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Ideologias Nacionais:
O problema dos patrimônios culturais*
José Reginaldo Gonçalves•
*
Este artigo foi produzido como parte de um projeto de pesquisa sobre nacionalismo e ideologias de patrimônio
cultural que venho desenvolvendo no Departamento de Antropologia da Universidade de Virginia visando a
elaboração e defesa de uma dissertação de doutorado. Esse trabalho tem sido possível graças a uma bolsa de
doutoramento concedida pelo CNPq (20.0158/83). Em 1987, quando em trabalho de campo no Brasil, recebi o apoio
e o incentivo de diversas pessoas. Entre elas, gostaria de agradecer particularmente ao prof. Gilberto Velho, do
PPGAS do Museu Nacional e membro do Conselho Consultivo da SPHAN; prof. Rafael Carneiro da Rocha,
consultor jurídico da SPHAN; prof. Dora Alcântara, responsável pelo Setor de Tombamento da SPHAN; aos
técnicos e funcionários da SPHAN. Naquele período, tive a oportunidade de apresentar meu projeto em um
seminário realizado no Cpdoc. Gostaria de agradecer o convite e também as sugestões e críticas que me foram
apresentadas na ocasião, em especial por Lúcia Lippi Oliveira, Ricardo Benzaquen de Araújo e Helena Bomeny.
Finalmente, meus agradecimentos ao prof. J. Cristopher e ao prof. Richard Handler, ambos do Departamento de
Antropologia da Universidade de Virginia, os quais têm sido nos últimos anos meus interlocutores constantes.
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José Reginaldo Gonçalves é professor-adjunto de antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
UFRJ. Mestre em antropologia pelo PPGAS do Museu Nacional, encontra-se atualmente nos Estados Unidos, na
condição de doctoral candidate do Departamento de Antropologia da Universidade de Virginia, onde desenvolve
projeto sobre nacionalismo e ideologias de patrimônio cultural.
No entanto, essa oposição, nascida com a modernidade, é desafiada por algumas das
modernas formas de arte, especificamente o cinema e a fotografia. Assim, se a existência do
original é a condição necessária para o conceito de autenticidade, no caso de um negativo
fotográfico, em que é possível fazer um sem-número de cópias, não faz sentido perguntar pela
cópia autêntica.
Segundo Benjamin, em decorrência mesmo desse desafio, a "aura" tende a desaparecer:
"... that which withers in the age of mechanical reproduction is the aura of the work of art"
(1969: 221). A "aura" de um objeto está associada a sua originalidade, a seu caráter único e a
uma relação genuína com o passado. Benjamin reserva as noções de singularidade (uniqueness) e
permanência para designar esses aspectos, em contraste com a reprodutibilidade e a
transitoriedade dos objetos "não-auráticos". Estes últimos, exatamente por serem reproduzidos e
transitórios, não guardam qualquer relação orgânica e real com um passado pessoal ou coletivo.
Nesse contexto de desaparecimento da aura, a própria oposição autêntico/inautêntico tende a
perder sua relevância.
Meu objetivo é explorar essas idéias no contexto dos chamados "patrimônios culturais".
Acredito que, a exemplo do que ocorre com as obras de arte na modernidade, os "bens culturais"
que compõem esses patrimônios, em função mesmo de sua reprodutibilidade técnica, tendem a
perder sua "aura" e a desenvolver o que eu chamaria de uma forma "não-aurática" de
autenticidade. Esse fato pode ser usado para problematizar a autenticidade ou realidade de
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Em um pequeno artigo sobre a autenticidade, baseado no trabalho de Lionel Trilling, Richard Handler chama a
atenção para a presença desta categoria nas ideologias étnicas, nacionais, e mesmo nas teorias antropológicas e no
discurso dos cientistas sociais em geral (1986). Em um artigo sobre "Celtic ethnic kinship and the problem of being
English", Marion MacDonald aponta para o mesmo problema (1986). Ainda sobre essa questão, vale a pena lembrar
o trabalho de Adorno, The jargon of authenticity (1975).
Colonial Williamoburg
Colonial Williamsburg pode ser considerada, nos Estados Unidos, como um modelo -
negativo ou positivo, segundo o ponto de vista - de preservação histórica. Nas discussões entre
especialistas em preservação histórica, Colonial Williamsburg é sempre uma referência
necessária. Muitos dividem a história do movimento preservacionista americano em antes e
depois de Colonial Williamsburg (Hosmer, 1965).
Historicamente, Williamsburg, no estado da Virgínia, foi a capital do domínio inglês na
América do Norte, no século XVIII. Após a Revolução, a capital dos Estados Unidos da América
mudou-se primeiramente para Richmond e finalmente para Washington, Williamsburg entrou em
decadência e foi esquecida ao longo de todo o século XIX.
Na segunda década do século XX. ela veio a ser redescoberta e, sob o patrocínio de John
D. Rockefeller, foi totalmente reconstruída. Esse trabalho de reconstrução tinha como objetivo
refazer a cidade tal qual ela supostamente teria sido, urbanística e arquitetonicamente, no século
XVIII, às vésperas da Revolução. Inspirado por uma ideologia nacionalista, o projeto de
reconstrução visava a afirmação de uma identidade genuinamente americana por oposição à
Europa e à massa de imigrantes europeus então existente nos Estados Unidos (Wallace, 1981).
Esse uso patriótico de Colonial Williamsburg tem sido uma constante na sua história. Na
Segunda Guerra Mundial, soldados americanos, antes de embarcarem, eram levados a Colonial
Williamsburg, onde passavam alguns dias, com o objetivo de estimular suas virtudes cívicas. Até
os dias atuais, a cidade é usada como ponto importante nas visitas oficiais de chefes de Estado
estrangeiros.
O processo de reconstrução assumiu dimensões gigantescas. Na medida em que o
objetivo era reconstruir a Williamsburg do século XVIII, anterior à Revolução, tudo o que veio a
ser construído posteriormente, ao longo do século XIX e inícios do século XX, foi destruído total
ou parcialmente. Segundo o depoimento de um dos presidentes da Colonial Williamsburg
Foundation sobre o processo de reconstrução,
“ . . .82 colonial buildings, which still survived in whole or in part from the 18th
century, had been restored to their original form; 341 buildings of which, very
often, nothing but a part of a foundation survived to show their location, had been
reconstructed; 616 modern buildings had been torn down or removed from the
restored area to make room for gardens, greens, and reconstructed buildings; 20
modern buildings had been removed from the restored area and a number of new
structures built outside its limits, among them a school for 845 students, a court
house, and a fire station" (CW-RP, 1951: 12).
Esse modelo de preservação veio a ser bastante criticado pela sua "artificialidade" ou
"inautenticidade". Na verdade, esse modelo é bastante antigo e remonta ao arquiteto francês
Viollet-Le-Duc, um pioneiro da preservação histórica no início do século XIX na França.
Segundo seu modelo, um prédio deveria ser reconstruído integralmente até atingir fielmente as
suas características originais, eliminando-se todos os elementos intermediários. Uma catedral
gótica no século XIX deveria, após o trabalho de restauração, apresentar as mesmas
características que apresentava na época de sua existência original no século XIII. As críticas a
esse modelo também não são novas, e ainda no século XIX encontravam expressão ,veemente
Ouro Preto
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Sobre esse ponto vale a pena citar aqui um texto de Otto Maria Carpeaux: "Ouro Preto foi três vezes descoberta:
em 1668 pelos bandeirantes; em 1893 pelos intelectuais boêmios do Rio de Janeiro; e por volta de 1925, de 1929,
pelos modernistas de São Paulo. ( ... ) A redescoberta de Ouro Preto é um dos grandes feitos do modernismo, Mário
de Andrade esteve lá. Oswald de Andrade escreveu os famosos versos sobre os profetas do Aleijadinho. De Manuel
Bandeira é a substanciosa crônica "De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes” primeiro núcleo
daquilo que será mais tarde o indispensável "Guia de Ouro Preto". Vieram as páginas de Carlos Drummond de
Andrade. Vieram os serviços de Rodrigo de Mello Franco de Andrade e basta este caro nome para revelar o sentido
profundo dessa terceira descoberta; em Ouro Preto conquistou o Brasil Moderno sua consciência histórica!' (Correio
da Manhã, 8.7.1961, Arquivo SPHAN).
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De certo modo, a ideologia da SPHAN pode ser interpretada como parte da chamada ideologia da "mineiridade".
Para uma interpretação sociológica da mineiridade, ver Bomeny (1987).
Ao contrastar esses dois espaços classificados como patrimônios culturais nos Estados
Unidos e no Brasil, respectivamente, não os estou considerando como representativos ou
expressivos de identidades ou memórias nacionais. Não estou considerando Colonial
Williamsburg como um espaço expressivo da identidade nacional americana, ou Ouro Preto
como expressivo da identidade nacional brasileira. Não estou preocupado com a especificidade
do Brasil ou dos Estados Unidos enquanto nações. Acredito que esta é uma das questões
propostas pelos ideólogos da nação, ou mesmo por aqueles cientistas sociais que reproduzem em
seu discurso categorias e proposições nacionalistas. Em outras palavras, não estou interessado em
construir simbolicamente a nação; antes, estou tentando problematizar a "realidade" ou
"autenticidade" dessa categoria.
Desse modo, não é meu objetivo descrever uma Colonial Williamsburg "não-aurática"
versus uma Ouro Preto "aurática". Isto seria reificar essas categorias. Assumo que tanto em
Colonial Williamsburg quanto em Ouro Preto coexistem os aspectos auráticos e não-auráticos.
Podemos descrevê-los através de um outro critério. Ambos são construções ficcionais. Acredito
no entanto que Colonial Williamsburg, assim como outras experiências similares de preservação
histórica nos Estados Unidos, com sua ênfase na recriação do passado, leva a um ponto extremo
os aspectos não-auráticos. Mas, se insistimos em classificá-las como inautênticas, jogamos o
velho jogo de afirmarmos nossas crenças - na autenticidade - através do seu inverso.
Do ponto de vista dos ideólogos brasileiros do patrimônio cultural, os Estados Unidos
nunca se constituíram em modelo a ser imitado. Desde os anos 30, com a criação da SPHAN, até
os dias atuais, com a existência da Pró-Memória, a referência mais constante tem sido a Europa
e, particularmente, a França e a Itália. Muitos dos especialistas brasileiros na área de patrimônio,
a exemplo de seus colegas europeus, tendem a tomar os Estados Unidos, e particularmente o caso
de Colonial Williamsburg, como um exemplo negativo. Usualmente essa avaliação está baseada
na oposição autenticidade/inautenticidade. Além disso, parece embebida em critérios ideológicos
nacionalistas, onde o nacional e autêntico é definido por oposição ao não-nacional e inautêntico.
Acredito que experiências como Colonial Williamsburg - e outras similares - podem ser
usadas para repensarmos nossas crenças em categorias como a da autenticidade. Parafraseando
Benjamin, eu diria que elas constituem um exemplo de patrimônio cultural "na época de sua
reprodutibilidade técnica". Elas tornam explícito o caráter artificial, construído ou tecnicamente
reproduzido, dos chamados patrimônios culturais. Sua autenticidade é "não-aurática". Ela está
fundada não numa relação orgânica com o passado, mas na própria possibilidade de reprodução
técnica desse passado. Desse modo, somos levados a problematizar categorias como as de nação,
que, supostamente, são expressas pelos chamados patrimônios culturais. Estes, na medida em
que não consideremos como dadas sua autenticidade ou inautenticidade, podem ser pensados
como construções ficcionais sem nenhum fundamento necessário na história, na natureza, na
sociedade ou em qualquer outra realidade com que confortavelmente justifiquemos nossas
crenças nacionalistas. A nação, assim, pode ser discutida menos como uma questão de fato do
que como uma questão ficcional.
Descrevendo o problema desse modo, podemos evitar a armadilha de trazermos para
nosso discurso de cientistas sociais categorias próprias às ideologias nacionais.
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