazziana, é um misto
curso proferido pela representante da área pouco eficaz de técnicas que resulta quase
de cultura da maior empresa brasileira, pa- que num espetáculo de justaposições. Não
trocinadora desse projeto de São Paulo, cha- há amálgama possível que faça falar sobre
mado Dança Comunidade. Convidada pelo o tema que se propõe, ou seja, a África.
próprio coreógrafo a falar na noite de es- Resultado: ficamos esbarrando nas cita-
treia para convidados, na última terça-fei- ções de danças. Estão lá a dança indiana, a
ra, no SESC Tijuca, suas palavras foram re- africana, o balé, o funk, o jazz, adornados
veladoras no que tange um ponto funda- com o que supostamente seria “africano”
mental que pode nos ajudar a pensar em para nós. A questão é se essas danças estão
como esse espetáculo – ou projeto – deve mesmo construídas habilmente como técni-
ser assistido pelo público. Vamos a ele. ca naqueles corpos e não como adereço para
Apresentado como uma companhia pro- o discurso que se intenta. Bertazzo parece
fissional de dança, sua qualidade seria, segun- ter sucumbido, infelizmente, ao passo de
do esse discurso, “igual ou melhor” se compa- dança. E, com ele, a todas as suas mazelas,
rada a outras companhias de dança contem- como a praga da frontalidade e da simetria
porânea profissionais do País. Se assim for, perspectívica, por exemplo.
nosso olhar deveria ficar livre, definitivamen- Falta ali o que o educador Bertazzo sabe
te, de qualquer resquício de algo que se co- fazer com destreza: falta coreograficamen-
necte com o fato de se tratar de um projeto te ser coerente, a partir de um corpo que,
social. Questão antiga e empoeirada, desde sabemos nós, não muda seus registros assim
que projetos sociais com dança pulularam ao tão rapidamente para dar conta de um dis-
final da década passada, ela faz com que o curso que se impõe. Se falta antes essa ques-
entrecruzar de especificidades da arte (da tão primordial da educação, não se pode –
dança) e do social clame ainda por revisões. ou não se deve – falar de uma suposta com-
Desse modo, aliando profissionalismo e panhia profissional. Nada que diminua a
continuidade (outro item mencionado no importância do projeto. Mas que a sinalize
discurso), o olhar que se dirige ao espetácu- numa outra dimensão, também cara à dan-
lo, com “bailarinos profissionais”, não deve ça e, por que não, à arte.

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JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 1 8 D E J U L H O • 2 0 0 6

A caminho da felicidade

OBERTO PEREIRA

E m Relações, espetáculo que o jovem


coreógrafo carioca Carlos Laerte
apresenta com sua também jovem Laso
renderiam alguns outros tantos espetáculos,
se devidamente buriladas. Há ainda resquí-
cios de uma dança quase frontal, que esbo-
Companhia de Dança, no Teatro Carlos ça um sorriso para a plateia, cacoetes de
Gomes até o dia 27 deste mês, rastros de uma uma antiga forma de dançar que ainda as-
dança que poderia ser chamada de “tipica- sola as academias de balé do nosso país. Mas
mente carioca” são revelados. há também uma qualidade inegável de
Bailarino egresso das companhias de Re- quem sabe o que está fazendo.
nato Vieira e Deborah Colker, Laerte arrasta Tal qualidade pode ser flagrada, sobretu-
consigo, em sua franca habilidade coreográfi- do, na excelente performance de dois bailari-
ca, vestígios físicos e cênicos daqueles com nos da companhia, Rodolfo Saraiva e Márcio
quem teve longo contato artístico. De Renato, Jahú, que carregam em sua movimentação a
uma forma de fazer dialogar no corpo estru- propriedade do que Laerte intenta em sua
turas de balé, jazz e dança contemporânea, dança de rastros históricos. Mas não rastros
numa ainda busca de como isso se configura que apontam para o passado, mas aqueles que
como vocabulário de movimento. E de Debo- se lançam em possibilidades para o futuro.
rah, um vigor cênico que coloca os bailarinos Carlos Laerte merece nossa atenção
e o público em estado de constante prontidão. pelo que ainda pode ser, pelo que suporta
Neste espetáculo, entretanto, consegue- como potencialidade. Esse futuro, embre-
se vislumbrar um modo próprio de articu- nhado de história, que nos faz ler um pouco
lação desses elementos que estão na histó- da dança dessa cidade, já está em Relações.
ria da dança de Laerte, o que concede ao Esse espetáculo, portanto, deve ser conside-
seu trabalho uma curiosa, ainda que muito rado apenas como uma primeira via de aces-
tenra, identidade coreográfica. Percebe-se so a uma assinatura coreográfica ainda a ser
um jorro incontrolável de ideas, típico da- alcançada, nessa rede de relações de dança
queles que se iniciam nessa arte, e que que se pretende tecer.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
R I O D E J A N E I R O • QUINTA-FEIRA• 20 DE JULHO • 2006

Entre o fio da
ciência e da arte

OBERTO P EREIRA

S e a ideia da metáfora parte sempre de


sua relação com o corpo, como defen-
dem os autores George Lakoff e Mark John-
mesma ideia. A bailarina americana Isado-
ra Duncan, a grande iniciadora de uma dan-
ça moderna, que diz ter vindo da lua, compa-
son (no livro Metáforas da vida cotidiana), o rece como uma nave que redimensiona es-
novo espetáculo de Andréa Jabor e Ricky Sea- paços no corpo, na cena, e nas metáforas da
bra, Isadora.orb, em temporada na Caixa Cul- vida. Tudo se encaixa com uma justeza fina
tural até dia 23 deste mês, parece ser um lugar em cena: ciência, arte, humor, dança, disser-
privilegiado de constatação dessa premissa. tação de mestrado, vídeo, trilha sonora...
Para se falar do espaço, aquele dos astro- Apenas dois ajustes poderiam ser repen-
nautas, foi configurado cenicamente um sados. O primeiro deles é a citação da dan-
outro espaço, aquele da dança e da arte. ça de Isadora, que poderia ser mais bem
Metaforicamente, ainda um terceiro espa- estudada por Jabor. Detalhes coreográficos
ço se compôs: aquele cravado entre signifi- importantes de execução deveriam ser le-
cante e significado, onde a criação respira. vados em conta, porque cabem na precisão
Isadora.orb, que tem como subtítulo A me- do espetáculo e são hoje detalhes acessíveis
táfora final, estabelece um contato entre o aos pesquisadores. E o segundo é o tempo
fio da ciência e o da arte, não sem provocar (essencial para se falar de espaço, não?) do
curtos-circuitos interessantes. próprio espetáculo, que se dilata e, algumas
Pensar a exploração do espaço como pos- vezes, rediz o que já está lá elucidado. A
sibilidade não apenas para astronautas, mas metáfora não comporta redizeres...
para artistas, para que esses experienciem, Pela inteligência que se articula nesse
por exemplo, a noção de gravidade zero, foi espetáculo-dissertação, vale a pena assistir
o ponto de partida. O resultado foi desde uma ao espaço que ali se inaugura. A dança faz
dissertação de mestrado, de Seabra, até esse dele matéria-prima. E devolve para a ciên-
espetáculo que encontra na dança de Jabor cia noções que poderiam fazer de qualquer
sua tradução. Quase que interfaces de uma astronauta um exímio bailarino.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE JULHO • 2006

Maracanã sem a paixão


e a surpresa do festival
Dínamo: O esporte é tema de duas
coreografias com resultado desigual

ILVIA S OTER

E les são lindos, atléticos, têm cabelos


bem cortados e parecem saídos de
uma revista de moda internacional. Dançam
lho em que o esporte serve como inspiração
para a movimentação. Já no terceiro movi-
mento, quando a dança ganha a parede ver-
muito bem e encantam o público com a pre- tical no fundo da cena, Deborah Colker
cisão com que realizam suas proezas. É a explora com êxito as possibilidades do supor-
Companhia de Dança Deborah Colker que te só viáveis por essa outra relação com a gra-
faz sua temporada anual no Teatro João Cae- vidade. A coreógrafa sublinha a potência
tano. Dínamo reúne as coreografias Velox, de gráfica da dança e a parede de Velox trans-
1995, e Maracanã, criada em 2006 para inte- forma-se numa bonita tela onde os corpos que
grar o projeto cultural da Copa do Mundo. dançam constroem seus desenhos. O último
Unindo as duas peças, há mais do que o movimento de Velox é um gol de placa.
fato de terem o esporte como tema. Deborah Em Maracanã, há também uma parede
Colker trabalha desde a criação de sua com- vertical ao fundo, neste caso, representando
panhia com um grupo de competentes cola- as linhas de um campo de futebol. Os baila-
boradores estáveis como Gringo Cardia, que rinos também se apoiam nela, desta vez
assina a direção de arte de ambas as peças, e usando a técnica de rappel, suspensos pela
os músicos Berna Ceppas e Sergio Mekler, cintura através de um cabo. O futebol é tema
responsáveis pela direção musical. Junto com e, também aqui, serve de fonte para a movi-
a coreógrafa, esta equipe compõe o projeto mentação. Ora os bailarinos reproduzem
estético da companhia que se afirma a cada gestos que remetem ao esporte como o chu-
nova criação como marca registrada. te, o drible e mesmo a formação da barrei-
Pode-se dizer que Velox tem três movi- ra, ora transformam-se, por exemplo, em
mentos. Nos dois primeiros, os gestos espor- bola. A chuteira aparece como sapatilha de
tivos – do atletismo à natação – se associam ponta nos pés de Renata Versiani que bate
a gestos cotidianos, e a beleza dos corpos atlé- um bolão em sua movimentação clássica.
ticos é ressaltada numa coreografia sem bri- Mas, diferente do que ocorre em Velox, Ma-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
racanã não consegue ir muito além de uma Deborah e sua equipe extraem deste
investida literal. Mesmo a parede não se esporte a sofisticação visual das formas, das
integra ao que se desenvolve sobre o palco. bandeiras e dos uniformes, mas não conse-
A frontalidade excessiva das coreografias guem despertar a paixão e a surpresa que
impede a incorporação do plano vertical são bem-vindas quando se trata de dança e
como continuação da cena, do campo. de futebol.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 23 DE JULHO • 2006

Quando a dança corre


atrás do brilho da música
Milágrimas: Projeto social tocado por Ivaldo Bertazzo
precisa ser diferenciado do resultado cênico

ILVIA S OTER

À frente de seu projeto Dança Comuni-


dade, Ivaldo Bertazzo é um dos pou-
cos remanescentes do movimento que asso-
ça profissional e estável. Já Bertazzo, de for-
ma mais lúcida e realista, afirma estar foca-
do na formação de professores que poderão
cia dança e ação social que teve, no Rio de no futuro multiplicar suas ações, difundindo
Janeiro, seu auge no início dos anos 2000. O seus ensinamentos em suas comunidades de
coreógrafo esteve por três anos no Rio onde origem. Esta aparente confusão está na base
criou o Corpo de Dança da Maré junto ao de muitas ações sociais através da arte, so-
Centro de Estudos e Ações Solidárias da bretudo, quando o resultado dessas ações é
Maré (Ceasm), e onde produziu três espetá- colocado em cena na forma de um espetá-
culos em que este Corpo de Dança conviveu culo grandioso, contando com a colaboração
em cena com atores, cantores e músicos pro- de importantes artistas da música e da dan-
fissionais. De volta a São Paulo, Bertazzo re- ça profissional. E isso tende igualmente a
petiu a experiência associando-se a ONGS determinar o tipo de olhar que se porta so-
locais e inaugurou o projeto Dança Comuni- bre o espetáculo. Se por um lado, só a persis-
dade, que apresenta no ginásio do SESC da tência e a continuidade de iniciativas como
Tijuca – mesmo espaço que recebeu os espe- a de Bertazzo já merecem reconhecimento
táculos de experiência carioca – Milágrimas, e comemoração, por outro lado, é necessá-
sua segunda criação com o novo grupo. rio que esta percepção não acabe por enco-
Não parece ser por acaso que nas falas brir a qualidade do que é levado em cena.
que precederam o espetáculo na noite de Como aconteceu em Samwaad, peça
pré-estreia de Milágrimas, o trabalho de anterior do mesmo grupo,o encontro musi-
Bertazzo tenha sido apresentado de manei- cal antecedeu o espetáculo.A convivência
ra diferente pela representante da Petrobras de músicos africanos e brasileiros está na
Cultural, patrocinadora das ações, e pelo origem da bela trilha sonora da peça, sob
próprio coreógrafo. A Petrobras acredita direção de Benjamin Taubkin e Arthur Nes-
estar patrocinando uma companhia de dan- trovski. Enquanto em Samwaad, Bertazzo

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
foi ao encontro de referências indianas,Mi- tis. Neste diálogo, o vocabulário de Bertazzo
lágrimas propõe um diálogo entre Brasil e se descaracteriza e se empobrece, atraves-
África. De que África e de que Brasil Milá- sado por referências óbvias da dança cênica
grimas trata? Este é um de seus problemas. ocidental, apoiado em passos de balé e de
Um outro ponto delicado é que ao propor dança moderna, por exemplo.
uma estrutura dialógica entre culturas,Ber- Não há dúvida de que experiências
tazzo perde uma das grandes forças de seu como a do Dança Comunidade tem enorme
trabalho: a hibridação.Há mais de 30 anos,o valor quando conseguem manter-se no tem-
coreógrafo vem desenvolvendo uma lingua- po. Como bem trata Ferréz no livro lançado
gem única de movimentos em que funde junto com o espetáculo. Referindo-se às pes-
danças tradicionais de diferentes origens e soas que integram projetos como esse, o es-
culturas,transformando-as. Esta é uma de critor lembra: “Ela volta para a cidade-dor-
suas marcas: uma dança que se faz como tra- mitório, mas sabe que, quando for ensaiar no
ma das várias danças e técnicas corporais que outro dia, o projeto vai estar lá, e isso, meu
estudou a fundo ao longo da vida. A o fazer querido, ninguém pode medir o valor que
dialogar África e Brasil, o coreógrafo acaba tem.” No entanto, a dança de Milágrimas não
por separar estas referências em sua própria consegue atingir o brilho da música e ape-
dança, sublinhando o que é África, no caso, sar de mostrar que os jovens atendidos pelo
representada pelas estruturas rítmicas com- projeto seguem desenvolvendo suas compe-
plexas,pelos pés que percutem o chão,ou ain- tências, nem de longe o grupo pode ser iden-
da pela ideia de tribo; daquilo que entende tificado como uma companhia profissional.
como Brasil. Para que os dois pólos sejam Isso importa? Talvez sim, sobretudo quan-
identificados,o diretor acaba por reforçar do o resultado das ações é apresentado como
clichês,enfatizados pelos figurinos nada su- superprodução.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 5 DE AGOSTO • 2006

Projeto corajoso traz preciosos


momentos em meio a excessos

OBERTO PEREIRA

A ideia é interessante. Duas bailarinas,


um coreógrafo e uma produtora se
uniram em torno de um mesmo desejo: mon-
rar em nada menos que Vidas secas,ro-
mance de Graciliano Ramos.Tudo pare-
ce, até aí, bastante orgânico, já que o
tar um espetáculo, Tudo o que se espera..., que próprio Clébio, de origem nordestina,
estreou quarta-feira no Teatro Cacilda sempre buscou em suas investidas core-
Becker. Não se trata de uma companhia de ográficas um retorno a suas origens. En-
dança, mas de um projeto, denominado Par- tretanto, mesmo que busque se inspirar
cerias, que acena com novas possibilidades livremente no romance, o espetáculo
de produção nesse deserto de política para sucumbe diante da monumentalidade da
a dança em que se encontra a cidade do Rio obra literária.
de Janeiro hoje. Talvez pela própria sede de se apro-
Se a ideia é interessante e, sobretudo, priar da ideia do escritor, Clébio não se
válida, o resultado ainda denota fragilida- ateve como deveria à estrutura do ro-
des naturais desse tipo de empreitada que mance,seco e árido, econômico nas pa-
se inaugura por aqui. Nada a ver com a lavras,que traduz iconicamente o sertão
qualidade das quatro excelentes bailari- na própria prosa. O espetáculo, algumas
nas, ou com a produção cuidadosa e nem vezes, peca pelo excesso, tanto de movi-
mesmo com o pensamento estético que mentos quanto na trilha sonora. Uma
atravessa o espetáculo. Faltam ali ajustes pena, já que alguns momentos delicados
que só poderiam vir com o tempo, mas se ofertam como preciosidades de algo
num outro tempo que se inaugura com a que aponta para o clima do romance. E
efemeridade latente de um tipo de proje- é justamente nesses momentos que se
to como esse. pode vislumbrar o que um dia será seu
Clébio Oliveira, jovem bailarino que vocabulário de movimento.
ainda tateia o ofício de coreógrafo, se O sanfoneiro,que infelizmente não divi-
lançou a um desafio e tanto, ao se inspi- de a cena com as bailarinas,éresponsável

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
pela maioria desses momentos, com sua ainda aprenderá a importante lição de
singela contribuição ao espetáculo. Seria jogar suas tantas boas ideias fora, para
necessário ter coragem para fazer de sua perseguir apaixonadamente aquela que
música o alinhavo enxuto que o tema so- seria sua verdadeira pesquisa. Pela quali-
licita. Mas a coragem já está em bancar dade que já se apresenta em Tudo que se
um projeto como esse. Como um jovem espera..., esta é, com certeza, apenas uma
aprendiz de coreógrafo, Clébio Oliveira questão de tempo.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXT A-FEIRA • 1
SEXTA-FEIRA 1 DE AGOST
11 AGOSTOO • 2006

Territórios abertos
para a expressão masculina

OBERTO PEREIRA

O ito bailarinos. Oito homens. Oito ter-


ritórios diferentes. É assim que a cena
se constrói no novo trabalho da coreógrafa
Isso pode ser visto logo no início, quan-
do a brincadeira Escravos de Jó é trazida à
cena. O sentido de responsabilidade para
Esther Weitzman, Territórios, que cumpriu que o jogo dê certo, a partir de uma contri-
recente temporada na cidade em três tea- buição individual que aponta para o coleti-
tros diferentes (Nelson Rodrigues, Sérgio vo, já traça o caminho do espetáculo no ca-
Porto e Centro Coreográfico). Uma dança minho dessa tradição. As referências às dan-
estritamente masculina e ao mesmo tempo ças de origem judaica, matéria-prima que
absolutamente contemporânea cria a opor- já vem sendo burilada por Esther desde Ter-
tunidade de se observar como o vigor do vo- ras, seu espetáculo de 1999, ganham a di-
cabulário de movimentos de Esther encon- mensão do corpo masculino, fincando ainda
tra um paradeiro seguro naqueles corpos. mais o pé nesse sentido de tradição. Uma
Os bailarinos, especialmente convida- tradição de hoje, pulverizada, diversa, glo-
dos para esse trabalho, aceitaram o desa- balizada. Uma tradição contemporânea.
fio de estarem juntos no palco, mas nunca E disso resultam momentos muito espe-
construindo um corpo só, como o de baile, ciais, como os que oferecem o privilégio de
do balé, com a qual estamos acostumados. poder ver dançar um experiente Alexandre
São corpos com histórias diversas, com Franco, bailarino e coreógrafo que possui
musculaturas e qualidades cinéticas tão todo um pensamento de dança já estrutura-
singulares que se ofertam como mapas de do, ao lado do jovem, e excelente, Felipe
danças sempre plurais. Toda essa palheta Padilha. Dois lugares tão repletos de singu-
de possibilidades físicas foi inteligente- laridades estão ali desvelados. Ou mesmo
mente pensada pela coreógrafa, que ad- quando se pode ver a maturidade com que
ministra maturidades (e, por isso, compe- os bailarinos Marcellus Ferreira e Marcelo
tências) diversas através do uso de uma Lopes doam à cena sua parcela de história,
ideia de tradição. de modo tão generoso.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Os territórios que se desvendam através nharam agora uma tradução vigorosa de
da coreografia de Esther Weitzman estão ali corpos masculinos. E fomentam ainda mais
ao mesmo tempo em estado bruto e em es- a esperança de que esses territórios, sem
tado de prontidão. Os movimentos percus- perder sua tradição e sua história, um dia
sivos, os silêncios e as danças em conjunto, possam mesmo dividir um mesmo espaço. É
elementos que se tornaram sua marca, ga- disso que essa dança fala.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 28 DE AGOSTO • 2006

A força da presença
do coreógrafo Bill T. Jones

ILVIA S OTER

A pós a morte de Arnie Zane, seu par-


ceiro de vida e criação, no fim dos anos
80, Bill T. Jones vem carregando no tom po-
próprio universo. Se a ideia é interessante,
a visão de Jones sobre as questões que abor-
da e a forma como as aborda são, em vários
lítico de seus trabalhos. Desde então, o fato momentos, de uma ingenuidade desconcer-
de ser negro, homossexual e soropositivo tor- tante.
nou-se quase uma bandeira, um cartão de No universo de Another evening – I bow
visita que acompanha e antecede sua dan- down, o Bem se opõe ao Mal, o branco às co-
ça. Suas criações são sempre atravessadas res,o Oriente ao Ocidente.A desorganiza-
por referências autobiográficas, mesmo ção das águas é representada pelo som de
quando o coreógrafo não está em cena. uma banda de rock que permanece dentro
Another evening – I bow down, sua peça de uma caixa no fundo da cena, cujas por-
mais recente, apresentada no Theatro Mu- tas/comportas são abertas e fechadas pelo
nicipal no último fim de semana, trata das coreógrafo,em oposição à música acústica
grandes catástrofes provocadas pela água tocada também ao vivo.A peça se constrói
e se estrutura sobre a palavra narrada. No sobre metáforas como estas e nelas a dança
texto assinado por Bill T. Jones e Andrea se aprisiona.
Smith, e falado pelo coreógrafo em cena, en- A companhia é formada por um belo
trelaçam-se relatos pessoais a referências grupo de bailarinos, competentes tecnica-
a algumas passagens bíblicas em torno da mente e muito distintos entresi. Bill T.Jo-
Arca de Noé e outras tragédias. Presente nes sempre teve como princípio trabalhar
durante todo o tempo, Bill T. Jones é ao mes- com bailarinos de morfologias diversas.Este
mo tempo narrador e demiurgo. A relação é o caso aqui. A movimentação do grupo
entre a palavra do diretor e coreógrafo e a sugere ora águas mais ou menos revoltas,ora
cena que se desenha, associada à espiritua- uma comunidade primitiva. A religiosida-
lidade evocada pelos textos, faz da figura do de implícita na proposta de Jones carrega
coreógrafo este deus que cria e destrói seu dramaticamente o grupo,mas num registro

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
único. Suas interpretações – apesar de cor- convicção com que defende seus gestos e
retas – não conseguem ganhar densidade, palavras não deixa de ser tocante. É em
ficando apenas na superfície. sua experiência de vida, na serenidade e
No entanto, algo consegue escapar da na economia com que se movimenta que
superficialidade e do evidente anacro- a mensagem otimista que o coreógrafo
nismo em Another evening – I bow down: pretende passar encontra sua forma mais
a força da presença de Bill T.Jones.A precisa.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE SETEMBRO • 2006

A viagem existencialista
e solitária de um coreógrafo
OBERTO PEREIRA

O espetáculo Terceira margem,estreado


nesta última sexta-feira no Espaço
SESC, em Copacabana, marca um impor-
nato. Mas, por outro lado, há uma simultanei-
dade que borra limites, há uma sincronici-
dade que é antes movida por uma sensação
tante ponto de transição na carreira do co- e não por uma mera marcação coreográfi-
reógrafo Renato V ieira. Não uma transi- ca. Há o silêncio, registro inédito até então.
ção de mão única, mas aquela cujos veto- Há a respiração. Há um suspiro contido.
res apontam tanto para um reconhecimen- Como o silêncio do rio. Como a solidão da
to de sua história como também para pos- personagem na canoa.
sibilidades até então nunca experimenta- Todo esse novo registro foi sabiamen-
das por ele. te assimilado pela companhia composta
O conto de Guimarães Rosa, A tercei- por cinco bailarinos, de longe a melhor for-
ra margem do rio,foi a inspiração.Entre- mação que Renato já contou nos últimos
tanto, longe de buscar uma tradução da- anos. Mas é na experiente Soraya Bastos
quela riqueza literária, Renato optou por que o amálgama entre ideia e sua corpo-
nutrir-se dela para ele mesmo lançar-se rificação torna-se emocionantemente vi-
em uma canoa, solitário em sua dança, em sível. Sua dança, pelos anos de convívio
seu rio, como metáfora de um lugar de cri - com o coreógrafo, é sua testemunha, seu
se, de um lugar quase existencialista. O relato, sua cúmplice, coisa rara de se ver
resultado dessa tomada de posição que o hoje em dia.
coreógrafo assume é novo em sua carrei- Na qualidade daquele que se lança a
ra, talvez porque ele tenha se lançado ao um novo universo de dança, “aquilo que
que ele não domina, e sua sede de apro- não havia, acontecia”, citando o conto que
priação disso que lhe é tão absolutamen- nos serve de guia nesse espetáculo. Está
te desconhecido tornou-se matéria-prima lá o “demoramento” de Guimarães Rosa.
para sua criação.A sede está lá, à margem Está lá o “devagar depressa dos tempos”.
e ao mesmo tempo tão incorporada. Alcançar tal delicadeza de sentidos é
Coreograficamente, o passo de dança como buscar mesmo uma terceira mar-
dissolve-se em movimento, mas um movi- gem possível na dança. No caso de Rena-
mento que não se nomeia. Estão lá as per- to Vieira, essa dança tão sua e ao mesmo
nas altas, os pés devidamente estendidos, tempo tão contemporânea parece ter sido
sempre tão presentes nos trabalhos de Re- encontrada.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2006

Pas-de-deux de
história e renovação
OBERTO P EREIRA

A arte do balé está viva. A difícil equa-


ção entre o que se renova e o que
permanece como eixo da tradição pode ser
anos de dedicação, por um burilamento fino
de sua arte. E Vitor, ainda tão jovem, apren-
de com sua companheira de palcos e pas-
observada a cada nova versão bem-suce- de-deux a ser cada vez mais preciso em seu
dida, a cada desempenho de uma estrela ou desempenho técnico e artístico.Históriae
de um corpo de baile. Basta que exista essa renovação dançando juntos.
equação, uma equação cuja elegância deve O corpo de baile ainda carece de pe-
ser reestruturada ao longo da história de quenos ajustes, mas nada que não se con-
uma companhia de dança que se dedique à quiste com a prática de se apresentar du-
arte do balé. rante uma temporada. Marcelo Misailidis
Entre nós, apenas o Ballet do Theatro concedeu força exata a seu bruxo Rothbart,
Municipal se dedica a isso, primeira e ain- enquanto Rodrigo Negri perdeu a mão em
da única companhia com esse perfil no País. sua caracterização do bobo da corte, bei-
E assisti-la em sua mais nova versão de O rando muitas vezes o caricato.Mas é em seu
lago dos cisnes, estreada na última sexta- todo que a companhia prova porque detém
feira, comprova sua habilidade em resol- a qualidade de uma grande companhia de
ver equações artísticas. balé, sabendo,inclusive,o que significa isso
A obra já faz parte da história daquele num país como o Brasil.
teatro desde 1959, quando da primeira Talvez seja essa qualidade,fina, e não
montagem completa no continente ameri- tão fácil para principiantes,que Pankova, a
cano, o que se tornou um marco da compe- artista russa convidada a remontar a obra,
tência da companhia. Desta vez, volta com ainda tenha dificuldade de perceber, como
outra roupagem, através da versão ensina- prova a deselegância de suas declarações
da e ensaiada pela russa Yelena Pankova. à imprensa no dia da estreia do Lago.Tra-
O saldo é positivo. A equação, justa. ta-se, com certeza, de uma nova equação
Os dois primeiros bailarinos, Cecília que coloca o Brasil e o balé lado a lado.
Kerche e Vitor Luiz, provaram porque são Descobrir ali qual é o “x” dessa equação é
os mais indicados para os papéis desse balé tarefa que nós,brasileiros,artistas,críticos
dentro do grupo. Cecília, com sua maturi- e público,fazemos a cada instante,reinven-
dade, está no auge do apuramento de sua tando soluções,e concedendo a obras como
qualidade de dança. Tudo nela se revela O lago dos cisnes um pouco da cara do fu-
como detalhe estudado, conquistado por turo que esse balé tanto merece.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 26 DE SETEMBRO • 2006

Dança brasileira
em ritmo de inovação
Os grupos cariocas Atelier de Coreografia e
Companhia Urbana de Dança e o
mineiro Mimulus exibiram na XII Bienal de Lyon,
na França, um panorama da diversidade
que se produz no Brasil

OBERTO PEREIRA

N o pequeno Café Danse em Lyon, na


França, o que se ouvia ao fundo era,
durante quase todos os dias deste mês de se-
Com certeza, para nós brasileiros, a
estreia mais esperada foi a do carioca
João Saldanha e seu Atelier de Coreo-
tembro, música brasileira. No caso, Caetano grafia, que apresentou Extracorpo,resul-
Veloso. Ponto de encontro oficial da XII Bie- tado de uma pesquisa coreográfica a
nal de Dança, reunindo bailarinos, coreógra- partir da obra de Oscar Niemeyer, e fru-
fos, críticos, produtores e curadores do mundo to de uma parceria entre a própria Bie-
todo, já ali podia se ter um pouco da impres- nal e o Espaço SESC. Lançando um
são de como o Brasil, através de sua música e, olhar sofisticadíssimo sobre a ideia ar-
sobretudo, através de sua dança se fazia mar- quitetônica do mestre, Saldanha causou
cante durante toda a edição deste que é um estranhamento num público formado
dos festivais mais importantes da atualidade. pelos mais importantes críticos de dan-
O tema desse ano, proposto por seu ça do mundo todo,propondo formas e,so-
curador, o francês Guy Darmet, é a gran- bretudo, tempos diferentes de se olhar
de cidade. São 40 companhias vindas de para um Brasil que se pretendia antes
metrópoles de todos os continentes, cu- moderno que exótico.Ponto para nós,
jos trabalhos possuem o ponto comum que tivemos a oportunidade de mostrar
na temática, que resvala em questões que a dança por aqui vai muito bem,
como o urbano, a cultura da cidade e seus obrigado,salvo todas as dificuldades que
meandros. O Brasil compareceu com já conhecemos.
três companhias, duas do Rio e uma de As outras duas companhias brasileiras,a
Belo Horizonte, além de estar presente mineira Mimulus e a carioca Companhia
indiretamente em outras apresentações. Urbana de Dança, completaram muito bem
O Brasil estava em Lyon. um diagrama da diversidade de danças que

127
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
se produz por aqui. A primeira, que articula Bienal, chamada Superstars. Além da im-
de forma inovadora as danças contemporâ- pressionante dança de Bruno,o que intrigou,
nea e de salão, é velha conhecida dos fran- para não dizer, de certa forma, constrangeu
ceses, fazendo sempre muito sucesso por lá, o público,foi quando,numa entrevista sua
além de promover concorridos workshops gravada em vídeo,declarou que seus docu-
nas praças da cidade, ministrados pelo seu mentos não tinham sido aceitos para que ele,
coreógrafo Jomar Mesquita. Já a Compa- trabalhador francês,obtivesse seu seguro de
nhia Urbana mostrou a qualidade da dança saúde.A o procurar saber o motivo,deparou-
de rua desenvolvida no Brasil. O público, se com a insólita resposta de que em sua cer-
como mostrou a noite de estreia, aprovou. tidão de nascimento não constava o nome
Mas, na verdade, a primeira aparição de do pai. Esclarecendo que seu pai não o ha-
um representante brasileiro na Bienal foi a via reconhecido,foi solicitada, então, uma
de Bruno Cezário, ex-integrante do Ballet carta, explicando o porquê deste não reco-
do Theatro Municipal e um dos melhores e nhecimento.Bruno,perplexo,ao ouvir a aten-
mais singulares bailarinos que já tivemos dente dizer com um ar blasé,“na França é
por aqui. Integrante do Ballet Nacional de assim!”, desligou o telefone.Trajando um
Lyon, Bruno foi responsável por um dos so- short verde e uma camiseta amarela, Bru-
los mais emocionantes na obra do francês no parecia, em seu solo,mais um trabalha-
Rachid Ouramdane, que estreou na própria dor brasileiro.

DESFILE PELA CIDA D E


SE INSPIRA NA T RADIÇÃO DA S
E S C O L AS DE SA M BA CARIOCA S

Não apenas em bailarinos e compa- Aos nossos olhos, claro, é gritante a falta
nhias pode-se perceber a presença do de um responsável pela harmonia do des-
Brasil no festival francês. O que parece file. Mas, por outro lado, fica a pergunta se
mesmo ter deixado definitivamente marca não seria aquele um outro modo de se
brasileira na Bienal de Dança de Lyon é o olhar um tema que já apresenta suas pró-
grande Défilé, desfile que toma a princi- prias soluções. Apenas para que possamos
pal rua da cidade, reunindo 20 comunida- entender que na França, como foi mostra-
des locais que se organizam em danças, do no solo de Bruno Cezário, “é assim”.
músicas, cenários e figurinos. Assumida- E a nós, brasileiros, assinando a pater-
mente inspirado no desfile das escolas de nidade dessa ideia do desfile, resta ter or-
samba cariocas, desde que o Brasil foi gulho de como nossa dança se faz não
tema da Bienal em 1996, o desfile comple- apenas presente nesse importante festival,
ta, curiosamente, dez anos. Curiosamen- mas tem a capacidade de se transformar
te, porque, para nós brasileiros, é intrigan- em referência. Não uma referência do exó-
te observar como uma ideia tão nossa foi tico, essa praga romântica que ainda nos
sendo culturalmente traduzida por cida- assola, mas moderna, como bem provou o
dãos lionenses. coreógrafo carioca João Saldanha.

128
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2006

Tradução elegante das curvas


arquitetônicas modernistas
OBERTO PEREIRA

A elegância do pensamento arquitetô-


nico de Oscar Niemeyer ganha sua
tradução em dança pelas mãos, e pelos cor-
essenciais na obra. A tal justeza já está
aí. Mas é nos corpos o lugar onde as li-
nhas sinuosas e modernas de Niemeyer
pos, de João Saldanha. Não uma tradução são deslindadas como continuidades, nun-
daquelas presas a uma literalidade sufo- ca como passos de dança. Não há conces-
cante e estéril, mas sim aquela que investi- são a ser feita: coisa de coreógrafo ma-
ga pontos comuns entre as duas artes: for- duro e inteligente.
mas, volumes, densidades, dimensões, pesos, Isso é evidenciado, sobretudo, no trio
gravidades, linhas e planos. Essa tradução, formado pelas bailarinas Carol Pires, Cla-
também elegante, é o novo espetáculo do rice Silva e Flávia Meireles. Neste mo-
coreógrafo carioca, Extracorpo, que fica em mento, a tradução se efetiva em seu regis-
temporada no Espaço SESC, em Copaca- tro mais puro. O fato de estarem entrando
bana, até o dia 26 deste mês. em contato apenas recentemente com a
O que se constrói no movimento de linguagem coreográfica de João Saldanha
dança são estruturas modulares que sina- indicia em seus corpos um vigor que aco-
lizam uma forma de organização de tem- lhe o sentido de novo, de moderno, tão
po e espaço típica da arquitetura. A ideia caro ao arquiteto. Ali explode aos nossos
de entorno, ou seja, de ambiente, faz o cor- olhos a potencialidade de uma nova cons-
po preenchê-lo e ser preenchido pelo que trução, em todos os sentidos que essa pa-
o habita a um só tempo. Há uma simbiose lavra pode ganhar nesse contexto.
entre o orgânico e o concreto e isso, core- O tempo e o espaço de Niemeyer e Sal-
ograficamente, é pensado com justeza danha estão redimensionados. Em Extracor-
por Saldanha. po,o espectador é transformado em flaneur,
O cenário, que torna solo e céu um pa- que caminha desvendando formas,preen-
ralelo branco, anulação de referências chendo ambientes e se surpreendendo a
onde tudo ainda pode ser construído, o fi- cada nova paisagem. O olhar é quase tátil.
gurino cinza que tinge de cimento a cena, E é essa sinestesia que comanda o proces-
e o som que estende ao máximo um esta- so de tradução.Arquitetura e dança se tor-
do de observação de quem adentra esse nam, portanto,apenas dois modos de nome-
ambiente/movimento são três elementos ar o mesmo pensamento.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 5 DE NOVEMBRO • 2006

As curvas de Niemeyer
em corpos que dançam
Extracorpo: Uma singular experiência de tempo

ILVIA S OTER

A obra de Oscar Niemeyer – arquiteto


que dispensa apresentações – é a
experiência seminal de Extracorpo, nova
nha este espaço e dá a ver o que se encontra
entre cada corpo ou objeto. A ambientação
sonora de Sasha Amback opera com eficá-
criação de João Saldanha, em cartaz no Es- cia neste mesmo princípio. O som se insinua
paço SESC até 26 de novembro. A peça re- sem que o espectador perceba, cresce em
sume um longo período de pesquisa inicia- volume e vigor, para depois desaparecer,
da com uma bolsa vitae no Brasil e continu- deixando o silêncio ainda mais potente.
ada, por meses, na França. Saldanha experimenta devolver ao corpo
A relação entre dança e arquitetura foi humano as curvas orgânicas que Niemeyer
bastante explorada ao longo do século XX. dele extraiu e experimentou no concreto. Bra-
Oskar Schlemmer, Rudolf Laban, Merce ços, troncos, torsos e quadris apoiam as espirais
Cunningham, cada um a seu modo, foram al- e os círculos dos traços do modernista, crian-
guns dos artistas que consideravam que, como do um interessante vocabulário de formas e
ambas as disciplinas tratavam das relações passos que se articulam e se combinam numa
entre corpo, espaço e movimento, aproximá- estrutura modular. As linhas sinuosas, preci-
las levaria a dança a visitar novos lugares. sas e simples, marcas do arquiteto, ganham
Como não poderia deixar de acontecer, uma bonita correspondência nos trajetos es-
Extracorpo se apresenta numa arena, am- paciais e nos corpos dos seis intérpretes. Mas
biente que impede uma leitura bidimensio- é no trio composto por Clarice Silva, Flávia
nal da cena. O linóleo branco se destaca do Meireles e Carol Pires que a pesquisa de Sal-
entorno cor de chumbo do mezanino do Es- danha encontra sua melhor síntese.
paço SESC e os figurinos cor de pedra subli- Também na movimentação, o contraste
nham a aproximação entre o corpo que dan- acontece na alternância entre os momentos
ça e as formas esculturais inspiradas em Ni- de aceleração e deslocamento, e de para-
emeyer. A cena se desenha como um cam- gem. Extracorpo se constrói de vazios e si-
po plano e vazio, remetendo a Brasília, ce- lêncios. Sem fazer concessões, o coreógrafo
nário importante da obra do arquiteto. obriga o espectador a uma singular expe-
Talvez o traço essencial de Niemeyer riência de tempo. É por meio do silêncio e
que atravessa toda a démarche de Extracor- da paragem que João Saldanha o conduz a
po seja a compreensão de que cada forma apreciar sua dança rigorosa. A o mergulhar
tem a força do que é, e de revelar a paisa- no universo de Oscar Niemeyer, o coreógra-
gem que recorta, numa relação de figura e fo rende a este uma merecida homenagem,
fundo sem hierarquia. A linha, o plano ou o mas, sobretudo,cria para si novas e promis-
volume que se inscreve no espaço, redese- soras possibilidades de investigação.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 16 DE NOVEMBRO • 2006

Carisma e talento
da solista salvam a noite
Ballet Nacional de Cuba: Palco inadequado

ILVIA S OTER

A estreia da temporada sul-americana


do Ballet Nacional de Cuba no Rio de
Janeiro, na última terça-feira, foi marcada por
da perspectiva. Mas o palco do Canecão,
estreito e pouco profundo, espremeu o cor-
po de baile, impedindo que as figuras es-
uma grande frustração. Mais ou menos como paciais fossem realizadas e percebidas. A
quando ocorre um eclipse total do sol, fenô- proximidade com o público também não
meno pouco frequente, e as nuvens cobrem o ajudou a disfarçar as deficiências dos ce-
céu. Uma das mais importantes companhias nários – os telões de fundo cheios de pre-
de balé do mundo e uma das poucas – já que gas –, das caracterizações e dos figurinos –
hoje é cada vez mais rara a existência de barbas postiças e perucas mal-acabadas –
companhias de repertório clássico como a já que balés não são concebidos para se-
cubana – esteve em temporada no Rio numa rem vistos de tão perto. Na noite da estreia,
casa de shows: o Canecão. A inadequação do ainda era possível acompanhar a movi-
local ao propósito já ficou evidente no horá- mentação dos técnicos nas coxias acesas.
rio das apresentações, marcadas para as Apesar de todos esses limites, Alonso trou-
21h30. O balé entrou em cena quase às 22h, xe uma companhia marcada pela juventude
para um Dom Quixote completo,em três atos, e com alguns verdadeiros talentos, como Vi-
e com intervalos de 15 minutos entre cada. engsay Valdés e Joel Carreño. No terceiro ato,
A proximidade excessiva do palco,o melhor momento da noite, o jovem Joel Car-
público sentado ao redor de mesas,a ausên- reño, pôde mostrar suas evidentes qualidades
cia de uma orquestra para acompanhar técnicas, defendendo seu Basílio com seguran-
uma companhia deste porte, a péssima ça e humor. Mas o grande destaque da noite
qualidade acústica da sala e o exíguo ta- foi Viengsay Valdés. A bonita solista construiu
manho do palco impediram que o público sua Kitri de forma primorosa, equilibrando
carioca pudesse, de fato, conhecer e até sensualidade e alegria e, principalmente, pas-
apreciar a versão de Dom Quixote assina- sando ao largo da vulgaridade, como muitas
da por Alicia Alonso – a ainda ativa legen- vezes ocorre. Sua competência técnica alia-
da viva da dança do século XX – a partir da a sua presença carismática em cena foi
da coreografia de Petipa. Mestre da utili- decisiva para salvar a meteórica passagem da
zação do corpo de baile,Petipa soube como companhia cubana pelo Rio de Janeiro.
ninguém organizar os conjuntos de baila- Uma pena que o Rio de Janeiro não te-
rinos em linhas geométricas que, ao recor- nha merecido, dos produtores brasileiros da
tarem a cena, conduziam o olhar do espec- turnê, o mesmo cuidado das outras capitais,
tador na direção das variações realizadas onde o Ballet Nacional de Cuba será apre-
pelos solistas, apoiadas nas linhas de fuga sentado em palcos de qualidade.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 21 DE NOVEMBRO • 2006

Para acertar
o passo da dança
I Encontro Nacional de Companhias Oficiais, realizado em
Salvador com grupos de todo o País, se transforma em
palco histórico de mobilização

OBERTO P EREIRA

E m 1961, na cidade de Curitiba (PR),


aconteceu um histórico encontro das es-
colas de dança do Brasil. Era o momento em
dades do ensino da dança por aqui, preten-
deu mapear problemas e soluções desse tipo
tão próprio, e ao mesmo tempo tão antigo,
que os profissionais ligados a essa linguagem de constituição de um grupo de dança, ain-
artística começaram a perceber que algumas da mais num país como o Brasil.
relações deveriam ser tecidas no ensino das Esse encontro já nasceu histórico. Con-
técnicas de dança, que se intensificava sem seguiu reunir diretores de companhias ofi-
muito controle de norte a sul do País.Além de ciais de norte a sul do País, além de contar
discussões, vários artistas importantes se apre- com pequenas apresentações no principal
sentaram, fazendo daquele evento uma espé- teatro da cidade, onde se deu a estreia de
cie de congresso de dança. Nada mais urgen- Devir, obra especialmente coreografada por
te naquele momento, quando se lembra que a Mário Nascimento para a companhia baia-
primeira escola brasileira de dança havia sido na. São as seguintes companhias que parti-
criada 37 anos antes, no Rio de Janeiro. ciparam do encontro: Ballet do Theatro
Neste último fim de semana, em Salva- Municipal do Rio de Janeiro, a mais antiga,
dor (BA), um encontro semelhante e de que neste ano completou 70 anos, Cia. de
igual importância e contando com o mesmo Dança do Palácio das Artes (MG), Balé da
pioneirismo foi criado, fazendo parte das co- Cidade de São Paulo, Balé do Teatro Guaí-
memorações dos 25 anos do Balé do Teatro ra (PR), Balé do Teatro Castro Alves (BA),
Castro Alves. Trata-se do I Encontro Nacio- Cia. de Dança do Amazonas, Companhia de
nal de Companhias Oficiais, que reuniu, Danças de Diadema (SP), Ballet de Londri-
durante três dias, dez companhias que têm na, Cia. de Dança de São José dos Campos
em comum o fato de pertencerem a órgãos (SP), a mais jovem delas, com apenas um
públicos, sejam eles da instância municipal ano de existência, e o Balé da Cidade de
ou estadual. Um evento que, assim como Teresina, no Piauí. Ausentes ficaram apenas
aquele que pretendia discutir as especifici- três: Ballet de Niterói, Companhia de Dan-

132
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
ça de Caxias do Sul (RS) e Companhia de volvido nesse tipo de companhia o vigor físi-
Dança de Natal (RN). Embora tão distan- co é condição primeira. A discussão tocou na
tes e muitas vezes com perfis artísticos bas- possibilidade de se requerer uma aposenta-
tante diferenciados, ficou evidente que al- doria com 20 anos de exercício profissional
guns problemas, alguns deles muito sérios, e deste desejo resultou uma carta solicitan-
são compartilhados por todas elas. do à câmara setorial de dança, junto à Funar-
Este encontro serviu então como uma es- te, uma atenção maior para essa questão.
pécie de um check-up dessa estrutura tão com- O segundo desafio foi o da circulação
plicada de companhia oficial, que remonta os desse tipo de companhia, muitas vezes com
tempos barrocos franceses de Luís XIV e que um staff enorme de profissionais, o que in-
ganha sua tradução brasileira nos dias de hoje. viabiliza apresentações fora da cidade onde
Os problemas são ainda bastante barrocos no estão sediadas. Só o Ballet de nosso Theatro
sentido de ainda estarem, muitas vezes,atre- Municipal, por exemplo, conta hoje com
lados ao poder público e às sucessivas gestões cerca de 100 profissionais envolvidos dire-
políticas que frequentemente não garantem tamente em suas produções. Mas nem todas
uma continuidade nos processos.Isso,em arte, as companhias são assim. O Ballet de Lon-
e em dança mais especificamente, resulta num drina, com seus 10 bailarinos, viaja o Brasil
grave problema. As ideias para se tornare m todo de ônibus, apresentando-se muito lon-
dança, e para ganharem corpo,literalmente ge da cidade paranaense que o sedia: tantos
falando,levam tempo. perfis de companhias quanto brasis.
Mas dentre todos os acertos e desafios, Dessa questão, ficou o projeto a ser lide-
dois se tornaram pauta desse primeiro en- rado por Eliana Pedroso, ex-bailarina do Te-
contro. O primeiro se refere a um grave e atro Castro Alves e atual produtora cultural
urgente problema na forma de contratação de Salvador, que tem a perspicácia de ante-
dos artistas ligados diretamente a esse tipo ver como uma iniciativa como essa, também
de empreendimento artístico,como bailari - pioneira, pode ganhar força artística, e por
nos,diretores,ensaiadores e técnicos.Várias que não política, nesses próximos quatro anos
estratégias são adotadas pelas companhias, de uma nova configuração governamental.
muitas vezes de forma não totalmente de Esse I Encontro Nacional de Companhi-
acordo com as leis trabalhistas brasileiras, as Oficiais deu oportunidade a todos os seus
como forma de driblar,por exemplo,apráti- diretores de perceber como suas práticas ar-
ca de concurso público que legitimaria esse tísticas estão comprometidas com uma atitu-
artista como um funcionário estatutário.Des- de política e de como isso, salvaguardadas as
se modo,para muitas companhias públicas, devidas diferenças regionais, é comum a to-
seus bailarinos ficam à mercê das intempé- das elas. Para o bem e para o mal. Até mes-
ries políticas, o que gera uma insegurança mo para se perguntar qual é a verdadeira
refletida diretamente na produção artística. viabilidade desse modelo de companhia que
Outro problema daí resultante é o da hoje reúne cerca de 500 profissionais em todo
aposentadoria, sobretudo para bailarinos,que o País. Profissionais que podem dizer, com
deveriam ser considerados uma categoria orgulho ou não, que sobrevivem trabalhan-
especial, já que para o tipo de dança desen- do naquilo que mais amam: a dança.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 2 5 D E N O V E M B R O • 2 0 0 6

No sentido da
renovação constante

OBERTO P EREIRA

P ara pensar a importância dentro do ce-


nário nacional da 15ª edição do festi-
val Panorama de Dança, há que nunca se
pensamento, as imbricações da dança com
outras linguagens. Nayse e Eduardo resguar-
dam na continuidade da história do festival
afastar do sentido etimológico da palavra o que lhe é mais caro: o sentido de renova-
que lhe dá o nome: pam, do grego, significa ção, de transformação constante.
tudo ou todos, enquanto orama carrega o Entendendo essa premissa, entende-se
sentido de espetáculo. Ao se juntarem essas também porque não há como julgar um fes-
duas ideias, entende-se exatamente o que se tival como esse com critérios apenas em
propõe esse festival desde sua criação, em apreciações individuais dos espetáculos. Há
1992, pela coreógrafa Lia Rodrigues: fazer que se pensar no todo, no sentido de pam que
com que o público possa se servir do que ele abriga, para perceber que o que ali é
existe hoje, no mundo, de uma dança con- apresentado não tem, de modo algum, a von-
temporânea de ponta. Tarefa árdua, porque tade ou a necessidade de agradar, mas a pos-
ao ser panorama, o festival não pretende sibilidade de promover discussão.E isso,nes-
trazer consigo tudo do que se nomeia dança sa edição,foi alcançado,mais uma vez.
contemporânea, mas antes aquela que inco- Assim, pensar que trabalhos mais frágeis,
moda, ou melhor, que comove, no sentido como Feique – Em algum lugar, porém aqui,
também de fazer mover algo naquele que da companhia paranaense Verve, ou alguns
entra em contato com ela. Uma dança que mais maneiristas de um tipo de dança contem-
faz pensar. porânea, como Médelei: Eu sou brasileiro e não
Essa edição de 2006 não foi diferente. existo nunca, do paulistano Christian Duarte,
Contando com Nayse López e Eduardo Bo- torna-se quase que um segundo momento,
nito na curadoria desde que Lia deixou o menos importante. Mais proveitoso seria en-
festival no ano passado, o Panorama segue tendê-los num todo que redimensiona cada
seu curso, pois mesmo com as mudanças, sua obra, pelo fato de pertencer a um festival, por
linha mestra ainda está lá. A diversidade, o ter passado por uma curadoria como essa.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
Funcionando assim, entende-se como a terem em comum o viés de uma simplicida-
obra Lehmen Lernt, do alemão Thomas de tão sofisticada, que assusta pelo que há
Lehmen, reflete, já com claros sintomas de de contrassenso nisso: I am here, do por-
exaustão da própria linguagem que inaugu- tuguês João Fiadeiro, e Porta das mãos, do
rou, o que o coreógrafo aqui deixou num carioca Michel Groisman. Essas amostras
workshop em 2002, influenciando trabalhos apontam para o sentido do festival como um
de artistas importantes como Dani Lima, todo. Estão nelas as potencialidades de tudo
Marcela Levi, Gustavo Ciríaco e Denise o que faz pensar, para que o Panorama pos-
Stutz. Fazer essa conexão é aprender a ler sa continuar sendo panorama.
esse panorama. Possibilita ao público chan- Mais um último ponto para se pensar: o
ces de aprendizagem. Panorama de Dança não conta mais com o
E dentro desse fio de continuidade, de apoio da Prefeitura da cidade. Que bom que
conexões,há sempre o lugar para o absolu- ele conseguiu sobreviver a esse descaso.
tamente novo.No caso dessa última edição, Mas tal fato nos faz indagar: onde estaria
dois exemplos podem ser pinçados,por con- mesmo a dança no âmbito municipal?

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA
QUARTA-FEIRA•• 27 DE DEZEMBRO • 2006

Ensaios de uma
política para a dança no País
OBERTO P EREIRA

N ovas esperanças de uma política cul-


tural efetiva para a dança foram a
marca mais significativa do ano de 2006.
da não mostrou a que veio. Um oásis nesse
deserto ainda continua sendo o Espaço
SESC, endereço oficial da dança carioca.
Mas atenção: estamos falando de uma polí- Mesmo assim, nossos artistas mostraram
tica no âmbito federal! Com o “ressuscita- excelentes trabalhos nesse ano. Destacam-
mento” da Funarte, prêmios de produção e se Extracorpo, de João Saldanha, Terceira
circulação de espetáculos de companhias margem, de Renato Vieira, Isadora.orb, de
brasileiras trouxeram novos ânimos para a Andréa Jabor e Teorema, de Márcia Rubin.
área. Só o Prêmio Funarte Klauss Vianna, Entre os mais frágeis, ficaram o oportunista
centrado na produção, agraciou 140 proje- Dínamo, de Deborah Colker, e o amadores-
tos em todo o Brasil, sendo 18 do Rio de Ja- co Maratona Quintana, de Regina Miranda.
neiro, como os de João Saldanha e Márcia Já o Ballet do Theatro Municipal, mesmo
Milhazes. com sucessivas direções artísticas, acer-
Já o prêmio dedicado à circulação das tou com seu Lago dos cisnes, provando que
companhias, algo até então muito difícil Cecília Kerche é nossa primeira bailari-
nesse país, a Caravana Funarte Petrobras de na absoluta.
Circulação Nacional, contou com 30 ganha- Os festivais importantes continuam os
dores; entre eles, 6 daqui, como a jovem Fo- mesmos: o Solos de Dança no SESC e o Pa-
cus Cia. de Dança e Andréa Jabor. Além norama de Dança, ressaltando ainda o Dan-
disso, a Funarte apoiou festivais de dança ça em Foco, único no País dedicado apenas
pelo País, entre os quais o carioca Panora- ao vídeo-dança.
ma de Dança, nosso mais importante festi- O parco cardápio de atrações internacio-
val, que completou 15 anos de existência. nais deixou apenas uma Louise Lecavallier
Se essa situação nos deixa otimistas, o como a melhor opção, do lado oposto de um
proporcionalmente inverso acontece a ní- histórico Ballet de Cuba ofertado no inapro-
vel municipal: não há mais a histórica sub- priadíssimo Canecão.
venção das companhias da cidade, não há O ano de 2006 foi para a dança brasilei-
mais bolsas de pesquisa (como as do faleci- ra. Melhor assim. E a dança carioca, como
do Instituto RioArte) e não há mais política sempre, figurou vigorosa, mesmo com todas
de ocupação dos teatros, restando apenas um as adversidades que a cercam em sua pró-
subutilizado Centro Coreográfico, que ain- pria cidade.

136
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2007 CRÍTICAS

JORNAL DO BRASIL - 16 DE JANEIRO DE 2007


Entre o clássico e o contemporâneo
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 19 DE JANEIRO DE 2007


Pretensão de menos faz bem ao grupo
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 22 DE JANEIRO DE 2007


Bailarinos em busca de uma filosofia para os movimentos
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 26 DE JANEIRO DE 2007


Novo palco revela limites do trabalho
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 11 DE MARÇO DE 2007


Novas alquimias entre bailarinos e coreógrafos
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 19 DE MARÇO DE 2007


As grandes estrelas são os bailarinos
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 21 DE MARÇO DE 2007


Festa brasileira no melhor dos sentidos
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 7 DE ABRIL DE 2007


Reverência ao passado de olho no futuro
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 9 DE ABRIL DE 2007


Tons monotemáticos abrem temporada de apresentações no CCBB
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 13 DE ABRIL DE 2007


Festival revela o trabalho da ótima Focus Cia. de Dança
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 20 DE ABRIL DE 2007


Sintomas e clichês contemporâneos
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 27 DE ABRIL DE 2007


Festival apresentou pluralidade, mas ficou devendo em coerência
ROBERTO PEREIRA

137
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL - 7 DE MAIO DE 2007
Projeto joga novas luzes sobre o exercício do papel da bailarina
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 13 DE MAIO DE 2007


Presença, vigor e segurança em obras a serviço de uma bailarina
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 25 DE MAIO DE 2007


De complexo não há nada. Só exagero
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 28 DE MAIO DE 2007


Vigor e beleza que, sozinhos, não fazem um bom espetáculo de dança
SILVIA SOTER

O GLOBO - 14 DE JUNHO DE 2007


Municipal respira ar contemporâneo
SILVIA SOTER

O GLOBO - 20 DE JUNHO DE 2007


Bailarinos de até 22 anos firmes como veteranos
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 26 DE JUNHO DE 2007


Tubos de ensaio ainda em estudo
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 27 DE JUNHO DE 2007


A poética sem concessões de Marcela Levi
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 9 DE JULHO DE 2007


Lia Rodrigues faz obra-prima da dor
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 20 DE JULHO DE 2007


Bailarino visionário em mais um belo desafio
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 20 DE JULHO DE 2007


O mestre diante do mestre
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 27 DE JULHO DE 2007


Mistura de gêneros que não dá liga
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 17 DE AGOSTO DE 2007


A construção de um novo vocabulário
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 18 DE AGOSTO DE 2007


Estranhamento e fricção num caldeirão de referências urbanas
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 20 DE AGOSTO DE 2007


Nem a dama do teatro se ajusta
ROBERTO PEREIRA

138
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO - 24 DE AGOSTO DE 2007
O desafio de se tornar profissional
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 20 DE SETEMBRO DE 2007


No programa, uma boa dose de humor eficiente
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 5 DE OUTUBRO DE 2007


O mapa da dança contemporânea
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 10 DE OUTUBRO DE 2007


Estreia da Cia. da Ideia surpreende
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 13 DE NOVEMBRO DE 2007


A dança baila entre linhas e entrelinhas
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 2 DE NOVEMBRO DE 2007


Descompasso entre o tema e a coreografia
SILVIA SOTER

O GLOBO - 4 DE NOVEMBRO DE 2007


Criação como diálogo de diferenças
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 10 DE DEZEMBRO DE 2007


Excesso de devoção em espetáculo sem desafios
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 13 DE DEZEMBRO DE 2007


A proposta é clara, mas a dança é sem ousadia
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 17 DE DEZEMBRO DE 2007


Bela récita, apesar dos nós
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 18 DE DEZEMBRO DE 2007


O balé de uma nota só
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 20 DE DEZEMBRO DE 2007


Alegria para encerrar a temporada de balé
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 21 DE DEZEMBRO DE 2007


A coreografia como organismo vivo
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 22 DE DEZEMBRO DE 2007


Coreografia precisa, como um ato cirúrgico
SILVIA SOTER

O GLOBO - 27 DE DEZEMBRO DE 2007


Os melhores espetáculos de dança de 2007
SILVIA SOTER E SUZANA VELASCO

139
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
140
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 16 DE JANEIRO • 200
20077

Entre o clássico
e o contemporâneo
OBERTO P EREIRA

A temporada de dança de 2007 foi aber-


ta nesta última sexta-feira pela
DeAnima Ballet Contemporâneo, compa-
que dialogue com o que há de contemporâ-
neo na gramática tão sistematizada do balé
clássico, tal como vem fazendo o coreógrafo
nhia dirigida pelo lendário bailarino Ri- William Forsythe, sua grande fonte de inspi-
chard Cragun, com o espetáculo Duas ou três ração,com certeza. Isso fica claro em Drumming.
coisas sobre o amor, no Teatro Cacilda Be- Já os bailarinos,todos muito jovens e vi-
cker. Simbolicamente, seria importante que gorosos tecnicamente, sobretudo o naipe
tal temporada começasse mesmo no único feminino,precisam aprender uma lição fun-
teatro exclusivo para a dança no Rio de Ja- damental para se tornarem profissionais:
neiro, não fossem alguns problemas sérios que não confundir dança com exibicionismo.
teimam em persistir por lá. Um deles é a ine- Porque quem padece com esse mal é a pró-
xistência de ar-condicionado, sobretudo em pria obra, que não ganha dimensão artísti-
tempos de verão como esses. E outro, mais ca e passa a ser mero pretexto para bailari-
persistente, é o barulho inoportuno de seus nos mostrem suas habilidades técnicas.
funcionários no foyer durante os espetáculos. Na coreografia Duas ou três coisas sobre
Para a temporada do DeAnima, o teatro ain- o amor, felizmente, esse tom de exibição fica
da não se adequa esteticamente, já que esse mais esmaecido e a qualidade de movimen-
tipo de companhia pede um palco mais am- to pretendida por Oliveira tem mais chan-
plo e com maior distância da plateia. ce de aparecer. O solo do excelente Éliton
Contando com duas obras, Drumming e Barros prova isso.Nele,só a dança aparece.
outra que dá nome ao espetáculo, ambas Uma dança que pode ser cada vez mais con-
assinadas por Roberto de Oliveira, a temporânea se encontrar um modo todo seu
DeAnima parece ainda tatear um lugar de de estar no mundo.Oliveira parece ter en-
intersecção entre o balé e a dança contem- tendido isso.Falta agora a tarefa mais árdua:
porânea. Oliveira encontra-se em pleno fazer desse entendimento sua assinatura
processo de busca de um vocabulário seu, coreográfica.

141
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 19 DE JANEIRO • 200
20077

Pretensão de menos
faz bem ao grupo
Duas ou três coisas sobre o amor: Novo espetáculo da
DeAnima mostra um rumo para a companhia

ILVIA S OTER

O novo espetáculo da DeAnima se re-


sume a duas curtas coreografias assi-
nadas por Roberto de Oliveira. A compa-
al produzida nos rostos. Outro ponto que
prejudica Drumming é a situação de are-
na do Teatro Cacilda Becker, inadequada
nhia que tem direção artística de Richard para o desenvolvimento espacial da coreo-
Cragun está em cartaz até domingo no Tea- grafia. O que Oliveira consegue construir no
tro Cacilda Becker com Duas ou três coisas diálogo entre música e movimentação, ape-
sobre o amor. nas fica sugerido nas figuras e nos desenhos
Drumming, a primeira coreografia da no espaço. A peça ganharia força num palco
noite, tem música de Steve Reich. Apoian- maior e numa situação de cena italiana.
do-se na estrutura seriada da música, Oli- Em Duas ou três coisas sobre o amor,
veira parte de uma frase de movimento para Roberto de Oliveira discorre sobre algumas
desdobrá-la, tornando-a ora mais simples, facetas do amor. O amor que pode ressuci-
ora mais complexa e perseguindo os cami- tar, o amor entre homem e mulher ou o amor
nhos apontados pela base inicial. Nesta peça, entre pessoas do mesmo sexo são algumas
a mais abstrata do espetáculo, Roberto de das situações sugeridas em solos, duos, trios
Oliveira consegue construir um vocabulário e conjuntos. Apesar da literalidade na abor-
de movimento coerente, apoiado na ondula- dagem do tema, a coreografia possui alguns
ção de braços e tronco, na marcação rítmica bons momentos, sobretudo nos duos.
dos quadris e na desarticulação dos gestos, a Desde sua criação a DeAnima tem bus-
última de evidente inspiração forsytheana. cado seu lugar na cena da dança carioca.
Pena, no entanto, que a linha de interpre- Neste sentido, Duas ou três coisas sobre o
tação dos bailarinos carregue nos sorrisos e amor é um acerto. Menos pretensioso que os
nas expressões faciais. A coreografia de projetos anteriores, o espetáculo apresenta
Roberto de Oliveira tem qualidades sufi- uma companhia que se caracteriza pela ju-
cientes para provocar diferentes emoções ventude dos bailarinos e pela boa qualida-
no espectador e dispensa a alegria artifici- de técnica.

142
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 22 DE JANEIRO • 2007

Bailarinos em busca de uma


filosofia para os movimentos

OBERTO PEREIRA

O Espaço SESC , endereço oficial da


dança carioca, abriu sua temporada de
2007 na quinta-feira, com o espetáculo Moven-
tros de alguma coisa que ainda precisa tomar
o corpo e se tornar dança, se tornar movente,
no que há de continuum disso.
te, de Paula Nestorov. Preocupada em investi- A segunda palavra, adorno, aparece
gar as especificidades do movimento a partir como conceito negativo no texto do progra-
de conceitos filosóficos, a coreógrafa expõe, ao ma: o espetáculo “prescindiria de adornos”.O
lado de seus três bailarinos e do músico Anto- que se pode ler aqui, talvez, é que a palavra
nio Saraiva, o resultado de sua pesquisa. adorno seja justamente o que falta àquela pes-
Duas palavras ajudam a entender um quisa para se tornar orgânica como espetácu-
pouco como esse resultado chega à cena. A lo de dança, como ela o intenta. Esses adornos,
primeira é o próprio título do espetáculo necessários enfim, deveriam ser resgatados
(movente) e a segunda está presente no tex- por Nestorov para que suas inquietações tão
to do programa (adorno). Para o que se or- pertinentes possam ser apresentadas numa
ganiza ali como espetáculo, torna-se neces- cena, num palco, para um público.
sário pensar o que poderia ou não estar Curiosamente, movente e adorno apare-
imbricado entre esses dois conceitos. cem de forma exemplar na qualidade da
Ao tomar o próprio movimento e suas es- dança do bailarino Boris Hennion. Estão ali
truturas, combinadas e recombinadas no pró- as imbricações do que é só movimento com
prio fazer da cena, como sua preocupação pri- o que o faz mover. E esse desejo aparente é
meira, Nestorov parece deixar pouco visível, adornado pela atitude de se saber em cena,
infelizmente, o que as faz mover. A ideia pro- de maneira tão completa, tão singular, e
pulsora, ou ainda, o desejo do movimento, que sobretudo tão respeitosa a quem o assiste.
também o é, sobretudo na dança, não apare- Seria, desse modo, essa qualidade uma pos-
ce, não se desvela. Isso se torna ainda mais sível matéria-prima para que Paula Nesto-
claro quando a própria coreógrafa dança. O rov comece a transformar sua pesquisa, tão
que se consegue apreender são vestígios, ras- séria, em espetáculo?

143
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE JANEIRO • 2007

Novo palco revela


limites do trabalho
Movente: Colaboração entre Paula Nestorov e
Antonio Saraiva estreita os laços entre gesto e voz

ILVIA S OTER

R esultado dos últimos três anos de in-


vestigação de Paula Nestorov e de sua
companhia, Movente está em cartaz até dia
é seu ponto forte, é também sua maior ques-
tão. Todo o esforço da coreógrafa parece se
concentrar na tentativa de eliminar o que
11 de fevereiro no mezanino do Espaço SESC. poderia remeter a peça à artificialidade da
O que interessa em Movente é o que representação. Na forma como o palco é ocu-
emerge de cada corpo, no momento em que pado, nos tempos de entrada e saída dos in-
emerge. Uma dança que se insinua, se desen- térpretes de cena, no figurino, ou ainda na
volve e se desmancha e que, muitas vezes, escuta que cada um estabelece com seu pró-
permanece apenas como potência. A maté- prio movimento e com o do outro, esta preo-
ria de Movente é a forma única que cada cupação está presente. Paradoxalmente, pou-
corpo tem de mover-se, construindo uma cas propostas são mais ambiciosas do que a
melodia cinética própria e pessoal, como o aposta neste despojamento. Se o galpão da
tom da voz. A beleza da peça se dirige àque- Casa de Cultura da Maré-(Ceasm), onde a
les cujo olhar mais treinado é capaz de per- peça fez sua pré-estreia, se prestava com efi-
ceber e de apreciar esse gesto que tem a sin- ciência para o projeto, o mezanino do Espa-
gularidade de uma impressão digital. A co- ço SESC aponta suas fragilidades e limites.
laboração entre Paula Nestorov e o músico Dentro de um teatro, com divisão entre pal-
Antonio Saraiva estreita os laços entre ges- co e plateia, público presente e iluminação,
to e voz. Esta relação é enfatizada pela in- criar esta atmosfera torna-se uma tarefa ár-
tervenção de alguns dos intérpretes que po- dua que Movente nem semprerealiza. A in-
dem estar no centro do palco, em paragem da que a música de Antonio Saraiva e a pre-
ou em movimento, ou nas margens da cena, sença dos intérpretes, sobretudo de Bori s
contribuindo vocalmente. Em Movente, até Hennion, garantam momentos de intensida-
o palco vazio reverbera som e movimento. de, o despojamento e a aparente simplicida-
No entanto, talvez não seja apropriado de da peça acabam por mascarar as nuances
tratar Movente como um espetáculo. Se esse que garantiriam seu interesse e sua beleza.

144
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMI
DOMINN GO
GO••11 DE MARÇO • 200
11 7
2007

Novas alquimias entre


bailarinos e coreógrafos

OBERTO PEREIRA

A principal mostra de dança do primei-


ro semestre da cidade do Rio de Ja-
neiro teve início na última quinta-feira, tra-
Ou ainda, entre coreógrafos e bailarinos,
relação não tão óbvia quanto parece.
O primeiro solo da noite, Acídia, do pau-
zendo, como sempre, ótimas possibilidades lista Luís Fernando Bongiovanni, trouxe as
de discussão, próprias da dança contempo- reflexões de São Tomás de Aquino à cena,
rânea. O Solos de Dança no SESC mostrou, para discutir uma tristeza que se poderia tra-
mais uma vez, novas combinações de co- duzir em uma espécie de preguiça. Para tan-
reógrafos e bailarinos que nunca, ou quase to, o coreógrafo contou com a precisão físi-
nunca, haviam trabalhado juntos. O resulta- ca da excelente bailarina Fabiana Nunes,
do é sempre um lugar híbrido de linguagens numa adequação elegante de seus propósi-
que os dois artistas inauguram em um curto tos num corpo que dança. Apenas uma cer-
tempo de convívio. E, para entendê-lo, há ta previsibilidade poderia ter sido driblada
que se lembrar sempre desse último dado. para que a ideia de ausência de perspecti-
A edição desse ano tem uma novida- va presente no conceito de acídia pudesse
de: sua idealizadora e curadora, Beatriz ser traduzida coreograficamente com
Radunsky, lançou um desafio temático aos maior justeza. E a noção de repetição não
16 bailarinos e coreógrafos que tomam par- se confundiria com a de previsível.
te da mostra, dividida em duas semanas, com Em Unheimlich, Natasha Mesquita en-
quatro solos cada uma. A partir de um poe- controu-se com a coreógrafa mineira Suely
ma de autoria de Alice Ruiz, Acertar o alvo, Machado num passeio inquietante pela lu-
todos tiveram de se deparar com os sete pe- xúria e pela gula, não sem recuperar o sen-
cados capitais como fonte primeira de seus tido da palavra alemã que dá título à obra:
trabalhos. Tal desafio, aliado ao ineditismo estranho. Aqui, sem dúvida, trata-se de um
das parcerias, mostrou logo nessa primeira bom exemplo de como o tempo de convívio
semana o quão difícil é estabelecer pactos entre criador e intérprete às vezes é crucial.
temporários entre criadores e intérpretes. Natasha ainda carece de uma entrega mais

145
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
visceral ao que se propõe em cena, para que mental. O público ficou com a respiração
o tema a inunde realmente, tomando seus suspensa. Era o mínimo que podia acontecer.
movimentos. Nada que Suely não pudesse Fechando a noite, Bruno Cezário, baila-
burilar em mais alguns ensaios. Mas o que rino ímpar que constrói uma sólida carrei-
aparece é ainda quase postiço. E os passos ra no exterior (hoje no Ballet de Lyon –
de dança, dispensáveis ao final do trabalho, França) convidou o coreógrafo japonês
poderiam dar lugar ao puro gozo que se Shintaro Oue para compor Feche os olhos
anuncia em todo seu belo início. e você verá o que não pode ver. Sem dúvi-
O mais belo momento da noite veio com da, trata-se do trabalho mais frágil de todo
Caminho aberto, numa parceria instigante o programa. A exuberância da dança de
entre Paula Águas e o coreógrafo Mário Bruno não encontrou ressonância na ideia
Nascimento.O retorno de Paula à dança que de Oue e o resultado, confuso e cambale-
sempre lhe coube provou mais uma vez que ante, fica aquém da potencialidade do bai-
se trata de uma das mais completas bailari- larino, infelizmente. Um bom começo para
nas brasileiras. Seu vigor técnico atingiu se decupar a ideia que ali apenas se insi-
maturidade que compreende com uma ra- nua seria avaliar, com urgência, a perti-
pidez desconcertante a ideia do coreógrafo. nência daquele figurino.
Mario parece ter percebido isso também A primeira semana no Solos prova que
rapidamente. E o que se vê em cena é um sua importância para a cena carioca irriga
arroubo milimétrico de novas relações en- pensamentos. Não há outra função mais fun-
tre o movimento e a própria interpretação damental. Não nesse momento, quando o
deles.A qui, apresença de Daniela V isco para SESC continua sendo a única casa da dança
auxiliar nessa equação mostrou-se funda- nessa cidade.

146
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 19 DE MARÇO • 2007

As grandes estrelas
são os bailarinos

OBERTO PEREIRA

A segunda semana dos Solos de dança


no SESC trouxe quatro novos traba-
lhos que fazem dela um programa sem dú-
to, há como se detectar no corpo que ali dan-
ça suas influências a partir dos coreógrafos
com quem já trabalhou, mostrando sua ma-
vida mais interessante do que a primeira turidade. Apenas a duração do solo, um tanto
semana. Novamente, a grande estrela da esgarçada, poderia ser repensada a partir de
noite são os próprios bailarinos, apontando uma coerência na trilha sonora, o que faria
para uma possível crise pela qual devem estar em sintonia com a luz certeira assina-
estar passando nossos coreógrafos. da por Luiz Oliva e pelo próprio Paulo.
O primeiro solo, intitulado Lado B, tenta Maturidade também parece ser a pala-
expurgar uma ferida histórica, aliando co- vra-chave para se depreender as ideias que
micidade e ironia ácida. João Wlamir, en- estão por trás de Percurso coerente para um
saiador do Ballet do Theatro Municipal, mos- corpo impertinente, solo que traz a bailari-
trou a excelente Laura Prochet, sua colega na Andrea Bergallo coreografada por outra
de companhia, como uma típica bailarina de bailarina, Denise Stutz. O interessante é o
corpo de baile, desnudando seus pensamen- entrecruzar de maturidades dessas duas ar-
tos durante um ensaio geral. Não há como tistas presente em toda a coreografia, fazen-
negar que boa parte da plateia da noite de do saltar aos olhos o lugar do bailarino,do
estreia sabia do que se tratava, o que com- intérprete, ofício que as duas conhecem tão
prova a pertinência de se exorcizar esse tipo bem. O resultado é o puro estado desse ele-
de pensamento entre os bailarinos de uma mento fundamental do fazer coreográfico e
companhia. Apenas uma coesão maior po- isso é desvelado com precisão e poesia por
deria deixar esse solo mais enxuto e talvez Denise e Andréa.
assim mais impactante. Fechando a noite e a mostra, a mestra
Em ...algum início..., Paulo Marques cons- Carlota Portella reencontra um ex-integran-
trói uma elegante trajetória coreográfica te de sua companhia, Inho Sena, no solo
para o bailarino Rodrigo Maia. Nesse traje- O prato da balança.Toda cumplicidade de

147
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
anos trabalhando juntos reaparece em cena, te modo de se olhar toda a programação
formando um elo intenso de compreensão da noite. Um dos pratos usados por Carlo-
mútua entre bailarino e coreógrafo. A bela ta/Inho é oferecido pelo bailarino a uma
investida em movimentos precisos contras- pessoa da plateia. Na ocasião, essa pessoa
taria com primazia com a ira estampada no era ninguém menos que Tatiana Leskova,
ato de quebrar pratos, se não fosse truncada a grande mestra do balé. Ela, em sua sa-
pela trilha sonora que excede às vezes em gacidade, não hesitou em também arre-
seu sentido narrativo e também por peque- messar seu prato ao centro do palco, que-
nos gestos por demais dramáticos de Inho. brando-o. Seu gesto inteligente de ira con-
Em sua balança, Carlota ainda deveria per- versa com o primeiro (e por que não, com
seguir o peso justo desses elementos. Há que todos) solo da noite, deixando-a redonda.
se comentar a poética iluminação de Deise Tanto Leskova quanto os Solos de Dança
Calaça, sobretudo ao final da obra. no SESC acertaram seu alvo, recuperan-
Aliás, na noite de estreia, justamente do o título do poema de Alice Ruiz que
o final dessa obra sugeriu um interessan- norteia toda a mostra.

148
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 21 DE MARÇO • 2007

Festa brasileira no
melhor dos sentidos

OBERTO PEREIRA

P arece uma festa barroca: música, dan-


ça e poesia entrelaçando-se. Parece
uma festa romântica, daquelas que acredi-
também ilustrativo de um mundo que nos
pertence ao mesmo tempo que ainda nos é
desconhecido, infelizmente. Apenas a cena
tam poder conservar o que há de mais puro da morte do boi com a personagem da mé-
da cultura popular. Na verdade, Pelos ma- dica travestida torna-se absolutamente dis-
res da vida, espetáculo que comemora 20 pensável nesse contexto, pois não combina
anos da Companhia Folclórica do Rio – com a elegância de todo o resto. E, contan-
UFRJ,que esteve em temporada no Teatro do com músicos tão competentes, há que se
Cacilda Becker, é uma festa brasileira, no repensar o uso de música gravada em pou-
melhor dos sentidos. cos momentos.
Aliás,todos os sentidos são mesmo agu- A grande responsável pelo espetáculo é
çados nos 90 minutos em que danças e can- Eleonora Gabriel, pesquisadora séria e apai-
tos tornam-se uma teia rica e colorida para xonada. E há que se lembrar que esse pro-
tratar de um desafio muito grande e perigo- jeto, que bravamente existe há 20 anos, per-
so: o folclore brasileiro.Sem cair em dida- tence a uma universidade pública. Os méri-
tismos estéreis, o espetáculo flui com uma tos dessa composição fazem desse espetá-
desenvoltura ao mesmo tempo correta de culo uma comemoração em seu sentido
pesquisa engajada de todos os seus 45 com- mais amplo. Num sentido de consagração
ponentes.O resultado é contagiante.Mas é mesmo. Uma consagração brasileira.

149
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 7 DE ABRIL • 2007

Reverência ao
passado de olho no futuro
OBERTO P EREIRA

A nova gestão do primeiro bailarino


Marcelo Misailidis como diretor do
Ballet do Theatro Municipal se mostra, des-
bos, pequenos ajustes podem ainda ser buri-
lados, e não há escola melhor para isso do
que a própria companhia, com suas tantas
de o início, promissora. Pela primeira vez na estrelas tão competentes.
história desta que é a única companhia de Mas a noite serviu mesmo para revelar
repertório clássico do País, um bailarino que um novo grande talento, num papel menor
fez carreira dentro dela fica à frente de seus dentro do ballet: o jovem Cícero Gomes, bai-
colegas, o que lhe permite tecer uma estrutu- larino contratado para a temporada. Vibran-
ra que respeite seus meandros, justamente por te, com técnica arrojada, concedeu o tom
conhecê-los tão bem. exato a seu bobo da corte. Merece, desde já,
Uma das provas disso é a escolha de O integrar a companhia de forma efetiva.
lago dos cisnes para abrir a temporada de Já o corpo de baile se mostra orgânico,
2007, quando esse ballet completa 130 anos. apontando que, com uma direção segura e
Ao homenagear essa que é uma das princi- sobretudo estável, tudo pode melhorar ain-
pais obras-primas da história da dança, da mais em termos de qualidade de dança
Misailidis não apenas reverencia o passa- ali solidamente construída.
do como também lança flechas para o futu- O próximo programa do Ballet do Thea-
ro. Foi exatamente isso o que foi mostrado tro Municipal deve visitar a dança con-
na récita desta última quarta-feira, quando temporânea brasileira. Nomes como o do
um elenco totalmente jovem foi designado carioca João Saldanha, do goiano Henrique
para seus principais papéis. Rodovalho e da paulista Roseli Rodrigues
Filipe Moreira, como o príncipe Siegfried, foram levantados, demonstrando mais um
mostrou que tem belas linhas e elegância acerto da nova direção. Apenas o resgate do
para o papel. Sua visível imaturidade deve espetáculo Isabel Torres,de autoria de um
ser vencida com o tempo e por isso se tor- dos mais importantes coreógrafos da atua-
nam imprescindíveis chances como essas. Já lidade,ofrancês Jérôme Bel, apresentado
Márcia Jacqueline, no duplo papel Odette/ uma única vez naquele teatro e feito espe-
Odile, evidencia que a companhia já conta cialmente para ele, merece ser considera-
com uma nova primeira bailarina. Em am- do.Fica aqui a dica.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE ABRIL • 2007

Tons monotemáticos abrem temporada


de apresentações no CCBB
OBERTO PEREIRA

F inalmente, o Centro Cultural do Ban-


co do Brasil decidiu revelar ao públi-
co o nome do responsável pela curadoria de
para a dança, três companhias foram con-
vidadas, mas apenas duas se apresentaram.
Alexandre Franco mostrou seu Corpo de
seu único evento de dança do ano, o festival papel no 2 na rotunda do prédio, promovendo
4 Movimentos, que veio substituir o impor- uma bela abertura da programação. Maduro,
tantíssimo e saudoso Dança Brasil, desde soube adequar sua dança ao espaço, desafio
2005. Trata-se de Giselle Tápias, conhecida sempre grande nesse tipo de proposta.
entre nós como promotora de diversos even- Já no palco, apresentou-se a dupla espa-
tos de dança. Tal revelação é importante, nhola Damián Muñoz e Virgínia García
pois denota, a partir do nome que assina sua com extratos de duas peças, A los ojos e Sta-
curadoria, um modo específico de agrupar ff. Mesmo com tons monotemáticos em am-
determinadas obras de dança, formando (ou bas, sem dúvida, a segunda peça foi bem
não) um pensamento sobre elas. mais interessante, sobretudo pela presen-
No caso de Tápias, tal pensamento ain- ça do excelente bailarino Alexis Fernán-
da é uma incógnita. Ao optar por aglome- dez. Já a terceira atração da noite, que vol-
rar duas diferentes mostras, a do CCBB, 4 taria a ocupar a rotunda, o paulista Marce-
Movimentos, e uma outra, que já vinha di- lo Cirino, responsável por uma estética
rigindo há quatro anos, a Dança em trânsi- bastante peculiar de dança de rua, desen-
to, deixa uma brecha de incerteza sobre a volvida para sua companhia da cidade de
pertinência desse convívio. Essa incerteza Santos (SP), inexplicavelmente não acon-
só poderá ser avaliada ao final deste mês, teceu, fato raro na cuidadosa programação
sua duração, mas uma primeira olhada em do CCBB.
como sua programação se estrutura já in- As mostras 4 Movimentos e Dança em
dicia poucas possibilidades de se perceber trânsito têm a difícil tarefa de se mostra-
uma clara linha curatorial ali. Em todos os rem orgânicas entre si e ao mesmo tempo
casos, aguardemos. representar a dança naquele espaço tão
Para a primeira noite do evento em que importante da cidade que é o CCBB. To-
o Teatro I do Centro Cultural foi usado, fato mara que dê conta disso. A dança carioca,
inédito e louvável, já que antes apenas o tão carente de espaços e iniciativas polí-
Teatro II era usado, embora inapropriado ticas, agradece.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 13 DE ABRIL • 2007

Festival revela o trabalho da


ótima Focus Cia. de Dança

OBERTO P EREIRA

A segunda semana do único evento de


dança do Centro Cultural do Banco do
Brasil, 4 Movimentos, que ocupa todo o mês
qualidades específicas de suas danças. O que
salta aos olhos nessa obra é a capacidade
explícita de Neoral em saber usar tão bem
de abril, começou anteontem mostrando-se sua matéria-prima, o movimento, em uma
mais coesa que a primeira. Com uma pro- adequação perfeita aos seus bailarinos. To-
gramação um tanto confusa e com um en- dos ali, sem exceção, fazem de Outro lugar
cerramento incompreensível no último do- a certeza de que a cidade conta com uma
mingo, ao juntar no mesmo palco a coreo- das mais promissoras companhias de dan-
grafia tão escolar Um pouco de possível se- ça, mostrando a face da nova geração, não
não eu sufoco, do iniciante Alexandre Bado, sem causar alívio a todos nós.
com a excelente e, sobretudo, profissional Já o segundo espetáculo, Basso ostinato,
Cie. Passerelle, da Bélgica, a semana passa- da Compagnie Caterina Sagna, da França,
da pouco tem a ver com essa que se inicia. ocupou o palco do Teatro I, com três ótimos
Apenas duas companhias compõem a bailarinos e uma proposta instigante. Mes-
noite deste “2º movimento”. A primeira, a mo com o visível problema de coesão da
carioca Focus Cia. de Dança apresentou-se obra, que merece ser revista em sua dura-
na rotunda do Centro Cultural, estreando ção, pôde-se perceber a maturidade de seus
Outro lugar, do coreógrafo, bailarino e seu intérpretes para o desafio nada simples que
diretor Alex Neoral. Mesmo ocupando com a coreógrafa lhes propõe. Imperdoável, no
perfeição o espaço que lhe foi destinado (tal- entanto, é o fato de não haver legenda ou
vez a melhor a fazê-lo até agora), sem dúvi- qualquer espécie de tradução do importan-
da nenhuma essa companhia deveria ter se te texto falado por eles em italiano, o que
apresentado no palco do Teatro I, já que, ela faz a obra perder, e muito, seu sentido para
sim, tem qualidade para tanto. o público carioca.
Todos os sete jovens bailarinos formam Com ótima programação, essa segunda
um grupo ao mesmo tempo homogêneo em semana nos reanima para as próximas duas
suas competências, mas que resguardam as que ainda temos pela frente. Torçamos.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 20 DE ABRIL • 2007

Sintomas e clichês
contemporâneos

OBERTO PEREIRA

T rês frágeis obras compõem o progra-


ma da terceira semana da mostra de
dança 4 Movimentos, do Centro Cultural do
para não fazer uso de recursos já tão des-
gastados.
A segunda obra, RG 123-4, assinada pela
Banco do Brasil, iniciada anteontem. Em jovem bailarina Flávia Tápias, presença obri-
comum, o uso excessivo de clichês, que po- gatória em todos os eventos que sua mãe pro-
deriam ser chamados aqui de “passos de move (Giselle Tápias é curadora
dança contemporânea”, o que acaba sendo, do 4 Movimentos), traz a cara chancela do
nesse caso, quase um oximoro. Ballet do Theatro Municipal. Três excelen-
A noite começa com Dama, solo de tes e maduras bailarinas, Betina do Dalca-
Paula Águas, coreografado por Daniela nale, Laura Prochet e Sandra Queiroz, são
Visco. A bailarina, que se apresentou mui- utilizadas de modo insípido nessa tentativa
to recentemente com um excelente solo tosca de se discutir temas como a descons-
assinado por Mario Nascimento, retorna ao trução do que existe de balé clássico naque-
palco mostrando que, mesmo sendo, sem les corpos e suas identidades, tentativa de
dúvida nenhuma, ótima intérprete, com uma jovem bailarina que agora se arvora
técnica arrojada, não foi capaz de conce- como coreógrafa – tudo isso em apenas oito
der a Dama o tom exato do que se preten- ensaios, como denuncia o próprio programa
dia ali. Problemas como falta de vocabulá- (único impresso extra). Repleta de clichês de
rio de movimentos, falta de coesão, dura- movimentos e truques fáceis de encenação,
ção por demais estendida, figurino, além de tal iniciativa coloca uma pergunta premen-
uma sequência de músicas assinada por te: Por que nossa principal companhia de balé,
Lan Lan que nada tem de trilha sonora, tão a primeira e a única do Brasil, se presta a esse
distante que está da proposta, devem ser tipo de empreendimento?
revistos com urgência. E mesmo o objeto Fechando a noite, o coreógrafo Carlos
que ali se investiga, a questão da técnica Laerte traz sua companhia, a Laso Cia. de
de dança, precisa ser mais bem estudado, Dança, com Identidade deslocada. Pade-

153
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
cendo do mesmo mal das obras anteriores, ta de diálogo fica ainda mais clara, já que
Laerte se contenta em formular o que já suas habilidades para a dança são visivel-
domina como encadeamento de passos, sem mente poucas.
se arriscar em novas possibilidades coreo- Uma mostra de dança como 4 Movimen-
gráficas. O resultado fica próximo ao já tos sabe que os problemas de um progra-
visto, não investindo nem na qualidade ma como esse são suscetíveis a qualquer
evidente de suas bailarinas, nem no diálo- curadoria. Trata-se aqui de denunciar um
go entre o movimento e o texto, mesmo que sintoma. Apenas o preço dessa denúncia
um tanto prolixo, falado pelo ator Sérgio fica esperando que alguém se mostre apto
Menezes. E é justamente nele que essa fal- a pagá-lo.Até quando?

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE ABRIL • 2007

Festival apresentou pluralidade,


mas ficou devendo em coerência
OBERTO PEREIRA

A última semana da Mostra 4 Movi-


mentos, único evento de dança do
Centro Cultural do Banco do Brasil, trouxe
espetáculo ímpar em sua carreira. Em Can-
ção, a primeira questão que salta aos olhos
é seu caminhar pela mesma trilha já aberta
ao público duas companhias: Cie. Pernette, por Henrique Rodovalho em sua obra se-
da França, e o grupo do carioca Renato Vi- minal Só tinha de ser com você, para sua
eira. Dois modos bastante distintos de se fa- companhia, Quasar. A ideia genial apre-
zer e de se pensar dança contemporânea, a sentada pelo coreógrafo goiano de fazer di-
junção que se estabelece nesta programa- alogar movimento com canção, escapando
ção, que estreou anteontem, consagra a li- ao máximo das armadilhas do literal e da
nha de curadoria eleita por Giselle Tápias. legenda, reaparece de certa forma em Vi-
A companhia francesa mostrou dois tra- eira, mas trazendo pouco de sua assinatura
balhos, ambos na rotunda do prédio do Cen- coreográfica.
tro Cultural: Pedigree e Le solo du coq. Mais Todo o empreendimento no sentido de
uma vez, ficou evidente que a escolha de tra- uma economia de movimentos e de recur-
balhos para serem apresentados naquele es- sos cênicos como trilha sonora, iluminação
paço deve ser ainda burilada pela curadora. e figurino, já sentido em sua obra anterior, o
Pouco adequado por ser uma obra intimista, que representava um grande avanço em
a primeira tornou-se quase incompreensível, sua pesquisa, parece ter sido deixado de
pois não se podia ouvir bem o texto, chave da lado. Renato Vieira talvez devesse recupe-
peça. Já a segunda, deslocada de seu contex- rar sua terceira margem novamente, e fa-
to original, pouco ofereceu de material para zer dela seu mapa de criação.
reflexão. A questão que fica é a da pertinên- 4 Movimentos termina colocando uma
cia da escolha dessa companhia, vinda de tão pergunta sobre a ideia de curadoria. Lon-
longe, para se apresentar nestas condições. ge de ser apenas quatro, a pluralidade que
O trabalho que ocupou o palco do Tea- se instaurou ali permitiu várias discus-
tro I é Canção, com coreografia de Vieira sões, tarefa primordial para uma mostra
para sua cada vez mais afinada companhia. de dança. Apenas não se pode esquecer
Sem dúvida, trata-se de uma obra de entres- que, mesmo sendo plural, existe a possibi-
safra do coreógrafo, que no ano passado brin- lidade de ser coeso. E de ser coerente. Es-
dou o público com seu A terceira margem, peremos, pois, sua próxima edição.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE MAIO • 2007

Projeto joga novas luzes sobre o


exercício do papel da bailarina
OBERTO P EREIRA

A nova versão do projeto 5 Coreógrafos


el corpo traz novamente à cena a ex-
celente bailarina Flávia Tápias,apresentan-
seria apenas subserviente ao coreógrafo, não
imprimindo nada de seu na obra. E ainda pior:
ao tentar driblar essa falsa ideia, seria neces-
do também uma boa oportunidade para a sário que ele, bailarino, se lançasse também
discussão de duas questões importantes para ao ofício de coreografar. Flávia é a prova da
a dança contemporânea hoje: a ideia de in- falácia desse pensamento, já que, nesse es-
térprete-criador e a de um corpo mestiço. petáculo, reconhece de onde parte sua cria-
Nesta versão, que estreou quinta-feira ção, lançando com competência novas luzes
passada no Espaço SESC, são apresentados sobre o exercício do papel da bailarina.
quatro novos solos – A light piece/copy that, A segunda questão é pensar como um
de Pol Coussement; Living room,de Stépha- único corpo é capaz de visitar diferentes
nie Thiersch; Je m’apelle Flávia Tápias, de estéticas (e por que não dizer também, di-
Nicole Seiller e On ne se connait pas encore ferentes técnicas), propondo pactos mo-
mai,de Thomas Lebrun – e um já visto por mentâneos entre o que é a assinatura do
nós – Solo,de Rami Levi – tendo em comum coreógrafo e as possibilidades midiáticas
o fato de serem todos de autoria de coreó- do corpo de um único intérprete. Trata-se
grafos estrangeiros e especialmente com- de uma questão contemporânea, propos-
postos para a bailarina. ta, em outros termos e com precisão, por
Essa experiência não é uma novidade. Zygmunt Bauman: “como alcançar a unida-
Flávia já havia se lançado a esse desafio em de na (apesar da?) diferença e como preser-
2005, obtendo grande êxito com outros cin- var a diferença na (apesar da?) unidade”. Em
co solos,sendo quatro de artistas brasileiros. nosso caso: Como essa bailarina apresenta-
Agora, mais madura em seu lugar de baila- se carregando em sua dança sua noção de
rina, retorna solidificando questões que são identidade?
resolvidas em seu próprio corpo. Talvez a ideia de um corpo mestiço,
A primeira delas, e que deve ser comemo- aparelhado em sua habilidade múltipla de
rada, é poder observar como Flávia tem a qua- dialogar com o diverso, possa ajudar a
lidade de quem cria a partir do seu lugar de pensar a questão. Flávia Tápias parece ser
intérprete, o que traduz a exata justaposição a prova concreta dessa mestiçagem, já que
dos termos intérprete-criador (nesta ordem e seu corpo visita com propriedade cada um
não o inverso), proposta certa vez, com total dos solos que apresenta, o que torna esse
pertinência, pela pesquisadora Silvia Soter. projeto-espetáculo um ato de recuperação
Entender isso liquida de vez com o mito da importância vital do papel do bailari-
de que o bailarino, na dança contemporânea, no na dança que se faz hoje.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 13 DE MAIO • 2007

Presença, vigor e segurança em


obras a serviço de uma bailarina
5 coreógrafos e um corpo:
Flávia Tápias dança solos contemporâneos

ILVIA S OTER

E m cartaz no mezanino do Espaço


SESC, a bailarina Flávia Tápias dá se-
guimento a uma ideia iniciada em 2005: co-
porâneos, a competência de um intérprete
pode ser medida pela capacidade do mes-
mo em adaptar-se a uma linguagem, dando
locar suas qualidades de intérprete a servi- visibilidade, através de seus movimentos e
ço de cinco diferentes coreógrafos. A primei- de sua presença, à corporeidade proposta
ra experiência contou com quatro criadores como assinatura do criador, a realidade pro-
brasileiros, um deles Giselle Tápias, mãe da fissional do intérprete nos dias de hoje é
bailarina. Na versão 2007, Flávia apresenta outra. O longo convívio com uma mesma
solos construídos para ela pelos coreógra- proposta estética, o que garantiu por muitas
fos Pol Coussement (Bélgica), Stéphanie gerações a quase perfeita integração entre
Thiersch (Alemanha), Nicole Seiller (Suí- bailarino e coreógrafo, tem sido substituído
ça), e Thomas Lebrun (França), durante uma por encontros de curto prazo que geram ape-
residência artística de três meses na Fran- nas alguns resultados e criações. O ponto in-
ça e um de Rami Levi (Israel), já presente teressante do projeto do Grupo Tápias é jus-
na versão anterior. O trabalho em cartaz dis- tamente sublinhar essas novas relações e afir-
cute os limites e as possibilidades de troca mar o lugar do bailarino no centro da obra.
entre a assinatura de um coreógrafo e as Neste espetáculo, não vemos um intér-
competências de um intérprete. prete a serviço de cinco coreógrafos e sim o
Os solos que compõem o espetáculo contrário. Cada uma das peças serve para
apontam para tendências diversas da dan- solicitar, para depois exibir, competências
ça contemporânea, passando pela já um distintas da bailarina. Flávia Tápias dá con-
pouco desgastada copresença da intérprete ta, com bastante eficiência, deste desafio e
e de sua imagem em projeção, como em A se garante até nas propostas mais teatrais,
light piece-copy that ou pela discussão da como nos solos Living room e On ne se
identidade como marca e ficção, como nas connait pas encore mai. Seu amadureci-
peças Je m’apelle Flávia Tápias e On ne se mento como intérprete é evidente. 5 Co-
connait pas encore mai, também na agenda reógrafos e 1 corpo mostra uma bailarina
da dança europeia e brasileira. capaz de circular pelas praias propostas
Se para muitos projetos da dança moder- pelos coreógrafos com bela presença, vi-
na e talvez para muitos coreógrafos contem- gor e segurança.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2007

De complexo não
há nada. Só exagero
OBERTO P EREIRA

A recorrência de dois elementos coreo-


gráficos, a frontalidade e a simetria,
em todas as sete peças apresentadas na tem-
Assim, talvez seja por esse motivo que
nos dois duos colocados de última hora no
programa, This heart e Set rise fall, se pos-
porada da companhia de dança nova-iorqui- sa ver pequenos lampejos de ousadia de
na Complexions, no Theatro Municipal, pa- Rhoden, o que os torna os dois melhores mo-
rece denunciar seu desejo de se fazer enten- mentos da noite. Neles, existem o risco e a
der e também o de tornar visível a qualida- tentativa, mesmo que dissolvidos no que o
de de seus bailarinos. Tal química nem sem- coreógrafo domina e repete sem parecer se
pre resulta em um bom espetáculo, mas com dar conta disso.
certeza agrada em cheio a plateias leigas Mas tanto a peça que abre o espetáculo,
ou pouco acostumadas a assistir dança. Red, A força e a que o encerra, Pretty gritty
Dwight Rhoden, coreógrafo-residente da suite, são emblemáticas de um tipo de fa-
companhia, não se acanha em iniciar todas zer coreográfico que aposta em truques
as suas coreografias com uma frontalidade fáceis para se fazer entender a qualquer
quase obscena, porque aposta tudo no nível preço, sempre contando com o deslumbra-
técnico de seus integrantes, que realmente mento do público pelo desempenho exibi-
respondem com eficácia ao que lhes é pro- cionista de seus competentíssimos bailari-
posto por ele. Entretanto, o exagero nas nos. Na primeira, ao remeter-se às três co-
grandes extensões de pernas, saltos e giros, res da bandeira norte-americana, tudo se
e no virtuosismo incessante que escapole à torna absolutamente escancarado no figu-
linha tênue entre habilidade e exibição, faz rino e na iluminação, além de contar com
das coreografias um mesmo modo de tratar uma gestualidade que muito se aproxima
qualquer questão, se é que realmente exis- da pantomima do balé. Já na última coreo-
te alguma que o mova a coreografar. grafia, toda feita com músicas da cantora
Já a simetria coloca em evidência uma Nina Simone, a palavra Nina aparece pro-
formação quase balética do pensamento de jetada ao fundo, quando a dança termina,
dança que se constrói ali, perpassando todo numa espécie de grand finale. Rhoden pare-
o espetáculo e concedendo um equilíbrio cê- ce não ter escapado ainda das armadilhas da
nico tosco e antigo, que remete a uma har- legenda e tudo se torna entretenimento puro.
monia empoeirada que pouco tem a ver Conclusão: De complexo, a Complexions não
com a complexidade contemporânea. tem mesmo nada.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 2
288 DE MAIO • 2007

Vigor e beleza que, sozinhos,


não fazem um bom
espetáculo de dança
Complexions Contemporary Ballet:
Pouco se salvou na apresentação do grupo

ILVIA S OTER

C om duas apresentações no Theatro


Municipal, na semana passada, o Com-
plexions Contemporary Ballet finalmente
pela profusão de movimentos nos limites ar-
ticulares, pernas altíssimas em todas as di-
reções e giros intermináveis. Nada possui
deu a partida na temporada internacional nuance ou é sutil em Red. O tratamento dado
de dança. A marca da companhia ameri- à sonoridade segue a mesma orientação:
cana é a reunir bailarinos vigorosos e, o Não há silêncio nem respiração,e sim uma
mais importante, representantes de várias série de músicas que desembocam umas nas
etnias. O programa da turnê brasileira outras. Em termos espaciais,Red também
traz, em três atos, extratos de peças cria- não vai longe.A frontalidade quase escolar
das a partir de 1998, sempre assinadas das formações de grupo é quebrada apenas
pelo diretor artístico e coreógrafo Dwight em breves momentos.
Rhoden. Apesar da beleza de alguns bai- O segundo ato é composto por peças cur-
larinos e de suas qualidades técnicas, pou- tas e mais eficientes,ainda que sem grande
co se salvou na breve passagem da Com- brilho coreográfico. Os solos, duos e trios
plexions pelo Rio de Janeiro. permitem que o público aprecie a compe-
Em Red, extrato da coreografia Anthem tência de alguns dos intérpretes.O duo Set
que trata das cores da bandeira americana, rise fall, que entrou no programa no último
fica clara a superficialidade com que Rhoden momento substituindo a peça Frankly,feliz-
trata de suas questões. Com trilha sonora mente quebra o padrão de agitação das co-
que vai de Jimi Hendrix a Astor Piazzola, reografias anteriores,trazendo um pouco de
com tambores africanos no meio, a peça lirismo à cena e explorando outras qualida-
parece sublinhar a força das influências his- des dos intérpretes,além de seus corpos es-
pânica e africana no continente americano. culturais e atléticos.A presença de Desmond
O vermelho dos figurinos é redundado pelo Richardson em Solo – intérprete e um dos
exagero da sensualidade demonstrada pe- diretores artísticos da Complexions – evi-
los bailarinos. A coreografia se caracteriza dencia a bela herança que traz de Alvin

159
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Ailey, na companhia de quem trabalhou madilha que arma. A voz de Nina Simone
como primeiro bailarino por sete anos. é tão poderosa que a dança não acrescen-
No terceiro ato, Pretty gritty suíte,tri
- ta mais nada à cena. Ainda que seja agra-
buto a Nina Simone, pretende funcionar dável apreciar o swing do grupo, neste úl-
como um grand finale, com a companhia timo ato, em muitos momentos, a vontade
entusiasmada e sorridente desfilando seus é de se deixar fechar os olhos e ouvir a
talentos pelo palco. No entanto,cai na ar- música.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 14 DE JUNHO • 2007

Municipal respira
ar contemporâneo
Coreógrafos brasileiros: Bailarinos da casa têm
alguns bons momentos dançando criadores convidados

ILVIA S OTER

O programa Coreógrafos brasileiros do


Ballet do Theatro Municipal recupe-
ra uma bem-sucedida experiência de 1997.
ção para o desenho dos espaços. A música
se mistura a ruídos urbanos e as esquinas por
onde circulam os bailarinos são sempre de-
Se naquela ocasião, os coreógrafos convida- limitadas pela luz. Ainda que a ideia seja
dos já carregavam uma grande bagagem de interessante, a peça acaba por sofrer do pe-
criações, nessa nova versão, coreógrafos ex- cado comum aos criadores iniciantes. Mar-
perientes como Roseli Rodrigues, Henrique cella Gil abusa do recurso da iluminação e
Rodovalho e João Saldanha são acompa- não consegue dar um desenvolvimento
nhados pelas debutantes Marcella Gil e mais rico à sua proposta em termos de mo-
Priscila Albuquerque. Das cinco peças apre- vimentação. O encontro entre a dança e a
sentadas, apenas duas foram criadas espe- vida cotidiana não chega aos corpos.
cialmente para a ocasião: Manipulações so- Ao despir totalmente o enorme palco do
bre as forças do vazio, de João Saldanha e teatro, valorizando pela iluminação o fun-
Tão próximos, de Henrique Rodovalho. do da cena e a passarela que atravessa a rua
Novos ventos, de Roseli Rodrigues não é e liga o teatro ao seu prédio anexo, João Sal-
inédita e está desde 1999 no repertório da danha consegue inverter a perspectiva do
Raça Companhia de Dança, dirigida por olhar do espectador em Manipulações sobre
Roseli. Já Caos’arte de Marcella Gil e Folia as forças do vazio. A boca de cena transfor-
de Priscila Albuquerque, ambas bailarinas ma-se em um fundo de corredor e o palco é
da casa, já foram apresentadas, ainda que em deste modo travestido em estúdio de dança.
estado embrionário, no espetáculo de encer- Os traços anacrônicos da arquitetura do
ramento do Primeiro workshop do Ballet do teatro ganham correspondência nos figuri-
Theatro Municipal, no final do ano passado. nos. As saias longas parecem remeter aos
A peça de Marcella Gil inspirada na tempos da dança moderna. Este trabalho
movimentação dos trabalhadores do centro segue na linha de investigação das últimas
da cidade apoia-se nos recursos da ilumina- criações de João Saldanha, ao trazer a dan-

161
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
ça como exercício do espaço, afastando-a da a distância entre a intimidade do teatro e
sedução fácil e do espetacular. Com apenas sua vizinhança, a Cinelândia – não chega a
cinco intérpretes em cena, a densidade da se realizar em cena. O que se vê é ainda uma
dança consegue vencer a desproporção en- tentativa de contaminação de linguagens já
tre a presença humana e a arquitetura do que a movimentação tão particular do co-
lugar. O silêncio e as pausas valorizam os reógrafo da Quasar Cia. de Dança não pa-
gestos de cada intérprete. rece minimamente consolidada nos corpos
Folia,de Priscila Albuquerque dá con- que dançam. A ideia fica restrita apenas à
ta do que se propõe. Circulando bem pró- trilha sonora.
xima do universo da dança clássica, a co- Novos ventos fecha o programa com ele-
reógrafa constrói uma peça correta, bem in- gância. A coreografia de Roseli Rodrigues
terpretada, mas sem grande pretensão ou ganha um tratamento preciso por parte da
ousadia. Em Folia, como também em companhia. Talvez seja nessa peça em que
Caos’arte, ficam evidentes a seriedade, o os intérpretes se mostrem mais à vontade.
empenho e o prazer com que todos os bai- É pena, no entanto, que uma estreia tão
larinos defendem o trabalho de cada um importante para o Ballet do Theatro Muni-
dos criadores. cipal tenha acontecido numa matinê e no
O ponto mais frágil do programa talvez meio de um feriado. A boa qualidade do
seja Tão próximos,de Henrique Rodovalho. programa, que tem sua última apresentação
A proposta simples apenas na aparência – hoje, merecia um lugar de mais destaque na
mostrar ao mesmo tempo a proximidade e agenda da casa.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2007

Bailarinos de até 22 anos


firmes como veteranos
Nederlands Dans Theater: Uma das companhias
jovens mais impressionantes do mundo no Rio

ILVIA S OTER

N este último fim de semana, um Thea-


tro Municipal lotado acolheu caloro-
samente a passagem da Nederlands Dans
interessante ver como o estado de tensão que
oscila sem se desmanchar ao longo da peça
consegue ser carregado por bailarinos tão jo-
Theater II pelo Rio de Janeiro. Nesta turnê, vens. Vale lembrar que a NDT II é composta
o programa de uma das companhias jovens por bailarinos de até 22 anos.
mais impressionantes do mundo tem dois Henrique Rodovalho criou para a NDT
apelos especiais para os brasileiros: uma II uma peça de exportação, para o bem e para
coreografia de Henrique Rodovalho, diretor o mal. Se por um lado, a trilha de bossa nova
da Quasar, e a bela presença da – cada dia e a movimentação suingada resultam numa
mais competente – carioca Nina Botkay. peça agradável e de rápida comunicação
27’52’’, de Jiri Kylian – artista que criou a com o público, por outro lado Sob a pele não
NDT II e dela foi diretor artístico até 1999 – voa mais alto. O material humano que teve à
abriu a noite mostrando que o coreógrafo não sua disposição não conseguiu desviar o core-
se deixou acomodar. Com o rigor e a criativi- ógrafo de suas trilhas já percorridas.
dade de sempre, a peça de Kylian surpreende Spit reúne extratos de vários trabalhos
pela simplicidade e pela contemporaneidade. anteriores de Ohad Naharin, diretor artísti-
A técnica de base clássica da companhia, ter- co da companhia israelense Batsheva. É
reno onde mais de 50 coreografias de Kylian interessante ver o vigor e a potência da dan-
se desenvolveram, se coloca de lado para dei- ça de Naharin em corpos tão jovens. O ca-
xar emergir corpos que se movimentam no ráter coletivo de algumas das coreografi-
limite do descontrole, como que movidos de as ganha neles um sabor especial. Mais
fora e em tensão permanente. O título da peça uma vez, impressiona o engajamento dos
joga com a ideia de que aquela quase meia bailarinos que conseguem ir fundo em cada
hora de coreografia é fruto de um grande nú- uma das propostas apresentadas. No entan-
mero de horas de trabalho que poderiam nem to, é provável que Spit funcionasse melhor
aparecer. Não é o caso aqui. A precisão e a como um pot-pourri mais assumido. A ten-
economia da peça são o evidente resultado da tativa de costura entre um extrato e outro
experiência de um artista inspirado que man- enfraquece o todo. Ainda mais quando fe-
tém cada um dos bailarinos no limite de suas cha uma noite que foi inaugurada pela es-
possibilidades e de seu comprometimento. É crita genial de Jiri Kylian.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2007

Tubos de ensaio ainda em estudo


OBERTO P EREIRA

O desafio de tratar da ideia de liberda-


de a partir de conceitos como compor-
tamento, condicionamento e adestramento,
quando se lembra que dança contemporânea
carrega em sua definição a relação direta
com o mundo. Para cada nova pergunta a ser
exige quase uma investigação científica. É feita nesse mundo, novos modos de elabora-
justamente neste atrito, entre ciência e arte, ção de conceitos são exigidos. Na dança do
que ziguezagueia o pensamento coreográ- Cena 11, técnica e tecnologia são interfaces
fico de Alejandro Ahmed em Skinnerbox, de um mesmo modo de elaboração coreográ-
sua mais nova obra de para seu Grupo Cena fica. Robôs, corpos e um cachorro, todos em
11 Cia. de Dança, apresentada neste fim de cena, compartilham a insatisfação dessa per-
semana no Rio, no Teatro Nelson Rodrigues. gunta quase sempre sem resposta. É assim. E
A dança, e mais especificamente o corpo, esse assim está lá, traduzido em dança.
transformam-se em lugares de observação, A caixa de Skinner, que dá nome à obra,
estudos de caso, tubos de ensaios. é um lugar de isolamento de animais em
Todo seu processo de elaboração carre- laboratório para que se estude ali, em con-
gou essa intenção científica. Sob o título de dições ditas ideais, seu comportamento,
Projeto-SKR, procedimentos teórico-práticos segundo seu idealizador, o americano
de investigação voltaram-se para questões Burrhus Skinner. Essa caixa-lugar está na
como as relações homem-máquina, sujeito- cena de Alejandro, é o espaço de sua dan-
objeto e controle-comunicação. E tais proce- ça. Um espaço que é metamorfoseado, a
dimentos, sempre apresentados ao público, em uma só vez, em palco e nos corpos de seus
forma de espetáculo (mesmo que à revelia do (todos excelentes) bailarinos. Tudo ali com-
coreógrafo, que não os vê assim), foram, ao porta a construção de um pensamento, de
longo de um período, servindo como testes de uma investigação.
elaboração de uma dança que desse conta de Mas, como tempo-espaço não se dis-
tal desafio, cujo o resultado é justamente o es- solvem jamais, parece que agora esse é
petáculo Skinnerbox. Mesmo vencido, ele novo desafio que se impõe: como fazer de
permanece ainda em aberto, escancarado Skinnerbox eficiente em sua trajetória
em sua incompletude: O que é da arte faz o entre arte e ciência, sem esquecer que
sopro de vida do que é da ciência. existe um tempo imperante, que não ne-
Para compor sua ideia, Alejandro criou cessita de tantas recorrências para confir-
uma técnica de dança. Ou talvez um compor- mar uma proposição. Esse tempo ainda
tamento, ou um condicionamento, ou ainda não está lá, preciso, como o espaço está. As
um adestramento. Nada mais arrojado hoje, investigações devem continuar, portanto.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 27 DE JUNHO • 2007

A poética sem concessões


de Marcela Levi
OBERTO P EREIRA

N enhuma concessão a ser feita e mes-


mo assim a poesia ali está, presente
quase como matéria bruta, pronta para ser
algumas informações no mundo revelam
sua crueldade mesmo tacitamente aceitas so-
cialmente, numa crítica fina e aguda, alinha-
destilada. É assim que Marcela Levi faz a va suas cenas, tão áridas, tão secas, e ao mes-
trama de sua última peça-solo que compõe mo tempo tão cheias de poesia, cortantes em
uma trilogia, e que leva o nome de in-orga- sua justeza, exatas em seu timing. Quase uma
nic, estreada no Espaço SESC nesta última poesia de João Cabral de Melo Neto.
quinta-feira. Um dos pontos de partida é uma premia-
O que salta aos olhos, logo de cara, é que da foto de um jornalista em que uma mãe
não se trata apenas de uma bailarina, mas de aparece sentada numa calçada velando o
uma criadora que cria não para si, mas em si; corpo de seu filho brutalmente assassinado
que não usa seu corpo para sua dança, mas no centro da cidade. O espaço que há entre a
seu corpo é sua dança, absolutamente inun- dor estampada na imagem e as declarações
dado de uma presentidade desconcertante. de satisfação do fotógrafo por ter ganho o tal
Cada objeto em cena, desde um enorme co- prêmio é o espaço em que a ideia se constrói,
lar de pérolas até uma cabeça empalhada de ou seja, um espaço exíguo e desconfortá-
um boi, compartilha com sua habilidade de vel. A dança de Marcela Levi é assim: não
construir cenicamente sua ideia como con- fazendo concessão, aumenta a nossa chan-
dição, nunca como complemento. É isso que ce, como público, de entender que a dança,
faz in-organic ser tão orgânico para alcan- há muito tempo, deixou de ser como tanto
çar a dose certa de ironia, de uma justa e fina querem os saudosos das harmonias e dos
fisgada na percepção de quem a assiste. belos movimentos na música. Sua dança,
Marcela carrega em seu processo de estando no mundo, carrega consigo a impe-
criação o DNA da coreógrafa Lia Rodri- ratividade desse mesmo mundo, em que
gues, com quem trabalhou durante oito anos. harmonias e movimentos também se dão
A mesma perspicácia em perceber como pelos seus avessos.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JULHO • 2007

Lia Rodrigues faz


obra-prima da dor

OBERTO P EREIRA

N ão há música, apenas o som que os cor-


pos produzem. Não há figurino. A luz
é econômica e a espetacularidade é de ou-
direito, porque é ela a matéria-prima que faz
mover os bailarinos.
Mas não há como negar que exista uma
tra ordem. O que há, na verdade, é apenas – beleza em cena, uma beleza quase plásti-
e, sobretudo – a ideia. Uma ideia às vezes ca, ou mesmo provocada por um espanto,
bruta, às vezes perfilando nuances. E essa por uma respiração suspensa, condensada,
ideia é a dor, só isso. Uma dor que toma o que permanece em pausa violenta e crua,
corpo que dança e faz a coreógrafa Lia Ro- tanto na cena quanto no público. Há o chei-
drigues nomear seu espetáculo, que estreou ro de catchup, escancarado em seu uso para
nesta última quinta-feira no Espaço SESC, simular sangue, que logo toma todo o re-
de Encarnado. cinto. Sim, se há a simulação, ela também é
Na cena, essa dor se torna dança pela sua desnuda. E não há como negar que exista a
absoluta presentidade. O aqui e o agora são crueldade de nunca, mas nunca mesmo,
explodidos sem nenhuma outra chance de promover-se um alento, mínimo que seja,
aparecer, se não em seu estado de pura la- de uma chance para se retomar um nova,
tência. Está lá o livro Diante da dor dos ou- ou outra, respiração.
tros,de Susan Sontag,que inspirou a coreó- Encarnado, de Lia Rodrigues, em sua
grafa. Mas estão lá também Lygia Clark, agudeza, nasce transformando matéria-pri-
Deleuze,Pollock, Deus,e tantos outros,amal- ma em obra-prima, sem nunca abrir mão do
gamados em um tempo enxuto, em um mo- que há de bruto na primeira para logo ser
vimento que conta muitas vezes com passos metamorfoseada na segunda. Para nós, não
de balé para logo se diluírem em êxtase. há apenas o olhar ou o ouvir. O olfato e o tato,
Aliás, o que é passo logo se deforma em de tantas dores, irrompem em coreografia. E
gesto para conceder à ideia seu espaço por isso, no final das contas, também é dança.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
R I O D E J A N E I R O • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2007

Bailarino visionário
em mais um belo desafio
Hell’s Kitchen Dance com Mikhail Baryshnikov:
Estrela do balé clássico mostra estar a serviço do futuro
na abertura do 25º Festival de Dança de Joinville

ILVIA S OTER

H á mais de 20 anos imerso no ambien-


te da dança contemporânea, a grande
estrela do balé clássico Mikhail Baryshnikov
ção contemporânea, e sim de dois jovens e
talentosos coreógrafos: o francês Benjamin
Millepied e a canadense Aszure Barton.
não para de se colocar em situação de desa- A passagem do tempo está no centro
fio. Artista visionário, também interessado de Years later, dançada por Baryshnikov,
em outras linguagens como a fotografia e o com coreografia de Benjamim Millepied e
teatro, ele tem hoje como projeto maior co- videografia de Olivier Simola. O bailarino
locar-se a serviço do futuro. Sua fundação, a é visitado, através do vídeo, por imagens em
Baryshnikov Arts Center (BAC), vem ser- preto-e-branco de um Baryshnikov adolescen-
vindo com celeiro de novos talentos, não te, desenvolvendo numa sala de dança as com-
apenas na área da dança. A Hell’s Kitchen petências exigidas pelo balé clássico. Mas não
Dance, companhia jovem que criou e que o há uma gota de nostalgia. O passado aparece
acompanha na turnê brasileira, é um dos somente como citação, como bagagem carre-
frutos do BAC. Baryshnikov abriu, anteon- gada sem esforço por um bailarino que se
tem, o 25º Festival de Dança de Joinville, mostra em plena forma no presente, preciso e
em Santa Catarina, e se apresenta hoje no delicado em cada gesto, movendo-se com sim-
Theatro Municipal do Rio. plicidade, bom humor e maestria.
Baryshnikov está em cena com esses bai- No gesto simpático, Baryshnikov convi-
larinos – universitários e estudantes em for- dou três estudantes da Escola do Teatro
mação – e isto é uma postura de vida: abrir Bolshoi do Brasil para fazer uma breve par-
caminhos e pôr no mercado artistas interes- ticipação nessa noite de estreia. Concentra-
sados e interessantes, que, ao seu lado, podem díssimos, eles foram a única presença do
conquistar novos espaços. A escolha dos co- balé clássico na noite.
reógrafos segue os mesmos critérios. As pe- Dançada pelo ótimo William Briscoe,
ças dançadas pela Hell’s Kitchen Dance no Rom, que substituiu Leap to tall no último
Brasil não são de grandes estrelas da cria- momento, joga de forma inteligente com

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
a tensão entre o ritmo da música tradicio- Freeman criam a atmosfera desvanecimen-
nal húngara e a força deste jovem bailari- to que a coreografia seguirá. Nessa traves-
no negro. Nada sobra e nada falta na peça, sia de corpos, cheia de silêncios e breves en-
criada por Aszure, ou na forma como contros, é possível ver a boa qualidade dos
Briscoe a defende. bailarinos da Hell’s Kitchen Dance.
A única peça de conjunto, Come in,de No fim da noite, resta a sensação de que o
Aszure Barton, fecha a noite.Pela primeira tempo só trabalhou a favor de Baryshnikov.
vez, Baryshnikov se integra ao grupo.A qui Sua marca está em tudo o que passou pela
também o tempo e a memória irrigam a cena. E, nela, a dança é feita de beleza, so-
dança. As imagens assinadas por Kevin briedade, elegância e muita delicadeza.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2007

O mestre diante do mestre


Mikhail Baryshnikov se apresenta em Joinville confrontado
numa tela com o início de carreira e prova, aos 59 anos,
que o virtuosismo está na inteligência

OBERTO PEREIRA

P assado e futuro aparecem como inter-


face de um mesmo pensamento de dan-
ça: O russo Mikhail Baryshnikov e sua com-
eles o palco. Essa primeira impressão logo
se esclarece quando se sabe que se trata, na
verdade, não apenas de mais uma compa-
panhia Hell’s Kitchen Dance evidenciam o nhia criada por um bailarino para que ele
tempo em seu caráter de simultaneidade, possa se apresentar, mas de um projeto de
nunca em sentido causal ou cronológico. Em educação.
sua estreia na turnê brasileira, anteontem à A partir da constatação de que um ver-
noite, no Centreventos Cau Hansen, come- dadeiro bailarino encontra sua formação
morando os 25 anos do Festival de Dança de profissional de dança apenas dentro de uma
Joinville, em Santa Catarina, um dos grandes companhia, Baryshnikov resolveu criar uma
mitos da dança ocidental do século XX espécie de etapa intermediária: sua Hell’s
mostrou como sua maturidade pode vir à Kitchen Dance reúne estudantes, que ainda
cena entremeando maturidade e arrojo es- frequentam seus cursos superiores, para que
tético numa dança de qualidade. É a partir a partir dessa experiência possam se lançar
desse jogo que tudo se constrói. E o público, ao mercado de trabalho. De bailarino, o mito
cerca de 4.500 pessoas, aprende definitiva- agora é também um formador. Coisa de ar-
mente como um bailarino pode, sim, saber tista maduro e inteligente.
envelhecer sendo ainda bailarino. No Rio, Saber disso modifica totalmente o modo
Baryshnikov faz apresentação única hoje, às de se assistir ao espetáculo. Na peça Come
20h30, no Theatro Municipal, das coreogra- in, por exemplo, de autoria de uma das bai-
fias Years later,Come in,Sweet dream,Ron. larinas do grupo, Aszure Barton, de apenas
O que mais saltou aos olhos em todo es- 32 anos, fica evidente o caráter de uma eta-
petáculo em Joinville foi o vigor de todos os pa, mas sem nunca abrir mão da qualidade
muitos jovens (e excelentes!) integrantes, artística. E é justamente na simplicidade co-
em contraponto com a experiência de um reográfica que ali se esboça que reside uma
senhor de quase 60 anos que divide com ideia do “entre”: o entre-lugar e o entre-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
tempo. O maduro bailarino entre jovens bai- preto-e-branco de seus tempos de Rússia.
larinos. Os jovens bailarinos entre suas eta- Apesar da aparente obviedade que ali se de-
pas de formação. A relação coreográfica lineia, não há como não se emocionar com a
entre todos. coragem de estampar as ações do tempo
É na abertura do espetáculo que esse “en- numa dança que foi sempre tão virtuosa.
tre” já aparece como senha para tudo que Hoje, o que se pode verificar é que esse vir-
ainda está por vir. Numa peça (auto) bio- tuosismo de Baryshnikov está em sua inteli-
gráfica, com o título Years later,o bailarino, gência. E isso, especialmente para bailarinos
sozinho em cena, divide sua dança com ele e por que não, para todos nós, é a lição maior
mesmo, ainda muito jovem, num filme em que ele e sua companhia nos ofertam.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
R I O D E J A N E I R O • SEXTA-FEIRA • 2
277 DE JULHO • 2007

Mistura de gêneros que não dá liga


As cinco peles do samba: Linguagens
se cruzam sem formar um todo

ILVIA S OTER

A Casa da Glória, espaço cultural que


começa a receber artistas abriga As
cinco peles do samba, novo espetáculo de
energias das divindades africanas. A maior
parte do elenco, todo feminino, mostra ter
uma larga experiência anterior no samba
Andréa Jabor. Para esta peça, a improvisa- como será evidente na cena seguinte. Mas
ção, área em que Andréa circula há muitos é nesta antessala, quando o samba ainda se
anos, é alimentada por três fontes comple- insinua, que a movimentação atinge sua for-
mentares: a arquitetura do casarão, dentro ma menos codificada e mais interessante.
da linha do sitespecific, o conceito das cinco Em seguida, o público se acomoda em
camadas do corpo desenvolvido pelo artis- outro ambiente, uma ampla sala de estar onde
ta austríaco Hundertwasser e o samba, mú- a maior parte da peça se desenrola para de-
sica e universo que a dança contemporânea pois ganhar o jardim, para a parte final.
se propõe a visitar. O espetáculo se desen- Se a proposta de convívio entre público
volve em três cômodos diferentes da casa. e obra consegue ser realizada com eficiên-
Para Hundertwasser, a casa é considerada cia, assim como a integração do espetáculo
a terceira pele, aquela que vem depois da à casa, a visita que a dança contemporânea
epiderme e da vestimenta. faz ao samba não assume contornos nítidos
É esperado do público que ele seja o tempo todo nesta sala. A dança contem-
mais do que mero espectador. Ele irá ora porânea se borra de samba, mas o samba
assistir ora entrar literalmente no samba. guarda por demais seus traços característi-
As portas do espaço estão abertas uma cos. Talvez As cinco peles do samba ganhas-
hora antes e se fecham uma hora depois do se força e profundidade se apostasse mais
espetáculo. Um bar reúne os visitantes e na síntese e abrisse mão de parte do vasto
busca criar o ambiente de convívio neces- material de pesquisa levantado pela equi-
sário à proposta. pe. Infelizmente, o que é interessante e agra-
A primeira cena acontece num cômodo dável acaba por se esgarçar pelo excesso de
que serve de antessala tanto para o espetá- ícones, de imagens, de referências e de cenas.
culo quanto para o próprio samba. Neste O tratamento quase didático de algumas
local, a movimentação se desenvolve ain- cenas acaba por esvaziar o aspecto festivo
da em estado embrionário. É o samba como da noite que poderia ser garantido pela boa
potência, emergindo da incorporação das ideia, pela beleza e pela energia do elenco.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2007

A construção de
um novo vocabulário
OBERTO P EREIRA

N a dança, a criação de um vocabulário


próprio de movimentos é um desafio
que poucos coreógrafos conseguem vencer.
A trilha, assinada por Lenine, confir-
ma a prática da companhia em trabalhar
com grandes compositores brasileiros.
O grande problema, além de sua pertinên- Nesse caso, o diálogo que se estabelece
cia em traduzir uma ideia, conservando uma entre tradição e contemporaneidade, en-
assinatura daquele que cria ao longo de suas tre o quintal e o mundo, entre frevos des-
obras, é a capacidade de tornar esse voca- mantelados por efeitos tecnológicos e a
bulário, assim como uma língua, algo vivo, bateria de um Iggor Cavalera cria o es-
algo que evolui com o mundo. paço da dança que se faz em cena. Num
Rodrigo Pederneiras talvez seja um dos cenário asséptico composto por azulejos
únicos artistas brasileiros a se dedicar à cons- pretos, figurinos que desmancham fronta-
trução desse vocabulário, ferramenta que lhe lidades e uma iluminação que borra con-
permite tecer uma trama coreográfica que já tornos, o que se vê é algo que brilha no
conta com neologismos e licenças poéticas breu. Quase como o fio de uma navalha.
numa estrutura que ele mesmo inventou. Mais Cortante. Seco. Preciso.
uma prova disso é sua nova obra, Breu, que E o que mais impressiona é como a com-
estreou quinta-feira no Theatro Municipal, panhia responde com eficiência àquilo que
com sua companhia, o Grupo Corpo. ainda é novo entre a criação e a descoberta
Como tudo se organiza ali é a chave para coreográficas em Breu. Novas possibilida-
que se entenda que, em dança, criação e des- des de movimentos no solo, algo que Peder-
coberta são apenas interfaces de um pensa- neiras parece ainda experimentar e que já
mento que se estrutura no corpo. Não seria se esboçava em sua obra anterior, Onqotô,
pouco reconhecer isso em Breu. Mas o que comprovam como seu vocabulário pulsa
é colocado em cena como ideia também vivo, mostrando que nele reside a possibili-
encontra na trilha sonora, no figurino (de dade plena de se tratar de novos temas, de
Freusa Zechmeister), na iluminação e no traduzir novas ideias.
cenário (de Paulo Pederneiras) a possibili- Esse é o desafio vencido pelo Grupo
dade de entendê-los como extensões desse Corpo. Mas não uma vitória que se firma em
corpo que dança, alargando a qualidade sua certeza, mas aquela que se lança a um
dessa dança ainda mais. O que se vê é uma constante teste de sua eficácia. Aquela que
coesão de ideias amalgamadas em uma só. entende a criação com crise, e a descoberta
Nada escapa, nada sobra. como sua única saída.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 18 DE AGOSTO • 2007

Estranhamento e
fricção em um caldeirão
de referências urbanas
Breu: Novo espetáculo do
Corpo é intenso, passando rápido
como um raio

ILVIA S OTER

C omo manda a tradição, o público cario-


ca recebe no inverno a esperada visi-
ta do Grupo Corpo. A cada dois anos, essa
vitavelmente modificado ao ser combina-
do com o que ele acaba de criar, faz com
que cada nova peça seja colocada numa
curiosidade aumenta pela expectativa de estrada de mão dupla, que pode ser percor-
uma nova criação. Este ano, a trilha sonora rida do passado para o futuro, ou no outro
– sempre o chão onde Rodrigo Pederneiras sentido. Dessa vez, Sete ou oito peças para
e sua equipe alicerçam suas peças – é com- um ballet, coreografia criada em 1994 e
posta pelo pernambucano pop Lenine. Breu deixada em repouso pela companhia des-
é feito de sombras, do jogo entre o preto e o de 1999, serve para dar ainda mais visibi-
branco, de tensão e de quedas. O cenário e a lidade ao contraste e à tensão de Breu.A
iluminação de Paulo Pederneiras criam um estrutura de variações a partir de uma par-
ambiente ladrilhado em negro, cujas paredes titura repetitiva – proposta pela trilha de
são continuadas pelo piso que brilha, reflete Philip Glass e Uakti – traz já em Sete ou
e distorce a pouca luz que incide em cena. Os oito peças para um ballet um corpo-autô-
figurinos de Freusa Zechmeister criam, atra- mato que vai ganhando o gingado de Pe-
vés de grafismos, a gradação entre o preto e derneiras, em momentos de quase descon-
o branco e conseguem fazer com que os cor- trole.As cores da bandeira brasileira são
pos dos bailarinos ora se destaquem, ora se aos poucos acrescidas pelo terra e pelo roxo
confundam com o chão que os atrai a maior dos figurinos.
parte do tempo da coreografia. Em Breu, a dança de Pederneiras vira
Ao trazer uma peça antiga para abrir a mais uma curva. A depuração das linhas,a
noite, antecedendo a nova criação, Rodri- fluidez de entradas e de saídas de cena, a
go Pederneiras mostra o quanto sua escri- brasilidade impressa nos quadris e nos tron-
ta se desenvolve sem perder seus traços cos ganham novos contornos nesta peça. As
absolutamente particulares. A ideia de um linhas se amalgamam e o grupo se transfor-
repertório que é sempre atualizado e ine- ma em massa, uma massa quase sempre dis-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
forme, que pulsa, explode e retorna exausta e caboclinho. Tem rebolado, silêncio e im-
ao chão, muitas vezes com violência. Os pacto de corpos.
corpos se atraem e se repelem também nos Na fusão da luz com a escuridão, Breu é
duos. O País colorido e brejeiro de várias intenso e seus 40 minutos passam rápido
peças da companhia é invadido por um como um raio. Pederneiras cria estranha-
Brasil mais urbano, competitivo, parte de mento e fricção; adultera o que já havia fei-
um mundo-caldeirão de referências e rit- to antes, lança-se um novo desafio e traduz
mos, sublinhado pela música de Lenine. tudo isso em dança, com a competência e a
Tem frevo dançado no chão, tem hard rock criatividade de sempre.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 20 DE AGOSTO • 2007

Nem a dama do
teatro se ajusta

OBERTO PEREIRA

O modo de assistir ao novo espetáculo


de dança assinado pelo coreógrafo
paulista Ivaldo Bertazzo, Mar de gente, que
clamam por novas chaves. E elas ainda
devem ser descobertas por um público
que vem acompanhando a produção de
estreou nesta quinta-feira no Teatro Carlos Bertazzo e por isso mesmo acostumado
Gomes, deve, enfim, se modificar. Apresen- com outros parâmetros. Sendo assim, as fra-
tando-se agora como uma companhia pro- gilidades são evidentes e elas devem ser
fissional (recém-criada em junho deste tratadas como tal.
ano), que leva seu nome e que reúne nada A séria pesquisa corporal que Bertazzo
menos de 30 bailarinos, o grupo deixou de desenvolve comprova que se trata de um
ser um projeto social para entrar no rol do mestre. O que está claro em cena é que te-
profissionalismo da dança brasileira. mos um grupo de jovens conscientes de sua
Tal passagem já havia sido esboçada no performance, numa concentração e numa
ano passado, quando da apresentação do entrega que chegam a emocionar. Tudo ali
espetáculo Milágrimas, em que a represen- comporta uma organicidade física que, des-
tante de seu maior patrocinador, a Petro- ta vez, infelizmente, não encontrou um bom
bras, anunciava que se tratava ali de uma lugar na dança. E isso fica ainda mais à
companhia de dança profissional, embora mostra quando se leva em conta a ilumi-
isso ainda não constasse no programa. Era, nação, o figurino e, sobretudo, a desigual
de fato, um espetáculo feito a partir de um trilha sonora que mistura peças do reper-
projeto social com dança, denominado Pro- tório clássico com efeitos sintetizados, num
jeto Dança Comunidade. E isso mudava ab- resultado que beira o inacreditável. Por
solutamente todo o modo de olhar o resul- vezes, tem-se a impressão de que se está à
tado que se dá em cena. frente de uma cena de figurantes de filmes
Agora, enfim, assumindo esse novo ca- épicos hollywoodianos de 1950.
ráter, os critérios de análise do que se cons- Nem mesmo a grande dama do teatro
trói coreograficamente em Mar de gente brasileiro, Fernanda Montenegro, ajusta-se

175
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
plenamente com a cena coreográfica. atriz à plateia para ocupar as arquiban-
Uma pena, pois sua competência dramá- cadas no palco.
tica poderia ter se espraiado melhor em Mar de gente não é o melhor trabalho
todo o espetáculo, e não apenas funcio- dessa nova companhia que já possui um his-
nar como pontuações esparsas. Além dis- tórico como projeto social. Mas é suficien-
so, o palco do Carlos Gomes não se mos- temente capaz de provocar saudades dos
tra adequado às variações coreográficas três grandes espetáculos que o mesmo Ber-
típicas de Bertazzo, que funcionam me- tazzo produziu por aqui, entre 2000 e 2002,
lhor em espaços de arena maiores. A pro- quando ainda trabalhava com o extinto
va disso é o convite feito pela própria Corpo de Dança da Maré.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 24 DE AGOSTO • 2007

O desafio de se
tornar profissional
Mar de gente: Em nova fase, companhia criada por
Ivaldo Bertazzo começa a mostrar singularidades

ILVIA S OTER

O educador e coreógrafo Ivaldo Bertaz-


zo inaugura com Mar de gente, em
cartaz no Teatro Carlos Gomes, uma nova
a cena, sublinha ainda mais a participação
dos jovens como coro. A atriz que contrace-
na com o grupo é responsável pela maioria
fase em sua carreira. Em seus 30 anos de prá- dos textos que servem como costura entre
tica profissional, uma de suas principais as cenas e as músicas.
marcas foi misturar, em seus espetáculos, O coro, essa massa humana, esse mar de
amadores iniciados em sua linguagem de gente, acentua um dos interesses centrais de
dança e métodos somáticos, seus cidadãos- Bertazzo: a complexidade e a suposta uni-
dançantes – termo cunhado por Bertazzo – versalidade do gesto humano. Se antes, em
e artistas profissionais. Desde 2000, inves- Samwaad, o grupo visitou músicas e danças
tindo prioritariamente em cidadãos-dançan- da Índia e, em Milágrimas, tinha um colori-
tes moradores de espaços populares e, a do africano, agora, em Mar de gente, preten-
partir 2003, de volta a São Paulo, o coreó- de borrar as referências locais para se apro-
grafo decidiu transformar esse elenco no que ximar de um mundo atemporal, berço da ci-
define como uma companhia de teatro-dan- vilização. A coreografia de Bertazzo também
ça profissional. Os jovens que hoje com- mescla referências variadas e ganha mais
põem essa equipe foram capacitados no seio força quanto maior é o grupo que dança.
do projeto Dança Comunidade, um projeto Curiosamente, é justamente neste mo-
sócio-artístico dirigido a grupos de várias re- mento em que o projeto se pretende pro-
giões da periferia de São Paulo. fissional, que algumas características que
Neste primeiro espetáculo, a companhia sempre imprimiram grandiosidade às pe-
guarda como traço das produções anterio- ças de Bertazzo – como trilha sonora de
res o fato de ser utilizada como um corpo de alta qualidade composta especialmente
dança, um grande coro que apenas em pou- para o espetáculo ou uma iluminação ade-
cos momentos se recorta em formações di- quada e criativa – se fragilizam. A trilha so-
ferentes. Trazer Fernanda Montenegro para nora de Mar de gente, além de não valorizar

177
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
a dança, em muitos momentos prejudica a tornar possível o surgimento de singulari-
passagem de uma coreografia a outra. A dades. Alguns jovens começam a se desta-
peça parece espremida no palco italiano do car ao imprimir traços bem pessoais à core-
Teatro Carlos Gomes, levando a crer que foi ografia.
desenvolvida para outro tipo de espaço cê- A continuidade da experiência com
nico, enquanto a iluminação achata ainda Bertazzo ao longo do período de amadure-
mais o espaço. cimento desses cidadãos-dançantes mostra
Para aqueles que acompanham o grupo que, se ainda há um longo caminho a ser tri-
desde Samwaad é impossível não notar o lhado para que o grupo possa ser visto como
crescimento de alguns jovens e o desenvol- uma companhia profissional por suas quali-
vimento de suas competências físicas e téc- dades artísticas, muito já foi percorrido. A
nicas.O uníssono,a busca pelo homogêneo partir de agora, o grande desafio é saber
e a sincronia de gestos, que por algumas desdobrar o material já incorporado e dar
peças caracterizou boa parte das coreogra- maior visibilidade a cada um dos jovens que,
fias de Bertazzo,perdem-se um pouco para dançando, chegaram até aqui.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 20 DE SETEMBRO • 2007

No programa, uma
boa dose de humor eficiente

OBERTO PEREIRA

O que se deve ter bem claro ao assistir


às apresentações da companhia
nova-iorquina Les Ballets Trockadero
tanto, sua execução é surpreendente, mes-
mo que deixe ainda mais claro porque essa
técnica de pontas deve mesmo ser desenvol-
de Monte Carlo, que se apresentou nesse vida apenas pelas mulheres.
fim de semana no Theatro Municipal, é que O programa, de quase duas horas e
se trata puramente de entretenimento. meia, foi um tanto extenso, contando com
E como tal, ela é absolutamente eficiente, mais três obras que não estavam previstas.
como se pôde comprovar em sua passagem Mas valeu a pena assistir à impagável
por aqui. Morte do cisne, um ícone no repertório clás-
Tal eficiência aposta num elemento que sico.E é claro que quem mais tirou provei-
muitas vezes fica distante da dança, seja ela to e se divertiu com o espetáculo foram
qual for: o humor.Tudo bem que o humor dos aqueles que conhecem a fundo os ballets
Trocks, como são conhecidos, é quase paste- parodiados.Os pequenos detalhes,que es-
lão. Tudo bem também que eles traduzem cracham com os trejeitos e os maneirismos
em comédia quase chanchadesca os gran- das grandes estrelas, são, sem dúvida, os
des ballets clássicos de repertório. Ao fazê- mais engraçados.
lo, o que os legitima é a técnica arrojada de Diante da lastimável situação finan-
seus bailarinos, todos homens, o que conce- ceira da nossa primeira e única compa-
de ainda mais graça às suas apresentações. nhia de ballet, a do Theatro Municipal jus-
Nessa técnica pode se ver ainda o timing tamente, que quase não se apresentou ain-
perfeito, exigência para qualquer iniciativa da nesse ano,assistir aos Trocks permitiu
que pretende fazer rir. que o ballet fizesse o público carioca rir.
Estão lá os dificílimos fouettés, as pirue- Nada mais oportuno,para que se esqueça
tas e as sequências de saltos, executados to- um pouco de lamentar o que acontece por
dos sobre as pontas dos pés, o que não é, jus- aqui. Afinal, essa não é mesmo uma das
tamente, tarefa dos homens no ballet. Entre- funções da comédia?

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 5 DE OUTUBRO • 2007

O mapa da dança
contemporânea

OBERTO P EREIRA

M apeamento, cartografia: termos que


em sua origem carregam a ideia de
geografia são emprestados para tratar de
Tudo isso está reunido numa belíssima
caixa que foi recém-lançada pelo Itaú Cul-
tural: os textos mapeadores dos pesquisado-
um espaço que se move continuamente, res, 5 video-danças, todos em DVDs, as 25 co-
numa relação quase absoluta com o tempo, reografias, também em 5 DVDs, fotografias
a dança. Como adequar essa relação de um das obras e ainda artigos reflexivos sobre
espaço que se cria a cada momento e de um todo o projeto. Para tanto fôlego assim, há
tempo que é sua causa e consequência em que se relevar algumas lacunas no mapea-
dança, e mais especificamente em dança mento, além de uma certa desigualdade na
contemporânea, é o desafio que se impõe o qualidade dos trabalhos apresentados. Mas,
projeto Rumos Dança, do Itaú Cultural. Um dentro desse contexto, até mesmo tais cons-
projeto absolutamente pioneiro, ambicioso tatações já se servem como índices de como
e, acima de tudo, necessário. está a dança contemporânea brasileira.
A ideia parece simples: reunir num mes- O Rio de Janeiro está bem representado
mo catálogo uma situação da dança contem- em todo o projeto. Além dos ótimos trabalhos
porânea no Brasil. Tal reunião se deu em três de Marcela Levi (in-organic) e Helena Viei-
frentes: um levantamento de informações ra (Maria José), há que se destacar o instigan-
sobre essa dança, elaborado por 14 pesqui- te video-dança Jornada ao umbigo do mundo,
sadores que tentaram cobrir todas as de Alex Cassal, Alice Ripoll e Theo Dubeux.
regiões do País; uma amostra do que já está Geografizar o que é, por definição, algo
sendo produzida por aqui num dos mais re- inconstante coloca a dança contemporânea
centes mídias artísticos, o video-dança; e por como lugar de reflexão e de história. Sônia
fim a reunião de 25 trabalhos de caráter in- Sobral, viabilizadora do projeto, sabe desse
vestigativo, previamente selecionados por desafio ontológico. E por isso mesmo nos
uma comissão e que abarcam a produção na- permite ter esse mapa movente que se re-
cional na área. faz a cada instante.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 10 DE OUTUBRO • 2007

Estreia da
Cia. da Ideia surpreende

OBERTO PEREIRA

U ma nova companhia surge no cenário


da dança contemporânea carioca, tra-
zendo uma boa questão para se pensar qual
Estação é um trabalho que tem como
semente uma pesquisa universitária de
Sueli, que se expandiu e se tornou um espe-
é o estado dessa dança hoje. Trata-se da Cia. táculo. Nesse sentido, carrega a envergadu-
da Ideia, que tem como idealizadores os bai- ra da pesquisa, condição primeira da dança
larinos Sueli Guerra e Jean Gama, ambos contemporânea. E, mesmo com maturidades
oriundos de importantes e históricas com- tão diversas, os cinco bailarinos em cena
panhias da cidade e que acabou de estrear, conseguem defender bem as ideias que es-
neste último sábado, no Teatro II do SESC tão no próprio nome do grupo que os agluti-
Tijuca, o espetáculo Estação, permanecen- na. Entretanto, é o jovem talento Thiago
do em temporada até o final do mês. Sancho quem se destaca, apontando para
A questão trazida pela companhia é a uma promissora carreira como bailarino e
vontade de experientes bailarinos, como são intérprete.
Sueli e Jean, em viabilizar sua dança, algo Já o espaço do Teatro II do SESC Tiju-
que parece simples, mas que se tornou um ca, ao mesmo tempo que é, sem dúvida,
verdadeiro desafio nesses tempos de políti- pequeno demais para a coreografia que ali
ca quase zero para a dança, sobretudo no se desenvolve, parece denotar o cuidado
âmbito municipal. Dessa vontade, surgiu o com que a Cia. da Ideia entra na cena cari-
empenho de se juntar a outros bailarinos e oca: tudo deve ser do tamanho deles, mos-
tornar real um trabalho que carregasse a trando que desde o início a ideia é mesmo
qualidade da dança atada ao senso de pro- a de construir um percurso, sem queimar
fissionalismo. Essa primeira batalha, ao que etapas. O início dessa viagem, com Estação,
tudo indica, a Cia. da Ideia venceu, e com começou muito bem. Metafórica e profis-
muitos méritos. sionalmente.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 13 DE NOVEMBRO • 2007

A dança baila entre


linhas e entrelinhas

OBERTO P EREIRA

A produção bibliográfica sobre a arte da


dança tem crescido muito no Brasil,
o lançamento, somente nesse primeiro se-
mestre de 2007, de três livros muito signifi-
cativos dessa produção.
ainda que as prateleiras dedicadas a ela, Bastante distintos entre si, esses livros
mesmo nas melhores livrarias da cidade, contemplam públicos diferentes, com modos
ainda se resumam a, no máximo, alguns tí- de tratar a dança também diferentes, inclu-
midos centímetros que reúnem alguns pou- sive com formatos diferentes, mas todos
cos títulos. Se reunir o que existe nessa área apontando sempre para o crescimento des-
nem sempre é tarefa das mais fáceis para sa demanda entre nós. São eles: Angel Vian-
nosso mercado de livros, tal fato vai na con- na: a pedagoga do corpo, de Enamar Ramos
tramão das expectativas de um perfil de (Summus); Contos de balé, de Inês Bogéa
pesquisadores que cresce a cada ano, sobre- (Cosac & Naify); e Cisne Negro: 30 anos de
tudo em razão da existência de cursos su- vida na dança, de Cássia Navas (Retrato
periores de dança (no Brasil, já contamos Editora).
com 12 deles, de norte a sul do país), um O primeiro é resultado de um doutora-
mestrado (na Universidade Federal da mento feito na área de teatro na UniRio e
Bahia, o primeiro específico de dança por mostra um perfil muito importante da mes-
essas terras) e algumas especializações tra da dança Angel Vianna: como seu mé-
lato sensu. todo corporal, denominado Conscientiza-
Para dar conta dessa produção científi- ção do Movimento, pode ser útil para a for-
ca, uma bibliografia voltada para área urge. mação de atores. A pesquisadora Enamar
Hoje, dissertações e teses são publicadas e provou ter fôlego para a pesquisa, articu-
coletâneas de artigos são consumidas rapi- lando informações históricas, estéticas e pe-
damente por um público ávido por referên- dagógicas, sem nunca perder seu objeto de
cias teóricas para seus trabalhos tanto teó- vista. Entretanto, algumas imprecisões, so-
ricos quanto práticos. Um bom sinal disso é bretudo no que se refere ao curso superior

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
em dança idealizado por Angel, não com- tidas por um leitor mais exigente.
binam com a meticulosidade do texto Já o terceiro livro comemora um feito: a
quando se dedica a explorar com afinco a existência, ou por que não dizer, a sobrevi-
relação entre o corpo pensado pela mestra vência de uma companhia particular de
e o ator em cena. dança no Brasil, que completa seus 30 anos:
O segundo é um livro escrito por uma a companhia Cisne Negro, dirigida por
bailarina e isso faz toda a diferença. A capi- Hulda Bittencourt. A pesquisadora paulista
xaba Inês Bogéa foi, durante anos, bailari- Cássia Navas debruçou-se em contar essa
na do Grupo Corpo e hoje se dedica, em São história num texto fluido, mas que hora
Paulo, à crítica de dança e a um doutorado alguma deixa escapar informações tanto ca-
na área. Com seu Contos de balé, ela preten- talográficas, quanto históricas e estéticas.
de atingir um público ainda pouco servido Trata-se de um típico livro de mesa, com
de livros sobre dança: o infantil. Essa é a requintado projeto gráfico e belas fotos das
segunda empreitada de Inês nesse sentido, coreografias históricas do grupo. Um livro
que já havia lançado em 2002, O livro da que já nasce como documento de uma his-
dança (Cia. das Letras). Agora, a originali- tória que se faz a cada dia, encarando o de-
dade fica por conta de sua proposta: narrar, safio de se produzir dança hoje nesse país.
do ponto de vista de algum personagem ou E é nesse sentido que o texto de Cássia tra-
não,a história de cinco balés do repertório fega, tornando a dança do Cisne Negro uma
clássico.Com belíssimo formato e ricamen- dança viva nas páginas que escreveu.
te ilustrado,sua iniciativa é louvável. Ape- Três produções bibliográficas distintas
nas alguns dados históricos sofrem por al- para públicos os mais diversos. Em comum,
gumas imprecisões que merecem ser revis- a certeza de que a produção teórica sobre
tas.E, claro,a ausência de mais fotos de bai- dança cresce no Brasil, mesmo que na mão
larinos brasileiros assim como a de algumas inversa das políticas públicas para essa área.
referências sobre as montagens no Brasil Pelo menos, pensa-se mais sobre a dança
(como, por exemplo, a clássica montagem hoje, entre nós, deixando estampados esses
integral de O lago dos cisnes,no Theatro pensamentos, sempre plurais, em livros que
Municipal do Rio de Janeiro, em 1959, a devem, em muito pouco tempo, rechear as
primeira nas três Américas) podem ser sen- prateleiras das livrarias mais cuidadosas
com seu público.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE NOVEMBRO • 2007

Descompasso entre
o tema e a coreografia
Nós, os outros: Companhia “oficial” da cidade,
Ateliê Coreográfico estreia com espetáculo fraco

ILVIA S OTER

N uma noite de chuva e caos na cidade,


os discursos de Ricardo Macieira e de
tidade postiça, construída de fora. O tema
vem sendo visitado com frequência e com-
petência por muitos coreógrafos cariocas
Regina Miranda, Secretário das Culturas e nos últimos anos como, por exemplo, Gusta-
Diretora do Centro Coreográfico do Rio de vo Ciríaco, Fred Paredes, Dani Lima, para
Janeiro, respectivamente, antecederam a citar apenas alguns.
estreia de Nós, os outros, primeiro espetácu- É Regina Miranda quem assina roteiro,
lo da Ateliê Coreográfico Companhia de direção e encenação de Nós, os outros.O es-
Dança. Segundo Macieira, o grupo estrea- petáculo reúne pequenas coreografias criadas
va também como a companhia oficial da ci- tanto pelos componentes da própria compa-
dade do Rio, ou “corpo estável”,nas palavras nhia, como por outros coreógrafos e professo-
do secretário. res do Ateliê,como Duda Maia, Marina Mar-
O Ateliê Coreográfico, carro-chefe do tins,Paulo Marques,Renata Diniz e João Pau-
Centro Coreográfico, nasceu como um proje- lo Gross.Dois momentos de autoria da pró-
to de formação em dança, e suas ações foram pria Regina Miranda abrem e fecham a peça,
assistidas pelo público em outras ocasiões, no tentando habilmente dar unidade ao conjun-
formato de encerramento das oficinas de cri- to.Mesmo que se perceba uma busca de cos-
ação. Nesta segunda fase, um grupo de 11 jo- tura entre uma cena e outra, na noite de es-
vens foi selecionado para formar a companhia. treia, a peça pecava pela falta de um fio con-
Nós, os outros pretende discutir a identi- dutor mais claro.Algumas cenas trazem de
dade brasileira a partir do olhar do outro. No forma explícita a discussão pretendida, como
programa do espetáculo, citações de Oswald aquela em que uma das bailarinas se apresen-
de Andrade e referências a Roberto da ta misturando sua identidade a uma lista de
Matta, Darcy Ribeiro e aos registros que clichês sobre a mulher brasileira, mas o trata-
Debret fez sobre o Brasil reforçam a pro- mento da questão também não escapa ao cli-
posta de exploração e rejeição de uma iden- chê.A complexidade da discussão sobre bra-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
silidade e alteridade não ganha em momento ano de atividades de formação do Centro
algum terreno fértil na cena. A diversidade do Coreográfico, o espetáculo já seria fraco.
povo brasileiro presente nesta companhia – Mas se compreendido como o Secretário das
como, aliás, na maior parte das companhias de Culturas anunciou, enquanto a coroação da
dança do país afora – não dá conta de acres- política pública de apoio à dança contem-
centar nada de novo ou de singular à questão. porânea iniciada na primeira gestão do Pre-
Neste caso, parece apenas reforçar o aspecto feito César Maia, a fragilidade de Nós, os
de integração social a que a ação do Ateliê se outros se torna ainda maior.
propõe. Na maior parte das cenas, o tema se- A política municipal de subvenção a 13
gue alheio ao que é dançado. companhias de dança – suspensa em 2005
O grupo, visivelmente empenhado e de- – foi durante anos referência no País e no
dicado à tarefa que lhe cabe, não encontra exterior. Essa nova etapa que reduz o apoio
nesta peça oportunidade para mostrar suas municipal a somente a Ateliê Coreográfico
possíveis competências nem como intérpre- Companhia de Dança não reflete nem de
te nem como criador. longe a criatividade, a riqueza e a diversi-
Como etapa de conclusão de mais um dade que a política anterior garantiu ao
panorama da dança do Brasil.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 4 DE NOVEMBRO • 2007

Criação como
diálogo de diferenças
Paradise city: Espetáculo australiano promove
encontro, troca e poesia no ginásio do SESC Tijuca

ILVIA S OTER

O Ginásio do SESC Tijuca transformou-


se numa inusitada pista de skate para
acolher Paradise city, do grupo australia-
vocação com flexibilidade e habilidade
para girar, e a rampa é invadida pelo ska-
tista e pelo ciclista, que são atrapalhados pe-
no Branch Nebula. O espetáculo, uma das los obstáculos criados pelos outros. Aquela
atrações do Panorama de Dança, faz sua possível conversa de surdos sugerida no iní-
última apresentação hoje, no mesmo local, cio da peça se transforma, assim, numa in-
às 17 horas. tensa e, na maioria das vezes, divertida tro-
Nesta arena, um ciclista de BMX, um ca de provocações. Um verdadeiro diálogo
skatista, um b-boy, uma bailarina loura e se estabelece. A improvisação, o erro e, prin-
atlética e uma acrobata são acompanhados cipalmente, o nonsense alimentam o jogo.
por uma cantora com ares decadentes. Por exemplo, a descida da imensa cortina de
Como espaço público, a cena é lugar de veludo vermelho, aparentemente estranha
coabitação das diferenças destes persona- à pista, ajuda a inserir a diva decadente na
gens do imaginário urbano, mas também faz cena. A música, gerada por computadores
emergir o que lhes é comum: o movimento. e executada ao vivo, não deixa que o jogo
Num primeiro momento da peça, suas es- se desmanche mesmo nas pausas.
pecificidades cinéticas e suas competên- O espaço urbano, com frequência tratado
cias são exibidas e confrontadas com as dos como ambiente de exacerbação do individu-
outros. Cada corpo é sublinhado pela sua alismo, ganha em Paradise city outros tons. A
movimentação característica e por suas ex- juventude dos intérpretes reforça a potência
tensões: o figurino, a voz, o microfone, a bi- criativa deste espaço e justifica o título da
cicleta, o skate, a rampa etc. Não é possí- peça. Ainda que cada um ali seja diferente e
vel imaginar o ciclista sem as rodas ou a que, sobretudo, fale uma língua cinética dis-
cantora sem sua cortina vermelha. tinta, não há nada que impeça que haja encon-
Aos poucos, no vazio desta pista, um jogo tro, troca, poesia e dança. Paradise city tem
é estabelecido. O dançarino de break desa- também o mérito de atrair para a dança con-
fia a bailarina loura, que responde à sua pro- temporânea espectadores de todas as idades.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 10 DE DEZEMBRO • 2007

Excesso de devoção
em espetáculo sem desafios
Excelência da bailarina Maria
Alice Poppe sobressai
OBERTO PEREIRA

E xistem dois facilitadores que funcio-


nam como eixos para o espetáculo
Atempo,que Tato Taborda concebeu e di-
tes da dança brasileira. Existe aí, sem dúvi-
da, um caminho amaciado pela emoção que
sua figura provoca. O perigo está justamen-
rigiu para a bailarina Maria Alice Poppe, te quando essa emoção beira a devoção,
que estreou na última quinta-feira no Es- entupindo os canais dos desafios mais difí-
paço SESC. Como trata do tempo,tentou- ceis se não houvesse tal facilidade. Talvez
se escapar a qualquer custo de sua dimen- Maria Alice precisasse, freudianamente,
são cronológica e causal, mas a escolha de processar, tal como o filho o faz com sua mãe,
se trabalhar com uma criança e uma mes- sua relação com a mestra. E, assim, acredi-
tra da dança, que aparecem dançando em tar também que seu corpo já abriga essa
vídeos projetados em telões,de certa for- mestra e a carrega como informação e re-
ma a recupera. conhecimento.
Como não cair nas armadilhas da linea- A coreografia, assinada por Alexandre
ridade temporal, estampando na cena três Franco, parece também sucumbir a essas fa-
fases tão simbólicas da vida de uma mulher, cilidades, o que a torna quase como um de-
como a infância, a maturidade e a velhice? calque no corpo da bailarina. É interessan-
Será que a própria dança de Maria Alice, te perceber como são nos movimentos lar-
cuja excelência arremata em simultaneida- gos e amplos que Maria Alice deixa esca-
de essas três fases,não daria conta sozinha par suas habilidades técnicas mais históri-
de discuti-las? Esse primeiro facilitador se- cas, entregando-se aos olhos dos familiari-
ria mesmo necessário? zados com sua dança. E é justamente nesses
Outra questão: essa é a terceira vez que pequenos momentos que ela nos prova o que
Maria Alice trabalha com sua mestra An- Ilya Prigogine nos mostrou através da ciên-
gel V ianna, um dos nomes mais importan- cia: o tempo é mesmo irreversível.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 13 DE DEZEMBRO • 2007

A proposta é clara,
mas a dança é sem ousadia
Atempo: Maria Alice Poppe refaz sua trajetória

ILVIA S OTER

D esde que saiu da Staccato Dança Con-


temporânea, companhia que fundou
com o coreógrafo Paulo Caldas, Maria Alice
gel e a criança Sofia Arruda como desdo-
bramentos da própria intérprete. Sofia apa-
rece dançando vestida de bailarina numa
Poppe vem buscando outra inserção no ce- das salas da Escola Angel Vianna. Esta casa-
nário da dança carioca. Sem embarcar na tri- ventre materno reforça a ideia de origem.
lha dos intérpretes-criadores, a bailarina tem A proposta de Atempo aparece em cena
colocado suas inúmeras qualidades a serviço de forma clara, mas, apesar da clareza e da
de outros coreógrafos. Ainda que não assine coerência com que é construído, o espetá-
as peças que dança, nem por isso deixa de es- culo se vê amarrado no que pretende tratar.
tar no centro de seus novos projetos. No ano A estrutura da dramaturgia, regular em ex-
passado, dançou o ótimo Tempo líquido, que cesso, não vai além de expor sua ideia. Em
Maurício de Oliveira criou a seu convite para tempo real, Maria Alice busca uma movi-
os Solos de Dança no SESC. Já em Atempo – mentação apenas possível, muitas vezes mí-
em cartaz no mezanino do Espaço SESC até nima, como se seu corpo estivesse apertado
domingo –, é em torno de sua trajetória como neste tempo presente. Na tela, o tempo es-
bailarina que o espetáculo se constrói. corre para frente e para trás, na criança, em
O texto do programa expõe a mudança Angel que ali é passado, origem e também
da ideia inicial, a de trabalhar a partir de um possível devir. Em outros momentos, a
Alice através do espelho, para a de tratar bailarina se funde com a sua própria ima-
desta outra Alice, a Maria Alice “na vida gem projetada ou dela se descola.
real”. Para tal, a intérprete recorre a parce- Ainda que assistir a Maria Alice Poppe
rias anteriores e fundadoras de sua histó- dançar seja sempre uma experiência enri-
ria, como sua mestra Angel Vianna, o co- quecedora e prazerosa, a coreografia de Ale-
reógrafo Alexandre Franco, que já coreo- xandre Franco não ousa ou se arrisca e aca-
grafou intérprete e mestra em outra oca- ba apenas por reforçar o que dela é conheci-
sião, e o músico Tato Taborda, autor da tri- do. Nem a paralisia é assumida integralmen-
lha de Tempo líquido, que, além da música, te, nem a dança irrompe para impor a Maria
agora assina roteiro e direção. Alice novos e merecidos desafios ou ainda
Nesta peça, três telões – uma possível para jogar de forma mais livre com as diver-
referência aos espelhos do texto de Lewis sas temporalidades de sua dança. Tempora-
Carroll – multiplicam o número de mulhe- lidades que convivem inevitavelmente em
res em cena. Além de Maria Alice, presen- qualquer corpo, mas que aqui são sublinha-
te e em vídeo, outras imagens trazem An- das de forma excessivamente didática.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE DEZEMBRO • 2007

Bela récita, apesar dos nós


Roberta Márquez e Thiago Soares perdem a sincronia

OBERTO PEREIRA

P ode-se dizer que o ballet O quebra-no-


zes é parte obrigatória dos festejos na-
talinos em todos os países em que essa data
Alguns pequenos problemas de remonta-
gem, como o andamento dramatúrgico um tan-
to esgarçado da cena dos festejos na casa dos
é comemorada e em que exista uma com- barões, ou a da falta de ensaios na cena dos
panhia apta a encená-lo. E como não existe soldadinhos, ambas do prólogo, não impediram
apenas uma versão oficial, cada companhia que a récita contasse com ótimos momentos. Os
em cada país concede à sua remontagem ca- alunos da Escola de Dança Maria Olenewa
racterísticas próprias a essa tradicional merecem o primeiro destaque. Hélio Bejani
composição de Tchaikovsky. acertou em sua atuação como Drosselmeyer,
No Brasil, não seria diferente. A primei- o trio dos Mirlitons formado por Karina Dias,
ra e única companhia de balé clássico do País, Filipe Moreira e Rodrigo Negri estava impe-
a do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, cável e todo o corpo de baile mostrou-se coe-
abriga em seu repertório por mais de 25 anos so. Vale ressaltar dois jovens de grande futuro:
uma versão que já ganhou um selo nacional Irlan Santos, que brilhou na dança russa, e
e que possui ainda tons cariocas, assim como Amanda Assucena, perfeita como Clara.
a árvore de Natal da Lagoa. Assinada por Já Roberta Márquez e Thiago Soares pro-
Dalal Achcar, essa versão foi felizmente res- varam porque ocupam hoje postos de desta-
gatada após seis anos de ausência no princi- que em uma das mais importantes companhi-
pal palco da cidade, graças à gestão de Mar- as de ballet do mundo. No grand pas-de-deux,
celo Misailidis e sua equipe na direção da mostraram suas evidentes qualidades: en-
companhia, e graças também às novas e pro- quanto Thiago executou sua variação com
missoras gestões da Secretaria Estadual de elegância, minúcia e aplomb, Roberta dei-
Cultura, de Adriana Rattes, e da Fundação xou que exatidão e graça fossem a marca da
Teatro Municipal, de Carla Camurati. sua. Entretanto, na coda, uma evidente des-
A segunda récita da temporada contou sintonia entre os dois não permitiu a perfei-
com casa cheia e muita expectativa com as ção que essa parte do balé demanda.
participações especialíssimas de Roberta Trazer O quebra-nozes de volta à sua casa
Márquez e Thiago Soares, bailarinos forma- carioca, e brasileira, é dar à cidade e ao País
dos aqui e que pertenceram ao Theatro um excelente presente de Natal. Outro exce-
Municipal, hoje primeiros bailarinos no lente presente seria a certeza de que essa com-
Royal Ballet de Londres. Sem dúvida, tra- panhia contará com dias melhores no ano que
tou-se de uma comemoração natalina e tan- se anuncia, com temporadas que façam jus ao
to e o público soube reconhecer isso. papel que ocupa no cenário nacional.

189
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 18 DE DEZEMBRO • 2007

O balé de uma nota só


Panorama da dança não muda em relação a 2006,
e companhias lutam com criatividade para driblar
a falta de investimento do poder público

OBERTO P EREIRA

P assando os olhos sobre a retrospectiva


do ano de 2006, publicada pelo Jornal
do Brasil (em 27 de dezembro), pode-se
Em âmbito estadual, a esperança come-
ça a surgir com a nova secretária da cultu-
ra, que tem em seu passado ligações com a
constatar um quadro bastante similar ao dança. Desse modo, espera-se que desastres
que aconteceu nas danças carioca e brasi- como a curta gestão passada à frente da
leira neste ano de 2007.Algumas dessas per- Fundação Teatro Municipal, que fez com
manências são absolutamente lamentáveis, que a única companhia de balé clássico do
e outras representam um alívio por sua con- País se apresentasse em três parcas tempo-
tinuidade. radas, possam ser evitados. Projetos como
A política, ou melhor, a ausência de po- apresentações de dança contemporânea
lítica para esta área em nível municipal con- aos domingos ao preço de R$ 1 no Munici-
tinua catastrófica. Nada de pertinente foi pal, assim como o de circulação de compa-
realizado e ainda por cima há que se engo- nhias pelo Estado devem ser urgentemente
lir goela abaixo a recém-criada Atelier reconsiderados.
Coreográfico Companhia de Dança, justa- Já em nível federal, os prêmios da par-
mente numa época em que todas as compa- ceria Funarte/Petrobras continuam salvan-
nhias públicas do Brasil estão se reunindo do a pele daqueles que ainda teimam em
para questionar seus modos de existência e viver de dança. Há, entretanto que se lem-
enquanto importantes companhias cariocas brar: salvar a pele é algo que se cumpre
lutam de todos os modos para sobreviver. durante um curto espaço de tempo, e a dan-
Fora isso, não há projetos consideráveis e ça, sabemos nós, carece de permanências e
mesmo os teatros que outrora abrigavam continuidades para existir.
espetáculos de dança, como o Espaço Sér- Como se vê, pouco mudou. Mesmo as-
gio Porto e o Teatro Carlos Gomes,hoje es- sim, tivemos muita dança de qualidade pela
tão absolutamente esquecidos pelos artistas cidade. Os principais festivais continuam
e pelo público,infelizmente. os mesmos três: Festival Panorama de Dan-

190
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
ça, Dança em Foco e Solos de Dança no o aniversário de 80 anos da Escola Estadual
SESC. Aliás, vale ressaltar a atuação do Es- de Dança Maria Olenewa, a primeira esco-
paço SESC, palco que abrigou as mais im- la oficial de dança do Brasil e representan-
portantes estreias cariocas e continua te máxima de sua tradição nessas terras.
cumprindo com as funções de um centro co- João Saldanha, Lia Rodrigues e Grupo
reográfico, abrigando também ensaios de Corpo são os brasileiros que merecem sem-
companhias, promovendo aulas de dança e pre destaque por tudo que representam de
formando plateias. qualidade em dança. Já os novos ares trazi-
Das atrações internacionais, vale mencio- dos por Marcela Levi e pela jovem Focus
nar a vinda de Baryshnikov e sua nova Cia. de Dança (há que se relevar a inade-
companhia, assim como a Nederlands Dans quação do nome dessa companhia, por fa-
Theater II, que apresentou 27’52’’, uma obra- vor) nos dão boas esperanças do que ainda
prima de Jiri Kylián. Em contraposição, ques- teremos por vir.
tiona-se a iniciativa de se apresentar compa- A maior de todas as esperanças da dan-
nhias como a nova-iorquina Complexions, ça brasileira é que a próxima retrospectiva
com seu jazzdance empoeirado e, sobretudo, do ano seja diferente nos pontos que assim
a Momix Dance Theatre, que fez aqui uma mereçam. E também que a dança carioca,
de suas piores e mais amadoras apresenta- feita aqui e apresentada pelo mundo afora,
ções, numa verdadeira ação caça-níqueis. continue sendo destaque em mais tantas
Um grande motivo de comemoração é outras retrospectivas.

MELHORES DO A N O

1 – Ballet do Theatro Municipal em Manipulações sobre as forças do vazio, de João


Saldanha
2 – Lia Rodrigues Companhia de Danças em Encarnado
3 – Grupo Corpo em Breu
4 – Nederlands Dans Theater II
5 – Baryshnikov e a Hell’s Kitchen Dance
6 – Paula Águas em Caminho aberto, de Mário Nascimento
7 – Flávia Tápias em 5 coreógrafos e 1 corpo
8 – Marcela Levi em in-organic
9 – Focus Cia. de Dança em Outro lugar

10– Boris Charmatz em Gala

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 20 DE DEZEMBRO • 2007

Alegria para encerrar


a temporada de balé
O quebra-nozes: Montagem conquista o público

ILVIA S OTER

C omo manda a tradição, O quebra-


nozes encerra a temporada 2007 do
Theatro Municipal, presente com seu balé,
até o reino das neves, a integração do grupo
custou a acontecer.
Apesar do cenário e dos figurinos de
orquestra e coro. A montagem de Dalal Ach- tons excessivamente infantis, a dança cres-
car é velha conhecida do público carioca, ce com mais ritmo e precisão nas variações
apesar de ter estado fora dos palcos nos úl- de todo o segundo ato, com destaque para
timos seis anos. Seu ponto forte é a ênfase os Mirlitons.
na teatralidade. Este balé, especialmente Os papéis principais estiveram a cargo de
sedutor para o público infantil, ganha ape- Roberta Márquez e Thiago Soares, dois ta-
los maiores com a presença de um grande lentos brasileiros egressos do Ballet do The-
elenco de crianças e com a garantia do hu- atro que hoje fazem parte do hall de bailari-
mor, na versão de Dalal. nos principais do Royal Ballet de Londres e
Já no prólogo, a riqueza de detalhes da que estiveram no Rio, como convidados, es-
ambientação se faz presente. A iluminação pecialmente para estas apresentações. Visi-
de Maneco Quinderé reforça a magia do velmente nervosa, a competente Roberta
cenário de José Varona, especialmente ade- Márquez teve uma performance correta, po-
quado na cena do interior da casa. O elenco rém tímida, na sua reestreia no palco onde já
adulto e infantil, numeroso e bem caracteri- brilhou por tantos anos. Seguro e tranquilo,
zado, convence nesta festa de Natal europeia. Thiago Soares garantiu bons momentos
Para esta montagem, além dos solistas e do como o príncipe, mostrando seu amadureci-
corpo de baile do Theatro, o elenco foi refor- mento e suas inúmeras qualidades, sem afe-
çado pela presença de convidados como, por tação. Provavelmente prejudicados pelo pou-
exemplo, o ótimo Irlan Santos, além das cri- co tempo de ensaio, faltou ainda maior inte-
anças da Escola de Dança Maria Olenewa. gração entre os dois no grand pas-de-deux.
Mas alguns ajustes ainda se fazem neces- Num ano de “vacas magras” para a dan-
sários para que a grandiosidade da parte te- ça, a montagem de O quebra-nozes,em car-
atral possa achar equivalente na dança. No taz até o dia 28, cumpre com dignidade a fun-
último fim de semana, sobretudo no prólo- ção de encerrar a temporada desta impor-
go e no primeiro ato, as cenas de conjunto tante companhia com alegria e uma casa
demoraram a encontrar a harmonia neces- cheia – da plateia à galeria –, como rara-
sária. A cada cena, da batalha dos soldados mente aconteceu em 2007.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 21 DE DEZEMBRO • 2007

A coreografia como organismo vivo


João Saldanha prova competência
ímpar em novo espetáculo

OBERTO PEREIRA

M onocromos, nova obra do coreógrafo


João Saldanha que estreou anteontem
no Espaço SESC, é uma daquelas provas
mos poucos no Brasil hoje assim. E isso se
vê na dança na qual ele acredita e executa
com competência ímpar.
elegantes de que uma boa ideia é um orga- O elenco está afinadíssimo, mas vale
nismo vivo que necessita apenas de um am- ressaltar a performance de Thiago Grana-
biente propício que a permita continuar to, cujo movimento é tradução fina e exata
existindo. Neste caso, essa boa ideia é Ma- da ideia que ali se propõe. O figurino, a am-
nipulações sobre as forças do vazio, excelen- biência cênica, a iluminação, tudo é coeso,
te obra que João compôs para o Ballet do numa economia que torna cada passo um
Theatro Municipal no início do ano. E seu teorema sobre a própria arte da dança. A
continuar existindo aparece com todo o vi- trilha sonora com composições de Ligeti
gor de uma dança acabada, cênica e coreo- auxilia na confecção de espaços às vezes
graficamente, nessa obra de agora. densos, às vezes fluidos, que são preenchi-
Embora pronta, espetacularmente aca- dos pelos bailarinos.
bada, Monocromos é uma obra viva que se A discussão sobre o espaço e o vazio
desdobra nela mesma ao estabelecer diálo- está lá. Mas o que mais impressiona é ver
gos com a obra que a gestou e com tudo o um artista fazer de suas ideias prolonga-
que poderá ainda vir dali como pensamen- mentos elegantes de algo cujo ambiente,
to de dança. João Saldanha é um daqueles em tempo e em espaço, temos o privilégio
artistas que não se rende a tendências. Te- de compartilhar.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2007

Coreografia precisa,
como um ato cirúrgico
Monocromos: Uma joia rara no Espaço SESC

ILVIA S OTER

J oão Saldanha é um destes artistas cujas


questões que persegue podem ser reco-
nhecidas de peça em peça. Cada uma de suas
o teatro e se estabelece como presença equi-
valente à de um dançarino, relação que
manterá até o fim da peça. Uma vez ilumi-
criações deve ser lida como etapa de uma nada, a dimensão do espaço cênico – muito
pesquisa que faz questão de manter-se sem- maior do que a plateia – subverte a propor-
pre em estado de processo, toda coreogra- cionalidade habitual. A música de Ligeti e
fia trazendo algo que aponta para a seguin- a luz de Adelmo Lapa não são adicionais à
te. Quando há proximidade no tempo entre escrita de Saldanha, mas pulsam em cena
elas, como é o caso em Monocromos – nova como pontos fundamentais.
etapa da pesquisa iniciada em Manipula- Num primeiro momento, Monocromos
ções sobre as forças do vazio,peça que criou se desenha como um mesmo solo que a
para o programa Coreógrafos brasileiros cada vez que é dançado se diferencia de
para o Ballet do Theatro Municipal no pri - modo sutil. A presença, ao mesmo tempo
meiro semestre –, essa ideia de desdobra- intensa e sóbria, de Jamil Cardoso,Laura
mento se faz ainda mais evidente. Monocro- Samy, Marcelo Braga, Thiago Granato e
mos teve sua pré-estreia no último Festival Vivian Miller instaura um ambiente de
Panorama de Dança e, felizmente, voltou solenidade coerente e necessário à peça.
para uma curta temporada, até amanhã, no A os poucos,as figuras como duos,trios,va-
mezanino do Espaço SESC. zios e conjuntos se desdobram, sem deixar
Já há alguns anos,o interesse de João Sal- que a singularidade de cada intérprete seja
danha se voltou para a relação do corpo que deixada à sombra. O espaço se condensa e
dança e o espaço que esta dança secreta para se dilata, dentro e fora do corpo que dança,
depois ocupar, questão fundadora do projeto em trajetos regulares, desvios, linhas retas,
da dança moderna. Não é também por acaso curvas e espirais. E é dessas estruturas co-
que a obra de Oscar Niemeyer esteve no cen- reográficas, simples apenas na superfície,
tro de Extracorpo, seu penúltimo trabalho. que a sofisticação da escrita de João Sal-
Proporção, volume,tensão entre figura e fun- danha vai emergir. O título da peça pode
do são apenas algumas das ideias que vêm ser entendido quase como uma provocação
servindo de matéria para as últimas criações já que é na insistência numa aparente re-
do coreógrafo e que, em Monocromos, estão gularidade que a variação explode. Mono-
sintetizadas com maestria. cromos é uma joia rara que mostra que co-
Antes mesmo de a luz se insinuar na reografar pode ser um gesto preciso como
cena, a música cresce em volume, preenche um ato cirúrgico.

194
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE DEZEMBRO • 2007

Os melhores espetáculos
de dança de 2007
ILVIA S OTER E S UZANA V ELASCO

Mikhail Baryshnikov Encarnado


À frente da Hell’s Kitchen Dance, compa- Lia Rodrigues
nhia de dança contemporânea que criou com Companhia de Danças
jovens bailarinos, o grande dançarino e co- Depois de dois anos de turnê interna-
reógrafo russo provou, no Theatro Munici- cional, desde sua estreia na França em 2007,
pal, que o tempo trabalhou a seu favor. Ele o mais recente espetáculo da Lia Rodrigues
se mostrou em forma, preciso e delicado em Companhia de Danças chegou ao Rio, no
cada gesto, movendo-se com simplicidade, palco do Espaço SESC. Baseada no livro Di-
bom humor e maestria. ante da dor dos outros, de Susan Sontag, a
peça tratava a dor de maneira seca, poética
e contundente.
Nederlands Danse Theater II
Danse
Com idades entre 17 e 22 anos, os integrantes
da companhia holandesa – entre eles, a cario- Breu
ca Nina Botkay – mostraram no Rio porque O Grupo Corpo fez a sua temporada anual
formam um dos mais festejados grupos de no Rio apresentando o novíssimo Breu.
dança da atualidade. No programa, destacou- Nesta peça, o coreógrafo Rodrigo Peder-
se 27’52’’, peça do tcheco Jiri Kylian, criador neiras adulterou o que já havia feito antes,
do grupo que, em sua origem, tinha o objetivo lançou-se num novo desafio e traduziu tudo
de alimentar posteriormente a companhia- em dança, com a competência de sempre.
mãe Nederlands Danse Theater. Mas isso é
passado. A NDT 2 esbanjou brilho próprio.
O quebra-nozes
Clássico incontestável das temporadas
Monocromos natalinas, O quebra-nozes, na versão de
Última estreia de 2007, Monocromos apre- Dalal Achcar, foi remontado pelo Thea-
sentado no Espaço SESC, é uma joia rara. tro Municipal, depois de uma ausência
João Saldanha sintetizou, nesta peça, as ques- de seis anos, e comprovou que, antes de
tões que lhe têm servido de matéria – pro- tudo, é uma obra popular. O público lo-
porção, volume e tensão entre figura e fun- tou as récitas e provocou a prorrogação
do – e demonstrou que coreografar pode ser do balé, que ganhou apresentações ex-
um gesto preciso como um ato cirúrgico. tras em 20 08.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Bull Dancing Clandestino e Como?
Dividindo seu tempo entre Brasil e Holanda, Numa curtíssima temporada no Espaço
o piauiense Marcelo Evelin debruçou-se so- SESC, com seus espetáculos Clandestino e
bre a manifestação folclórica do Bumba meu Como?, a dupla de coreógrafos e bailarinos
boi para recombinar os elementos da festa Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira
popular a partir da ótica da desconstrução. mostrou a sofisticação com que vem tratan-
do das misturas possíveis entre as danças
populares e a investigação contemporânea.

196
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2008 CRÍTICAS

O GLOBO - 27 DE JANEIRO DE 2008


Muita literatura para pouca dança
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 15 DE FEVEREIRO DE 2008


Em busca de uma identidade
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 17 DE FEVEREIRO DE 2008


Voo rasante de uma companhia com história
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 18 DE FEVEREIRO DE 2008


Falta ensaio, falta coesão
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 22 DE FEVEREIRO DE 2008


Coreografia cai na armadilha da literatura
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 24 DE FEVEREIRO DE 2008


Elenco de primeira, repertório discutível
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 9 DE MARÇO DE 2008


Veteranos do movimento alternam tecnologia, nonsense e elegância
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 9 DE MARÇO DE 2008


Uma celebração pautada pelo frescor da criação
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 16 DE MARÇO DE 2008


Coreografias inéditas apresentam risco e surpresa no Espaço SESC
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 21 DE MARÇO DE 2008


Gesto vira pilar coreográfico
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 31 DE MARÇO DE 2008


Mistura irregular de épocas e estilos
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 14 DE ABRIL DE 2008


Giselle mantém a aura de clássico
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 16 DE ABRIL DE 2008


Ânimo renovado para a temporada
SILVIA SOTER

197
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO - 27 DE ABRIL DE 2008
Verborragia de movimentos no flerte de
Deborah Colker com a dança-teatro
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 27 DE ABRIL DE 2008


Falta habilidade na coreografia
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 16 DE MAIO DE 2008


Entretenimento profissional
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 18 DE MAIO DE 2008


Dois caminhos possíveis de apoio à dança
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 1 DE JUNHO DE 2008


Metade do espetáculo já bastaria
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - SEGUNDA-FEIRA, 09 DE JUNHO DE 2008


Bailarinos se entregam
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 20 DE JUNHO DE 2008


Transcriação shakespeariana
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 26 DE JUNHO DE 2008


Desafio é desfazer má impressão da companhia Russian State Ballet
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 6 DE JULHO DE 2008


Russos continuam devendo
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 7 DE JULHO DE 2008


Balé para gente pequena
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 9 DE AGOSTO DE 2008


Sobre o palco, um ofício que se leva a sério
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 15 DE AGOSTO DE 2008


Rigor sem espaço para o desvio
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 20 DE AGOSTO DE 2008


Começo bom, mas com fim frustrante e triste de ver
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 12 DE SETEMBRO DE 2008


Qu’eu isse
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 7 DE SETEMBRO DE 2008


Recriação que vira futuro
ROBERTO PEREIRA

198
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL - 9 DE SETEMBRO DE 2008
Em processo de conhecer seus próprios limites
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 13 DE SETEMBRO DE 2008


Parceria explora os limites corpóreos
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 18 DE SETEMBRO DE 2008


Na Bienal de Lyon, passado e futuro em harmonia
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 20 DE SETEMBRO DE 2008


Uma construção cristalina
SILVIA SOTER

O GLOBO - 28 DE SETEMBRO DE 2008


Quatro corpos descrevem o amor
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 31 DE OUTUBRO DE 2008


A dimensão exata da dança atual
ROBERTO PEREIRA

CRÍTICA NÃO PUBLICADA


Espetáculo H3 de Bruno Beltrão
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 2 DE NOVEMBRO DE 2008


Cada gesto é um pequeno mundo
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 03 DE NOVEMBRO DE 2008


Visão genial do cotidiano
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 4 DE NOVEMBRO DE 2008


Longe dos estereótipos da rua
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 17 DE NOVEMBRO DE 2008


Uma lição de obviedade e perda de tempo
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 5 DE DEZEMBRO DE 2008


De frente para o público
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 15 DE DEZEMBRO DE 2008
A atualidade que a obra sugere, mas não mostra
ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 19 DE DEZEMBRO DE 2008


João Saldanha abre o seu processo de criação
SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 27 DE DEZEMBRO DE 2008


Poder público quase mata o ofício da dança
ROBERTO PEREIRA

199
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
200
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 27 DE JANEIRO • 2008

Muita literatura
para pouca dança
Algum lugar fora do mundo: Excesso de citações
compromete espetáculo da Cia. Corpos Nômades

ILVIA S OTER

O coreógrafo João Andreazzi, radicado


em São Paulo, e a Cia. Corpos Nôma-
des chegaram ao Rio de Janeiro com o es-
tribuídas diversas barracas de camping,
“relicários” segundo a companhia. O pú-
blico é levado – de modo muitas vezes
petáculo Algum lugar fora do mundo que en- bastante impositivo e autoritário – a par-
cerra hoje sua curta temporada no Teatro ticipar e a entrar nas barracas, já que
Nelson Rodrigues. Definida no convite parte da peça acontece dentro delas.
como um “espetáculo multidisciplinar onde Cada barraca abriga o universo de um dos
a dança contemporânea dialoga com o tea- artistas cujos textos alimentam o espetá-
tro e as palavras de Rimbaud, Artaud, Bau- culo, o que faz com que a experiência de
delaire,Cocteau, Fernando Pessoa e Buñuel”, cada espectador seja única, impedindo
a peça pretende tratar de questões impor- que a peça seja vista e experimentada em
tantes da vida contemporânea. sua totalidade. Uma prática que denun-
Já no foyer,o público é convidado a se cia a fragmentação do olhar e a parciali-
relacionar com os atores/músicos/baila- dade das experiências, mas que já foi
rinos que buscam estabelecer um diálo- exaustivamente utilizada pelo teatro e
go, olhos nos olhos e mesmo através de pela dança nas últimas décadas.
contato físico, com boa parte dos espec- Na profusão de acontecimentos, textos
tadores.A cena se desenvolve,então,den- falados, deslocamentos pelo espaço, perso-
tro do teatro onde atores e público circu- nagens teatralmente construídos e defen-
lam entre a plateia e o palco.A estrutura didos, projeção de vídeos e barracas que
italiana do Teatro Nelson Rodrigues pa- se pretendem instalações de artes plásti-
rece pouquíssimo funcional para a pro- cas, a dança acaba por ocupar um lugar
posta do grupo,o que deixa imaginar que bastante secundário no espetáculo, apesar
o espetáculo tenha sido concebido para da boa qualidade do trabalho de alguns
outro tipo de espaço cênico. No fundo do bailarinos. Sempre no centro do palco, a
palco,dispostas em semicírculo,estão dis- dança parece apenas preencher as lacu-

201
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
nas deixadas pela descostura da dramatur- multidisciplinar. O que poderia servir
gia e não chega a ganhar uma força mai- como ampliação dos recursos empregados
or. Não seria possível imaginar Algum lu- para construir um sentido – ainda que não
gar fora do mundo sem seus personagens linear – para a dramaturgia se esgarça
e textos, mas sem a dança a peça não per- num excesso de referências e de citações
deria sua identidade.E Algum lugar fora que se diluem sem antes ser suficiente-
do mundo se perde na forma como trata o mente exploradas.

202
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 15 DE FEVEREIRO • 2008

Em busca de
uma identidade

OBERTO PEREIRA

A temporada de dança de 2008 no Rio


de Janeiro teve início nessa última
quarta-feira, no Espaço SESC, pela jovem
que vão ganhando a cena coreográfica na
cidade. A Focus Cia. de Dança apresenta,
através de B612 – O essencial é invisível
Focus Cia. de Dança. Pela importância sim- aos olhos,um futuro interessante, porque
bólica desse momento, vale pensar como o carrega consigo, de forma exemplar, um
lugar e o espetáculo onde ele aconteceu passado,em corpos tão jovens.Não à toa, a
são emblemáticos hoje na cidade. O lugar plateia da estreia misturava ícones do balé
reafirma mais uma vez a importância, qua- clássico com artistas arrojados da dança
se vital, que o Espaço SESC adquiriu para contemporânea carioca. Um feito,há que
a dança carioca. Além de funcionar como se dizer.
uma espécie de centro coreográfico, abri- Justamente por ser tão jovem, aFocus co-
gando importantes estreias e ensaios de loca como questão para o público qual é o tem-
companhias, agora lançou-se também, em po que se deve conceder para que seu coreó-
mais uma de suas felizes iniciativas, como grafo,Alex Neoral, ainda possa encontrar sua
um fomentador de companhias, subsidian- assinatura coreográfica. No espetáculo apre-
do cinco delas, com verbas que as permi- sentado,por exemplo,é possível rastrear,de
tem um pouco mais do que a simples sobre- forma nítida, os artistas a quem Neoral pede
vivência. Vale lembrar de um projeto se- as bênçãos para poder criar. Mesmo com sua
melhante, abandonado pela Secretaria das evidente competência em coreografar, talvez
Culturas, que, tempos atrás, distinguiu a seja sua hora de abandonar um certo “saber-
dança que se fazia por aqui da do resto do fazer” para buscar o risco de novas possibili-
País. Hoje, o SESC tomou para si essa tare- dades.É justamente agora, nesse momento em
fa e a Focus, por exemplo, é uma dessas cin- que a companhia é tão jovem, coesa e talen-
co companhias. tosa, que esse risco deveria aparecer.
Já o espetáculo é emblemático, porque A o contrário, Neoral aposta em certos
sinaliza a potencialidade de jovens talentos truques de dança contemporânea um tanto

203
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
gastos. A trilha sonora, por exemplo, assina- música, o que se vê ali é uma busca, algo
da por Lucas Marcier e Rodrigo Marçal, essencial para a dança contemporânea.
prima pela narratividade, algo imperdoável, Alex Neoral e sua Focus Cia. de Dança
pois apenas funciona como legenda ao es- ainda têm tempo para testar novas danças.
petáculo. Os figurinos, sobretudo as calças, Por isso, foram apontados no fim do ano pas-
merecem ser rapidamente revistos, pois su- sado pelo Jornal do Brasil como uma promes-
blinham um modo empoeirado de compre- sa. Assim, esse espetáculo pode ser encarado
ender cenicamente a dança, que não com- como um exercício para sua consolidação
bina com o vigor da companhia. como coreógrafo e como companhia.
Talvez o momento em que se pode fla- E finalmente: sobre a obra O pequeno
grar um respiro de algo realmente novo no príncipe, que deveria ter inspirado o espe-
espetáculo seja o duo executado pelos ex- táculo,esqueça. Ela simplesmente não apa-
celentes Clarice Silva e Márcio Jahú. Sem rece em cena.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 17 DE FEVEREIRO • 2008

Voo rasante de uma


companhia com história
Revoada: Espetáculo que comemora 30 anos
da companhia Cisne Negro não honra sua trajetória

ILVIA S OTER

H á muito sem se apresentar no Rio de


Janeiro, a Cisne Negro Cia. de Dan-
ça encerra hoje uma curtíssima temporada
Presente do mesmo coreógrafo à Hulda
Bittencourt pelos 30 anos da Cisne Negro,
1,2...7,também com música de Stravinsky,é
no Teatro SESC Ginástico. Comemorando os uma peça só para homens.Mais teatral que
seus 30 anos de existência, com Hulda Bit- a primeira, a peça apoia-se numa tentativa
tencourt como diretora artística, a Cisne Ne- de humor que só a fragiliza. O elenco mas-
gro é símbolo de qualidade, bons bailarinos culino,tecnicamente menos competente que
e resistência, neste ambiente da dança bra- o elenco feminino, não dá conta nem dos
sileira sempre sujeito a marés cambiantes. aspectos teatrais nem das variações com
Diante disso, Revoada não honra o histórico precisão.A poesia e o humor pretendidos
dessa companhia e não parece representa- ficam apenas como promessa.
tivo de sua trajetória. Anéis,de Dany Bittencourt, com trilhaes-
A coreografia Revoada, de Gigi Caciule- pecialmente composta por A driana Calcanho-
anu, primeira do programa e criada por en- to,tem um início promissor,em que o swing
comenda para a companhia, traz a figura do da música ganha uma movimentação simples
pássaro – do cisne mais especificamente – e ondulante nos corpos das bailarinas.Infeliz-
alimentada por duas obras de Igor Stravinsky: mente, essa simplicidade se perde numa co-
Firebird e Fireworks. Jogando com o negro e reografia repleta de clichês que não se desen-
o vermelho nos figurinos, a peça explora os volve nem nas figuras espaciais,nem na rela-
movimentos ondulantes dos braços, ícone do ção com a música ou com os objetos.Os figuri -
cisne na dança cênica e já explorado à exaus- nos reforçam na peça seu aspecto escolar,
tão por inúmeros coreógrafos ao longo do como se a coreografia fosse apenas uma
século passado. Excessivamente frontal e amálgama de sequências de sala de aula.
previsível, e visivelmente mal adaptada ao Completar 30 anos de atividades de dan-
palco do SESC Ginástico, a coreografia não ça no Brasil é para pouquíssimos.É pena que
consegue nem de longe se aproximar da for- a merecida comemoração deste feito não
ça da música de Stravinsky. tenha sido à altura.

205
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 18 DE FEVEREIRO • 2008

Falta ensaio, falta coesão


Cisne Negro apresenta três
obras em espetáculo pueril

OBERTO P EREIRA

S eriam dois bons motivos a se comemo-


rar: o feito de uma companhia privada
de dança completar 30 anos e seu retorno
Visivelmente carente de ensaios, a
companhia não estava coesa na estreia.
Assim, a fragilidade dos três trabalhos ga-
ao Rio de Janeiro, após seis anos. O fato é nhou ainda mais evidência. As obras de
que a paulistana Cisne Negro Cia. de Dan- Caciuleanu são um amontoado de sequên-
ça, que se apresenta no Teatro SESC Ginás- cias de passos que pouco contribui para a
tico neste fim de semana, concede poucas elaboração de uma ideia coreográfica. Já
chances para que essa comemoração real- Anéis,de Bittencourt, deveria ser imedia-
mente aconteça. tamente repensada se merece mesmo es-
O espetáculo em cartaz reúne três obras, tar no repertório da companhia. Tudo na
duas assinadas pelo francês Gigi Caciulea- obra se torna mais canhestro quando se
nu, Revoada e 1,2... 7, e Anéis, de Dany Bit- sabe o que a motivou: um convite à compa-
tencourt. Nas três, contudo, o que se tem é nhia para participar do lançamento publi-
um modo bastante elementar de como pen- citário de um anticoncepcional feminino.A
sar coreografia nos dias de hoje. Tudo bem obviedade com que o tema aparece é pue-
que a companhia esteja voltada, historica- ril tanto na iluminação e no figurino quan-
mente, para um estilo de dança que se cons- to na frontalidade exagerada e demonstra-
trói a partir de elementos como o passo de tiva que permeia toda a coreografia.
dança, sobretudo calcados na técnica de Por ser uma das mais importantes com-
balé clássico. Tudo bem também que tente panhias brasileiras, a Cisne Negro mere-
resolver os desafios daí provenientes de ce ser apresentada de forma mais condi-
maneira conservadora. O problema mais zente com essa sua importância. E isso que
grave é quando os requisitos básicos para dizer apuro na qualidade da encenação e
isso não aparecem em cena. pertinência na escolha de seu repertório.

206
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE FEVEREIRO • 2008

Coreografia cai na
armadilha da literatura
B612 – O essencial é invisível aos olhos:
Ênfase na relação com O pequeno príncipe intimida
trabalho da Focus

ILVIA S OTER

U ma das companhias agraciadas pelo


projeto de Residência Artística SESC
Rio, a Focus não nasceu hoje, apesar de ter
ry, não serve apenas como material subjacen-
te à criação, mas está no título e é dela que a
peça se propõe a tratar. É nítida a preocupa-
ganhado uma maior visibilidade apenas ção do coreógrafo de tentar escapar da linea-
recentemente. Composta por jovens e ridade narrativa da obra, mas fica igualmen-
competentes bailarinos e sob a direção de te nítida a preocupação de deixar claro que o
Alex Neoral, o grupo funciona já há al- livro está lá, na base da coreografia. Ao jogar
guns anos como um coletivo criativo que com luz e projeções em sombra, com a cor azul
não deixou de atuar, ainda que nas brechas que caracteriza as ilustrações do livro e, so-
das agendas de seus componentes. Somen- bretudo, atendo-se às formas e aos personagens
te no ano passado a Focus passou a ter de Exupéry, a criatividade da Focus se intimi-
maior centralidade na vida do coreógra- da e a coreografia acaba por se restringir a
fo e de seu grupo. O apoio do SESC será ilustrar em dança alguns aspectos de O peque-
certamente fundamental para que este no príncipe.A trilha sonora também não es-
coletivo promissor tenha boas condições capa desta armadilha.
para desenvolver sua pesquisa. Se por um lado é verdade que a juventu-
Em B612 – O essencial é invisível aos de e a ingenuidade do personagem de Exu-
olhos, em cartaz no mezanino do Espaço péry podem encontrar correspondência na
SESC até domingo, Alex Neoral se coloca Focus – o que talvez justifique a escolha des-
novos desafios como o de partir da literatu- telivro–, por outro lado,olivro parece acres-
ra e também o de trabalhar com uma trilha centar pouco para o avanço do trabalho co-
sonora original, o que não havia experimen- reográfico.Apesar da ótima qualidade dos in-
tado em suas criações anteriores. térpretes e de alguns momentos que se des-
Literatura e dança dialogam há muito tem- tacam como o duo de Clarice Silva e Marcio
po no cenário da dança carioca, mas o modo Jahú, o excesso de ênfase em demonstrar a
como esse diálogo se dá nem sempre é evi- relação com o livro revela que faltou confiar
dente. No caso da Focus, a conhecidíssima obra na frase de Exupéry que dá título ao espetá-
O pequeno príncipe, de Antoine Saint-Exupé- culo: “o essencial é invisível aos olhos.”

207
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 24 DE FEVEREIRO • 2008

Elenco de primeira,
repertório discutível

OBERTO P EREIRA

N esse momento em que a existência das


companhias de dança estatais do País
está sendo colocada em xeque, questionan-
gurino e a iluminação não avançam nada
em relação às outras obras de Rodovalho,
embora nesta a situação fique ainda mais
do-se desde a forma de contratação de seus grave por causa dos textos que, falados pelos
bailarinos até seus projetos artísticos, vale pobres bailarinos, beiram a mediocridade.
a pena olhar com atenção para a Companhia Já em Caixa de cores, de Luiz Fernando
de Ballet da Cidade de Niterói, que se apre- Bongiovanni, a coreografia respira novos
senta até domingo no Teatro Ginástico. ares e permite que a companhia apareça
Tal oportunidade revela como uma com o que ela tem de melhor: seu apuro téc-
companhia pública deve articular com pre- nico. Através de movimentações novas,
cisão suas escolhas, e isso quer dizer, basi- pode-se notar como os bailarinos correspon-
camente, formação de seus bailarinos e cons- dem com competência aos desafios que o
tituição de seu repertório. A partir das duas coreógrafo impõe. A partir disso, fica abso-
obras apresentadas, a companhia de Nite- lutamente dispensável o modo previsível e
rói deixa claro que avançou no primeiro excessivamente didático com que as cores
item, mas que ainda tateia quando a ques- são apresentadas, pois seria na coreografia
tão é a escolha dos coreógrafos com quem que as cores poderiam ser desveladas em
trabalha. suas características.
A primeira obra da noite, Enquanto dure, A Companhia de Ballet da Cidade de
de Henrique Rodovalho, comprova, mais Niterói, mesmo com o frágil programa, mos-
uma vez, que o coreógrafo não está empe- tra seu talento em aglutinar ótimos bailari-
nhado em fazer absolutamente nada além nos, tarefa de seu diretor Roberto Lima.
do que já sabe fazer. Tudo ali já foi exausti- Nesse sentido, Lara Dantas, Fabiana Nunes
vamente experimentado e não há espaço e Gregory Lorenzutti devem ser citados. A
para novas tentativas, não há criação. O vo- mesma competência deve estar na escolha
cabulário de movimentos, assim como o fi- de seu repertório. Não sem urgência.

208
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 9 DE MARÇO • 2008

Veteranos do movimento
alternam tecnologia,
nonsense e elegância
Solos de Dança no SESC: Nona edição
privilegia bailarinos experientes

ILVIA S OTER

A programação da primeira semana dos


Solos de Dança no SESC tem como tra-
ço comum a presença de artistas que já pos-
cursos tecnológicos em cena, sem explorá-
los o suficiente.
Em seguida, em Dança,Paula Nestorov
suem uma grande bagagem de dança. Dos opõe uma ambientação bem estruturada de
quatro solos em cartaz até hoje no Espaço música e iluminação a uma dança que sur-
SESC, apenas Helder Vasconcelos, de Per- ge no limite do despojamento acentuado
nambuco, é presença inédita nos palcos ca- pela forma como ela própria ocupa a cena.
riocas. Uma dança que se pretende em estado de
A parceria de Helder Vasconcelos com estudo e que se materializa em breves,bo-
o italiano radicado na França Armando nitas e potentes sequências que são desman-
Menicacci traz à luz uma questão especial- chadas antes de se desenvolverem. Mas
mente sensível no ambiente da dança das Dança também de desmancha antes que
Regiões Nordeste e Sul do Brasil: o diálogo uma ideia ali fique colocada. A escuridão e
entre as danças populares ou tradicionais e a impossibilidade do público em ver o que
a contemporânea. Dançarino de Cavalo- está em cena ao final, a bailarina deitada e
Marinho e de Maracatu Rural, na peça apre- imóvel, pouco acrescentam além da sensa-
sentada – um concentrado de 20 minutos de ção de que algo que poderia acontecer não
seu espetáculo Por si só –, ele explora algu- aconteceu.
mas das possibilidades da tecnologia para Em Baldio,o humor particular e inteli-
borrar os contornos da dança popular e gente de Fred Paredes é orquestrado pelo
mostrar elementos importantes da constru- coreógrafo Toni Rodrigues.A familiarida-
ção de sua própria identidade. A cativante de de Fred com a cena, sua presença tea-
presença do dançarino e a relação olho no tral que quase impede que se distinga in-
olho que estabelece com o público são os térprete de personagem e o limite do non-
pontos fortes da peça que acaba por fazer sense que caracterizou muitos de seus tra-
desfilar de maneira bastante didática os re- balhos estão na peça. A inda que deste en-

209
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
contro não pareça nascer o novo, é sempre na bailarina. A movimentação de braços e
prazeroso vê-lo em cena. tronco em espiral que caracteriza a dança
A noite se encerra com a elegância de Márcia aparece mais madura nesta peça,
de Quase como se fosse amor, de Márcia mais eloquente, com mais nuances e desdo-
R ubin. A o som dos Beatles,a solidão existe bramentos. Márcia Rubin domina a cena
como um estado sereno,visitado pelas lem- com segurança e tranquilidade. Figurino e
branças da presença do outro,de outros,mas iluminação arrematam a peça, fazendo de
ao mesmo tempo como um estado de pleni- Quase como se fosse amor um delicado pre-
tude. E essa plenitude se percebe também sente para os olhos e os ouvidos.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 9 DE MARÇO • 2008

Uma celebração pautada


pelo frescor da criação
Mostra de coreografia é marcada por
união entre autoria e interpretação

OBERTO PEREIRA

A estreia da 9ª edição da mostra Solos


de Dança no SESC nesta última quin-
ta-feira funcionou, mais uma vez, como uma
noite. Aliando autobiografia e dança, Por si
só talvez precisasse mesmo de seus 40 minu-
tos originais para que a articulação entre
espécie de celebração da dança carioca. dança, música e vídeo pudesse se dar.
Trata-se de um lugar especial que foi sendo O segundo solo da noite aponta para ou-
construído a cada edição e que abriga o fres- tra mudança na mostra que agora permite que
cor da criação em seu estado permanente coreógrafos criem para si próprios. Dança traz
de latência. Por isso, provoca tantas discus- a excelente Paula Nestorov em mais um de
sões e por isso deixa tantos rastros. Beatriz seus exercícios de despimento da espetacula-
Radunsky, sua curadora, sempre preocupa- ridade, já iniciado em Movente, sua obra do
da em manter esse frescor, busca novos for- ano passado. Quando permite que seu movi-
matos que, a cada ano, renovam o perfil da mento seja dança, sua maior habilidade, Pau-
mostra. E este ano não foi diferente. la acessa, mesmo a contragosto, o registro de
A primeira semana trouxe um pouco des- espetáculo, ainda que por momentos esparsos.
sa transformação que pôde ser constatada no Mas infelizmente isso vem atado ao desejo
convite feito ao pernambucano Helder Vas- ainda pouco articulado de não mostrar o que
concelos para mostrar seu solo já pronto há ali se faz como dança. Uma pena. Fica apenas
tempos, Por si só, dirigido pelo italiano Ar- a questão, então, da pertinência de se aceitar
mando Menicacci. O interessante na presen- participar, justamente, de uma mostra de dan-
ça desse solo numa mostra que até então só ça, de estar sobre um palco e, sobretudo, de
apresentava artistas residentes no Rio de estar à frente de um público e ciente do res-
Janeiro é observar como algo feito longe peito que isso demanda. Tomara que a artista
daqui carrega outros modos de composição, encontre uma saída para esse impasse em que
o que areja, sem dúvida, os modos de percep- ela própria se colocou.
ção tanto da obra desse artista quanto a dos Baldio, coreografia de Toni Rodrigues,
cariocas a serem apresentadas na mesma trafega pelas áreas que Frederico Paredes

211
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
vem desenvolvendo ao longo de sua carrei- como se fosse amor, de Márcia Rubin. O mais
ra. A cena, desse modo, faz compartilhar dan- inquietante é que justamente as noções de
ça, música e teatro, tendo como costura uma autoria e interpretação são borradas em seus
ironia fina que perpassa todo o discurso ali limites na cena que ali se constrói. Delicado,
construído. Essa transição de uma linguagem porém tão contundente, o solo de Rubin exi-
a outra, marca de Paredes, está cada vez mais be um corpo que trai sua aparente fragilida-
nítida, o que às vezes aparece como justapo- de no gesto maduro de uma artista que, ao
sição e outras vezes como hibridismo. É jus- interpretar o que ela mesma cria, inaugura
tamente essa incerteza que perturba. Mas é exatidões. E essas exatidões aparecem na
nela que reside a qualidade de Baldio. incerteza provocada pelo que ali é borrado,
Outro momento em que autoria e inter- pelo que está fora do limite, algo que, em
pretação aparecem juntas na noite é Quase dança, se vê apenas em grandes criadores.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2008

Coreografias inéditas
apresentam risco e surpresa
no Espaço SESC
Solos de Dança: Um projeto com qualidades,
mas com suas fragilidades

ILVIA S OTER

A segunda semana dos Solos de Dança


foi bem representativa das qualida-
des e das fragilidades que este projeto car-
ta peça, Thiago consegue estabelecer uma
relação cúmplice com o público e aparece
menos tímido e bastante à vontade em
rega desde suas primeiras edições. cena. Jogando com poucos elementos, um
La Mariée, coreografado por Ana Vitó- microfone, um lenço e purpurina vermelha,
ria para Ana Botafogo, abriu a noite. Quan- e explorando em seu corpo, com destreza,
do o público entra, se vê diante de uma qua- as possibilidades de reversibilidade e repe-
se instalação, em que a bailarina aparece tição do movimento, ele constrói uma dan-
envolta em seu enorme vestido estrutura- ça que chega a ser provocadora e sensual,
do. Inspirada na escultura homônima de sem cair no lugar-comum.
Nicki de Saint-Phalle, Ana Vitória coloca Em Ela e mais alguma coisa, Dani Lima,
a bailarina no limiar da imobilidade e do em parceria com Micheline Torres, busca
movimento. É admirável a forma como Ana criar um ambiente em que a dança perca
Botafogo entra no jogo e se dispõe a circu- qualquer qualidade extraordinária. A lista
lar por um terreno menos conhecido por de acontecimentos que compõem um dia,
ela, o da dança contemporânea e do uni- quase todos aparentemente sem importân-
verso desta coreógrafa. Se os pequenos e cia, serve de pano de fundo para tratar a
contidos gestos que caracterizam a escrita dança como um desses eventos. Nessa peça,
de Ana Vitória ainda pareçam, em alguns visivelmente em estado de esboço, percebe-
momentos, frágeis e menos precisos em se o início de uma discussão entre a banali-
Ana Botafogo, a intérprete constrói La dade e a relevância, na dança como na vida.
Mariée com propriedade e apoiada nessa A presença de Dani Lima oscila entre esse
sua disponibilidade e em suas muitas qua- estado de tranquilidade quase regular e
lidades expressivas. outros em que se deixa invadir pela dança
Thiago Granato e Cristian Duarte se e mostra que em seu corpo ela aponta para
encontram no bem-humorado Plano B. Nes- novos desenhos.

213
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Na dobra do tempo encerra a noite com A proposta dos Solos de Dança de ser-
Lavínia Bizzotto coreografada por Juliana vir como catalisador de encontros entre cri-
Moraes, em mais um encontro inédito. La- adores e intérpretes que ainda não haviam
vínia, ex-bailarina da Quasar, cria uma mu- trabalhado juntos e que por apenas dois
lher no limite da tensão e do descontrole. In- meses convivem e produzem a peça que ali
térprete com uma bonita e eficiente presen- é apresentada é, sem dúvida, marcada pelo
ça em cena, seu virtuosismo aparece atra- risco e pela surpresa. Nesta edição não foi
vés do modo como explora os pequenos ges- diferente. Foram vistos alguns trabalhos que
tos desarticulados. No entanto, Na dobra do chegaram ao palco com um grau maior de
tempo fica apenas aí, apoiado na competên- resolução e outros ainda como um esboço
cia dessa intérprete e sem acrescentar a isso de algo que poderá (ou não) ser melhor de-
uma ideia que o levasse adiante. senvolvido posteriormente.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 21 DE MARÇO • 2008

Gesto vira
pilar coreográfico
Recurso transforma o tratamento cênico da série

OBERTO PEREIRA

A segunda semana da 9ª edição da mos-


tra Solos de Dança no Sesc foi marca-
da, curiosamente, pela presença do gesto
ço cênico mais intimista como a arena do
Espaço SESC, tão distinto dos grandes pal-
cos aos quais está acostumada. A estranha
como uma espécie de agenciador coreográ- figura da noiva da escultura está lá, em cena,
fico em todos os quatro solos da noite, tão esgarçando a imagem de uma primeira bai-
distintos esteticamente. A cada novo uso des- larina em intrigantes achados coreográficos
se gesto uma nova possibilidade de tratamen- com as quais ela tão bem dialoga.
to cênico da ideia se traduz em dança podia O excelente bailarino Thiago Granato
ser observada. aparece em Plano B, segundo solo da noite,
O trabalho que abre o programa traz a fruto de uma parceria com o paulistano Cris-
grande dama do balé brasileiro, Ana Bota- tian Duarte. O vigor de sua dança, a cada
fogo, em sua aventura mais radical de incur- novo trabalho ainda mais burilado, tem ago-
são na dança contemporânea até o momen- ra como desafio uma cena que lhe cobra
to. A escultura La Mariée, da franco-ameri- algo com o qual parece não estar acostuma-
cana Niki de Saint-Phallé, concedeu à coreó- do: uma presentidade física que deve esta-
grafa Ana Vitória subsídios para discutir belecer uma relação direta com a plateia.
temas caros ao universo feminino, empres- Isso ainda é para Thiago, visivelmente, uma
tando-se também como título da obra. Para dificuldade, enquanto é ação frequente nas
tanto, a exatidão do gesto, sua marca, apare- obras de Cristian. Mas essa dificuldade se
ce traduzida no corpo treinado pelas rédeas torna elemento a mais para se detectar na-
do balé clássico de Botafogo de modo sur- quele corpo tão preparado a qualidade de
preendente, pois é antes em sua dramatici- uma dança que está para além do que ali se
dade que essa exatidão acontece. Trata-se, constrói cenicamente, felizmente.
portanto, de uma equação justa, fruto de uma Em Ela e mais alguma coisa, Dani Lima
habilidade técnica da bailarina em adaptar e Micheline Torres investigam o gesto fe-
a qualidade de sua performance a um espa- minino mais cotidiano, aquele que perpas-

215
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
sa os dias, mas que quase nunca é desvela- sua dimensão de espasmos, em uma suspen-
do. A qualidade do que se apresenta, ainda são de um estado de percepção que é qua-
em forma de pleno processo de elaboração se êxtase. O corpo de Lavínia, visivelmen-
coreográfica, é a da delicadeza enxuta de te apto a investidas técnicas arrojadas, en-
quem experimenta esse gesto não como um trega-se nesse solo a um outro desafio cuja
produto, mas antes como algo que está ali dificuldade torna-se matéria para a própria
em sua dimensão própria, usual, quase ba- composição coreográfica. É desse estado,
nal, quase imperceptível de tão corriquei- nessa dificuldade do embate, que os espas-
ra. E essa delicadeza está na dança de Dani, mos surgem e permanecem, sempre em re-
que poderia ter investido ainda mais nessa corrências.
preciosidade e menos numa cena já tão vis- Os Solos de Dança no SESC se confirmam
ta de uma suposta “dança contemporânea”. como a mais importante mostra do primeiro
Fechando a noite, a bailarina Lavínia semestre em terras cariocas. Que venha sua
Bizzoto aparece em Na dobra do tempo,de décima edição, o que, em tempos como esses
Juliana Moraes.A qui, o gesto é tratado em que a cidade vive, é quase um milagre.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 31 DE MARÇO • 2008

Mistura irregular
de épocas e estilos
Joias do ballet russo: Repertório e artistas não
salvam a apresentação do Russian State Ballet

ILVIA S OTER

C riado há 30 anos, o Russian State Bal-


let, companhia estatal russa que este-
ve no Theatro Municipal neste fim de sema-
confusão da noite e de que algo ficou pelo
meio do caminho.
Isso já ficou claro no início da primeira
na, trouxe ao Rio de Janeiro o espetáculo parte do programa. No pas-de-deux do segun-
Joias do ballet russo, um pot-pourri de extra- do ato de O lago dos cisnes,em vez de assu-
tos de alguns balés importantes e outros mir apresentar apenas o casal de solistas,a
menos expressivos. O mérito do programa companhia trouxe para a cena seis bailari-
foi mostrar pequenos trechos de balés pou- nas,na tentativa de representar a importan-
co conhecidos do público carioca. Mas a es- tíssima participação do corpo de baile nesta
tratégia de apresentar numa mesma noite cena, revelando a pretensão de se aproximar
16 extratos (seriam 17, mas um foi suprimi- ao máximo de cada balé, o que, neste tipo de
do sem explicação) de épocas e estilos dife- espetáculo,não é apenas desnecessário,mas,
rentes e, sobretudo, de qualidade artística ir- sobretudo, impossível. A inda na primeira
regular, mostrou-se pouco eficiente. parte, problemas de iluminação deixaram
Ciente da necessidade de tentar criar o literalmente na sombra a peça Pas-de-qua-
clima necessário para a apreciação dos ba- tre. Fechando a primeira parte, a entrada dos
lés, já que o desfile de pequenas peças e a convidados especiais Thiago Soares e Mari -
ausência de acompanhamento da orques- anela Nuñez só deixou mais evidente as fra-
tra estão longe do que seria ideal para fa- gilidades da companhia russa. O casal de
zer com que o público fosse envolvido pelo convidados,ambos do Royal Ballet de Lon-
espetáculo, a companhia optou por adotar dres, fez uma impecável apresentação do
dois cenários que ora se revezavam, ora se pas-de-deux do Corsário,mostrando seguran-
combinavam. A maioria das peças aconte- ça absoluta e integração entre si, assim como
ceu tendo ao fundo um telão representan- precisão técnica e musical. O que faltou na
do um palácio ou uma lua, cenários gené- maior parte da noite sobrou na breve passa-
ricos que só aumentaram a sensação de gem do casal. Sem nenhuma explicação,infe-

217
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
lizmente, Thiago Soares não voltou para o nham ficado perdidos no meio de tantas
Dom Quixote, como anunciado no programa. mudanças de coreógrafos, músicas, momen-
A segunda parte da longuíssima noite foi tos históricos e registros.
igualmente irregular. Num determinado O programa do Russian State Ballet mais
momento,graças a um problema técnico,a uma vez mostrou que este tipo de proposta
música simplesmente parou de tocar, en- só se torna de fato interessante quando tan-
quanto os bailarinos tentavam, em vão,con- to as peças apresentadas quanto os intérpre-
tinuar dançando. O ponto alto foram dois tes que as defendem têm a excelência que
solos que atraem pela curiosidade do ponto justifica um espetáculo de gala. No caso de
de vista histórico, já que carregam nomes Joias do ballet russo, nem o repertório esco-
importantes do balé.Foi interessante poder lhido nem os artistas da companhia russa
assistir a Amapola da Califórnia,de Anna fizeram com que as fragilidades da propos-
Pavlova, e O diabo coxo,de Fanny Elssler, ta não se colocassem à frente de suas possí-
dançados com adequação, ainda que te- veis qualidades.

218
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 14 DE ABRIL • 2008

Giselle mantém
a aura de clássico
Balé se impõe com segurança,
a mesma de Silvio Viegas

OBERTO PEREIRA

O Theatro Municipal abre a temporada


de balé apresentando sua companhia
em Giselle, pérola do romantismo e ainda
do para algumas promissoras carreiras.
A companhia parece renovar-se e isso é
um passo certeiro dado por seu diretor
hoje um grande desafio do repertório clás- Marcelo Misailidis.
sico. Por tudo que representa, esse balé se Se todo o balé transcorreu correto, há
torna sempre uma boa oportunidade para que se ressaltar o desempenho dos seis bai-
que se avalie as condições dessa que é a larinos que formavam o pas-de-six do pri-
principal companhia clássica do País. meiro ato (Priscilla Mota, Taís Diana, Cíce-
A versão que temos aqui desde 1982, ro Gomes,René Salazar e Rodrigo Negri),
assinada por Peter Wright, com certeza não destacando-se aí o nome de Karina Dias,
é a das melhores, mas consegue ainda assim com certeza uma das grandes estrelas des-
bons resultados. E isso pôde ser visto na es- sa récita e uma futura primeira bailarina. No
treia, no último sábado, que contou com um segundo ato,entretanto,Priscila Albuquerque
teatro cheio e uma companhia afinada e não se mostrou ainda madura o suficiente
coesa. Giselle ainda é um sucesso. para desempenhar o difícil papel da rainha
Cenários e figurinos muito apropriados, das wilis,enquanto Edifranc Alves construiu
que acertavam em seu tom de marrom no com justeza seu Hilarion, papel nada fácil e
primeiro ato, e de verde no segundo, conce- que nem sempre ganha atenção devida dos
deram qualidade à encenação. E a orques- remontadores desse balé.
tra do Theatro, regida com segurança pelo Mas a grande estrela da noite foi mes-
maestro Silvio Viegas, completava com com- mo a nossa primeira bailarina Ana Botafo-
petência esse quadro. go desempenhando mais uma vez aquele
Entretanto, a grande novidade da noi- que é, com certeza, o principal papel de sua
te estava no corpo de baile: novos rostos, carreira. Bailarina romântica por excelên-
sobretudo no naipe masculino, desperta- cia, Ana concede a cada interpretação de
ram a curiosidade do público, já apontan- Giselle minúcias dramáticas que ganham

219
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
ainda novas nuances quanto mais madura a a pertinência de se convidar bailarinos es-
bailarina se torna. trangeiros, já que possuímos tantos com
Pena que ela tenha dividido a cena com talento no País.
Jesús Pastor, bailarino espanhol convida- Giselle é mesmo um sucesso.E é também
do, cujo desempenho nem de longe dialo- uma grande lição para jovens bailarinos
ga com a qualidade de sua dança. Visivel- que têm a oportunidade de dividir a cena
mente despreparado para o papel, sem com os mais experientes. Esse é o sentido
qualidades dramáticas e tecnicamente de tradição,imprescindível para uma com-
frágil, Pastor deixa a questão no ar sobre panhia como essa do Theatro Municipal.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 16 DE ABRIL • 2008

Ânimo renovado
para a temporada
Giselle: Theatro Municipal apresenta
montagem caprichada do balé

ILVIA S OTER

U ma montagem bem cuidada e compe-


tente de Giselle abriu no último sába-
do a temporada do Ballet do Theatro Muni-
construindo o drama de Giselle em cada
mudança de olhar, em cada pequeno ges-
to. Nem mesmo quando agradece entre as
cipal do Rio de Janeiro. Este balé, que há 5 cenas do primeiro ato a intérprete se se-
anos não era dançado pela companhia, apre- para da personagem.
sentou um corpo de baile revitalizado, bem Jesús Pastor, bailarino espanhol com pas-
ensaiado e com boa integração com a or- sagem pelos English National Ballet e Ame-
questra. A escalação desta montagem mos- rican Ballet Theatre, emprestou sua bonita
tra a preocupação da direção em, ao mes- figura a Albrecht, e apesar de ter dado con-
mo tempo, valorizar os já consagrados intér- ta de suas variações de forma correta, mes-
pretes deste balé e dar oportunidade a ou- mo que sem grande brilho, parecia não es-
tros artistas da casa, renovando a participa- tar no auge de sua forma. No papel de Hila-
ção dos solistas nos papéis de destaque. Es- rion, constata-se o amadurecimento de Edi-
colha que se mostrou acertada. franc Alves, ainda que ele não pareça sem-
Na noite de estreia, Giselle e Albrecht pre à vontade nos momentos de pantomima.
foram Ana Botafogo e o convidado espe- O corpo de baile mostrou-se afinado já
cial Jesús Pastor (dupla que se repete hoje). no primeiro ato, garantindo o espírito de
Ana Botafogo, com vasta experiência nes- festa e de alegria da vindima, com desta-
te papel, mais uma vez apoia-se em seu que para a segurança e a precisão de Kari-
absoluto domínio da cena e constrói sua na Dias no pas-de-six. No entanto,para o
Giselle dando visibilidade a todas as nu- corpo de baile, a prova de fogo de Giselle
ances da personagem. Num crescente, seu encontra-se no segundo ato.E o Ballet do
rendimento é ainda maior no segundo ato. Theatro Municipal saiu-se bastante bem.
Acompanhá-la neste papel, ao longo dos Priscila Albuquerque construiu sua Myrtha
anos, é confirmar que seu virtuosismo se de forma correta, com frieza e rigidez. O
dá na forma como encarna a personagem, corpo de baile deu conta das figuras preci-

221
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
sas das wilis, e, no segundo ato, Ana Botafo- ta cenários, iluminação e figurinos; o tra-
go e Jesús Pastor tiveram seus melhores balho harmônico e bem orientado da com-
momentos de integração. panhia e o ânimo com que os bailarinos
Independentemente de um destaque defenderam seus papéis. Em tempos de
ou de outro, o que mais saltou aos olhos “vacas magras” na área da cultura, assis-
nesta estreia foi o conjunto da obra: o ca- tir a Giselle é ganhar esperanças para a
pricho da montagem – levando-se em con- temporada que se inicia.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 27 DE ABRIL • 2008

Verborragia de movimentos
no flerte de Deborah Colker
com a dança-teatro
Cruel: Nova peça da coreógrafa
confirma sua busca por linguagem

ILVIA S OTER

P ara aqueles que esperam mais uma


peripécia da Companhia de Dança
Deborah Colker, talvez Cruel possa causar
É possível reconhecer em Cruel o desen-
volvimento de algo que já apontava em Nó,
como a preocupação de encontrar um voca-
estranhamento. Em cartaz no Theatro Mu- bulário próprio e coerente com o tema em
nicipal do Rio de Janeiro até amanhã, a questão,durante toda a peça. Neste sentido,
nova peça da coreógrafa mais pop do Rio Cruel é mais arriscado e avança. Do baile à
flerta mais com a dança-teatro do que com mesa, Deborah Colker vai utilizando seus
seu lado mais acrobático. Sobretudo na sua recursos coreográficos na construção dessa
primeira parte. Não é por acaso que desta identidade, ainda que o que se vê nesse sen-
vez ela contou com a ajuda do diretor de tido não tenha o impacto de algumas de suas
teatro Gilberto Gawronski, responsável peças anteriores,apoiadas na exploração de
pelo trabalho com os bailarinos na busca grandes suportes arquiteturais.A compa-
de conduzi-los à densidade dramática que nhia guarda o vigor e a boa qualidade téc-
ela persegue ao longo da peça. Ainda que nica dos espetáculos anteriores e sobretu-
não haja uma narrativa linear no sentido do o elenco feminino garante a teatralida-
de libreto, existem personagens mais ou de perseguida. Em Cruel, pela primeira vez
menos identificáveis que atravessam os 90 Deborah Colker não está em cena.
minutos do espetáculo em dois atos. Cruel Não deixa de ser curioso o fato de que a
começa num baile que anuncia o clima das coreógrafa tenha se apropriado de uma
relações entre os casais. A partir da entra- mesa justamente no momento em que mais
da de pratos e, em seguida, de uma grande tenta se aproximar da dança-teatro.É ine-
mesa, as situações de tensão são conduzi- vitável pensar na coreografia Mesa verde,
das para o ambiente familiar. Ainda que de Kurt Jooss, emblemática do primeiro
uma trama clara não seja contada, identi- momento da dança-teatro alemã nos anos
fica-se a mãe, o pai, a outra, o amante, os 1930. Enquanto esse marco da dança moder-
filhos, etc. na tratava dos horrores da guerra a partir

223
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
das negociações que ocorriam em torno da diferente, em que espelhos pivotantes fun-
mesa, a mesa de Cruel aborda os dramas cionam como um novo suporte. Aqui, Debo-
familiares.Do baile à mesa de Cruel,as pos- rah parece mais à vontade, circulando pela
síveis nuances das relações entre esses per- exploração de bonitas imagens que o espe-
sonagens são,no entanto,achatadas por uma lho permite. Mas este segundo ato se man-
verborragia de movimentos e pela trilha tém completamente descolado do anterior
sonora acachapante que se impõe pelo ex- e poderia servir como uma peça indepen-
cesso,sem silêncios ou respirações.Os figu- dente, ou como partida para uma nova pes-
rinos de Samuel Cirnansck reforçam a ide- quisa, pois pouco acrescenta ao que aconte-
éia de opulência, já que operam entre um ceu na primeira parte. Se por um lado, a
desfile de alta costura e a roupa de aula de dança de Deborah Colker em Cruel avança
dança, não achando o tom, nem num caso por outros caminhos, seu jeito de trilhá-los
nem no outro. se apoia ainda num certo exagero e numa
Na segunda parte de Cruel, os mesmos intensidade sem pausas, onde não cabe o não
personagens voltam à cena, num cenário dito, o que nasce nas entrelinhas, o que é sutil.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 27 DE ABRIL • 2008

Falta habilidade
na coreografia
Deborah Colker expõe fragilidade na montagem,
materializada em passos de dança mal conectados

OBERTO PEREIRA

O novo espetáculo da coreógrafa cario-


ca Deborah Colker, Cruel, estreado na
quinta-feira no Theatro Municipal, apresen-
tileza de um olhar, o timing preciso de uma
cena bem construída, ou seja, elementos su-
tis (e muitas vezes mais cruéis), são substitu-
ta um avanço estético e muitos problemas. ídos por passos de dança mal conectados,que
Para tratar do tema “crueldade”, ousou-se, prezam pela máxima extensão dos bailari-
pela primeira vez, investir no gesto teatral, nos, como se quisesse (e precisasse) mera-
buscando na dramaturgia uma possibilida- mente provar suas habilidades técnicas.
de coreográfica. Esse avanço, notável quan- Uma inabilidade com o ofício coreográ-
do se observa a produção de Colker, revela fico fica evidente em todo o espetáculo. O
uma certa coragem de se aventurar em excesso de frontalidade e simetria, por
campos ainda desconhecidos para ela, e exemplo,revela recursos pueris na constru-
também o reconhecimento disso, a ponto de ção da cena, sobretudo na primeira parte. E
admitir que necessita de auxílio, no caso, o parco vocabulário de movimentos,justa-
chamando Gilberto Gawronsky, parceria mente aí, na cena do baile, traz à memória
que ainda pode render bons frutos. do público,para o bem e para o mal, irreme-
Mas os problemas que assolam Cruel diavelmente, a sofisticação de um Lecuona
quase impedem que se note essa nova expe- (2004), espetáculo de Rodrigo Pederneiras
riência da coreógrafa, deixando apenas que para seu Grupo Corpo,que por si já lembra-
suas fragilidades ganhem a cena. Aliás, é jus- va Nine Sinatra songs (1982), da americana
tamente na cena e suas implicações no cor- Twyla Tharp. Lembranças e saudades,claro,
po o que mais merece atenção de Colker, que tomam conta de quem assiste.
ainda acredita que a embalagem pode ser Já na segunda parte,orecurso dos biom-
mais importante que o próprio produto. bos, já tão explorado na dança, ainda fica
Talvez o mais grave de todo o espetáculo restrito pelo uso que pode render mais um
seja apostar no exagero e no explícito para impacto visual do que um verdadeiro modo
se falar da crueldade. O pequeno gesto, a su- de tratar do tema. Mesmo espelhados e

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
mesmo com o recurso vazado (simetrica- Cruel aponta para a coragem da core-
mente) no meio, eles não se justificam ógrafa em buscar novas possibilidades
como metáfora de crueldade. Novamente, cênicas. Talvez seja cedo ainda para se
a embalagem no lugar do produto. falar em crise, algo que vem se mostran-
O exagero e o explícito estão, por fim, do absolutamente necessário e urgente
nos cenários óbvios de Gringo Cardia, nos em sua carreira. Além, é claro, do fato de
figurinos que funcionam muito mal, de Sa- que ela precisa se lembrar de que, no
muel Cirnansck e, sobretudo, na trilha so- exagero e no explícito, não há lugar para
nora absolutamente imperativa de Berna o espectador, pois tudo está dado, sem
Ceppas, que teima em preencher todo o es- chances para interlocução, tornando re-
paço sem deixar nenhuma brecha para a almente cruel a própria experiência de
dança que ali se constrói. assistir a esse espetáculo.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 16 DE MAIO • 2008

Entretenimento profissional
Coreografia não interessa.
A palavra de ordem é efeito

OBERTO PEREIRA

P ara quem vive esbravejando contra a


tal dança contemporânea, talvez uma
boa sugestão seja assistir ao espetáculo (de
liza, não investindo hora nenhuma em ou-
tras possibilidades cinéticas que não seja o
ato de se exibir, no que há de mais ingênuo
dança?) Waterwall, em cartaz até domingo e pueril nisso. Mas, admite-se, num show
no Citibank Hall, na Barra da Tijuca. Não como esse, faz parte do código ser tudo isso,
há sobre o que pensar e nem o que enten- para que o espetáculo e o exibicionismo
der: trata-se de entretenimento puro. E, nes- sejam apenas dois nomes para uma mes-
sa perspectiva, a tarefa é cumprida com to- ma investida. E nisso, Waterwall é absolu-
tal profissionalismo. tamente honesto, pois cumpre exatamente
Se pensarmos em termos coreográficos, com o que se propõe, o que é comprovado
tudo ali é palpérrimo. Mas quem está inte- pela própria escolha do local de apresen-
ressado em coreografia? A palavra de or- tação, uma casa de show.
dem é efeito. E há vários deles, todos a par- Em alguns momentos, chega-se a lamen-
tir de um muro feito de água que escorre in- tar que o diretor artístico, Ivan Manzoni, não
cessantemente durante os 70 minutos do es- tenha ousado um pouco e aproveitado os
petáculo. Isso sem contar as evoluções fei- ótimos efeitos que consegue com a água.
tas pelos bailarinos-acrobatas (sic), todos Dentro do seu senso de espetacularidade,
muito bons, e que, entre um número mais ou- bem que cabiam algumas novas tentativas
sado e outro, escorregam de bruços na água, de surpreender o público sem privá-lo de sua
de frente para o público, soltando um inevi- inteligência. Em todos os casos, em Wa-
tável sorriso. terwall há música, iluminação, figurino, ce-
Assim, tudo é também frontal e por de- nário e muito, mas muito movimento. E tudo
mais simétrico e a previsibilidade é quase isso enche mesmo os olhos. Quem vai assis-
insuportável. Mas há talvez que se expli- tir com o mero intuito de se divertir sai dali
car o que é ser frontal em dança? Basta muito satisfeito. E não há mesmo nada a se
pensar em como o corpo se bidimensiona- questionar sobre isso.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 18 DE MAIO • 2008

Dois caminhos possíveis


de apoio à dança

OBERTO P EREIRA

D uas formas absolutamente distintas de


organização e produção de dança:
uma está estreitamente ligada à tradição,
artística Mônica Mion e sua assistente, Ana
Teixeira. A primeira ação foi reunir num
encontro, pela primeira vez na história da
enquanto a outra está atravessada pela con- companhia, todos os que nela exerceram o
temporaneidade. Uma remonta os tempos cargo de direção desde seu início, em 1968.
barrocos de Luís XIV, na França, e diz res- Nomes importantes, como José Possi Neto e
peito às companhias de dança oficiais, liga- Luis Arrieta, puderam compartilhar com
das ao poder público, tendo a Ópera de Pa- seus colegas suas experiências muitas ve-
ris como matriz. A outra é sintoma de uma zes comuns a todos, as mesmas dificuldades
modernidade líquida, como advoga o soci- enfrentadas, próprias de qualquer órgão ar-
ólogo polonês Zygmunt Bauman, e se cons- tístico ligado ao poder público. O que ficou
titui em forma de coletivos de artistas inde- evidente, entretanto, foi a disposição de to-
pendentes. Essas duas formas estiveram em dos eles em tornar possível esse projeto de
pauta na programação deste fim de sema- dança que hoje representa um patrimônio
na em São Paulo e revelaram que podem artístico brasileiro. Uma disposição que per-
sim estabelecer um convívio estético possí- manece até os dias de hoje e que deverá
vel e bastante revelador. permanecer enquanto a companhia existir.
A forma tradicional foi muito bem re- Outra ação que merece menção foi o
presentada através da comemoração dos 40 lançamento do bem-vindo vídeo 4 Décadas de
anos do Balé da Cidade de São Paulo, segun- movimento, de autoria de Osmar Zampieri,
da companhia oficial do País (a primeira é que conta com imagens do acervo do grupo,
o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Ja- toda sua trajetória. E, ainda, a ação mais
neiro). Para contar um pouco dessa história aguardada: a companhia no palco, dançan-
e traçar os percursos de tradição trilhados do, mostrando seu vigor e profissionalismo
por ela, foram organizadas algumas ações ao misturar, com habilidade ímpar a tradi-
numa iniciativa acertada de sua diretora ção e a contemporaneidade, através de

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
obras assinadas por Arrieta e Sandro Bore- Através de apresentações, sobretudo dos
lli. Uma comemoração que aponta dois sen- coletivos com mais tempo de existência,
tidos em sincronia: para a história e para o como o Couve-flor – Microcomunidade ar-
futuro, ambos carregados de uma qualida- tística mundial, de Curitiba, e o Centro de
de que está na dança do Balé da Cidade e Criação do Dirceu, de Teresina, seis grupos
nos corpos de seus excelentes bailarinos. dividiram também o palco do Centro Cul-
A segunda forma de organização cami- tural para que pudessem falar de suas es-
nha justamente na contramão dessa que é tratégias de sobrevivência. Tal apresenta-
tão estabelecida e consagrada ligada ao ção ajudou a entender como os resultados
poder público como são as companhias ofi- estéticos são absolutamente contaminados
ciais: trata-se dos coletivos,grupos de artis- pelos modos de produção que os per-
tas independentes que se juntam para tor- meiam. Trabalhos arrojados, muitas vezes
nar possível sua produção,em cooperações desmedidos em sua profusão de ideias, denun-
mútuas.Através de estratégias sempre no- ciam uma busca bastante jovem de novos
vas, móveis e sobretudo instáveis, acabam resultados cênicos.
por inaugurar,a cada nova criação, modos Duas propostas diferentes de fazer a
de sobrevivência artística. Não há hierar- dança existir nesse país de poucas investi-
quias,não há regras preestabelecidas e car- das em políticas públicas para a área: uma
gos a serem ocupados,mas apenas o desejo companhia oficial, com bailarinos devida-
comum de viabilizar ideias em dança. mente empregados e cargos muito bem de-
Esses grupos,que surgem nos quatro can- finidos convive com mostras de coletivos
tos do País e que se autonomeiam coletivos que se perguntam, a cada dia, como será a
puderam se encontrar pela primeira vez criação de amanhã. Nem por isso, as dificul-
através da mostra pioneira organizada por dades e os desafios – estéticos e financeiros
Sonia Sobral, no Itaú Cultural, denominada – para uma são maiores ou menores que
Coletivo Corpo A utônomo,iniciada no dia 7 para outra. São diversos, como deve mesmo
e que se estende até o dia 18 deste mês. ser a arte contemporânea.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 1 DE JUNHO • 2008

Metade do
espetáculo já bastaria
Batalha é secundária diante de Suíte Funk,
o atual em estado puro

OBERTO P EREIRA

H á muito a dança de rua, ou o hiphop,


vem se contaminando com as ques-
tões da dança contemporânea e desse pro-
seus corpos um lugar privilegiado de obser-
vação de como esse movimento se atualiza
sempre numa perspectiva contemporânea.
cesso alguns ótimos saldos já podem ser de- Talvez justamente por isso Suíte Funk
tectados. Nomes como Bruno Beltrão e Pau- seja um tanto superior a Batalha, porque faz
lo Azevedo aqui no Rio e Frank Ejara, em da dança, ela mesma, sua matéria-prima.
São Paulo, já se tornaram referências nessa Tudo que está em cena converge para um
busca absolutamente nova de colocar a dan- pensamento coreográfico. E o desempenho
ça da rua no palco e estabelecer novas con- dos bailarinos, o figurino e o cenário corres-
figurações cênicas que essa passagem de- pondem com perfeição à proposta. Apenas
manda. a luz precisa ainda de contornos mais preci-
Nesse sentido, a existência da Compa- sos e talvez as falas, já usadas na obra ante-
nhia Urbana de Dança, capitaneada por rior, possam ser prescindidas. É a dança que
Sonia Destri, é mais uma bem-vinda incur- se atualiza ali o mais importante.
são nesse ainda tão profícuo diálogo. Em seu Já em Batalha, o excesso de referências
recém-estreado espetáculo, que reúne duas exteriores esbarra nos clichês de uma pos-
obras, Suíte Funk e Batalha, ambas assina- tura corporal bélica, próprias dos bailarinos
das por ela, em temporada até domingo no de hiphop, que hoje já merece ser revista.
Espaço SESC, pode-se ver um modo bastan- Daí, a previsibilidade coreográfica e os tru-
te próprio de se tomar parte nesse processo. ques de se usar depoimentos não cooperam
O que mais chama a atenção no trabalho com o que se pretende.
de Destri e sua companhia é que o contem- Suíte Funk merece ser apresentada so-
porâneo está lá em estado bruto, no puro zinha. Até porque comprova que o vocabu-
movimento, no vocabulário específico da lário de dança de rua é algo vivo, vibrante,
dança de rua. E para isso, conta-se com dez e absolutamente contemporâneo. E todos os
excelentes bailarinos, todos homens, que con- bailarinos ali, sem exceção, sabem muito
cedem ao espetáculo um vigor que faz de bem como nos mostrar isso.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JUNHO • 2008

Bailarinos se entregam
Espetáculo em Santa Teresa é uma grande celebração

OBERTO PEREIRA

O programa faz questão de deixar cla-


ro: O reino do outro mundo, que a
Companhia Rubens Barbot Teatro de Dan-
cuidado para que todos os ambientes sejam
devidamente criados. Apenas o excesso de
fumaça, num ambiente um tanto pequeno,
ça apresenta até dia 29 deste mês na Cate- deveria ser revisto, porque inclusive dificul-
dral Anglicana São Paulo Apóstolo, em Santa ta a visão de algumas danças.
Teresa, é “um espetáculo contemporâneo Mas o que há de melhor no espetáculo
sobre as danças dos Orixás.” Tal aviso assi- são justamente os bailarinos. Observar
nala um modo de composição cênica que re- como eles se entregam à tarefa proposta
almente pouco tem a ver com a dança con- por Barbot é comovente. E os desempe-
temporânea, mas antes com um entendi- nhos de Ulisses Oliveira, como Iansã, e
mento, nos dias de hoje, da corporeidade de Hugo Luís da Silva, como Xangô, merecem
uma dança que está intimamente ligada à destaque, pois seus corpos estão ali a ser-
religiosidade. viço de uma causa maior, funcionando ha-
Na verdade, trata-se quase de uma aula. bilmente como um trânsito entre dança e
A lista dos 13 orixás funciona como um ro- religiosidade. Já outros momentos, como
teiro didático para que cada um se apresen- o de Iemanjá, por exemplo, devem ser re-
te, um após o outro, de modo que seja facil- vistos, tanto no uso de músicas tão gastas
mente reconhecido pelo público. Nenhum como as Vangelis, quanto na própria per-
mal nisso, se lembrarmos que não se trata formance um tanto inexpressiva da baila-
mesmo de dança contemporânea, que não rina Sara Hana.
suportaria esse didatismo. E por isso mesmo O reino do outro mundo é contempo-
releva-se o uso simplório do figurino e da râneo sim. Porque se apresenta naquele lu-
música, que apenas reiteram o que se quer gar,naquele bairro,nessa cidade, porque
tratar. Não há metáfora, não há releitura. se apresenta hoje. E porque se apresenta
Mas há uma honestidade impressionante em de um modo absolutamente digno,respei-
como tudo ali se articula. toso e honesto.Tudo é uma grande cele-
Rubens Barbot consegue, nos quase 90 bração,coroada ao final pela presença do
minutos de espetáculo, tirar o máximo pro- próprio Barbot, como Oxalufã, o Oxalá
veito do local onde ele acontece, uma igre- mais velho. Não há como não se emocio-
ja, cuja escolha já perturba quando o assun- nar nesse momento. E uma parte dessa
to a ser tratado são temas de uma outra re- emoção, assim como na fé, não tem mes-
ligião. E a iluminação também coopera com mo explicação.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2008

“Transcriação”
shakespeariana
Balé de Londrina relê
Romeu e Julieta em desafio difícil

OBERTO P EREIRA

O grande mérito de Decalque, espetácu-


lo que o Balé de Londrina apresenta
no Teatro Cacilda Becker até domingo, é a
tão bem o que se quer dizer nessa transcria-
ção shakespeariana: tudo pertence àquele uni-
verso porque foi posto ali, mas em estado de
ideia de tradução que ele carrega, ao partir decalque, de colagem, de uma leitura possí-
da obra de Shakespeare, Romeu e Julieta, para vel. Não à toa, quase toda movimentação se
organizar em dança uma possibilidade de lei- dá rente ao chão,em decalques que vão sendo
tura. Desafio nada fácil, o que se pode verifi- construídos e desconstruídos a todo o momento.
car na cena que se constrói é não apenas essa A companhia responde muito bem ao
ideia de tradução, mas antes, recuperando o desafio proposto por Leonardo Ramos.Afi-
poeta Haroldo de Campos, a ideia de transcria- nada e coesa, indentifica-se nela a cumpli-
ção. É nesse terreno que o coreógrafo e dire- cidade com o trabalho do coreógrafo,opor-
tor da companhia, Leonardo Ramos, atua: no tunidade rara de convivência nos dias de
lugar de “entre-linguagens”, para construir hoje.Ressalta-se,entretanto,a atuação pre-
seu vocabulário de movimentos. cisa e madura do bailarino Cláudio de Sou-
Assim, não há espaço para literalidades. za, um dos responsáveis pelos momentos
Julieta e Romeu são personagens visitados mais arrojados do espetáculo.
por todos os bailarinos e cabe ao público Um excesso de luzes coloridas na ilumi-
estar atento para identificar, ou não, quem nação,uma falta de silêncio que se oponha à
os representa no momento. E mesmo o sen- grandiloquência da música de Prokofiev e
tido de representação é trazido aqui numa um esgarçamento no tempo coreográfico são
outra esfera, em que há menos o gesto dra- alguns elementos que merecem revisão.Mas
mático, já que a cena se constrói no puro mo- nem de longe fazem de Decalque menos da-
vimento. Um avanço e tanto na carreira do quilo que ele é: uma transcriação possível,
coreógrafo e de sua companhia. que vai do teatro à dança, sem nenhum re-
Justamente por essa primazia do movimen- ceio de transitar no espaço que há entre es-
to, o título do espetáculo, Decalque, configura sas duas linguagens.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2008

Desafio é desfazer
má impressão da companhia
Russian State Ballet

OBERTO PEREIRA

O Rio de Janeiro ainda está traumatiza-


do com a última investida russa na
cidade na área do balé: em março deste ano,
ra um balé como A bela adormecida, cujo tour
de force é justamente aliar o que nele tem de
tradição, já que se trata de uma obra inspira-
a passagem desastrosa do Russian State Bal- da nos tempos barrocos de Luís XIV, com os
let pelo Theatro Municipal, com o espetácu- arroubos técnicos conquistados hoje em dia.
lo Joias do ballet russo, deixou claro que mes- A célebre dupla que assinou esse balé, Peti-
mo um país com fama de ser a capital mun- pa/Tchaikovsky, imprimiu claramente as exi-
dial dessa arte pode muito bem ter suas com- gências de uma companhia tradicional de
panhias de segundo (ou terceiro) escalão. balé para seu desempenho, dada a magnitu-
Agora, a vinda de mais um exemplar russo de do projeto dos dois. É esperar para ver.
tem pela frente a missão de desfazer mini- Se apostarmos na fama que vem con-
mamente a péssima impressão deixada pe- quistando sua primeira bailarina, Irina
los seus conterrâneos em terras brasileiras. Kolesnikova, tudo pode ser uma agradá-
A Konstantin Tachkin’s Ballet Theatre of vel surpresa. A Dance Magazine, uma das
Saint Petersburg (um dos nomes para a mes- revistas mais importantes da área, reco-
ma Saint Petersburg Ballet Theatre, apenas nheceu recentemente seu talento, mesmo
levando o nome de seu fundador), além de que sua professora, Elvira Kokorina, da
ser uma jovem companhia para os padrões famosa Vaganova Ballet Academy onde
russos, já que conta apenas com 14 anos, é se formou, a tenha humilhado diversas
também uma companhia privada de balé. Ao vezes frente aos colegas, tentando conven-
lado de um Kirov, ou mesmo de um Musor- cê-la do contrário.
gsky Theatre Opera and Ballet, ambos sedia- Vale a pena conferir, por se tratar de uma
dos na mesma São Petersburgo, e do Bolshoi, companhia de balé jovem e privada e que
em Moscou, ela é praticamente uma inician- traz uma obra de peso. Talvez sirva como
te e já por isso desperta curiosidade. remédio para tirar da lembrança o estrago
E essa curiosidade apenas aumenta ao sa- que seus compatriotas fizeram por aqui re-
ber que escolheram para sua turnê brasilei- centemente.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 6 DE JULHO • 2008

Russos continuam devendo


St. Petersburg Ballet passa em branco no Municipal

OBERTO P EREIRA

N ão foi desta vez que os russos conse-


guiram tirar a péssima impressão no
público carioca deixada pelos seus compa-
vem para o término da turnê, deixando
uma lacuna irremediável na qualidade
artística do que foi apresentado. Sua subs-
triotas do Russian State Ballet em março tituta, a solista Ana Khabarova, apesar de
deste ano. A St. Petersburg Ballet Theatre, correta, não conseguiu imprimir em sua
que apresentou o balé A bela adormecida, Princesa Aurora as tonalidades interpre-
embora infinitamente melhor que a outra, tativas que a personagem demanda. E
ainda assim não empolgou o público que tecnicamente apresentava falhas que se tor-
lotava o Theatro Municipal nesta última navam ainda mais visíveis nos dessincroni-
quinta-feira. zados pas-de-deux com o ótimo Vyacheslav
Talvez duas importantes ausências pos- Sunegin, sobretudo nas piruetas,todas fora
sam ter contribuído para isso: a da prometi- do eixo.
da orquestra com 38 músicos e a da primei- Se os cenários e figurinos correspon-
ra bailarina Irina Kolesnikova. Não houve diam à suntuosidade barroca exigida
explicação da produção sobre isso e, levan- pelo balé, o mesmo não aconteceu com
do em conta os altíssimos preços dos ingres- a coreografia. Privilegiando a pantomi-
sos, essas faltas se tornaram imperdoáveis. ma em detrimento da própria dança,
Para o público carioca, único no Brasil a essa versão deixou muito a desejar quan-
estar acostumado a assistir balés do reper- do se trata de um balé que leva a assina-
tório clássico com música ao vivo, a expe- tura de um mestre como Marius Petipa,
riência de fazê-lo com música gravada soou que soube como poucos aliar o gesto ao
quase como uma heresia. movimento.
Mas foi sobretudo a ausência de Koles- Não foi desta vez, portanto,que os russos
nikova que se fez sentir durante todo o es- conseguiram mostrar para o Rio de Janeiro,
petáculo. Bailarina de fama mundial, ela a capital do balé no Brasil, o que eles têm
chega ao Brasil apenas na semana que de melhor na área. Saudades do Kirov.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2008

Balé para gente pequena


Ana Vitória extrai beleza do fértil gênero infantil

OBERTO PEREIRA

U ma importante lacuna na dança con-


temporânea carioca é finalmente
preenchida com Cirandas cirandinhas, espe-
de Renato Machado e os figurinos de Ana
Paula Moniz e Cláudia Diniz impressionam
por funcionarem com tal harmonia em con-
táculo assinado pela coreógrafa e bailari- junto que parecem ter sido feitos por ape-
na Ana Vitória, que estreou neste sábado nas um artista. Raramente se vê uma con-
no Espaço SESC: a dança dedicada às cri- cepção cênica tão coesa assim, o que, sem
anças. Tarefa das mais difíceis, já que o pú- dúvida, deve ser creditado à direção segura
blico a ser conquistado costuma ser um tan- de Marcelo Aquino.
to exigente, trata-se de uma bela oportuni- Já a coreografia tem achados muito
dade para se conferir como esse campo é interessantes, embora algumas vezes per-
ainda bastante fértil para as investidas co- ca o ritmo, problema imperdoável em se
reográficas. tratando de um espetáculo voltado para
Cirandas cirandinhas tem ainda muitos crianças. Ana Vitória aparece dançando
outros méritos. O primeiro deles é trazer à com a propriedade de sempre e é acom-
cena a música de Villa-Lobos de uma for- panhada com competência pelo bailari-
ma absolutamente inovadora, sem perder no Márcio Cunha. Já Alexandre Bado e
de vista o que há de lúdico nela. E também Renata Costa necessitam ainda encon-
por visitar contemporaneamente várias das trar um tom mais preciso em suas inter-
brincadeiras infantis que habitam o imagi- pretações, que ainda esbarram num cer-
nário brasileiro, mesmo que um tanto esmae- to exibicionismo.
cidas nos tempos excessivamente tecnoló- Cirandas cirandinhas é um primeiro e
gicos de hoje. importante passo para a dança carioca por
Além disso, o espetáculo tem qualidades contribuir na formação de um público. Um
cênicas que saltam aos olhos e que com cer- desafio vencido com a qualidade e com o
teza conseguirão seduzir seu público alvo: esmero que merecem a atenção não só das
o cenário de Sérgio Marimba, a iluminação crianças mas de todos nós.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 9 DE AGOSTO • 2008

Sobre o palco, um ofício


que se leva a sério
Paulo Caldas e sua dança
absolutamente contemporânea

OBERTO P EREIRA

O que há de mais específico na habilida-


de em se construir uma grafia do mo-
vimento parece ser o mote de Quinteto,
gia de dança. Novos apoios são inaugu-
rados, novas conexões são testadas, novas
saídas para que o movimento não se es-
espetáculo do coreógrafo carioca Paulo vaia nunca em clichês são apontadas. A
Caldas para sua companhia Staccato,que iluminação precisa de Renato Machado
estreou nesta quinta-feira no Espaço SESC. auxilia nos recortes de espaços, enquan-
Não há espaço para referências que não to a trilha sonora redimensiona o tempo.
sejam aquelas próprias do que se constrói Tudo se encaixa. Não há sobra, nem faci-
como vocabulário de dança. E é nesse lu- lidades.
gar específico que a cena se dá: madura, Além dos excelentes bailarinos Caro-
consistente, e por vezes absolutamente gra- lina Wiehoff, Natasha Mesquita e Toni Ro-
ve. Um ofício que se leva a sério está es- drigues, que já introjetaram em seus cor-
tampado no palco. pos o que coreógrafo obsessivamente
Entretanto,a busca pelo “em si” do mo- constrói em cena, tem-se o privilégio de
vimento não impede que rastros de uma ges- testemunhar a consolidação de um novo
tualidade se pulverizem nos corpos que talento, o bailarino João Paulo Gross, e a
dançam. Eles estão nos detalhes,na mão que impressionante atuação da já experiente
se articula de modo peculiar, ou na sincro- Paula Maracajá.
nia sensível das tramas coreográficas. Mas Essa parece ser uma nova fase do traba-
essa gestualidade aparece apenas impul- lho de Paulo Caldas. O mais importante dis-
sionando o que dela pode ser extraído como so tudo, quase na esteira modernista das es-
movimento.Nada mais que isso.E é nisso que pecificidades, é sua habilidade no vocabu-
se reside sua maior riqueza. lário de movimento, é seu ofício levado às
Os intrincados duos, por exemplo,pa- últimas consequências. Além do fato de ele
recem querer-se quase pas-de-deux,abu- fazer respirar ali uma dança absolutamen-
sando aqui da boa vontade da terminolo- te contemporânea.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 15 DE AGOSTO • 2008

Rigor sem espaço


para o desvio
Quinteto: Paulo Caldas investiga
possibilidades de exploração do movimento

ILVIA S OTER

A cada nova criação, o coreógrafo Pau-


lo Caldas aprofunda sua pesquisa so-
bre as possibilidades cinéticas do corpo que
vezes, nessas linhas sugeridas, que se ilumi-
nam e depois desaparecem, braços, tronco e
pernas se inscrevem, podendo ali permane-
dança. Se em Filme, trabalho do ano passa- cer, experimentando suas possibilidades
do, ele parecia concluir um ciclo em que se nesta geometria.
dedicou a experimentar as potências do Em Quinteto, as espirais, os loopings, os
kine, cruzando referências da dança e do ci- movimentos circulares repetidos até a qua-
nema, Quinteto revela uma outra faceta se vertigem, as entradas e saídas dos corpos
desta pesquisa. As preocupações do coreó- no chão que se davam sem arestas, marcas
grafo nesta peça parecem flertar com algu- recorrentes da dança da Stacatto, não estão
mas questões modernistas já que as combi- mais no centro. Já no primeiro e bonito solo
nações entre linhas, planos, figura, fundo e a de Carolina Wiehoff, as extremidades –
presença dos cinco intérpretes servem de mãos e pés – ganham um outro valor. O tra-
partida e chegada para a obra. Com o mes- balho das mãos e dos punhos acaba por im-
mo rigor de sempre, nesta nova peça, Paulo primir uma qualidade expressiva que ape-
Caldas investe na exploração de outras pos- nas se insinua, decorrente dos momentos em
sibilidades de movimento de dança e, sem que o movimento se aproxima do gesto.
se desviar da estrada que trilha há muitos As mãos falam muito mais do que nas suas
anos, consegue trazer sangue novo para o criações anteriores, e essa teatralidade que
seu vocabulário. apenas se esboça, por contraste, acaba por
A iluminação insinua linhas que dese- sublinhar a busca de recursos do movimen-
nham os planos ortogonais. Mais do que to pelo e para movimento. Cada um dos cin-
marcas no espaço, essas linhas surgem como co intérpretes tem o domínio absoluto do que
projeção dos bailarinos, continuando as for- lhe cabe em cena. Desta vez, o competente
mas desenhadas pelas diagonais que se cru- elenco masculino é formado apenas por
zam nos corpos e entre os corpos. Outras Toni Rodrigues e João Paulo Gross, já que o

237
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
coreógrafo não está presente. A familiari- Cage na trilha sonora reforça a referência
dade de Carolina Wiehoff com a escrita de ao coreógrafo americano –, Paulo Caldas
Paulo Caldas aumenta a cada nova peça, o parece interessado em verticalizar sua in-
que também acontece com Natasha Mesqui- vestigação e não faz concessões. Para o
ta. É nas duas que as mudanças da Staccato mergulho que dá na forma, ele acaba por
se tornam mais visíveis. A chegada de Pau- evacuar a expressividade que poderia bor-
la Maracajá à companhia, intérprete expe- rar sua proposta. Ganha em rigor e preci-
riente, trouxe ainda mais brilho ao grupo. são, mas talvez deixe escapar o desvio que
Na linha de artistas como, por exemplo, poderia transformá-la e apontar novos e tal-
Merce Cunningham – a presença de John vez interessantes desdobramentos.

238
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 20 DE AGOSTO • 2008

Começo bom, mas com


fim frustrante e triste de ver
OBERTO PEREIRA

O que mais se destacou anteontem no


Theatro Municipal durante a apresen-
tação do espetáculo encabeçado pelo bra-
gil, descritivo e óbvio, mostrou como Thiago
se porta muito bem sozinho em cena, num
palco como o do Theatro Municipal.
sileiro Thiago Soares, primeiro bailarino do Já na segunda parte, o ponto alto foi
Royal Ballet de Londres, curiosamente in- Winter dreams, do grande mestre Kenne-
titulado Thiago Soares and friends, foi justa- th MacMillan, primorosamente dançado
mente o apuro técnico e a maturidade artís- por Thiago e Marianela. O entrosamento
tica alcançados pelo anfitrião da noite. Não dos dois era evidente, e a cena pôde ser
deixa de ser motivo de orgulho para o Bra- construída de forma legítima, clara, coesa
sil ter formado um bailarino que, tendo en- e sem afetação.
trado relativamente tarde na dança, e ain- O mesmo não se pode dizer do pas-de-
da pela porta do hip hop, se tornou uma es- deux de Giselle e, sobretudo, do problemáti-
trela mundial do balé. co solo El cisne, com coreografia de Ricar-
Entretanto, um programa pouco convin- do Cué. O bailarino David Makhateli não
cente não permitiu que os bailarinos convi- encontrou ainda a dosagem precisa de sua
dados, e mesmo o próprio Thiago, mostras- interpretação, deixando que um excesso de
sem sua arte. Sobretudo as ótimas Roberta dramaticidade inundasse sua dança.
Marquez, outra brasileira a ocupar a primei- Mas talvez o mais frustrante tenha sido o
ra posição no Royal Ballet, e Marianela final. Claro que o público esperava ansiosa-
Nuñez tiveram poucas chances de apresen- mente por um brilhante e vigoroso grand pas-
tar sua competência e seu talento. de-deux, típico de noites como essas e que até
Um programa modificado de última então não tinha sido apresentado. Isso ficou
hora frustrou a expectativa do público em ver claro nos primeiros acordes do balé Dom Qui-
Thiago e Marianela dançando Tchaikovsky xote, com a entrada triunfal do casal Thiago e
pas-de-deux, de Balanchine. A noite foi aber- Roberta. Mas inexplicavelmente as variações
ta com o emblemático pas-de-deux do balé A não foram apresentadas e a coda foi dividida
Floresta Amazônica, de Dalal Achcar, um entre todos os bailarinos, cada um com seu fi-
ícone da dança carioca. Com certeza, esta foi gurino. Triste de ver. O público merecia ver os
a melhor peça da primeira parte da noite, que dois brasileiros, aliás, cariocas, dançando jun-
ainda teve o solo Les Bourgeois, de Cauwen- tos outra vez, com competência e graça de
bergh, que, embora coreograficamente frá- sempre. Não foi desta vez. Uma pena.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2008

Qu’eu isse

ILVIA S OTER

Q u’eu isse, curruptela de “que eu fosse”,


é o titulo do espetáculo de dança da
companhia SeráQuê?, dirigida por Rui Mo-
acontece. O jogo entre o que se faz visível e o
que fica escondido pelas caixas mostra a boa
integração entre cenário e iluminação. É pena,
reira, em cartaz no Teatro I do CCBB até o no entanto, que no palco do Teatro I estes vo-
dia 21 de setembro. É quase impossível não lumes ocupem espaço demais e acabem por
relacionar este título ao da penúltima peça deixar a dança espremida.
do Grupo Corpo, Onqotô, forma de se per- A companhia composta de bailarinos de
guntar onde é que eu estou, sobretudo quan- formação bastante diversa mostra grande
do se sabe que o diretor da SeráQuê? é prazer em estar em cena, assim como enga-
egresso desta outra companhia mineira. jamento com o projeto de Rui Moreira. A
Cercado de um time de primeira, enca- falta de unidade no grupo, ainda que se tor-
beçado por Milton Nascimento, que assina a ne um problema em muitos momentos, não
trilha sonora, Bia Lessa, responsável por ce- deixa de ser coerente com a proposta do
nários e figurinos,e Pedro Pederneiras na ilu- coreógrafo de assumir a identidade local
minação,Qu’eu isse busca nas manifestações como um amálgama de diferenças.
populares e regionais a matéria para a sua No entanto, quando se trata da coreografia,
dança. A peça é a segunda parte de uma tri - esta identidade se transforma numa colagem
logia que trata da influência indígena e afri- de referências distintas que se sobrepõem sem
cana na identidade brasileira, tema decorren- se misturarem. Passos de danças urbanas,
te da pesquisa que o coreógrafo desenvolveu movimentos de capoeira, danças e cantos in-
com apoio do Instituto V itae em 2005. dígenas e africanos convivem em cena sem,
Esta dupla influência está bastante presen- de fato, criarem algo de novo. Ao longo de todo
te na música de Milton Nascimento, enquanto o espetáculo, ainda é possível identificar a ori-
a cenografia e os figurinos se apoiam em tra- gem de cada passo e seus estilos. É curioso, por
ços mais urbanos e trazem marcas contempo- exemplo, observar a frontalidade do grupo e
râneas para o olhar que Rui Moreira lança a sincronia dos passos, como se a ênfase no sin-
sobre nossa identidade. Os figurinos, em co- gular fosse subitamente abandonada.
res claras, ganham uma textura especial pe- A forte presença de Rui Moreira em cena,
las palavras marcadas nas roupas, como se os torso nu e vestido com uma bonita e sonora
bailarinos estivessem envoltos em páginas já saia de folhas secas é, sem dúvida, o ponto alto
escritas.As caixas de papelão que compõem da peça. Sua bela figura – que ondula e pon-
o cenário são manipuladas pelos bailarinos tua as danças de grupo – faz o público matar a
que criam, a cada momento,volumes diferen- saudade deste intérprete que, por anos, foi um
tes, demarcando os territórios onde a dança dos ícones da dança mineira.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 7 DE SETEMBRO • 2008

Recriação que vira futuro


Com 42 grupos, mostra de dança tem a memória como tema

OBERTO PEREIRA

C omemorando sua 25a edição, a Bienal


de Dança de Lyon, na França, que co-
meça hoje e se estende ao longo de 25 dias,
subvenções públicas e privadas. Seu curador,
Guy Darmet, propõe olhar para essa produ-
ção no que ele chama de Retour en avant, ou
volta-se para sua própria história, tendo seja, uma memória acionada em cada obra,
como mote a memória, o repertório e a re- lançando flechas do tempo para o futuro.
criação. Nada mais contemporâneo, em se Para nós, brasileiros, um sabor todo espe-
tratando de dança. Há alguns anos, os modos cial nos toma quando se fala da Bienal, des-
de como o que se produz hoje pensamento de 1996, quando o Brasil e sua dança foram
coreográfico estão se dando conta das habi- seu tema. Para o Rio de Janeiro, mais especi-
lidades do corpo em contar histórias e, mais ficamente, essa edição histórica ajudou a ala-
desafiante, registrar sua própria história. vancar o principal festival da cidade, o Pa-
Aqui no Brasil, o tema já perpassou im- norama, tornando-o internacional, assim
portantes festivais, como o Panorama de como a impulsionar a ação política de fomen-
Dança, do Rio, a Bienal de Santos e a de to às companhias de dança em âmbito muni-
Fortaleza, e também o Festival Internacio- cipal, que hoje foi reduzida a pó.
nal de Recife, sobretudo nas edições do ano E desde lá, os brasileiros estiveram pre-
passado. A Bienal de Lyon aparece dialo- sentes na programação francesa. Nesta edi-
gando com as mesmas questões, mostrando ção, por exemplo, são duas as companhias
que se trata de questões que estão no mun- convidadas por Darmet: a carioca Compa-
do da dança. Sobretudo porque estão apon- nhia Urbana de Dança, dedicada em pes-
tando para o que é possível continuar a ser quisar diálogos entre as danças de rua e a
produzido em dança a partir de um passado contemporânea, apresenta a já conhecida
que apenas é interface do futuro. Isso numa Suíte Funk, de sua diretora, Sonia Destri, e
arte que sempre foi vista como atada irre- a estreia de Agwa, de Mourad Merzouk, um
mediavelmente ao presente. artista da própria cidade de Lyon, ambas em
Reunindo 42 companhias de 19 países, coprodução com a Bienal; e também a pau-
em 54 obras, sendo que delas, 19 são novas listana Companhia Sociedade Masculina,
co produções, além do já tradicional Défilé, composta apenas de homens, que apresenta
um desfile que acontece nas ruas da cidade, Palpable, do grego Andonis Foniadakis, e Tro-
claramente inspirado nos desfiles das esco- picália, do goiano Henrique Rodovalho, di-
las de samba brasileiros, a Bienal de Lyon retor e coreógrafo da Quasar Cia. de Dança.
oferece uma palheta bastante diversificada Tudo isso ao lado de artistas importan-
da produção coreográfica atual, tendo como tes que também compõem a grade de pro-
orçamento mais de 6 milhões de euros, entre gramação, como Anne Teresa de Keersma-

241
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
eker (da companhia belga Rosas), Maguy sythe. Mas o curioso está na remontagem de
Marin, Suzane Linke (que apresenta a Re- The show must go on, do francês Jérôme Bel, a
construção de uma obra sua de 1985), Caro- que nós pudemos assistir aqui em 2002, no
lyn Carlson e Angelin Prejlocaj, todos eles Panorama de Dança. Uma obra absolutamen-
já conhecidos do público carioca. te atual, que fala da cultura pop, sobretudo na
Mas talvez o mais curioso em toda a música e, como consequência, na dança, de
Bienal fique por conta da própria companhia repente vira “repertório”. Nada mais Retour en
pública da cidade,o Balletde L’Opéra de Lyon, avant, como quis Guy Darmet. Nada mais
que apresenta entre outras coisas um progra- para provar que o presente já é, por si só, his-
ma inteiramente dedicado a W illiam For- tória, mesmo na dança.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2008

Em processo de conhecer
seus próprios limites
OBERTO PEREIRA

A mais nova companhia pública de dan-


ça do País sobe ao palco pela primei-
ra vez: trata-se da São Paulo Companhia de
convívio não possam abrandare imprimir um
modo próprio à companhia ser num futuro
próximo.Seus currículos deixam flagrar uma
Dança, que apresentou a obra Polígono, em competência técnica reconhecida em festivais
uma temporada nesse último fim de semana competitivos de dança, o que denota certa ina-
no Teatro Sérgio Cardoso, na capital paulis- bilidade para o espetáculo inteiro,para uma
ta. Sem dúvida, uma estreia bastante aguar- obra completa. Mas talvez justamente por isso,
dada não só pelo público daquela cidade, mas por essa fresca imaturidade, a companhia des-
de todo o País. A razão para isso é simples: perte curiosidade.
além de ser um projeto que pretende colo- Numa obra com claras influências de
car em cena obras do repertório clássico dos W illiam Forsythe,Silvestrin lançou mão de
séculos XIX, XX e XXI, tarefa que o Ballet uma releitura da Oferenda musical de Bach,
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro cum- feita pelo conjunto belga Het Collectief,
pria até então sozinho, é também composta para mostrar a dança de 39 bailarinos que
de jovens bailarinos garimpados por todo o se esmeraram, algumas vezes até demais,
Brasil e alguns do exterior, sob a direção ex- em cumprir o que era proposto. Mesmo que
periente de Iracity Cardoso e Inês Bogéa. um sorriso para a plateia ou uma amostra
Formada em fevereiro deste ano, a com- de virtuosismo escape aqui e ali de vez em
panhia exala todos os índices de um jovem quando,foi uma companhia com vontade de
grupo que ainda se encontra em pleno pro- acertar o que se pôde assistir. E dessa von-
cesso de autoconhecimento. Isso é absolu- tade compartilha quem se interessa pela
tamente imprescindível para esse tipo de dança no Brasil.
empreendimento coreográfico e, nesse sen- Para o próximo programa, com estreia
tido, Polígono, do coreógrafo italiano Ales- marcada já para novembro, Bronislava
sio Silvestrin, parece ser exemplar para esse Nijinska, George Balanchine e o carioca Pau-
primeiro exercício. lo Caldas foram escolhidos para dividir a
Ainda sem um perfil definido, os jovens mesma noite.Tomara que Polígono tenha sido
bailarinos estão juntos no palco dividindo ape- útil para que esse próximo desafio nos mostre
nas a ansiedade de pertencer a uma compa- uma companhia de dança mais coesa e, na
nhia de peso como essa. Nada que o tempo e o medida do possível, mais madura. Torçamos.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 13 DE SETEMBRO • 2008

Parceria explora
os limites corpóreos
Vieira e Cezário vão além de diretor
e bailarino e atingem cocriação

OBERTO P EREIRA

A ideia de ritornelo, tão ligada ao uni-


verso musical e que já foi motivo de
reflexão por parte de filósofos como Gilles
É gratificante observar como Renato
generosamente abriu espaço em sua as-
sinatura coreográfica para que seu novo-
Deleuze, ganha sua tradução física em dan- velho parceiro pudesse arejá-la com ou-
ça. Dotado de uma materialidade outra, o tras possibilidades de movimento. O re-
sentido de retorno e repetição numa com- sultado é um ritornelo do que já é con-
posição é investigado coreograficamente, quistado como estilo de um coreógrafo
em espetáculo batizado com o termo, e que maduro em relação com o que é experi-
leva a assinatura do veterano Renato Viei- mentado de novo.
ra em parceria com seu bailarino Bruno Os cinco bailarinos, todos excelentes,
Cezário. O espetáculo que estreou nesta entenderam fisicamente a proposta. Mas
quinta-feira no mezanino do Espaço SESC é em Soraya Bastos onde se pode detec-
fica em cartaz até 12 de outubro. tar com minúcia essa percepção, sobretu-
O conteúdo dessa nova materialidade do no impactante duo com Thiago Sancho
que traduz o conceito de ritornelo é físico, e em seu solo. Já Bruno Cezário, bailarino
cinesiológico, corpóreo. Nesse sentido, a ímpar de sua geração, nos mostra que o
composição coreográfica investe tanto em que aprendeu em convivências com os
precisões de execução de passos já conhe- mais importantes coreógrafos em suas
cidos de dança (estão lá piruetas, déboulés, passagens em companhias pelo mundo
e até a prática de uma dança que se faz em está não apenas em seu ofício como bai-
conjunto) quanto em movimentos que bor- larino, mas indiciado em sua promissora
ram os limites de início e fim, tornando seu entrada no mundo da criação.
percurso o mais importante. O corpóreo Ritornelo representa um lugar especial
aqui explode nos interstícios dos tons de na carreira de Renato, pois evidencia seu
pele que escapolem pelo ótimo figurino percurso,em retornos constantes e avanços
idealizado por Cezário e Marine Levesque. significativos.Tudo ali confere legitimida-
As várias texturas do preto acentuam a de a isso: a ótima luz, a trilha sonora precisa,
textura dos corpos dos bailarinos, que ora mas sobretudo a dança que retorna a ela
se controlam em absoluta sincronia, ora se mesma, sem nenhum receio disso.E isso,sa-
derramam em espasmos pela cena. bemos nós,não é pouca coisa.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 18 DE SETEMBRO • 2008

Na Bienal de Lyon,
passado e futuro em harmonia
Là laià là laià!!!
Là laià là laià!!!
Lá la laiá la laiá!!!

OBERTO PEREIRA

E ssa é a grafia francesa do nosso corri-


queiro laialaiá que embala os estribi-
lhos de sambas-enredos. Aqui na Bienal de
pia dos desfiles de escolas de samba cari-
ocas, como fez questão de frisar o curador
da Bienal, Guy Darmet, durante a coleti-
Dança de Lyon não poderia ser diferente: va de imprensa. O Brasil, como tem sido
durante seu Défilé, no último domingo, a em suas últimas edições, esteve presente
escola de samba Ombres e Lumieres (Som- de forma contundente por aqui,neste que
bras e Luzes) tomou a famosa Rue de Re- é um dos eventos mais importantes de
publique com seus 250 participantes, fazen- dança do mundo.
do ecoar pela cidade francesa um samba Sua presença, entretanto, não foi senti-
cantado em português, composto por Léo da apenas no desfile. Um dos espetáculos
Viana: Da sombra veio pra luz / Veio provar mais interessantes até o momento de toda
o que era bom / O carnaval que hoje em dia a programação foi apresentado pela cari-
nos seduz /No Rio ou na Ville de Lyon. oca Companhia Urbana de Dança, dirigi-
Tudo estava lá: comissão de frente, por- da por Sonia Destri, que reuniu duas obras
ta-estandarte, abre-alas, porta-bandeira e em seu programa: Suíte funk e Agwa, esta
mestre-sala, carro alegórico, rainha da ba- última ainda inédita no Brasil. Não fez feio.
teria, uma ala com 21 baianas francesas e De autoria de um artista lionense, Mourad
uma bateria com 100 integrantes, também Merzouki, Agwa é uma coprodução da
todos franceses. Não era de se surpreen- Bienal e com certeza trata-se de um dos
der que tenha sido, de longe, o momento mais interessantes trabalhos de todo o
mais empolgante do desfile que, além da evento. Apresentada no belíssimo Teatro
escola de samba, reuniu pequenos blocos Célestins, com seus dez integrantes, a com-
de cidades vizinhas e bairros de Lyon, que panhia mostrou o que vem sendo desenvol-
desenvolveram seus temas, com figurino, vido em terras brasileiras de forma exem-
música e coreografia. Trata-se, claro, de plar: o hip hop em diálogo com a dança
uma óbvia “inspiração” e não de uma có- contemporânea.

245
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
E isso ainda não é tudo. A partir de sex- shwin) e pela companhia do americano
ta-feira, a paulista Companhia Sociedade Ronald K. Brown, com três pequenas obras
Masculina apresenta a versão de Henrique pouco articuladas.
Rodovalho para a Tropicália, uma criação Entretanto, no sentido de dialogar com
de 2008, denunciando uma clara deferên- o tema proposto pela Bienal deste ano, a
cia de Darmet à dança brasileira, sobretu- ideia de memória, nada foi mais instigante
do a partir de 1996, quando foi tema de toda do que o apresentado nesta terça-feira, no
a Bienal. Teatro da Ópera da cidade, pela companhia
Além das participações brasileiras, ou- belga Rosas, dirigida por Anne Teresa de
tras tantas atrações mostraram um festival Keersmaeker. Em D’un soir un jour, a clás-
com seus altos e baixos absolutamente cor- sica cena do jogo de tênis do filme de Anto-
riqueiros. Se os melhores momentos até ago- nioni, Blow up, de 1966, projetada no palco,
ra ficaram por conta do Ballet da Ópera de entra em diálogo com a misteriosa coreo-
Lyon, que apresentou com competência um grafia de Nijinsky, Jeux, com música de De-
programa todo dedicado a William Forsythe bussy, de 1913, que também tratava do mes-
e outro com a ainda polêmica obra The show mo esporte. Tudo essencialmente contem-
must go on,deJérôme Bel, ou mesmo com o porâneo em termos coreográficos, em dois
Ballet de Lorraine, que recriou uma obra tempos distintos de citação. E de uma bele-
histórica de 20 anos atrás do coreógrafo Do- za cênica impressionante. Tudo condizente
minique Bagouet, Les petites pièces de Ber- ao mote da própria Bienal: Retour em avant.
lin, os mais frágeis foram apresentados pela Ou seja, o passado e o futuro, em dança, hoje.
Compagnie Montalvo-Hervieu (com Ger- E ao mesmo tempo.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 20 DE SETEMBRO • 2008

Uma construção
cristalina
Ritornelo: Uma peça
com ótimos bailarinos e
densidade coreográfica

ILVIA S OTER

N ão são muitas as companhias cariocas


que como a Renato Vieira Cia. de
Dança podem se orgulhar de ter 20 anos de
como metáfora da história da própria com-
panhia. Após uma temporada de repetidos
sucessos na Europa, o bailarino Bruno Ce-
atividades ininterruptas. Ritornelo, a peça zário está de volta ao grupo onde cresceu e
que comemora esse feito, mostra quanto a de onde partiu, para dividir com Renato
escrita de Renato Vieira depurou-se ao lon- Vieira a assinatura dessa peça em que tam-
go dos últimos anos. Se em Terceira margem, bém dança, com destaque.
criação anterior, já estava claro que a temá- É ele quem começa sozinho em cena.
tica podia ser abordada pelo coreógrafo de Paragem e agitação, corpos que se fundem
modo menos narrativo, em Ritornelo, a dan- ou que se encaixam sem se tocarem, músi-
ça e suas questões intrínsecas são o diagra- ca e silêncio, sombra e luz vão construindo
ma sobre o qual os sentidos e as interpreta- solos – quase sempre de Bruno –, duos, trios
ções são construídos. Ritornelo apoia-se em e conjuntos. Essas diversas cenas sugerem
cinco ótimos bailarinos, em um espaço cê- relações de casais, triângulos amorosos, ou
nico limpo, em figurinos simples, uma ilumi- ainda pássaros que partem e retornam aos
nação quase sempre branca que joga com o seus ninhos, sempre com uma certa densi-
contraste entre claro e escuro, bem como em dade teatral que surge da atitude dos intér-
uma trilha sonora que reforça a densidade pretes em cena. A construção coreográfica
da coreografia, dando o tom dos diferentes e dramatúrgica de Ritornelo é tão cristali-
momentos. A dança ganha ao ser reduzida na que acaba por denunciar que a peça ga-
àquilo que parece ser o essencial na abor- nharia se não se estendesse no tempo.Os úl-
dagem coreográfica. timos quadros funcionam quase como um
Os sóbrios figurinos em negro reforçam prólogo, num espetáculo que prima justa-
os ares de dança moderna desta peça de mente por ser conciso e enxuto,dançado por
Renato Vieira, talvez a sua obra mais abs- uma companhia cheia de qualidades como
trata. No retorno dos temas musicais e de conjunto e individualmente.
situações que sempre voltam com pequenas O jogo harmônico que os intérpretes
variações, Ritornelo também pode ser lida estabelecem é visivelmente fruto da es-

247
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
tabilidade dessa companhia. A presença Não é surpresa constatar que Bruno Ce-
segura de Soraya Bastos colore de tons zário segue como um dos intérpretes mais
quase expressionistas suas cenas. Joaquim competentes de sua geração. Em tempos
Tomé, Laura Ávila e Thiago Sancho ali- em que há grande evasão de talentos bra-
am vigor e precisão técnica e mostram-se sileiros para companhias estrangeiras não
também perfeitamente integrados à pro- é possível deixar também de festejar este
posta de Renato Vieira e Bruno Cezário. feliz retorno.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 28 DE SETEMBRO • 2008

Quatro corpos descrevem o amor


Meu prazer : Ótima estreia dos novos
nomes do grupo de Márcia Milhazes

ILVIA S OTER

U m jardim suspenso feito de grandes


flores e círculos coloridos, uma dessas
joias de Beatriz Milhazes, é o cenário de
Na dança de Márcia, o corpo é prolixo,
como se desse visibilidade a cada estímu-
lo e reação vitais, mesmo quando não dan-
Meu prazer, criação de Márcia Milhazes çam. Neste trabalho, o que se destaca é a
que vem quebrar o jejum de três anos de- sutileza como a escrita revela cada um
pois de Tempo de verão. Nesta nova forma- desses personagens, do início ao fim. Al
ção da companhia, Ana Amélia Vianna e Al Crisppim oscila entre uma marcha irregu-
Crisppim – intérpretes que já têm as mar- lar, pouco determinada, e a paralisia. A
cas de Milhazes no corpo – são acompanha- presença doce, serena e lânguida de Ana
dos por dois novos integrantes, o promissor Amélia Vianna se opõe e, por vezes, se
Felipe Padilha e a ótima Fernanda Reis, encaixa na movimentação agitada e no li-
bailarina que tem em seu currículo quase mite do descontrole de Felipe Padilha. Os
uma década no Grupo Corpo. últimos são responsáveis pelo duo mais
O amor é o tema deste trabalho. E, como interessante da peça. Mas é com raro mag-
o título da peça já aponta, ele é apresentado netismo que Fernanda Reis atrai pra si o
pela coreógrafa como um sentimento que olhar do público. Sua personagem, que ar-
pertence aos que amam e que muito pouco rebata o corpo e o rosto da intérprete sem
tem a ver com o objeto do amor. O pronome trégua, sempre no limiar da loucura e da
possessivo já aponta o que se desenha em dor, aumenta a carga dramática da peça.
cena: quatro intérpretes/personagens em si- Em Meu prazer, diferente, por exemplo,
tuação de isolamento. Apesar da iluminação das anteriores Joaquim Maria, onde os
ensolarada de Glauce Milhazes, da trilha duos trazem os encontros e as relações de
sonora romântica e das muitas cores do ce- casal, ou ainda Tempo de verão, em que a
nário, Meu prazer é sombrio. O amor agita os dança sugere triângulos amorosos, o amor
corpos sem trégua, os paralisa, produz seres muito raramente chega a algum momento
errantes, o amor se apresenta como obsessão. de comunhão ou de alívio. E a estrutura da
Os olhares que eventualmente se cruzam e peça segue a mesma lógica. No final, é ape-
os escassos e breves encontros entre os cor- nas a personagem de Fernanda Reis que,
pos só deixam mais evidente a solidão. Cada por exaustão, resta em cena. Assim termi-
um desses personagens traduz um estado pos- na Meu prazer, como a experiência de amar,
sível daqueles que amam. sem conclusão.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
REVISTA PROGRAMA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2008

A dimensão exata
da dança atual

OBERTO P EREIRA

A ideia de um panorama é criar uma di-


mensão de um estado de coisas. Em
dança, esse estado é algo móvel, em cons-
Artistas de mais de dez países, alguns
pela primeira vez no festival, e estreias de
artistas brasileiros formam uma seqüência
tante transformação, o que quase impos- elegante de espetáculos que garantem a
sibilita a perspectiva exata de sua cons- pluralidade contemporânea. Mas como o Pa-
tituição. Os 11 dias ininterruptos de uma norama está para além de ser uma mera pro-
agenda lotada do festival Panorama de gramação de espetáculos, toda a investida
Dança que começou ontem tratam dessa paralela acaba por conceder a ele um tom
incapacidade legítima de dar a dimensão formativo e performativo a um só tempo, o
exata do estado da dança contemporânea. que fica evidente na 3ª edição da Mostra
E é justamente aí que reside sua maior Universitária, nas residências dos artistas
riqueza. convidados, nas oficinas gratuitas, no proje-
Em sua 17ª edição, o que salta aos olhos to louvável de formação de público e na
é a continuidade de um pensamento que novidade da programação dedicada ao pú-
coloca em diálogo diversidades, sua marca blico infantil.
desde que nasceu, ainda sob a rubrica de Lia Ainda aí, vale verificar a proposta do
Rodrigues. Mas dentro dessa continuidade, seminário sobre um tema tão necessário
estão seus avanços, algo natural por se tra- quanto inédito: “A economia da dança,” que
tar de um evento de dança. A noite de aber- reúne profissionais em torno das questões
tura com a já consagrada companhia fran- próprias da produção dessa arte.
cesa de Maguy Marin sinaliza o tom que Este é o panorama que o Panorama de
perpassa o festival: o novo como interface Dança apresenta. Sua qualidade é partilhar,
de uma tradição e vice-versa. mais uma vez, diferenças.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
CRÍTICA NÃO PUBLICADA
RIO DE JANEIRO • 2008

Espetáculo H3 de Bruno Beltrão


ILVIA S OTER

E m rara passagem pelo Rio, o Grupo de


Rua de Niterói – presença cada vez
mais constante nos palcos europeus – apre-
técnicas de dança de rua, para desdobrá-los
em um vocabulário rico e próprio. Isso se dá
não apenas nos corpos dos bailarinos –
sentou H3, a mais nova criação de Bruno aliás, todos ótimos –, mas inevitavelmente
Beltrão. Já há alguns anos Bruno Beltrão na relação com o espaço e com a música.
vem investindo nas possibilidades que a Não há, por exemplo, uma relação auto-
dança contemporânea e a dança de rua têm ritária e ilustrativa entre música e dança. A
de se contaminarem mutuamente. H2-2005 trilha de Lucas Marcier e Rodrigo Marçal
e outras de suas peças anteriores já coloca- ambienta, contextualiza a dança e com essa
vam alguns dos pressupostos do hip hop em dialoga sem a ela se impor. A iluminação
questão. É esse insistente desrespeito pelo de Renato Machado segue a mesma linha,
purismo da dança de rua uma das caracte- o que reforça a sobriedade que acompanha
rísticas que faz de Bruno Beltrão um dos co- toda peça. Desta vez, o palco está nu e de
reógrafos mais consistentes de sua geração. forma suave cada um dos nove jovens rapa-
Do hip hop – no caso de H3, mais de sua zes – todos vindos da dança de rua – ocu-
técnica do que de seu universo – o coreó- pam a cena sem pressa. A dança ganha o
grafo tem extraído material que explora, palco aos poucos, em solos, duos e trios em
desenvolve e consegue desdobrar em resul- que um pode apenas observar o que o outro
tados pra lá de interessantes. Sem abando- faz, ou ainda construir um diálogo de corpos
nar o virtuosismo e a grande dose de testos- e fluxos. Essa expansão do vocabulário ga-
terona da dança de rua, Bruno vem conse- nha correspondência nos espaços varridos
guindo estender as margens da técnica do hip pelos bailarinos em deslocamentos velozes.
hop sem ter a ingenuidade de que ao fazê-lo Suavidade, lentidão, paragem e explosão se
possa ainda guardar essa identidade. alternam sempre com elegância.
Nessas outras paisagens por onde circu- H3 é um mergulho na forma, no fazer
la, a dança de Bruno jamais esteve restrita coreográfico, nas possibilidades do desdo-
às batalhas, à batida regular e insistente ou brar e do compor, e mostra o amadurecimen-
ao espaço circunscrito do hip hop. Em H3, to de Bruno Beltrão nesta função. Se fica
Bruno Beltrão faz uma escolha e verticali- evidente a competência do Grupo de Rua
za sua pesquisa. de Niterói, fica também a torcida para que
Deixando de lado os aparatos tecnoló- um possível H4 agregue a todas essas con-
gicos, ele investe na exploração de movi- quistas a irreverência e o humor que mar-
mentos, fluxos, qualidades e intensidades das cam a trajetória da companhia.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
R I O D E JA N E I R O • D O M I N G O • 2 D E N O VE M B R O • 2 0 0 8

Cada gesto é um
pequeno mundo
Espetáculo da coreógrafa francesa
faz interação física e intelectual

OBERTO P EREIRA

A palavra alemã Umwelt (mundo à vol-


ta, entorno, ambiente) dá nome ao es-
petáculo que a coreógrafa francesa Maguy
fado, milimetricamente composto, deflagra-
do em detalhes nas execuções sincroniza-
das dos ótimos bailarinos.
Marin apresentou ontem na abertura do Através de um corredor de espelhos, esse
Festival Panorama de Dança para um Tea- ambiente restrito, repetitivo, é reproduzido
tro João Caetano absolutamente lotado. A pelos bailarinos ao mesmo tempo em que é
mesma palavra traduz também um concei- reproduzido por sua imagem refletida, à
to interessante que ajuda a pensar o mesmo exaustão. O sentimento que desperta, claro,
espetáculo, desenvolvido pelo etólogo esto- é o de um certo desconforto. Um desconfor-
niano, Jakob von Uexküll. to que está no reconhecimento da dimensão
A ideia é pensar o Umwelt como a for- de nosso Umwelt, da complexidade de nos-
ma que cada espécie interage com o ambi- sas relações com o mundo, de que tamanho
ente, entendido aqui como uma rede de lu- ele seja.
gares que provoca a interação física, emo- Por isso, o lugar tão demarcado onde a
cional e intelectual. Essa interação se dá, cena acontece.Por isso,os rastros dessa rela-
para cada espécie, de modo próprio, o que ção que vão sendo depositados fora desse lu-
faz desse ambiente uma contrução a partir gar.Por isso, um vento forte que sopra inces-
de necessidades e interesses individuais. santemente durante toda a cena e que teima
Assim, a complexidade de cada Umwelt é em desfazer esses mesmos rastros,aventura
diretamente proporcional à complexidade moderna de um homem em relação com seu
de cada sistema vivo. ambiente. Não à toa, a trilha sonora, executa-
É exatamente deste ambiente que trata da “ao vivo” por uma corda que esbarra em
a obra de Maguy Marin. Um de seus pontos guitarras elétricas depositadas na beira do
de partida é a habilidade de Samuel Beckett palco,prescinde do ser “vivo” ao mesmo
em construir sua linguagem cênica a partir tempo em que desvela seu mecanismo aní-
das variações de poucos elementos. Assim, mico. O “ao vivo”, assim, é mecânico.
em cena, um restrito repertório de gestos, O ambiente, para Maguy Marin, está
mais do que de movimentos, tece essa rede abalroado de gestos. Cada um desses gestos,
de relações. Esses gestos, cotidianos, banais, um pequeno mundo. Mesmo que repetitivo,
da vida ordinária, transformam-se magica- mesmo que às vezes insano. É disso que sua
mente em material que aparece coreogra- dança fala.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 3 DE NOVEMBRO • 2008

Visão genial do cotidiano


Umwelt: Maguy Marin abre Panorama de
Dança com contundência e poesia

ILVIA S OTER

O 170 Panorama de Dança abriu seus tra-


balhos com Umwelt, da Compagnie Ma-
guy Marin. Pela terceira vez no Brasil, essa
Isolados quase que o tempo todo, mas
acompanhados pela sincronia com que rea-
lizam diversos gestos cotidianos mais ou me-
companhia francesa pode ser comparada à al- nos banais, os bailarinos se deslocam em
deia gaulesa do personagem Asterix: um re- sentido anti-horário. Para o público, eles apa-
duto de resistência repleto de bravos guerrei- recem caminhando para trás e simultanea-
ros. Maguy Marin faz parte daquele seleto gru- mente realizando ações simples como ves-
po de artistas cuja prática jamais separa ética tir-se, despir-se, comer, subir as calças, bei-
de estética. Cada uma de suas ações está liga- jar-se etc. Figurinos, objetos, pequenas vari-
da a essa postura como, por exemplo, a esco- ações e combinações de ações vão ampli-
lha de instalar-se no Centro Coreográfico de ando os significados de cada uma das voltas
Rillieux-la-Pape, subúrbio da cidade de Lyon desses homens e mulheres. Aquele que
– tenso e repleto de desigualdades sociais – numa primeira vez experimenta na cabeça
ou de seguir um caminho coreográfico pró- uma infantil coroa de papel na próxima vez
prio, avesso aos modismos e aos maneirismos cata as migalhas no chão com a coroa. O que
tão presentes hoje na dança contemporânea. pode parecer ingênuo como descrição não
Segundo a coreógrafa, o teatro de Samuel o é em cena. Vestidos de noiva, vestidos de
Beckett foi inspiração para essa peça, assim baile, uniformes militares, roupas baratas,
como foi o caso em May B. Tempo e espaço, armas ou bebês vão ampliando os sentidos
instâncias indissociáveis, são tratados em de cada cena breve.
Umwelt a partir do vazio da experiência hu- E a vida, dia a dia, vai se construindo na
mana. O cenário é composto de espelhos dis- repetição do igual, que ganha a cada vez
postos paralelamente que criam os nichos e novas implicações. O que entra nesse fluxo
os corredores por onde os bailarinos circulam. muitas vezes é descartado. O tempo passa e
Um vento constante e a iluminação fazem se faz notar também pelos resíduos deixa-
essas estruturas vibrarem, e a imagem espe- dos pelos homens.
cular jamais se dá de forma nítida. Em cada A maturidade da companhia dá densida-
lado da boca de cena, dois carretéis tencionam de à peça escrita com primor a partir de uma
um fio que começa a se mover no início da ideia simples. O genial em Umwelt está na
peça. O fio do tempo, uma corda sempre tensa forma clara, direta, sintética e econômica com
e em movimento que em Umwelt irrita três que Maguy Marin afirma sua visão contun-
guitarras elétricas e produz um ruído também dente do mundo contemporâneo. E sem dei-
tenso, ao longo de toda a peça. xar de nela imprimir poesia e delicadeza.

253
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2008

Longe dos
estereótipos da rua
Espetáculo transcende os arremedos
de videoclipe do hip hop

OBERTO P EREIRA

T oda referência ao trabalho que o co-


reógrafo Bruno Beltrão vem desen-
volvendo sempre aponta para uma suposta
de em nuanças que são pensamentos co-
reográficos.
A iluminação é de uma sofisticação ímpar.
relação que ele estaria inaugurando de for- O figurino é mais do que a roupa usual de quem
ma exemplar entre a dança de rua, seu pon- faz dança de rua. A trilha sonora funciona
to de partida, e a dança contemporânea. mesmo como uma espécie de trilha a ser per-
Com H3, seu novo espetáculo que estreou seguida. E o cenário é eficaz em sua econo-
no Rio de Janeiro como parte da programa- mia. Mas o que impacta são as novas investi-
ção do Festival Panorama de Arte, na sex- das de uma ocupação de espaço que os exce-
ta-feira e no sábado, no Teatro Villa-Lobos, lentes bailarinos vão imprimindo na cena. O
tem-se a oportunidade de perceber que essa duo de Eduardo Hermanson e Danilo Perei-
suposta relação é apenas um modo mais cô- ra atesta isso com a propriedade de quem sabe
modo de se lidar com algo absolutamente exatamente de que textura sua dança é feita.
novo que Beltrão nos oferece. Todo o movimento que se apresenta é
Na verdade, trata-se antes de uma perpassado por um pensamento de uma dan-
“dança de rua contemporânea”, alcunha ça tão viva, tão contaminada pelas questões
que talvez nos auxiliasse a pensar o que atuais do mundo, que não há como não re-
se promove na cena em H3. O que ali é conhecer que não se trata de dança de rua
mostrado é uma dança de rua viva, mutan- em diálogo com a dança contemporânea,
te, por isso contemporânea, como assim o embora esteja ocupando lugar na progra-
é qualquer gênero de dança em que cria- mação de um festival dedicado a essa últi-
ção e descoberta façam parte de sua cons- ma. Em H3, o que se tem é dança de rua con-
tituição. Esqueça um hip hop envelhecido, temporânea. Mas,para muito além disso,se
que ainda teima em parecer arremedo de tem na verdade uma dança cuja qualidade
videoclipe. Na cena de Beltrão, a discus- é algo intrínseco,o que a faz prescindir defi-
são é outra, e o velho vocabulário explo- nitivamente de rótulos.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE NOVEMBRO • 2008

Uma lição de obviedade


e perda de tempo

OBERTO PEREIRA

O maior problema de Plural, espetácu-


lo que o Grupo Tápias estreou nesta
quinta-feira no Espaço SESC, é o enten-
que lembra Vidas secas de Graciliano
Ramos, sem se dar conta de que por lá já
aconteceu algo como o movimento Man-
dimento da ideia de plural como algo to- guebeat, por exemplo. E o Sudeste, região
talizante e não, justamente o contrário, das grandes metrópoles, sucumbiu à ar-
de algo que atente para a diversidade. madilha fácil de retratá-la apenas atra-
A proposta é bastante simples, para não vés de sua urbanidade. Até mesmo a obra
dizer pueril: cada região do Brasil foi Clara Crocodilo, ícone paulistano da dé-
confiada a um coreógrafo diferente para cada de 1980, de Arrigo Barnabé, apare-
ser traduzida coreograficamente. Nessa ce na trilha sem nenhum tratamento co-
primeira versão, Norte, Nordeste e Su- reográfico.
deste ficaram a cargo de Ricardo Risu- Mas o maior problema de Plural não é
enho, Ana Vitória e Giselle Tápias, res- a obviedade e nem mesmo a qualidade
pectivamente. evidentemente irregular de seus bailari-
Triste observar que todos os três core- nos. O que merece mesmo revisão é a in-
ógrafos apostaram antes na obviedade, tenção de se tratar cada região do Brasil
afogando-se nela, sem atentar para as nu- como uma unidade identificável, sem le-
anças do desafio que tinham pela frente. var em conta o que há de diverso em cada
O Norte, menos problemático de todos, uma delas.
não escapou de contar em sua trilha com Assim, pergunta-se qual é a intenção de
uma inevitável música indígena, embo- um espetáculo de dança contemporânea ao
ra pudesse prescindir dela, sobretudo con- tratar de um tema que mais lembra as em-
tando com a bela cena da moça da plateia poeiradas lições da disciplina Educação
sendo amarrada com barbante por um dos Moral e Cívica, ministrada nos colégios, no
bailarinos. Já o Nordeste ficou atolado auge da ditadura militar. Mais acachapan-
numa visão antiga, atada a uma estética te impossível.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 5 DE DEZEMBRO • 2008

De frente para o público


Ana Botafogo encara a platéia
na Maison de France

OBERTO P EREIRA

O grande mérito de Suíte floral, novo es-


petáculo da dupla formada pela pri-
meira bailarina Ana Botafogo e a pianis-
das quatro estações do ano, misturando dan-
ça, música e poesia. Ana divide o palco com
o excelente e maduro bailarino Joseny Cou-
ta Lilian Barretto, em cartaz no Teatro tinho, seu colega do Theatro Municipal. A
Maison de France até o dia 10 de dezem- química entre os dois é evidente. E Lilian
bro, é a busca por um novo formato que Barretto assume, com segurança, a condu-
intenta não apenas um equilíbrio entre ção de seus três ótimos músicos, dos quais se
música e dança, mas também configurar destaca o gaitista José Staneck.
uma espécie de concerto camerístico A direção de Luis Arrieta, que tam-
mesclado por essas duas linguagens. bém assina as coreografias ao lado de
Há desafios a serem enfrentados nessa Hélio Bejani, é precisa, coisa de quem
empreitada. Sobretudo Ana Botafogo,baila- domina os códigos da cena. Apenas os fi-
rina de grandes palcos e acostumada a fazer gurinos merecem ser revistos, sobretudo
com que a eficácia de sua interpretação em o do bailarino e o último vestido usado
balés de repertório chegue até as últimas fi- por Botafogo.
las das galerias do Theatro Municipal, ainda Mas em todo o espetáculo o que mais
deixa escapar aqui e ali alguns exageros num impressiona é uma cena em que não há
palco mais intimista. Mas é louvável que es- música e nem movimento: a bailarina
teja buscando outras dimensões em sua dan- chega à boca de cena, descalça, cabelos
ça e em sua atuação,o que a faz uma artista soltos, e encara a plateia de frente. Nessa
ímpar no País dentro do panorama tão restri - hora, em poucos segundos, através de
to do balé clássico. uma dramaticidade impactante, se enten-
A ideia do espetáculo é simples,mas fun- de perfeitamente por que Ana Botafogo
ciona com presteza ao que se propõe: tratar é uma verdadeira artista.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 15 DE DEZEMBRO • 2008

A atualidade que a obra


sugere, mas não mostra

OBERTO PEREIRA

À primeira vista, o espetáculo 3 solos em


um tempo, que a bailarina Denise
Stutz apresentou neste fim de semana no
bre autoria e memória, tão atuais, estão es-
tampadas antes no gesto que pronuncia a
dança, do que numa dança que se dá a ver.
Teatro Gláucio Gil, poderia ser visto como Nada mais contemporâneo.
uma empreitada moderna, na medida em Neste solo, Denise não mostra, sugere. E
que desvela seu fazer, pulverizando impres- o ato de sugerir está na precisão quase eró-
sões na própria ação metalinguística. Mas, tica do termo, porque se constrói a partir de
ao se dedicar um pouco mais de atenção uma brecha possível entre o coreógrafo e a
àquilo que se organiza em cena, chega-se bailarina. Para tanto, estão lá Rodrigo Per-
inevitavelmente à conclusão de que se tra- derneiras, do Grupo Corpo, e Lia Rodrigues,
ta de um projeto contemporâneo, com ques- dois com quem a bailarina dançou. Mas eles
tões contemporâneas. estão lá de uma forma que só ela poderia os
Na verdade, tem-se uma espécie de co- ter e poderia os evidenciar. Naquele corpo,
letânea de seus três últimos trabalhos, todos naquele momento. Um aqui e agora que se
solos: DeCor, de 2003, Absolutamente só, de dissolve em impressões.
2005 e Estudo para impressões, de 2007. Em A única música do espetáculo, Clair de Lune,
todos os eles, perpassa uma fala que a fala da de Debussy,comprova isso.Impressionistica-
bailarina, quando essa bailarina tem o direi- mente. Só assim se conhece o lado da bailari-
to a ela. Desse modo, todas as questões so- na. A quela que,generosamente,se dá a ver.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
O GLOBO
RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 19 DE DEZEMBRO • 2008

João Saldanha abre


o seu processo de criação
III Danças: Intimidade e maturidade em seis solos

ILVIA S OTER

E m III Danças é possível reconhecer


muitos dos traços que identificam o
trabalho do Atelier de Coreografia nestas
exemplo, o Wim Wenders de Paris Texas, a fi-
losofia de Deleuze, o pop e a discoteca.
O primeiro solo é de João Saldanha.
quase duas décadas de atividade. Lá estão, Seu assumido desconforto como intérpre-
por exemplo, a economia e a elegância do es- te, bem como seu jeito meio gauche de
paço cênico, os figurinos da ótima Pia Franca, abordar os movimentos que há muitos
o projeto sempre preciso de iluminação de anos só se via em outros corpos só aumen-
Adelmo Lapa – que, desta vez, joga com as tam a sedução que exerce sobre o públi-
relações entre cor-luz e cor-pigmento, provo- co. Já nos solos de Marcelo Braga surge
cando interessantes efeitos na retina dos es- algo interessante e divertido, bem distan-
pectadores – e a trilha de Sacha Amback. João te da escrita habitual de João. Marcelo é
Saldanha orquestra todos estes elementos mais do que intérprete: em cena, ele se
com sua competência e seu domínio da com- constrói como um personagem que dança,
posição coreográfica. Mas, sem se deixar aco- faz mágica e canta, tudo no limite do kits-
modar naquilo que poderia ser sua zona de ch. Os dois solos de Laura Samy também
conforto, o coreógrafo volta à cena como in- revelam uma forma distinta de se movi-
térprete, ao lado de seus dois fiéis escudei- mentar, ainda que dentro de uma constru-
ros, os bailarinos Laura Samy e Marcelo Bra- ção mais familiar à companhia, mas com
ga. Sua presença traz um novo equilíbrio a toques de humor elegante. Em III Danças,
essa balança. Um equilíbrio mais instável e João Saldanha e seus dois parceiros de lon-
nem por isso menos interessante. ga data exploram com maestria seu lado B.
III Danças aborda a intimidade do proces- Toda a peça é atravessada por este humor
so de criar e de se expor, mas, sobretudo, toca fino decorrente, sobretudo, da capacidade dos
nas vantagens e nas desvantagens – as primei- três de rirem de si próprios e da dança. Isso,
ras muito maiores do que as últimas – da ma- acompanhado da competência destes artistas,
turidade de intérpretes e criador. A peça reú- já garante um bom espetáculo. Porém, para
ne seis solos, dois de cada um, e imagens de aqueles que acompanham a trajetória do Ate-
vídeo que vão desde o registro inteligente de lier de Coreografia, III Danças tem uma gra-
conversas informais entre os três ao longo do ça a mais, a de visitar, através dessa peça, ele-
processo dessa criação, até extratos de filmes, mentos criações anteriores da companhia e
referências mais ou menos explícitas do que poder fazer parte da celebração do encontro
os inspira. Entre os vídeos e a cena estão, por e da intimidade de seu núcleo criativo.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 27 DE DEZEMBRO • 2008

Poder público quase


mata o ofício da dança

OBERTO PEREIRA

N ão. A dança no Rio de Janeiro não vai


bem, obrigado. Em 2008, dando con-
tinuidade ao seu processo de encolhimento
necessidade de ajustes em seus termos, esse
edital não deixou de ser uma atitude louvá-
vel da Secretaria de Estado da Cultura, que
no que se refere às condições reais de pro- merece continuidade e aprimoramento. Ou-
dução, a dança carioca sobrevive graças à tra ação importante dessa secretaria foi ter
ação incansável de seus artistas, curadores acolhido em seus teatros o Festival Panora-
e produtores. Foram eles que deram o tom ma de Dança, mais um dos projetos abando-
do que aconteceu nesses últimos meses, nados pela Prefeitura há anos.
provando mais uma vez que é possível sim Desse modo, a dança carioca se tornou
fazer dança de qualidade, mesmo que as refém dos editais para a dança para poder
adversidades imperem. existir, e a Funarte representa aqui um pa-
Para uma cidade que já foi modelo pel importante, sobretudo com seu Prêmio
nacional de política pública para a dança de Dança Klauss Vianna, através da gestão
em âmbito municipal, o que se tem hoje lúcida de Leonel Brum, seu coordenador.
nesse sentido é praticamente nada. Com Muito do que foi visto na cidade foi graças à
uma Secretaria de Cultura agonizante em existência desse prêmio.
seus últimos meses, afogada até o pescoço Mas o oásis desse deserto continua mes-
pelo desastre orçamentário que provou ser mo sendo o Espaço SESC, em Copacabana.
a não necessária Cidade da Música, o que Além de ações no sentido de manutenção
se tem é apenas um Centro Coreográfico de companhias (ler texto ao lado), foi palco
que apenas serviu de espaço para ensaios das principais estreias do ano. E elas não
de companhias, mas pouco contribuiu efe- foram poucas, mesmo diante desse cenário
tivamente para o desenvolvimento no tão adverso. No próprio Espaço SESC, tive-
setor. Nada foi feito. Aliás, tudo foi des- mos ótimos espetáculos, como os de Alex
feito. A torcida fica para que a nova Pre- Neoral com a Focus Cia. de Dança (B612),
feitura que entra em poucos dias saiba Ana Vitória Dança Contemporânea (Ciran-
resgatar toda a história de uma política das cirandinhas), João Saldanha e seu Ate-
para a dança já experimentada na cidade. lier de Coreografia (III Danças), Paulo Cal-
Já em âmbito estadual, nos últimos minu- das e a Staccato Cia. de Dança (Quinteto),
tos do segundo tempo, um edital foi lançado, Renato Vieira Cia. de Dança (Ritornelo) e
dividindo os parcos R$ 750 mil para artistas Sônia Destri e sua Companhia Urbana de
não apenas do Rio. Embora contasse com a Dança (Suíte Funk).

259
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
Fora dos domínios do SESC, ainda foi Foco, mostra dedicada à produção de vídeo-
possível assistir a dois importantes espetá- dança nacional e internacional.
culos: O reino do outro mundo, da Compa- As atrações internacionais, salvo a pro-
nhia Rubens Barbot Teatro de Dança, em gramação do Panorama, foram desastrosas.
plena igreja anglicana de Santa Teresa, e o Uma invasão de companhias russas de ter-
delicado relato de uma excelente bailarina ceiro escalão mostrou o que há de pior em
como Denise Stutz, em 3 Solos em um tem- termos de balé naquele país, numa verda-
po.Já Deborah Colker não chegou a empol- deira ação caça-níqueis por aqui. E, falando
gar com seu Cruel, com certeza um de seus em balé, nossa principal companhia, o Bal-
espetáculos mais frágeis. let do Theatro Municipal, que deixou neste
Os festivais continuam os mesmos, além ano de ser a única brasileira a se dedicar a
da novidade da Mostra Carioca de Dança esse segmento, desde a criação da São Pau-
Contemporânea, da Caixa Cultural, que ser- lo Companhia de Dança, apresentou uma
viu como uma espécie de balanço do que Giselle correta em abril, mas acabou o ano
aconteceu de mais representativo no ano na inexplicavelmente apertada num palco de
cidade. O Festival Panorama de Dança, que um shopping center da zona sul, apresentan-
teve em sua programação dois dos melho- do extratos de O quebra-nozes, já que sua
res espetáculos do ano,Umwelt,da francesa casa encontra-se em reformas.
Maguy Marin, e H3, de Bruno Beltrão,con- Nesse próximo ano, fica a esperança
tinua seguindo sozinho em seu perfil. Os de novas possibilidades para que a dança
Solos de Dança no SESC também mostrou carioca volte a florescer como já foi um dia.
trabalhos que mereceram atenção, como os Já do ano que passou, fica a certeza de que
de Márcia Rubin em Quase como se fosse as pessoas envolvidas com essa arte, nessa
amor, além de uma Ana Botafogo surpre- cidade, são, além de artistas da dança, artis-
endente, em La Mariée.Além deles, há de tas que inventam seus próprios modos de so-
se ressaltar a contínua ação do Dança em brevivência.

B OXE 1
(não publicado)

Além de ser palco das principais estreias de Sonia Destri, que receberam R$ 50 mil, apoios
dança na cidade e de abrigar dois de seus fes- que já foram garantidos novamente para o pró-
tivais mais importantes, os Solos de Dança no ximo ano. Além dessa ajuda financeira substan-
SESC (produção própria) e o Festival Panora- cial, o SESC ainda oferece a essas companhias
ma de Dança, o SESC Rio, através do Espaço espaço para ensaios, palco para as estreias e
SESC, lançou-se, desde novembro do ano pas- circulação pelas unidades do estado. Nesse
sado, a uma nova empreitada absolutamente próximo ano, como contrapartida, esses artis-
louvável: apoiar companhias de dança. O que tas deverão oferecer oficinas práticas ao pú-
um dia foi atributo da Prefeitura, hoje é uma ação blico e, após uma avaliação dos resultados,
que garante um mínimo de dignidade e trabalho outros nomes poderão ser incluídos. Todo esse
a cinco artistas cariocas: João Saldanha, Pau- projeto é assinado por Beatriz Radunsky e sua
lo Caldas e Renato Vieira, que receberam por equipe, que vêm desenvolvendo um trabalho
um ano o valor de R$ 100 mil, e Alex Neoral e ímpar na história da dança do Rio de Janeiro.

260
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
B OXE 2
(não publicado)

Um dos grandes desafios para a dança, não ainda com mais duas mostras voltadas espe-
apenas no Rio de Janeiro, mas em todo o mun- cificamente para esse nicho: o Festival Dança
do, é a formação de plateia. Na Europa, por Criança, que felizmente voltou a ocupar a Cai-
exemplo, profissionais especialmente contra- xa Cultural em outubro deste ano, oferecendo
tados para se dedicar a descobrir e implemen- espetáculos, oficinas e mostra de vídeos; e o
tar estratégias nesse sentido estão sendo for- Panoraminha, novidade do Festival Panorama
mados e contratos. Mas entre nós, algumas de Dança, com dois espetáculos: Chuá, da Di-
iniciativas também estão sendo tomadas, so- menti, companhia baiana, e Matrioska, do por-
bretudo no que se refere ao público infantil, o tuguês Tiago Guedes. São investimentos como
que não deixa de ser uma ótima investida para esses que podem garantir que, no futuro, o
que um público venha a se formar no futuro. público de dança se alargue e que a demanda
Além da ótima estreia da coreógrafa Ana Vitó- no setor, consequentemente, aumente. Todos
ria com Cirandas cirandinhas, o Rio contou sairiam ganhando.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2009 CRÍTICAS

JORNAL DO BRASIL - 9 DE FEVEREIRO DE 2009


Falta ritmo à companhia de Andrea Jabor
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 15 DE MARÇO DE 2009


Mostra que cruza a fronteira dos solos
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 15 DE MARÇO DE 2009


Começou mal, mas terminou com brilho
ROBERTO PEREIRA

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE FEVEREIRO • 200
20099

Falta ritmo à companhia


de Andrea Jabor
Construção dramatúrgica é falha, e hiatos
do espetáculo no Espaço SESC são enormes

OBERTO P EREIRA

A coreógrafa carioca Andrea Jabor e sua


companhia Arquitetura do Movimen-
to apresentam no Espaço SESC, até 8 de
vel ao instaurar a dúvida de que lugar o
samba passará a ser tratado dali em diante.
Além do ritmo, atentar para uma certa
março, a segunda parte de uma trilogia de- elegância que o samba exige talvez seja o
dicada à pesquisa do samba. Tarefa nada próximo desafio de Jabor. Os figurinos, o ce-
fácil, tal empreitada demanda qualidades nário, mas sobretudo o gesto, que esbarra o
que ainda aparecem turvas em Ao samba – tempo todo no caricatural, precisam ser re-
A cruz, o xis e o esplendor, justamente no que vistos com urgência para se chegar à maté-
se refere ao que é intrínseco do próprio ria fina da dança que se quer mostrar. Tudo
samba. está demasiadamente evidenciado, sem que
Um dos principais problemas é justa- seja, hora alguma, apenas insinuado. O sam-
mente a questão do ritmo,quase um contras- ba no pé, sabemos nós, tem dessas sutilezas.
senso, lembrando-se do tema que aborda. Talvez falte a Andrea Jabor e suas seis
Nada de errado com o ritmo nos pés das óti- bailarinas tratar o samba não de forma rei-
mas bailarinas que,aliás, sambam muito terativa, que chafurda no excesso de reve-
bem. O problema está no ritmo de sua cons- rência estereotipada aos grandes mestres e
trução dramatúrgica. Os hiatos são enormes. esquece a construção cênica em si. Tal como
Alguns deles tornam evidente que os des- acontece com esses mesmos mestres, vale
necessários 90 minutos do espetáculo abri- agora encontrar a essência, tanto da cena
gam material suficiente para alguns enxu- quanto do próprio tema. Para isso, há que se
tos 40, talvez. Isso é flagrante no texto por maturar muita coisa ainda nessa pesquisa.
demais autorreferente da coreógrafa, logo Apenas uma pergunta, que fica depois de
no início.Tão desarticulado do que viriaa tudo: Andrea Jabor, e o seu samba no pé,
seguir, sua pertinência se torna questioná- onde está mesmo?

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 15 DE MARÇO • 2009

Mostra que cruza


a fronteira dos solos
As cinco obras exigem mais
interação entre os intérpretes

OBERTO P EREIRA

A primeira noite da décima edição da


mostra Solos de Dança no SESC, nes-
ta quinta-feira, no Espaço SESC em Copa-
pantes de cada uma das peças. Nenhum pro-
blema, tratando-se de uma comemoração e,
sobretudo, levando-se em conta que essa
cabana, foi uma celebração. Mais do que a mostra sempre buscou novos formatos.
constatação das diferenças artísticas, o que ZAP,que abriu a noite,reuniu três exce-
se pôde festejar é a possibilidade de que lentes bailarinos de uma mesma companhia,
todas possam coexistir, graças a ação de a Focus: Alex Neoral, Carol Pires e Clarice
uma instituição como o SESC e do empre- Silva. Cada um coreografou um extrato que
endimento de seus dirigentes. foi dançado pelo colega. A qualidade alcan-
Para comemorar seus dez anos, a mostra çada é admirável, sobretudo no solo de Ca-
propôs novidades. Através da curadoria da rol, defendido por Alex: interessante,vigo-
coreógrafa Márcia Rubin e de Beatriz Ra- roso,com um timing perfeito.
dunsky, mentora do projeto, duas grandes O segundo solo,Arena,foi, sem dúvida, o
modificações foram notadas: em vez dos mais arrojado do programa. Flávia Meire-
quatro solos compondo a noite, foram apre- les, Gustavo Ciríaco e Marcela Levi apre-
sentados cinco; e, mais, interessante: em cada sentaram uma mistura de vídeo-instalação
peça, mais artistas foram envolvidos, dife- e dança absolutamente curiosa, discutindo
rentemente dos outros anos, em que a rela- a relação entre o espaço da arena, o artista
ção era apenas a de coreógrafo-bailarino. e o público.O resultado é novo,corajoso,in-
O resultado, bastante intrigante, fez com quietante.
que se chegasse à conclusão de que todos os O trabalho mais frágil ficou por conta de
trabalhos apresentados não são, em defini- Esther W eitzman, Frederico Paredes e Ma-
tivo, solos, embora no palco sempre estives- ria Alice Poppe, em Ela, ela também.A o
se apenas uma pessoa dançando de cada aproximar duas bailarinas tão distintas,
vez. O que se viu foram duos e trios, levan- como Esther e Alice,buscou-se,infelizmen-
do-se em conta a relação entre os partici- te, o que havia de semelhança possível en-

266
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
tre elas, e não suas qualidades individuais. em cena, tingindo a dança da coreógrafa
E o tempo, por demais esgarçado, contribuiu com novas nuances.
para que essas diferenças não exploradas E, por fim, Catábases, de Renato Vieira,
apenas fossem soltas na cena, sem nenhum reúne Bruno Cezário e Joaquim Tomé num
tratamento coreográfico. duo bastante interessante. O único ponto a
A coreógrafa Ana Vitória decidiu revi- se burilar, em se tratando da excelência dos
sitar uma antiga obra sua, 1, segundo, com intérpretes em questão, é a medida exata de
as bailarinas Andréa Bergallo e Soraya uma dança que resvala, às vezes, na quali-
B astos.Para além da certeza de que se trata dade da mera exibição das habilidades dos
mesmo de três excelentes artistas,é o solo bailarinos.
de Ana que mais impressiona, pois se pode Dez anos da principal mostra de dança do
ver a relação direta entre criador e intérpre- primeiro semestre são motivo de comemora-
te.Seu vigor físico,sua marca, cede espaço ção. Parabéns ao SESC. Esse espaço continua
agora para uma maturidade bonita de se ver sendo o endereço oficial da dança carioca.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DO BRASIL
R I O D E J A N E I R O • DOMINGO • 15 D E MARÇO • 2 0 0 9

Começou mal,
mas terminou com brilho
João Wlamir faz trabalho óbvio, e
Márcia Milhazes supreende

OBERTO P EREIRA

A segunda semana dos Solos de Dança


no SESC, comemorando sua décima
edição, trouxe mais cinco trabalhos à cena,
A dupla João Saldanha e Marcelo Bra-
ga foi responsável por um dos dois solos
apresentados na noite. Bambi, dançado pelo
misturando solos, duos, trios e até quartetos, excelente Jamil Cardoso, é um comentário
sempre tentando cumprir com a exigência sutil sobre a feminilidade masculina e sua
de que apenas uma pessoa dançasse a cada relação com a dança. Poético,preciso, com
vez. O resultado, novamente, foi interessan- ótimo figurino,foi um dos ótimos encontros
te pelo que carrega de diferenças nas pro- proporcionados pela mostra.
postas coreográficas e tece um painel da pro- Pas deux,de Paulo Caldas,mostra a con-
dução carioca de dança. tinuidade na pesquisa de movimento do co-
A noite não começou bem. Uma em qua- reógrafo,que vem apontando novos rumos,
tro, obra assinada por João Wlamir, sucum- desde Quinteto,seu último espetáculo.Tra-
biu à obviedade de um tema que o coreógra- ta-se de um duo, defendido por Carolina
fo vem perseguindo há tempos, o universo da W iehoffeJoão Paulo Gross,bailarino que
bailarina clássica, mas que ainda não conse- deu mostras de seu apuramento técnico e
guiu desenvolvê-lo, se é que isso merece artístico de forma impressionante.
realmente ser feito. A opção pelo excesso e Paula Águas resolveu dar novaroupa-
pelo absolutamente explícito, e uma teatra- gem ao seu já “clássico” Qual é a música?,e
lidade exagerada, que mais combina com a convidou a bailarina Monica Burity e a DJ
dimensão do palco do Theatro Municipal e D aniela V isco para interagir com ela. A
não com a arena do SESC, impediram que partir de estímulos deflagrados pela plateia,
qualquer proposta pudesse ser desenvolvida. convidada a falar num microfone uma pa-
Nem mesmo bailarinas do quilate de Ana lavra ou frase, música e dança deveriam
Botafogo, Bettina Dalcanale, Laura Prochet interagir. Nem sempre isso aconteceu, infe-
e Mônica Barbosa puderam salvar a obra da lizmente. Mas valeu a oportunidade de ver
falácia de sua pretensão. Uma pena. Monica numa performance inteligente por

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
sua ironia fina e rapidez nas soluções de Márcia. Com certeza, um dos momentos
improviso. especiais da noite.
Encerrando de forma especial a longa A mostra Solos de Dança no SESC com-
noite, Márcia Milhazes trouxe A moça,o pleta dez anos e se consagra como o prin-
segundo solo do programa. Delicadíssima cipal evento de dança na cidade do primeiro
textura de movimento que retrata o esta- semestre. Graças à sua idealizadora, Beatriz
do feminino,a coreografia foi interpreta- Radunsky, ao longo desses anos, vários for-
da com exatidão e doçura por Ana Amé- matos foram testados, todos interessantes.
lia V ianna. O requintado figurino e a tri
- Agora é aguardar qual o perfil que essa
lha sofisticada dialogam intimamente mostra fundamental para o Rio de Janeiro
com a movimentação desenvolvida por vai tomar no futuro.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1999-2007 OUTROS TEXTOS

JORNAL DO BRASIL - 16 DE OUTUBRO DE 1999


Dança: imitação e metáfora
ROBERTO PEREIRA

REVISTA BALLET/TANZ – BERLIM – NOVEMBRO DE 2000


O meme na carne
ROBERTO PEREIRA

JORNAL A NOTÍCIA – SANTA CATARINA - 8 DE JUNHO DE 2002


Quando a dança fala de si mesma
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 16 DE MARÇO DE 2004


A formação de plateias
ROBERTO PEREIRA

REVISTA BALLET/TANZ – BERLIM - ABRIL DE 2005


Die Verwirrungen des Luiz de Abreu
ROBERTO PEREIRA

JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE – FORTALEZA - 14 DE OUTUBRO DE 2007


A arte de criticar
ROBERTO PEREIRA

WWW.IDANCA.NET - 10 DE SETEMBRO DE 2007


As agruras de um projeto não selecionado
ROBERTO PEREIRA

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
272
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
CADERNO IDEIAS RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 16 DE OUTUBRO • 1999

Dança: imitação e metáfora


Hoje aberta a todo tipo de experimentação com o corpo na
cena, a dança contemporânea não responde mais o que é
ou o que diz o corpo, mas se concentra – como afirma
Roberto Pereira em texto inédito – em como o corpo fala

OBERTO PEREIRA

A dança também não ficou imune à von-


tade iluminista de conhecer o mundo.
À pergunta enciclopedista do século XVIII,
polo. O bailarino técnico, e por isso frio, e por
isso sem alma, era responsável por uma
dança bastante diferente daquela do baila-
“o que é dança?”, propunham-se inevitavel- rino expressivo. O verdadeiro desafio, entre-
mente mais outras duas perguntas: “como e tanto, era perceber exatamente como essas
o que ela quer dizer?”. Pensando em garan- lacunas eram visíveis, e o que elas queriam
tias de comunicação, começou-se a pensar mesmo dizer.
numa dança que era de ação, em detrimen- Enquanto o grande reformador da dan-
to de uma outra, da corte. Essa última esta- ça Jean-Georges Noverre (1727-1810) ten-
va preocupada com a beleza de sequências tava discutir, ainda no século XVIII, talvez
de passos cada vez mais sofisticadas, o que na primeira vez, teoricamente, como a dan-
lhe rendeu a comparação com os fogos de ça deveria se tornar expressiva, em nosso
artifícios: o corpo técnico a serviço da bele- século, o grande coreógrafo Georges Balan-
za. Já a outra tinha como preocupação falar chine (1904-1983) garantia ser impossível
à alma: o corpo expressivo. dizer, em dança, que uma bailarina era a
A dualidade “técnica e expressão” daí sogra da outra. Ao mesmo tempo, Balanchi-
decorrente acomoda-se na dualidade carte- ne reivindicava para si o direito de fazer
siana: o corpo e alma deveriam, em algum uma dança que ele dizia não ser “abstrata”,
momento, encontrar a perfeita harmonia na já que era construída em corpos absoluta-
dança. Enquanto o corpo, mero instrumento mente concretos.
de trabalho de uma alma inteligente, des- Deste impasse na diversidade de tarefas,
lindava-se em passos e divertissements, a o corpo que dançava foi atrás de suas espe-
dramaticidade encontrava seu terreno na cificidades. Acuado na esquina da natureza
pantomima. E essa cadeia dicotomizada iria e da cultura, emprestava de cada uma delas
promovendo adjetivos para um bailarino o que fez e faz da dança ser dança. Uma
que estivesse mais próximo de um ou outro dança que iria lançando mão de metáforas

273
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
e metonímias, para que sua inteligibilidade que dança uma pluralidade de “como é?”.
fosse certeira a um público anônimo e pa- Mesmo com resistência, a facilidade de se
gante e, por isso mesmo, exigente. rotular um bailarino de técnico ou expres-
O balé romântico foi o grande cristali- sivo e todos os julgamentos subsequentes
zador de ideias quando se decidiu encarar cedem lentamente espaço para um enten-
essa empreitada de significações. O que se dimento outro do que seja dramaticidade
dançava no palco era uma representação, neste corpo que dança. Primeiro requisito
em dança, no que se podia ler no libreto. para tanto: perceber que a poética desse
Chamamos isto confortavelmente de balé: corpo é antes de tudo construção, e que aque-
o que escapasse da tirania narrativa do tex- la esquina natureza-cultura não deve ser
to era o que fazia os espectadores-leitores confundida por um beco sem saída.
levantarem os olhos e lerem movimentos. A Susan Blackmore, em seu livro The
dança empunha-se, sem querer estar a ser- Meme Machine (1999), garante que o que
viço apenas de tarefas que estavam à mar- diferencia a espécie humana das outras es-
gem de suas especificidades. pécies é sua capacidade de imitação. Se-
Entre este texto e o gesto no palco, as re- guindo as trilhas da memética, ciência que
lações metonímicas imperavam. A relação estuda as unidades culturais/ideias repli-
causal diminuía ao máximo as chances de cantes (os memes), proposta pelo neo darwi-
interpretações que pudessem funcionar como nista Richard Dawkins, a autora mostra o
ruído de comunicação. O que me fazia acei- quão fluido pode ser o ângulo entre as duas
tar aquela mulher que se chama Odete e que instâncias citadas acima. Contar uma histó-
dança como um cisne estava codificado em ria e recontá-la é, sem dúvida, um caso de
gesto e, sobretudo, em contiguidades em seu tradução, mas antes de tudo de imitação.
figurino: as peninhas do cisne que adornavam Corpo natural e corpo cultural encontram,
sua cabeça e seu tutu. Ingênuo? Em todos os então, na dança, não mais emblemas de frio
casos,absolutamente eficaz. ou quente, técnico e expressivo, mas de
Mas nada disso,entretanto,evitou que a modos de construção, metafóricos e/ou me-
minha amiga Inês Rodrigues Assumpção,de tonímicos.
dez anos,perguntasse espertamente à sua Os cariocas poderão, neste mês de outu-
mãe-coreógrafa ao assistir ao mesmo balé: bro, entrar em contato com esses modos de
“O que a Odete está dizendo para o Sigfried construção através de dois espetáculos em
agora?” No eixo das combinações,são es- especial. O primeiro deles é o já famoso
sas as perguntas possíveis.Já o outro eixo,o Casa, da coreógrafa Deborah Colker. Nessa
da seleção,torna instantânea a relação do casa, movimentos do cotidiano continuam
objeto e a sua representação por meio de sendo movimentos do cotidiano, conectan-
contatos metafóricos: semelhança sincrôni- do-se contiguamente ao cenário, à música e
ca, substituição poética. E é saltando do ou- ao figurino. Inclusive, todos estes elementos,
tro para este eixo que a dança garantiu seu sem si mesmos, trazem também essa rela-
passaporte para a Modernidade. ção causal que garante entendimentos: a
A pergunta agora jamais seria “o que música, por exemplo, também é ruído de
é?”, mas injetaria no movimento do corpo porta que se bate. Mas esta mesma relação

274
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
não se dá nos movimentos. O divertissement como já denuncia o título da obra: todos nós
está lá, ao lado do gesto codificado, sem podemos segurar um dicionário, mas nem
muitas contaminações. Bater bolo, como mo- todos podemos executar uma pirueta. O que
vimento, não se transforma, metalinguisti- separa um do outro não é apenas o seu grau
camente, num movimento esvaziado da de dificuldade enquanto execução. E o que
ideia de “bater bolo”. A inteligibilidade aí os aproxima é justamente o que Bel propõe
garante o revestimento pop deste trabalho, minimalisticamente: o movimento, seja ele
rascunhando na dança contemporânea con- qual for, com possibilidade de um movimen-
tornos de balé. Neste sentido, Noverre po- to dançado. Mesmo que ele também tenha
deria ser, com certeza, um morador ilustre sido o ato de segurar um objeto.
dessa casa. A tarefa da dança é mais plural do que
O outro espetáculo, que trafega por um querer dizer algo. O que quer e o que pode
caminho inverso do traçado por Colker, é a língua era a pergunta que Caetano Veloso
Non donné par l’auteur, do coreógrafo fran- fez há 15 anos. A dança ainda precisa desta
cês Jérôme Bel, e que faz parte do 8o Pano- mesma questão seu hit parade. Para que ad-
rama RioArte de Dança, do dia 27 de outu- jetivos como técnico e expressivo não
bro no Teatro Carlos Gomes. Aqui, o movi- sejam excludentes e não continuem constru-
mento banal de segurar um objeto cria sua indo um corpo cartesiano quebracabeça-
própria “dramaturgia”,no sentido em que se mente. E para que metáfora e metonímia
torna “movimento por” e não mais “movi- possam ser poéticas de um corpo que dança,
mento para”. Significação não está no gesto sempre, mimeticamente, por imitação. Uma
de segurar um dicionário ou uma bola ou um imitação reinventada a cada execução, mas
par de patins. Gesto é, antes, movimento. sendo sempre consequência-causa de outras
Gesto esvaziado para ser preenchido por ele danças. Pois parafraseando livremente o
mesmo, como movimento. Metalinguistica- coreógrafo francês Boris Charmatz, o corpo
mente. A questão aqui é a da autoria, tal é a alma da dança.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
REVISTA BALLET/TANZ
BERLIM • NOVEMBRO • 2000

O meme na carne
OBERTO P EREIRA

A dança não trafega mais confortavel-


mente entre natureza-cultura. A dança
é a prova de que a esquina entre estas duas
O corpo fragmentado vai virando, assim,
pouco a pouco, o lugar em que a informação
também fragmentada se instaura. Estão lá
instâncias é o lugar de contaminações em mão as grandes calamidades como Kosovo, Etió-
dupla. O novo trabalho da coreógrafa Lia Ro- pia, Carandiru, Vigário Geral, ao lado de
drigues, apresentado no último mês de julho marcas e pessoas que, sem que a gente se
no Rio de Janeiro, Aquilo de que somos feitos, dê conta, fazem parte de nossas vidas. Abre-
alarga a dimensão desse trânsito e mostra que viando o que seria uma lista infinita de fa-
o corpo que dança está comprometido, sem- tos e nomes, um dos bailarinos reproduz um
pre, com seu ambiente. Nas novas noções de slogan irônico: “Just do it!”
evolução que estudam a cultura, este trânsito O corpo como mídia da evolução carre-
é o que se chama de coevolucionismo. ga com ele a propriedade simbólica de ar-
O espetáculo de Lia Rodrigues é um ma- mazenar a informação de seu ambiente. Tal-
nifesto. Recupera a imprevis ibilidade da per- vez por isso a dança seja um instrumento
formance, instaurando nela o engajamento que funciona aqui com a precisão de um
político e social misturado com uma esperan- bisturi médico na operação de seu reconhe-
ça naive dos anos 70. Let the sun shine in,a cimento. Na dança de Lia Rodrigues, este
canção emblema de uma geração,aparece em corpo se constrói disso: a técnica do balé
contraponto a uma avalanche de ícones do compartilha com a fofoca do artista que se
desenho animado infantil japonês. O espetá- submeteu a uma lipoaspiração, publicada
culo de Lia é uma constatação: o corpo,qual- numa dessas revistas populares. A ideia des-
quer corpo, contaminado pela informação,é tas duas informações traduzidas em dança
mídia de ideias. O que o neo evolucionista espanta justamente por trazer tão perto da-
Richard Dawkins chama de meme, ideia que quele que assiste o reconhecimento ainda
se replica na cultura, assim como o gene, na maior: a de que ele também está ali, nu.
natureza, na cena de Lia, ganha a carne. O espetáculo de Lia Rodrigues é um ma-
No começo,os corpos dos oito bailarinos nifesto. O preço do ingresso, cerca de 1 dólar,
nus não estão mais nus.Após alguns segun- e a prestação de contas do dinheiro que a com-
dos, cabe ao público, lançado em uma sala panhia recebe anualmente da Secretaria Mu-
sem cadeiras,revesti-los de outros figurinos, nicipal de Cultura, cerca de 25 mil dólares,
assim como reveste o silêncio de outra mu- publicada no programa, dão a dimensão exa-
sicalidade. Numa das cenas, esses mesmos ta disso. Quanto vale o corpo que dança?
corpos nus avançam pela plateia em espas- Ou melhor: Quanto vale o corpo? Quanto
mos pelo chão e se amontoam contra uma vale uma ideia? As respostas vêm em forma
parede: a carne que havia ganho significa- de pergunta, indignação e movimento. E são
ções torna-se simplesmente carne. sempre, e assim sempre serão, insuficientes.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL A NOTÍCIA
SANTA CATARINA • SÁBADO • 8 DE JUNHO • 2002

Quando a dança
fala de si mesma

OBERTO PEREIRA

Q uando uma pessoa é convidada a re-


produzir a primeira imagem que lhe
vem à cabeça quando ouve a palavra balé,
gem da bailarina nas pontas, girando em tor-
no de si mesma, perdurar por tanto tempo, de
maneira tão popular: ela simboliza o momen-
ela imediatamente coloca os braços acima to em que a dança, ainda sob a alcunha do
da cabeça e começa a rodopiar no lugar, si- balé, vira dança, apenas e sobretudo.
mulando uma bailarina nas pontas, com os Quando a fotografia foi inventada, a cri-
braços em terceira posição. Essa imagem, se por ela imposta no universo das artes
ainda tão forte nos dias de hoje, é uma he- anunciava o projeto da Modernidade: era a
rança romântica, e sua permanência no ima- hora de cada linguagem artística buscar sua
ginário popular deve muito ao que o balé especificidade. A dança, que a partir do sé-
desenvolvido no século XIX promoveu em culo XX começa a contar com a sua verten-
avanços técnicos e estéticos na dança. Essa te moderna via Ballets Russos e Isadora
imagem, que ainda deverá perdurar por Duncan, principalmente, também lançou-se
muito tempo, é aquela descrita por Chico ao desafio de se perguntar: O que e como
Buarque e Edu Lobo, em O Grande Circo eu quero dizer? O que é da propriedade da
Místico, na canção Ciranda da bailarina, ou dança, e somente dela?
aquela que se pode ver a cada vez que uma As respostas foram sendo buscadas e
caixinha de música é aberta: a bailarina nesse processo muita coisa aconteceu. Nes-
pura, branca, inatingível. sa “muita coisa”, o balé e a dança moderna
Para que essa figura pudesse ser ideali- tiveram de passar a conviver com a dança
zada, uma trama bastante complexa de como contemporânea, com o butô, a dança-teatro,
o corpo se movia e por que ele assim se mo- a new dance e tantas outras possibilidades
via começou a ser tecida. Uma trama cêni- que o cruzamento entre corpo e cena per-
ca, mas que começava a garantir para a dan- mite.Agora, a questão não se voltava mais
ça a sua maioridade: a dança, ocidental e apenas para o que era específico da dança,
cênica, tal como é conhecida hoje, ganhou mas como ela ia se tingindo com outras lin-
sua sistematização, sua autonomia enquanto guagens, assim como o mundo ia se tingin-
linguagem a partir do balé romântico, aque- do pelas informações disponibilizadas pela
le povoado por sílfides, elfos e wilis. E, nessa globalização.
época, ela já contava com mais de três sécu- Mas, mesmo com tantas transformações,
los! Talvez seja essa a razão de aquela ima- a dança precisou saber antes o que lhe cabia

277
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
enquanto tarefa nesse mundo: a construção mundo, aprender a ler essa imagem: a cada
de um corpo (a técnica) e sua configuração novo corpo, a cada nova cena. Resta a nós en-
cênica (a estética), algo que começou lá, na- tender que ali trafegam, numa via de mão du-
quele corpinho que girava (e ainda gira, para pla, informações da natureza (corpo) e da
felicidade da própria dança) em torno de si cultura (dança). Só assim esse mundo pode ser
mesmo. Assim, a dança fala de si mesma entendido como um lugar em que as ideias,
quando a ela é permitida a construção de uma as boas ideias, devem permanecer. Tal como
imagem. Resta a nós, que percebemos nela aquela ideia da bailarina da caixinha de mú-
um lugar privilegiado de desvelamento do sica. Tal como a dança.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
JORNAL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 16 DE MARÇO • 2004

A formação de plateias
OBERTO PEREIRA

L ogo no início de seu clássico estudo


sobre a Formação da Literatura Bra-
sileira,o crítico Antonio Candido propõe sua
de dança do País, em 1939, a imprensa cario-
ca contava com pelo menos oito críticos que,
uma vez entendedores de música, se aven-
noção de formação a partir da ideia de sis- turavam a escrever sobre dança.
tema: obras ligadas por denominadores co- Dentro desse contexto, o crítico Jaques
muns,com características internas,como lín- Corseuil (1913-2000), um dos primeiros re-
gua, temas e imagens, além de característi- almente especializados no assunto, deve ser
cas de ordem social e psíquica, como “a exis- mencionado como peça fundamental nessa
tência de um conjunto de produtores literá- construção de uma história da dança brasi-
rios, mais ou menos conscientes do seu pa- leira e de seu público. Outros o seguiram e
pel; um conjunto de receptores,formando os formaram uma tímida história paralela da
diferentes tipos de público, sem os quais a crítica de dança brasileira. Nesse sentido,
obra não vive, e um mecanismo transmis- valem ser citados Antonio José Faro, Suzana
sor (...) que liga uns aos outros”. Embutidos Braga e, em São Paulo, Nicanor Miranda e
nessa noção, estão o sentido de tradição e a Lineu Dias, entre tantos outros. Hoje, não
ideia de continuidade que cria padrões de apenas naquela cidade, mas em todo o País,
pensamentos e comportamentos. o nome de Helena Katz representa essa ação
A dança brasileira, embora tenha inicia- de continuidade de se fazer pensar a dança
do esse processo proposto por Candido dentro do circuito do jornalismo cultural.
quase um século depois da literatura (que, Assim, com quase um século de ativida-
para o crítico, se dá no período romântico), de, a crítica de dança no Brasil ainda tem
teve, e ainda tem, vários desafios e, entre pela frente o mesmo desafio de ser um dos
eles,o da formação de seu público, elemen- elementos de formação dessa tradição, apon-
to citado acima como parte dessa cadeia sis- tando setas para diferentes alvos: no públi-
têmica proposta. Historicamente, como essa co, no artista e na própria obra. Se a palavra
tradição começa a ser delineada no Rio de crítica conta em sua raiz etimológica com a
Janeiro no início do século XX (sobretudo a palavra grega krinein, que significa “que-
partir da fundação de sua primeira escola brar” e, ao mesmo tempo, “colocar em cri-
oficial de dança em 1927), a necessidade de se”, ela parece caber nesse empenho de se
uma crítica de dança foi fundamental. Ha- pensar uma dança brasileira: ajuda a que-
via de se entender como aquela linguagem brar automatismos no entendimento do que
cênica poderia ser produzida aqui e pode- o adjetivo “brasileira” significa para a dan-
ria ganhar contornos “brasileiros”. Na oca- ça, ao mesmo tempo que coloca em crise,
sião da primeira temporada oficial do balé num processo contínuo e profícuo, o que se
do Theatro Municipal, primeira companhia produz e o que se pensa na área no País.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
REVISTA BALLET/TANZ
BERLIM • ABRIL • 2005

Die Verwirrungen
des Luiz de Abreu

OBERTO P EREIRA

S amba do crioulo doido é uma expressão


que no Brasil quer dizer confusão. Não
à toa é o título do novo trabalho do bailari-
o verso da canção: “a carne mais barata do
mercado é a carne negra”. Luiz de Abreu é
negro. Homossexual. Bailarino. E brasilei-
no e coreógrafo brasileiro Luiz de Abreu, ro. Ao fundo, um grande painel repleto de
que reside hoje na cidade de São Paulo.A pequenas bandeiras do Brasil fazem o ce-
confusão provocada por ele nesse trabalho nário. Tudo é verde e amarelo. Exceto a car-
mistura assuntos caros num país com tantas ne que ali se movimenta.
desigualdades sociais.E o que mais impres- O que se desenvolve no palco é uma
siona é que esta mistura está mimetizada no habilidade de olhar de fora o que é de den-
corpo do bailarino,cuja construção e orga- tro. O olhar estrangeiro, alimentado pelo
nização de técnicas diversas é o próprio sabor do exótico, mistura-se com o olhar do
“samba do crioulo doido”. próprio brasileiro que discrimina, que ex-
Esta é uma peça de 20 minutos,assinada clui. À primeira vista, parece tratar-se de
e dançada por Abreu, e desenvolvida com o uma estética típica de boate gay e seus sho-
apoio do programa Rumos Dança 2003 do ws de transformistas. Mas achar que é ape-
Itaú Cultural, sob a sábia coordenação de nas isso é não entender exatamente o que
Sônia Sobral. Apresentado pela primeira vez Luiz de Abreu provoca, ao tratar dessa mes-
e m 5 março de 2004, na capital paulista, de ma estética, metalinguisticamente, para de-
imediato causou também confusão entre o nunciar esses olhares, estrangeiros ou não,
público que lotava o teatro naquela noite. sempre comprometidos com uma visão do
Nu, calçando apenas um par de botas que quer dizer ser negro, gay e bailarino
prateadas de salto altíssimo,o bailarino ao hoje num país como o Brasil.
som de uma batida grave de samba deixa A confusão que reside no corpo de Abreu
entrever suas formas.A os poucos era possí- borra qualquer tentativa de classificação
vel ouvir a voz da cantora Elza Soares, num daquilo que se move no palco. O que ocorre
grito de arranhar a garganta, proclamando é a confusão típica de um bailarino de hoje:

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
não há a ideia de passo ali, mas a dança de Em outubro desse mesmo ano de 2004,
um samba que acontece tramando armadi- Abreu foi convidado a remontar o Samba
lhas com o balé e a dança contemporânea. do crioulo doido em Salvador, capital do
Nada mais inquietante para se pensar a Estado da Bahia, dentro da terceira edição
dança brasileira. Uma dança de avesso. Nua. do projeto Ateliê de Coreógrafos Brasilei-
E de exotismos avessos. ros, idealizado por Eliana Pedroso. O que era
Ao final do espetáculo, ouve-se uma ver- um solo transformou-se em uma peça para
são em ritmo de batucada da abertura da dez bailarinos, nove homens e uma mulher –,
ópera O Guarany, de Carlos Gomes. Obra todos negros, e todos igualmente nus.
típica de um olhar estrangeiro que se cons- Essa versão foi mostrada no Teatro Cas-
truiu no próprio compositor brasileiro que tro Alves, o maior e mais importante tea-
ansiava por falar de si a partir do código do tro da cidade, reservado sempre para gran-
outro,essa música funciona quase como um des espetáculos. Simbolicamente, há de se
hino nacional. Neste momento, Luiz de pensar: Castro Alves, poeta romântico bai-
Abreu enfia um pedaço da bandeira brasi- ano, escreveu “Navio negreiro”, um de seus
leira no ânus e transforma o resto do tecido mais conhecidos poemas, que trata justa-
em um estandarte de escola de samba. Des- mente da questão do negro sendo trazido
fila pelo palco.Seu pênis balança ao ritmo da África para o Brasil. Hoje, Salvador é
de samba. Corpo e bandeira são quase um uma cidade composta, em sua maioria po-
parangolé de Hélio Oiticica, que brinca pulacional de negros.
com a questão da obra de arte na instabili- O teatro estava lotado na estreia do dia
dade do momento, do que se reveste e do 16. Risos nervosos durante a peça eram ou-
que se toma estabelecido.A carne mais ba- vidos. Ao final, uma massa de mais de mil
rata do mercado é embrulhada pelo símbo- pessoas se levanta e aplaude. Ou, para ser
lo de uma pátria. É a apoteose. mais legítimo, consagra uma conquista da-
Luiz de Abreu provoca a confusão de quele espaço. E mostra que um teatro não
olhares na plateia: reconhece-se o que é ser poderia levar aquele nome impunemente.
brasileiro,por dentro; ereconhece-se o que A performance tinha sido elevada à potên-
é ser brasileiro por fora, a partir do olhar cia máxima. O samba do crioulo doido, a
estrangeiro introjetado,do olhar coloniza- partir de então, não é mais apenas confusão
do,(quase) para sempre. e passa a ser entendido, antes de mais nada,
*** como um manifesto.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE
FORTALEZA • DOMINGO • 14 DE OUTUBRO • 2007

A arte de criticar

OBERTO P EREIRA

F alar de crítica de dança hoje, no Bra- apontam para essa crise. Helena Katz foi quem
sil, é falar de um projeto de resistên- mais publicou, com 29 textos (dados segundo
cia. Efetivamente, escrevendo e publicando seu site: www.helenakatz.pro.br), Inês apare-
crítica de dança em periódicos, temos, que eu ce com 9 textos, Marcello com 20, Silvia com
saiba e até o presente momento, apenas cin- 7 e eu com 20 textos (dados fornecidos pelos
co críticos, que nomeio agora: Helena Katz, próprios colegas). Tudo isso é ínfimo, se a crí-
no jornal O Estado de São Paulo, a primeira tica de cinema, por exemplo, é tomada como
entre nós, Inês Bogéa, da Folha de São Paulo, termo de comparação. Mas é um dado interes-
Marcello Castilho Avellar, no O Estado de sante e que se deve levar em conta quando se
Minas, Silvia Soter, no jornal O Globo e eu fala de dança brasileira hoje.
no Jornal do Brasil, ambos no Rio de Janeiro. A idéia de crítica, que tem sua origem
Muito diferente do início do século XX, na palavra grega krinein, carrega consigo
quando a dança e mais especificamente o dois sentidos interessantes: a de quebra e a
balé aportou por em terras brasileiras, e quan- de crise. Essa seria sua tarefa quase ontoló-
do existiam dezenas de jornais na então ca- gica. Quebrar a obra em pedaços, colocan-
pital federal, cada um deles com um crítico do em crise os sentidos pré-organizados que
de dança, hoje esse ofício beira o exíguo. Se se colam a ela. É fazer com que a obra res-
antes havia espaço nos jornais para críticas pire em outros modos, em outros registros.
extensas, que muitas vezes começavam Não à toa, a crítica de dança surgiu em
numa edição e terminavam noutra, em outro pleno século XIX, quando essa arte, através
dia da semana, tão grande era o texto, hoje do balé romântico, sistematizava sua ima-
as possibilidades de que elas saiam e que gem tornando-se o que hoje conhecemos
tenham um tamanho condizente com sua como dança cênica ocidental. Não à toa, foi
importância são bem menores. Em quase to- nesse mesmo século que a história ganhava
dos os jornais. Com quase todos os editores. seu estatuto de área de conhecimento, de ci-
Do início deste ano até o final do mês de ência. A crítica começava a fazer parte des-
setembro, por exemplo, os dados numéricos sa história. E começava a contá-la também.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
Hoje, sua função vem se transformando. age de formas diferentes, mas sempre com-
Como tudo no mundo. Hoje, por exemplo, plementares, na relação entre a obra, o ar-
existe o espaço virtual que subverte as exi- tista e o público.
gências de tamanhos de textos e espaços A curadoria, de alguma forma, propõe
delimitados. E também que permite uma flechas de sentidos da e na obra, antes mes-
reação instantânea dos leitores, estabele- mo que o público entre em contato com ela.
cendo diálogos vivos, num ziguezague de É um a priori que en-forma sua percepção:
idéias. O site idança (www.idanca.net) é um por que essa determinada obra está nesse
ótimo exemplo de lugares de ação e de tro- determinado festival? como ela dialoga
ca de idéias no Brasil. Mas é curioso: quan- com as outras obras que também compõem
do escrevi meu mais recente artigo para esse sua programação? onde ela é apresentada?
site, senti uma estranheza aguda por poder quando? como? em que ordem? o que eu
escrever o quanto desejava e precisava. Um assisti ontem “contamina” o que eu assisti-
outro registro, uma outra mídia, com certeza. rei hoje, que já está “contaminado” pelo que
Mas se estamos falando em crítica den- verei amanhã?
tro de um ambiente de festival de dança, A crítica desmancha os itinerários des-
como o é a Bienal de Dança do Ceará, seria sas flechas de sentidos. Quebra seu percur-
interessante colocá-la em contraponto com so, colocando em crise o que se pensou, exi-
uma outra instância, que hoje divide com a gindo que se repense. É um posteriori. Um
crítica um lugar decisivo entre a obra, o ar- depois que redimensiona o antes.
tista e o público: a curadoria. Na Bienal de Dança do Ceará, esses dois
Um ofício muito mais recente que o do lugares tão importantes hoje quando se fala
crítico, o curador aparece em fins do século XX, em dança contemporânea estarão clamando
para cuidar de algo que não se aprisionava por urgências: a urgência de se fazer enten-
mais em ismos: a arte contemporânea. Para a der o que são todas essas informações que se
dança, se formos também levar em conside- viabilizam apenas com a existência de um
ração a recente prática de festivais de dança festival como esse nesse ambiente, entenden-
que carregam a idéia de uma curadoria, po- do quais são suas pertinências e suas reverbe-
deremos constatar que se trata, em sua gran- rações; e, ao mesmo tempo, estampa a lacuna
de maioria, de festivais de dança contempo- do outro pólo, que seria a do exercício crítico.
rânea, pelo menos no Brasil. A tarefa seria a Tomando as proporções continentais
de administrar o que era quase inadministrá- brasileiras, a existência de apenas cinco crí-
vel, o que não se classificava mais como as- ticos atualmente é quase risível. Se o senti-
sim o permitiu um dia o balé e a dança moder- do de tradição em dança que se faz no Bra-
na, por exemplo. E administrar está na origem sil hoje necessita da formação de artistas e
latina da palavra curador, curator, que signifi- de seus públicos, suas estratégias são claras
ca tutor, ou aquele que administra. e muitas vezes impiedosas. Tenhamos cada
Pensar em curadoria e crítica hoje é pen- vez mais críticos, para que os tantos festivais
sar em ações da dança contemporânea, so- que já existem pelo país afora sejam colo-
bretudo no Brasil, onde essas ações comun- cados em crise. Numa crise, entretanto, que
gam com os festivais de dança estratégias os co-mova, ou promova transformações.
de sobrevivência. Apenas cada uma delas Nada mais contemporâneo, certo?

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
WWW.IDANCA.NET
RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO • SEGUNDA-FEIRA • 10 DE SETEMBRO DE 2007

As agruras de um
projeto não selecionado
OBERTO P EREIRA

N o dia 25 de junho deste ano, mais pre-


cisamente às 9h48 horas, postei meu
projeto denominado O Jazzdance no Bra-
ditam que editais como esses da Funarte
podem representar uma saída (quase única)
nesse deserto de opções que nos cerca.
sil: histórias de um corpo em swing, para Bem, vamos às reflexões possíveis, todas
participar da edição de 2007 do Prêmio elas meras conjeturas que levanto, mas que
Funarte Klauss V ianna de Dança. Não se podem servir para colocar em questão al-
tratava de um projeto e de uma tentativa ab- guns pontos que merecem atenção hoje de
solutamente inéditos: eu já havia inscrito todos nós. Bem, sendo assim, parto do seguin-
esse mesmo projeto no último edital das te: meu projeto não foi selecionado nova-
Bolsas V itae de Arte,no ano de 2004, eele, mente. Diante desse fato, conto apenas com
como se pôde rapidamente concluir, não foi duas possibilidades que justificariam sua
selecionado. não seleção e é a partir delas que gostaria
No último dia 6 deste mês de setembro, de propor a feitura deste artigo.
pude verificar que, novamente, esse meu Antes, porém, de me dedicar a elas, gos-
projeto não foi selecionado, agora então taria de deixar claro que, ao ter aceitado sub-
pelo edital da Funarte. E tal constatação meter um projeto meu a uma comissão que
(negativa, em vários sentidos) me levou a eu não conhecia, mas que conheci depois
pensar alguns pontos que merecem reflexão (quando da publicação dos nomes de seus
sobre a viabilidade da pesquisa teórica de integrantes no site da Funarte no mesmo dia
dança no Brasil, quando não vinculada di- 6 de setembro), e que respeito profundamen-
retamente ao ambiente universitário.Tal te, hora nenhuma tive ou tenho a intenção de
constatação,longe de ser um caso particu- colocar sua constituição em questão.Todos ali
lar meu, poderia ser tomada como um caso me parecem, e devem parecer a todos da clas-
bastante comum a todos aqueles que se lan- se da dança brasileira, legitimados de algum
çam a essa aventura de fazer pesquisa teó- modo para ocuparem o lugar que estavam
rica de dança neste país e, mais ainda, acre- ocupando. Ponto. Pronto.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
Assim, a primeira possibilidade que me inclusive que compõem o quadro de criado-
veio à cabeça que justificaria a não seleção res de dança contemporânea de hoje, como
de meu projeto é a mais óbvia: o projeto não Alejandro Ahmed, Mário Nascimento e
é bom. Simples assim. Ou porque o tema não Henrique Rodovalho, apenas para citar al-
parece ser pertinente, ou porque sua elabo- guns. Além desse estudo, a captura e o regis-
ração não está de acordo com as exigências tro de suas imagens em suas mais diversas
do edital, ou ainda porque seu orçamento possibilidades também se fazem prementes,
não está digno e/ou compatível ao que ele eu acreditava. Enfim, o que existe é a cons-
se propõe. Ou ainda: o projeto era “até” bom, tatação de que quase tudo ainda está por ser
mas havia outros melhores. E como a cota feito no que se refere ao jazzdance no Bra-
era restrita, os outros projetos (“melhores”) sil. Mas a comissão pode não ter concorda-
poderiam ter sido priorizados. Como já par- do comigo, e isso é (e deve ser, já que con-
ticipei de várias comissões que analisam cordei em submetê-lo a ela) compreensível
projetos como esse meu, inclusive na pró- e deveria ser aceitável.
pria Funarte (Prêmio Funarte Petrobras de Então, o segundo critério, que toca no
Fomento à Dança, entre os dias 21 e 25 de ponto da elaboração do meu projeto propri-
novembro de 2005), fico pensando que es- amente dita. Talvez eu tenha pecado em
ses são critérios absolutamente legítimos. algo crucial que fez a exigente comissão não
Todos três. Vamos a eles: aceitá-lo. Alguma omissão grave, algum
A pertinência de se estudar a história da ponto que não estava suficientemente cla-
dança no Brasil e do Brasil me parece, pelo ro, ou mesmo sua articulação pode não ter
menos num primeiro momento, inquestioná- parecido satisfatória. Mas estava tudo ali:
vel. Num país onde ainda muito há de ser objetivo, histórico, justificativa, cronograma,
feito nesse sentido, uma iniciativa de se es- orçamento, currículo. Será, meu Deus, que me
tudar a história de uma estética tão impor- esqueci de algo? Outro fato que seria abso-
tante como o jazzdance sempre me veio lutamente legítimo.
como obviamente necessária. Por várias Como coloquei o projeto em questão em
razões,eu diria. E eu poderia elencá-las aqui. seguida a esse texto, peço aos leitores mais
Mas acho que bastaria dizer que existiram dedicados que, por favor, me ajudem, apon-
ainda poucas iniciativas nesse sentido, com tando falhas, para eu possa, então, e definiti-
projetos pontuais que não abarcaram a gran- vamente, aprender, se for mesmo esse o caso,
deza de se estudar esse momento tão caro à como se elabora um texto que se pretende
nossa dança em sua dimensão histórica e em projeto. Talvez o meu histórico de mais de
suas mais diversas vertentes,sobretudo nas 20 anos de pesquisa de dança não tenha ain-
cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. da me habilitado a elaborar um texto digno
Nomes fundamentais de nossa dança, de ser selecionado por uma comissão como
que se encontram devidamente citados no a desse edital. Talvez. Isso é absolutamente
meu projeto (que propositalmente coloquei aceitável, também.
como um anexo a esse texto), mereciam, O fato de eu ser um doutor (e por uma
hoje, quase 20 depois do auge dessa estéti- dessas coincidências, pelo menos quatro das
ca entre nós,um estudo aprofundado. Nomes integrantes dessa comissão são minhas co-

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2 009
legas de programa de doutorado da mesma des, como o Rio e São Paulo, sem excluir Belo
universidade), com a pesquisa lançada em Horizonte. E acredito ser honesto como di-
livro pela editora da Fundação Getulio Var- vidi os pagamentos de todos aqueles que me
gas, talvez não tenha me auxiliado nesse auxiliariam no que eu havia me proposto.
desafio. O fato de eu ser mestre em filosofia Talvez eu tenha me equivocado em algum
pela Universidade de Viena, com a pesqui- ponto. E peço, então, que me ajudem. Lem-
sa também lançada em livro (já em sua se- brem-se, novamente: essa ajuda pode ser
gunda edição), também não. valiosa para todos aqueles que estão lendo
E também não, o fato de eu ser crítico de esse texto e que tenham (ou não) seus proje-
dança do Jornal do Brasil já há quase 10 tos reprovados em editais como esses. Como
anos, ou o fato de eu ter nove livros publica- já comentei aqui, fiz parte de comissões como
dos sobre dança, além de cinco coletâneas essa e para mim os orçamentos eram sem-
de artigos sobre dança co-organizadas por pre muito “reveladores”. Parecia que se po-
mim, todos elas esgotadas e quase unânimes deria fazer um raio X da verdadeira índole
em seu uso nos cursos superiores de dança de alguns proponentes ao se entrar em con-
pelo país afora; ou o fato de eu ter sido por tato apenas com seus orçamentos...
seis anos curador de um festival da impor- Bom, vamos então à segunda possibili-
tância que tem o Panorama de Dança; ou o dade ou à segunda hipótese: o meu projeto
fato de eu viajar pelo País ministrando pa- talvez tenha sido cancelado. Simplesmente
lestras e cursos ou participando de comis- assim: cancelado. E aí vamos tentar enten-
sões (apenas nesse ano de 2007, já pude es- der o que me leva a tal suposição.
tar em cidades como Vitória – ES, Belo Hori- Como é de conhecimento do todos, abso-
zonte – MG, Caxias do Sul – RS, Porto Alegre lutamente todos que fazem arte neste país
– RS, Londrina – PR, São José dos Campos – (e talvez não daqueles que a financiam, in-
SP, Fortaleza – CE, Uberlândia – MG, Joinvi- felizmente), muitos dos artistas e dos pesqui-
lle – SC, São Paulo – SP e Campo Grande – sadores não possuem uma firma que os re-
MS); enfim, todos esses fatos juntos não de- presente. Não somos pessoa jurídica, não
vem ter me ensinado a elaborar um projeto temos CNPJ, por tudo o que justifica as difi-
digno. Claro, isso é absolutamente possível e culdades legais de se ter e se manter uma
legítimo. Talvez eu tenha que aprendê-lo. Ou firma hoje em dia.
desistir definitivamente disso. O que mais da metade desses artistas e
Mas esse artigo, ao tocar nessa possibili- pesquisadores fazem? Procuram por firmas
dade, coloca a oportunidade de todos nós sa- (muitas vezes de idoneidade questionável)
bermos como é elaborar um bom projeto de para que possam servir como “proponentes”
pesquisa histórica em dança no Brasil. Aten- de seus projetos, para que os representem
ção: essa é a chance! juridicamente. Tal fato não é novo e é uma
Bem, resta ainda meu orçamento. Como realidade concretíssima em nosso meio. É
os leitores podem constatar, solicitei a ver- assim. E pronto.
ba de 50 mil reais, que ainda julgo ser sufi- Como todos fazem, também saí atrás de
ciente para um projeto como o meu, mesmo uma firma que pudesse ser minha propo-
abarcando a história de duas grandes cida- nente e que pudesse me representar junto a

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esse edital da Funarte. Achei que seria mais agosto. A minha proposta é que me fosse
prudente procurar a firma de uma pessoa concedida a chance de simplesmente trocar
amiga, conhecida minha, com quem eu, in- a firma que seria a minha proponente, pois
clusive, trabalho. Mesmo tendo que pagar acreditava apenas na pertinência do meu
impostos na ordem de 18%, achei que seria projeto, da minha ideia e da minha compe-
mais seguro e honesto contar como uma fir- tência, que o assinava. Ingenuamente, eu
ma idônea como essa que eu havia escolhi- acreditava que isso seria possível na medi-
do. Assimilei esses impostos em meu orça- da em que a firma em nada comprometeria
mento e acreditei que estava tudo absolu- a efetivação de meu projeto, caso ele fosse
tamente correto. selecionado, pelos motivos já expostos. En-
Um detalhe muitíssimo importante: nin- fim, tratar-se-ia apenas de um recurso me-
guém desta firma tinha absolutamente al- ramente burocrático que me permitiria re-
guma coisa a ver com a elaboração e a efe- ceber a verba. De novo: caso meu projeto
tivação de meu projeto. Todos os que eu fosse selecionado.
havia convidado a integrá-lo como meus A resposta que obtive foi negativa. Não
assistentes (cujos nomes, cuidadosamente, havia essa possibilidade de troca, embora o
retirei da versão do meu projeto que segue edital não considerasse essa situação em
em anexo, por motivos os mais óbvios) não específico (o da troca de CNPJ em casos
estavam ligados à firma em questão. como esse). E o meu projeto, assim posso
No final do mês de agosto (portanto, qua- intuir, deve ter sido desclassificado por esse
se dois meses depois de eu ter postado meu motivo. Ou pela soma dos tantos outros
projeto no correio), numa dessas coincidên- motivos que expus ao longo desse texto. Não
cias da vida, soube por essa minha amiga sei e não deverei nunca saber: no site da
que ela havia sido convidada a compor a tal Funarte não há essa resposta.
comissão que avaliaria os projetos do edi- O pesquisador, que não tem uma firma,
tal em questão. E esse convite teria sido fei- talvez tenha ficado sem a oportunidade de
to pouco tempo antes da comissão se reunir. sua ideia ter sido sequer lida, considerada,
Ela aceitou o convite, como eu acho mesmo avaliada. O proponente passa a ser mais
que deveria. E eu ganhei um problema. importante que aquele que concebe e exe-
Na mesma hora em que me dei conta de cuta o projeto. Pior ainda: passa a ser mais
que o fato de ela ter aceitado participar da importante, que a própria ideia em questão.
comissão comprometeria o meu projeto, No meu caso, se for esse mesmo o caso, o
porque a firma dela (mesmo que ela seja pesquisador fica sem a pesquisa. E o País
apenas uma entre cinco sócios) não pode- fica sem a oportunidade de ter contada uma
ria ser proponente ao mesmo tempo em pequena, mas tão importante, parte da his-
que ela participava da comissão, tentei tória de sua dança.
achar uma saída para o problema que se Fiquei pensando se não seria o momento
instaurava. de revermos os editais e tentarmos trazê-los
Liguei para o então coordenador de dan- mais para perto da realidade daqueles que
ça da Funarte e expus meu problema. Essa realizam a dança, em suas mais diversas
ligação se deu exatamente no dia 27 de interfaces, neste país. Fiquei me lembrando

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do edital de bolsas do extinto e saudoso Ins- transparente o que é uma realidade que to-
tituto RioArte, da Secretaria das Culturas dos conhecemos, mas que simplesmente
da Cidade do Rio de Janeiro, que concedia não é levada em conta na elaboração de
suas bolsas a pessoas físicas. Eu mesmo tive editais como esses?
a oportunidade de ser agraciado com uma, Eu gostaria, confesso, de ser o proponen-
no ano de 2002, quando fiz uma pesquisa te – físico – do meu projeto, ser responsável
sobre a importante contribuição da bailari- por ele, responder por ele, receber por ele.
na Eros Volusia (1914-2004) para nossa Acho que é isso. E sei que isso pode ser pos-
dança, e que foi, inclusive, transformada em sível.
livro, compondo a coleção Perfis do Rio, da Enfim, meu projeto não foi, pela segun-
editora carioca Relume Dumará, no ano de da vez, selecionado. Todos os livros que
2004. Ah, e também me lembrei da bolsa comprei pensando em sua futura realização,
que recebi entre 1998 e o início de 2002, do e todo o material que venho colecionando
CNPq, para que eu pudesse fazer meu dou- ao longo desses três anos, acreditando que
torado. A ajuda mensal era depositada numa ele um dia seria viabilizado financeiramen-
conta bancária aberta em meu nome. E as- te, tudo isso deve ganhar apenas um lugar
sim pude fazer minha pesquisa. em minha estante.
Quem são as pessoas jurídicas que fari- Pelas evidências que se impõem, acho
am uma pesquisa sobre a vida de uma bai- mesmo que está na hora de desistir dele. E
larina como a Eros Volusia? Ou que se de- ficar torcendo, por mim e por todos os pes-
dicariam a pesquisar o jazzdance no Brasil? quisadores de teoria da dança no Brasil, que
Como solucionar esse caso e deixar mais a desistência seja apenas deste projeto.

E N TÃ O , O PRO J E TO

O Jazzdance no Brasil
Histórias de um corpo em swing
Introdução

A história da dança no Brasil, em sua Em minha pesquisa de doutorado, por


amplitude e complexidade, deixa flagrar exemplo, debrucei-me sobre a análise
uma situação um tanto urgente: muito dos balés do começo do século XX, perí-
ainda está por ser realizado, levando-se odo de sua formação no País, relacionan-
em conta estéticas diversas, momentos do-os com toda a influência de um perío-
históricos diversos e especificidades con- do histórico determinado, a saber, o Es-
textuais diversas. tado Novo e sua ideia de brasilidade. Em
Há mais de 20 anos venho me dedi- paralelo a esse trabalho, pude escrever e
cando a contar um pouco dessa história. publicar a biografia de cinco grandes bai-

CONTINUA

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larinos (ver currículo em anexo), que, em mias de Joyce Kermman, a extinta revis-
suas vidas, narravam também a própria ta Dançar e as influências de Lenny Dale
história da dança brasileira. no Rio de Janeiro e Redha Benteifour em
Ao ter trafegado, em meus estudos, ine- São Paulo configuram-se como alguns dos
vitavelmente, pela dança que se fazia em te- muitos ícones de uma época em que o
atros de revista, shows de cassinos e em fil- chamado “boom do corpo” tomou a cena
mes musicais (ou chanchadas), pude perce- da dança brasileira, ao mesmo tempo que
ber como toda uma produção de dança ainda se vivia sob os rastros fortes da cen-
voltada principalmente para o entreteni- sura de uma ditadura militar vigente.
mento carecia ainda de uma investigação Este projeto anseia visitar esse mo-
histórica. mento bastante peculiar da dança brasi-
Nesse sentido, mais adiante, comecei leira, pois além de representar um capí-
a me interessar por um movimento que tulo ainda não escrito em sua história,
assaltou a dança brasileira, sobretudo nele também é possível detectar algumas
nas décadas de 1970 e 1980, e que se pistas para o entendimento da formação
tornou o lugar desse mesmo entreteni- de um determinado tipo de bailarino
mento (sobretudo através de programas hoje, muitas vezes requisitado em com-
de televisão), ao mesmo tempo que panhias de dança contemporânea que se
apontava novos caminhos para essa faz no País.
mesma dança brasileira: o jazzdance.
Passados alguns anos,pude observar Justificativa
ustificativa
que esse movimento poderia, enfim, ser Pensar a história desse movimento, o
observado historicamente.Tal observa- jazzdance, dentro da história da dança
ção, contudo, não deveria ser tomada do Brasil e no Brasil, permite observar
como a necessidade de um mero levan- como tanto sua estética quanto sua téc-
tamento de dados, mas antes como uma nica ainda perduram nos tempos atuais,
rica ferramenta para se entender muito pensando basicamente em duas frentes:
do que se promove em dança hoje no País, na dança contemporânea e na dança de
sobretudo no que diz respeito à formação rua. Como essa estética resiste ainda
de bailarinos de importantes companhi- hoje? Quais são os grupos e/ou coreó-
as contemporâneas. grafos que ainda assinam composições
Assim, a abertura do programa Fantás- assumidamente feitas sob sua rubrica?
tico,da Rede Globo de Televisão,o grupo Como sua técnica é hoje ensinada? Que
Dzi Croquetes, composto apenas de ho- tipo de bailarino ela forma? Onde eles
mens travestidos,a novela Baila Comigo, estão dançando hoje?
as companhias de dança Bandança e Va- Responder tais perguntas, já por se-
cilou Dançou,no Rio de Janeiro,e Raça rem elaboradas, justifica a pertinência
Cia. de Dança,em São Paulo,aremonta- desse projeto hoje no contexto de pes-
gem brasileira de Chorus Line, as acade- quisa não apenas histórica, mas estética,

CONTINUA

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de boa parte da dança que se faz hoje São Paulo e de Belo Horizonte, assim
neste país. como no exterior.
• Pesquisa e leitura de bibliografia espe-
Objetivo cializada.
Este projeto tem como objetivo fazer um
levantamento histórico do jazzdance na Alguns nomes de possíveis
dança brasileira, especialmente nas três entrevistados podem ser citados
últimas décadas do século XX, nas cida- Alejandro Ahmed, Alexandre Magno,
des de São Paulo e do Rio de Janeiro. André Vidal, Betina Guelman, Betty Fa-
Entrevistas filmadas com os princi- ria, Caio Nunes, Carlota Portella, Ciro
pais personagens desta história, levan- Barcelos, Cláudia Raia, Cláudio Tovar,
tamento do material iconográfico, como Cristina Helena, Dalal Achcar, Daniela
programas, cartazes e fotografias, levan- e Denise Panessa, Déborah Bastos, De-
tamento das críticas e reportagens de nise Millet, Djenane Machado, Elizabe-
jornais e revistas, assim como levanta- th Oliosi, Fernanda Chama, Henrique
mento dos registros em vídeos, tanto dos Rodovalho, Ismael Guiser, Jacqueline
acervos pessoais como dos programas Motta, João Saldanha, Jorge Fernando,
de televisão, sobretudo os da Rede Glo- Juan Carlo Berardi, Luiz Boronini, Már-
bo, do SBT e da TV Cultura, formam a cia Barros, Maria Lúcia Priolli, Marly
matéria-prima dessa pesquisa, que deve Tavares, Mário Nascimento, Maysa Tem-
ser apresentada em forma de texto, de pesta, Nádia Nardini, Nino Giovanetti,
CD-ROM contendo as imagens em ge- Priscila Teixeira, Regina Sauer, Renato
ral, além de uma compilação dos vídeos Vieira, Rose Calheiros, Roseli Rodrigues,
em DVD. Todo esse rico material pode- Silvia Matos, Silvia Soter, Soraya Bastos,
rá ser transformado em publicação pos- Suzana Braga, Tânia Nardini, Tatiana
teriormente. Leskova, Tony Nardini, Vilma Vernon e
Washington Cardoso.
Metodologia
A pesquisa histórica será feita a partir de: Ficha técnica e número de
• Pesquisa nos acervos da Biblioteca pessoas envolvidas no projeto
Nacional. • Idealizador, coordenador e
• Pesquisa no Banco de Dados da Rede pesquisador: Roberto Pereira
Globo de Televisão, do SBT e da TV • Escaneamento e produção de imagem
Cultura. • Produção de CD ROM
• Pesquisa iconográfica e histórica nos • Produção de DVD
acervos pessoais dos personagens des- • Revisão de texto
sa história.
• Entrevistas com personagens residen- Número de pessoas envolvidas
tes nas cidades do Rio de Janeiro, de no projeto: 5 (cinco)

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Bibliografia

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Este livro foi produzido
na cidade do Rio de Janeiro
pela Fundação Nacional de Artes – Funarte
e impresso na Imo’s Gráfica e Editora, Rio de Janeiro – RJ
no quarto trimestre de dois mil e nove
com fotolitos fornecidos pela Funarte

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