Uma das características positivas do período moderno foi a
valorização do ser humano, a valorização da pessoa, o reconhecimento dos direitos humanos, da dignidade inviolável de toda pessoa, independentemente de cor, raça, gênero, credo, ou condição econômica e social. Na prática, porém, esse reconhecimento é constantemente ameaçado pelo racismo, pelo sexismo, pelo classismo, pelos preconceitos e violências de todo tipo. Na teoria, todos os seres humanos são iguais, mas na prática de sociedades capitalistas, por exemplo, são dignas somente as pessoas que têm, que compram e vendem, que participam do mercado, que “aproveitam as oportunidades”, que são vencedoras. Na prática de algumas sociedades orientais, por outro lado, são dignas somente as pessoas que se submetem cegamente à religião, ou ao Estado e sua ideologia. Em nenhum desses tipos de sociedade a verdadeira dignidade humana é experimentada em sua plenitude. Em alguns casos, a própria fé cristã é usada como instrumento dessa desumanização – e também por isso precisamos compreender bem o que significa sermos transformados pelo Espírito, sermos novas pessoas, pessoas santificadas, separadas.
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Tomar a cruz e seguir Jesus não pode ser entendido como anulação da humanidade, como desprezo pelo corpo, como transformação da pessoa em objeto, nem como rendição a qualquer poder humano que se apresente como atraente e salvador – significa, sim, construir um estilo de vida semelhante ao de Jesus Cristo. Fazer morrer a natureza terrena (Cl 3,5) não é anular e mortificar o corpo, mas lutar contra a carne e contra o pecado. Adornar-se da beleza interior não é negar a beleza corpórea e exterior, mas subordiná-la ao amor, à justiça e à solidariedade. A experiência do Espírito nos transforma para sermos plenamente humanos. No Espírito, a vida humana encontra sua verdadeira dignidade, seus verdadeiros propósitos, sua verdadeira energia. É um erro imaginar, ou mesmo pensar, que a experiência do Espírito nos faz menos humanos. Viver no Espírito é viver plenamente como ser humano, em todas as dimensões da humanidade, na medida em que a experiência do Espírito nos torna semelhantes a Jesus Cristo, que se tornou como um de nós (Hb 2,17). Quem vive no Espírito encontra a verdadeira humanidade em seu próprio corpo, que é templo do Espírito (I Co 6,19), e é vivificado pelo Espírito (Rm 8,11). Um erro comum em alguns sistemas teológicos é confundir a vida no Espírito com a vida sem corpo, uma vida incorpórea, como se nos tornássemos anjos após a conversão. Pelo contrário, a experiência do Espírito é experiência do corpo, no corpo, para o corpo humano. Para o corpo que, na força do Espírito, ressuscitará e será transformado em corpo imortal, animado pelo Espírito (I Co 15,35-45). Outro
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erro comum, é confundir a santidade com a repressão dos prazeres legítimos do corpo humano – como os prazeres advindos da comida, do esporte, do lazer, do sexo, da música, das artes, etc. Corpo santificado é corpo dignificado para também sentir prazer, viver em prazer, desfrutar de todas as coisas boas criadas por Deus. Desfrutar de todos os prazeres possíveis, e de forma legítima, amorosa, semelhante a Jesus Cristo. “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem todas edificam” (I Co 10,23). Corpo santificado é o corpo da pessoa que sabe discernir entre as coisas que convêm e as que não; entre as que edificam e as que não edificam – ética da liberdade e da responsabilidade – e, assim, com discernimento, sabe experimentar de forma justa todas as coisas boas da vida. Acima de tudo isto, corpo santificado é corpo da pessoa que ama como Cristo amou – entregando-se para o bem do outro. A experiência do Espírito libera as possibilidades e potencialidades de cada pessoa para viver amorosamente, para viver em plena comunhão com outras pessoas, nas mais diversas estruturações da vida em sociedade. Na família, no trabalho, no lazer, na comunidade eclesial, na política, no movimento social, em todas as situações a pessoa cheia do Espírito frutifica em relacionamentos que tornam as pessoas participantes mais humanas e mais parecidas com Jesus Cristo. O fruto do Espírito é descrito por Paulo em Gálatas 5,22-23 com termos predominantemente ligados aos relacionamentos pessoais: amor, bondade, benignidade, fidelidade, longanimidade, mansidão. Além destes termos tipicamente relacionais, também
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encontramos a alegria e o domínio próprio como expressões do Espírito – a verdadeira alegria que se pode ter na amizade, na comunhão com o próximo, e domínio próprio para poder se relacionar adequadamente, não transformando os relacionamentos em formas de comércio, de barganha, não usando as outras pessoas, nem a natureza, para benefícios exclusivamente individuais. Viver humanamente, com dignidade e honra, é viver para concretizar a vontade de Deus em benefício de toda a criação, é vida missionária. É viver como cidadã e cidadão do Reino de Deus que, em tudo o que faz, dá testemunho do Reino de Deus – em casa, no trabalho, no lazer, no estudo, na política, etc. É viver de forma tal que os valores mundanos não governem nossa vida: valores como os do individualismo, do egocentrismo, do consumismo, da indiferença, da sede de poder, da ganância sem fim, da transformação de tudo em mercadoria, em objetos descartáveis – especialmente outras pessoas e a natureza criada por Deus. Vida plenamente humana é vida em imitação a Jesus Cristo, é vida na esperança, na força do Espírito Santo: Vida na expectativa da parusia [palavra grega que se costuma traduzir por “retorno de Cristo”, mas que significa, literalmente, “presença”] transcende em muito o simples aguardar, precaver-se e permanecer firme na fé, levando à iniciativa ativa. É uma vida na antecipação do vindouro, em expectativa criadora. Homens não vivem apenas de tradições, mas também [eu diria, principalmente] de antecipações. Em temores e esperanças antecipam seu futuro ainda desconhecido e orientam suas vidas de acordo com ele e adaptam a ele sua vida. A expectativa do futuro de Cristo coloca o presente na luz do Vindouro e torna a vida corporal
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experimental no poder da ressurreição. Assim, a vida se torna uma vida de ‘cabeça erguida’ (Lc 21,28) e de ‘porte ereto’ (Bloch). Torna-se uma vida que, no empenho por justiça e paz neste mundo, está dedicada à colaboração no reino de Deus. (MOLTMANN, J. O Caminho de Jesus Cristo. Cristologia em dimensões messiânicas, Petrópolis, Vozes, 1993, p. 450s.)
2. Experiência de criatividade sócio-cultural
Um erro derivado do individualismo moderno é a separação
entre vida pessoal e vida social. Uma vida digna, plena, não pode ser vivida individualisticamente. Todo ser humano vive em sociedade, e viver transformadamente é, também, viver transformadoramente. A vida em sociedade possui múltiplas dimensões: social, cultural, econômica, política. A experiência do Espírito nos capacita a viver criativamente em todas essas dimensões. Em relação à dimensão política, por exemplo, uma vida plenamente humana inclui a plena cidadania, a vida em sociedade em sua forma mais legítima e ampla. Ser cidadão da cidade celestial (Fp 3,20) não anula a nossa cidadania terrena, ao contrário, permite com que cada cristã e cristão viva de forma mais intensa, democrática e justa a sua cidadania, se torne responsável por seu país e povo e vivencie os valores de uma nova sociedade, na qual as divisões e barreiras produzidas pelo pecado não mais tenham lugar – cidadania que resiste contra todos os sexismos, racismos, classismos, e quaisquer ideologias que impeçam que cada pessoa tenha vida plenamente digna (cf. Gl 3,26-29; Ef 4,21-24; Cl 3,9-11). A experiência do Espírito é 5 Unida Teologia da Espiritualidade experiência que nos convoca à participação na vida política sob a ótica da justiça, a fim de que as instituições e estruturas do Estado estejam efetivamente a serviço do povo. Em relação à dimensão econômica, a experiência do Espírito nos possibilita viver com liberdade e solidariedade. Nas economias centradas no lucro, ou naquelas centradas no comando, o dinheiro e o poder se tornam “deuses”, ídolos a quem se deve servir cegamente – viver é fazer todo o possível para conseguir e acumular cada vez mais e mais dinheiro e/ou poder. E quanto mais se tem, mais se consome, mais se acumulam objetos e produtos supérfluos, e até pessoas são transformadas em mercadoria – para o prazer, para a dominação, para a humilhação. Quem vive no Espírito não serve a Mamon (Mt 6,24), e nem fica preocupado com o sustento e o dia de amanhã (Mt 6,25-34), pois sabe que Deus é o sustentador de toda a sua criação. Por isso, trabalha e faz de seu dinheiro meio para servir ao próximo (Ef 4,28), e humaniza as relações econômicas, de modo a colocar o dinheiro em seu devido lugar – apenas um meio de troca, um papel que pode nos ajudar a servir a Deus e o próximo, e não um objeto para amar, pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males (I Tm 6,9-10). A experiência do Espírito nos conduz a uma vida economicamente simples, baseada na dignidade e na solidariedade. Não uma vida de pobreza e falta, mas uma vida com as necessidades supridas individual, familiar e socialmente – economia com solidariedade e justiça social. Em relação à dimensão cultural, a experiência do Espírito estimula toda a criatividade humana para construir valores,
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imagens, símbolos, arte, literatura, dança, enfim, todas as expressões culturais legítimas que podem ser meios de humanização e também de comunicação do Evangelho. A cultura humana é, simultaneamente, expressão das luzes e sombras da humanidade em sua ampla diversidade, é expressão tanto da justiça como do pecado. A experiência do Espírito leva o povo de Deus a ser sal da terra e luz do mundo, edificando a cultura de forma justa, solidária, amorosa. Leva o povo de Deus a valorizar a diversidade cultural e usá-la para vivenciar os valores do Reino de Deus e expressá-los das mais variadas formas culturais possíveis. Leva, também, o povo de Deus a resistir a todas as formas de uso da cultura para a opressão, para a dominação, para a desumanização, enfim, resiste a toda presença do pecado na cultura. Contextualização e inculturação são os termos que, na teologia da missão, têm sido usados para descrever a dimensão cultural da missão do povo de Deus. São termos que nos lembram, por um lado, que muitas vezes o Evangelho foi subordinado pecaminosamente a formas culturais injustas – e se tornou instrumento de morte. Mas nos convocam, também, a inculturar o Evangelho de forma justa e santa, de modo a construir formas culturais cada vez mais cheias da luz de Cristo. Nas palavras de C. René Padilla: a contextualização do evangelho é possível pela ação do Espírito Santo no povo de Deus. Na medida em que a Palavra de Deus se encarna na igreja, o evangelho toma forma na cultura. E isto reflete o propósito de Deus: a intenção de Deus não é que o Evangelho se reduza a uma mensagem verbal, mas que se encarne na igreja e, através dela, na história. Aquele Deus que sempre falou aos homens a partir de dentro da situação histórica 7 Unida Teologia da Espiritualidade designou a igreja como o instrumento para a manifestação de Jesus Cristo em meio aos homens. A contextualização do evangelho jamais pode ser levada a cabo independente da contextualização da igreja na história. (PADILLA, C. R. Missão Integral. Ensaios sobre o Reino e a Igreja. Londrina: Descoberta, 2005, p. 114)