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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ÉTICA

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA PRÁTICA:


temas, conceitos, problemas e teorias.

Prof. Dr. Luís Evandro Hinrichsen

PORTO ALEGRE / 2010 2


2

INTRODUÇÃO

O que é isto Filosofia? Encontramos na língua grega o sentido original e originário da


palavra Filosofia. Trata-se de termo composto por Filos (amizade) e Sofia (sabedoria).
Designa a atitude de amor de quem busca tornar-se amigo da Sabedoria. Segundo
estudiosos, foi o pré-socrático Heráclito de Éfeso quem inventou a palavra Filosofia,
inaugurando nova atitude, teórica e ética. Para Heráclito, tornar-se amigo daquilo que é
Sábio [O „Um que é tudo’ – Realidade – Ser] exigia atitude inusitada: ver além das
aparências, desconfiar dos sentidos e operar com a razão. Para além do fenômeno, se
encontraria o lógos, a razão daquilo que se mostra à consciência1. A teoria [o ver da razão
sobre os fenômenos] exigiria postura ética consequente, pois o conhecer implicaria em
transformação pessoal. Nos seus primórdios, a Filosofia foi concebida, enfim, como teoria e
atitude ética, envolvendo e comprometendo a totalidade da vida.
Se a Filosofia é tentativa permanente de indagar e compreender o sentido
abrangente da realidade, portanto, compete ao filósofo a permanente crítica das convicções
ou crenças silenciosas que sustentam nossas compreensões de mundo. É tarefa de quem
ingressa na Filosofia, indagar pelo sentido de todas as coisas. Cada ser humano é
convidado a perguntar pelo significado de tudo aquilo que é – na tentativa de ultrapassar a
ingenuidade e chegar à visão judicativa ou crítica. Afirmamos, por isso, que a Filosofia é
uma ciência de rigor, enquanto crítica radical de teorias, conceitos e práticas. A ciência de
rigor, exercício radical, dirige seu olhar para as raízes dos fenômenos, descobrindo ou
desvelando sua verdade [não permanece na superfície, mas se dirige aos fundamentos]2.
O filósofo sabe que indaga o incontornável, que suas respostas são provisórias.
Todavia, no meditar, reflete sobre o sentido – pensa –, pois é capaz de, no silêncio, acolher
o Ser. No filosofar, permanecendo junto às coisas, exercendo a reverência do pensamento,
no processo de revelação-ocultamento, acolhe o que é – decifrando e testemunhando o
significado das coisas, de si mesmo, do outro, do sagrado, da existência.

1
Ver HEIDEGGER, Martin. O que é isto Filosofia [Qu’est-ce La Philosophie]. In: Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1979. p.13-31.
2
Cf. HUSSERL, Edmund. A Filosofia como ciência de rigor. Coimbra: Atlântida.
3

O que é isto Filosofia? Podemos, preliminarmente, afirmar que Filosofia é visão


responsável ou crítica, na medita em que, renunciando à parcialidade, é abrangente e
criteriosa3.
Se a Filosofia é visão abrangente ou crítica, quais são os momentos de quem
ingressa ou realiza o filosofar? Podemos caracterizar, didaticamente, em três momentos
[interligados] o processo do filosofar4.
1º Momento – Des-orientação: para filosofar é preciso romper com as nossas
ingenuidades, por mais difícil que seja. É necessário experimentar a crise originada de
nossa despreocupação para com o mundo. Quando nos damos conta de que as coisas não
são bem assim como pensávamos, quando questionamos nossas crenças silenciosas [pré-
conceitos ou pré-juízos] entramos em crise. Quem vive a crise, a des-instalação, pode,
finalmente, perguntar. No perguntar se encontra a gênese do exercício da Filosofia.
Somente quem pergunta radicalmente pelo sentido de todas as coisas, pode conceber as
razões que sustentam nossa visão de realidade.
2º Momento – Des-cobrimento: mas, não basta perguntar, é necessário patentear a
verdade, ver aquilo que se mostra/ocultando. Des-cobrir ou des-velar é retirar o véu que
impossibilita perceber as coisas na transparência delas mesmas, é vencer os impedimentos
que barram nosso contato com a realidade, é superar as amarras das crenças silenciosas.
O momento do des-cobrimento é ocasião de retirar o velo que oculta e encobre a realidade.
Implica em sair da caverna, desvelando o ser que se manifesta, revelando-o como verdade
ou sentido.
3º Momento – Dar razão: contudo, não basta ver, dar-se conta, des-cobrir o ser como
verdade. É necessário assegurar a posse efetiva da descoberta. A Filosofia exige, além do
dar-se conta, dar-conta, fornecer as razões da visão adquirida. O pensamento é convidado a
justificar, demonstrar o descoberto, garantindo a posse da verdade conquistada. Nenhuma
afirmação, em Filosofia, é gratuita. O ser, compreendido como verdade [no mostrar-se e
velar-se das coisas], exige a elaboração teórica. Se nenhuma afirmação é gratuita em
Filosofia, cumpre definir conceitos articulando-os, é importante justificar com argumentos a
visão conquistada. Na ágora dos debates, somos convocados a dar razões de nossa
descoberta. A teoria, portanto, procura, através de sólida argumentação, convencer nossos
pares [ou interlocutores] da validade de nossa descoberta.

3
Cf. MARÍAS, Julián. A Visão Responsável. In: Antropologia Metafísica. São Paulo: Duas Cidades, 1971. p.9-14.
4
Ibidem.
4

Justificar nossa descoberta, explicitar a verdade concebida, supõe a capacidade de


comunicar para as outras pessoas a visão conquistada. O discurso, mediação intersubjetiva,
portanto, deverá ser rigoroso, coerente, lógico. Todavia, em Filosofia, o discurso que nasce
da vida solicitará consequente testemunho. O discurso em questão deverá ser expressão de
nossa vida, comprometendo nossa existência com a verdade que propomos e explicitamos.
Desejamos nos debates de Ética indagar sobre importantes questões, exercitando
nossa capacidade investigativa, perguntando – radicalmente – e justificando nossas
posições. Os problemas éticos, por sua importância e complexidade, exigem atenção,
estudo rigoroso, capacidade de acolher, aptidão em argumentar. Desejamos,
especialmente, reaprender a perguntar, a dialogar, a esclarecer nossos conceitos.
Aspiramos argumentar em favor de nossa posição – através das sínteses teóricas
formuladas, provisórias, mas possíveis. Intencionamos, sobretudo, ligar teoria e vida através
de atitude hermenêutica que possa qualificar nossas existências.
5

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS À ÉTICA

Ao iniciarmos nosso curso de Ética, é conveniente estabelecer os conceitos


fundamentais da disciplina, realizando distinções e oportunizando esclarecimentos básicos.
Afinal, o que é Ética? Que relações podemos estabelecer entre Ética e Moral? Quais são as
diferenças entre os problemas éticos e os problemas morais? O que são dilemas éticos? De
que modo os dilemas éticos incidem sobre a vida profissional? Existe progresso moral?
Como a reflexão ética compreende a tensão entre autonomia e heteronomia moral? Por que
é importante refletir sobre os problemas éticos fundamentais?
A reflexão ética é, de fato, exercício rigoroso, intransferível e enriquecedor, capaz de
doar significados à existência humana. Especialmente em nosso tempo, quando indagamos
pelo mínimo valorativo, quando perguntamos pela possibilidade de convivência penetrada
pela paz e justiça, tal exercício reflexivo se revela vital.

1.1 O que é Ética?

A Ética, situada no plano da Filosofia prática5, examina o agir humano. Poderíamos


definir Ética, em conseqüência, como a ciência do agir humano. À Ética, segundo
Aristóteles, competiria pensar a relação entre o agir humano e o sentido ou finalidades da
existência do homem. Ética deriva de Ethos, indicando o caráter de uma pessoa ou de um
povo. Cada povo, assim como cada pessoa, teria seu ethos, seu modo próprio de ser.

5
Segundo Aristóteles (Metafísica I, 1,2 e Ética a Nicomâco VI), as ciências podem ser classificadas considerando
seu objeto e grau de universalidade. Às ciências poéticas [arte ou técnica] é reservada a tarefa da produção dos
bens necessários à vida humana [abrigo, alimento, saúde, bens culturais, etc.]. À Filosofia Prática [que examina
o agir humano: práxis] compete refletir sobre a vida individual [Ética] e a vida na cidade [Política], indicando os
critérios pelos quais atingiremos o máximo de realização humana, consideradas todas as possibilidades de vida
feliz na perspectiva da realização do bem individual e do bem comum. As Ciências Teóricas, gratuitas, dividem-
se em particulares [aquelas que examinam aspectos particulares do ser: como a biologia, a física, a psicologia e a
matemática] e a Filosofia Primeira, saber abrangente que investiga os primeiros princípios da realidade. Se as
Ciências Poéticas e a Filosofia Prática são conhecimentos aplicados, entretanto, as Ciências Teóricas são
exercício gratuito de investigação. As Ciências Teóricas, destacamos, tratariam de aspectos particulares do ser
[Ciências Particulares] ou do ser enquanto ser [Filosofia Primeira]. Segundo Aristóteles, participam em maior
grau da natureza da Sabedoria – objeto da investigação das Ciências – os conhecimentos mais universais e
gratuitos. Assim, teríamos a seguinte classificação, ascendente, quanto ao grau de dignidade e importância das
ciências: Ciências Poéticas, Filosofia Prática, Ciências teórico-particulares e Filosofia Primeira [Metafísica].
Em nossa concepção, a Filosofia Prática [Política e Ética] – enquanto conhecimento aplicado – é exercício
filosófico pleno, ação reflexiva de primeira grandeza. A Ética, reflexão prática, conseqüentemente, é pleno
exercício filosófico, reflexão indispensável, Filosofia em sentido maior.
6

Aristóteles, no entanto, define Ética como ciência, ou seja, define-a como um exercício
rigoroso que investiga o agir humano. De que agir ou ações estamos falando? De um agir
específico, qualificado, nascido da reflexão e da deliberação, capaz de afetar a vida do
agente e, sobretudo, a vida de outras pessoas. Determinar a natureza de tal agir
confrontando-o com os fins da vida humana, seria a tarefa da Ética.

1.2 Ética e Moral: aproximações e definições

Podemos, igualmente, definir Ética como ciência da moral, ou melhor, como teoria ou
ciência do comportamento moral dos homens em sociedade6. A Ética, enquanto teoria,
pretende ser conhecimento rigoroso sobre o comportamento qualificável como moral.
Moral7, por sua vez, deriva de mos, mores: costume, costumes [uso, caráter,
comportamento]. Por moral, entendemos o conjunto de normas aceito e vivido por
indivíduos concretos em determinada sociedade. O objeto da Ética é, por conseguinte, o
comportamento caracterizado como moral8, ou seja, nascido da reflexão e da consciência,
orientado por normas admitidas e realizadas livremente por indivíduos que compartilham
suas vidas em determinada sociedade. É conveniente recordar: esse comportamento,
caracterizado por moral, afeta a vida de outras pessoas. Na realização da moral,

6
Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 22. ed. RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 23.
7
Mos, mores é a tentativa dos latinos traduzirem ethos, daí as palavras ethikós e moralis [Cf. SARAIVA, F.R. dos
Santos. Novíssimo Dicionário Latino-Português. Rio de Janeiro: Garnier, 1993. p.435/754]. Aquilo que a tradição grega
denominava ética, portanto, passou a ser designado pelos latinos por moral. Ética [do grego ethos] indica:
costume, condução de vida, regras de comportamento, caráter de uma pessoa ou de um povo. Moral [do latim
mos, mores] designa: costumes, conduta de vida, regras de comportamento, remete ao agir humano. Ética e
Moral, portanto, numa primeira compreensão, podem ser consideradas sinônimas, pois as palavras coincidem na
indicação de comportamento justificado por normas. Entrementes, embora as línguas ocidentais tenham usado
esses vocábulos como sinônimos, é interessante diferenciá-los. Nessa perspectiva, convencionamos,
considerando a evolução do uso das palavras, indicar por Ética a dimensão teórica, reservando a palavra Moral
para sinalizar a instância dos costumes e normas. Em nosso estudo, destacamos, por questões metodológicas e
epistemológicas [em acordo com a tradição inaugurada por Aristóteles], por Ética indicaremos o momento
teórico e por Moral a dimensão normativa e os costumes.
8
Se o objeto da Ética é o comportamento moral, é conveniente entendê-lo. Em primeiro lugar, os animais,
altamente especializados, estão rigidamente ligados ao meio ambiente. O ser humano, ao contrário, plástico
[moldável] recebe da cultura uma segunda natureza que permitirá sua sobrevivência. Essa segunda natureza, a
cultura, situa o homem no mundo, destacando-o do cosmo. Ser gregário, racional e portador de linguagem, o
homem buscará na cultura respostas às diferentes necessidades. Nessa direção, precisará descobrir, interiorizar e
realizar normas, pois sua plasticidade, seu comportamento não-fixado instintivamente, ao mesmo tempo que lhe
abre ao mundo, exige novo suporte. Esse processo de interiorização das normas é mediado pela educação,
realizando as várias etapas de socialização incorporadoras do indivíduo ao tecido social. Os animais,
destacamos, recebem do rígido aparato instintivo a direção do seu comportamento. O homem, frisamos,
encontrará na moral [nas normas] efetiva orientação e adequada compensação cultural. Em segundo lugar,
somente poderá ser caracterizável como moral, o ato que, tendo realizado ou não a norma, afeta positiva ou
negativamente a vida de outras pessoas. Em terceiro lugar, a ação moral supõe a capacidade de antecipar os
resultados, nascendo de livre deliberação, sendo avaliável segundo suas conseqüências. Em quarto lugar, o
comportamento moral supõe a capacidade de resistir à coerção externa ou interna na direção do agir voluntário.
Em quinto lugar, à voluntariedade segue-se racionalidade compartilhável intersubjetivamente, capaz de conceber
e reivindicar a norma, adequando-a, realizando-a, avaliando-a. A Ética procurará compreender e significar o
comportamento que denominamos como moral.
7

salientamos que o grau de autonomia e liberdade varia entre indivíduos, culturas e épocas
da história. Entretanto, quanto maior o grau de autonomia presente na vida moral dos
indivíduos e sociedades, tanto mais qualificada e plena será essa dimensão da existência.

1.3 Problemas éticos e problemas morais

Efetuada a distinção entre Ética e Moral, podemos esclarecer e diferenciar o âmbito


dos problemas morais e dos problemas éticos. Enquanto os problemas morais são factuais,
práticos, concretos; os problemas éticos são gerais e teóricos.
O indivíduo, agente moral, procura auxílio nas normas morais, pois, cotidianamente
vê-se desafiado pelos dilemas do dever e de sua realização. O agente ético precisará
indagar sobre o modo de aplicação da norma em cada situação. Se a norma, em sua
universalidade, é precioso auxílio, todavia, como aplicá-la nos casos singulares e nos
diferentes contextos? Como realizá-la, salvaguardando o bem dos indivíduos envolvidos em
cada situação? A norma, em sua generalidade, em conclusão, precisa ser adequada às
singulares exigências que a reivindicam. Destarte, poderá orientar a ação na direção do bem
visado, permitindo posterior avaliação das conseqüências positivas ou negativas alcançadas
através da ação. Os problemas morais, assim sendo, tratam dos conflitos inerentes à vida
moral, essencialmente práxica.
Dizíamos que os problemas éticos são gerais e teóricos. Então, quais são os
problemas tratados pela Ética? Competirá à Ética estudar o comportamento moral,
indicando seus elementos constituintes, explicitando as teorias que podem garantir sua
racionalidade, justificando sua possibilidade. Cumprirá a Ética julgar os códigos morais e
suas normas, indagando sobre sua aplicabilidade, questionando sua realização. A Ética
perguntará pelos critérios da avaliação moral, investigando a contribuição das diversas
escolas éticas. Estudará a relação entre a vida moral e seus fundamentos antropológicos,
questionando a ligação entre valor e norma, indagando sobre a dialética entre indivíduo 9 e
sociedade10. Questionará a relação entre liberdade e obrigatoriedade11. Sobretudo, a Ética
avaliará o conteúdo de racionalidade da norma, sua exeqüibilidade e alcance. A norma [em
seu caráter incondicional] realmente se justifica? Através de quais procedimentos a norma
poderá ser convenientemente adequada e prudentemente realizada? Cabe à Ética,
finalmente, a tarefa de fornecer, argumentativamente, as razões de possibilidade do mínimo

9
Dimensão subjetiva da vida moral.
10
Dimensão objetiva da vida moral.
11
Quais são as condições e os pressupostos da livre adesão do agente moral ao obrigatório [ao dever]? Por que e
como o agente ético livremente realiza o obrigatório proposto pelo dever?
8

ético12, capaz de orientar a vida em sociedade. À Ética, em resumo, é indicada a tarefa de


validar racional e intersubjetivamente o horizonte sobre o qual se estabelece a vida em
comum.

1.4 Relações entre Ética e Moral

Do exposto, é conveniente, em termos didáticos e metodológicos, diferenciar Ética


de Moral, pois, comumente, usamos os dois termos como sinônimos. Assim, não agimos
eticamente, mas agimos segundo normas morais, procurando realizá-las. A Ética, em
conseqüência, avalia o conteúdo da ação moral, reflete sobre essas ações, indaga,
teoricamente, sobre o significado dessas ações. Agimos moralmente e avaliamos o
conteúdo dessa ação observando suas conseqüências. Através da reflexão ética poder-se-á
averiguar se, atendendo as normas de determinada moral vigente, indagando sobre as
conseqüências da ação, atuamos com correção, se afetamos positiva ou negativamente
outras pessoas. Agimos moralmente e refletimos sobre o significado de nossas ações. Ética,
enquanto ciência do comportamento moral, enquanto exercício teórico, é apta em examinar
o conteúdo dessa ação, na busca de compreendê-la.
Ética, compreendida como ciência da moral, inquirirá sobre a relação entre o
normativo e o factual, entre a norma [ou lei moral] e as ações morais, entre moral [geral] e
moralidade [realização do geral]. Interrogará sobre a correspondência entre o Ideal
[normativo] e a vida moral concreta. E, se as normas morais procuram expressar aqueles
valores que a humanidade vem descobrindo como fundamentais, a Ética examinará como
tais valores são traduzidos nas normas vigentes e, sobretudo, como são vividos 13.
Refletiremos, a seguir, brevemente, sobre os dilemas éticos vivenciados pelos
profissionais nas suas diversas áreas de atuação.

12
O que é o Mínimo Ético? Através de um exercício racional-comunicativo podemos indagar: quais são os valores e
princípios que permitiriam a convivência entre os humanos em sociedade? Esses valores e princípios, por sua validade
intersubjetiva, por seu caráter trans-cultural, por seu conteúdo de racionalidade, forneceriam as bases dessa convivência num
mundo em crescente globalização e mundialização. O respeito à vida em geral e às pessoas, o exercício da solidariedade, a
promoção dos direitos e liberdades fundamentais, encontrariam no Mínimo Ético sua referência e fundamento. Nesse sentido:
quais são as coisas mais importantes em minha vida? Quais são os valores pelos quais oriento minha existência? Incluo as
outras pessoas e seres vivos no meu projeto de vida? Como minhas escolhas axiológicas são, de fato, vividas?
13
Como devemos compreender a instância normativa moral na sua relação com a lei? As normas morais
traduzem valores e princípios que orientam a vida em sociedade. Ligam-se ao costume, se enraízam na
consciência do indivíduo e são livremente cumpridas ou violadas. Essas normas podem, com o tempo, receber
explicitação em forma de lei positiva [escrita]. A lei, em sua positividade, traduz, antecipa ou contraria a norma
moral, exercendo sob as pessoas poder coercitivo. Se as normas morais regulam, com certo grau de
espontaneidade a vida dos indivíduos, a lei ordena por seu caráter coercitivo. Daí as diferenças entre o moral e o
legal, e os conseqüentes conflitos. Cumpre à Ética indagar se determinado dispositivo legal é, de fato,
moralmente válido e eticamente justificável.
9

1.5 Os dilemas éticos e os desafios profissionais

Os dilemas éticos acompanham os seres humanos ao longo da história e encontram


sua raiz nas ações morais. O que caracteriza uma ação moral? Uma ação moral,
recordamos, realiza uma norma, apresentando conseqüências constatáveis, positivas ou
negativas, não somente para o agente, mas para outras pessoas. Ora, como a norma é
prescritiva e anunciadora do dever ser, cotidianamente, diante de exigências práxicas, o
agente moral precisa decidir pelo cumprimento, adequação e realização dessa norma.
Como conciliar a pretensão de universalidade da norma e cada situação? Motivado pela
realização do fim, decidido em alcançá-lo, o agente ético elege os meios e atua na direção
do bem visado. Norma realizada, ação concluída, o agente e pessoas envolvidas avaliam o
resultado alcançado. Nessa avaliação, perguntam pelo bem ou possível prejuízo resultante
da ação. Nesse jogo, que envolve decisão e escolhas, destacamos, é importante eleger
mediações adequadas e eticamente justificáveis, pois os meios se fazem presentes nos fins
alcançados denunciando o agente, tornando-o merecedor de mérito ou reprovação.
No exercício profissional somos, igualmente, cotidianamente desafiados pelos
dilemas éticos, convocados a refletir, dialogar e decidir, em cada caso, pelo modo da
aplicação da norma segundo o bem visado na ação. O enfrentamento dos dilemas éticos no
âmbito do cumprimento do dever, a interpretação, adequação e aplicação das normas,
códigos deontológicos e prescrições legais é, portanto, tarefa reflexiva intransferível,
considerando os resultados de nossas ações e a responsabilidade conseqüente14.

1.6 A pergunta pela existência do progresso moral

As transformações histórico-sociais implicam, necessariamente, em progresso


moral? Existe progresso moral? Quais são as evidências desse progresso?
As transformações econômico-sociais e o desenvolvimento técnico-científico não
implicam em efetivo progresso moral. Todavia, tais transformações geram crises capazes de
14
As ações humanas são passíveis de avaliação moral e jurídica. Julgamos e somos julgados segundo valores,
princípios e normas socialmente compartilhados. Julgamos, inclusive, a nós mesmos. No campo legal, o
descumprimento voluntário da lei implica em penalização, conforme culpa ou dolo. Nessa direção, na vida
profissional, a negligência ou imperícia compromete o agente. A diferenciação entre ignorância voluntária e
ignorância involuntária [existem coisas que não posso não saber e coisas que não poderia prever], a observância
das prescrições legais, o cumprimento das normas dos códigos profissionais, a cotidiana reflexão, o empenho em
realizar eticamente as tarefas determinadas: possibilita segurança, satisfação e realização na vida profissional.
Em conseqüência, a reflexão ética, a justificativa do cumprimento da norma, o atento desempenho das
obrigações [deveres] envia o profissional à dimensão dos seus direitos, permitindo alcançar realização
profissional e humana. Nessa direção, os valores e princípios, os códigos, leis e reflexão ética tornam-se
indispensável auxílio, revelando vital significado, pois em cada ação – o profissional é convocado a justificar
suas escolhas e partilhar racionalmente suas decisões. Os profissionais de todas as áreas, enquanto seres
humanos e agentes éticos, enquanto responsáveis, precisam decidir prudentemente e na direção do bem das
pessoas afetadas por suas decisões e escolhas.
10

estimular a reflexão ética e impulsionar modificações enriquecedoras da vida moral. A razão


ética, diante do novo e frente a inusitados dilemas, encontra motivos capazes de impulsionar
e enriquecer a vida moral. Mas quais são os sinais ou evidências do progresso moral?
As evidências de progresso moral, segundo Vázquez15, poderão ser encontradas: a)
pela ampliação da esfera moral na vida social16; b) pela elevação do comportamento
consciente e livre dos indivíduos e grupos17; c) pelo grau de articulação e coordenação
existente entre os interesses pessoais e coletivos; d) pelo progresso ascensional na direção
da afirmação e preservação de valores considerados fundamentais, ao longo da história, à
convivência e continuidade da vida humana18.
Embora as morais se transformem ao longo do tempo, segundo Adolfo Sánchez
Vázquez, importa destacar, não estamos diante de relativismo moral extremo, pois valores
fundamentais têm sido descobertos e preservados. Esses valores, consagrados ao longo da
história por sua relevância, podem ajudar-nos no enfrentamento dos desafios
contemporâneos. Frente a desafios planetários, num mundo globalizado e multiculturalizado,
valores, como paz e solidariedade estimulam reflexão e ação. O conceito de
responsabilidade planetária, nascido no contexto de mundialização, procura efetivar a paz
através da solidariedade, vinculando os seres humanos nessa empreitada tão importante.
Em resumo, valores preservados ao longo da História humana, por seu significado e
importância, podem auxiliar-nos diante dos desafios planetários, nos vinculando aos outros
seres humanos, às outras espécies, ao planeta.
Vázquez argumenta em favor do progresso moral, descrevendo a substituição de
paradigmas morais ao longo da história do Ocidente. Assim, se a vingança de sangue,
existente nas comunidades primais, foi substituída pela moral aristocrática da polis grega; se
a moral aristocrática grega deu lugar à afirmação da dignidade formal e universal da pessoa
na idade média, se na modernidade, descobrimos o trabalho como fonte de riqueza e
percebemos no trabalhador papel fundamental na constituição da sociedade; em nossos
dias, acrescentamos, no conceito de responsabilidade planetária, na busca da aproximação
dos interesses pessoais e coletivos, encontraremos novo ponto de partida à vida moral.
Orientados por esses princípios – racionalmente compartilhados – poderemos inspirar
nossas ações na busca da superação da exclusão, da discriminação, do uso predatório do
meio-ambiente, enfim, de todas as formas geradoras de conflitos e violência E, se existem
inúmeras declarações formais em defesa da pessoa e da liberdade, gradativamente
descobrimos a urgência em realizar os princípios desses enunciados. Não basta, portanto,

15
VÁZQUEZ, 2002, p.50-52.
16
A vida moral orientada por normas exteriores ligadas ao direito e ao costume, torna-se vida moral
interiorizada, vivida desde convicções íntimas e partilhadas com outros membros da sociedade.
17
Ou seja, pelo crescimento da responsabilidade desses indivíduos e grupos em seu comportamento moral.
18
Valores como: solidariedade, amizade, lealdade, honradez, veracidade, senso de justiça.
11

propugnar os direitos da pessoa, do Idoso, das crianças, defender o meio ambiente, etc.
Não é suficiente haver declarações consignadas pelas nações. É prioritário transitar do
plano formal dessas declarações à vida e suas reivindicações; é urgente realizá-las, dar-lhes
sentido práxico.

1.7 Ética: entre a autonomia e a heteronomia

Finalmente, se a vida moral implica numa relação livre e consciente com a norma e
sua realização, é preciso pensar o problema da autonomia e heteronomia moral. Quando
agimos, recebemos, de fato, influências da sociedade, da cultura e da época da qual
fazemos parte. Entretanto, sempre agimos com algum grau de liberdade. O contexto, ao
incidir sobre nossas ações, salientamos, não elimina nossa capacidade de escolher e
decidir. Escolhemos, decidimos e agimos num mundo que, ao nos acolher, condiciona e
possibilita nossas existências. Logo, se valores e normas sempre traduzem o ambiente
donde brotam, ainda assim, podemos interpretá-los e decidir realizá-los segundo grau de
autonomia capaz de fundar a responsabilidade. Do exposto, porque capazes de autonomia,
somos responsáveis. Dizendo de outra maneira: se, quando agimos, atuamos segundo os
valores e normas recebidos de nossa sociedade, cultura, época, entrementes, ainda assim,
agimos com algum grau de liberdade. Verificando que a pessoa é liberdade finita, o agir
humano implica num grau de heteronomia ou determinação exterior. Entretanto, o conteúdo
recebido [norma] precisa ser interiorizado, refletido, avaliado, assumindo como meu. Assim,
o agir humano torna o heterônomo [a lei recebida do exterior] norma assumida
autonomamente [aceita interior e livremente]. E, frisamos, tanto mais consciente a
realização da norma, tanto mais autêntica a vida moral. Seria oportuno, em conseqüência,
investigar o processo de amadurecimento para a vida moral19.

Conclusão Preliminar

A vida moral implica numa relação livre e consciente entre os indivíduos e entre
esses e a sociedade, visando o bem de cada um e de todos. A reflexão ética, ao estudar o
comportamento moral, poderá, efetivamente, contribuir ao enriquecimento da existência
humana. Para além dos condicionamentos, na esfera da intimidade, na descoberta do si

19
Ver, nesse sentido, o resumo de Bárbara Freitag (cf. “Moralidade e educação Moral”. In: _______ . Itinerário
de Antígona. A questão da moralidade. SP, Campinas: Papirus, 1997. p.192-207) referente ao estudo
transcultural realizada pelo psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg sobre os estágios do desenvolvimento
da moralidade [descrição das seis etapas do desenvolvimento moral ou da gradativa passagem da heteronomia à
autonomia na esfera da vida moral].
12

mesmo e na afirmação da responsabilidade, descobriremos no outro um parceiro na


edificação e cuidado do mundo.
A reflexão ética – estudando o comportamento moral, indagando sobre os elementos
constitutivos da ação moral, discorrendo sobre responsabilidade e dispensa moral, refletindo
sobre a dialética entre liberdade e obrigatoriedade, indagando sobre os modos efetivos de
realização da moral, inquirindo sobre os estágios do desenvolvimento moral, e examinado
as principais escolas éticas – contribuirá ao despertar, desejado por cada ser humano, de
vida sempre mais autárquica e autêntica. Finalmente, se visar à vida boa em sociedades
justas supõe a práxis, a reflexão ética é condição dessa ação transformadora.
Desejamos, em nossos encontros de Ética, pesquisar e refletir sobre os assuntos,
indicados na presente introdução, caminhando para a aplicação dos temas de Ética geral
em nossos estudos de Ética aplicada e de Ética profissional.
13

2 A ESSÊNCIA DA MORAL [Investigação da natureza da moral: O que é a moral?]

Admitida a historicidade da moral, cumpre indagar pelos elementos que, ao longo do


tempo, unem as diversas morais. Estamos, ao realizar tal questionamento, tratando da
essência da moral. Como referir o normativo e o fatual, moral e moralidade? Como pensar a
relação entre o pólo subjetivo (indivíduo) e o pólo objetivo (sociedade – cultura) da moral?
Quais são as tarefas que a moral efetiva? No que consiste um ato moral? Quais são os
critérios caracterizados de uma ação moral? Quais são os elementos constitutivos de um ato
moral? Por que o ato moral é singular?
Partiremos, nessa empreitada, de preliminar definição que afirma: “a moral é um
conjunto de normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento
individual e social dos homens20”. Três são as referências presentes na definição:
normatividade, liberdade e consciência, comportamento individual e social. A definição nos
convida a pensar na moral enquanto empreendimento pessoal e coletivo, baseado no
cumprimento de normas ou deveres por um sujeito livre e capaz de refletir. No transcorrer
do estudo, procuraremos aprofundar essas constatações inicialmente propostas.

2.1 O normativo e o fatual

O comportamento moral gira em torno de duas regiões: entre o conjunto de normas e


regras de ação [a] e o plano constituído por certos atos humanos realizadores dessas regras
[b]. Os valores precisam ser traduzidos em princípios ou regras de ação. Essas regras de
ação, por outro lado, oferecem o horizonte de orientação e se efetivam no plano das ações.
As normas referem-se ao dever ser, já o fatual refere-se à realização da norma.
Cotidianamente, somos convocados à efetivação de normas, tais quais: ama teu próximo,
respeita teus pais, diga a verdade. Em cada situação, na efetuação de cada ato, realizamos
ou rejeitamos a norma orientadora. O plano normativo se refere ao dever ser, encontrando
correspondência positiva ou negativa nos atos realizados.
A Ética avalia como atos morais positivos, ao realizarem a norma, se apresentam
como valiosos e capazes de produzir conseqüências afirmativas em favor das pessoas
envolvidas. Os atos moralmente negativos, de outro lado, implicam em violação ou não

20
Cf. VÁZQUEZ, A Essência da Moral (cap. III), 2002, p. 63.
14

cumprimento da norma, e importam em conseqüências prejudiciais aos indivíduos


implicados. Entretanto, o não cumprimento da norma não destitui a norma de valor, não
esvazia ou anula seu conteúdo. Se o normativo exige, nas situações correspondentes, a
realização da norma segundo o dever ser reclamado, entrementes, o descumprimento da
norma, não anula sua positividade: a norma continua valendo21. Embora possamos
diferenciar o normativo do fatual, importa destacar, esses planos estão inevitavelmente
intrincados, nunca se encontram totalmente separados, devem ser pensados, assim, em sua
mútua implicação.

2.1.1 Moral e moralidade

A distinção entre moral e moralidade corresponde à diferenciação entre o normativo


e o fatual. Assim como a norma ganha concreção nos atos humanos, a moral, devido
inerentes exigências de realização, tende a tornar-se moralidade, vida efetiva. Deparamo-
nos, simultaneamente, com o normativo ou prescritivo e com o prático-efetivo, dois aspectos
presentes na vida moral. A existência moral, em conseqüência, movimenta-se entre o
normativo ou prescritivo e o prático-efetivo, procurando integrar essas dimensões nas
diversas circunstâncias e atos correspondentes.

2.2 Caráter social da moral

Na realização da vida moral, encontramos interação dialética entre indivíduo e


sociedade. A vida moral nasce das relações estabelecidas entre pessoas, na sociedade, e
vem implicada em cada ato de todo indivíduo humano. Todavia, não devemos substantivar a
sociedade, ou seja, pensá-la como entidade autônoma, independente dos seres humanos.
Os indivíduos em relação – ao criarem instituições, ao estabelecerem conexões
econômicas, ao justificarem suas visões de mundo – fazem a sociedade acontecer.
Entretanto, também é incorreto pensar indivíduos concretos ignorando sua pertença
temporal, cultural e social. O comportamento moral, assim, implica na dialética interação

21
Resume Vázquez (A essência da moral, cap. III, p. 65): “As normas existem e valem independentemente da
medida em que se cumpram ou se violem. O normativo e o fatual não coincidem; todavia, como já assinalamos,
encontram-se em relação mútua: o normativo exige ser realizado e, por isso, orienta-se no sentido do fatual; o
realizado (o fatual) só ganha significado moral na medida em que pode ser referido (positiva ou negativamente) a
uma norma. Não há normas que sejam indiferentes à sua realização; nem há, tampouco, fatos na esfera moral (ou
da realização da moral) que não se vinculem com normas. Assim, portanto, o normativo e o fatual no terreno
moral (a norma e o fato) são dois planos que podem ser distinguidos, mas não completamente separados”.
15

entre os indivíduos e a sociedade da qual fazem parte22. Nessa direção, três aspectos
regulam a vida moral23:

I) O individuo não inventa princípios ou normas de acordo com suas exigências


pessoais, pois nasce inserido num tempo, numa cultura, em determinada sociedade;
II) O comportamento moral é tanto comportamento de indivíduos como de grupos
sociais humanos, cujas ações têm caráter coletivo, mas deliberado, livre e consciente;
III) As idéias, normas e relações sociais nascem e se desenvolvem em
correspondência às necessidades sociais.

Quais são, então, os atos que podem ser caracterizados ou classificados como
morais? São aqueles que apresentam conseqüências, não apenas para o agente, mas para
outras pessoas. Dessa maneira, ir ou não ir ao cinema numa tarde de sábado não implica
em conseqüências para a vida de outras pessoas. Mas, descumprir promessa, romper a
palavra empenhada injustificadamente, resulta em ação moral e responsabilidade
conseqüente.
A moral, ao regular a vida dos membros de uma sociedade, importa num caráter
social, supõe a intervenção dessa sociedade no comportamento de seus participantes, pois
fornece quadro normativo apto a orientar a vida das pessoas. Todavia, quanto mais
consciente seja o individuo, quanto mais presente se faça nas suas ações, quanto mais aja
por reflexão e menos por imposição, tanto mais plena e livre será sua existência moral24. Na
consciência, finalmente, decide-se a vida moral na direção do cumprimento ou

22
Importa perguntar: até que ponto somos agentes ou pacientes da cultura, enquanto membros de determinada
sociedade. É inegável a existência de condicionamentos que envolvem nossas vidas e limitam a liberdade em
assumir regras orientadoras de nosso comportamento. Entretanto, há instância de reflexão e liberdade segundo a
qual agimos e pela qual nos tornamos responsáveis por nossos atos, por nossa vida. Não importa o que fizeram
de nós, o importante é saber o que fazer com o que fizeram de nós. A afirmação precedente indica: somos
responsáveis, apesar dos condicionamentos existentes, por nossas ações. A vida moral, assim, em sua
maturidade, consiste na capacidade de assumir as conseqüências de nossas ações, considerada a conquista dessa
esfera de reflexão e liberdade capaz de nos tornar mais plenos porque responsáveis.
23
Cf. VÁZQUEZ, A essência da moral (cap. III), 2002, p. 67-69.
24
Afirma Adolfo Vázquez (A essência da moral, cap. III, 2002, p. 73): “O sujeito do comportamento moral [...]
é uma pessoa singular. Por mais fortes que sejam os elementos objetivos e coletivos, a decisão e o ato respectivo
emanam de um indivíduo que age livre e conscientemente e, portanto, assumindo uma responsabilidade social. O
peso dos fatores objetivos – costumes, tradição, sistema de normas já estabelecidas, função social deste sistema
etc. – não nos pode fazer esquecer o papel dos fatores subjetivos, dos elementos individuais (decisão e
responsabilidade pessoal), ainda que a importância deste papel varie historicamente de acordo com a estrutura
social existente. Mas, inclusive quando o indivíduo pensa que age em obediência exclusiva à sua consciência,
uma suposta voz interior, que em cada caso lhe indica o que fazer, isto é, inclusive quando pensa que decide
sozinho no santo recesso de sua consciência, o individuo não deixa de acusar a influência do meio social de que
é parte e, a partir de sua interioridade, tampouco deixa de falar à comunidade social à qual pertence”. Vázquez
insiste na dialética entre o individual e o coletivo, indicando, na instância interior, a presença das vozes da
sociedade; mas, ao mesmo tempo, reconhece que, em última instância, contra os condicionamentos ou, até, a
favor das normas recebidas, quem decide é o indivíduo, portador da possibilidade da reflexão, agente livre e
consciente.
16

desobediência da norma, observadas as circunstâncias e dilemas presentes em cada


situação.
O homem; ser-de-cultura, animal não-especializado, herdeiro de características
somáticas, mas, sobremaneira, de traços culturais, portador de comportamento não-
programado, encontra na moral resposta às exigências de convivência. Ser gregário, busca
nas normas socialmente estabelecidas e intimamente validadas, solução aos dilemas da
convivência. Se não é fácil con-viver, o ser humano não existe isolado, precisa de seus
semelhantes, necessita trabalhar, cultivar o mundo, torná-lo habitável. Na comum tarefa de
co-habitar o mundo, o homem, ser-de-cultura, encontra nas morais historicamente
estabelecidas possibilidade de continuação da vida individual, familiar, social e temporal na
compartilhada casa planetária. A moral, ao regular a vida dos indivíduos na família e na
sociedade, responde, por conseguinte, aos dilemas da sobrevivência e manutenção da vida
da espécie humana. Ao articular e aprofundar os interesses de indivíduos, grupos e
sociedades, permite, igualmente, o aperfeiçoamento espiritual dos seres humanos.
Aperfeiçoamento revelado nos diversos graus de solidariedade e realização material e
espiritual dos homens no espaço e no tempo.

2.3 O individual e o coletivo na moral

O individuo pode agir moralmente somente em sociedade. Ao crescer, a pessoa


interioriza normas, vê-se envolvida numa atmosfera moral na qual lhe são oferecidas regras
de ação. Em parte, a vida moral se manifesta através de hábitos e costumes. O costume
manifesta o dever ser, mesclando o normativo e o fatual.
O sujeito de comportamento propriamente moral, entrementes, quanto mais aumente
sua capacidade de reflexão e liberdade, é pessoa singular capaz de decidir pelo
cumprimento da norma proposta. As decisões morais, portanto, supõem um sujeito singular
e consciente, situado num determinado contexto histórico e social e capaz de decidir e
realizar a norma. Esse contexto não anula, mas, ao contrário, possibilita o acontecer da vida
moral. Dito de outra maneira: se o mundo é o conteúdo concreto da consciência, sou livre,
porque sou capaz de atos morais nascidos nesse mundo ao qual estou integrado. Mundo
que acolhi, questiono e modifico através de minhas ações. Mundo do qual participo. Seria
interessante investigar o processo de amadurecimento da vida moral, da vida infantil à vida
adulta, verificando os respectivos graus de heteronomia e autonomia em cada etapa da
existência do homem25.

25
Ver FREITAG, Barbara. “Moralidade e educação moral”. In: _______ . Itinerário de Antígona. A questão da
moralidade. SP Campinas: Papirus, 1997. p.192-207.
17

2.4 A estrutura do ato moral

A moral envolve dois planos: o normativo e o fatual. A realização da moral supõe


individuo capaz de interiorizar e realizá-la em cada situação específica. Portanto,
encontramos normas que regulam a conduta humana e um conjunto de ações realizadas
por indivíduos concretos.
Mas, como podemos caracterizar o ato moral? O ato moral é ato de individuo
humano concreto (a), nascido na consciência, com reflexão e liberdade (b), capaz de afetar
a vida de outras pessoas (c), e apto de aprovação ou reprovação (d), consideradas as
conseqüências (e). O ato moral, desse modo, afeta não apenas o agente, mas outros
indivíduos e a comunidade na qual esses estão inseridos. Um ato moral é passível de
responsabilização (f), pois o agente é capaz de antecipar idealmente as conseqüências de
sua ação (h), verificadas as circunstâncias, os dilemas humanos presentes, as escolhas
realizadas, os meios escolhidos e os resultados decorrentes. Quais são, nessa perspectiva,
os elementos constitutivos de um ato moral?
Primeiramente, uma ação moral presume um motivo capaz de impulsionar o agir na
direção de determinado fim. Um mesmo ato pode ser iluminado por diversos motivos. Por
que denunciar uma injustiça? Pela comoção gerada, pelo senso de justiça ferido, pela
indignação diante de ação prejudicial a outrem ou pelo desejo de projeção pessoal?
Denunciar uma injustiça, logo, poderá ter como motivo o altruísmo ou egoísmo conforme
possibilidades listadas. Não estamos falando, aqui, de motivos inconscientes, mas de
motivações derivadas de reflexão e fundadas em grau mínimo de distanciamento e
liberdade. É preciso, entretanto, existir a consciência do fim visado. A consciência do fim
visado é garantida pela antecipação reflexiva e ideal do resultado da ação. Antecipado
idealmente o resultado da ação, a seguir, é preciso decidir na direção do fim visado.
Encontramos na decisão necessário elemento constituinte de uma ação moral. A
consciência do fim e a decisão em alcançá-lo, enfim, dão ao ato moral o qualificativo de
voluntário. Efetuada a decisão na direção do fim visado, é preciso escolher os meios
capazes de fazê-lo acontecer. Se as mediações devem adequar-se aos fins, destaquemos,
que nem todos os meios são legítimos. Meios ilegítimos, questionáveis e
instrumentalizadores da vida humana, contaminam e comprometem os resultados, alterando
o caráter dos atos e dos fins. Os fins, assim, não justificam os meios. Os meios precisam ser
justificados e penetrados pela vida ética. Após decisão em favor do fim (ou fins), eleitos os
meios adequado, cumpre realizar o ato. A realização efetiva a decisão de realizar os fins –
segundo mediações adequadas e eticamente aceitáveis. Realizado o ato, acontece a
avaliação, pois ele afeta outros sujeitos, sendo motivo de elogio ou reprovação. Essa
18

avaliação tem dimensão social e individual, é necessária à vida moral da pessoa e da


coletividade. No dizer de Vázquez:

o ato moral supõe um sujeito real dotado de consciência moral, isto é, da


capacidade de interiorizar normas ou regras de ação estabelecidas pela
comunidade e de atuar de acordo com elas. A consciência moral é, por outro lado,
consciência do fim desejado, dos meios adequados para realizá-lo e do resultado
possível; mas é, ao mesmo tempo, decisão de realizar o fim escolhido, pois sua
26
realização se apresenta como uma exigência ou dever

O ato moral, enquanto totalidade ou unidade indissolúvel de aspectos, em resumo,


compreende: motivo, fim, decisão, eleição dos meios, resultados, conseqüências
objetivamente avaliáveis. Nele estão presentes a dimensão subjetiva e objetiva da vida
moral. Os atos morais, em sua positividade promotora da vida humana, incorporados à vida
de cada pessoa e das sociedades, qualificam relações interpessoais, indivíduos e
sociedades. Esses atos não consistem, apenas, na intenção e não dependem, em sua
positividade, exclusivamente dos meios, mas, sobretudo, da antecipação e efetivação de
resultados promotores da vida dos envolvidos, e tal na direção de vida moral sempre mais
plena e autêntica.

2.5 Breve conclusão: a singularidade dos atos morais

A norma é um auxílio precioso, pois diante de conflitos morais, necessitamos decidir


na direção de bons resultados. Entretanto, refletindo eticamente, constatamos que a norma
é universal, e cada ato efetivado responde a questões e circunstâncias irrepetíveis. Por que
a ação moral, indagamos, é singular? Porque é irrepetível. Realizada a decisão pelo
cumprimento da norma, adequada às circunstâncias, consumada a norma no ato, esse não
tornará a acontecer, por ser único (completo). Cumpre somente avaliar o ato na
consideração dos resultados alcançados e objetivamente verificáveis.
A Ética, enquanto analisa o comportamento moral, não deve confundir-se com
tratado de casuística, como se fosse possível antecipar descritiva e prescritivamente as
inúmeras situações que envolvem a regra em sua universalidade e a vida em sua
concretude. A Ética oferece critérios para pensar a norma, para justificá-la e adequá-la aos
diversos casos que poderá orientar. Através da prudência, essa capacidade racional prática,
o ser humano intencionará a melhor resposta, adequando o preceito [a norma]27 em cada
ato, observados desafios e dilemas morais enfrentados.

26
Cf. VÁZQUES, A essência da moral, cap. III, 2002, p. 78.
27
A norma [ou preceito] é uma regra de ação que atualiza valores e princípios.
19

Cada ação moral, conseqüentemente, em sua singularidade não repetível, é ocasião


de assumir a vida como tarefa intransferível. Cada ato de cada ser humano, visto na
unidade da totalidade dos atos que o formam, é oportunidade de realização, plenificação,
sentido. Por isso, refletir e imprimir positividade ética aos atos é tarefa inalienável de
personalização, realização e enriquecimento da vida de cada pessoa e de todos os seres
humanos, pois nos tornamos donos de nós mesmos, autônomos e autárquicos, através da
totalidade positiva de nossas ações.
20

3 RESPONSABILIDADE E LIBERDADE

O ser humano, ser racional e livre, realiza a si mesmo através de seus atos. Atos
precedidos de reflexão, deliberados, decididos, realizados livremente e, portanto, capazes
de responsabilização. As ações morais, especificamente, não afetam, sublinhamos,
somente a vida do agente, mas, também, a vida de outras pessoas. Quando as ações
morais são avaliadas, é possível averiguar conseqüências positivas ou negativas
resultantes, seu impacto sobre a vida individual, familiar e social. Desejamos,
presentemente, entender o significado do que seja responsabilidade moral, cotejando a
relação entre liberdade e responsabilidade, indicando as situações nas quais o agente é
dispensado de responsabilização e, finalmente, analisaremos algumas teorias sobre a
liberdade.

3.1 Condições da responsabilidade moral

O enriquecimento da vida moral, segundo Vázquez, supõe a conciliação entre os


interesses individuais e coletivos, bem como, a conseqüente ampliação da
28
responsabilização pessoal . Nessa perspectiva, atos propriamente morais não implicam,
apenas, na intenção, mas nas conseqüências verificáveis através de sua efetivação. O
agente, circunstancialmente situado, livremente decide pelo cumprimento ou
desconsideração da norma, assumindo as conseqüências de sua escolha e decisão
presentes na ação efetuada.
Entretanto, quando julgamos uma ação moral, verificadas as circunstâncias que a
envolveram, devemos inquirir sobre a existência de fatores capazes de inibir ou anular a
liberdade do agente.
Quais são, então, as condições suficientes capazes de caracterizar um ato como
moral e, portanto, capaz de responsabilização? O indivíduo, primeiramente, não pode
ignorar as circunstâncias motivadoras de sua ação ou as possíveis conseqüências
decorrentes. Seu comportamento, em suma, precisa ser consciente. O ato deve encontrar,

28
Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética (Responsabilidade Moral, determinismo e liberdade). 22. ed. RJ:
Civilização Brasileira, 2002. Cap. III. p.109.
21

em segundo lugar, sua causa principal no próprio indivíduo, na sua vontade, e não noutro
agente ou, até mesmo, em fatores internos perturbadores do seu estado consciente e livre29.
Se o conhecimento e a liberdade, em resumo, fundamentam a responsabilidade moral,
entretanto, a ignorância involuntária e a privação da liberdade eximem o sujeito ético de
responsabilidade30.
Estudaremos, tendo em vista o exposto, as possíveis situações nas quais o agente é
isento de responsabilidade: a ignorância involuntária [a], a coação externa [b] e a coação
interna [c]. Todavia, antecipamos, na maioria dos casos, o agente é responsável, pois é
capaz de superar tanto a ignorância involuntária, quanto a coação interna e externa.

3.1.1 A Ignorância e a responsabilidade moral

O sujeito ético, apto a escolher, decidir e atualizar a norma – ao agir


conscientemente – é responsável pelas conseqüências advindas dos seus atos.
Entrementes, a ignorância das circunstâncias, da natureza e das conseqüências de uma
ação isenta [ou dispensa] o indivíduo de responsabilidade moral31.
Mas, que tipo de ignorância dispensa o agente de responsabilização? Se um
motorista pretende, conduzindo seu automóvel, realizar viagem de Porto Alegre a Caxias,
deve checar as condições do seu veículo. No caso de os faróis apresentarem defeito, é
preciso consertá-los. Existem, logo, fatores que devem ser conhecidos e não podem ser
ignorados. Há, igualmente, possíveis acontecimentos ligados a esses fatores [estado do
veículo]32 que podem ser antecipados e precisam ser previstos. Conseqüência negativa
resultante de imprevisão, no caso examinado, é de exclusiva responsabilidade do
proprietário e condutor do veículo. Devemos, também, indagar sobre a existência de fatores
imponderáveis e imprevisíveis, incapazes de antecipação. Uma criança, em precoce fase de

29
Se circunstâncias podem inibir ou possibilitar atos livres, é importante, pois, indagar: em que situações o
indivíduo é responsável por seus atos? Ou, quando o indivíduo é isento [dispensado] de responsabilização?
Declara Vázquez (2002, p.110) que, já desde os tempos de Aristóteles, contamos com uma velha resposta a essas
perguntas, observadas duas condições fundamentais: “a) que o sujeito não ignore nem as circunstâncias nem as
conseqüências de sua ação; ou seja, que seu comportamento possua um caráter consciente. b) que a causa dos
seus atos esteja nele próprio (ou causa interior), e não em outro agente (exterior) que o force a agir de certa
maneira, contrariando a sua vontade; ou seja, que a sua conduta seja livre”.
30
Afirma Vázquez (2002, p.110): “Tão-somente o conhecimento, de um lado, e a liberdade de outro permitem
falar legitimamente de responsabilidade. Pelo contrário, a ignorância, de uma parte, e a falta de liberdade de
outra (coerção) permite eximir o sujeito da responsabilidade moral”.
31
Conforme Vázquez (2002, p.111), “a ignorância neste sentido amplo se apresenta, portanto, como uma
condição que exime da responsabilidade moral”.
32
Conhecidos os fatores [condição do carro: estado dos pneus, faróis, amortecedores, equipamentos de
seguranças, freios, etc.] fatos [ou acontecimentos] podem e devem ser antecipados e evitados. Um motorista é
ciente de que dirigir um veículo em condições precárias é imprudente. A capacidade de previsão, no referido
exemplo, permite antecipar conseqüências [positivas ou negativas], bem como, prevenir acidentes.
22

desenvolvimento cognitivo e moral33, poderá, eventualmente, machucar um cachorrinho [ser


vivo] confundindo-o com um bichinho de pelúcia [ente inanimado / brinquedo]. Ela
aprenderá, paulatinamente, que o animalzinho é um ser vivo, pois sente e reage aos
possíveis maus tratos sofridos. No primeiro caso, estamos diante da ignorância voluntária,
passível de responsabilização. Já, no segundo caso, estamos diante da ignorância
involuntária34. Somente a ignorância involuntária, que envolve fatores ignorados e
desencadeadores de fatos negativos imprevisíveis, isenta o agente ético de
35
responsabilidade .
Existem, em conseqüência, coisas que devo prever e não posso ignorar. De outro
lado, existem coisas que não posso prever e estou impossibilitado de antecipadamente
conhecer. Somente a ignorância involuntária, frisamos, dispensa o sujeito moral de
responsabilização36.

3.1.2 Coação externa e responsabilidade moral

Uma pessoa pode ser responsabilizada por um ato se, e somente se, a causa desse
ato esteja dentro dela e não provenha de fora, ou seja, não tenha sua origem em algo ou
alguém que a force contra a sua vontade. A coação externa, por conseguinte, anula a
responsabilidade, pois, se o agente sofre coação ou pressão externa, perde controle sobre
si mesmo e seus atos. A causa, estando fora do agente, em conclusão, isenta-o de
responsabilidade37. Um condutor que, dirigindo sóbria e prudentemente, para evitar acidente
vê-se, ocasionalmente, envolvido numa colisão com um terceiro veículo, pelo imponderável

33
Uma criança, em fase precoce de desenvolvimento cognitivo e moral, é incapaz de entender o real significado
de suas ações. É preciso explicar o significado de seus atos para que possa, então, avaliar o alcance desses atos.
34
A ignorância involuntária [ou não voluntária] supõe que o indivíduo não apenas desconhecia as circunstâncias
e natureza de seu ato, mas, sobretudo, não tinha obrigação de conhecê-las. Uma pessoa que – ignorando a
situação clínica de um amigo portador de uma neurose – lhe oferece objeto capaz de desencadear reação
patológica [por exemplo: cólera], está dispensada de responsabilidade. Já, os parentes do „neurótico‟ deveriam
ter prevenido a pessoa em questão sobre o problema de seu familiar. O estado de desenvolvimento intelectual e
emocional de cada pessoa, destacamos, corresponderá à proporcional responsabilidade correspondente.
35
Vázquez (2002, p.113) esclarece: “Em resumo: a ignorância das circunstâncias, da natureza ou das
conseqüências dos atos humanos autoriza eximir um indivíduo de sua responsabilidade pessoal, mas essa isenção
estará justificada somente, quando, por sua vez, o indivíduo em questão não for responsável por sua ignorância;
ou seja, quando se encontra na impossibilidade subjetiva (por motivos pessoais) ou objetiva (por motivos
históricos e sociais) de ser consciente do seu ato pessoal”. Aproveitando a explicação de Vázquez, ampliando
reflexão, o nível de desenvolvimento espiritual de determinada sociedade, por exemplo, exime o individuo de
responsabilização. Aristóteles, v. g., envolvido no clima espiritual de seu tempo, considerava a escravidão
expediente aceitável. Entre os gregos a escravidão, ligada à guerra, era amplamente legitimada. Entretanto,
embora a matriz cultural de Aristóteles o dispense de responsabilidade sobre sua posição frente à escravidão; tal
isenção não nos autoriza a concordar com esse costume. A escravidão, ou qualquer forma de violação da
dignidade humana, em qualquer cultura ou época, é reprovável.
36
O direito examina a responsabilidade [legal] segundo o dolo ou culpa. Um delito doloso, por exemplo, acarreta
grau maior de responsabilização do que infração culposa.
37
De outro modo: se a causa foge ao poder e controle do indivíduo, elimina sua capacidade de escolha e
decisão.
23

da situação, é isento de responsabilidade. Se num regime de exceção, uma pessoa premida


pela tortura denuncia companheiros inocentes, igualmente, pela forte coação [violência
física e psicológica] é isenta de responsabilidade.
Quando a coação é tão forte e irresistível, quando a violência perpetrada inibe a
capacidade de reação do indivíduo, nesse caso, ocorre dispensa de responsabilidade38.
Adolfo Sánchez Vázquez, entrementes, ressalva:

vemos, portanto, que a coação externa pode anular a vontade do agente moral e
eximi-lo de sua responsabilidade pessoal, mas isso não pode ser tomado em
sentido absoluto, porque há casos em que, apesar de suas formas extremas,
sobra-lhe certa margem de opção e, por conseguinte, de responsabilidade moral.
Quando, portanto, Aristóteles assinala a falta de coação externa como condição
necessária de responsabilidade moral, isso não significa que o agente não possa
resistir, em nenhum caso, a esta coação e que não seja responsável pelo que faz,
todas as vezes que está sob o seu poder. Se esta condição se postulasse em
termos absolutos, chegar-se-ia em muitos casos a reduzir enormemente a área da
responsabilidade moral. E esta redução seria menos legitima tratando-se de atos
cujas conseqüências afetam profundamente a amplos setores da população ou à
39
sociedade inteira .

Somente coação irresistível, capaz de anular a capacidade de reação da pessoa,


conseqüentemente, isenta o indivíduo de responsabilização. Ações criminosas, ainda que
num contexto de guerra, deduzimos, são responsabilizáveis. Altas patentes do 3º Reich, no
julgamento de Nüremberg, alegaram em sua defesa cumprimento de ordens superiores. A
defesa de atos criminosos em nome do dever, como neste caso, é injustificável40. No caso
exemplificado, não se verifica a ignorância involuntária ou a coação externa. Nüremberg
evidencia, paradigmaticamente, situações nas quais os agentes não estão dispensados de
responsabilidade moral ou legal. Poderíamos ampliar e referir outros atos que implicam em
responsabilidade. Cientistas, militares e autoridades que, por exemplo, incentivaram,
pesquisaram e construíram as bombas-atômicas que vitimaram as cidades de Hiroshima e
Nagasaki perpetraram, igualmente, atos contra a humanidade41.

38
Lembramos, por exemplo, que confissões colhidas através de tortura não têm valor jurídico, devendo ser
contestadas.
39
VÁSQUEZ, 2002, p.115.
40
Alegações dos expoentes nazistas estão nos anais do Julgamento de Nüremberg.
41
Hiroshima foi bombardeada em 06 de Agosto de 1945 e Nagasaki a 09 de Agosto de 1945. As duas cidades do
Japão, as primeiras arrasadas pelo poderio atômico-belico, são símbolo da irracionalidade e horror da guerra, da
utilização dos recursos da ciência e da técnica segundo fins militares. Até agora, sobreviventes e seus
descendentes sofrem as conseqüências da bomba atômica. Pablo Picaso, em seu imenso painel Guernica,
também registrou o horror da guerra. O pueblo de Guernica foi bombardeado em 26 de Abril de 1937 pela
Legião Condor da aviação alemã, em apoio ao general Franco e suas tropas, durante a guerra civil espanhola.
Recursos técnicos modernos foram utilizados, ali, pela primeira vez na história. No painel, hoje em Espanha, no
Museu Reina Sofia, as figuras fragmentadas e espalhadas na tela formam estranha totalidade. Para sentirmos o
horror registrado por Picaso, recordamos a mãe que, tal qual nova pietà, chorando, carrega o filho desacordado
em seus braços. Nüremberg, Hiroshima, Nagasaki e Guernica retratam a responsabilidade de autoridades civis e
militares, pesquisadores e outros agentes diante de ações criminosas das quais não estão isentos.
24

Fica evidente que a ignorância, em certos casos, e a coação em noutros, dispensa o


agente de responsabilidade moral. Cada caso, destacamos, precisa ser adequadamente
analisado. Todavia, na maioria das situações de nosso cotidiano, podemos conhecer as
causas e circunstâncias que envolvem nossos atos, bem como, somos capazes de superar
a ignorância e resistir à pressão externa.

3.1.3 Coação interna e responsabilidade moral

Poderão existir atos, cuja causa esteja dentro do sujeito, e sobre os quais não
poderá ser responsabilizado moralmente? Atos – movidos por coação interna irresistível –
dispensam o agente de responsabilidade. Mas, no que consiste a coação interna? Quando o
sujeito, premido por pulsão interna incontrolável, realiza ações de caráter patológico, está
caracterizada a coação interna. A cleptomania, desajustes sexuais profundos e algumas
neuroses, por exemplo, dispensam o agente de responsabilidade moral42. Nos referidos
casos, o sujeito não tem consciência das motivações e da natureza dos seus atos, pois
premido internamente, não pode resistir aos estímulos externos desencadeadores de
pulsões internas e conseqüentes ações doentias. Ao que, acrescentamos, existem graus
distintos para diferentes patologias. Somente profissionais capacitados, experientes e
treinados43, após detalhado exame, podem diagnosticar a incapacidade de uma pessoa
sobre seus atos. Ademais, muitas patologias são controláveis terapêutica e
medicamentosamente. Situações patológicas extremas, diagnosticadas com prudência,
podem, inclusive, indicar a interdição do sujeito afetado e conseqüente afastamento do
convívio social44.
Nas situações comentadas “a coação interna é tão forte, que o sujeito não pode agir
de maneira diferente daquela que operou, e não tendo realizado o que livre e
conscientemente teria querido45” está dispensado de responsabilidade. Os exemplos
discutidos, destacamos, ilustram situações extremas, ou seja, situações de coação interna
irresistíveis por parte da pessoa afetada.

42
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.116-7.
43
Como psiquiatras e psicólogos, por exemplo.
44
As situações de interdição de pessoas portadoras de síndromes impeditivas do convívio social são exceções,
pois as patologias mentais, se adequadamente tratadas [por terapia ou medicação], podem regredir ou encontrar
controle. Situações extremas, como as patologias envolvendo desajustes sexuais, podem exigir permanente
interdição e privação de liberdade. Esses casos, muitas vezes, implicam na internação em institutos psiquiátricos
forenses. Mas, destacamos, as patologias mentais oferecem, normalmente, maior perigo para os seus portadores
do que para outras pessoas. Lembramos, ainda, que essas patologias devem ser adequadamente diagnosticadas e
tratadas, pois esse é um direito de toda pessoa: receber adequado tratamento médico. Recordamos: a
discriminação de pessoas com doenças mentais é reprovável, pois se receberem a devida atenção médica,
familiar e social, elas tornam-se produtivas e ativas participantes do seu núcleo social. A pessoa, enfim, não é a
doença da qual padece, podendo, se receber terapêutica correta, recuperar sua saúde mental ou orgânica.
45
VÁZQUEZ, 2002, p.117.
25

Salientamos que, embora seja difícil traçar a linha divisória entre o normal e o
anormal [doentio] no comportamento dos seres humanos, na maioria das vezes podemos
resistir à coação interna46. As pessoas, cotidianamente, são afetadas por coerções internas
relativas, capazes de controle racional e voluntário. A coação interna, em conclusão, não é
tão forte ao ponto de se tornar incontrolável, anulando, desse modo, a vontade e a
responsabilidade do agente.

3.1.4 Responsabilidade e situações de isenção

Responsabilidade moral, primeiramente, afirma a reflexão ética: é a capacidade de


responder pelas conseqüências das próprias ações, avaliando o impacto dessas ações
sobre a própria existência e, mais ainda, sobre a vida de outras pessoas. Consciência e
liberdade, exercício racional preditivo dos resultados dos próprios atos47 fundamentam a
responsabilidade moral. Afinal, existimos com outras pessoas, portadoras de direitos e de
respectivos deveres. A convivência familiar, laboral, acadêmica, comunitária e social supõe
a partilha de responsabilidades, a comum construção de projetos nos quais objetivos
pessoais e coletivos estejam conciliados. É possível discorrer sobre direitos sem relacioná-
los com deveres? É viável con-viver desconhecendo nossas responsabilidades,
transferindo-as? Se viver é con-viver, a responsabilidade para consigo mesmo é,
igualmente, responsabilidade para com o outro. Ser responsável, em segundo lugar, implica
numa atitude ativa na direção do cultivo de um mundo habitável e compartilhado, no qual o
cuidado para consigo mesmo aconteça, concomitantemente, com o cuidado do outro. A
responsabilidade ética, enfim, deveria ser a base da responsabilidade legal, pois nela se
encontra empenhada a liberdade, a capacidade de autonomia e autarquia de cada pessoa.
As situações de isenção ou dispensa da responsabilidade moral, anteriormente
caracterizadas [ignorância involuntária, coação externa e interna], precisam ser bem
caracterizadas. Reafirmamos que, comumente, as pessoas podem conhecer aquilo que
deveriam não ignorar, bem como, são capazes de resistir à coação externa e interna.
Educarmo-nos à responsabilidade é, portanto, tarefa fundamental que envolve o todo de
uma vida. Os seres humanos estão aptos, reafirmamos, a lidar com pressões midiáticas, a
reagir contra apelos de consumo predatório, a trabalhar positivamente seus sentimentos, a
resistir a pressões externas ou internas. A resistência à coação, o desenvolvimento da
autonomia, a capacidade de assumir a vida como tarefa intransferível, supõe o
reconhecimento das fragilidades e limites da existência humana, mas, sobretudo, o sincero

46
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.117-8.
47
Atos verificados ou avaliados segundo sua positividade ou negatividade [promovem ou prejudicam a vida
individual e a vida em comum – realizando, concretamente, as noções de bem e mal].
26

desejo de autoconhecimento, a crença nas próprias qualidades e cotidiano trabalho de


qualificação da existência. Na tarefa de realizar a própria vida, finalmente, estão em jogo
valores traduzidos em atitudes responsáveis para consigo mesmo, para com os outros e
para com o mundo que nos possibilita e acolhe.

3.2 Responsabilidade moral e liberdade

Se a responsabilidade presume possibilidade de decidir e agir contra a coação


externa e interna, como devemos compreender a liberdade humana? O que é a liberdade?
Como devemos pensar a relação entre liberdade e responsabilidade? É possível conciliar
liberdade e determinação? Por que a liberdade não deve ser confundida com
arbitrariedade? Por que a liberdade reivindica um conteúdo? No que consiste o conteúdo
reivindicado pela liberdade? Examinaremos, inicialmente, três posições sobre a liberdade: o
determinismo absoluto, o libertarismo e a dialética entre liberdade e necessidade48. A par
desse estudo preliminar, trabalharemos nossa concepção de liberdade.

2.2.1 Determinismo absoluto

O determinismo absoluto propõe a tese do encadeamento universal de causas,


eliminando, dessa forma, não apenas o espaço para a espontaneidade, mas, igualmente, a
possibilidade da liberdade. Todo efeito reivindica uma causa anterior e, assim, sucessiva e
universalmente. A tese determinista ganhou força com o advento da física mecanicista, pois
essa concebia o universo como grande máquina formada por engrenagens ligadas através
de complexa rede de causa-efeito, tal qual um relógio mecânico49. Segundo o físico Laplace
“um calculador divino, que conhecesse a velocidade e posição de cada partícula do
universo, poderia predizer todo o curso futuro dos acontecimentos na infinidade do tempo50”.

48
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.119.
49
Para a física mecanicista, o universo e todos os entes e fenômenos nele contidos estariam submetidos à lei
universal de causa-efeito. As regularidades existentes, representáveis matematicamente, expressariam a rede de
conexões estabelecidas dentro desse mundo-máquina, revelando as regras pelas quais „as coisas funcionariam‟.
Competiria ao cientista, ao examinar esse mundo-máquina, extrair seus segredos para, então, a par do
desenvolvimento da previsibilidade científica, dominar os fenômenos naturais. A denominada física quântica,
aceitando a existência dessas regularidades, no entanto, demonstra que no universo há espontaneidade. No
campo da Biologia, o modelo mundo-máquina é visto como inadequado, pois seres vivos não são máquinas. As
máquinas, artificiais, são montáveis e desmontáveis. Os seres vivos nascem, crescem, se reproduzem e morrem.
Adaptam-se criativamente aos diversos ambientes. O Princípio Gaya, ao conceber a Terra como um ser vivo, é
tentativa de superação, no campo da Biologia [e da Ecologia profunda], do determinismo mecanicista proposto
pela física dos modernos, pois inadequado à compreensão dos fenômenos ligados à vida.
50
LAPLACE apud VÁZQUEZ, 2002, p.121.
27

Se a concepção mecanicista é insatisfatória para explicar os fenômenos das ciências


da natureza, é, sobretudo, insuficiente à compreensão do comportamento humano51. Não
obstante, tentativas da psicologia comportamentalista52 chegar às leis do comportamento
humano, seja pelo exame laboratorial das reações de animais ou através de experiências
envolvendo seres humanos; sabemos que o homem, ente biológico, é um ser-de-cultura. O
estágio super-orgânico53 situa-o no mundo, abrindo horizontes amplos e inusitados. A
conquista desse estágio ou modo de ser, com as decorrentes implicações positivas e
negativas, deve ser considerada no exame da liberdade.
Entretanto, mesmo reconhecidas determinações impostas pela necessidade54,
podemos reconhecer que, entre a causa e o efeito, o ser humano é causa de si mesmo.
Assim, o homem não é um simples joguete do destino, sendo capaz de, na relação causa-
efeito, atuar como causa de si mesmo. Sendo causa de si mesmo, salientamos, deixa de ser
mero produto, para, conscientemente, responder e superar o estado de necessidade55. Ao
descartarmos o determinismo absoluto, todavia, admitimos algum grau de determinação. A
chamada determinação relativa, não apenas viabiliza a vida humana, como se faz presente
no concreto exercício da liberdade. Se é preciso responder aos apelos inerentes à
existência humana56; verificamos, igualmente, que a liberdade é exercitada frente a escolhas
possíveis, pois o homem é liberdade finita. O ser humano, enfim, finito e capaz de
compreender tal condição, pode projetar-se para além de si mesmo, ultrapassar-se, vencer
a necessidade e inaugurar novo estágio na sua existência individual e social.

3.2.2 O libertarismo

Segundo essa posição, ser livre significa decidir e agir como se quer ou, de outro
modo, poderíamos agir de maneira diferente do realizado se assim quiséssemos e
decidíssemos57. Explicitando: poderíamos ter decidido e agido arbitrariamente, pois o
comportamento humano é, absolutamente, incausado. Contudo, se a causa da ação se
encontra, exclusivamente, no indivíduo, somente poderia ter acontecido, paradoxalmente,

51
Se o modelo positivista de ciência é insuficiente para compreender a cultura, pois essa situa o ser humano no
mundo, abrindo-lhe novos horizontes; tampouco é adequado à tematização das questões existenciais [como a
liberdade], sendo incapaz de conceber resposta suficiente ou satisfatória.
52
Também denominada behaviorista.
53
Ou para além do orgânico.
54
O ser humano é finito, mortal, dotado de exigências biológicas, culturais, afetivas e espirituais a que necessita
responder.
55
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.122.
56
O homem, segundo Martin Heidegger, é um Dasein [um ser-aí-no-mundo]. E, situado no mundo, precisa dar
conta da existência, respondendo aos apelos da vida fática, correspondendo às circunstâncias e necessidades que
o envolvem.
57
Ibidem, p.123.
28

aquilo que, de fato, sucedeu. O libertarismo e o determinismo, sublinhamos, coincidem em


suas afirmações, negando o autêntico sentido da liberdade humana.
A pessoa é livre, ou seja, é capaz de escolher, decidir e atuar porque,
simultaneamente, é causa de si mesma segundo os limites e possibilidades existentes no
seu mundo ou contexto histórico-social. A pessoa é livre, salientamos, decidindo e
realizando sua existência – com outros seres humanos – no mundo que a acolhe e
possibilita58.
O sujeito, no ato moral, não age arbitrariamente, estando condicionado por sua
história, caráter e circunstâncias culturais. O reconhecimento desses fatores condicionantes,
presentes no comportamento humano, todavia, não elimina a liberdade de agir nessa ou
naquela direção. Ao contrário, ausência de limitações e inexistência de alternativas práxicas
anula a liberdade. Se tudo é possível, em conseqüência, a liberdade também é
inexeqüível59. A liberdade humana, como já vimos, supõe algum grau de determinação
compatível com escolhas e decisões transformadas em atos. Do exposto, verifica-se a
necessidade de estudar a relação entre liberdade e necessidade60.

3.2.3 Dialética da liberdade e necessidade

O determinismo absoluto e o libertarismo, concordamos com Adolfo Vázquez,


isentam o ser humano de responsabilidade, seja anulando a liberdade, seja

58
O libertarismo, ao conceber abstratamente a liberdades, ao des-mundanizar o homem, ao desconsiderar as
circunstâncias culturais e históricas que possibilitam a existência, nega, tal qual o determinismo absoluto, a
liberdade humana em sentido autêntico. Somos, diariamente, desafiados por inúmeros problemas que exigem
reflexão, escolha, decisão e ação. Toda decisão livre implica em condicionamentos que não inibem escolha,
decisão e ação. No exemplo de Vázquez (2002, p.124-5), Pedro pode associar-se ou não no protesto contra o
desemprego. Pedro, desde suas circunstâncias, pode agir numa ou noutra direção. Nós, igualmente, mesmo que
pressionados pela mídia e outros mecanismos, podemos, por exemplo, decidir pelo consumo responsável e não
predatório. Os limites à liberdade não impedem seu acontecimento, mas facultam seu concreto exercício.
Decidimos, em resumo, a partir de nós mesmos, desde nossa interioridade, mas segundo o possível.
59
Cf. VÁZQUEZ (2002, p.125-6).
60
O que é a liberdade? Por que ela inclui ou supõe algum grau de determinação? O problema proposto nas
questões solicita breve reflexão sobre o sentido das expressões: necessidade, contingência e determinação. A
Filosofia clássica propôs dois conceitos reivindicadores de nossa atenção: necessidade e contingência. Por
necessidade entendemos aquilo que sendo não pode deixar de ser [ou não poderia não ser]. Já, por contingência,
compreendemos aquilo que sendo, poderia não ser. O indivíduo humano, contingente, poderia não ter vindo à
existência e um dia não mais será. Ao mesmo tempo, está submetido à necessidade, pois, enquanto existente, é
um ente racional e social, capaz de indagar sobre o sentido de suas ações. A liberdade, considerados os dois
conceitos, é exercício de um ser contingente que, diante do necessário [limites e possibilidades] é capaz de
escolher, decidir e agir. Noutra perspectiva, o comportamento humano inclui determinado grau de determinação
advindo da história de cada pessoa, da constituição do seu caráter, dos limites e possibilidade ligados à cultura
ou à situação histórico-social. Todavia, esse grau de determinação não é absoluto, mas relativo. Tal grau relativo
de determinação apresenta horizonte e contexto – a escolhas possíveis e factíveis – realizáveis pelo agente moral.
Liberdade implica, concluindo, certo jogo entre contingência e necessidade, certa dialética entre liberdade e
determinação relativa. A liberdade acontece, em síntese, porque um ente finito e contingente é capaz de
deliberar, segundo possibilidades abertas pelo mundo que o acolhe.
29

desconsiderando o conteúdo dessa liberdade61. Na primeira posição, submetido,


inexoravelmente, às leis de causa e efeito, o ser humano é um simples joguete do destino.
Na segunda concepção, predominando o acaso, novamente a liberdade é impedida. Importa
verificar como, na História da Filosofia, o problema da liberdade versus necessidade foi
pensado.
Kant situou ou ser humano em dois mundos distintos: o mundo da necessidade e o
mundo da liberdade [noumeno]62. Enquanto ente corpóreo, o ser humano estaria submetido
às leis de causa e efeito, reguladoras da grande máquina do mundo. Entretanto, dotado de
razão, o homem pertenceria ao reino dos fins, mundo ideal e lócus da vida moral. Imerso no
reino da natureza, ente empírico, estaria submetido ao vigoroso nexo causal que governa o
mundo. Mas, ente racional, capaz de intuir princípios e por eles pautar seu comportamento
moral, estaria desvinculado da necessidade e, portanto, seria livre no reino dos fins63 [no
âmbito da razão]. O problema da tese kantiana se encontra na dicotomia entre vida empírica
e vida racional. A concepção kantiana, não obstante sua insistência na autonomia moral, no
entanto, ao situar a liberdade no reino dos fins e por não incidir satisfatoriamente sobre a
vida concreta, se revela insuficiente.
O ser humano, segundo o filósofo holandês Baruc Spinoza, sendo parte integrante
da natureza, estaria sujeito às suas leis64. A ação do mundo externo provocaria „paixões e
afetos‟ irresistíveis. De que maneira, então, é possível desvincular-se da escravidão das
pressões externas ou da necessidade? A libertação se daria pelo conhecimento e livre
adesão às leis que regulam os processos cósmicos. Livre, de conseqüência, é quem se
submete voluntariamente à necessidade65. A resposta de Spinoza é interessante, mas
deficiente.
A liberdade não consiste, pura e simplesmente, em sujeição consciente à natureza,
mas, ao contrário, precisa ser entendida como superação gradativa da necessidade. O
filósofo alemão Hegel66, diferentemente de Spinoza, compreendia a liberdade como
gradativo processo de afirmação da liberdade, seja no plano da vida individual ou no âmbito
das sociedades. A liberdade, frisamos, não é apenas consciência da necessidade, mas
superação histórica dessa necessidade.
Na tradição crítica inaugurada por Marx, progredindo em nossa reflexão,
encontraremos importante contribuição. Para Max, a liberdade é, prioritariamente,

61
A tese do determinismo absoluto defende: se tudo é causado, não há liberdade. Já, a proposta do libertarismo
supõe o caráter arbitrário [ou inconseqüente] da liberdade humana.
62
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.127.
63
Ou seja: a liberdade encontraria seu lugar no âmbito formal da razão.
64
Op. Cit., p.128.
65
Ou, quem conhecendo as leis que regulam os processos naturais [a necessidade], submete-se livremente à
necessidade.
66
Op. Cit., p.129.
30

acontecimento práxico. Liberdade não coincide, simplesmente, com a consciência da


necessidade ou com sua superação histórica. Liberdade é processo consciente de
transformação das relações humanas. As contradições econômicas, a separação entre
pobres e ricos, o individualismo, a depredação dos recursos naturais são fatos indicativos de
crise planetária67 e submissão à necessidade. Entrementes, é possível pela ação de cada
um e de todos, através da redescoberta do real significado do trabalho68, mediante
revolução espiritual e práxica, edificar um mundo habitável a ser compartilhado por todos os
seres humanos e com os outros seres vivos.
A liberdade, em conclusão, não é, apenas, um assunto teórico: é práxis [ação
consciente e transformadora]69. Liberdade é acontecimento da paz e justiça pelo efetivo
respeito à vida nas suas diversas expressões. As diferentes instituições70 necessitam,
através de ações conseqüentes, adquirir sentido humano na direção de um mundo
habitável. Nos dias da onipotência da técnica, de fato, a crítica marxista às diversas
alienações e sua concepção de liberdade como práxis71 nos convida à reflexão.
A tensão72 entre liberdade e necessidade nos permite entender o acontecimento
fático da liberdade. No entanto, cumpre, ainda, aproximar as descobertas efetivadas com
nossa existência, suas exigências e urgências.

67
Os fatos descriminados indicam a existência de crise planetária e explicitam cega submissão à necessidade.
Em nossos dias, sobretudo, é preciso pensar o impacto das ciências e da técnica sobre nossas vidas, bem como,
indicar a relação das tecnologias com interesses mercantis, freqüentemente, inaceitáveis. Logo, se não podemos
viver sem a técnica moderna, necessitamos, entretanto, perguntar: como proceder diante de suas exigências?
Como conciliar os interesses das diversas populações com a preservação da casa planetária? Libertar-se da
necessidade exige, contemporaneamente, repensar nossa aliança com a técnica e nossa concepção de mercado.
Somos capazes de empreender mecanismos sociais capazes de gerir os mecanismos de mercado? Até que ponto,
usamos, prudentemente, os objetos técnicos? Até que ponto esses objetos nos dominam? São questões que nos
convidam ao exercício do pensamento.
68
O trabalho, não transforma, apenas, a natureza alheia em cultura, mas é ação criativa que, ao inserir o homem
no mundo, o realiza e humaniza.
69
Declara Vázquez (2002, p.129-30): “Marx e Engels aceitam as duas características antes assinaladas: a de
Spinoza [liberdade como consciência da necessidade] e a de Hegel [sua historicidade]. A liberdade é, por
conseguinte, a consciência histórica da necessidade. Mas, para eles, a liberdade não se reduz a isto; ou seja, a um
conhecimento da necessidade que deixa intacto o mundo sujeito a essa necessidade. A liberdade do homem com
relação à necessidade – e particularmente com relação à que vigora no mundo social – não se reduz a transformar
a escravidão espontânea e cega numa escravidão consciente. A liberdade não é apenas assunto teórico, porque o
conhecimento, por si só, não impede que o homem esteja sujeito passivamente à necessidade natural e social. A
liberdade acarreta um poder, um domínio do homem sobre a natureza e, por sua vez, sobre a sua própria
natureza. Esta dupla afirmação do homem – que está na própria essência da liberdade – traz consigo uma
transformação do mundo sobre a base de sua interpretação; ou seja, sobre a base do conhecimento de seus nexos
causais, da necessidade que o rege. O desenvolvimento da liberdade está, pois, ligado ao desenvolvimento do
homem como ser prático, transformador ou criador, isto é, está vinculado ao processo de produção de um mundo
humano ou humanizado, que transcende o mundo dado, natural, bem como ao processo de autoprodução do ser
humano que constitui precisamente a sua história”.
70
Como, por exemplo: conhecimento, estruturas políticas e econômicas, ciência e tecnologia, arte, tradições
religiosas, mídias, etc.
71
Práxis: ação transformadora [individual e social].
72
Ou dialética relação.
31

Conclusão: Liberdade é realização do ético

Ao homem é delegada a tarefa de, no mundo e com os outros, realizar a si mesmo.


Essa intransferível tarefa solicita permanente reflexão, capacidade de assumir,
responsavelmente, a existência como projeto e compromisso de destinação. A liberdade,
portanto, acontece no mundo, na cooperativa edificação de sua habitabilidade. Nesse
contexto, distancia-se da arbitrariedade e aproxima-se da ética. Qual é, nessa perspectiva, o
conteúdo da liberdade? Podemos afirmar, claramente, que o conteúdo da liberdade é a
ética. A liberdade, por isso, é evento realizador do humano porque concretiza valores,
assume compromissos, encontra horizonte e sentido no intransferível cultivo e cuidado do
mundo. A solidariedade inalienável, capaz de congregar os humanos e demais seres
planetários é, portanto, o horizonte efetivo do evento liberdade.
Se a liberdade não coincide com a arbitrariedade, pois solicita conteúdo que a
atualize, entretanto, é possível concebê-la, apenas, em sentido restritivo. Em ótica
meramente jurídica, é permitido afirmar: „minha liberdade termina onde começa a liberdade
do outro‟ ou „minha liberdade termina na fronteira do direitos alheios‟. Essa concepção,
restritiva, aponta, tão-somente, aspectos negativos da liberdade. Mas, antropologicamente,
é viável dizer: „sou livre porque os outros são livres‟ ou, positivando a afirmação jurídica,
„tenho direitos porque o outro é portador de direitos e merecedor de respeito‟. A segunda
asserção, pensamos, colhe o sentido original e originário da liberdade e oferece perspectiva
pedagógica revolucionária, pois convida ao exercício da liberdade pela efetivação do ético.
Somente o apelo que brota do rosto do outro é capaz de nos desinstalar, pois, quebrando
nossas possíveis resistências e atuando sobre nossa sensibilidade profunda, nos
encaminha ao autêntico sentido da liberdade. Pessoas livres, portanto, capazes de
compartilhar direitos e deveres, estão aptas a assumir responsabilidades decorrentes de
suas escolhas, decisões e atos. A promoção da autonomia e da autarquia na direção do
cooperativo cultivo e cuidado do mundo indica, em suma, o significado originário da
liberdade humana.
Repensar nossas concepções de liberdade segundo a responsabilidade
correspondente solicita, em conclusão, que ultrapassemos interesses individualistas e
corporativos, que sejamos capazes de incluir em nossas preocupações o destino dos outros
e do mundo. Se existimos com os outros no mundo, a liberdade humana reivindica conteúdo
ético e implica em práxis promotora da vida.
32

4 SER HUMANO: ANIMAL RACIONAL VALORATIVO

O homem é realizador de valores. Mas, o que são valores? No que consiste o juízo
valorativo? Quais são os pólos e elementos presentes na ação avaliativa? Vivemos crise de
valores? Em consiste essa crise? Podemos falar numa educação para os valores? O que
isso significa? São questionamentos importantes e solicitadores de nosso empenho
reflexivo.

4.1 Os juízos avaliativos: estéticos e morais

No que consiste avaliar? Avaliar significa: estimar, julgar, atribuir determinado valor a
um objeto. No juízo valorativo está em jogo a totalidade da vida humana, mente e corpo,
razão e sensibilidade profunda, liberdade e contexto cultural. No ato valorativo
encontramos: o sujeito que avalia, o objeto avaliado e valor atribuído ou negado ao referido
objeto. Os juízos lógico-matemáticos, por exemplo, em sua objetividade formal, ao
envolverem, predominantemente, as faculdades racionais, não implicam maiores debates.
Os juízos estéticos e morais, entretanto, por abrangerem e solicitarem a totalidade da vida
humana, por implicarem em posturas existenciais, por articularem complexa amalgama de
elementos intersubjetivamente compartilháveis merecem nossa atenção.
Os juízos estéticos, emitidos pelo sujeito que aprecia o belo, examinam se o objeto é
agradável ou desagradável. O julgamento estético, enquanto julgamento de gosto, supõe
critérios relativos à beleza, proporção, harmonia e mensagem presentes no objeto causador
da vivência estética. Se a dimensão estética é inerente à vida humana, precisa ser cultivada.
Mas, é importante indagar: quais são os critérios do juízo estético? O juízo de gosto pode
ser enriquecido, no percurso da vida de uma pessoa, pelo cultivo da dimensão estética da
vida? Pela aquisição de conhecimentos? Pela elaboração de critérios avaliativos? O cultivo
da dimensão estética da vida é possível, pois, assim como aprendemos a falar, escrever e a
conviver com outras pessoas, também aprendemos a apreciar o belo presente na natureza
e nas obras de arte, atualizando nossa capacidade apreciadora, buscando critérios de
33

interpretação, realizando vivências estéticas, abrindo-nos às diversas possibilidades de


experimentar as manifestações do belo73.
Os juízos morais consideram os atos humanos e suas conseqüências. A avaliação
moral, assim, implica em julgar uma ação – examinando os efeitos positivos ou negativos
dessa ação sobre a vida de outras pessoas. Num juízo moral, em suma, encontramos um
sujeito que avalia [ou ajuíza], um objeto avaliado [a ação examinada] e um valor atribuível
ao referido objeto [critério de julgamento]. No processo avaliativo entra em jogo a dialética
entre o pólo subjetivo da avaliação [o sujeito] e o pólo objetivo dessa avaliação [a sociedade
ou cultura da qual faz parte o sujeito]. A avaliação moral não é ajuizamento neutro, pois o
avaliador está comprometido com o seu juízo e os critérios desse julgamento. Entretanto,
quanto mais universais ou racionalmente compartilháveis os critérios dessa avaliação, tanto
mais realizará o ideal da justiça, respeitando os sujeitos envolvidos nesse processo.
Nos processos avaliativos, os valores são a fonte dos critérios de julgamento. Então,
no que consistem os valores? Como podemos descrevê-los?

4.2 O que são valores?

Quando falamos de valores, pensamos, por exemplo, na utilidade, na bondade, na


beleza, na justiça e nos seus pólos negativos: inutilidade, maldade, fealdade, injustiça, etc.
Os valores, é lícito dizer, se encarnam em coisas naturais, artificiais e em atos humanos. No
entanto, onde encontraremos o valor especificamente moral?
Para melhor compreender a gênese dos valores, examinemos o minério de prata. Se
oculto na natureza, não poderá despertar nenhum sentimento ou compreensão de valor.
Entrementes, quando um geólogo o encontrar, após estudá-lo, atualizará o valor potencial
nele presente. No caso do geólogo, o minério revelará sua importância enquanto objeto de
estudo, possibilitando aquisição de novos conhecimentos: sua idade, textura, composição
química, etc. Mapeada a região, constituído um campo de mineração, após garimpo e
venda, a prata denunciará seu valor econômico. O ourives perceberá na prata possibilidades
estéticas. Transformada em jóia, comprada e oferecida a uma pessoa, poderá ser utilizada
como objeto de adorno e, com o tempo, permitirá recordar uma situação feliz. Assim, a
prata, em seu percurso de inclusão no mundo, tendo sido descoberta e trabalhada,
transformada e comercializada, ganha – na relação com os seres humanos – várias
dimensões valorativas: cognitiva, econômica, estética e afetiva.

73
Belo manifestado na cultura popular, nas artes plásticas, na música, no teatro e cinema, na natureza. Há que
abrir-se, conhecer e cultivar essas distintas possibilidades.
34

Quem, por conseqüência, descobre valores? O ser humano – indivíduo dotado de


razão e afetos, ser social – é quem descobre e atualiza o valor presente potencialmente na
natureza, nas coisas, nas ações humanas. O ser humano, portanto, é um animal racional
social e valorativo. É alguém que descobre e realiza valores.
O que são valores? São noções racionalmente compartilháveis, baseadas em
descobertas efetuadas pelos seres humanos, potencialmente presentes nas realidades
naturais e humanas e atualizáveis nas relações sociais. O ser humano, assim, ao descobrir,
conceber e atualizar valores, justifica sua existência, dá sentido ao seu estar aí no mundo.
Esses valores descobertos, concebidos e atualizado tornam-se princípios74 de ação e
julgamento das coisas naturais, das ações e obras humanas.

4.2.1 O que são valores morais?

Nos processos valorativos julgamos coisas e ações humanas empenhando, nessa


tarefa, nossa inteligência, afetividade, aquilo que aprendemos no convívio com a família e
participando de outras instituições: escola, comunidade religiosa, nosso lugar de trabalho,
etc. Na realização de um julgamento de valor, negamos ou atribuímos uma qualidade
específica percebida no objeto avaliado. Um anel de prata, poderá ser avaliado segundo seu
valor comercial, segundo sua beleza, segundo as recordações que desperta ou, talvez,
considerando todas essas dimensões juntas. Mas, quando um valor adquire
especificamente densidade moral? O que caracteriza um valor moral?
Um relógio efetiva sua natureza ao funcionar com precisão e regularidade, indicando
horas, minutos e segundos. Se ele realiza suas funções com adequação, em conseqüência,
o consideramos bom. Bom, assim, significa: funciona adequadamente. Da mesma forma, a
energia nuclear pode ser usada radioterapeuticamente, ajudando na cura de enfermidades.
No que difere, então, a bondade de um relógio da bondade de uma ação moral? A bondade
moral difere da bondade atribuída a um objeto75, pois se encarna em ações humanas
tradutoras ou reveladoras de conseqüências positivas ou negativas. O valor moral, assim,
aparece nas decisões tornadas ações humanas e que manifestam conteúdo moral negativo
ou positivo. A energia nuclear, como no exemplo, permite tanto sua aplicação para uso
terapêutico, como a criação de bombas altamente destruidoras.
A vida moral, como vimos no decorrer de nosso estudo, supõe consciência e
liberdade, reivindicando capacidade especifica do ser humano em antecipar idealmente o

74
Ponto de partida: o que vem em primeiro lugar.
75
No caso da bondade de um objeto, essa bondade é indicada por seu bom funcionamento.
35

resultado de suas ações76. Em conseqüência, toda ação nascida da consciência e liberdade,


isenta de coerção ou ignorância involuntária, realizadora da responsabilidade, capaz de
afetar outras pessoas – pode ser caracterizada como moral. Os valores morais, em suma,
se encarnam77 nessas ações, conscientes e livres, capazes de afetar a vida de um individuo,
de um grupo de pessoas, ou de uma sociedade inteira. Quando avaliamos moralmente uma
ação, por conseguinte, consideramos a capacidade de responsabilidade do agente em
realizar a norma, julgando o valor realizado naquela ação, valor traduzido em conseqüências
observáveis.

4.3 Os valores e o mínimo ético

Adolfo Sánchez Vázquez, no capítulo Moral e História de sua Ética, indica alguns
critérios do progresso moral. Assim, do grau de interação entre os interesses individuais e
coletivos, da presença de uma vida moral – nascida da vida subjetiva – que venha substituir
formas coercitivas de pressão comportamental, resultará maior ou menor progresso moral
naquela sociedade.
Vázquez enuncia a descoberta de valores autenticamente humanos ocorrida,
gradativamente, ao longo da história. Amizade, veracidade, lealdade, cooperação, justiça e
solidariedade são exemplos de valores revelados nos processos históricos e indispensáveis
à convivência e aperfeiçoamento das sociedades. Cumpriria, a cada um e a todos a tarefa
de compreender e traduzir em ações esses valores, contribuindo à comum construção de
sociedades, nas quais, todos os seres humanos encontrem espaço de realização pessoa
através de vida criativa e satisfatória. Somos capazes, de fato, de compreender e traduzir
esses valores em normas? Somos capazes de instituir normas subjetiva e publicamente
aceitas, aptas a responder aos problemas e exigências surgidos ao longo dos tempos? Se,
de fato, esses valores descobertos ao longo da história, pela sua importância e conteúdo se
impõem, como poderemos vivê-los? Como deveremos traduzi-los nas complexas relações
que estabelecemos no dia-a-dia, envolvidos por conflitos econômicos, familiares e laborais?
Como apresentá-los através de normas adequadas aos nossos tempos? São questões
importantes, dão o que pensar.
Junto dessas indagações, surge a pergunta pelo mínimo ético. Considerando que a
vida em geral [e a vida humana em especial] é o valor fundamental [o maior bem], como
respeitá-la? Como encontrar e viver esse mínimo ético, num mundo globalizado em

76
O ser humano é capaz de antecipar idealmente o resultado de suas ações, fazendo escolhas valorativas,
optando por meios adequados e realizadores do fim visado. Assim, é capaz, igualmente, de responder pelas
conseqüências – positivas ou negativas, moralmente valiosas ou reprováveis – de suas ações.
77
Os valores se encarnam, isto é, se concretizam, se realizam, acontecem.
36

processo de mundialização?78 Onde as trocas culturais, em inúmeros casos, são


superficiais? O autêntico diálogo intercultural79 pode levar à distensão política, permitindo,
dessa maneira, a descoberta de um núcleo valorativo transcultural, presente de modo
implícito em todas as culturas, e capaz de estimular convivência baseada no respeito, na
paz e na comum prosperidade.
Em nossos dias, há muitas declarações formais em defesa da vida80, todavia
raramente elas se transformam em práxis: ação que torne habitável nosso planeta. A noção
de responsabilidade planetária, em conseqüência, se compartilhada pelo maior número de
pessoas possível, pode gerar práticas em defesa da vida, assegurando, desse modo, a
possibilidade de existência humana satisfatória e, também, de futuro. Essa compreensão, da
co-responsabilidade, implica em profunda mudança de concepções e atitudes: é preciso
reaprender, continuamente, a escutar o outro. Precisamos nos educar e capacitar ao
acolhimento do outro. Assim, aquele que visa uma vida boa com o outro, buscaria essa vida
boa através da práxis81 em instituições justas. E, se o valor da vida é inegociável, se o outro,
através do apelo do seu rosto, é o ponto de partida da ética, ainda é possível aceitar a
exclusão e a instrumentalização de pessoas? Perguntamos, no que consistiria uma
educação para valores? Ela partiria, pensamos, da promoção e respeito da inviolabilidade
da vida, nos convidando ao diálogo, despertando compromisso, preenchendo, assim,
nossas ações de conteúdo moralmente valioso.
Conviver, implica na busca de um mínimo ético capaz de orientar nossas ações.
Esse mínimo ético supõe o princípio de justiça. O princípio de justiça daria acesso aos bens
mínimos indispensáveis à vida humana, como, saúde, moradia, emprego, educação e lazer.
Mas, ao mesmo tempo, gradativamente, nos engajaria no cumprimento autônomo das
normas. Precisamos transitar da heteronomia ética à autonomia, tornando-nos co-
responsáveis pela realização da norma. Destacamos, logo, a importância de uma educação
para valores ou para o mínimo ético, capaz de nos encaminhar à realização autônoma da
norma, ligando direitos e deveres segundo o princípio de justiça.

78
A globalização econômica e tecnológica permitiu a mundialização, mundialização caracterizada pelas trocas
culturais. Entretanto, essas trocas culturais têm sido realizadas superficialmente, levando, inúmeras vezes, ao
desenraizamento, à fragmentação das identidades. A pluralidade cultural, de fato, é um bem. Mas, precisa ser
cultivada a partir de autêntico e profundo diálogo intercultural, promotor da tolerância, da descoberta de
elementos comuns. Entretanto, esse diálogo deverá assegurar o respeito ao específico de cada cultura. Caso
contrário, vencerá a homogeneidade redutora e inibidora das diferenças, impedindo a troca de valores
significativos, capazes de enriquecer a cultura humana como um todo.
79
Intercultural e inclusive, inter-religioso.
80
Exemplos: declaração dos direitos do homem, das crianças, dos idosos, do meio ambiente. Dessas declarações
são signatários inúmeros países, entretanto, pouco se faz para que elas aconteçam, regulando, efetivamente, a
vida das pessoas.
81
Através de ações orientadas por valores positivos, que considerem o outro e o princípio da justiça.
37

4.4 O saber instrumental e o sentido: os desafios da racionalidade (uma das faces da


crise de valores)

Jean Ladrière, em Desafios da Racionalidade, examina o impacto das tecnologias


sobre as culturas indicando outro problema importante. A tecnologia82 não é neutra, pois traz
consigo uma gama considerável de valores capazes de alterar nossa visão de mundo,
nossa práxis, nossas relações. Segundo ele, o Pólo da Tradição ou do Sentido [a Filosofia,
as Artes, Ciências Humanas e as Tradições religiosas] não consegue acompanhar a marcha
triunfante do Pólo da Tecnologia. Assim, se ao Pólo da Tradição compete descobrir e propor
o significado das conquistas humanas, refletindo sobre nossas possibilidades e limites; se
observarmos a velocidade da incorporação de recursos tecnológicos em nossas vidas; é
fácil constatar a incapacidade do Pólo da Tradição de justificar os usos possibilitados pelo
segundo setor da cultura. Não sabemos o que fazer com aquilo que podemos fazer, eis
nosso dilema. A razão instrumental pensa, que em nome do progresso83, todos os
procedimentos seriam lícitos ou legítimos, desconsiderando os danos humanos e ambientais
decorrentes. Ao perdermos o poder crítico originado no Pólo da Tradição, caminhamos rumo
a uma vida cada vez mais autômata e menos autônoma e autárquica, vivendo, não a partir
de nós mesmos, mas segundo as leis ditadas pela tecnologia segundo os interesses do
mercado. Exigências traduzíveis pela aceleração de nossas vidas, pela hiperatividade
funcional, pela irrefletida adesão às exigências da sociedade de consumo. Consuma-se,
assim, o divórcio entre ética [agir bem] e técnica [fazer bem] com suas conseqüências
negativas sobre a vida de todos nós. E nossa cultura, não tendo mais encontrado
satisfatória relação entre a razão reflexiva [Pólo da Tradição] e a razão instrumental [Pólo da
Tecnologia] não mais nos oferece sentido de pertença e possibilidade de futuro.

Breve conclusão

Ao individualismo crescente, entretanto, surge possibilidade de autêntico cultivo da


subjetividade, considerando valores promotores da vida em geral e do ser humano. É-nos
oferecida oportunidade de, em nossas ações, realizarmos valores. O acontecimento da
justiça, da verdade, da solidariedade e da cooperação são vitais para o ser humano.
Educação para valores permitirá, transitarmos de uma cultura do individualismo e da
violência a uma cultura de paz e respeito. Somos, assim, convidados a realizar valores em
nossa vida pessoal e social, valores que, penetrando a dimensão tecnológica da vida, sejam
capazes de questionar automatismos e alienações, despertando a reflexão e o compromisso

82
Variante que resulta da aliança da ciência com a técnica.
83
Progresso, aqui, é sinônimo de avanço tecnológico.
38

para com o outro. Educação para valores, cultivo de uma cultura da paz é condição
indispensável para visarmos, conforme Aristóteles, a vida boa com o outro em instituições
justas. Nossa práxis [o conjunto de nossas ações individuais e coletivas] poderá ultimar a
justiça na direção da vida boa com o outro. Nessa direção, importa indagar:

Mas, quem é o outro? O que é a justiça? Como tecer, através de nossas práticas,
instituições justas? No que consiste a educação para valores? Por que essa educação
supõe a superação da heteronomia e dos automatismo? Se oscilamos, em nossa existência,
entre heteronomia e autonomia, porque a autonomia é o horizonte de nossas buscas,
realizações e orientação ética?
39

5 A AVALIAÇÃO MORAL

O ser humano, animal racional social e valorativo, cotidianamente julga fatos,


produtos e ações. Avaliar, assim, consiste em atribuir determinado valor a atos ou produtos
humanos84. No processo avaliativo, encontramos três elementos: a) o valor atribuível, b) o
objeto avaliado, c) o sujeito que avalia85. O sujeito que avalia atos ou produtos humanos é,
sempre, um sujeito concreto, inserido num determinado mundo ou contexto cultural, capaz
de conceber e hierarquizar valores.
Ao experimentarmos contentamento estético, recompensados, atribuímos
determinado grau de beleza a uma obra de arte. O elogio, dirigido a um relógio pelo seu
eficiente funcionamento, implica num julgamento de valor. Nos dois casos foram realizadas
avaliações valorativas, pois atribuímos qualidades aos objetos analisados. Mas, o que
caracteriza uma avaliação moral? Quais são os critérios através dos quais realizamos uma
avaliação moral?

5.1 O caráter concreto da avaliação moral

Se a avaliação é ato de atribuir, por um sujeito humano, valor a atos ou produtos


humanos, quais são as condições concretas dessa avaliação? O que caracteriza essa
avaliação como moral?
O valor, critério do julgamento, em primeiro lugar, não é concebido abstratamente,
como se existisse num mundo à parte, mas brota da vida vivida, nasce das descobertas de
um sujeito em relações, capaz de reflexão e ação. O sujeito avaliador – inserido no mundo,
envolvido por estruturas econômicas e simbólicas – é, ao mesmo tempo, condicionado por
sua pertença e capaz de pensá-la e transcendê-la. Os valores não existem em si mesmos,
mas pelo e para o homem, ser racional e práxico, capaz de descobri-los e realizá-los. A
objetividade dos valores, que os torna pensáveis e compartilháveis, encontrará, na
subjetividade humana, seu vetor subjetivo e, no mundo, ou sociedade, seu vetor objetivo. A
objetividade, finalmente, histórica e socialmente construída, poderá ser caracterizada como
social.

84
Cf. VÁZQUEZ, A avaliação moral, 2002, p. 153.
85
Ibidem.
40

Os objetos avaliados, em segundo lugar, são atos propriamente humanos, capazes


de afetar positiva ou negativamente outras pessoas. O comportamento animal e os objetos
inanimados não podem ser objeto de avaliação moral. Ao mesmo tempo, aqueles atos que
não implicam em conseqüências para outras pessoas, também estão isentos de avaliação
moral.
Somente são avaliáveis, do ponto de vista moral, portanto, ações humanas
realizadas livre e conscientemente, orientadas por valores e realizadoras de valores,
capazes de responsabilização, ou seja, isentas de coação externa ou interna e livres de
ignorância involuntária.
A avaliação moral é, portanto, uma ação pela qual se atribui ou nega positividade a
um objeto. O objeto da avaliação moral são os atos humanos e suas conseqüências
benéficas (positivas) ou maléficas (negativas), elogiáveis ou condenáveis. A avaliação moral
supõe um contexto histórico e cultural que a possibilita, tornando-a concreta e práxica86. Os
conceitos de bom ou mau, nesse processo judicativo, se implicam: bom é o que promove a
vida humana, mau é aquilo que impede a vida humana. Bom e mau são, por isso, conceitos
auto-referidos e empiricamente verificáveis. Enquanto o bom é traduzível em conquistas,
crescimento, plenitude, vida; o mau é percebido pelos prejuízos verificados. Bom e mau,
assim, são conceitos axiologicamente87 referidos, inseparáveis e opostos.

5.2 O Bom como Valor

Avaliamos atos ou produtos humanos segundo determinada concepção do que seja


o bom. Mas, no que consiste o bom? Compete, agora, visitar a história da Filosofia e
analisar as respostas de algumas escolas éticas sobre o conteúdo do bom.

5.2.1 O Bom como felicidade [Eudemonismo]

O bom, segundo Aristóteles [384/383 a.C – 322 a.C], é a felicidade ou eudaimonia88.


A felicidade dependeria da plena realização de todas as capacidades humanas, ou seja, da
atualização máxima de nossas faculdades sensitivas, racionais e sociais. Aqueles seres
humanos que, tendo suas necessidades básicas atendidas, poderiam dedicar-se ao

86
Sobre o caráter concreto e histórico da avaliação moral, Vázquez (2002, A avaliação moral, p. 154) indaga:
qual é o conteúdo atribuído ao trabalho? Nas sociedades eminentemente mercantis, o trabalho é compreendido,
apenas, como mercadoria. Noutras sociedade, onde as contradições entre trabalhador e propriedade privada dos
meios de produção já foram enfrentadas, o trabalho passa a ser visto como fonte de criatividade e constituição do
humano. Nessas sociedades, o trabalho já não é mais um peso, porém modo de ser do homem, ganhando, desse
modo, conteúdo positivamente moral.
87
Axiologicamente: concebíveis do ponto de vista de uma teoria do valor.
88
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p. 158-160.
41

exercício da ciência e Filosofia, bem como, estariam aptos a atuar no campo político. A
felicidade seria exercício de autodomínio: vida segundo a justa medida e realizadora da
excelência somática, intelectual, espiritual e política. Quando a razão governa o corpo,
quando a temperança, a justiça, a coragem e a prudência orientam o agir, nascem
condições à vida intelectual e política. O anthropos, ao realizar sua natureza ou essência,
enquanto animal racional e político, alcançaria a felicidade.
O filósofo grego, de fato, compreendeu que a realização do bom implica em
condições econômicas capazes de atender nossas necessidades básicas, pois ninguém é
feliz quando oprimido pela necessidade. Tendo as condições básicas de vida resolvidas, o
ser humano poderia dedicar-se ao estudo e à vida em sociedade, atualizando, assim, sua
natureza. Entretanto, preso ao horizonte de seu tempo, acabou Aristóteles por excluir da
plena realização da eudaimonia, mulheres, estrangeiros e escravos.
Em nossos dias, surge outro problema: como determinar o conteúdo da felicidade?
Numa sociedade marcada pelo individualismo, em que domina a noção de propriedade
privada89, onde o individualismo é traço de caráter social, como devemos pensar a
felicidade?
Diante dessas indagações, a tese de que a felicidade é o único bom fica prejudicada
por sua excessiva generalidade. Todavia, a contribuição de Aristóteles se encontra na
afirmação de que a satisfação das condições materiais é indispensável à realização da vida
humana. Realizar o bom ou alcançar a felicidade em cada ato humano e durante a
totalidade de uma vida, sublinhamos, supõe gozar de direitos econômicos mínimos – sem os
quais a liberdade se torna inviável e a vida humana acontece diminuída.

5.2.2 O bom como prazer [Hedonismo]

O sentido da vida ou o bom se identificaria com o prazer90. O que é o bom? Aquilo


que causa prazer. O que seria o prazer? a) um sentimento ou estado afetivo agradável que
acompanha nossas experiências, por exemplo, o encontro com um amigo, a visão de uma
obra de arte. b) Sensação agradável provocada por certos estímulos corpóreo-sensoriais,
como, a causada pelo consumo de um copo de vinho.

89
Muitas vezes esquecemos o primado do social sobre o privado, pois domina a compreensão da propriedade
privada em sentido absoluto. Lembremos: sobre cada propriedade privada pesa uma hipoteca social. Assim, tanto
o público como o privado estão a serviço do bem comum.
90
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p.160-164.
42

Ao identificarem o prazer com o bom, os hedonistas se referem ao primeiro sentido.


O Filósofo grego Epicuro (341 a.C – 270 a. C)91, fundador da Escola do Jardim, afirmava
que deveríamos cultivar os prazeres mais elevados, causadores de resultados mais
permanentes e duradouros, como, verbi gratia, ler um livro, estudar Filosofia. Os prazeres
intelectuais e estéticos, de fato, são mais amplos, profundos e duradouros que os prazeres
ligados ao comer, ao beber, às práticas sexuais. Buscar o prazer e evitar a dor, procurar nos
prazeres elevados o bom, eis a máxima hedonista.
A tese dos epicuristas antigos foi defendida, na modernidade, por filósofos
empiristas92. Quatro teses são por eles defendidas93: a) todo prazer é intrinsecamente bom;
b) somente o prazer é intrinsecamente bom; c) a quantidade da experiência do prazer define
o bom; d) a qualidade da experiência do prazer determina o bom.

a) Todo o prazer é intrinsecamente94 bom.

A tese geral – de que todos os seres humanos procuram o prazer e buscam evitar a
dor – está correta. Entretanto, ao separar o prazer das conseqüências [todo prazer é
intrinsecamente bom], o novos hedonistas erram, pois não podemos salvar o prazer –
isolando os resultados alcançados. Assim, o prazer causado pela vingança não pode, assim,
ser separado da própria vingança. O prazer, do ponto de vista moral, somente terá sentido,
se o julgarmos não intrinsecamente [a partir de si mesmo], mas extrinsecamente, indagando
por suas conseqüências.

91
Ao classificar os prazeres (cf. REALLE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 3. ed. São Paulo:
Paulus, 1990. v. I. p.247), Epicuro propõe a seguinte discriminação: 1) prazeres naturais e necessários à
conservação da vida (comer quando se tem fome, beber quando se tem sede, etc.); 2) prazeres supérfluos [comer
bem, beber comidas refinadas, vestir-se com sofisticação, etc.]; 3) prazeres não naturais e não necessários ou
vãos (ligados à riqueza, fama, poder, honras, etc.). Os prazeres responderiam aos desejos surgidos no interior do
homem. Os primeiros prazeres, segundo Epicuro, são os únicos habitualmente satisfeitos, pois têm por natureza
um preciso limite: eliminado o desconforto, suprida a necessidade, o prazer cessa de crescer. Os desejos do
segundo grupo, por não terem limite preciso, por não cessarem com a supressão da dor do corpo, por
continuarem a existir, poderiam provocar danos. Os prazeres do terceiro grupo [voltados à alma e não ao corpo]
são causa de enormes desajustes e perturbações. Epicuro recomenda, enfim, o cultivo regrado dos prazeres,
descrevendo os perigos apresentados pelo cultivo dos prazeres supérfluos e não-naturais. O filósofo do Jardim
recomenda vida moderada, cultivada segundo a ordem da natureza e na direção das autênticas necessidades da
alma. O filósofo do Jardim, justamente por isso, elogia o exercício filosófico e a contemplação estética, pois
essas atividades seriam fonte de tranqüilidade, ordenamento, prazer e felicidade duradouros.
92
Notadamente os filósofos ingleses modernos, para os quais o processo do conhecimento encontraria seu ponto
de partida no exercício perceptivo sensorial ou empírico. O empirismo moderno releu as teses antigas adaptando-
as, dando-lhes novo sentido.
93
Encontramos duas teses fundamentais (a e b) e outras duas teses derivadas (c e d).
94
Em si mesmo.
43

b) Somente o prazer é intrinsecamente bom

A segunda tese dos novos hedonistas procura eliminar a linha divisória entre o bom e
mau em sentido moral. Bondade e maldade teriam significado meramente instrumental95. É
deveras complicado sustentar essa versão. Dois exemplos podem ajudar no entendimento
da inconsistência dessa posição: a) é possível atribuir positividade ao prazer experimentado
por um assaltante desconsiderando a dor da vítima? b) é conseqüente separar o prazer de
uma noite de boêmia da ressaca do dia seguinte?

c) Hedonismo quantitativo e d) Hedonismo qualitativo

Os hedonistas quantitativos, ao defenderem a duração do prazer ou os hedonistas


qualitativos, ao postularem a intensidade do prazer – também se equivocam. Como é
possível mensurar a duração ou intensidade de um prazer? Quais seriam os critérios
objetivos dessa mensuração?
Verificamos, a partir dos questionamentos precedentes, a impossibilidade em
sustentar a asserção de que a bondade de um ato ou vivência – seja proporcional à
quantidade de prazer que possa causar. Tampouco é possível realizar mensuração
qualitativa. Como medir estímulos qualitativamente agradáveis que resultem de experiências
morais, políticas ou estéticas?96
O hedonismo ético, ao reduzir o bom às reações psíquicas ou vivências subjetivas,
revela a impossibilidade moral de avaliar esse bom. A escola hedonista, partindo do fato de
que todos os seres humanos buscam o prazer e evitam a dor, incide na falácia reducionista
de que somente o prazer é bom97. O prazer somente é bom, assim inferimos, examinadas
as conseqüências e verificadas as implicações pessoais e sociais de suas experiências de
prazer.

95
Bom e mau seriam, apenas, noções operatórias e desvinculadas da vida real, na qual ações apresentam conseqüências.
96
É inviável, por exemplo, comparar a intensidade e duração dos prazeres usufruídos num concerto sinfônico e num show de
música popular. Quais critérios e índices permitiriam tal mensuração e comparação?
97
Ou seja: de um fato [todos os seres humanos procuram o prazer e evitam a dor] deduz-se um juízo de valor que ganha foro
de exclusividade e universalidade [na totalidade da vida, somente o prazer é o bom].
considerada a totalidade da vida, somente o prazer é o bom].
44

5.2.3 O Bom como boa vontade (Formalismo kantiano)

O filósofo alemão de Königsberg, Immanuel Kant (1724 – 1804), pretendia fundar


uma moral exclusivamente racional, desconsiderando pressupostos metafísicos ou
religiosos, pensada a partir da autonomia do sujeito racional98.
O bom deve ser algo incondicionado, sem restrição alguma, que não dependa de
circunstâncias ou condições que nos escapem99. O único bom, sem restrições e
incondicionado é a boa vontade. Mas, no que consiste a boa vontade? Ela não é um desejo,
não consiste em mera intenção, não é uma inclinação.
A boa vontade é a decisão de agir conforme as exigências incondicionais da razão.

pertencemos ao reino dos fins [alcançáveis pela razão]. Por conseguinte, não basta agir em
acordo com o dever [ex., cumprir o prometido], mas é preciso agir por dever. Uma pessoa
pode cumprir o prometido visando vantagens, por temer as conseqüências. Aquele que age
racionalmente, somente considera o dever e age por e pelo dever, desconsiderando
inclinações ou outras variáveis que poderiam contaminar a decisão de agir racionalmente. O
bom somente se concretizará, quando agirmos não por inclinação, mas pelos ditados da
razão: por, com e pelo dever.
O único que é moralmente bom é a boa vontade: a vontade que age não só de
acordo com o dever, mas pelo dever100. Dever determinado unicamente pela razão. Por seu
caráter excessivamente formal, pela separação entre vida concreta e vida racional, observa
Adolfo Vázquez, essa concepção do bom [identificada com a boa vontade] se revela vazia
de conteúdo e irrealizável. Um mesmo ato, contraditoriamente, se motivado pelo dever ou
por uma inclinação afetiva, seria, ao mesmo tempo, moral e imoral. Por que ajudamos uma
pessoa? Movidos pelo sentido do dever? Por um sentimento? Por ambos os motivos?
Segundo Kant, moralmente válida [e boa] seria a ação causada pelo dever [por uma decisão
racional]. Uma ação motivada por um sentimento não apresentaria, assim, positividade
moral.

98
Cf. Guy Durant (Introdução geral à bioética. 2. ed. São Paulo: São Camilo / Loyola, 2007. p. 276-7): segundo Kant, todo
ser humano, enquanto ser racional, poderia viver a dimensão moral da existência autonomamente. Os seres humanos seriam
capazes de conceber postulados pelos quais orientariam suas existências. Destacamos: 1) age somente segundo a máxima que
faça com que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se torne uma lei universal; 2) Age de tal modo que trates a
humanidade tanto em tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre, ao mesmo tempo, como um fim, e jamais
simplesmente como um meio.
99
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p.164-168.
100
A ênfase no dever permite denominar a escola fundada por Kant de escola deontológica.
45

5.2.4 O Bom como o útil [Utilitarismo]

No que consiste o útil? Útil para quem? Para além do egoísmo ético e do altruísmo
ético, encontramos o utilitarismo [pragmatismo ou conseqüencialismo]101. O bom ou o útil
seria encontrado no útil e vantajoso para maior número de pessoas102. Mas, como conciliar
os meus interesses com os interesses dos demais, quando esses interesses são conflitivos?
O utilitarismo aceita a tese do sacrifício pessoal, da própria felicidade em favor de uma
comunidade inteira. O utilitarismo avalia as conseqüências, por isso pode ser chamado de
conseqüencialismo.
Um ato será bom (ou útil), portanto, consideradas as conseqüências,
independentemente do motivo ou intenção que levou a concretizá-lo. Mas, como e com
quais critérios podemos antecipar e avaliar as conseqüências de um ato moral? O que é o
útil? É a felicidade? O prazer? Consiste na satisfação das necessidades básicas? Na
realização dos direitos mínimos capacitadores da liberdade? Como calcular e determinar
esse útil? Como pensar a relação entre meios e fins?
Se para Jeremy Bentham (1748 – 1832)103 o prazer é o unicamente bom, se para
Stuart Mill (1806 -1873)104 a felicidade é o unicamente bom [felicidade para o maior número
de pessoas], se para G. E. Moore105 o bom é uma combinação de prazer e felicidade – como
determinar, qualificar e quantificar o que é o prazer, a felicidade ou uma pluralidade de bens
[para maior número de pessoas]? Que fatores entrariam no cálculo utilitarista? O bom é uma
questão de cálculo?
Ademais, quando pensamos a felicidade para maior número, não deveríamos pensá-
la para todas as pessoas? O útil ou bom permite exclusões? Podemos conceber a
felicidade de alguns negligenciando a felicidade dos outros? Quais são as condições
antropológicas e sociais da felicidade? Contemporaneamente, quando, através de leitura
equivocada, reduzimos as teses utilitaristas ao egoísmo ético: é possível sustentar a

101
Segundo o Utilitarismo, podemos e devemos buscar a conciliação entre os interesses pessoais e os interesses
da sociedade. Se o altruísta sacrifica a si mesmo, considerando as necessidades da comunidade; se o egoísta visa,
apenas, satisfizer seus desejos; o utilitarismo propõe interessante conciliação entre os legítimos interesses do
individuo e os legítimos interesses da coletividade. Buscar o bom, assim, implica em conciliar os interesses do
individuo e os interesses do grupo social ao qual ele pertence. O sacrifício pessoal, nessa perspectiva, somente se
justifica, quando as conseqüências dessa ação altruísta se revelam benéficas à totalidade social. Salientamos: o
utilitarismo está longe do egoísmo ético, situação psicológica que contempla, apenas, a satisfação desmedida dos
desejos e ambições de um indivíduo narcisisticamente descomprometido e abstratamente separado da sociedade.
102
Ibid. p.168-171.
103
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p. 168-171.
104
Ibidem.
105
Para Moore, segundo Vázquez (2002, p.170), o útil resulta de uma pluralidade de bens intrínsecos que nossos
atos podem causar, dentre eles, o prazer e a felicidade. Moore, portanto, pertence a escola do utilitarismo
pluralista.
46

proposição de que a felicidade é resultado do consumo? A leitura reducionista da máxima


utilitarista, transmutada em maior felicidade possível para um maior número de pessoas
através do consumo irresponsável, predatório e excludente pode ser eticamente justificada?
Tal tradução cotidiana da máxima utilitarista é moral e eticamente justificável?

5.3 Breve reflexão

Definir o bom e descrever seu conteúdo é desafio permanente. Entretanto, para além
dos limites existentes nas diversas teorias sobre o bom como valor, destacamos algumas
descobertas.
Para Aristóteles, o bom é pensado na perspectiva da plena realização do humano e
na direção da felicidade possível. Em seus aspectos positivos, a doutrina epicurista identifica
o bom com o prazer regrado e, sobretudo, com os prazeres elevados. Kant supõe a
capacidade humana em viver segundo princípios racionais compartilháveis e fundadores de
contrato social exeqüível. Os utilitaristas pensam na conciliação entre os interesses
individuais e coletivos. Ao abordarmos as diferentes teses, tendo explicitado suas
contradições, acabamos, também, por encontrar diferentes contribuições que, se
adequadamente pensadas, podem auxiliar-nos na tarefa cotidiana de determinar e avaliar o
bom realizado e buscado em cada ação.

Conclusão

Rotineiramente avaliamos, sobretudo, ações alheias. Atribuímos ou negamos caráter


positivo ou negativo a essas ações. Trabalhamos, muitas vezes, com conceitos pouco
refletidos e, muitas vezes, julgamos pessoas e situações arbitrariamente. Quais são os
critérios pelos quais avaliamos as pessoas e suas ações? Qual é a origem desses critérios?
São racionalmente defensáveis? Avaliamos, com igual rigor, nossas próprias ações?
Predomina, em nossos dias, concepção reducionista do útil, identificado com o
prazer instantâneo. Vivemos tempos de irrefletido egoísmo ético, pois o individualismo
exacerbado impede a sadia convivência com outras pessoas e o autêntico cultivo da
subjetividade. Entrementes, muitas pessoas inquietas e preocupadas procuram entender
nosso mundo, indagando pelo sentido e racionalidade de suas ações e vidas. Essas
pessoas continuam a perguntar pela essência do bom, pois buscam realizá-lo em suas
existências. Portanto, é importante indagar: em que consiste a essência do bom, critério de
nossos juízos morais? Onde encontraremos esse bom?
47

A esfera do bom, segundo Vázquez106, deve ser procurada: a) numa relação peculiar
entre o interesse pessoal e o interesse geral; b) na forma concreta que essa relação assume
historicamente. É necessário, então, conciliar os interesses individuais com os interesses
coletivos, percebendo que a afirmação da individualidade é um processo histórico e cultural.
Em nossos dias, em conseqüência, precisamos transcender a concepção mercantil de
subjetividade, baseada em trocas interesseiras e na satisfação causada pelo consumo.
Necessitamos reafirmar nossos compromissos com a totalidade social, redescobrindo a
responsabilidade para com o outro, alimentando essa subjetividade com conteúdo ético.
A afirmação de autêntica subjetividade pressupõe, igualmente, ultrapassagem de
concepção abstrata e burocrática de sociedade, na qual o individual é absorvido pelo geral,
em que a pessoa é desconsiderada em sua história, expectativas e capacidades107.
O bom se efetiva, sobretudo, pela incorporação ativa de cada indivíduo na vida
social, pela sua real contribuição às transformações necessárias e capazes de assegurar os
direitos básicos e inalienáveis de cada pessoa. O bom se efetiva pelo acontecimento da
solidariedade, da cooperação, da ajuda mútua. O bom acontece quando, ao afirmar meus
direitos individuais, descubro a relação entre meus direitos e os direitos do outro. Sou capaz
de direitos, portanto, porque o outro é portador direitos. Trabalharei, conseqüentemente,
pelo efetivo atendimento das necessidades fundamentais de cada pessoa. A compreensão
de que direitos implicam em deveres, de fato, é um ganho considerável.
Realizamos o bom, portanto, quando ao nos distanciarmos de perspectiva egoísta,
somos capazes de nos colocar no „lugar do outro‟, desenvolvendo atitude de respeito e
práticas promotoras da vida. Partindo dessa afirmação, seria interessante, ao avaliarmos
ações alheias, perguntar pelo sentido de nossas próprios atos. Nossas ações consideram o
outro, sua história, necessidades e expectativas? O outro é visto como fim em si mesmo ou
instrumento de nossos interesses? Quais são os critérios que orientam nossas práticas? A
satisfação imediata de interesses individuais é o critério exclusivo de nosso agir? Efetuar
essas perguntas, questionar a si mesmo, indagar pela legitimidade das práticas sociais,
considerar e avaliar a relação entre o individual e o social, criticar os conceitos que orientam
nossa busca de realização ou felicidade, pensamos, é extremamente importante. A reflexão
ética sobre nossas práticas morais cotidianas, e sobre nossos conseqüentes julgamentos,
contribuirá à educação da dimensão ética da existência e ao exercício de vida moral mais
autônoma e responsável.

106
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p.172-175.
107
Nessa direção, o público e o privado são expressões da vida em sociedade. O público e o privado devem,
prioritariamente, buscar o bem comum. Assim, as instituições públicas não podem ser privatizadas segundo
interesses corporativos; à iniciativa privada compete, igualmente, realização de suas finalidades sociais.
Compreensão equivocada da relação entre o público e o privado, pensamos, é danosa aos indivíduos e à
sociedade.
48

6 OBRIGATORIEDADE MORAL

A pura concordância e discordância de uma ação com a lei,


sem considerar o móvel da própria ação, chama-se legalidade,
ao passo que, quando a idéia do dever, derivada da lei,
é ao mesmo tempo móvel da ação, se tem a moralidade .

Imannuel Kant, Metafísica dos Costumes.

Na existência moral fática, paradoxalmente, obrigatoriedade e liberdade se


reivindicam. Quando o indivíduo livremente escolhe, decide e realiza a norma, então, se
efetiva a vida moral em sua expressão autêntica. O agente moral poderia não ter cumprido
a norma, mas decidiu efetivá-la. A norma ou regra de ação, enfim, ao traduzir princípio
racionalmente concebido e intersubjetivamente compartilhado, naquela circunstância
específica e irrepetível, orientou e ultimou o bem visado na ação. Convêm, nessa direção,
indagar: quais são os traços essenciais da obrigação moral? Qual é o conteúdo da
obrigação moral?
Nessa perspectiva, é importante investigar os traços caracterizadores da
obrigatoriedade moral, procurando diferenciá-la de outras formas de obrigação108. Quais são
os traços essenciais da obrigatoriedade moral, distinguindo-a de outras formas de
obrigação? Qual é o conteúdo da obrigatoriedade moral? O que, de fato, somos obrigados
realizar ou devemos fazer? É-nos solicitado, considerando indagações propostas, renovado
esforço reflexivo.

108
Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p.179.
49

6.1 Liberdade e Obrigatoriedade Moral

Educação à liberdade, na direção da autonomia e da autarquia109, é conciliável com a


obrigatoriedade moral? A norma moral, efetivamente, possui caráter prescritivo e obrigatório,
mas supõe empenho da razão em compreendê-la e da vontade em realizá-la. A norma
moral apela sempre à consciência do agente, solicitando seu empenho em compreendê-la,
interpretá-la e atualizá-la nas circunstâncias que a acolhem.
A privação da liberdade e violação da intimidade nas situações de ignorância
involuntária, coação interna e externa exime a pessoa de responsabilidade, pois é
empecilho à justa persuasão da norma110. Ao obrigar, paradoxalmente, atua a norma sobre
a consciência e liberdade, prescrevendo e orientando a ação, mas respeitando a possível
recusa do agente. A obrigatoriedade moral acontece, em suma, quando o sujeito moral
cumpre o preceito, por decisão voluntária, podendo ter-lhe recusado a realização.. A palavra
obrigatoriedade, aprofundando nossa investigação, encontra sua raiz no termo latino
obligatio, onis, sinalizando a ação de empenhar a palavra ou vontade no cumprimento de
promessa ou norma livre e racionalmente compartilhada111. As normas morais, em
conclusão, não podem ser respeitadas, simplesmente, por conformidade exterior, impessoal
e forçada. Ao contrário, elas obrigam quando observadas a partir de convicção pessoal, isto
é, quando se efetiva a liberdade de escolha do sujeito.
Se, pois, a obrigatoriedade moral prescreve deveres ao sujeito, segundo as regras
propostas, é-lhe solicitado excluir ou evitar atos proibidos. Ainda assim, a realização do
preceito é voluntária. Já, a obrigatoriedade jurídica, por seu caráter positivo e coercitivo,
exige o cumprimento do preceito legal, prevendo conseqüente punição quando do seu
desrespeito. O cumprimento do preceito legal pode vir precedido da decisão moral de

109
A pessoa autônoma dá a si mesma o conteúdo da norma [regra de ação ou lei moral] que obriga, pois é capaz
de concebê-la e compreendê-la. O agente moral, assim, é dono de seus atos quando, consciente e livremente,
atualiza a norma em cada ação efetuada. A pessoa, possuindo a si mesma em cada ato, em conseqüência, acaba
por governar a si própria, ou seja, torna-se autárquica. O ser humano, concluímos, nunca é completamente
autárquico e autônomo, entrementes, pode atingir graus distintos de autarquia e autonomia. A autonomia e a
correspondente autarquia resultam da decisão de imprimir em cada ato – racionalidade e humanidade –,
atualizando, desse modo, a liberdade, efetivando praxicamente a existência. Tanto mais plena a vida humana,
quanto mais autônoma e autárquica, aberta ao mundo e ao outro.
110
Explica Vázquez (2002, p.181): “Impondo uma forma de comportamento moral não querida ou não escolhida
livremente, a coação externa entra em conflito com a obrigação moral e acaba por substituí-la. Já vimos algo
semelhante num capítulo anterior, com respeito aos casos de coação externa extrema (ameaça grave ou
imposição brutal física) que provém de outro sujeito e que impede o agente moral de cumprir sua obrigação.
Finalmente, a obrigação moral perde sua razão de ser, quando o agente opera sob uma coação interna, ou seja,
sob a ação de um impulso, desejo ou paixão que forçam ou anulam por completo a vontade”. À coação interna e
externa, acrescentamos a ignorância involuntária. A ignorância involuntária acontece quando o sujeito não pode
e, de fato, não prevê a situações danosas nas quais possa se encontrar envolvido.
111
Lemos em SARAIVA, F.R. (Novíssimo Dicionário Latino-Português. 10. ed. Rio de Janeiro / Belo
Horizonte: Garnier, 1993. P.799): “Obligatio, onis [...] ação de prender, de empenhar (a vontade, a palavra). [...].
Prender-se, obrigar-se, tomar sobre si uma obrigação”. A obrigação, deduzimos, nos une voluntariamente à
palavra empenhada, à norma racionalmente concebida e voluntariamente realizada.
50

realizá-lo. Entretanto, se na obrigatoriedade moral prevalece intimidade e voluntariedade,


na obrigação jurídica predomina a coercitividade112.
A obrigatoriedade moral, igualmente, não pode ser entendida segundo rígida
necessidade causal. Situado no tempo e no espaço, o ser humano, ser cultural e histórico,
encontra no mundo do qual participa o horizonte de suas escolhas e realizações. A
liberdade, de consequência, não consiste em exercício arbitrário, pois acontece no mundo e
supõe conteúdo doado pela norma113.

6.2 Responsabilidade e Obrigatoriedade Moral

Ao empenhar a liberdade na efetivação da norma ou dever, considerado seu caráter


obrigatório, sou responsável. A liberdade, portanto, não exclui, mas encontra seu conteúdo
na obrigatoriedade moral. Eliminada a ignorância involuntária, a coação interna ou
externa114, voluntariamente decido a favor da norma, orientando meu comportamento na
direção por mim querida e efetivada. Para Vázquez

a obrigação moral apresenta-se, assim, como a determinação de meu


comportamento; isto é, orientando-o numa determinada direção. Mas sou
obrigado moralmente só na medida em que sou livre para seguir ou não esse
caminho. Nesse sentido, a obrigação moral pressupõe necessariamente
minha liberdade de escolha, mas supõe, ao mesmo tempo, uma limitação de
minha liberdade. Comportando-me moralmente, eu era obrigado por minha
promessa, pelo dever de cumpri-la, e também, deveria decidir de uma
115
maneira ou outra .

112
No primeiro caso [obrigatoriedade moral], cumpro a norma porque – íntima e livremente – decidi efetivá-la. No segundo
caso [obrigatoriedade legal ou jurídica], cumpro a norma porque a lei, em sua positividade [texto legal], é coercitiva.
Examinemos um exemplo de nosso cotidiano. Por que respeitamos as regras de trânsito? Por valorizarmos a vida e termos
decidido – livre e intimamente – pelo cumprimento das normas legais? Por temer as punições decorrentes do seu
descumprimento? Podemos respeitar as normas de trânsito, conforme exemplo, unindo decisão moral e respeito legal
[cumpro – voluntariamente – a prescrição legal]. Segundo a reflexão ética, conclui-se, há empobrecimento da vida moral
quando predomina a separação entre a dimensão moral e legal do preceito, quando deixamos de cumprir a regra por decisão
livre, respeitando-a, simplesmente, devido a sua imposição compulsória. Processos educativos, aproximação dos interesses
individuais e coletivos, maturidade jurídica são caminhos a percorrer na direção de sempre maior integração entre liberdade e
legalidade.
113
Afirma Vázquez (Ética, 2002, p. 180): “Não há propriamente comportamento moral sem certa liberdade, mas esta, por sua
vez, como se demonstrou oportunamente, supõe e se concilia com a necessidade, ao invés de excluí-la. E posto que não há
comportamento moral sem liberdade – embora não se trate de uma liberdade absoluta, irrestrita ou incondicionada – a
obrigatoriedade não pode ser entendida no sentido de uma rígida necessidade causal que não deixaria certa margem de
liberdade. Se eu fosse casualmente determinado a fazer x até o ponto de não poder fazer outra coisa a não ser aquilo que fiz,
sem que não me fosse possível optar por outra ação; isto é, se, agindo, não tivesse a possibilidade de intervir – como causa
especial – na cadeia causal em que se inserem meus atos, o meu comportamento não teria um verdadeiro sentido moral. Tal
tipo de determinação ou necessidade nada tem a ver com a obrigatoriedade moral”.
114
Como dizíamos em Responsabilidade e Liberdade, concordando com Vázquez, cotidianamente somos desafiados por
pressões externas e internas, somos convocados ao exame das possíveis conseqüências de nossos atos. Entretanto,
conseguimos, na maioria das vezes, vencer a coação externa, interna e a ignorância involuntária. Somente em situações
extremas ou excepcionais – a coação externa e interna é irresistível, a ignorância se apresenta como involuntária porque
invencível.
115
VÁZQUEZ, 2002, p.182.
51

A obrigação moral deve ser assumida livre e espontaneamente, diferenciando-se,


como havíamos referido, da obrigação jurídica e, até mesmo, de obrigação relativa ao trato
social, quando baseada exclusivamente no costume. Quando o agente ético, optando entre
várias alternativas, quer, escolhe, decide e realiza a norma, faz acontecer o sentido
autentico da obrigatoriedade moral, revelando compreensão do que seja um agir
responsável.

6.3 Consciência e Responsabilidade Moral

O homem, ser-aí-no-mundo [Dasein], realiza a si mesmo a partir do mundo que o


acolhe e possibilita. Enredado com utensílios, coisas e objetos, nomeia o mundo,
compartilhando-o com outros seres humanos. Existir é co-existir, partilhando simbolicamente
– através da linguagem – o mundo do qual é parte integrante. A consciência, então, é
sempre consciência de si mesmo nesse mundo. A decisão pessoal, segundo o exposto e
em sintonia com Vázquez116, não opera num vácuo social. Podemos afirmar que, quando
atua a voz da consciência, fala, concomitantemente, a cultura da qual faço parte, as
impressões recebidas do mundo. Essa constatação não elimina a liberdade e, tampouco,
esvazia a subjetividade, mas reafirma duas dimensões constitutivas do humano: de um lado
o sujeito com sua história, convicções, preferências e escolhas; de outro, o mundo que o
antecede acolhe e possibilita.
Mas, o que se deve compreender por consciência moral? Consciência é um termo
polissêmico [portador de muitos significados]. Primeiramente, consciência indica saber de,
pois tenho ciência de alguma coisa, conheço um objeto ou pessoa. Dirijo, por exemplo, meu
olhar à macieira florida no meu jardim. Consciência implica num saber sobre si mesmo: sei
quem sou, estou ciente de que tenho um nome, uma história pessoal, etc. No campo ético,
consciência é a capacidade de antecipar os resultados de determinada ação, tendo
conhecimento de suas possíveis conseqüências. A consciência, portanto, não apenas
registra ou compreende aquilo que se encontra diante dela, mas é capaz de antecipar na
forma de projetos, fins ou planos, o que irá acontecer.
A consciência moral supõe a ciência de si mesmo, do mundo, das coisas e das
outras pessoas117. A consciência moral existe sobre essa base primária, ou seja, é
expressão do ser consciente. O que caracteriza, todavia, a consciência moral? O conceito
de consciência moral se encontra intimamente ligado ao conceito de obrigatoriedade. É a
consciência que, tendo interiorizado normas118, informada das circunstâncias e fatores

116
VÁZQUEZ, 2002, p.183.
117
As observações que seguem acompanham, em grande parte, Vázquez (2002, p.184-189).
118
Normas, recordamos, são princípios traduzidos em regras de ação.
52

envolvidos num determinado dilema moral, aplica uma norma, com adequação, àquela
situação singular e irrepetível. É a consciência que, portanto, livremente acolhe e realiza o
obrigatório [a norma e o dever consequente], segundo a especificidade de cada caso.
A consciência moral é sempre compreensão de uma obrigação moral – e avaliação
de nosso comportamento – em acordo com as regras de ação livre e conscientemente
aceitas. Se não existe nem autonomia e nem heteronomia absolutas, pois quando fala a voz
da consciência, „falam os homens de meu tempo‟, „com os quais convivo e compartilho o
mundo‟; entretanto, essa voz também é „a minha voz‟. A pessoa, práxica e responsável, é
capaz de tomar distância, pesar as influências e decidir pelo melhor para si e para os outros
com os quais convive.
A consciência moral exprime, também, a culpa e o arrependimento. Quem, após
exame de consciência de determinada ação, alguma vez, ainda não se arrependeu? O
arrependimento implica na revisão da ação na consideração das pessoas afetadas. Uma
palavra infeliz, uma ação precipitada, um julgamento equivocado reivindicam revisão. Se
não é possível realizar, novamente, o ato, pois esse já aconteceu [é passado]; entrementes,
é viável, formalmente, revisá-lo e, se for o caso, desculpar-se, fazer algo para compensar os
resultados negativos alcançados. O ato de desculpar-se, por exemplo, pode restabelecer
vínculos fundados na justiça e na mútua abertura. Afinal de contas, se somos frágeis e
finitos, porque responsáveis podemos rever e dar um sentido positivo às ações negativas
que, eventualmente, realizamos. O homem é finito, frágil, perfectível. Quebras emocionais
acompanham sua existência. Esses desconfortos podem ser administrados, cotidianamente,
através da auto-análise, conversa, entre-ajuda e, até mesmo, através de terapia.
É conveniente diferenciar o remorso [ou culpa] resultante da avaliação das
consequências negativas de nossos atos sobre a vida de outras pessoas, do remorso [ou
culpa] patológico. Quando o remorso, frisamos, se transmuta em escrúpulo excessivo, é
preciso procurar corrigir esse desvio. Nessa direção, salientamos, é tão indesejável a culpa
patológica quanto à indiferença moral. Se na culpa patológica encontramos sentimento
perturbador, igualmente, a indiferença moral impede o convívio entre os seres humanos.
Revisar atitudes e ações negativas é necessário para o convívio em sociedade. No
que consistiria, então, uma educação estimuladora da descoberta do outro e do sentido
positivo da normatividade moral? Que estimulasse sempre maior autonomia e autarquia?
Que desenvolvesse o senso da comum responsabilidade relativa ao existir no mundo? São
indagações importantes que precisam ser meditadas e vividas.
53

Conclusão

O tema da obrigatoriedade moral precisa ser pensado na consideração do enigma da


liberdade. O que é a liberdade? Por que a liberdade é o fundamento, segundo a reflexão
ética, da obrigatoriedade moral? Podemos, provisoriamente, tecer algumas considerações.
A liberdade humana, primeiramente, em sua espontaneidade, não consiste em
arbitrariedade inconseqüente, pois palavras, atitudes e ações podem afetar – positiva ou
negativamente – outras pessoas. A liberdade solicita, enfim, conteúdo descoberto nos
princípios e normas. O sujeito ético quer, decide e realiza a norma, considerando
circunstâncias e pessoas envolvidas. Eliminada a coercitividade, conservada a razão e a
liberdade, o sujeito ético encontrará – na norma – possibilidade de realização humana e
crescimento.
As normas ou regras de ação traduzem princípios [ou valores] básicos à existência
humana. As normas, exemplificando, explicitam o respeito à vida, a inviolabilidade da
intimidade, a premência da confiabilidade, a importância da verdade nas relações, a
transparência requerida no trabalho, na vida acadêmica e nas atividades políticas, a justiça
e suas exigências de equidade. As normas, corretamente entendidas e autenticamente
cumpridas, fundam a vida em sociedade, despertam a confiança nas pessoas e instituições.
A perda do sentido da norma e sua inobservância acarretam fragilidade social e
desconfiança, truncando a convivência, dificultando a vida.
A reflexão ética, por ligar norma e liberdade – pondo em destaque nossa comum
pertença ao mundo – convida ao exercício da permanente descoberta do significado de
cada regra de ação, estimulando a ligação de cada norma com o valor por ela anunciado e
explicitado. O estabelecimento do mínimo ético, básico para a convivência em sociedade,
supõe diálogo ininterrupto, revisão e atualização de cada norma em consideração das
circunstâncias que a acolhem. Acreditamos mais na educação para a liberdade responsável
do que nas proibições, entretanto, a concretização dessa liberdade responsável implica na
interiorização da norma e realização do dever correspondente.
Educação para a responsabilidade é aprender, a cada momento, a dar sentido e
mais plenitude à existência, dom e tarefa. O horizonte da liberdade responsável, finalmente,
encontra – no outro – a origem e sentido de cada ação. Cada pessoa, finalmente, na
continua e renovada descoberta da dignidade inviolável do outro, portador de direitos e
deveres inalienáveis, simultaneamente, reivindicará e afirmará sua dignidade, seus direitos e
o sentido de sua liberdade.
Na vida profissional, orientada por leis, códigos, protocolos, regulamentados, somos
permanentemente desafiados à interpretação e realização de princípios que, ao mesmo
tempo, possibilitam, regram e estimulam o bom exercício das atividades profissionais. O
54

estudo dos códigos normativos, acompanhado da reta intenção de cumpri-los, na direção do


bem causado pelas ações e tendo em vista a promoção da profissão, para além do
corporativismo, é prática indispensável. Quais são as capacidades requeridas no exercício
de minha profissão? Quais são os direitos e deveres solicitados? Como devo me portar
diante dos colegas e beneficiados de minhas ações profissionais? Por que devo ser veraz,
honesto e correto, tanto com meus colegas quanto com meus clientes? As reflexões sobre o
dever ligam-se, agora, com o exercício profissional. Quais são, então, os desafios éticos
propostos no exercício de minha profissão?
Nas atividades profissionais encontramos, privilegiadamente, oportunidade de
enriquecimento da vida e crescimento pessoal. Estudando e fazendo as coisas de que, de
fato, gostamos, buscando, enfim, aprimoramento técnico e humano, cada um, livre e
racionalmente, movido pelo senso do dever, ultimará ações capazes de beneficiar inúmeras
pessoas. Na vida profissional, concluindo provisoriamente, cada um de nós descobrirá
oportunidade de imprimir sentido e significado à existência. Sentido e significado
imensuráveis, intraduzíveis em prêmios ou conquistas pecuniárias, mas, apenas, vividos na
gratuidade de ser plenamente pessoa.
55

7 A REALIZAÇÃO DA MORAL [Acontecimento práxico ou efetivo da Moral]

Toda moral compreende um conjunto de princípios, valores e normas de


comportamento. Entretanto, para cumprir suas finalidades ordenando a vida entre os
indivíduos em determinada sociedade, precisa se efetivar através de atos, necessita tornar-
se vida pela práxis119. Mas, no que consiste a realização da moral? Por realização da moral
entendemos

a encarnação dos princípios, valores e normas numa dada sociedade, não só como
tarefa individual, mas coletiva, ou seja, não apenas como moralização do individuo,
mas como processo social no qual as diferentes relações, organizações e
120
instituições sociais desempenham um papel decisivo .

Nessa direção, procuraremos investigar como ocorre a moralização do indivíduo,


examinaremos a relação entre caráter, valores e sociedade; dedicaremos nossa atenção ao
estudo da relação entre estruturas sócio-econômicas e a vida moral; examinaremos como o
caráter social [mentalidade] vigente em determinada sociedade pode afetar a vida de seus
membros.

7.1 Vida econômica e realização da moral

As relações de produção, ou seja, o modo como acontece a produção e divisão das


riquezas, condiciona a vida moral dos indivíduos. A vida econômica, inegavelmente,
influencia a vida das pessoas. De que maneira o homem é afetado pelo seu trabalho? Por
que trabalha? Como o fruto do trabalho, socialmente produzido [a riqueza], é distribuído?
Qual é o significado do trabalho?
Pelo trabalho, atividade individual e social, ao transformar a natureza alheia, o ser
humano edifica a si mesmo, enquanto individuo e espécie. Entrementes, a especialização
exagerada, o uso das mais diversas tecnologias têm, gradativamente, tornado o processo
do trabalho algo impessoal e enfadonho. As tecnologias da informação, especialmente, ao
acelerarem os processos produtivos, alternaram nossa percepção do tempo. Somos,
progressivamente, solicitados a novas rotinas e, dominados pelo tempo do relógio,
realizamos número sem fim de tarefas. Paradoxalmente, ao final do dia, semana ou mês,

119
Cf. VÁZQUEZ, 2002 (a realização da moral), p. 209.
120
Ibidem, p.209.
56

descobrimos que falta tempo para nós mesmos. A revolução industrial, tendo prometido
felicidade para maior número de pessoas através do consumo cedeu lugar à revolução da
informática. Esta, ao possibilitar controle eficiente e crescente das nossas vidas produtivas,
pela multiplicação de tarefas e responsabilidades, acentua-nos a alienação, pois nossas
vidas – virtualizadas – já não se dão conta da existência. É-nos exigido responder, com
urgência, aos imperativos técnicos de um mundo em aceleradas transformações. Nesse
contexto, quem somos? Quais são os desejos profundos que cultivamos? Por que
executamos tantas tarefas e tantos papéis sociais? Como nos relacionamos com o mundo e
com as outras pessoas?
A par do quadro descrito, sociologicamente explicitável, o número de excluídos da
vida econômica, do acesso aos direitos básicos é dado que não podemos deixar de
perceber.
O fenômeno da alienação, portanto, diante do quadro brevemente exposto, vem se
acentuando. Os processos econômicos, nas sociedades pós-industriais, têm salientado o
caráter alienante do existir humano. Existir alienadamente é perceber a vida pessoal
desconstituída em conteúdo e significado, seja nos processos de trabalho, seja no acesso
aos resultados da atividade laboral, seja nas relações interpessoais. Admitimos que, em
todas as sociedades e, mesmo na vida humana, persistam diferentes graus de alienação.
Entrementes, quando a alienação [resultado das relações econômicas] acaba por anular o
gosto pela vida, reduzindo a existência humana ao cumprimento burocrático e impessoal de
atividades enfadonhas, impedindo a constituição de relações éticas e estéticas promotoras
de nossa comum humanidade, é preciso parar e pensar, revisar conceitos e práticas.
Vázquez sentencia que os problemas morais da vida econômica

surgem necessariamente quando se transforma seu sujeito – como produtor,


consumidor e suporte de produção – num simples homem econômico, isto é, numa
simples peça de um mecanismo ou de um sistema econômico, deixando de lado
por completo as conseqüências que para ele – como ser humano concreto – traz o
seu modo de integrar-se no próprio sistema. Somente reduzindo o ser humano ao
econômico ou fazendo o homem depender da economia – como pretendiam os
economistas clássicos ingleses – a vida econômica deixa de ter implicações
morais. Mas essa exclusão dos problemas morais do âmbito da vida econômica
não é possível pela simples razão de que, na realidade, não existe tal homem
econômico; esse é somente uma abstração, porque não pode ser isolado do
homem concreto, real. Por conseguinte, o modo como o operário trabalha, o uso da
máquina e a técnica e o tipo de relações sociais em que se efetuam a produção e o
121
consumo não podem deixar de ter conseqüências para ele como homem real .

O homem é o agente da economia – enquanto criador, produtor, gerador de riquezas – e


não seu passivo resultado. Nessa perspectiva, a objetificação da vida humana, a redução do
humano ao econômico, é insustentável. As relações econômicas [relações de produção], ao

121
VÁZQUEZ, 2002 (a realização da moral), p. 219.
57

promoverem o ser humano ou, reduzindo-o a objeto, precisam ser analisadas eticamente,
pois apresentam dimensão moral inerente. Eticamente é preciso superar concepção
antropológica e moral redutora do homem a agente econômico e mero consumidor122.

7.2 Trabalho humano, moral e consumo

Admitida a importância da economia na vida das pessoas e das sociedades,


verificamos, no homem concreto, o agente das relações econômicas. Não obstante, nas
sociedades mercantis, o trabalho humano não é percebido como fonte de realização
pessoal, de expressão de nossa comum humanidade, de cuidado e edificação do mundo.
Do exposto, concluímos, o trabalho [alienado] é tarefa monótona, não criativa e repetitiva.
Por que trabalhos? Para garantir nossa capacidade de comprar. O sacrifício diário devotado
ao trabalho, então, encontra recompensa no consumo. Trabalhamos, fundamentalmente,
para consumir. Se, para Vázquez123, o homem deve trabalhar para ser verdadeiramente
homem, nas sociedades marcadamente mercantis, devemos trabalhar para consumir. Em
todo caso, a alienação no processo do trabalho se prolonga na alienação do consumo: todos
que consomem seriam, hipoteticamente, felizes.
Foi Erich Fromm quem diferenciou o ter existencial do ter caracteriológico124. Ter
para existir ou existir para ter? Nosso caráter é formado pelas experiências que nos
constituem. Nas sociedades industriais, no limiar do surgimento da „religião cibernética‟,
Fromm diferenciava comportamentos de consumo saudáveis dos comportamentos
patológicos. É preciso comprar coisas e consumi-las para viver e não viver, apenas, para ter
coisas. A primeira atitude, Fromm designa por ter existencial; a segunda, patológica, nomeia
ter caracteriológico. Quem vive para ter coisas125, alienado, existe fora de si, não
encontrando significado autêntico ao existir, sendo incapaz de criatividade e,
conseqüentemente, privado de relações positivas com o mundo e outras pessoas; vê sua
vida espiritual impedida ou empobrecida.
O homem econômico, assim, não é apenas o produtor, mas o consumidor sujeito a
nova e particular forma de alienação. Esse homem consumidor tem necessidades que não
são propriamente as suas, e os produtos que compra não são, verdadeiramente, queridos

122
O denominado homem econômico, de fato, não existe. Há um ser humano multifacetado que, ser criativo,
através do trabalho, busca responder às diversas necessidades: materiais e espirituais. O ser humano, agente
econômico, é – também – ser político, ético, estético, etc. As múltiplas dimensões do homem, em sua
complexidade, estão presentes nas inúmeras manifestações culturais. A expressão homem econômico denuncia,
portanto, compreensão reducionista do humano. Essa concepção ou visão distorcida e reducionista, entretanto, é
acriticamente assumida, seja no cotidiano, seja teoricamente. É preciso, então, ultrapassá-la teórica e
praxicamente.
123
Cf. VÁZQUEZ, 2002 (a realização da moral), p. 220.
124
Cf. FROMM, Erich. Ter ou ser. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,
125
Ou seja: Para perpetuar o ciclo de comprar, possuir e consumir coisas [mercadorias].
58

por ele. O homem consumidor, condicionado, trabalha [?] para adquirir coisas que, de fato,
não precisa, esquecendo-se de si e de relações amplas com o mundo e com as outras
pessoas.
Acreditando que a felicidade se encontra em consumir, o homem consumidor
buscará seu espaço no mercado, competindo e procurando derrotar seus possíveis
concorrentes, pois precisa garantir seu status quo para continuar consumindo. Nesse
processo, terá tantas personalidades quantas forem exigidas, mercantilizando a si mesmo,
procurando agradar àqueles que podem manter seu padrão de consumo. Existirá para
consumir, olvidando a vocação humana em ser. Os reflexos, na moral, da ideologia do
homem consumidor são bastante evidentes, pois confundimos individualidade com
individualismo, competição moderada com a violenta, satisfação de necessidades com
egoísta busca de satisfação de veleidades [supérfluos]. Incapazes, muitas vezes, de buscar
a adequada medida em nossas vidas, justificamos quaisquer meios para satisfação dos fins
desejados. Inabilitados em lidar com a frustração, acabamos por não desenvolver a
resiliência, essa capacidade de positivar e integrar os aspectos negativos da vida,
positivando-os.

7.3 Avaliação ética dos reflexos da moral do homem econômico [ou consumidor] na
vida concreta

Vivemos numa sociedade violenta e excludente, incapaz de lidar com as suas


deficiências e, paradoxalmente, acreditamos viver no ápice da historia humana. O
exagerado acento mercantil, a crescente transferência de responsabilidades126, parece,
inequivocamente, vigorar sem contestação. O dito, cada um por si e todos contra todos,
estaria, efetivamente, vigorando?
Na vida política profissional, confundimos a coisa pública com nossos interesses
privados; na vida econômica privada, nem sempre recordamos que sobre toda propriedade
privada pesa uma hipoteca social. A res publica, portanto, não pode estar submetida à
interesses privatistas e corporativistas, bem como à iniciativa privada é assegurado
indispensável papel na tessitura do bem comum.
Os meios de comunicação social, enquanto concessão pública [ou social] ao privado
não podem, pura e simplesmente, reproduzir as ideologias dominantes: diminuidoras da
dignidade das pessoas, reduzidas a consumidores, destituídas de capacidade crítica. Mais
que informar ou divertir, as mídias necessitam assumir compromisso com a formação de um

126
A transferência de responsabilidades implica na perpetuação de comportamentos de matiz egoísta. Parece
vigorar – em nossos dias – uma espécie de des-responsabilização generalizada. Em verdade, antes de transferir
responsabilidades, cada pessoa deveria indagar: o que compete e o que posso fazer – aqui e agora – no lugar que
ocupo no tecido social? Daí a máxima: pensar globalmente e agir localmente.
59

país multicultural e integrado, no qual, cada pessoa possa assumir as conseqüências de


suas ações considerando o respeito aos outros127.
A família, num mundo globalizado e fragmentado, não pode esquecer o compromisso
com a totalidade de seus membros. À família, transformada pela gradativa superação do
modelo polinuclear por outras formas de organização, cumpre a intransferível tarefa de
formação básica, abrigo e cuidado. Assumir laços familiares sólidos, cultivá-los e situá-los
na direção da construção de uma cultura da paz, eis desafio intransferível. Encontrando
abrigo e carinho, somos capazes de cuidar, nos habilitamos ao cuidado – atitude fundadora
do humano.
Ao sistema educativo, em todas as suas esferas, não obstante os parcos recursos
investidos, a valorização insuficiente dos seus agentes, é reservada a tarefa de preparação
das gerações presentes e futuras aos desafios de uma sociedade em permanente
transformação. Entretanto, os educadores, cientes de que conhecimento é muito mais que
informação, sabedores de sua inequívoca contribuição à edificação de uma cultura da paz,
percebem que os processos educativos não podem reduzir-se a atender às demandas do
mercado. Educar para a vida ou educar para o mercado? Se optarmos em assumir
compromisso com educação voltada à totalidade da existência, poderíamos indagar: no que
consiste educar para a vida? Já vislumbramos um primeiro ensaio de resposta. Educar para
a vida implica em responsabilização, em compromisso com uma cultura da paz, em
superação de visões reducionistas que diminuem a pessoa, suas capacidades e
perspectivas.
Transportada, integralmente, a visão do homem mercantil ou econômico à vida do
Estado, da família, da escola veremos impossibilitada a vida humana. Quando, por exemplo,
na família predomina a competição e ocorrem relações de interesse exclusivamente
econômico, sua existência vê-se impedida e diminuída. O mesmo vale para a vida na
escola, na universidade, nas relações comunitárias, no interior do Estado. Interesses
legítima e publicamente compartilháveis, num ambiente mercantil regulado, são eticamente
aceitáveis. Mas, não é o que, cotidianamente, percebemos. É importante perguntar: é
possível educação para vida ético-moral mais autêntica, responsável, acolhedora e
promotora do outro? Em que isso consistiria?

127
Não cabe, pensamos, quando destacamos a tarefa educativa das diversas mídias [no campo da indústria das
informações e do lazer], propor tutela ou censura sobre os meios de comunicação social. A censura é tão nociva
quanto a cega submissão, das empresas de comunicação social, aos interesses do mercado. Acreditamos,
entretanto, que os diversos veículos da indústria cultural podem encontrar e propor critérios para o seu
desempenho e, decorrente inserção na construção de um país mais solidário e responsável.
60

7.4 Educação da Pessoa como tarefa ética

Que é pessoa? Segundo Tomás de Aquino, pessoa é uma substância [ser que
existe em si mesmo], dotada de intelecto e vontade, capaz de conhecer e querer, capaz de
realizar a si mesma através de seus atos. Enquanto seres temporais, donos de nossos atos,
eles nos formam. Já Aristóteles anunciava: o anthropos é um animal racional e político,
portador de uma faculdade denominada prudência [ou sabedoria prática], capaz de decidir,
em cada situação, pela justa medida. Essa justa medida não se encontraria nem no
excesso, tampouco na falta, mas no justo meio, deliberado em cada circunstância.
Aristóteles e Tomás de Aquino nos falam da importância do hábito: repetição espontânea de
ações segundo a justa medida, incorporadoras, ao caráter, dessa disposição à vida
moderada e excelente. Se nossos atos nos formam, é interessante destacar, nosso caráter
será excelente ou vicioso em consonância com a justa medida realizada ou não em cada
ato. Em conseqüência, nos tornamos justos, temperantes, prudentes, solidários, amigos,
estudiosos, capazes de respeitar as outras pessoas, porque repetimos, cotidianamente,
ações em harmonia com essas disposições do caráter. A formação do caráter, enquanto
disposição à justa medida, supõe, para esses pensadores, disciplina e práxis.
Através de Kohlberg, percorremos os estágios que conduzem da heteronomia à
autonomia. Autônomo, propriamente, é a pessoa capaz de decidir-se pela realização do
princípio em sua universalidade, sendo capaz de pôr-se no lugar do outro. Autônomo é
aquele que cumpre a norma por decisão própria, realizando a justiça na direção da partilha
racional de direitos e deveres. É preciso perguntar: até que ponto nos educamos, e
oportunizamos em nossas famílias e escolas, vivências na direção da autonomia.
Respeitamos os diversos processos nos quais as pessoas estão envolvidas? Estimulamos o
exercício da autonomia? A descoberta e realização de valores? Educarmo-nos à cultura da
paz, transitando da sociedade de informações à sociedade do conhecimento, não implica no
estimulo à autonomia moral?
O tema da autonomia moral nos encaminha à reflexão sobre a responsabilidade. A
reflexão sobre a responsabilidade supõe consideração sobre o cuidado. Responsável não é,
apenas, aquele que é capaz de assumir as conseqüências de suas ações. Responsável é,
também, quem se empenha em promover sua existência na consideração da comum
pertença ao mundo. Martin Heidegger nos lembra: o homem é um ser-aí-no-mundo
[Dasein]128. O ser-aí, aberto ao mundo, precisa cultivá-lo, torná-lo habitável. Porque no
aberto do mundo, tendo que destinar-se [realizar sua existência], o Dasein precisa cuidar.

128
Retornaremos a Martin Heidegger e ao tema do Cuidado [Sorge, em alemão], quando refletirmos sobre Ética
e meio ambiente, Ética e técnica moderna [como lidar com os utensílios tecnológicos sem que esses nos
dominem?].
61

Cuidar implica em preocupar-se: construir abrigos, cultivar os campos, etc. Cuidar implica
em solicitude: ser-com-os-outros-no-mundo. Cuidar é, pois, cultivar-com, tornando o mundo
nossa casa planetária. Acontece que, nos tempos da onipresença da técnica, olvidamos o
cuidado, renunciamos à responsabilidade para com o mundo: o Dasein não mais se destina,
não mais se responsabiliza, pois transferiu à técnica essa tarefa. Em conseqüência, vive
inautenticamente.
Quais pistas Heidegger nos oferece para entender e agir no mundo da técnica? Se
não podemos viver sem a técnica e, ao mesmo tempo, ela é impeditiva do humano? Martin
Heidegger recomenda: é preciso afastar-se do círculo da técnica, dessa relação de
progresso e regresso. Saindo da órbita da técnica, descobriremos que se, o poder da
técnica é superior às capacidades do Dasein em dominá-la, de outro, solicita o seu trabalho
e empenho. Nessa solicitação estaria escondida a possibilidade da recuperação do cuidado.
Mas, como lidar com os artefatos tecnológicos? Quando deles precisamos, devemos, então,
usá-los. No que consiste, enfim, o uso adequado dos utensílios técnicos? Consiste no uso
prudente. Usá-los sem que nos dominem. Usá-los serenamente129.

Conclusão [nosso ponto de partida]

A vida moral, em sua dimensão autêntica, é exercício de liberdade. Liberdade que


encontra seu conteúdo no cuidado, essa atitude fundamental do ser humano. Cuidar, pois, é
ser responsável. Uma pedagogia do cuidado nos encaminhará à cultura da paz, na qual,
não obstante possíveis resquícios de alienação, vigorará o respeito. Entretanto, somente
nos tornaremos aptos ao cuidado através do exercício cotidiano da atenção, promoção e
consideração ao outro. Ao mesmo tempo, somente poderá cuidar dos outros, quem cultivar
a si mesmo.
Visar à vida boa com os outros em instituições justas supõe práxis cotidiana e
empenho em traduzir a responsabilidade em atitudes. Assim, mesmo que condicionados por
estruturas de alienação, ainda somos capazes de, ao transformar a nós mesmos, contribuir
para a transformação do mundo. O cultivo de si, na direção do outro e na perspectiva da
habitabilidade do mundo é, pois, tarefa ética intransferível.

129
Ver, nesse sentido, os anexos 04 [O Dasein e a Técnica Moderna] e 05 [Serenidade].
62

8 O CUIDADO [Sorge]

De ética de princípios à ética do cuidado


[Martin Heidegger, o Dasein, o Cuidado e a Técnica Moderna]

Examinaremos, brevemente, as contribuições de Lawrence Kohlberg, Carol Gilligam


e Martin Heidegger130, na proposição da teoria do desenvolvimento moral na descoberta da
responsabilidade e nas reflexões sobre o cuidado [Sorge], esse modo de ser do Dasein
humano. Essas reflexões permitem ao estudante de ética postular tanto uma Ética pautada
em princípios [formal] como uma Ética entendida como atitude [cuidado / responsabilidade].
Nas pesquisas em psicologia, pela demonstração da existência dos estágios da
moralidade e constatação de uma ética pautada pelo cuidado, Kohlberg e Gilligam
inovaram. Martin Heidegger, entretanto, é o pensador que, pioneiramente, ao realizar
descrição analítica da existência, propõe o cuidado como modo de ser do ser humano. Após
analisarmos, brevemente, as pesquisas dos estudiosos de Harvard, intencionamos transitar
pelo pensamento de Heidegger descrevendo a existência humana e indicando o significado
do cuidado, esse modo-de-ser responsável do ser-aí-no-mundo [homem]. Investigando a
técnica moderna, explicitaremos porque a técnica é barreira entre o Dasein e o mundo,
inibindo, conseqüentemente, um existir autêntico e cuidante. Sinalizaremos, enfim, um modo
prudente de lidar com os utensílios técnicos.

8.1 A teoria dos estágios do desenvolvimento moral de Kohlberg e a descoberta de


Gilligam

Lawrence Kohlberg (1927-1987), psicólogo e pedagogo americano131 ampliou as


pesquisas de Piaget através de investigações latitudinais e longitudinais132, procurando
evidenciar e diferenciar as várias e complementares fases do desenvolvimento moral.

130
Kohlberg procurou demonstrar e caracterizar as diversas fases do desenvolvimento moral [passagem da
heteronomia à autonomia moral]. Carol Gilligan inova em suas pesquisas pela elaboração de teoria psicológica
sobre o cuidado. Heidegger, em sua analítica existencial [Ser e Tempo], esclarece: o cuidado [Sorge] não é um
acréscimo, mas modo de ser do Dasein Humano [do homem].
131
Cf. JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola, 2006. p.76-80.
132
Pesquisas envolvendo adolescentes e adultos jovens, em diferentes lugares: USA, Turquia e Israel
[latitudinais ou interculturais], durante considerável período de tempo. Esses indivíduos foram acompanhados da
adolescência até idade adulta [em diferentes fases de seu desenvolvimento], tendo respondido, periodicamente,
testes formulados pelo pesquisador de Harvard [longitudinais ou verticais].
63

O prestigiado educador demonstrou que, paralelamente e para além do


desenvolvimento cognitivo, ocorre o desenvolvimento moral segundo variados graus de
autonomia e heteronomia133.
Entretanto, Carol Gilligam, antiga colaboradora de Kohlberg, diante das dificuldades
apresentadas pelas mulheres em solucionar os dilemas morais134, mostraria “que a mulher
se desenvolve eticamente, com situações que envolvem relacionamentos, e não em relação
a uma definição de direitos como o homem135”. Desse modo, se o menino confiava nas suas
habilidades lógicas para resolver os dilemas propostos nos testes, a menina, avaliando os
relacionamentos, os elementos envolvidos, privilegiaria o cuidado. De uma orientação à
sobrevivência individual [1], passando pelo auto-sacrifício [2], a jovem adulta alcançaria o
estágio da responsabilidade, equilibrando o cuidado do outro com o cuidado de si136.

8.2 O Dasein e o Cuidado [sobre a responsabilidade]

Vivemos numa época acelerada, convocados pelas facilidades tecnológicas


realizamos, simultaneamente, inúmeras tarefas. O tempo da existência, desconsiderado, é
substituído pelo tempo do relógio transformado em tempo tecnológico. A proximidade137,

133
Segundo Kohberg (Cf. Bárbara Freitag. “Moralidade e Educação Moral”. In: Itinerário de Antígona. A
questão da Moralidade. SP, Campinas: Papirus, 1997. p.192-207) os estágios do desenvolvimento moral seriam
seis. No primeiro estágio, denominado moralidade heterônoma, é considerado moralmente certo [correto] não
violar regras que ocasionem punições, trata-se de um obedecer por obedecer. No segundo estágio, individualista,
prevaleceria intenção instrumental e troca. É correto obedecer a normas quando essas satisfaçam o interesse
imediato, atendendo às próprias necessidades e desejos. Encontramo-nos diante de moral egocêntrica. No
terceiro estágio, busca-se conformidade interpessoal. O indivíduo se conforma ao que os outros esperam, pois
deseja ser aceito pelo grupo. É preciso manter relações de confiança, lealdade, respeito e gratidão, pois
participamos de uma coletividade. Há desejo de respeito às regras, porém, sob perspectiva estereotipada do bem.
No quarto estágio, o indivíduo moral está apto a cumprir suas obrigações. A perspectiva sociomoral busca
legitimar o todo social, o funcionamento das instituições. No quinto estágio, alguns valores universais são
defendidos como indispensáveis à vida em comunidade [liberdade, vida, etc.]. Predomina, entretanto, visão
contratualista ou legalista. No sexto estágio, a pessoa pauta suas ações por princípios universais, justificados
racionalmente e capazes de orientar o agir. As leis e acordos sociais são considerados válidos porque se apóiam
nesses princípios. Estamos, agora, falando de princípios universais de justiça, como a igualdade dos direitos
humanos e o respeito à dignidade dos seres humanos em sua unicidade irrepetível. A perspectiva moral desse
sexto estágio é a de qualquer ser racional capaz de reconhecer, no fato de que as pessoas são um fim em si
mesmas e precisam ser tratadas como tais, a fonte da moralidade. Kohlberg propugna educação que possibilite
transição da heteronomia à autonomia na vida moral. JUNGES (2006, p.79) oferece um esquema dos diferentes
estágios: α) No nível pré-convencional temos: estádio 1: “a orientação de castigo e de obediência”; estádio 2:
“orientação instrumental e relativista”; β) No nível convencional: estádio 3: “a concordância interpessoal ou
orientação a ser bom menino ou boa menina”; estádio 4: “a orientação da lei e da ordem”; γ) No nível pós-
convencional: estádio 5: “a orientação legalista do contrato social”; estádio 6: “a orientação por princípios
universais e éticos”.
134
Em solucionar, nos testes propostos, casos envolvendo dilemas morais.
135
JUNGES, 2006, p.81.
136
Ibidem, p.81.
137
No espaço existencial, o Dasein se relaciona com coisas, objetos, seres vivos, outras pessoas. Nesse espaço, relacionar-se
é anular a distância através da proximidade [tendo coisas à-mão, dirigindo o olhar para determinada direção e coisa, estando
face-a-face, etc.]. O espaço existencial difere do espaço geométrico [representação abstrata]. No mundo [espaço existencial],
o Dasein realiza sua existência pela relação [estando próximo ou distante].
64

modo de ser do Dasein138, vê-se obstaculizada. Transitando num espaço virtualizado, o ser-
aí já não mais existe no aberto do mundo, já não mais se relaciona, autenticamente, com
coisas e pessoas, já não mais destina a si mesmo. Atarefado, encontra desculpas à sua
incapacidade de gerir a existência: estou muito ocupado, as atividades me consomem,
preciso ganhar a vida. Diante do quadro brevemente descrito, importa indagar: quem,
realmente, nós somos? Somos o resultado dos papéis sociais que desempenhamos, as
múltiplas tarefas que executamos? Por que nos prendemos às rotinas que inventamos? Por
que não nos desvencilhamos das rotinas impostas? Por que precisamos, sempre, parecer
tão ocupados? Somos, de fato, capazes em assumir a vida como tarefa, sem transferirmos
responsabilidades?
O ser-aí-no-mundo é temporal. Não estamos falando do tempo do relógio ou do
tempo multiplicado pela aceleração tecnológica. Estamos enunciando o tempo da existência:
ser presença [kairós]139. Tempo que é, simultaneamente, em cada instante vivido: passado,
presente e futuro. Somos, num presente que se esvai, um passado atualizado e um futuro
por realizar, ou seja, possibilidade140. Descobrimos que a possibilidade última [derradeira] é
nossa impossibilidade: um dia não mais seremos. O Dasein, temporal, um dia não mais
será. Constatada nossa condição mortal141, nos evadimos dessa descoberta, montando
rotinas e executando tarefas, fixando-nos, alienadamente, num presente que nega o futuro.
A ocupação, nesses dias de onipotência da técnica, em conseqüência, é um modo de negar
nossa condição mortal. Essa ocupação desordenada impossibilita, igualmente, vivermos
com intensidade o presente e preocuparmo-nos autenticamente com o futuro. Se estamos
sempre diante de possibilidades, se o futuro é imprevisível, a resposta às incertezas
resultantes dessa condição não será encontrada na dispersão das ocupações, mas no
cuidado. Como devemos, então, compreender o cuidado?
O Dasein, no aberto do mundo e diante do possível, precisa cultivar esse mundo,
tornando-o habitável. Ao destinar-se [realizar sua existência] o ser-aí-no-mundo é

138
Dasein ou ser aí [no mundo]. O ser humano é o ente privilegiado que indaga pelo sentido do ser [pelo
significado de sua própria existência]. O ser aí encontra no mundo o horizonte de sua existência. Como, então,
devemos compreender a expressão mundo? Por mundo não devemos entender a soma dos entes, mas o lugar
significado [nomeado pela linguagem], habitado e cultivado pelo Dasein [pelo homem]. O mundo, essa
totalidade de significados [o horizonte vital de sua existência] é o a priori concreto que acolhe o ser aí. O
Dasein, nessa perspectiva, ao acolher o mundo [nomeando-o, cultivando-o, habitando-o] constitui a si mesmo
e ao próprio mundo. O Dasein, podemos inferir, existe no aberto do mundo pelo cultivo responsável desse
mundo. As coisas não têm mundo, o animal é pobre de mundo, o Dasein é rico de mundo [é formador de
mundo]. De fato, as coisas participam do mundo através do Dasein. Em conclusão, assim como não há Dasein
sem mundo, não há mundo sem o Dasein. O Dasein, sublinhamos, é um ser-aí-no-mundo [in-der-Welt-Sein].
139
Kairós ou tempo da existência: presença a si mesmo, no mundo, no gratuito e intenso dom de existir
140
Vivenciamos o tempo na perspectiva de sua tridimensionalidade [presente das coisas passadas: memória;
presente das coisas presentes: visão; presente das coisas futuras: expectação / Cf. Santo Agostinho no Livro XI
das Confissões]. Em realidades, o Dasein é o próprio tempo: ele se temporaliza nas vivências do tempo.
141
Pois na gratuidade do existir, um dia não mais seremos.
65

convocado ao cuidado. O cuidado [Sorge]142, portanto, modo de ser do Dasein, se expressa


como besorgen [pré-ocupação, pré-ver]] e Fürsorge [solicitude]. O cuidado implica em
preocupação com o futuro, pois é preciso cultivar o mundo, torná-lo habitável, respondendo,
assim, às exigências de sua condição frágil e finita. O cuidado também é solicitude, pois
ultrapassadas as preocupações relativas à sobrevivência, o Dasein humano é capaz de
acolher o outro, promovendo-o. Cuidar, portanto, indica preocupação em construir abrigos,
cultivar os campos, edificar o mundo. Cuidar envia à solicitude: ser-com-os-outros-no-
mundo. Cuidar é, pois, cultivar-com, tornando o mundo nossa comum casa planetária.
O ser-aí-no-mundo-com [os outros]143 implica em cuidar. O cuidado não é,
ressaltamos, um acréscimo ao existir, mas dimensão constitutiva do humano. Entretanto, no
que consiste, segundo o pensador de Messkirch, o modo adequado de cuidar? Existem dois
modos extremos do cuidado: o cuidado substitutivo [inautêntico] e o cuidado liberador
[autêntico]. O exercício inadequado do cuidado se revela num deslocamento de posição. No
que consiste esse deslocamento de posição? O inautêntico se mostra – quando o cuidador,
preocupado, transforma o outro em objeto de suas ocupações, substituindo-o na tarefa de
cuidar de si mesmo. Na substituição dominadora, por conseguinte, verificamos
deslocamento que fere a liberdade do beneficiado e, nesse contexto de dependência, o
cuidado autêntico é impedido. Noutra direção, no que consiste o cuidado autêntico? O
cuidado autêntico se revela na atitude pela qual o cuidador se antepõe ao outro, não para
substituí-lo, mas para devolver-lhe a capacidade de cuidar de si mesmo. O Dasein humano,
nas atitudes liberadoras do cuidado, num clima de confiança recíproca, buscará devolver ao
beneficiado o cuidado [ou a capacidade de cuidar de si mesmo]. Todavia, na convivência
cotidiana, o ser humano oscila entre esses dois extremos, entre a substituição dominadora e
a anteposição liberadora. Nas ações liberadoras do cuidado [promotoras do cuidar de si],
salientamos, se encontra o horizonte ético do existir humano. Esse horizonte pode ser
significado pela palavra responsabilidade.
Se o cuidado é atitude essencial na constituição do homem e do mundo,
percebemos, nos tempos da onipresença da técnica, renúncia ao cuidado. O Dasein não
mais se destina, não se responsabiliza, pois tende a transferir à técnica moderna essa
tarefa. Embora a técnica moderna se apresente como ameaça ao existir autêntico do
homem, não podemos viver sem ela. Precisamos dos artefatos técnicos, mas,
paradoxalmente, esses magníficos engenhos perturbam e impedem o cuidado. Nesse
contexto, se a técnica é um enigma para o homem de nossos dias, como lidar com ela?
Heidegger nos oferece algumas pistas. É preciso afastar-se da órbita da técnica, distanciar-

142
Cuidado [do latim Cura, ae] indica: diligência, atenção. Interessante constatar: as palavras cuidado e cura têm
a mesma raiz etimológica. Na língua alemã cuidado é sorge.
143
O ser-aí-com [Mit-Dasein].
66

se da dialética entre progresso e regresso nela implicada, para poder pensá-la.


Distanciando-nos da órbita da técnica, descobriremos: se o poder da técnica é superior às
capacidades do Dasein em dominá-la, outrossim, ela, cotidianamente, solicita seu empenho
e trabalho. Nessa solicitação estaria escondida a possibilidade da recuperação do cuidado.
Prosseguindo: verificado nosso emaranhamento com os artefatos tecnológicos, como
devemos, então, lidar com eles? Quando, realmente, precisarmos deles, os utilizemos sem
que nos dominem. Essa atitude tranqüila diante dos utensílios técnicos é denominada, pelo
filósofo da Floresta Negra, serenidade. Transitar num mundo [desconstituído] e penetrado
pelo poder da técnica, exercendo o cuidado, assumindo compromisso em destinar a própria
existência, reivindica, logo, essa atitude serena diante dos utensílios técnicos. Essa atitude
serena e responsável poderá, um dia, devolver plenamente o mundo ao homem.
A reflexão sobre a relação homem-mundo144 permitiu refletirmos sobre o cuidado.
Descobrimos o Dasein humano145 em dinâmico processo de constituição existencial: na
realização do conhecer, na constituição do mundo, no destinar-se, no ser-com e, sobretudo,
no cuidar.
O ser-aí-no-mundo, no exercício do cuidado, desenvolve atitude originária do existir.
Ao cuidar, convida os outros seres humanos ao cuidado. Cuida de si para poder ajudar os
outros a manterem ou recuperarem sua capacidade para o cuidado. O cuidado, recordamos,
é atitude na vida que supõe a valorização de si mesmo e do outro. Quem cuida se importa,
se preocupa. Aquele que cuida sabe-se co-responsável, sendo capaz, sublinhamos, de
acolher e promover. Cuidar de si, cuidar do outro e deixar-se cuidar é um modo-de-ser-no-
mundo. Um modo de ser que escuta, acolhe e promove. Um modo de ser que enriquece,
sobremaneira, o cuidador, imprimindo sentido e intensidade à sua existência146.

Conclusão: Ética de princípios e cuidado [posições complementares]

A Ética de princípios é, pois, complementada, pela Ética do cuidado. Não


encontramos, considerado o exposto, oposição entre Ética baseada em princípios e Ética
entendida como atitude. Com efeito, a compreensão da existência de princípios
racionalmente alcançáveis e capazes de serem compartilhados, encontra, no cuidado, sua
realização. Os princípios e normas de ação, de fato, precisam ser ultimados. O cuidado,
modo-de-ser do homem, em conseqüência, atualiza, questiona e propõe revisão de
comportamentos e regras. Se os princípios [formais] permitem justificar comportamentos

144
O Dasein não se encontra diante de um mundo que interpreta, mas é-no-mundo.
145
Dasein ou ser-aí-no-mundo.
146
Recordamos que nos anexos 04 e 05 explicitamos o problema do Enigma da Técnica e a questão do uso
prudente dos utensílios técnicos.
67

éticos, o cuidado [atitude] é realização da dimensão ética da existência. Embora Heidegger,


lembremos, não tenha proposto uma Ética147, suas reflexões sobre a Sorge, sobre a
autenticidade e inautenticidade na ação do cuidar, permitem questionar nossas práticas
profissionais.
O presente estudo, relativo ao desenvolvimento moral, permite indagar sobre o grau
de heteronomia ou autonomia conquistado na existência e vida profissional. Ao mesmo
tempo, na medida em que podemos diferenciar ações cuidantes autênticas [liberadoras] das
inautênticas [substituição dominadora], é possível avaliar nossas práticas intencionando,
renovadamente, conquista de autenticidade e humanidade. O compromisso dos
profissionais em interpretar e realizar, autonomamente, os preceitos de suas profissões
tendo em vista o horizonte do cuidado, implica em cotidiana reflexão sobre suas
responsabilidades e aprofundamento dos temas e interrogações no campo da Ética.

147
De modo explicito e em perspectiva sistemática.
68

9 BREVE INTRODUÇÃO À ECOLOGIA PROFUNDA [Ética Ambiental]

O ser humano pertence ao planeta que o abriga, em conseqüência, precisa cuidá-lo,


cultivá-lo, torná-lo habitável. Entretanto, os acelerados processos científico-tecnológicos, a
globalização econômica, a objetificação da vida propiciaram desencontro entre a
humanidade e a casa que a abriga. Pensar ecologicamente, implica, assim, em re-ver
conceitos e práticas, assumindo, concretamente, compromissos na direção da preservação
e cuidado do mundo que nos acolhe. Pretendemos, brevemente, refletir sobre a situação
descrita, na tentativa de re-ligar ética e ecologia, homem e Terra.

9.1 Crise é oportunidade de revisão de conceitos e práticas

A civilização, baseada no uso irracional dos combustíveis fósseis e sustentada pelo


consumo predatório, pensamos, ultrapassou os limites de sua possibilidade148. A
globalização econômica, os processos de mundialização e uniformização cultural, as
desigualdades entre pobres e ricos149, a crescente violência em escala global, a morte de
ecossistemas pela fútil exploração mercantil de suas riquezas, o consumismo predatório, a
crise climática são sinais de que vivemos um momento de singular importância. Pela
primeira vez, os problemas são autenticamente, globais. A crise que vivemos questiona,
radicalmente, nossos conceitos, valores e atitudes. É preciso mudar!

148
Capra (FRITJOF. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix. 1997. p.19) afirma: “As últimas décadas de nosso
século vêm registrando um estado de profunda crise mundial. É uma crise complexa, multidimensional, cujas
facetas afetam todos os aspectos de nossa vida – a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e as
relações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais;
uma crise de escala e premência sem precedentes em toda a história da humanidade. Pela primeira vez, temos
que nos defrontar com a real ameaça da extinção da raça humana e de toda a vida no planeta”.
149
As desigualdades econômicas [no interior das nações e nas relações entre países centrais e periféricos]
continuam acentuando o hiato entre aqueles que têm acesso aos bens de consumo indispensáveis à sobrevivência
[alimento, água potável, remédios, escola, trabalho e lazer] e aqueles que estão abaixo do nível de pobreza. A
mundialização, entendida como uniformização cultural, acrescentamos, des-territorializa culturalmente, tanto os
consumidores da cultura de massa, quanto os emigrantes que saem de seus países na busca de uma existência
digna. São questões importantes que merecem nossa atenção.
69

9.1.2 Crise de percepção

Os sinais enunciados, denunciadores de inédita crise global, também resultam do


modo como percebemos e concebemos o mundo. Fomos treinados para pensar
analiticamente, supondo que o todo é conseqüência, tão-somente, da simples soma de suas
partes150. Desconsiderando a relação originária homem-mundo, observamos os entes
naturais como máquinas [montáveis e desmontáveis], passíveis, apenas, de descrição
empírico-matemática. O triunfo da visão cartesiana-newtoniana151, baseada no modelo dos
sólidos, permitiu conceber que todas as coisas estranhas à mente eram, apenas, coisas
extensas capazes de mensuração.
Tudo se encontra, todavia, intrincada e complexamente interligado. Vejamos uma
floresta. Poderíamos percorrer, por exemplo, os trechos de mata Atlântica existentes nos
contrafortes da Serra do Nordeste do RS. Que tal visitarmos a localidade de Barra do Ouro?
Lá chegando, percorramos seus rios, cachoeiras e matas. Permaneçamos junto da margem
do rio observando o movimento das águas, dos galhos das árvores a balancear pelo impulso
do vento, dos pássaros e insetos. Verificaremos que tudo está interligado. As raízes das
árvores abrigam seres microscópicos, em processo de mútua dependência. Na superfície do
solo, miríades de seres efetuam trocas vitais. No alto das árvores, pássaros, bugios, répteis
e insetos vivem, procriam e embelezam a paisagem. As árvores protegem as margens dos
rios pedregosos de Barra do Ouro e suas nascentes. Os rios fornecem, generosamente,
água. Mamíferos, aves, répteis, insetos, plantas e microorganismos dependem dessa água

150
Capra (FRITJOF. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 1998. p. 23) declara: “Quanto mais estudamos os
principais problemas de nossa época, mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos
isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa dizer que estão interligados e são interdependentes. [...]
Em última análise, esses problemas precisam ser vistos, exatamente, como diferentes facetas de uma única crise,
que é, em grande medida, uma crise de percepção. Ela deriva do fato de que a maioria de nós, e em especial
nossas grandes instituições sociais, concordam com uma visão de mundo obsoletas, uma percepção da realidade
inadequada para lidarmos com nosso mundo superpovoado e globalmente interligado”. A crise ambiental que
presenciamos, além de repousar em práticas inadequadas, sustentar-se em estruturas econômicas e sociais
frágeis, encontra – nos conceitos pelos quais formamos a imagem do mundo e lidamos com nossos problemas
fator que precisa ser levado em conta. Pelos conceitos que aceitamos acriticamente, de fato, aceitamos
comportamentos, justificamos práticas, legitimamos agressões à vida humana e à vida em geral. O que deve
mudar primeiro? As estruturas sociais, econômicas e política precisam mudar, concomitantemente, com a
mentalidade. É urgente, pois, uma revolução conceitual que possibilite perceber, conceber e agir na direção de
um mundo habitável.
151
Para Descartes, a mente [coisa pensante] é capaz de descrever [medindo] as coisas extensas [dotadas de
largura, altura, profundidade e peso], segundo regularidades matemáticas. Essa concepção permitiu o avanço das
ciências experimentais, mas desconsiderou a relação homem-mundo. A relação sujeito-objeto, pressuposta no
modelo cartesiano, desconhece que a inserção do homem no mundo é anterior ao acontecimento das ciências
experimentais. Antes de as examinar em laboratório, para exemplificar, as coisas existem e têm significado para
a vida de cada pessoa. O que é mundo [esse a priori concreto]? O mundo é a totalidade prévia de sentido que
acolhe cada ser humano, sendo constituído pela linguagem. O existir originário não acontece, assim, no espaço
geométrico de Descartes [representação], mas no espaço existencial. Ora, se a ciência é necessária, entretanto,
ela parte de nossa inclusão no mundo. O engano de Descartes foi conceber que a relação mente-objeto é anterior
à situação homem-mundo. Fritjof Capra em „A concepção mecanicista da vida‟ (In: O Ponto de Mutação, 1997,
p.95-115) possibilita verificarmos o impacto da visão mecanicista sobre nossas vidas.
70

gratuitamente doada. A descrição, de relativo teor poético, mostra a interconexão de todos


os habitantes da Mata. Ocorre uma co-pertença e intensa colaboração.
Para o pensamento integrativo e sistêmico, a par do exemplo, o todo não é a simples
soma das partes que o compõem, mas, o resultado dinâmico, vivo, criativo e
interdependente das partes que o constituem152. Na parte está o todo e no todo está a parte.
O processo analítico cartesiano, enquanto estratégia descritiva, é parcialmente válido.
Contudo, é preciso superar a visão analítica na direção de compreensão integrativa,
sistêmica e complexa da vida e dos problemas humanos153.
Os seres vivos, igualmente, não são máquinas, pois as máquinas são artificiais,
montáveis e desmontáveis. Os seres vivos nascem, se desenvolvem, se adaptam
criativamente, se reproduzem, vivem e morrem. Os seres vivos sentem e se adaptam
criativa e cooperativamente ao espaço vital que os acolhe. O modelo máquina, portanto, é
insuficiente para entender os fenômenos que acontecem no espaço da vida – no planeta
que habitamos.
A crise ambiental, portanto, resulta de nossa incapacidade de perceber os
fenômenos integrativamente e de, reativamente, justificar práticas predatórias através de
conceitos equivocados. Pensar integrativamente supõe re-ligar as diversa dimensões da
vida humana, propondo, sistemicamente, os problemas que nos afetam. Como pensar as
questões econômicas, ambientais, sociais, ecológicas e éticas? Separadamente? Ou
Integrativamente? Eis um desafio e tanto, pois estamos condicionados a trabalhar com
áreas e questões estanques e despreparados a pensar complexamente154.
A Terra, ser vivo ao qual pertencemos, todavia, a cada instante nos convida a re-
aprender a ver, escutar, pensar, agir e ser. Razão e sensibilidade profunda, nesse sentido,
necessitam ser ativadas – desde a totalidade do humano – na perspectiva do reencontro da
posição e compromisso do homem no mundo.

152
Para Capra (1998, p.46) segundo a perspectiva sistêmica, “o primeiro critério, e o mais geral, é a mudança das
partes para o todo. Os sistemas vivos são partes integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas às partes
menores. Suas propriedades essenciais ou sistêmicas são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui.
Elas surgem das relações de organização das partes – isto é, de uma configuração de relações ordenadas que é
característica dessa determinada classe de organismos ou sistemas. As propriedades sistêmicas são destruídas
quando um sistema é dissecado em elementos isolados”. Com efeito, isolar as partes do todo, dissecando-as
[objetivando-as e isolando-as] resulta em compreensão insuficiente, reducionista e artificial. Sobretudo, quando,
após dissecação do todo, tendo examinado artificialmente seus constituintes, o remontamos desconsiderando as
complexas e ricas relações efetuadas pelas partes na totalidade que formam.
153
Cf. „A concepção sistêmica da vida‟ em CAPRA (1997, p.259-298).
154
Sugerimos leitura de „O paradigma complexo‟ (In: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo.
Porto Alegre: Sulina, 2007. p.57-93). No referido capítulo Edgar Morin descreve a complexidade e os
paradigmas concernentes à mútua-implicação que envolve todos os processos humanos e cósmicos.
71

9.2 Ecologia profunda

É importante distinguir a ecologia rasa da Ecologia profunda. O filósofo norueguês


Arne Naess, nos anos 70, realizou tal diferenciação, hoje, majoritariamente aceita155. Os
seres humanos, para a ecologia rasa, estão situados acima e fora do cosmo, são o critério e
origem de todos os valores. Os entes naturais possuem, tão-somente, valor instrumental. O
ser humano, segundo a Ecologia profunda, entrementes, é parte integrante do cosmo. O
mundo, na visão ecológica profunda, não é um mero agregado de coisas, mas rede de
fenômenos interdependentes que se encontram, fundamentalmente, interconectados. A
Ecologia profunda “reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres
humanos apenas como um fio particular da Teia da vida156”.
A Ecologia profunda, segundo Ness, implica em realizar perguntas profundas
relativas às questões complexas que nos envolvem157. Supõe realização de autêntica
revolução espiritual – pela afirmação da dignidade intrínseca de todos os seres vivos,
através da ativação de percepção interconexa dos fenômenos planetários – e, sobretudo, na
efetivação de mudanças conceituais e comportamentais.
Nos dias presentes, a compreensão ecológica-profunda das questões humanas e
planetárias revela-se desafio incontornável. Verificamos crescente apropriação mercantil
[instrumental] da causa e afirmações do movimento ecológico. Se o marketing verde „vende‟,
entretanto, suas ações cosméticas ocultam as razões profundas da crise ambiental,
estimulam o consumo predatório, perpetuando visão „ecológica rasa e superficial‟.
Pensar, segundo as reivindicações da Ecologia profunda, é desafiador, pois, supõe,
salientamos, mudanças mentais, culturais e práxicas. Tais solicitações, entretanto, nos
âmbitos cientifico, filosófico, social, econômico, ético e espiritual nunca foram tão urgentes e
necessárias. Agentes éticos, necessitamos ultrapassar a superficialidade, precisamos
ingressar num novo estágio de responsabilidade compartilhada. É urgente mudar!

155
Cf. CAPRA, 1998, p.25-26.
156
Ibidem, p.26.
157
Ibidem, p. 26.
72

9.3 O Princípio Gaya158

A compreensão ecológica profunda, já dizíamos, implica em mudanças perceptivas,


conceituais e práxicas. Procuraremos, brevemente, enunciá-las. Para tanto, partiremos da
compreensão de que a Terra é um ser vivo. Os antigos e medievais, as culturas primais
sentiam-se parte integrante do cosmo, compreendido em sua sacralidade inviolável. Essa
visão-compreensão foi desconstituída pelo movimento da ciência cartesiana, na ânsia
frenética da dominação, exploração e mercantilização dos recursos planetários. Capra, ao
descrever as vivências dos astronautas que, pela primeira vez, viram e fotografaram a Terra
do espaço, destaca as mudanças psicológicas, comportamentais e espirituais
experimentadas por esses pioneiros159.
A Terra, nossa casa comum, pela qual viajamos no universo, é um ser vivo
constituída por complexas e complementares relações. Nela, o orgânico e o inorgânico,
finamente, se interligam. Nela, a vida - esse mistério inexplicável - acontece. A Terra é
nossa casa, nossa mãe, nossa possibilidade. Somos, junto com todas as manifestações da
vida, a Terra que nos acolhe e possibilita. A Terra é nosso mundo: somos nela-com. Na
compartilhada casa planetária acontece a Teia da vida da qual, mais do que espectadores
passivos, somos ativos integrantes.

9.3.1 Implicações do Princípio Gaya

Quais são as implicações originadas da compreensão de que a Terra é o lócus da


teia da vida da qual participamos? Seguem algumas afirmações originadas do Princípio
Gaya.

9.3.1.1 Nossos companheiros: animais e plantas

Admitir o Princípio Gaya implica em compreender a vida em processo e rede. Ora, a


defesa da biodiversidade cultural, animal e vegetal resulta, em novo modo de pensar e ser.

158
Gaya é o nome pelo qual os antigos gregos denominavam a Terra, compreendida como um ser vivente.
159
Segundo Capra (1997, p.277) “A percepção consciente da Terra como algo vivo, que desempenhou
um papel importante em nosso passado cultural, foi dramaticamente revivido quando os astronautas
puderam, pela primeira vez na história humana, ver nosso planeta a partir do espaço exterior. A visão
que eles tiveram de um planeta em toda a sua refulgente beleza – um globo azul e branco flutuando na
profunda escuridão do espaço – impressionou-os e comoveu-os profundamente; como muitos deles
têm declarado desde então, foi uma imensa experiência espiritual que mudou para sempre suas
relações com a Terra. As magníficas fotos que esses astronautas trouxeram, ao voltar, tornaram-se um
novo e poderoso símbolo para o movimento ecológico e podem muito bem ser o resultado mais
significativo de todo o programa espacial”.
73

Qual é o valor que, de fato, atribuo às culturas que povoam nosso planeta? Qual é o valor
que, efetivamente, concedo à vida em todas suas manifestações e aspectos? Respeito,
efetivamente, os outros seres humanos, os animais e os vegetais? Protejo as águas?
Questiono o consumismo predatório? Valorizo as culturas primais ou originárias? Sou capaz
de visualizar, antecipadamente, um novo mundo – empenhando minhas capacidades na
direção de sua viabilidade e sustentabilidade? Nos dias de uniformização cultural,
depredação de nichos ambientais, é preciso, portanto, cotidianamente, reafirmar o valor da
diversidade cultural e biológica, pois, tal diversidade perpetua, enriquece e fortalece a vida
planetária.
A defesa das florestas, dos animais, das águas continentais e dos oceanos é prática
que necessita ser implementada através da mudança de conceitos e hábitos. E como isso é
difícil! Como superar, então, a visão adocicada e asséptica do ecologismo raso e
implementar práticas do ecologismo profundo? Cada um de nós é convidado a pensar sobre
esse assunto.
Ecologistas profundos, diante da inusitada crise de nossos dias, inclusive,
propugnam, para além da sustentabilidade, o desenvolvimento estacionário. O que isso quer
dizer? Como repensar, então, os processos econômicos e as relações de trabalho?
Inevitavelmente, em razão da crise ambiental, a Ecologia profunda questiona nossos
conceitos, hábitos, argumentos, práticas. Não deveríamos temer esses questionamentos,
mas enfrentá-los com coragem, visão, razão, afetividade e efetividade. Re-aprender a ser,
educarmo-nos na direção da sustentabilidade, da valorização da vida humana e planetária,
da integratividade implica em transformações para que o futuro possa acontecer. O fim do
futuro ou um futuro viável, em suma, depende de cada um de nós e de todos. Pensemos,
pois, globalmente, mas, sobretudo, atuemos local e cotidianamente, se, efetivamente, nos
sentirmos responsáveis pela continuidade da vida humana na comum casa planetária,
compartilhada com tantas belas e ricas formas de vida.

Conclusão: cuidado e responsabilidade planetária

Existe um paradigma - racional e inter-culturalmente - compartilhável? Apto em


propor e fundamentar o mínimo ético? Pensamos que sim. Tal paradigma, destacando
nossa comum pertença à Teia da vida, pode ser nomeado por responsabilidade planetária.
A responsabilidade planetária, acreditamos, é expressa através do cuidado.
O que significa cuidar? Cuidar implica, constatada a fragilidade do ser humano – ser
finito e interdependente – em tornar o mundo habitável, cultivando-o. O cuidado, atitude
realizadora da responsabilidade planetária, não é acréscimo ao existir, mas modo autêntico
do ser–aí-no–mundo [Dasein]. Nessa perspectiva, é importante ultimar transformações na
74

existência. Estamos, realmente, dispostos a repensar nosso estilo de vida na direção do


cuidado? Desejamos, efetivamente, recuperar nossa capacidade de destinação? Ou
continuaremos transferindo à Técnica moderna e ao estado tecno-burocrático essa tarefa
indelegável? No que consiste, então, o uso sereno dos utensílios técnicos? No que implica
assumir responsavelmente a tarefa de constituição da vida? Por que não devemos transferir
responsabilidades? O que devo e posso fazer em função de vida plena e na consideração
do outro? A responsabilidade planetária e sua efetivação pelo cuidado, enfim, convocam à
tarefa do pensamento, pois, o que diferencia o ser humano de seus companheiros animais,
é essa aptidão à liberdade, essa capacidade de responsabilidade. O ser humano, esse fio
particular na Teia da Vida é decididamente responsável por sua possibilidade de futuro. Na
responsabilidade e cuidado, destacamos, atribuição e distinção exclusiva do ser humano,
identificamos sua posição no cosmo. Ser humanamente é, por isso, habitar eticamente o
planeta. Ética e Ecologia profunda, reivindicam-se mutuamente, na constituição da vida
humana através da edificação de um mundo habitável. Pensemos, pois, sobre nossos
compromissos, já que somos os guardiões da vida na comum casa planetária.
75

CONCLUSÕES FINAIS

Que conceito de Paz desejamos? Não pode ser a paz dos mortos, nem a paz ordenada pelo ditador,
nem a paz que elimine os direitos individuais. Não queremos a paz do silêncio. Tem que ser a paz conseguida
entre iguais, em comum acordo compartilhando a Terra, isto é, vivendo juntos. Para isto deve emergir um novo
respeito entre as culturas [...] Já somos quase 7 bilhões de pessoas, e 3 bilhões já vivem nas cidades. A cidade é
densa, é um espaço para compartilhar e é na cidade que aparece claramente a globalização e onde há mais
necessidade da nova convivência. A concentração cosmopolita nas cidades se opõe atualmente à antiga
dispersão rural. Se, ao mesmo tempo, diminui o papel aglutinador tradicional das doutrinas e aumenta a
informação, o conhecimento, é necessária uma nova cultura da convivência que seja democrática, cosmopolita,
160
civil e culta .

Conviver na cidade, em nossos dias, solicita acolher e promover o outro na sua


distinção. Desafio intransferível nos é proposto: é urgente transformar as estruturas
geradoras de violência [pela implantação da justiça] nos alicerces de uma cultura da paz. A
cidade, tecida pelo múltiplo, precisa tornar-se habitável. O denso espaço das aglomerações
urbanas, contraditório e rico, precisa ser compreendido, revisitado e valorizado, pois é o
lugar dos acordos e decisões em favor da vida e da efetivação de direitos e compromissos
decorrentes. O diálogo – educativo e transformador –, portanto, é mediação indispensável
na edificação da sociedade do conhecimento, horizonte da boa vida almejada.
A reflexão ética, na procura do mínimo ético, através de suas perguntas e
proposições nos convida à autonomia, à crítica de teorias e atitudes, à transformação da
vida, dom e tarefa. Aceita a premissa de que sou livre porque o outro é livre, descubro,
então, que o conteúdo da existência é a ética. Na ágora dos debates, pela reflexão e
empenho, comprometo-me com o cuidado do mundo pela efetivação de sua habitabilidade.
Alcançar a vida boa com os outros em instituições justas, logo, supõe práxis,
empenho, testemunho. Supõe religar o pólo instrumental da cultura com o pólo do sentido,
implica na pergunta pelo significado da técnica.
Importa, ainda perguntar, como seria uma teoria ética satisfatória? James Rachels,
nos oferece importantes elementos161. Destacamos, de sua contribuição, a idéia de que
precisamos postular uma moralidade sem arrogâncias, exercitando a razão e o diálogo,
tratando as pessoas como elas merecem ser tratadas, visando, sempre, o melhor possível
em cada situação.
Assumir, enfim, a existência como tarefa de destinação, implica acolher o mundo
sem evasivas ou resistências, supõe o exercício intransferível da responsabilidade. Que a
reflexão ética, portanto, nos torne mais responsáveis, solidários e reverentes na acolhida e
significação do mundo e de nossas vidas.

160
Joan Clos, prefeito de Barcelona. In: Fórum das Culturas 2004 (Barcelona 09 de Maio a 26 de Setembro de
2004). Encarte Zero Hora de 01 de Agosto de 2004.
161
RACHELS, 2006, p.194-206.
76

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VÁZQUEZ, Adolfo Sanchéz. Ética. 22. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
77

Anexo 1 [Texto Complementar]

Vocabulário Ético Prévio

Trabalharemos, a seguir, considerando estudos realizados e intencionando maior precisão,


conceitos recorrentes em Ética: deontologia, Ética e direito, sujeito ético, valores [princípios e normas]
e juízo prudencial.

1 Valores, Princípios e Normas

Valores sinalizam conteúdos com significado existencial, descobertos e realizados pelos seres
humanos – nas suas relações no mundo que os acolhe. Não permanecemos indiferentes frente a
valores, pois sua presença afeta e qualifica nossas vidas. Os valores morais [ou éticos] concernem à
162
vida de outras pessoas, sendo capazes de penetrar outros valores, conferindo-lhes sentido .
Princípio [do latim principium-princeps]: aquilo que se põe em primeiro lugar, começo, ponto de
partida, referência capaz de orientar o comportamento humano. Norma: tradução do valor [e do
163
princípio] em regra orientadora da ação .

2 Sujeito ético

Sujeito ético é todo ser humano capaz de responsabilidade, ou seja, capaz de responder pelas
164
conseqüências de suas ações . Dois níveis de responsabilidade, destacamos, estão em jogo nas
práticas profissionais: responsabilidade ética e profissional. A primeira corresponde à livre decisão de
cumprir normas e princípios, a segunda deriva da aplicação ou realização dos códigos normativos e
leis que regulam o exercício profissional. O profissional, sujeito ético, assim, ao compreender seus
compromissos humanos, conscientemente busca efetivar as exigências normativas e legais da sua
profissão. Responsabilidade, recordamos, implica, sobremaneira, em cuidar. Cuidar implicar em
preocupar-se e ser solicito para com o outro. Cuidar significa: cultivar o mundo com outros seres
humanos, tornando-o habitável.

162
Os valores éticos são capazes penetrar os valores econômicos, técnicos, estéticos, cognitivos conferindo-lhes
sentido e orientação.
163
É muito difícil diferenciar valores e princípios. Entretanto, se valores de referem à instância do ser, do bem e
da verdade, os princípios explicitam esses valores. Ex. Bem: a vida humana. Princípio: respeito à vida humana.
Ex. Valor: verdade. Princípio: dizer a verdade.
164
É importante perguntar: no que consiste a responsabilidade ética e profissional? Quais são os marcos
deontológicos e legais reguladores das respectivas responsabilidades éticas e profissionais de minha atividade
profissional? É importante conhecê-los.
78

3 Deontologia

165
Deontologia [do grego déon-déontos] é estudo dos códigos de normas que regulamentam o
exercício das diversas profissões, considerando o bom exercício dessas profissões, os direitos e
deveres dos profissionais e o bem das pessoas que procuram o auxílio desses profissionais.
Como justificar eticamente os princípios e normas que orientam uma profissão? Como evitar
o corporativismo, reafirmando o caráter autêntico do exercício profissional. Deontologia, igualmente,
designa a doutrina de Kant que, em sua Filosofia moral, privilegia o dever. O conjunto de direitos e
deveres dos profissionais em sua relação com o cliente, o público, seus colegas e sua corporação é,
também, denominado deontologia.

4 Ética e Direito [aproximações]

166
Ética indica , prioritariamente, a reflexão sobre o conjunto das exigências do respeito e da
promoção da pessoa. O direito positivo nomeia, em primeiro lugar, o conjunto de regras aplicáveis
numa determinada sociedade e sancionadas pela autoridade pública. Direito designa, num segundo
momento, a reflexão sobre as leis e seu significado. Se a Ética trata do dever ser na direção do ótimo,
o direito visa harmonizar as relações humanas na sociedade, conciliando os interesses das diversas
pessoas, procurando realizar o possível. Se a Ética, ao examinar o comportamento moral, considera
a interioridade e a voluntariedade da ação; o direito atua coercitivamente visando o cumprimento da
167
lei em sua positividade .

5 Juízo Prudencial e Princípio da Precaução

A prudência é o exercício racional-prático que intenciona a justa medida nas ações. Por justa
medida, entendemos, medida adequada, ponderada, racional, moderada e moderadora. A razão
prática, em seu exercício prudencial, prevê as conseqüências das ações e busca efetivar o bem em
cada ato realizado.
O princípio da precaução considera, antevendo possíveis resultados, adequada e humanitária
aplicação das ciências e tecnologias no âmbito da vida humana. O princípio da precaução é lembrado
pelos bioeticistas, freqüentemente, como salvaguarda aos possíveis abusos decorrentes do ensaio
168
terapêutico . O princípio da precaução, ampliado, se aplica ao agir humano nos diferentes âmbitos,
pois a pessoa é capaz de antecipar, idealmente, o alcance e conseqüências de seus atos.

165
DURANT, Guy. Introdução Geral à Bioética. História, conceitos e instrumentos. 2 ed.Trad. Nicolas Nyimi
Campanário. São Paulo: São Camilo / Loyola, 2007. p.80-82.
166
Ibidem, p.83-84.
167
Em decorrência, é lícito indagar: a lei positiva sanciona ou questiona o costume? Toda lei é moralmente
aceitável e eticamente justificável? Por que cumprimos a lei: por seu valor ou poder coercitivo?
168
Cf. CLOTET, Joaquim (org); FEIJÓ, Anamaria; OLIVEIRA, Marília Gerhardt (org). Bioética, uma visão
panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, p.10.
79

Anexo 2 [Excerto]
A Pesquisa de Kohlberg

A PESQUISA DE LAWRENCE KOHLBERG

SOBRE OS ESTÁGIOS DE DESENVOLVIMENTO DA MORALIDADE

169
Barbara Freitag

O nome de Lawrence Kohlberg (1927-1987) ficou de tal modo associado aos estudos da
moralidade que muitos autores lhe atribuem, equivocadamente, o papel de formulador da teoria da
psicogênese da moral. Poucos sabem ou admitem que Kohlberg construiu seu trabalho teórico,
metodológico e até mesmo educacional sobre os alicerces lançados por Piaget. Poucos sabem ou
admitem que Kohlberg foi um aluno lato e stricto sensu de Piaget. Verdade é que foi um excelente
aluno. Examinou os pressupostos da teoria moral de Piaget e desenvolveu a teoria e a metodologia,
dando à pesquisa científica sobre a moralidade um peso e uma estatura sem precedentes. Kohlberg
confirmou e consolidou a tese do paralelismo entre lógica e moral, a teoria dos estágios, a
universalidade dos processos cognitivos e morais, reformulou a metodologia e a teoria, reforçou a
pesquisa intercultural no campo da moralidade e desenvolveu programas de educação moral nos
coleges e nas universidades americanas.

A pesquisa sobre a moralidade do adolescente e do adulto realizada no Centro de Harvard


pode hoje, equiparar-se em volume e seriedade, à pesquisa sobre o pensamento lógico-matemático
desenvolvido pelo Centre d’Epistémologie Génétique de Genebra. Por isso mesmo, vale a pena
dedicar um tópico especial aos trabalhos de Lawrence Kohlberg, sua equipe e seus seguidores.

As inovações metodológicas de Kohlberg

Kohlberg concentrou sua atividade de pesquisa em adolescentes e adultos e não em crianças


(como Piaget). Por trás dessa opção, havia uma crítica, facilmente comprovada pelos estudos
empíricos. A psicogênese da moralidade infantil não estava concluída aos 12-13 anos, como
imaginava Piaget. A maturidade moral possivelmente só é atingida (se tanto) 10 anos depois, pelo
adulto. Essa constatação levou Kohlherg a reformular a teoria dos estágios e a elaborar uma
metodologia de levantamento e codificação dos dados sobre a moralidade bem mas sotisticada que a
desenvolvida por Piaget no julgamento moral na criança (1932).

Para estudar com maior precisão a passagem de um estágio psicogenético a outro, Kohlberg
realizou uma série de estudos longitudinais. O mais conhecido é sobre a psicogênese da moral de 75
meninos e rapazes (idade inicial: de 10 a 16 anos) de Chicago, cujo desenvolvimento foi
acompanhado durante 15 anos. Os meninos/rapazes eram entrevistados de três em três anos,

169
Texto de FREITAG, Barbara. “Moralidade e educação moral”. In: _______. Itinerário de Antígona. A questão
da moralidade. SP Campinas: Papirus, 1997. p.192-207.
80

permitindo, assim, a reconstrução (nos mesmos sujeitos) dos diferentes estágios do julgamento
moral. No final da pesquisa, esses sujeitos tinham atingido a idade entre 25 e 30 anos. O mesmo
procedimento foi aplicado durante 6 anos a um grupo de adolescentes turcos e a jovens judeus que
viviam em um kibutz em Israel (cf. Kohlberg, 1976).

Kohlberg também resolveu substituir as historietas paralelas usadas por Piaget para analisar
o julgamento moral da criança, suas noções de justiça e punição por histórias contendo sérios
conflitos ou dilemas morais, de cunho existencial. Os sujeitos entrevistados eram solicitados a julgar a
ação dos protagonistas da história, conforme sua opção por uma ou outra alternativa, dentro da
situação de conflito.

Um dos conflitos mais usados, debatidos, analisados e codificados foi o “dilema de Heinz”. A
historieta tomada como ponto de partida para a entrevista clínica posterior (no sentido piagetiano já
explicitado) é a seguinte:

“A mulher de Heinz estava à morte, pois tinha câncer. Somente un remédio, que o
farmacêutico da cidade tinha descoberto, poderia salvá-la. Mas o farmacêutico estava cobrando uma
fortuna pelo remédio, que estava dez vezes acima do seu preço de custo. Heinz, o marido da mulher
enferma, pediu dinheiro a todos os amigos, mas só conseguiu juntar a metade do que solicitava o
farmacêutico pelo remédio. Explicou então a este a situação. Contou-lhe que a mulher estava
morrendo e pediu que vendesse o remédio pela quantia que obtivera ou que permitisse pagar o
restante mais tarde. Mas o farmacêutico foi implacável, não se dispondo a vender o remédio senão
pelo preço inicialmente estipulado. Heinz, desesperado, resolveu arrombar a farmácia e levar o
remédio para a mulher. Heinz estaria agindo corretamente? Justifique seu ponto de vista” (cf. Colby e
Kohlberg, 1987, vol. 2, p. 1).

Outros dilemas ou conflitos são apresentados e estudados, como o caso de um navio que
afunda. No escaler encontram-se três sobreviventes: o capitão, um marinheiro jovem e inexperiente e
um cientista velho. O equipamento e as reservas de combustível e alimentação para assegurar o
salvamento efetivo dariam para somente duas pessoas. Um dos três sobreviventes teria de saltar ao
mar. Quem deveria tomar a decisão? Qual deles? Quais seriam os argumentos a favor e contra em
Cada um dos casos.

Um dilema envolvendo mentira, autoridade e lealdade é o “dilema de Louise”. Judy, de 12


anos, queria ir a um concerto de rock. A mãe já tinha dado autorização, desde que Judy pagasse a
entrada com seu dinheiro. Judy trabalhou como babá e conseguiu juntar a soma necessária. Nesse
meio-tempo, a mãe havia mudado de idéia, esperando que Judy gastasse o dinheiro ganho em
roupas de que necessitava. Alegando visitar uma amiga, Judy foi ao concerto. Uma semana depois,
confessa para Louise, sua irmã mais vella, que mentiu para a mãe. Louise deve silenciar ou
comunicar o incidente à mãe? Como poderia justificar uma ou outra decisão? (cf. Colby e Kohlberg,
1987, vol. 2, p. 281).
81

Como Piaget, Kohlberg e suas equipes utilizaram-se da entrevista clínica, do diálogo com
argumentação e contra-argumentação, mas também de discussões em grupo sobre os dilemas acima
relatados, gravados em teipe e vídeo, a fim de permitir o estudo, em detalhe, da fala, da mímica, dos
gestos de cada interlocutor. Esse material serviria de base para determinar o estágio moral atingido
pelos entrevistados ou membros do grupo.

À medida que os estudos avançavam, Kohlberg passou a explorar simultaneamente três


perspectivas para classificar e codificar o riquíssimo material colhido. Na primeira, foi considerado o
valor moral defendido, ou seja, o conteúdo intrínseco dos argumentos apresentados. Nessa
perspectiva, foram diferenciados os conteúdos: punição, propriedade, papéis (afetivos ou de
autoridade) assumidos, lei, vida, liberdade,justiça (punitiva ou distributiva), verdade e sexo. Na
segunda ótica, a atenção foi concentrada nas justificativas dadas pelos interlocutores para sustentar
um julgamento, ou seja, foram examinadas a estrutura e a coerência da argumentação apresentada.
E, finalmente, na terceira ótica, procurou considerar a orientação sociomoral tal como conscientizada
pelo sujeito (cf. Colby e Kohlberg, 1987, vols. 1 e 2).

A teoria psicológica da moralidade desenvolvida por Kohlberg e suas equipes emerge de uma
reformulação metodológica e teórica permanente, em que fica difícil dizer de qual dos pólos partiu o
impulso para a renovação. Mas visto que os procedimentos metodológicos definem os limites, o grau
de diferenciação e abstração adotado para captar os dados da realidade, as opções metodológicas
implicam recortes de uma suposta realidade empírica que fornece material que impõe reformulações
teóricas e vice-versa.

Reformulações teóricas de Kohlberg

Em sua tese de doutorado (1958), Kohlberg defende a necessidade de reformular os estágios


da moralidade sugeridos por Piaget, introduzindo um modelo mais diferenciado de seis estágios que
substituiriam os três estágios piagetianos: da heteronomia, da semi-autonomia e da autonomia moral.
Essa reformulação decorria da evidência empírica e da opção metodológica de ampliar o limite de
idade dos sujeitos observados. Piaget se havia contentado com o estudo do julgamento e da
consciência moral de crianças pequenas, até o início da adolescência. Kohlberg resolveu concentrar
a atenção em adolescentes e adultos, cuja consciência, julgamento e comportrnnento moral
apresentavam diferenças substantivas em relação às crianças menores de 12 a 13 anos.

A teoria dos seis estágios lançada em 1958 por Kohlberg e defendida até o final da década de
1960 (cf. Kohlberg, 1969) estava longe do grau de diferenciação, reflexão e consolidação da teoria
apresentada na década de 1980 (cf. Kohlberg et al. 1983, Colby e Kohlberg, 1987, vol. 1), mas já
introduzia reflexões teóricas importantes, como a distinção clara entre forma e conteúdo da
argumentação e a diferenciação em seis estágios, compreendidos como totalidades estruturadas,
seguindo uma seqüência invariável e ordenando-se em patamares hierárquicos.
82

Os estágios originariamente discriminados com auxílio da entrevista clínica ou discussão de


grupo em tomo do “dilema de Heinz” eram os seguintes:

1º estágio – Orientação para a punição e a obediência. Respeito diante da autoridade ou do


prestígio de superiores, tentativa de evitar conflitos. Responsabilidade objetiva.

2º estágio – Orientação ingênua e egoística. A ação correta é a que atende às necessidades


do Eu e possivelmente do outro, instrumentalmente. Consciência da relatividade do valor de uma
necessidade e da perspectiva dos demais, envolvidos na ação. Igualitarismo ingênuo e orientação
para a troca e a reciprocidade.

3º estágio – Orientação para o ideal do bom menino, preocupado em obter a aceitação e o


reconhecimento dos outros. Conformidade com as representações estereotipadas do comportamento
coletivo. Julgamento de acordo com as intenções.

4º estágio – Orientação para a preservação da autoridade e da ordem social. Preocupação de


cumprir o dever, demonstrar respeito à autoridade e à ordem como tais. Consideração pelas
expectativas dos outros.

5º estágio – Orientação legalista-contratual. Reconhecimento de um componente aleatório


das regras. Expectativas como ponto de partida para o consenso. Dever é definido como contrato.
Busca evitar a violação dos direitos e das intenções dos outros. Defesa da vontade e do bem-estar da
maioria.
6º estágio – Orientação por princípios. Transcende as ações contidas em papéis sociais e
inclui a orientação segundo princípios universais. Ação conforme à própria consciência, com base na
confiança e no respeito pelos outros (Kohlberg, 1969, p. 376).

Os dois primeiros estágios são típicos de uma consciência moral para a qual o valor moral
reside em acontecimentos externos: quase físicos (as xícaras quebradas etc) e não em pessoas e
princípios. Nos dois estágios subseqüentes, a consciência moral atribui valor moral à conformidade
da ação em relação às expectativas e aos papéis socialmente definidos pelos outros (grupo).
Somente nos últimos dois estágios a consciência moral passa a atribuir um valor moral à coerência
interna do ator e aos padrões, direitos e deveres que ele próprio define para orientar sua ação.

Nas publicações posteriores, Kohlberg integra em sua cognitive-developmental theory of


moralization elementos novos provenientes de três fontes: suas pesquisas empíricas (incluindo
programas de educação moral), seus estudos teóricos (abarcando a filosofia clássica e
contemporânea) e as críticas de seus comentadores e opositores (cf. Kohlberg, 1983; Colby e
Kohlberg, 1987, vol. 1).
83

Sua teoria mantém a tese central de que há uma seqüência de estágios morais invariantes,
assim como existe essa seqüência para o pensamento lógico-matemático. Como neste, a
estruturação da consciência moral também ocorre em patamares cada vez mais elevados e mais bem
equilibrados, decorrentes da interação do organismo com seu meio. Kohlberg acredita que sua teoria
é mais abrangente do que a de Piaget, porque pressupõe as estruturas lógico-matemáticas para
construir os novos patamares da consciência moral, produzindo uma transformação da relação do
sujeito com a sociedade em cada patamar, impondo reformulação dos próprios conceitos de eu e
sociedade.

Por isso a teoria do desenvolvimento cognitivo de Kohlherg postula que o julgamento moral
coincide com um processo de role taking (assunção de papéis), em que emerge uma nova estrutura
lógica em cada estágio, paralelamente aos estágios do pensamento desenvolvidos por Piaget. Essa
estrutura pode ser formulada como noção de justiça. Em cada patamar, essa estrutura é mais
abrangente, diferenciada e equilibrada que no anterior. Por isso urna estrutura subseqüente é capaz
de julgamentos e argumentações para os quais a estrutura anterior ainda não tinha competência
(Kohlberg, 1976 pp. 163 e 195).

A segunda versão da Teoria da Moralidade de kolhberg (1983)

Em sua nova formulação da teoria dos seis estágios morais, Kohlberg distingue três grandes
níveis da moralidade: o pré-convencional, o convencional e o pós-convencional.
No nível pré-convencional, são diferenciados dois estágios: o estágio 1 [a moralidade heterônoma] e
o estágio 2 [individualismo, intenção instrumental e troca]. Neste nível, a criança é sensível às regras
sociais, distingue o bem e o mal, o certo e o errado, mas interpreta essas caracterizações ou como
conseqüências físicas ou hedonísticas da ação (punição, recompensa, troca de favores), ou como
poder físico dos que formulam as leis que definem o bem, o mal, o certo, o errado.

No nível convencional, Kohlberg diferencia o estágio 3 (expectativas interpessoais, relações e


conformidade interpessoal) e o estágio 4 (sistema social e consciência). Neste nível é considerado
valioso em si preservar as expectativas da família, do grupo ou da nação a que pertence o sujeito.
Trata-se não de mera conformidade mas de lealdade para com as expectativas pessoais e a ordem
social. Trata-se de preservar, apoiar e justificar essa ordem, identificando-se com as pessoas e os
grupos que a compõem.

No nível pós-convencional ou nível regulado por princípios, são distinguidos os estágios 5


(contrato social ou utilidade e direitos individuais) e 6 (princípios éticos universais). Neste nível, há o
esforço visível de definir valores e princípios morais que tenham validade independentemente da
autoridade de grupos ou pessoas que os sustentem e independentemente da identificação do sujeito
com essas pessoas ou grupos. Cada um dos seis estágios é caracterizado, nessa nova versão,
conforme três óticas: o conteúdo do que é considerado correto/certo, as razões apresentadas para
agir corretamente e, finalmente, a perspectiva sociomoral (egocentrismo-descentração).
84

Estágio 1 – Moralidade heterônoma. (a) É considerado correto (moralmente certo) abster-se


de violar regras que acarretem punições, obedecer por obedecer (for its own sake) e evitar danos
físicos em pessoas e em bens (propriedades). (b) A razão dada para defender esses valores consiste
em evitar as punições e as sanções da autoridade. (e) A perspectiva sociomoral adotada é o ponto de
vista egocêntrico. O sujeito não considera o interesse dos outros ou não reconhece que o ponto de
vista deles difere do seu. O sujeito percebe os aspectos físicos da ação e não sua dimensão
psicológica. Não distingue entre a própria perspectiva e a perspectiva da autoridade.

Estágio 2 – Individualismo, intenção instrumental e troca. (a) É considerado correto seguir as


regras somente quando é do interesse imediato próprio, agir para atender às próprias necessidades,
deixando os outros agir da mesma maneira. Também é considerado correto ser leal com os colegas,
manter um trato ou um acordo. (b) As justificativas dadas consistem em servir ao próprio interesse,
atender a uma necessidade pessoal em um mundo em que os outros também têm seus interesses e
necessidades próprias. (c) A perspectiva sociomoral é individualista e concreta, O sujeito está
consciente de que cada um procura realizar seus próprios interesses e estes podem conflitar entre si.
O correto é relativo e depende da perspectiva adotada pelo indivíduo concreto.

Estágio 3 – Expectativas interpessoais mútuas, relações, e conformidade interpessoal. (a) É


considerado correto comportar-se conforme o que as pessoas que nos são próximas esperam,
atender às suas expectativas em papéis como o de filho, irmão, amigo etc. Ser bom é importante e
significa ter bons motivos, preocupar-se com os outros. Significa, ainda, manter relações mútuas
(confiança, lealdade, respeito, gratidão). (b) A razão ou justificativa apresentada para agir
corretamente é a necessidade de ser uma boa pessoa a seus próprios olhos e aos olhos dos demais.
Há um desejo de manter as regras e a autoridade que apóia o comportamento bom estereotipado. (c)
A perspectiva adotada é a do indivíduo em relação com outros indivíduos. Sentimentos, acordos e
expectativas coletivas têm prioridade em relação aos interesses individuais. O sujeito relaciona os
pontos de vista valendo-se da regra de ouro, pondo-se no lugar do outro. Ainda não considera uma
perspectiva generalizada do sistema.

Estágio 4 – Sistema social e consciência. (a) Está certo cumprir com as obrigações
assumidas. As leis precisam ser respeitadas e seguidas, exceto em casos extremos em que elas
entram em conflito com outras normas sociais. Também está certo empenhar-se pela sociedade, pelo
grupo ou pela instituição. (b) As razões apresentadas para justificar tais ações são manter as
instituições como um todo, evitar o desmoronamento do sistema se cada um fizesse o que bem
entendesse, ou, ainda, cumprir as obrigações conforme nos foi ensinado. (c) O sujeito adota uma
perspectiva sociomoral que diferencia o ponto de vista da sociedade do ponto de vista dos acordos
ou motivos interpessoais. O sujeito assume o ponto de vista do sistema que define os papéis e as
regras. As relações individuais são percebidas na perspectiva do lugar no sistema.
85

Estágio 5 – Contrato social ou utilidade e direitos individuais. (a) É correto estar atento ao fato
de que as pessoas defendem uma variedade de valores e opiniões e a maioria desses valores e
regras é relativa ao grupo. Geralmente, essas regras relativas devem ser respeitadas simplesmente
porque fazem parte do contrato social, e isso insere-se no interesse da imparcialidade. Alguns valores
universais, como vida e liberdade, precisam ser defendidos, independentemente da opinião da
maioria. (b) Como razões para agir de maneira moralmente correta são apontadas a obrigação com a
lei, a necessidade de respeitá-la para o bem-estar de todos e o contrato social. Há uma preocupação
com a fundamentação racional das leis e dos deveres segundo o princípio “o maior bem para o maior
número de pessoas”. Existe o sentimento de um compromisso contratual no qual se entrou por livre e
espontânea vontade com relação a família, amigos, companheiros de trabalho. (c) A perspectiva
adotada pelo sujeito é a da prioridade relativa do indivíduo em relação ao social. O indivíduo racional
dá-se conta de valores e direitos prioritários em relação aos vínculos sociais e aos contratos. Integra
as perspectivas por mecanismos formais de acordo, contrato, imparcialidade objetiva. Considera os
pontos de vista moral e legal, reconhece que eles às vezes chocam-se e considera difícil integrá-los.

Estágio 6 – Princípios éticos universais. (a) É considerado correto seguir princípios éticos
auto-selecionados. Leis particulares e acordos sociais são válidos, porque eles apóiam-se em tais
princípios. Quando as leis violam esses princípios, age-se de acordo com o princípio. Trata-se de
princípios universais de justiça: a igualdade dos direitos humanos e o respeito à dignidade dos seres
humanos como pessoas individuais. (b) As justificativas para agir de modo moralmente correto
fundamentam-se na validade de princípios morais universais e na convicção de haver um
compromisso com esses princípios. (e) A perspectiva adotada é a de um ponto de vista moral, isto é,
a de qualquer ser racional que reconhece como natureza da moralidade o fato de que as pessoas são
fins em si mesmos e precisam ser tratadas como tais (cf. Kohlberg et ai., 1983, vol. 1, pp. 18-19).

Comum à antiga e à nova versão da teoria dos seis estágios é o caráter de teoria dura: uma
seqüência invariante de estágios, organizados segundo uma hierarquia, em que cada um forma uma
totalidade integrada que absorve o anterior, mostrando-se esse novo estágio mais equilibrado,
integrado e competente que os precedentes. Isso significa, como significava para Piaget no caso do
pensamento lógico, que crianças, adolescentes ou adultos que atingiram os níveis superiores da
escala de Kohlberg (isto é, da consciência moral pós-convencional) apresentam estruturas cognitivo-
morais mais equilibradas que crianças ou adolescentes em níveis inferiores (da moralidade pré- ou
convencional).

Isso significa, por sua vez, que aquelas têm mais competência intelectual e moral para
resolver conflitos morais que essas, simplesmente porque são capazes de recorrer a todos os
argumentos cognitivamente necessários para optar por uma das alternativas, procurando assumir o
ponto de vista de todos os envolvidos (role taking) e reduzindo danos e efeitos colaterais.

Dessa argumentação teórica resulta urna argumentação moral e prática:


não é somente desejável como é também recomendável atingir o último nível da moralidade (pós-
86

convencional). Alcançá-lo passa a ser um objetivo e uma exigência que decorre da própria teoria e
impõe-se por um moral point of view. Segundo Kohlberg, essa exigência tem uma dupla
fundamentação: a psicológica e a filosófica (cf. Kohlberg, 1981, pp. 219-220).

Do ponto de vista psicológico, amparado pela pesquisa empírica, pode-se afirmar que os
indivíduos procuram alcançar os estágios mais elevados da argumentação racional e da justificativa
moral. Valendo-se do mecanismo da abstraction réfléchissante, sublinhado nos trabalhos do Piaget
maduro, o indivíduo transcende, por necessidade e por impulsos internos, os patamares da
organização mental e moral, atingidos graças à sua interação com o mundo da natureza e da
sociedade. Assim como a criança abstrai de suas experiências com os objetos do mundo externo as
categorias quantidade, qualidade, modalidade ou relação, ela também abstrai das experiências com o
mundo social princípios de ação (moral) que transcendem a experiência da regra social vivida. Por
isso mesmo, Kohlberg pode afirmar que as propriedades de uma regra moral social divergem de um
princípio moral. O princípio moral é o único que pode garantir uma consciência moral integrada, ao
contrário da regra moral social, simplesmente porque as regras morais (como no caso do dilema de
Heinz: “não roubes” e “não deixes um ser humano morrer gratuitaniente”) podem existir e ter
legitimidade social, mesmo estando em conflito entre si ou sendo mutuamente excludentes. Esse não
é o caso do princípio moral. O princípio moral fornece uma regra ou um método que permite priorizar
as regras morais sociais, justificando a opção por uma em detrimento de outra.

A exigência e a necessidade de atingir o nível da moralidade pós-convencional ainda se


legitimam e impõem do ponto de vista filosófico, porque os últimos dois estágios implicam a defesa de
princípios morais universais ou universalizáveis, segundo os princípios da filosofia moral de Kant ou
Rawls. Esse ponto de vista insiste na decisão racional e justificada de reduzir ao mínimo o conflito
entre duas regras morais, procurando pôr em prática a mais desejável e consistente (isto é, a menos
conflitante) para todos, segundo o princípio universal de justiça.

Há, portanto, na visão de Kohlberg, uma convergência entre a teoria psicológica da


moralidade e a filosofia da moralidade de tradição kantiana. A psicologia é capaz de comprovar
empiricamente a existência de diferentes estágios da consciência moral que seguem numa seqüência
invariável, apresentam uma estrutura integrada em cada estágio, os quais ordenam-se
hierarquicamente. A psicologia ainda fornece uma explicação para essa gênese: trata-se de fatores
biológicos (de hereditariedade e maturação), de fatores sociais (de socialização e transmissão
cultural) e, finalmente, de mecanismos de auto-regulação e equilibração interna que conjuntamente
promovem a psicogênese das estruturas cognitivas e da consciência moral.

Paralelamente à explicação psicológica, Kohlberg admite a justificativa filosófica que


converge com as tendências (empíricas) apontadas pela psicologia. Kohlberg fala de um isomorfismo
da psicologia e da filosofia moral. Enquanto a psicologia estaria descobrindo os pontos de vista
morais, a filosofia ocupar-se-ia dos contextos de justificativas desses pontos de vista. “Isso implica
que a justificativa do filósofo em favor de um estágio do raciocínio moral mais elevado integra-se com
87

a explicação do psicólogo do movimento em direção a esse estágio, e vice-versa. A hipótese de


isomorfismo é plausível se acreditarmos que o ser humano em desenvolvimento e o filósofo moral
estão empenhados, fundamentalmente, na mesma tarefa moral” (Kohlberg, 1981, p. 195).

Piaget admite um paralelismo entre a psicogênese do pensamento lógico e a psicogênese da


moralidade, conforme nossa exposição no tópico sobre Piaget, ao passo que Kohlberg não se
contenta com esse mero paralelismo. O atingimento do pensamento lógico-formal é uma condição
necessária mas não suficiente para o atingimento do nível da moralidade pós-convencional. O
equilíbrio moral nesse nível pressupõe duas condições ou processos ausentes no campo do
pensamento lógico-formal. “Primeiro, o julgamento moral impõe a necessidade do role taking, isto é,
da tomada do ponto de vista dos outros, concebidos como sujeitos, e da coordenação desses pontos
de vista.” E, segundo, “os julgamentos morais equilibrados envolvem princípios de justiça ou fairness”
(Kohlberg, 1981, p. 194). Dessas duas condições decorre uma nova qualidade para as estruturas da
consciência moral que pressupõem estruturas lógicas novas e mais complexas que as estruturas do
pensamento formal.).

Fiel a Kant, Rawls, Dewey, Mead e outros, Kohlberg atribui à razão prática, ou seja, à
consciência moral pós-convencional, orientada pelo princípio da justiça, um valor moral superior à
razão téorica, ou seja, à estrutura do pensamento lógico-formal, porque trata-se de um raciocínio
(moral) mais complexo e diferenciado do que o raciocínio lógico. Não há nem paralelismo nem
equivalência; há diferença de grau e qualidade. O raciocínio moral é um raciocínio mais rico, pois
envolve, além dos objetos e de suas coordenações, os sujeitos, seus pontos de vista e suas relações
entre si e a consideração dos efeitos de muna ação sobre todos os participantes da situação

170
Quadro Resumo dos estágios de Kohlberg

α) No nível pré-convencional temos:

estádio 1: “a orientação de castigo e de obediência”;

estádio 2: “orientação instrumental e relativista”;

β) No nível convencional:

estádio 3: “a concordância interpessoal ou orientação a ser bom menino ou boa menina”;

estádio 4: “a orientação da lei e da ordem”;

γ) No nível pós-convencional:

estádio 5: “a orientação legalista do contrato social”;

estádio 6: “a orientação por princípios universais e éticos”.

170
Cf. JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola, 2006. p. 79.
88

Anexo 03 [Excerto]

Sócrates e o Método Dialógico171

172
SOBRE A MAIÊUTICA :

“- E não ouvistes, pois, dizer que sou filho de uma parteira muito hábil e séria, Fenareta? –
Sim, já ouvi dizer isso. E ouvistes também que me ocupo igualmente da mesma arte? – Isso, não. –
Pois bem, deves saber que é verdade [...] Reflete sobre a condição da parteira e compreenderás
mais facilmente o que quero dizer. Tu sabes que nenhuma delas assiste as parturientes quando ela
mesma se encontra grávida ou parturiente, mas unicamente quando não se acha em estado de dar a
luz [...]. E não é natural e necessário que as mulheres grávidas são mais bem auscultadas pelas
parteiras que por outras? – Certamente. – E as parteiras têm também remédio e podem, por meio de
cantilenas, excitar os esforços do parto e fazê-los, se quiserem, mais suaves, e aliviar as que têm um
parto muito laborioso, e fazer abortar quando sobrevêm um aborto prematuro? – Assim o é,
efetivamente. – Ora bem, toda a minha arte de obstetra é semelhante a essa, mas difere enquanto se
aplica aos homens e não às mulheres, e relaciona-se com as suas almas parturientes e não com os
corpos. Sobretudo, na nossa arte há a seguinte particularidade: que se pode averiguar por todo meio
se o pensamento do jovem vai dar à luz a algo de fantástico e falso, ou de genuíno e verdadeiro. Pois
acontece também a mim, como às parteiras: sou estéril de sabedoria; e o que muitos têm reprovado
em mim, que interrogo os outros, e depois não respondo nada a respeito de nada por falta de
sabedoria, na verdade pode me ser censurado. E é esta a causa: que Deus me obriga a agir como
obstetra, porém veda-me dar à luz. E eu, pois, não sou sábio, nem posso mostrar nenhuma
descoberta minha, gerada por minha alma; mas os que me freqüentam, a princípio (alguns também
em tudo) ignorantes; mas depois, adquirindo familiaridade, como assistidos pelo deus (daimon),
obtêm proveito admiravelmente grande, como parece a eles próprios e aos outros. E, não obstante, é
manifesto que nada aprenderam comigo, mas encontraram, por si mesmos, muitas e belas coisas
que já possuíam [...] É verdade que os meus familiares passam justamente pelo mesmo estado das
parturientes, porque sentem as dores do parto e estão cheios de angústia, dia e noite, ainda maiores
do que as daquelas. Essas dores a minha arte as pode provocar e fazer cessar [...] Confia, então, em
mim, como filho de parteira e parteiro que sou; e às perguntas que eu te fizer, trata de responder da
maneira que puderes. E se depois, examinando alguma das coisas que disseres, a julgar imaginária e
não verdadeira, e por isso separá-la e a dissecar, não te ofendas, como fazem as primíparas com
seus filhinhos”.
Sócrates, filósofo e parteiro de almas, inaugurou os debates éticos no Ocidente propondo o
tema do autoconhecimento. Qual é o parto que realizam as almas? O parto da verdade [exercício
maiêutico], através da explicitação dos conceitos, segundo as perguntas sugeridas pelo filósofo. Ao

171
Cf. Platão, Teeteto, 148-151.
172
Maiêutica ou a arte de auxiliar os discípulos no partureio da verdade.
89

contrário do sofista [professor da época de Sócrates], auto-intitulado sábio e capaz de ensinar a


virtude e, sobretudo, os truques oratórios e legislativos, o filósofo – amigo da Sabedoria – nada
ensina. Apenas orienta o interlocutor a encontrar em si mesmo, a verdade escondida na sua alma.

Questionamentos [a partir do texto]:

1) Por que Sócrates nada ensina aos seus interlocutores?


2) No que consiste o método socrático?
3) O que devemos compreender pela máxima socrática: “Conhece-te a ti mesmo!”

Aplicação para o tema da avaliação moral:

a) Realmente conhecemos a nós mesmos? Ou realizamos esforço no sentido de nos autoconhecermos?


b) Avaliamos a nós mesmos com o mesmo rigor que avaliamos as outras pessoas?
c) Avaliamos os outros e a nós mesmos com os mesmos critérios? Quais são esses critérios? Conheço-os?
d) Por que, geralmente, avaliamos com tanta facilidade os outros e com imensa dificuldade a nós mesmos?
e) No que consiste a tarefa de conhecer a si mesmo?

Observação: as questões não precisam ser respondidas [desejam apenas orientar a leitura do presente texto,
ligando-o com o tema da avaliação moral].
90

Anexo 04 [Texto Complementar]


O Dasein e a Técnica moderna
173
O enigma da Sociedade Industrial

Procuramos, resumidamente, propor o diagnóstico de Heidegger sobre a questão da Técnica


moderna. Realizamos estudo da carta-resposta ao Prof. Dr. Takehiko Kogima, publicada na Revista
Begegnung em 1965. Com simplicidade e clareza, Martin Heidegger procura responder a três questões
proposta pelo doutor japonês: 1 O que significa europeização do mundo? O que designa a perda da
essência humana? 3 Onde revela-se ainda um caminho para a dimensão própria do homem? O conteúdo
das respostas, além de convidar, de modo aberto, à importante reflexão sobre o sentido da Técnica
moderna, é portador de importante significado ético; indicando a comum responsabilidade sobre o destino
no planeta que compartilhamos, sinalizando o lugar onde se esconde possibilidade de recuperação do
Cuidado, esse modo-de-ser do homem.

Diante do enigma da Técnica somos convidados a operar um distanciamento de sua órbita. O que
tal atitude significa?

174
Diante do enigma da técnica , retornando à indagação sobre o sentido da existência num mundo
desconstituído, é interessante meditarmos sobre as respostas de Martin Heidegger às indagações do
175
professor Kojima . Ao ser inquirido sobre o que significa a europeização do mundo, Heidegger identifica
esse processo com a gradativa ocidentalização do planeta, caracterizada pela presença operativa da
técnica que, ao descerrar as forças ocultas da natureza, dominando essas energias, transforma todas as
coisas em mercadoria.
O Filósofo da Floresta Negra, ao ser questionado sobre a perda da essência do humano, enuncia –
na impossibilidade de o homem da era da técnica tornar-se aquilo que, até agora, não pôde ser – a raiz
dessa perda. Assim, o Dasein, desde sua finitude, ao responder ao projeto da técnica, ao ser interpelado
pela técnica a explorar racionalmente a natureza – esse fundo de reserva calculável e manipulável –
esquece de si mesmo, vê-se impedido de cuidar. Impedido de cuidar, não pode realizar sua humanidade,
tornando-se, tal qual a natureza que manipula, um objeto descartável.

173
Cf. HEIDEGGER, Martin. O Enigma da Sociedade Industrial. Trad. Ernildo Stein. In: STEIN, Ernildo. Uma
Breve Introdução à Filosofia. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. p. 193-202.
174
No que consiste o enigma da técnica moderna? Se a pergunta pela técnica moderna não encontra satisfatória,
isso não significa que devamos desistir de indagar. Qual é o sentido da técnica moderna? A Técnica moderna,
ultrapassando o conceito clássico de técnica [arte ou fazer com autoridade] é o resultado da aliança estabelecida
entre o pensamento que calcula e domina [ciência moderna] e a técnica. Ademais, se não podemos viver sem a
Técnica moderna, ao mesmo tempo, não conseguimos lidar satisfatoriamente com ela. Nisso consiste o enigma
da Técnica moderna: perguntamos por um sentido que, ainda, não compreendemos. Aliás, o poder da Técnica
tem-se revelado superior às capacidades do Dasein humano destiná-la. Entre o ser-aí [homem] e o mundo, a
técnica se ergue como barreira impeditiva do cultivo desse mundo. Se não podemos viver sem a técnica e não
podemos viver com ela, por que, então, insistir na indagação? Por que essa é a tarefa que caracteriza o ser
humano: a capacidade de refletir, meditar, indagar pelo sentido das coisas, do mundo, da existência. Enquanto
insistirmos no exercício do filosofar, ainda seremos humanos.
175
Cf. HEIDEGGER, Martin. O Enigma da Sociedade Industrial. In: STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à
Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2002. p. 194-202.
91

Prosseguindo, onde se revela, ainda, um caminho à dimensão própria do homem? Se o poder da


técnica domina a totalidade do mundo? O poder da interpelação produtora, ou o poder da técnica, oculta e
revela aquilo que é próprio e característico do homem. Qual movimento, então, que precisamos
empreender na direção da recuperação da essência do homem? Heidegger anuncia: é necessário dar um
passo atrás. No que consiste esse passo? Não significa uma fuga do pensamento para passadas eras,
antes de tudo, não significa um renascimento da Filosofia Ocidental. Tampouco significa o regresso em
oposição ao progresso avassalador que a tudo cultiva e transforma. O que, então, significa esse passo
para trás? O passo para trás é, antes de tudo, um passo para fora da órbita em que acontecem o
progresso e o regresso da atividade produtora, da atividade da técnica. Nesse passo para trás, tornar-se-á
visível o poder da técnica em transformar todas as coisas e ao próprio homem em objeto. De
conseqüência, o passo para fora da órbita da técnica, permite pensá-la e, ao pensá-la, pensar o lugar do
homem nesse processo. Ora, a técnica solicita o empenho do homem, o uso de sua inteligência e de suas
capacidades. O apelo realizado pela técnica ao Dasein na direção do cultivo ou exploração técnica do
mundo, atesta, conjuntamente, um dado revelador. Essa solicitação esconde a dimensão do cuidado que,
velado, precisa ser redescoberto. O cultivo técnico do mundo oculta, portanto, a dimensão do cuidado. Na
recuperação do cuidado, velado no cultivo técnico do mundo, se encontra a esperança de tornar,
novamente, esse mundo habitável, compartilhando-o, então, com todos os seres humanos e com todas as
criaturas que o tornam belo e pleno de significados. O Dasein precisa enfrentar o desafio de cultivar o
mundo na dimensão do cuidado, na perspectiva da sua habitabilidade. Então, recuperada a dignidade do
mundo, o Dasein poderá ser o que até agora não conseguiu: ser ele mesmo, enquanto finito, cuidante e
responsável.
92

Anexo 05 [Texto Complementar]

SERENIDADE
[Gelassenheit]

Sobre o uso prudente dos utensílios técnicos


176
Martin Heidegger no texto Serenidade, publicado em 1959 , discute o impacto da técnica
moderna sobre nossas vidas. Através do pensar, exercício humano por excelência, visitamos o
mundo e significamos nossas existências. Entretanto, vivemos época na qual, somos, muitas vezes,
177
pobres-em-pensamento, ficamos, facilmente, sem-pensamentos . Qual é a causa da indigência de
pensamento? Tomamos conhecimento de tudo pelo caminho mais rápido e mais econômico, mas,
178
rapidamente tudo é olvidado .
Na aurora do século XXI, cidadãos de um mundo globalizado em vias de mundialização,
deslumbrados com as conquistas das ciências aplicadas, saturados de informação, entretanto,
179
usualmente, pobres de conhecimento , transitamos fascinados pelo hipertexto e, encantados por
imagens contidas em milhões de megapixels – já não habitamos o mundo, mas sua representação
180
virtual .
181
O homem atual está, pois, em fuga do pensamento , entrementes, paradoxalmente, nega
essa fuga. Dirá, com plena razão, que vivemos num período de realizações formidáveis, avanços
sequer sonhados pelos homens que nos antecederam. São tantas as pesquisas em andamento, são
tantas as descobertas e aplicações que, apaixonadamente, somos tentados a negar a fuga do
pensamento. Sem dúvida, esse dispêndio de sagacidade e reflexão, foi muito útil. Entretanto, não é o
pensamento operativo que negamos. O pensamento que calcula, capaz de medir e projetar, apto em
dominar preditivamente as forças ocultas da natureza – transformando todas as coisas em objetos
úteis e mercantilizáveis – é cotidianamente louvado. Todavia, não é a única forma de pensar. Existe
outro tipo de pensamento, o pensamento que medita, que indaga pelo sentido das teorias, conceitos

176
Ver HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituo Piaget, 2000 (Verlag,Günter Neske Pfullingen, 1959). Trata-se
de oração proferida pelo filósofo suevo por ocasião de homenagem ao seu conterrâneo, o músico Conradin Kreutzer. No
referido texto Heidegger avalia o impacto da Técnica moderna sobre nossas vidas, denunciando uma fuga do pensamento,
mas, ao mesmo tempo, indicando caminhos para lidarmos adequadamente com os „utensílios técnicos‟.
177
Cf. ibidem, p.11.
178
Ibidem, p.11.
179
Todos os dias somos estimulados por informações veiculadas por diferentes mídias e, até mesmo, nos exercícios escolares.
Entrementes, incontáveis vezes, não analisamos essas informações, não indagamos sobre sua origem, não realizamos a crítica
dos conceitos, não investigamos como os fenômenos veiculados são interpretados. Ora, é preciso destacar: informação não é
conhecimento. O conhecimento é exercício crítico de investigação, exigente, reflexivo. Exercício que convida ao estudo, à
solidão, ao trabalho interpretativo e ao debate intersubjetivo – segundo argumentos validados coerentemente. Necessitamos,
portanto, transitar da sociedade da informação à sociedade do conhecimento. A revolução informática nos garantiu acesso à
informação, mas como trabalhá-la, como torná-la conhecimento significativo, operativo, transformador? Nessa tarefa,
contamos, apenas, com o esforço pessoal e intersubjetivo do pensamento reflexivo, sem o qual estaremos caminhando na
direção da automação e não da autonomia, da autarquia e da comum responsabilidade .
180
Num tempo acelerado pelas mediações tecnológicas, de admiráveis avanços informáticos, já não vivemos no tempo da
presença [kairós] e na gratuita acolhida do mundo e dos outros [ser-no-mundo-com]. A partir dessa constatação,
legitimamente, podemos indagar: quem, de fato, somos? O resultado da adição dos papéis sociais que representamos num
tempo que nos consome? Por que executamos tantas tarefas? Vivemos no tempo acelerado do relógio eletrônico ou no tempo
da presença? O que significa habitar o mundo? Por que a habitação do mundo reivindica o cuidado e o cultivo desse mesmo
mundo? Por que a técnica impede o contato com o mundo e, desse modo, a responsabilidade?
181
Cf. Op. Cit. , 2000, p. 12.
93

e práticas. O pensamento negligenciado, portanto, não é o pensamento que calcula, mas o


pensamento que medita.
Existem, pois, duas formas de pensamento, igualmente importantes: o pensamento que
medita e o pensamento que calcula. Contudo, o pensamento que calcula, efetivamente, não exerce a
atividade do pensamento em caráter estrito, pois não pergunta pelo sentido, não permanece junto às
coisas, acolhendo-as em sua manifestação originária. O pensamento que calcula, ao representar
esquematicamente as coisas, as esvazia de conteúdo, obstaculizando, assim, a relação do homem
com o mundo. Esse pensamento útil e operativo, sobretudo, é incapaz de pensar a si mesmo, de
indagar a si mesmo.
Lá, onde o pensamento que calcula encontra seus limites e contradições, brota o pensamento
que medita. O pensamento que medita é um pensamento que reflete, que busca dar conta das
razões do existir. O pensamento que medita habita o mundo, acolhe o significado e pergunta,
incessantemente, pelo significado de todas as coisas.
Experimentamos um des-enraizamento, pois, destituídos da capacidade de pensar
autenticamente, transferimos à técnica a tarefa de habitar o mundo responsavelmente. Na era
atômica, acreditamos que a ciência [ou seja, a moderna ciência da natureza] é um caminho para uma
182
vida mais feliz do homem . Mas, onde se assenta tal afirmação? Na pretensão de que, através do
domínio de todas as regiões do ser pela ciência, controlaremos a vida e criaremos condições para
resolver todos os enigmas e males que afligem o ser humano.
Nesse sentido, o poder oculto da técnica moderna, determina a relação do homem com tudo
aquilo que existe. A natureza, transformada num único posto de abastecimento gigantesco, está a
183
serviço da técnica e indústria moderna . Exemplo da operatividade e capacidade de intervenção do
184
pensamento que calcula, é o domínio da energia atômica . Mas, o que realmente nos preocupa?
Diante da bomba atômica, que poderia um dia varrer a vida humana da face da terra, é motivo de
atenção nosso despreparo para lidar com a quantidade gigantesca de informações e possibilidades
proporcionada pelos avanços tecnológicos.
No entanto, o que é mais inquietante, não é o fato de o mundo se tornar cada vez mais técnico.
Extremamente preocupante é o fato de o homem não estar preparado para essa transformação do
mundo, é o fato de ainda não conseguirmos, através do pensamento que medita, lidar com aquilo que
185
está a emergir . O pensamento que medita exige que não permaneçamos presos [unilateralmente]
a uma representação; que não continuemos a correr em sentido único na direção dessa
representação [do mundo e do homem] justificadora do poder do pensamento instrumental. O
pensamento que medida exige que perguntemos pelo sentido da técnica e sobre a legitimidade de
sua onipresença em nossas vidas. Afinal, se não podemos viver com a técnica e, paradoxalmente,
não podemos viver sem ela, como devemos pensar um modo de relação adequado com os objetos
técnicos?

182
Cf. HEIDEGER, 2000, p. 18.
183
Ibidem, p.19.
184
Lembremos da utilização da Bomba atômica sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, ato que encerrou a segunda guerra
mundial.
185
Op. Cit., p.21.
94

Podemos utilizar os objetos técnicos, mas, ao utilizá-los, permanecer livres deles. Podemos
utilizar os objetos técnicos tal como devem ser utilizados. Podemos utilizá-los com liberdade, sem nos
tornarmos seus escravos. Podemos dizer sim e não aos objetos técnicos, impedindo que nos
186
absorvam e desconstituam nossa relação responsável com o mundo. Se dissermos sim e não aos
objetos técnicos, usando-os prudentemente, nossa relação com o mundo tornar-se-á tranqüila.
Deixemos os objetos técnicos entrarem em nosso mundo cotidiano e, ao mesmo tempo, os deixemos
fora, ou seja, permitamos repousarem em si mesmos.
A atitude frente os objetos técnicos [dizer sim e não] – denominemos serenidade para com as
187
coisas . Todavia, se ainda não compreendemos o poder oculto da técnica, é necessário indagar
188
pelo sentido do fazer técnico e aprender a lidar inteligentemente com os utensílios técnicos . A
serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério asseguram perspectiva de novo
enraizamento, que permitirá existir com responsabilidade, que evitará transferirmos à técnica – nossa
comum tarefa habitar o mundo.
Permanece, entretanto, um perigo. No que consiste tal perigo? De acreditarmos que o único
pensamento legítimo, capaz de responder às questões humanas, é o pensamento que calcula.
Contudo, em todos os lugares, convidemos à reflexão, pois somente o pensamento que medita é
capaz de dar conta do sentido, inclusive do significado, implicitamente aceito, de que a técnica
moderna é o único lenitivo aos problemas do homem. Exerçamos, então, o pensamento na sua
essência, insistindo e pergunta pelo sentido radical de todas as coisas.

APLICAÇÃO

1 O desenvolvimento tecnológico alterou a percepção de nós mesmos, nossa compreensão do


mundo e o modo de nos relacionarmos com as outras pessoas?

2 Somos capazes de utilizar os objetos técnicos adequadamente ou nos deixamos dominar por eles?

3 Quais são os sinais positivos e os sinais negativos da onipresença da técnica em nossas vidas?

186
HEIDEGGER, 2000, p. 23-24.
187
Ibidem, p.24.
188
Cumpre destacar que Heidegger, gradativamente, percebe que o poder da técnica é superior ao poder do Dasein histórico
[homem] em desconstituí-lo. Mas, é tarefa intransferível realizar o ato de pensar, insistir e renovadamente perguntar.
95

Anexo 05 [Artigo]

". o legal e o bom senso


proibida pelo diretor do hospital, certamente preocupado
José J. CAMARGO· com a situação de extrema vulnerabilidade judicial em
que se encontraria o hospital se ocorresse alguma
complicação.
Nas emergências médicas, é frequente a chegada de Isso posto, respeitadas as exigências legais e obviados
pessoas em parada cardíaca. Antes de discutir a duração os caminhos que propiciariam demandas milionárias,
do evento e os possíveis danos decorrentes disso, os como que por encanto, todos ficaram aliviados. Esse tipo
médicos simplesmente põem em prática as modernas de alívio de quem sabe que a perspectiva de ser
técnicas de ressuscitação, e vários pacientes se processado não encanta o futuro de ninguém, deste lado
recuperam e alguns deles terão sequelas neurológicas do mundo ou do outro.
secundárias, em geral proporcionais ao tempo em que o Difícil saber onde o ético é ultrapassado pelo legal, mas
cérebro ficou sem oxigenação adequada. ao se discutirem os riscos de processo em caso de
Nos EUA, foram tantas as demandas judiciais contra complicação, o mais degradante foi perceber que
médicos e hospitais com afã de buscar alguma ninguém sequer cogitou do destino da menina de apenas
copensação financeira pelas sequelas eventualmente 12 aninhos cuja vida dependia desse transplante e que
apresentadas, que se chegou ao cúmulo: os médicos agora morrerá da sua doença, sem possibilidade de que
foram desaconselhados a prestar esse tipo de alguém seja considerado culpado pela sua morte.
atendimento. De tal sorte, que Por favor, que ninguém suponha que estes relatos
A vida e a as pessoas que chegavam às pretendam contestar o acesso de cada indivíduo ao
emergências em parada cardíaca exercício pleno do direito como cidadão, mas:
possibilidade eram consideradas mortas, para – quando as atitudes médicas passam a ser
de resgatá-Ia evitar incomodações futuras. Ou monitoradas pelos departamentos jurídicos;
perderam em seja, a vida e a possibilidade de
resgatá-la perderam em
– quando o consentimento informado pesa mais do
que a confiança na relação médico-paciente;
importância importância para o temor do – quando exames caros e irracionais são solicitados
para o atropelamento judicial, que porque se tomaram imprescindíveis na estratégia
passou a reger as relações entre defensiva do médico;
temor do os médicos e os pacientes, – quando todas as complicações possíveis são
atropelamento progressivamente mais rígidas e catalogadas preventivamente pelo cirurgião, gerando
impessoais. uma ansiedade absurda e desnecessária;
judicial. No enfrentamento do absurdo, – quando a figura abjeta do advogado de porta de
criou-se a lei do Bom ambulância passa a ser vista com naturalidade no cenário
Samaritano, que exime médicos e hospitais de qualquer dos hospitais públicos;
possibilidade de demanda indenizatória quando o serviço E quando, em decorrência desses elementos, a defesa
for prestado em condição de extremo desespero. da vida passa a ser um mero detalhe no conflito dos
Recentemente, fomos convidados para realizar um interesses econômicos, alguma coisa antigamente
transplante de pulmões com doadores vivos em um país identificada como bom senso foi atropelada na busca
do Oriente Médio. Um caso grave, em uma menina de 12 obstinada do que se convencionou chamar de cidadania.
anos, com um problema pulmonar severo, em que os pais E não sejamos ingênuos de supor que uma civilização
seriam os doadores. que se ampara em leis que prescindem de racionalidade
Todos os detalhes técnicos acertados, viagem marcada, possa vir a ser mais democrática ou mais justa!
e chegou um comunicado anunciando que, devido à
demora burocrática em liberar a autorização para que um • Médico e professor universitário [Zero Hora, sexta/ 09 / Março/ 2009].
médico estrangeiro atuasse no país, a operação tinha sido
96

Anexo 06 [Artigo]

A cor do dinheiro*

“Até agora não vi a cor do dinheiro”. O Os norte-americanos, pragmáticos, usam


que quer dizer exatamente essa expressão? Qual é notas discretas e muito parecidas. Os dólares são
a cor do dinheiro? As cédulas aqui no Brasil têm quase monocromáticos. Não importa se é 1, 20 ou
cores variadas: azul, amarelo, verde, vermelho, 100 dólares. A cor é praticamente a mesma:
laranja. Talvez se pudesse dizer também “a cara do “verdinhas”. O que varia, o que faz a diferença é o
dinheiro”, pois em geral ele tem algum rosto número que vem impresso. É objetivo, mas fica
estampado. sem graça.

Antigamente nossa moeda oficial – o Desde a adoção do Real, o dinheiro


Cruzeiro – tinha a cara da Princesa Isabel, do brasileiro tomou uma outra dimensão. Além de
Getúlio Vargas, do Dom Pedro II, do Tiradentes, do marcar o fim da inflação, ficou bonito e
Marechal Deodoro e de outras figuras da nossa ecologicamente correto, fazendo uma homenagem
história política. Mais antigamente ainda, as coisas à nossa fauna. Beija-flor, tartaruga de pente, garça,
eram pagas em Réis. Não, não é do meu tempo, arara, mico leão dourado, onça pintada, garoupa.
sou um pouco mais jovem. Agora, não me pergunte por que uma garoupa vale
10 araras. Não faço a menor ideia.
Acompanhei as mudanças monetárias e os
desarranjos da economia brasileira a partir da Pelo mundo afora há cédulas lindas, como
segunda metade do século 20. Lembro quando o Franco da Polinésia Francesa, o Dólar Antártico, o
apareceu o Cruzeiro Novo, que era igual ao velho, Guilder Holandês, o Tenge do Cazaquistão e a Libra
só que trazia um carimbo para identificar o Egípcia. Coloridas, cheias de desenhos e figuras
inacreditável: 1000 passou a valer 1. Depois veio o exóticas. Pode ser que não tenham tanto valor
Cruzado, que também precisou passar por uma comercial, mas com certeza têm um grande valor
renovação. Essa fase do Cruzado Novo é a que eu artístico. Não sou colecionador, mas guardo com
mais gosto, pois foram homenageados Machado carinho cédulas de alguns lugares. Prefiro ficar
de Assis, Portinari, Carlos Drummond de Andrade admirando a obra de arte no papel moeda, do que
e Cecília Meireles. E, justiça seja feita, eles não têm as coisas que ela poderia ter comprado. Loucura?
culpa se o plano econômico não funcionou. Não acho. Tudo é uma questão de valores.

*Por Kledir Ramil [Zero Hora, 07 / Setembro / 2009].


97

Anexo 07 [Artigo]

Lixo e consumismo*

O estranho caso dos carregamentos de frascos, que a própria indústria do vidro


lixo que têm chegado aos portos brasileiros, readquiria e reciclava, está sendo substituído
procedentes da Europa, e que estão desafiando por um invencível plástico, que, entupindo os
a argúcia das aduanas e da própria Polícia esgotos e os rios, promete resistir até o fim dos
Federal desperta surpresa a princípio, mas não tempos. Já nem falo da multidão de utensílios
parece envolver maiores mistérios. É o Primeiro de utilidade discutível, aos quais, afinal, nem
Mundo livrando-se da carga insuportável de sabemos dar um destino, quando se tornam
seus rejeitos e desperdícios, e empurrando-os, inservíveis. Nem refiro a massa de roupas
com dissimulação, para os mercados abertos do supérfluas que abarrota os armários, e que
subdesenvolvimento. Agentes da Receita periodicamente precisa ser descartada, ou por
informam que a Máfia italiana já cultivava essa contingências da moda ou pela ação destrutiva
prática, despejando na África os seus descartes. dos insetos. Isso fez com que o lixo doméstico,
Nós, brasileiros, já tivemos a experiência, em todos os países ditos civilizados, tenha
disfarçada sob o manto da solidariedade aumentado além das previsões, a ponto de ser
humana: depois de uma das guerras do último hoje um dos mais sérios problemas da
século (não me lembro se a da Coreia ou a do administração urbana.
Vietnã), o exército americano destinava aos Que fazer com o lixo, afora a receita básica de
pobres do Brasil os fardamentos danificados de incinerá-lo e transformá-lo em adubo ou em
seus combatentes. O consumismo desenfreado aterro? Tais soluções podem ser praticadas
que os economistas keynesianos descobriram quando em pequena escala. Mas quando as
como remédio para as crises de subemprego e sobras e descartes de uma cidade alcançam
de recessão trouxe como consequência indireta milhares de toneladas-dia, aí entram em cena
um espantoso crescimento do lixo urbano. as soluções malucas, como essa de despejar a
Especialmente as embalagens de papel, de carga no território dos desprevenidos ou
cartolina ou de plástico, que enfeitam e tornam subdesenvolvidos. Trata-se agora do mais
atraente toda espécie de mercadorias, estranho dos contrabandos. Articula-se um
locupletam diariamente nossos recipientes de negócio de exportação. Preenche-se uma fatura
lixo doméstico. com mercadorias viáveis e negociáveis, mas
Minha geração pôde testemunhar, de enchem-se os contêineres com lixo industrial
corpo presente, todas essas transformações ou doméstico.
geradas pela paixão do consumo e pela Em outros tempos (não sei se a norma
revolução tecnológica. O leite, que o prevalece), as faturas de exportação deviam ser
fornecedor despejava direto em nossa panela, visadas pelos cônsules do país importador.
vem-nos agora em caixas de papelão Teoricamente estes verificavam a
descartáveis. A carne, que saía do açougue para correspondência entre a fatura e a mercadoria
a sacola de compras, embrulhada quando expedida. Imagino que o volume das cargas e
muito numa folha de papel, está agora envolta dos negócios tenha levado ao desuso essa
em resistentes embalagens plásticas. Esse prática de boa cautela. Mas, diante da
material domina tudo, enrola os legumes e as velhacaria desses exportadores de lixo, seria
frutas na feira e no mercado, resguarda até os necessário reativá-la. Pelo menos para que não
cortes de frangos, que outrora recebíamos entupam nossos portos com lixo hospitalar e
vivos, da capoeira do vendedor para o nosso outras oferendas menos dignas...
pátio. Mesmo o vidro das garrafas e dos

*Lixo e consumismo, por Sérgio da Costa Franco [Zero Hora, 12 / Junho / 2009].

scostafranco@hotmail.com

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