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I - A POLÍTICA PROIBICIONISTA

I.1 - O sistema penal e a divisão artificial entre drogas lícitas e ilícitas


Condutas chamadas de crimes são uma criação da lei penal. Não
existe um conceito de crime, que possa se dizer natural, isto é, que parta
de um denominador comum e que esteja presente em todo tempo ou em
todo lugar. Além disso, as condutas criminalizadas não são naturalmente
diferentes de outros fatos socialmente negativos ou situações
conflituosas, que, em um lugar e em um momento histórico
determinados, ficam fora do campo de intervenção do sistema penal. A
seleção das situações conflituosas ou dos fatos socialmente negativos,
que, sendo objeto da lei penal, vão ser chamados de crimes, constitui,
pura e simplesmente, uma decisão política, que traduz uma manifestação
de poder do Estado. O que dita esta decisão política não é, como se
divulga, a proteção dos indivíduos, mas sim a obtenção de uma
disciplina social, que resulte funcional para a manutenção e a reprodução
dos valores e interesses dominantes em uma dada formação social.
É isto que acontece com as drogas.
No momento histórico em que vivemos, uma internacionalizada
política proibicionista, ditada pelos Estados Unidos da América,
determina a produção de leis penais, que criminalizam condutas
relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo de algumas dentre
as inúmeras substâncias psicoativas conhecidas. As substâncias
psicoativas, que, assim selecionadas, recebem a qualificação de drogas
ilícitas (como a maconha, a cocaína, a heroína, etc.), não têm natureza
diversa de outras substâncias igualmente psicoativas (como a cafeína, o
álcool, o tabaco, etc.), destas só se diferenciando em razão da artificial
intervenção do sistema penal sobre condutas a elas relacionadas. Todas
as substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas, provocam alterações no
organismo e dependendo da forma como forem usadas, podem
eventualmente causar danos, não sendo, assim, esta a razão da
diferenciação entre umas e outras. Tampouco as drogas, hoje
qualificadas de ilícitas, foram sempre tratadas desta forma. A cocaína,
por exemplo, nos primeiros anos do século XX, ainda era livremente
vendida em farmácias. Por outro lado, drogas, hoje lícitas, já foram
ilícitas, como o álcool, nos Estados Unidos da América, no período de
1920 a 1932, quando em vigor, naquele país, a chamada “Lei Seca”.
I.2 - A intervenção do sistema penal no mercado: a criminalização da
produção e da distribuição das drogas qualificadas de ilícitas
As drogas qualificadas de ilícitas são produzidas e distribuídas (ou
comercializadas), para atender a uma demanda formada por
consumidores que, por uma razão ou por outra, desejam adquiri-las, para
delas fazer uso. As atividades desenvolvidas na produção, na
distribuição e no consumo destas substâncias são atividades econômicas,
que, em sua essência, não são diferentes de quaisquer outras atividades
realizadas no mercado produtor, distribuidor e consumidor de bens ou
serviços. A intervenção do sistema penal, através da criminalização de
condutas relacionadas à produção e à distribuição dos bens, consistentes
nas drogas qualificadas de ilícitas, cria o que passou a se chamar de
tráfico de drogas.
No Brasil, as condutas que o caracterizam vêm definidas nas
regras do artigo 12 da Lei nº 6.368/76, que permanecem em vigor, diante
do veto do Presidente da República a todo o capítulo III do projeto de lei
nº 1873/91 (nº 105/96 no Senado Federal), a nova Lei nº 10.409, de 11
de janeiro de 2002, dele resultante, passando, assim, a dispor, apenas
parcialmente, sobre a política concernente às drogas qualificadas de
ilícitas.
As regras do artigo 12 da Lei nº 6.368/76 prevêem penas de
reclusão de 3 a 15 anos e multa, para quem “importar ou exportar,
remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda
ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar,
de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que
determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
A criminalização, assim operada, naturalmente, não tem – como
não poderia ter – o condão de alterar a realidade traduzida no significado
econômico das atividades tornadas ilegais, apenas adicionando algumas
variáveis específicas às regras gerais de funcionamento do mercado.
Vejamos alguns aspectos desta intervenção do sistema penal sobre
o mercado.

I.2.1. A elevação dos preços e o aumento dos lucros


A introdução da variável criminalizadora no mercado implica em
que, aos custos normais da produção e da comercialização das
mercadorias, sejam somados custos potenciais, relativos a perdas que
podem ser provocadas por eventuais apreensões resultantes de ações
repressivas, bem como na contabilização de despesas com a segurança
exigida pela ilegalidade do empreendimento. Estes custos, naturalmente,
repercutem sobre o preço final do produto. Por outro lado, a produção
mais significativa, em geral, se desenvolve em uma estrutura
oligopolizada (número reduzido de empresas controlando o mercado),
pois a diminuição da livre concorrência já se faz por um natural
afastamento de potenciais produtores, que não se dispõem a enfrentar a
ilegalidade.
Com isto, há uma elevação artificial dos preços, que acaba por,
paradoxalmente, funcionar como um incentivo à produção e ao comércio
das mercadorias tornadas ilícitas, a partir dos maiores lucros assim
obtidos. Tem-se um exemplo disto, nos preços alcançados pelas bebidas
alcoólicas, durante a proibição, nos Estados Unidos da América. Jeffrey
Miron e Jeffrey Zwiebel referem que estes preços, nos Estados Unidos
da América, em 1930, alcançavam, em média, aproximadamente o triplo
dos preços praticados antes da vigência da “Lei Seca” (“ALCOHOL
CONSUMPTION DURING PROHIBITION”,
in AEA PAPERS AND PROCEEDINGS - volume 81, número 2,
maio de 1991, páginas 242 a 247).

I.2.2. O inevitável fracasso do controle penal sobre o mercado


A expansão dos mercados consumidores das drogas qualificadas
de ilícitas não obedece a uma lógica própria, determinando-se sim, no
mundo em que dominantes as formações sociais capitalistas, pela mesma
lógica que preside a quaisquer outras relações econômicas ali
desenvolvidas: o aproveitamento de demandas naturais e a criação de
demandas artificiais, que proporcionam a acumulação de capitais e a
geração de empregos.
A expansão do mercado consumidor é um fator determinante da
produção, seja de drogas qualificadas de ilícitas ou de quaisquer outras
mercadorias.
As atividades produtivas, desenvolvidas no mercado tornado
ilícito, atendendo demandas naturais ou artificiais, constantemente,
servem para suprir a falta de oportunidades oferecidas pelas atividades
econômicas lícitas. Isto já ocorreu em outras etapas do desenvolvimento
capitalista. Valendo-se, mais uma vez, do exemplo norte-americano, da
época da proibição do álcool, pode-se notar que o quadro, hoje existente,
na produção e comercialização das drogas qualificadas de ilícitas, em
boa parte, reproduz o que então se desenrolara: o mercado de bebidas
alcoólicas, tornado ilegal, no período de 1920 a 1932, abriu
oportunidades de enriquecimento a imigrantes recém-chegados aos
Estados Unidos da América, que já encontraram as atividades no
mercado lícito dominadas por outros grupos sociais.
Esta lógica econômica já permite antever a inevitável ineficácia de
uma política de controle fundada na intervenção do sistema penal: os
empresários – grandes ou pequenos – e os empregados das empresas
produtoras e distribuidoras das drogas qualificadas de ilícitas, quando
presos ou eliminados, são facilmente substituíveis por outros igualmente
desejosos de oportunidades de emprego ou de acumulação de capital,
oportunidades que, por maior que seja a repressão, subsistirão enquanto
estiverem presentes as circunstâncias socioeconômicas favorecedoras da
demanda criadora e incentivadora do mercado.
Onde houver demanda, haverá oferta.

I.2.3. A produção de violência como subproduto de atividades econômicas


criminalizadas
O diferencial que se interpõe entre as atividades econômicas
criminalizadas e as que não sofrem a intervenção do sistema penal é um
subproduto, que necessariamente acompanha as primeiras e que é
decorrência direta da ilegalidade provocada pela intervenção do sistema
penal no mercado. Este subproduto necessário das atividades
econômicas criminalizadas é a violência.
A vedação do acesso aos meios legais de solução de conflitos,
naturalmente, conduz produtores e distribuidores ao uso da força para
fazer valer seus interesses. Os meios violentos, que já têm de se fazer
presentes para garantir a segurança do empreendimento, em face das
ações repressivas do sistema penal, são também os que podem garantir a
efetividade econômica das empresas tornadas ilegais, operando na
resolução de conflitos relacionados à concorrência, a créditos, débitos e a
outros fatores, surgidos nas relações desenvolvidas no mercado.
Elegendo a intervenção do sistema penal como forma de controle
da produção e distribuição de determinados bens e serviços tornados
ilegais, é o próprio Estado que se torna o real criador da criminalidade e
da violência. Tal fenômeno pode ser claramente percebido, não só em
relação a drogas, como também em relação ao jogo, ambos associados a
ações violentas, somente quando se desenvolvem em um mercado
tornado ilegal.
Não são, portanto, as drogas em si que geram criminalidade e
violência, mas é tão somente o fato da ilegalidade que produz e insere no
mercado empresas criminalizadas – mais ou menos organizadas –,
simultaneamente trazendo a violência como um subproduto necessário
das atividades econômicas assim desenvolvidas, o que, naturalmente,
provoca conseqüências muito mais graves do que eventuais danos
causados pela natureza das mercadorias tornadas ilegais.
Exemplo de criação de criminalidade e violência, através da
intervenção do sistema penal sobre o mercado, pode ser encontrado,
voltando-se, mais uma vez, à época da proibição do álcool, nos Estados
Unidos da América. Como anotado por Frank Pearce (veja-se,
especialmente, o capítulo “EL MITO DE UNA MAFIA NACIONAL”, às páginas 161 a 169 da
edição em espanhol da obra LOS CRÍMENES DE LOS PODEROSOS - EL MARXISMO, EL DELITO Y LA
DESVIACIÓN, Mexico, Siglo XXI, 1980, tradução de Nicolás Grab), antes da vigência

da “Lei Seca”, a máfia norte-americana não tinha maior importância,


limitando sua atuação às chamadas “aldeias urbanas” italianas, sendo a
demanda em grande escala por um produto tornado ilícito – o álcool –
que propiciou sua expansão. Da mesma forma, a redução da violência,
na famosa Chicago dos anos vinte e trinta do século XX, não foi
conseqüência da cinematográfica atuação dos Intocáveis de Eliot Ness,
mas simplesmente do fim da “Lei Seca”.

I.3 - A intervenção do sistema penal sobre a liberdade individual: a


criminalização do consumo das drogas qualificadas de ilícitas
A política proibicionista, elegendo a intervenção do sistema penal
como forma de controle sobre as drogas tornadas ilícitas, atua de forma
especialmente danosa no campo do consumo, notadamente quando se
considera a criminalização da posse para uso pessoal daquelas
substâncias psicoativas.
No Brasil, esta criminalização da posse para uso pessoal vem
expressa na regra do artigo 16 da Lei nº 6.368/76, que, como as demais
regras definidoras de tipos de crimes, contidas naquele diploma legal,
permanece em vigor.
Prevêem-se, ali, penas de detenção de seis meses a dois anos e
multa, para quem realizar as condutas de “adquirir, guardar ou trazer
consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine
dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar”.
Com a nova definição das infrações penais de menor potencial
ofensivo, que, com a Lei nº 10.259/01, passaram a ser todas aquelas a
que a lei abstratamente imponha, no máximo, pena privativa de liberdade
não superior a dois anos, incidem, aqui, as regras contidas na Lei nº
9.099/95 (a lei dos juizados especiais), que prevêem a transação, isto é, a
aplicação antecipada e aceita de penas não privativas da liberdade (por
exemplo, a prestação de serviços à comunidade), desde que apareçam
como favoráveis as circunstâncias da alegada infração penal e as
condições pessoais de seu apontado autor. Da mesma forma, já incidiam
as regras da Lei nº 9.099/95, que prevêem a suspensão condicional do
processo, por um prazo de dois a quatro anos, e sua extinção, sem
julgamento, desde que cumpridas as condições propostas e aceitas,
condições estas semelhantes àquelas penas antecipadas, não privativas
da liberdade.
Neste campo, quaisquer que sejam as penas previstas ou aplicadas,
a gravidade maior da política proibicionista revela-se na indevida
intervenção do sistema penal sobre a liberdade individual, a intimidade e
a vida privada dos consumidores, desrespeitando garantias fundamentais
do indivíduo, que são inseparáveis do Estado Democrático de Direito e
estão asseguradas na Constituição Federal brasileira, como se verá a
seguir.

I.3.1. A natureza das condutas relacionadas ao consumo das drogas


qualificadas de ilícitas: o âmbito de liberdade e intimidade do indivíduo
Ter em sua posse drogas qualificadas de ilícitas para seu consumo
pessoal, ou consumi-las em circunstâncias que não tragam um perigo
concreto, direto e imediato para outras pessoas, são condutas privadas,
que estão situadas na esfera individual, isto é, em um campo de
atividades, que diz respeito, unicamente, à intimidade e à vida privada de
cada um.
Faz parte da liberdade, da intimidade e da vida privada de cada um
a opção por fazer coisas, que pareçam para os outros – ou que até,
efetivamente, sejam – erradas, “feias”, imorais ou danosas a si mesmo. A
própria dignidade da pessoa humana, reconhecida desde as origens do
Estado Democrático de Direito, impede a transformação forçada do
indivíduo. Enquanto não afete direitos de terceiros, o indivíduo pode ser
e fazer o que bem lhe aprouver. O que os outros – e, portanto, também o
Estado – podem fazer, nestas circunstâncias, é apenas tentar mostrar ao
indivíduo, que, supostamente, está se prejudicando, que seu
comportamento não está sendo bom, jamais podendo, no entanto, obrigá-
lo a mudar este comportamento, ainda mais através da imposição de uma
pena, qualquer que seja esta.
A autolesão, isto é, a efetiva causação de um dano à própria saúde
é uma destas condutas privadas. Da mesma forma, o suicídio. Nosso
ordenamento jurídico não criminaliza e, portanto, não pune, pois não
poderia fazê-lo, sem desrespeitar a liberdade individual e a intimidade,
nem a autolesão, nem a tentativa de suicídio. Como punir, então, a posse
de drogas qualificadas de ilícitas para uso pessoal ou seu consumo em
circunstâncias que não afetam terceiros, que, podendo causar, no
máximo, um simples perigo de autolesão, são condutas, sem qualquer
dúvida, menos danosas do que a autolesão e o suicídio?

I.3.2. As limitações ao poder de punir no Estado Democrático de Direito: a


afetação de bens jurídicos de terceiros
No Estado Democrático de Direito, a função maior do
ordenamento jurídico (o conjunto de leis, constitucionais e
infraconstitucionais, que regulam o funcionamento do Estado e da
sociedade) é a proteção da dignidade e dos direitos de cada indivíduo.
Esta função maior gera princípios que limitam o poder do Estado e,
ainda mais especialmente, o poder do Estado de punir. Um destes
princípios é o de que o dano social constitui um ponto de referência
obrigatório para a fixação de parâmetros, na confecção de leis penais
incriminadoras. Isto significa que todo dispositivo legal (ou toda regra)
que proíbe a realização de determinada conduta sob a ameaça de uma
pena, há de ter em consideração este dano social, revelado pela
ocorrência de uma lesão (uma afetação, um dano) ou um perigo concreto
de lesão ao bem jurídico, que o Estado pretende proteger com a
proibição.
O bem jurídico delimita o alcance da regra que define a conduta
criminalizada e pode ser definido como a relação de disponibilidade de
um sujeito com um objeto, identificando-se, assim, ao direito que o
sujeito tem de dispor, isto é, de usar ou aproveitar certos objetos, como a
vida, a saúde, o patrimônio, a honra, etc.. A lesão ou o perigo de lesão ao
bem jurídico (isto é, a sua afetação) revelam-se, exatamente, quando a
conduta de alguém vem perturbar ou impedir a livre disposição daqueles
objetos, que, assim, necessariamente, hão de estar referidos a uma pessoa
diversa daquela que realiza a conduta perturbadora, sendo, portanto,
necessariamente, de titularidade de terceiros.
Veja-se um exemplo: o Estado proíbe o furto, para proteger o
patrimônio, assim pretendendo garantir que o titular deste bem jurídico,
isto é, o dono do patrimônio, possa dele dispor, sem ser perturbado ou
impedido de fazê-lo. Não poderia o Estado voltar a proibição contra o
próprio dono do patrimônio, pois o que pretende garantir é a livre
disposição deste objeto e se o dono do patrimônio dele se desfaz está
exatamente exercendo esta livre disposição. Da mesma forma, acontece
com todos os demais bens jurídicos, a proibição tendo que estar sempre
voltada contra terceiros, que possam vir a perturbar ou impedir a livre
disposição assegurada ao titular do bem jurídico.

I.3.3. As limitações ao poder de punir no Estado Democrático de Direito: a


definição dos bens jurídicos
No Estado Democrático de Direito, cuja tônica maior encontra-se
na subordinação do exercício do poder à lei, com vista a garantir os
direitos e a dignidade de cada indivíduo, o bem jurídico há de sempre ser
visto sob uma perspectiva pessoal. Isto significa que a identificação de
bens jurídicos de caráter coletivo ou institucional só pode ser admitida
enquanto condição de proteção, ainda que indireta, de bens jurídicos
individuais. É o que acontece, por exemplo, com a saúde pública, que se
refere à saúde de cada indivíduo, considerada sob uma perspectiva
coletiva.
A previsão do que se costuma chamar de bens jurídicos de
controle, que apelam para expressões vagas, como ordem pública, paz
pública e outras do gênero, ignora esta indispensável vinculação a
direitos concretos dos indivíduos, desviando a atenção do direito penal
para a criminalização de condutas que atingem tão somente a mera
afirmação da vontade ou da autoridade do Estado. Vinculando-se
unicamente a razões de Estado e, assim, desvinculando-se da função
maior de garantia dos direitos individuais, esta previsão de bens jurídicos
de controle mostra-se incompatível com o Estado Democrático de
Direito.
Na hipótese das drogas tornadas ilícitas, único bem jurídico
reconhecível nas regras criminalizadoras, produzidas em um Estado
Democrático de Direito, é a saúde pública, como já explicitava o
primitivo dispositivo do artigo 281 do Código Penal brasileiro,
posteriormente substituído pela legislação especial.
A saúde pública – espécie do gênero incolumidade pública – tem
um caráter coletivo, que é dado pela indeterminação de seus titulares,
sua afetação assim só se verificando, como ocorre em relação a outros
bens jurídicos desta natureza, na medida em que a lesão ou o perigo
concreto de lesão possa se expandir a um número indeterminado de
indivíduos, à diferença do que ocorre com o bem jurídico individual, em
que a lesão ou o perigo concreto de lesão atinge diretamente uma pessoa
determinada.
A conclusão inafastável, no que se refere a drogas, é a de que,
enquanto houver destinação pessoal para sua posse e enquanto seu
consumo se fizer de modo que não ultrapasse o âmbito individual, não
poderá se falar de afetação da saúde pública, pois, ter algo para si próprio
é o oposto de ter algo expansível a terceiros.

I.3.4. A inconstitucionalidade da criminalização de condutas relacionadas ao


consumo das drogas qualificadas de ilícitas
A Constituição Federal de 1988 introduziu um preâmbulo, para
afirmar, expressamente, que a Assembléia Nacional Constituinte se
reunia para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Logo
no artigo 1º da Carta, em seu inciso III, a dignidade da pessoa humana é
declarada um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Vem,
então, o artigo 5º, que começa por afirmar a inviolabilidade dos direitos
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, para, em
seguida, detalhar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.
Dentre suas regras, encontra-se a do inciso X, em que proclamada a
inviolabilidade da intimidade e da vida privada.
Tais dispositivos constitucionais, fazendo atuar os fundamentos do
Estado Democrático de Direito, reafirmam a conclusão de que condutas
privadas, em que ausente a concreta afetação de um bem jurídico de
terceiros, não podem ser objeto de intervenção do Estado sobre o
indivíduo que as realiza. Condutas com esta natureza privada – como são
a posse para uso pessoal de drogas qualificadas de ilícitas ou seu
consumo em circunstâncias que não ultrapassem o âmbito individual –,
não importando quais sejam suas motivações, não podem, assim, ser
objeto de criminalização, mesmo que venha esta disfarçada sob a forma
de ilícito administrativo.
Especialmente, quando assegura, de forma expressa, os direitos
concernentes à intimidade e a vida privada, a Constituição Federal
brasileira desautoriza, por ser com ela incompatível, a aplicação do
dispositivo incriminador, contido no artigo 16 da Lei nº 6.368/76, como
também estará a desautorizar a aplicação de outros dispositivos
incriminadores, explícitos ou disfarçados, que venham a ser propostos,
na linha do que sugerido no projeto de lei nº 1873/91 (nº 105/96 no
Senado Federal), objeto do veto do Presidente da República. Sempre se
deve lembrar que qualquer dispositivo de lei infraconstitucional só é
válido, quando estiver em harmonia com a lei maior, que é a
Constituição.
I.4 – As contradições entre a concreta intervenção do sistema penal
decorrente da política proibicionista e a alegada proteção à saúde
pública
Ainda na vertente do consumo, surge uma das mais ocultadas
contradições da política proibicionista, que elege a intervenção do
sistema penal como forma de controle sobre as drogas tornadas ilícitas,
acenando com o pretexto de, através da criminalização, proteger a saúde
pública.
As falsas imagens, produzidas pelo sistema em que se desenvolve
esta política criminalizadora de condutas relacionadas a algumas dentre
as inúmeras substâncias psicoativas conhecidas, impedem que se perceba
que a proteção da saúde pública, que estaria a fundamentar a
criminalização, contraditoriamente, acaba por ser afetada por esta mesma
criminalização, trazendo a proibição maiores riscos e danos à integridade
física e mental dos consumidores das substâncias proibidas.
Vejamos alguns destes maiores riscos e danos.

I.4.1. A falta de controle de qualidade das substâncias proibidas


Em conseqüência da intervenção do sistema penal, a produção, a
distribuição e o consumo das drogas tornadas ilícitas, naturalmente, há
de se fazer de forma clandestina. Ao impor esta necessária
clandestinidade às atividades de produção e distribuição de mercadorias
destinadas ao consumo, a política proibicionista impede que se exerça o
controle sobre a qualidade das substâncias produzidas e comercializadas.
Produtores e distribuidores de drogas qualificadas de ilícitas, como
quaisquer outros empresários – grandes ou pequenos – atuantes em
formações sociais capitalistas, são movidos pelo lucro, não tendo entre
suas principais preocupações o bem-estar dos consumidores de seus
produtos, sejam estes lícitos ou ilícitos. Por outro lado, os consumidores
dos produtos tornados ilícitos não podem dispor das formas de pressão e
proteção de que gozam os consumidores no mercado lícito. Com isto,
naturalmente, crescem as possibilidades de adulteração, de impureza e
de desconhecimento da potência das substâncias consumidas, com os
riscos maiores daí decorrentes.
Como observa Ethan Nadelmann (veja-se o ensaio “AMERICA’S DRUG
PROBLEM”,publicado no BULLETIN OF THE AMERICAN ACADEMY OF ARTS AND SCIENCES, de
dezembro de 1991), a razão das overdoses de drogas qualificadas de ilícitas
encontra-se, fundamentalmente, nestas suas freqüentes adulteração,
impureza e potência desconhecida. Sugere Nadelmann que imaginemos
um consumo de vinho ou de aspirina, em que desconhecêssemos o teor
alcoólico daquele ou ignorássemos se estávamos tomando uma dose de 5
miligramas ou de 500 miligramas daquela. Como ele diz, a vida ficaria
um tanto mais perigosa.

I.4.2. Os diferentes ciclos do consumo e a maior nocividade de novas


substâncias ilegalmente produzidas e comercializadas
Como já visto, a intervenção do sistema penal introduz algumas
variáveis específicas no funcionamento do mercado, tornado ilegal.
Dentre estas, há uma que diretamente repercute sobre a saúde dos
consumidores das drogas qualificadas de ilícitas, podendo-se atribuir, em
boa parte, à criminalização, o surgimento, no mercado, de substâncias
que, sendo mais potentes em seus efeitos primários (efeitos derivados da
própria natureza da substância), podem apresentar maior nocividade para
a saúde.
Ao lado de fatores relativos às demandas naturalmente formadas e
àquelas artificialmente criadas, comuns a todo o jogo do mercado nas
formações sociais capitalistas, há um outro fator que, no mercado
tornado ilícito, determina o surgimento de novos produtos. Trata-se de
eventuais êxitos repressivos, que reduzindo a oferta das mercadorias
tornadas ilícitas, incentivam produtores, distribuidores e consumidores a
buscar outros produtos, que, muitas vezes, acabam por se revelar mais
danosos.
Isto ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos da América, após a
década de 1970, com o crescimento da oferta de cocaína e heroína, em
boa parte conseqüência da repressão à maconha e aos alucinógenos de
origem mexicana. Pode-se dizer, ainda, que a introdução do crack, no
final da década de 1980, seguiu lógica econômica semelhante.
Neste ponto, vale ressaltar que, quando se raciocina com os
elementos que a realidade fornece, ao invés de se submeter às falsas
imagens, produzidas pelo sistema em que se desenvolve a política
proibicionista, muitas coisas ficam claras. Por exemplo, o desgastado
mito da “escalada” – a falsa idéia, que relaciona o consumo de maconha
com o de outras drogas também qualificadas de ilícitas, anunciando-a
como uma “droga de passagem” para outras substâncias mais potentes.
Esta falsa idéia apoiava-se em pesquisas, desenvolvidas nos
Estados Unidos da América na década de 1970, que trabalhavam
unicamente com consumidores de heroína, que já haviam feito uso de
maconha, sem fazer as devidas comparações com um universo maior,
que fosse representativo do conjunto de consumidores de maconha e sem
tampouco considerar, no restrito universo pesquisado, o uso anterior de
outras drogas, inclusive as lícitas. A ausência de qualquer base científica
do mito da “escalada” já se demonstrava pelo método de tais pesquisas,
mais tarde se afastando qualquer dúvida a respeito, com a efetiva
demonstração, através de inúmeros trabalhos, da inexistência de
qualquer elemento que possa indicar vinculações entre o consumo das
diferentes substâncias psicoativas, determinadas pela composição de
umas e outras (neste sentido, podem-se consultar os trabalhos de J. C. Merrill e K.
S. Fox “CIGARETTES, ALCOHOL, MARIJUANA: GATEWAYS TO ILLICIT DRUG USE, INTRODUCTION”
[National Center on Addiction and Substance Abuse at Columbia University, New
York, outubro 1994] e de W. Hall, R. Room e S. Bondy “ WHO PROJECT ON HEALTH
IMPLICATIONS OF CANNABIS USE: A COMPARATIVE APPRAISAL OF THE HEALTH AND PSYCHOLOGICAL
CONSEQUENCES OF ALCOHOL, CANNABIS, NICOTINE AND OPIATE USE ” [Organização Mundial da
Saúde, Genebra, março 1998]).
Efetivamente, não são propriedades farmacológicas de
determinadas substâncias, que conduzem ao consumo de outras, os
diferentes ciclos do consumo obedecendo sim a outros fatores,
determinados, em boa parte, por razões reduzíveis às leis da economia,
com as especiais repercussões que, sobre elas, exerce a política
proibicionista.

I.4.3. A proibição como fator agravante da falta de higiene no consumo das


substâncias proibidas e da conseqüente facilitação da propagação de
danos à saúde
A intervenção do sistema penal, estendendo-se ao momento do
consumo das drogas tornadas ilícitas, igualmente repercute sobre as
condições em que tal consumo se realiza, assim favorecendo a falta da
higiene necessária à evitação de danos à saúde. Esta repercussão aparece,
de forma especialmente acentuada, na facilitação da difusão de doenças
transmissíveis, como a Aids e a hepatite, adquiríveis através de um
consumo descuidado e não higiênico de drogas injetáveis. Além de
dificultar a informação e a assistência, como adiante se verá, a
clandestinidade, conseqüente à intervenção do sistema penal, cria a
necessidade de aproveitamento imediato de circunstâncias que permitam
um consumo, que não seja descoberto, o que acaba por se tornar um
caldo de cultura para o consumo descuidado.
Aliás, pensando-se em doenças como a Aids, não se pode esquecer
que os Estados Unidos da América foram o único país a não apoiar
resolução da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas, que incluiu o acesso a medicamentos entre os direitos humanos.
Tal resolução, proposta pelo Brasil e motivada pela controvérsia em
torno da produção de medicamentos destinados ao controle da Aids, foi
aprovada em 23 de abril de 2001, com a única abstenção daquele país,
cuja posição, nesta votação, eloqüentemente demonstra que a saúde
pública longe está de ser uma real preocupação dos que, sendo os
inquestionáveis senhores da internacionalizada política proibicionista,
são também os porta-vozes dos interesses das transnacionalizadas
indústrias farmacêuticas.

I.4.4. A proibição como fator agravante da desinformação


A intervenção do sistema penal, tornando criminosas condutas
relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo de determinadas
substâncias psicoativas, que são, assim, qualificadas de drogas ilícitas,
impõe um discurso que demoniza tais substâncias, apresentadas como
um mal em si mesmas, sem que se considerem as diferentes propriedades
de cada uma delas, ou as diferentes formas em que pode se dar seu
consumo.
É com base nesta visão maligna, na pretensão de proibir e
erradicar toda forma de consumo, que se cria um discurso negativo, com
o qual se desenvolvem campanhas impositivas da total abstinência, como
as que consagram slogans do tipo “diga não às drogas”, ou de
campanhas aterrorizadoras, acompanhadas de slogans como “drogas
matam”, “drogas causam impotência”, etc., não raro seguidas de
imagens de degradação de usuários.
A desinformação já parte deste discurso. A falta de credibilidade
do discurso aterrorizador é facilmente percebida por qualquer de seus
destinatários, que já tenha experimentado pessoalmente ou que já tenha
conversado com alguém que conheça alguma das substâncias proibidas.
A manifesta inverdade de um tal discurso, fundado em uma distorcida
generalização, naturalmente, acaba por conduzir à desconsideração de
quaisquer recomendações ou advertências, seriamente feitas sobre alguns
riscos e danos à saúde, que, eventual, mas realmente, podem advir de um
consumo excessivo ou descuidado não só das drogas qualificadas de
ilícitas, como de todas as substâncias psicoativas. Da mesma forma, cai
no vazio o discurso que pretende a total abstinência, algo não só
inviável, como decerto não desejado, efetivamente, por quase ninguém,
em toda a história da humanidade.
Por outro lado, a criminalização, trazendo a carga do proibido,
naturalmente sugere a ocultação, assim dificultando o diálogo, a busca
de esclarecimentos e informações, especialmente no que concerne a
adolescentes e seus familiares ou educadores. Além disso, a artificial
distinção entre drogas lícitas e ilícitas, concentrando sobre estas últimas
os medos e perigos anunciados, costuma conduzir à total despreocupação
familiar e pedagógica com o eventual abuso das primeiras, não sendo
incomum que pais, que temem as drogas qualificadas de ilícitas,
incentivem e até sintam um certo orgulho com o primeiro “porre” de
seus filhos.

I.4.5. A proibição como fator agravante de eventuais tendências a um


consumo descuidado ou excessivo
A opção pelo controle penal sobre determinados fatos socialmente
negativos ou situações conflituosas, que surgem em uma dada formação
social, não só faz com que as condutas que os constituem passem a ser
chamadas de crimes, como faz recair sobre seus apontados autores um
estigma, que, identificando-os como criminosos, leva a que eles passem
a ser vistos como os “maus”, os “inimigos”, os “perigosos”, contrapostos
aos que se vêem como “cidadãos de bem”. Este estigma, que acaba por
ser assimilado pelos próprios indivíduos que o recebem, naturalmente,
conduz ao isolamento social e à marginalização.
No que diz respeito às drogas qualificadas de ilícitas, a
estigmatização isoladora e marginalizadora pode acabar produzindo
ansiedades e alterações da personalidade, que, muitas vezes, funcionam
como um realimentador na demanda daquelas substâncias. Antes mesmo
da estigmatização, as próprias condições de clandestinidade,
conseqüentes à proibição, gerando maiores tensões na vida dos
consumidores, podem acabar por acentuar problemas preexistentes e
conduzir a um consumo que pode se tornar excessivo, deste modo
também funcionando a intervenção do sistema penal como
realimentadora de uma conduta que esta mesma intervenção do sistema
penal, contraditoriamente, pretende impedir.
Por outro lado, no que diz respeito às buscas, às descobertas e aos
desejos, que caracterizam a adolescência – faixa etária em que as
sensações provocadas pelas substâncias psicoativas costumam exercer
especial e natural atração e em que os controles internos são menos
atuantes –, a idéia de estar fazendo algo proibido, o apelo desafiador e
contestatório daquilo que é ilegal, o lado aparentemente glamouroso da
marginalização, podem acabar por se tornar um incentivo, não só para a
demanda genérica por drogas qualificadas de ilícitas, mas até mesmo
para a demanda, dentre estas, por substâncias que sejam mais potentes,
vistas como mais perigosas, mais adultas, menos assimiláveis pela
maioria.
I.4.6. O tratamento integrado ao sistema penal: a obrigatoriedade violadora do
princípio da culpabilidade
Prevê a Lei nº 6.368/76 tratamento médico obrigatório para os
autores das condutas nela definidas, que, em razão de dependência,
sejam inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de
se determinarem de acordo com tal entendimento, tratamento este que
pode chegar à internação hospitalar, nos casos de se frustrar, de algum
modo, o tratamento ambulatorial ou de ser o agente novamente
processado em razão de condutas análogas (artigos 29 e 19, que
permanecem em vigor).
A dependência, referida na Lei nº 6.368/76, é hipótese de
inimputabilidade, isto é, de falta da capacidade psíquica necessária para
que a pessoa tenha podido compreender a natureza penalmente ilícita da
conduta realizada e tenha podido adequar sua conduta em conformidade
com esta compreensão.
A falta desta capacidade psíquica exclui a culpabilidade, que é um
dos elementos que integram o conceito legal de crime. A culpabilidade
consiste, basicamente, na possibilidade de se exigir do autor de uma
conduta penalmente ilícita que ele tivesse um outro comportamento,
ajustado ao que determinam as leis criminalizadoras. Assim, para que
possa ser reconhecida a prática de um crime, não basta a realização de
uma conduta, definida em um dispositivo legal incriminador e não
permitida pela ordem jurídica (a conduta penalmente ilícita), sendo ainda
indispensável que, nas circunstâncias em que realizada aquela conduta
penalmente ilícita, pudesse seu autor ter agido de outra forma. Para que o
Estado possa exigir este outro comportamento, faz-se necessário, antes
de mais nada, que a pessoa tenha a capacidade psíquica de compreensão
ou de autodeterminação, em relação ao caráter ilícito de sua conduta, a
inimputabilidade assim afastando a culpabilidade e, conseqüentemente, o
crime.
O princípio da culpabilidade diz respeito à capacidade de escolha
da pessoa humana e, assim, diretamente se relaciona com o
reconhecimento de sua dignidade, cuja proteção, como já visto, é função
maior do ordenamento jurídico, no Estado Democrático de Direito,
constituindo, como também já visto, um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil. Impedindo qualquer reprovação por uma escolha
que a pessoa não pôde fazer ou impedindo que se a reprove quando não
pôde exercitar sua capacidade de escolha, o princípio da culpabilidade
integra-se aos princípios limitadores do poder do Estado de punir,
gerados por aquela função maior do ordenamento jurídico, no Estado
Democrático de Direito.
No entanto, embora reconhecendo a ausência de culpabilidade e,
assim, a inexistência de crime nas condutas de quem se mostra
inimputável, o sistema penal, de todo modo, insiste em alcançá-los, ao
impor, como conseqüência da realização da conduta penalmente ilícita,
as chamadas medidas de segurança, com base em uma alegada
“periculosidade” atribuída a seus inculpáveis autores.
É este o campo onde, primordialmente, se manifesta a aliança
entre o direito penal e a psiquiatria, responsável por trágicas páginas da
história do sistema penal. É sempre bom lembrar da simetria existente
entre o manicômio e a prisão, instituições totais de controle, que têm sua
origem comum nos séculos XVIII e XIX, quando, com a evolução do
processo de industrialização, se consolidam as formações sociais do
capitalismo.
A idéia de “periculosidade” não se traduz por qualquer dado
objetivo, ninguém podendo, concretamente, demonstrar que A ou B,
psiquicamente capaz ou incapaz, vá ou não realizar uma conduta ilícita
no futuro. Já por isto, tal idéia se mostra incompatível com a precisão
que o princípio constitucional da legalidade exige de qualquer conceito
normativo, especialmente em matéria penal. A “periculosidade” do
inimputável é uma presunção, que não passa de uma ficção, baseada no
preconceito que identifica o “louco” – ou quem quer que apareça como
“diferente” – como “perigoso”.
Na realidade, as medidas de segurança para inimputáveis,
consistindo, como na hipótese prevista no artigo 29 da Lei nº 6.368/76,
na sujeição obrigatória e por tempo indeterminado a tratamento médico
(ambulatorial ou mediante internação), não passam de formas mal
disfarçadas de pena, cuja inconstitucionalidade, certamente, há de ser
afirmada, por manifesta violação do princípio da culpabilidade e,
conseqüentemente, da própria norma constitucional, que aponta a
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil.
O tratamento de qualquer transtorno mental não se coaduna com o
caráter punitivo, indissoluvelmente ligado à sua determinação, por parte
de órgãos integrantes do sistema penal, submetidos a conclusões de um
discurso médico ultrapassado e igualmente comprometido com a
repressão e o controle dos indivíduos.
No campo dos transtornos mentais, não pode haver espaço para a
atuação da Justiça criminal. Neste campo, a atuação do Poder Judiciário,
em sua função maior de garantidor dos direitos fundamentais dos
indivíduos, há de se dar no juízo cível, destinando-se, unicamente, a
controlar a legalidade de eventuais tratamentos compulsórios, requeridos
por familiares ou determinados por profissionais da saúde, na mesma
linha de atuação desenvolvida, por exemplo, em hipóteses de pedidos de
interdição.
Este controle da legalidade, visando a garantia dos direitos
fundamentais do portador de transtornos mentais, decerto, há de levar em
conta que tratamentos compulsórios, mesmo quando requeridos por
familiares ou determinados por profissionais da saúde, só se autorizam
em casos extremos, em períodos agudos, em que manifestado um total
comprometimento da liberdade de escolha do indivíduo e,
simultaneamente, demonstrada uma agressividade concretamente
produtora de danos a si e a terceiros, em nada interessando a
identificação ou não da prática de condutas penalmente ilícitas,
atribuídas ao enfermo mental.
Quando se considera a conduta penalmente ilícita como um
diferencial entre enfermos mentais, submetendo-se os que são apontados
como inimputáveis autores daquela conduta à intervenção do sistema
penal, o que se está efetivamente fazendo é passar por cima do princípio
da culpabilidade, para, assim, impor-lhes uma indevida punição pela
prática daquela conduta.

I.4.7. O tratamento integrado ao sistema penal: a obrigatoriedade violadora da


liberdade individual, da intimidade e da vida privada
Tratando-se da simples posse de drogas qualificadas de ilícitas
para uso pessoal ou de seu consumo em circunstâncias que não
ultrapassem o âmbito individual, a imposição do tratamento médico
obrigatório, integrado ao sistema penal, sob o pretexto de uma dita
dependência, antes mesmo de violar o princípio da culpabilidade,
reafirma a igualmente inconstitucional violação da liberdade individual,
da intimidade e da vida privada, presente em qualquer intervenção do
Estado sobre autores de condutas privadas, como são a posse de drogas
qualificadas de ilícitas para uso pessoal ou seu consumo em
circunstâncias que não ultrapassem o âmbito individual.
Mas, este inconstitucional tratamento obrigatório já vem sendo
aplicado até mesmo para imputáveis, isto é, para aqueles que têm íntegra
sua capacidade psíquica, nas tentativas, diretamente veiculadas pelos
Estados Unidos da América, de transportar, para o Brasil, as chamadas
“drug courts”, que, aqui, se pretende sejam adotadas, com a tradução
literal de “tribunais de drogas”, ou sob a denominação de “justiça
terapêutica”, esta última já evidenciando a retomada daquela nefasta
aliança entre o direito penal e a psiquiatria.
Segue-se, aqui, o rastro aberto pela já referida Lei nº 9.099/95
(veja-se o item 1.3 supra), que, tratando dos juizados especiais criminais,
consagra a idéia da aplicação antecipada de penas alternativas à prisão,
em hipóteses de infrações penais (crimes ou contravenções),
consideradas de pequeno ou médio potencial ofensivo, através da
aceitação, por parte do réu, do recebimento destas penas, explícitas ou
disfarçadas, sem que se discuta e comprove a efetiva prática da infração
penal e sem que haja, assim, um efetivo exercício do direito de defesa.
Com a utilização da negociada suspensão do processo (artigo 89 da Lei
nº 9.099/95), alguns órgãos da Justiça criminal vêm adicionando às
condições impostas um legalmente não previsto tratamento médico,
como forma de antecipar a concretização dos princípios embutidos nas
“drug courts” norte-americanas.
Assim, estende-se o tratamento médico a imputáveis, o que já
contraria as próprias leis penais vigentes. Assim, amplia-se o alcance do
sistema penal, com a imposição de verdadeiras penas, negociadas ao
preço da quebra de diversas garantias do réu, derivadas da cláusula
fundamental do devido processo legal, constitucionalmente consagrada
(artigo 5º, inciso LIV). Neste ponto, vale destacar a observação, notada na
prática desenvolvida na matriz norte-americana, sobre a violação dos
princípios do contraditório e da imparcialidade do julgador, configurada
pela ação conjunta de promotor, defensor e juiz, para forçar o réu a
aceitar o programa de tratamento (veja-se tal observação no site
www.drugwarfacts.org).
Esta importação das “drug courts” chega, ainda, ao âmbito dos
juizados da infância e da juventude. Ali também, pretende-se violar a
liberdade individual, a intimidade e a vida privada de adolescentes,
através da imposição de um tratamento médico obrigatório, sem que
externado transtorno mental, que o possa autorizar.
A Constituição Federal de 1988 garante a liberdade de crianças e
adolescentes, na regra contida em seu artigo 227. Também neste campo,
não se pode esquecer que as leis infraconstitucionais têm sua vigência
(ou aplicabilidade) condicionada à sua compatibilização com o disposto
na Lei Maior. As medidas restritivas da liberdade de adolescentes, como
as que são previstas nas regras do artigo 112 ou em alguns incisos do
artigo 101 da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente),
decerto, não autorizam um tal antecipado tratamento médico obrigatório,
cuja imposição, diante da prática de um alegado ato infracional
(correspondente às infrações penais), somente poderá se dar, através de
sentença, proferida com a observância das garantias do devido processo
legal.
Na hipótese de simples posse de drogas qualificadas de ilícitas
para uso pessoal ou seu consumo em circunstâncias que não ultrapassem
o âmbito individual, não se pode afirmar a prática de ato infracional, da
mesma forma que não podem tais condutas ser objeto de criminalização.
O discurso, que acena com uma supostamente necessária
“proteção” ao adolescente, representa apenas uma desautorizada
insistência em fazer reviver a antiga doutrina da “situação irregular”,
que, se fazendo presente no revogado Código de Menores (Lei nº
6.697/79), que precedeu a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), negava à criança e ao adolescente a qualidade de sujeitos
de direitos – e, portanto, de pessoas dotadas de cidadania –, utilizando-se
de uma alegada proteção àqueles como pura e simples forma de controle
social.

1.4.8. O tratamento associado ao sistema penal: a obrigatoriedade


comprometedora da eficácia terapêutica e violadora da ética
Da mesma forma que dificulta o diálogo e a busca de
esclarecimentos e informações, a criminalização também introduz um
complicador à procura do tratamento, ao implicar na revelação da prática
de uma conduta tida como ilícita, por parte de quem dele necessita, o
que, certamente, muitas vezes, acaba por funcionar como um fator
inibitório àquela procura de assistência e tratamento.
Por outro lado, quando impõe um tratamento associado ao sistema
penal, a política proibicionista contraria o princípio, universalmente
aceito, de que a maior eficácia no enfrentamento de uma adição está
diretamente relacionada ao desejo de sua superação e, portanto, à
voluntariedade na busca da intervenção terapêutica. Além disso, em um
tratamento integrado ao sistema penal, os objetivos de controle sobre o
indivíduo acabam por se sobrepor aos objetivos terapêuticos e, pior do
que isso, acabam mesmo por se sobrepor a princípios éticos.
O tratamento obrigatório, imposto nos termos das regras do artigo
29 da Lei nº 6.368/76, exige uma nem sempre possível ou desejável
abstinência do uso da droga qualificada de ilícita, tampouco admitindo a
“frustração” do tratamento ambulatorial, o que contraria os fatos bastante
conhecidos de que “recaídas”, ausências ou interrupções de sessões são
episódios normais em qualquer tratamento, nem sempre traduzindo um
fracasso dos objetivos terapêuticos. Tais exigências, somando-se à
própria natureza obrigatória do tratamento e à sua integração ao sistema
penal, implicam no controle dos órgãos da Justiça criminal sobre a
pessoa a quem o tratamento foi imposto, controle este que é feito a partir
de informações prestadas pelos próprios encarregados do tratamento.
O comprometimento do tratamento é evidente. Como esperar que
um paciente se abra com um terapeuta, que age, ao mesmo tempo, como
uma espécie de informante? Mas, pior do que comprometer o desenrolar
do tratamento, a integração deste tratamento ao sistema penal implica no
rompimento com a ética, que deve presidir as relações entre terapeuta e
paciente. Baseando-se na confiança e no sigilo, voltados para a proteção
do paciente, esta ética é, necessariamente, violada, quando o profissional
da saúde, encarregado do tratamento, rompendo com o próprio dever de
sigilo inerente à sua profissão, relata – ou, talvez seja mais apropriado
dizer, delata –, para um órgão de controle, comportamentos do paciente,
que poderão atuar contra ele, piorando sua situação jurídica.

I.5 – A política proibicionista e a ampliação do poder do Estado de


punir
Épocas de desequilíbrio econômico e social, como o atual
momento histórico que se convencionou chamar de pós-modernidade,
trazem maior punição e maior repressão – e não necessariamente, como
se costuma imaginar e divulgar, um aumento na quantidade de crimes.
São épocas em que se faz mais necessária a demonstração do
terror oficial, para que, sob o pretexto da repressão ao crime, possam ser
contidos movimentos transformadores e libertadores. Sentimentos de
intranqüilidade, de medo e de insegurança são manipulados,
especialmente, através de distorcidas informações divulgadas pela mídia.
Com isto, produzem-se preocupações crescentes com a criminalidade,
gerando uma demanda de maior repressão e uma maior receptividade
para a enganosa publicidade que “vende” o sistema penal como um
produto-serviço destinado a fornecer proteção e segurança. Assim, vai se
abrindo espaço para a ampliação do poder do Estado de punir.
A política proibicionista, criminalizadora de condutas relacionadas
à produção, à distribuição e ao consumo de algumas dentre as inúmeras
substâncias psicoativas conhecidas, é, hoje, um dos mais poderosos
instrumentos utilizados nesta ampliação do poder do Estado de punir.
Com uma repressão mais rigorosa e propagandeada como mais eficaz,
com leis excepcionais, o ampliado poder do Estado de punir intensifica o
controle sobre todos os indivíduos e perigosamente ameaça os próprios
fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Vejamos alguns aspectos reveladores da associação entre a
política proibicionista e a ampliação do poder do Estado de punir.

I.5.1. A alimentação da demanda de maior repressão


Muitos são os mecanismos, através dos quais as drogas qualificadas
de ilícitas e condutas a elas relacionadas são identificadas como um “mal
universal”, que estaria a ameaçar a própria existência da humanidade,
não sendo raro se ouvir que as drogas qualificadas de ilícitas seriam um
“flagelo da humanidade”. A identificação de determinados fenômenos,
eleitos ou criados para funcionar como o “mal universal”, alimenta a
demanda de maior repressão e a ampliação do poder do Estado de punir
e se faz, com maior intensidade, em momentos históricos em que
desequilíbrios e conflitos estruturais ameaçam a estabilidade das
formações sociais nas quais surgem. Este “mal universal” já foi outrora
identificado à bruxaria e à heresia. Hoje, o mesmo papel – e de forma
bastante semelhante – está reservado às drogas qualificadas de ilícitas.
Vejamos alguns destes mecanismos, operantes em relação às drogas
qualificadas de ilícitas.
I.5.1.a. A manipulação do clima de alarme social
A criminalização de condutas relacionadas à produção, à
distribuição e ao consumo das drogas qualificadas de ilícitas,
introduzindo o artificial mecanismo que as apresenta como
diferentes das demais substâncias psicoativas, permite que se criem
mistérios e fantasias em torno das substâncias tornadas ilícitas, que
passam a ser vistas como capazes de provocar os mais temíveis
efeitos a um simples contato.
Na linha comum à genérica publicidade do sistema penal,
divulgam-se apressadas ou mesmo falsas informações, em geral
recheadas com manipuláveis e manipuladas pesquisas e estatísticas,
de que é exemplo o desmentido mito da “escalada” (veja-se o item
1.4.2 supra), superdimensionando-se eventuais repercussões
negativas da disseminação da oferta e da demanda das substâncias
tornadas ilícitas, como acontece, por exemplo, quando se tomam
pessoas que enfrentam problemas com um uso excessivo de drogas
qualificadas de ilícitas, como se fossem representativas da totalidade
dos usuários daquelas substâncias.
Ocultando-se conseqüências geradas pela própria intervenção do
sistema penal, as atividades econômicas de produção e distribuição
das drogas qualificadas de ilícitas são, enganosamente, apresentadas
como algo extremamente poderoso e incontrolável por meios
regulares, a ameaçar a segurança e a tranqüilidade de todos, com
isto se exacerbando o clima de alarme social, formado em torno
daquelas substâncias artificialmente diferenciadas.
I.5.1.b. A manipulação da linguagem: do “tráfico” ao
“narcotráfico” e ao “crime organizado”
A divulgação da idéia de algo misterioso, poderoso e incontrolável
por meios regulares, em boa parte, se faz através do discurso, que
produz palavras ocas, de significado desvirtuado ou indefinido, mas
com uma elevada carga emocional, propiciadora da aceitação do
emprego de quaisquer meios para enfrentar os perigos anunciados.
Expressões como “narcotráfico” ou “crime organizado” são
repetidas e rapidamente interiorizadas, sem qualquer atenção para
com sua manifesta incongruência.
Jamais se conseguiu estabelecer – até porque não há como fazê-lo
– qualquer definição, com um mínimo de cientificidade, que traduza
o conteúdo da expressão “criminalidade organizada”, generalizada a
partir da década de 1990. Tenta-se apontar características, que
seriam dadas por uma estrutura empresarial ou por supostas
infiltrações nos aparelhos do poder político, mas não se consegue
chegar a uma definição. Na realidade, toda conduta, criminalizada
ou não, que não se limite a ser uma reação instantânea ou instintiva
a determinada situação, tem um componente de organização, que se
manifesta, ainda mais especialmente, quando se têm condutas que
reúnem mais de uma pessoa, com uma finalidade comum, o que,
ordinariamente, acontece, seja no campo das condutas lícitas, como
no das ilícitas. A expressão “criminalidade organizada” não tem,
portanto, nenhum significado particular, apenas servindo para
assustar e permitir a produção de leis de exceção, aplicáveis ao que
quer que se queira convencionar como sendo uma suposta
manifestação de um tal imaginário fenômeno.
A expressão “narcotráfico”, surgiu na década de 1980, com a
política norte-americana de “guerra contra as drogas”, que elegeu
um agente externo – os produtores e distribuidores dos países latino-
americanos – como o inimigo a ser enfrentado. A expressão
“tráfico”, que tem o sentido de negócio ilegal, já traz a forte carga
emocional, que, desde a linguagem, é passada pelo sistema penal e
que, através do que Louk Hulsman chama de dialeto penal (veja-se a
edição em português de seu PENAS PERDIDAS, Niterói, Ed. Luam, 1993, tradução de
Maria Lúcia Karam, especialmente páginas 95 e 96), dramatiza, demoniza e
isola pessoas e acontecimentos, ocultando seus reais predicados e
características.
A partir da “guerra contra as drogas”, adicionou-se à expressão
“tráfico”, o uso do radical da palavra inglesa narcotics, que, estando
presente também em outros idiomas, permitiu, ao mesmo tempo,
uma uniformização de linguagens e uma ainda maior carga
emocional, referida às atividades de produção e distribuição das
drogas qualificadas de ilícitas. A expressão “narcotráfico” passou,
então, a ser acriticamente repetida e interiorizada, sem que se
perceba – ou se queira perceber – o claro descompromisso com a
realidade e com a ciência, embutido em tal distorcido e funcional
uso da linguagem. Para criar o útil e exacerbado clima emocional,
passa-se, tranqüilamente, por cima do fato de que o alvo principal
da política proibicionista era e continua sendo a cocaína, que, como
não se pode ignorar, não é um narcótico, tratando-se, ao contrário,
de um evidente e conhecido estimulante.
Mas, os “usuários” de tal generalizada e distorcida linguagem
com isto não se preocupam. Vão repetindo-a e criando outras
expressões análogas, como “narcodólares”, “narcoterrorismo”, etc.,
já se chegando, até mesmo entre pessoas aparentemente
progressistas, a falar em “narco-salas”, para denominar locais de
consumo seguro. Assim, consciente ou inconscientemente, vão os
“usuários” deste distorcido dialeto contribuindo para a consolidação
dos rumos internacionalizados da política proibicionista e para a
alimentação das manipuladas fantasias em torno de algo misterioso
e poderoso, a ser enfrentado não importa com que meios. Assim,
vão cultivando aquela idéia do “mal universal”, propiciadora da
ampliação do poder do Estado de punir.
I.5.1.c. A criação de estigmas e preconceitos
O estigma trazido pela idéia comum de crime (veja-se o item 1.4.5
supra), no caso das drogas qualificadas de ilícitas, é acentuado pela
idéia do “mal universal”, que é a elas associada. Os estigmas e os
preconceitos, que se formam a partir deles, fortalecem a crença em
falsas informações e propiciam a criação da figura do “bode
expiatório”, cuja funcionalidade política se manifesta em diversos
níveis.
No plano internacional, a “guerra contra as drogas”, levada a cabo
pelos Estados Unidos da América, inverte as leis da economia, para
responsabilizar os países produtores e exportadores de drogas
qualificadas de ilícitas pela demanda, que se faz amplamente
presente no interior da sociedade norte-americana. Criando, com
isso, o que Rosa Del Olmo apropriadamente chamou de “o
estereótipo delitivo latino-americano” (veja-se seu LA CARA OCULTA DE LA
DROGA, Bogotá, Temis, 1988), os senhores da política proibicionista

ampliam seu controle sobre os países que lhe são periféricos. Estes,
despidos da soberania, deixam-se atingir por planos de erradicação
de plantações, devastadores do meio ambiente, por tratados de
extradição, transferidores do julgamento de seus nacionais para os
Estados Unidos da América, por uma atuação consentida, em seu
território, de agências de informação norte-americanas, até chegar
às intervenções militares diretas, que, já ocorridas na Bolívia e no
Panamá, repetem-se com o Plano Colômbia.
Internamente, em cada país, os empresários e empregados das
empresas produtoras e distribuidoras de drogas qualificadas de
ilícitas, estigmatizados como “traficantes”, ou ainda mais
demonizados como “narcotraficantes”, recebem toda a carga
negativa transferida para os que, como eles, cumprem o papel de
“bodes expiatórios” de todos os males. Ouvem-se, até mesmo,
indignadas manifestações contra o fato dos “traficantes explorarem
o vício” dos compradores de suas mercadorias. Ora, em uma
formação social capitalista, em que o lucro há de ser o objetivo
essencial de qualquer empreendimento empresarial, por que se
haveria de exigir que produtores e distribuidores de substâncias
psicoativas se abstivessem de lucrar, em atenção ao bem-estar de
consumidores? Por que as atividades das indústrias farmacêuticas,
que extraem lucros da doença, não são objeto de indignação? Ou,
ainda, as atividades de banqueiros, extraindo lucros das dificuldades
econômicas de quem se vê obrigado a recorrer a seus empréstimos,
até mesmo, por exemplo, para poder adquirir um lugar onde morar?
Os diferenciados e demonizados produtores e distribuidores de
drogas qualificadas de ilícitas, tornados “bodes expiatórios”, são,
convenientemente, utilizados para concentrar a hostilidade da
maioria, com o que se obtém a coesão em formações sociais
desequilibradas e conflituosas, como as que se fazem presentes
nesta chamada pós-modernidade.
A hostilidade e o medo despertado facilitam a intensificação do
controle social, a ampliação do poder do Estado de punir e o
simultâneo enfraquecimento do Estado Democrático de Direito.
Neste sentido, tem-se um eloqüente exemplo, vindo de pesquisa,
realizada sob encomenda do escritório francês da Anistia
Internacional. No país, que foi berço, em 1789, da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, inspiradora de todas as
posteriores declarações internacionais de direitos fundamentais do
indivíduo, 25% dentre os 1.000 entrevistados afirmaram ser
aceitável o recurso à tortura em certos casos excepcionais,
mencionando a hipótese de policiais usarem de violência para forçar
um “traficante” a confessar onde esconde a droga (notícia da referida
pesquisa, divulgada em 17 de outubro de 2000, em Paris, foi publicada na Folha
de São Paulo, na edição do dia 19 seguinte).
Por sua vez, os consumidores das drogas qualificadas de ilícitas
são estigmatizados como criminosos, infratores, ou doentes, que
devem sofrer uma pena explícita ou disfarçada em sanção
administrativa, ou obrigatoriamente se submeterem a tratamento
médico. A alternativa é aquela apontada por Alessandro Baratta: se
é enfermo, não é livre; se é livre, é mau (“FUNDAMENTOS IDEOLÓGICOS DA
ATUAL POLÍTICA CRIMINAL SOBRE DROGAS”,in SÓ SOCIALMENTE ..., org. Odair Dias
Gonçalves e Francisco Inácio Bastos, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1992,
páginas 35 a 49).
Condicionada pelos estigmas, mergulhada nos preconceitos,
fiando-se nas falsas informações, supõe a maioria que o consumo
das drogas qualificadas de ilícitas conduz à criminalidade. Dentre
muitos fatores, desconhece esta maioria que, como já anotou Emilio
Lamo de Espinosa, falando do consumo de heroína na Europa, “o
toxicômano não é delinqüente porque usa droga; é delinqüente
porque se vê privado dela”, para assinalar, mais adiante, que, com a
proibição, o que se conseguiu foi produzir o aumento de roubos a
farmácias, posteriormente substituídos, nas grandes cidades, pela
troca direta de objetos roubados por heroína (“CONTRA LA NUEVA
PROHIBICIÓN: LOS LÍMITES DEL DERECHO PENAL EN MATERIA DE TRÁFICO Y CONSUMO DE
ESTUPEFACIENTES”,trabalho publicado no BOLETIN DE INFORMACIÓN número 1303 do
Ministério da Justiça da Espanha, de 25 de fevereiro de 1983).

I.5.2. O maior rigor penal e os novos meios de investigação e busca de provas


A repressão às drogas qualificadas de ilícitas e a uma suposta,
indefinida e indefinível “criminalidade organizada”, a elas
apressadamente associada, tem sido, notadamente a partir da década de
1990, o principal pretexto para uma crescente produção de leis, que, à
semelhança das legislações excepcionais criadas para a repressão política
das ditaduras, se afastam dos princípios garantidores, inerentes ao Estado
Democrático de Direito.
No Brasil, a própria Constituição Federal de 1988,
contraditoriamente, abriu espaço para a expansão da legislação de
exceção, produzida sob este pretexto, com a introdução no inciso XLIII
de seu artigo 5º de regra dispondo que “a lei considerará crimes
inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos ...”. Como as demais cláusulas
expressas de penalização, deslocadamente incluídas entre os direitos e
garantias fundamentais, nos incisos XLI (“a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”),
XLII (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e
imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”) e XLIV
(“constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático”), a regra do inciso XLIII resultou de acordo político, que,
já na Constituinte, começava a erigir, à direita e à esquerda, o rigor penal
em remédio para todos os males, como se ameaças de inafiançabilidade
ou imprescritibilidade pudessem evitar a repetição de golpes e ditaduras
militares, como a de que recém saía o Brasil, proscrever a tortura,
superar entranhadas e ocultadas discriminações, controlar o mercado das
drogas qualificadas ilícitas, ou reduzir a ocorrência de outras condutas
objeto de convencional criminalização.
Veremos, a seguir, como vem se concretizando a legislação de
exceção, que faz de um desmedido rigor penal, de uma sistemática
violação de princípios garantidores e de novos meios de investigação e
de busca de provas o centro da política anunciadamente destinada a
controlar a produção, a distribuição e o consumo das drogas qualificadas
de ilícitas.
I.5.2.a. A legislação especial e de exceção: visão geral
A Lei nº 6.368/76, não por acaso produzida durante a ditadura
militar, já antecipava a tendência de retirar determinadas matérias
do Código Penal, para tratá-las em leis especiais. Mas, é, como
assinalado, a partir da década de 1990, que esta tendência se
acentua, com a proliferação de leis especiais, que acabam por se
constituir em uma verdadeira legislação de exceção.
Esta legislação de exceção, inspirada, especialmente, pelo pretexto
de repressão às drogas qualificadas de ilícitas e a uma suposta,
indefinida e indefinível “criminalidade organizada” a elas associada,
parte, assim, da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, a chamada lei
dos crimes hediondos. Ao concretizar a deslocada regra
constitucional, vinda no inciso XLIII do artigo 5º da Carta de 1988,
a “hedionda” lei foi além das exceções constitucionalmente
previstas – limitadas à inafiançabilidade e à insuscetibilidade de
graça ou anistia, como expressado no texto acima transcrito –,
acabando por, indevidamente, introduzir novas e maiores restrições,
para impor tratamento de especial rigor diante de acusações e
condenações relacionadas com a prática dos crimes nela
contemplados, entre os quais o “tráfico” das drogas qualificadas de
ilícitas.
No âmbito da legislação de exceção, seguiram-se a Lei nº
9.034/95, modificada pela Lei nº 10.217/01, a dispor sobre “a
utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de
ações praticadas por organizações criminosas”; a Lei nº 9.296/96,
que regulamentou a interceptação de comunicações telefônicas para
fins de investigação criminal; e a Lei nº 9.613/98, que dispôs sobre
os chamados crimes de lavagem de capitais.
A nova Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002, que se agrega à
Lei nº 6.368/76, na normatização da política concernente às drogas
qualificadas de ilícitas, em tudo se afina com esta legislação de
exceção.
Nos subitens, que se seguem, são destacados alguns dos pontos,
que caracterizam estas leis excepcionais.
I.5.2.b. O rigor penal: o regime fechado obrigatório
A Lei nº 8.072/90, abrangendo, nos crimes nela contemplados, o
“tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas, veio acentuar o
progressivo rigor penal, que se faz sentir, neste campo, desde a Lei
nº 6.368/76, passando a impor o regime fechado obrigatório, para o
cumprimento da pena privativa de liberdade, resultante de
condenações pela prática de condutas relacionadas à produção e à
distribuição daquelas substâncias psicoativas.
Esta obrigatoriedade do integral cumprimento da pena privativa de
liberdade em regime fechado, estabelecida na regra do § 1º do artigo
2º da Lei 8.072/90, é manifestamente discrepante do princípio da
individualização da pena, constitucionalmente preconizado e
garantido no inciso XLVI do artigo 5º da Carta de 1988.
A imposição de um regime único e inflexível para o cumprimento
da pena privativa de liberdade, com a vedação da progressividade
em sua execução (passagem progressiva, para regimes menos
rígidos, como o semi-aberto e o aberto), atinge o próprio núcleo do
princípio individualizador, assim, indevidamente impedindo sua
efetiva realização.
A essência da individualização reside na consideração do fato
ocorrido, do crime efetivamente realizado, da pessoa que,
concretamente, o realizou. Quando estabelece uma obrigatoriedade
genérica do regime fechado, para o cumprimento da pena privativa
de liberdade, de forma que este regime seja imposto a todo e
qualquer condenado pela prática de um determinado tipo abstrato de
crime, independentemente da medida da pena concretizada, o
legislador ordinário está impedindo que o juiz considere a situação
concreta, que acaba por ser substituída por uma abstração. Assim,
está o legislador ordinário afetando aquela essência do princípio
individualizador e, conseqüentemente, violando a norma
constitucional, que o garante. A individualização só opera – e só
pode operar – no plano da pena concretizada, sendo
irremediavelmente negada, quando se trabalha, unicamente, com o
crime abstratamente considerado.
Neste sentido, não deixaria de continuar violando o princípio
constitucional da individualização da pena, o dispositivo incluído no
capítulo III do projeto de lei nº 1873/91 (nº 105/96 no Senado
Federal), objeto de veto do Presidente da República, com que se
pretendia estabelecer a obrigatoriedade do regime fechado para a
primeira terça parte do cumprimento de penas impostas em
condenações relacionadas ao “tráfico” de drogas qualificadas de
ilícitas, admitida a progressão após o decurso daquele tempo. A
obrigatoriedade genérica do regime fechado, para o início do
cumprimento da pena privativa de liberdade, imposta a todo e
qualquer condenado pela prática de um crime abstratamente
considerado, igualmente desconsidera a situação fática do crime
concretamente praticado e a pessoa de seu autor, assim, igualmente,
se antagonizando com a essência do princípio individualizador.
A inafastável obediência ao princípio individualizador,
constitucionalmente consagrado, impõe que a fixação do regime
inicial, para o cumprimento da pena privativa de liberdade, tenha
como critério objetivo a quantidade da pena concretamente aplicada,
a exemplo da sistemática observada nas regras gerais do Código
Penal brasileiro (alíneas a, b e c do § 2º do artigo 33). É na
quantidade da pena concretamente aplicada que poderá se refletir a
maior ou menor gravidade do crime efetivamente praticado, de
modo a determinar a forma, mais ou menos rigorosa, a ser
observada na execução da sanção a ele correspondente. A maior ou
menor gravidade do crime não pode se esgotar em um desvalor
expressado em uma previsão abstrata da pena, somente sendo,
efetivamente, reconhecível na medida da pena, que é imposta pelo
juiz, fundamentalmente, através da consideração do desvalor
expressado nos fatos e circunstâncias objetivos e subjetivos
presentes na conduta concretamente realizada, sendo, exatamente,
nesta consideração, que se materializa o princípio individualizador.
I.5.2.c. O rigor penal: a vedação do indulto
Agravando a extensão do tempo de permanência na prisão – onde
cada dia se torna insuportavelmente longo – e fechando as portas à
esperança na perspectiva de uma reconquista mais próxima da
liberdade perdida, a Lei nº 8.072/90 soma à inconstitucional
previsão do regime fechado obrigatório, a vedação do indulto (artigo
2º, inciso I), aos condenados pela prática dos crimes nela
contemplados, entre os quais o “tráfico” de drogas qualificadas de
ilícitas.
Prevendo a deslocada regra, vinda no inciso XLIII do artigo 5º da
Constituição Federal, tão somente a insuscetibilidade de graça ou
anistia, para os crimes ditos hediondos e para aqueles a eles
equiparados (como é o “tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas),
não estava a lei infra-constitucional (ou ordinária) autorizada a
ampliar tal restrição, para estendê-la ao indulto. Sendo uma espécie
de “clemência soberana” ou de perdão coletivo, decorrente de ato do
Presidente da República, o indulto, que proporciona a redução do
tempo de duração das penas, aplicadas a um coletivo de
condenados, através de sua extinção antecipada, é instituto
claramente diferenciado da graça (espécie de clemência ou perdão
concedido, não coletivamente, mas sim a pessoa determinada) e da
anistia (indulgência legislativa que extingue o próprio crime e não
apenas a pena). O poder de conceder indulto é atribuído ao
Presidente da República, na regra do inciso XII do artigo 84 da
Constituição Federal, não havendo, nem ali, nem em qualquer outro
lugar do texto constitucional, qualquer restrição ao exercício deste
poder, que, assim, não poderia ser restringido pelo legislador
ordinário, que, sempre vale lembrar, há de estar sempre adstrito à
observância dos princípios e regras, ditados pela Lei Maior.
I.5.2.d. O rompimento com postulados fundamentais do
devido processo legal: a vedação de liberdade provisória
Veda a regra do inciso II do artigo 2º da Lei nº 8.072/90 a
concessão de liberdade provisória, a quem tenha sido preso em
decorrência de flagrante, relacionado a alegada prática dos crimes
nela contemplados, entre os quais o “tráfico” de drogas qualificadas
de ilícitas.
Mais uma vez, a lei ordinária indevidamente amplia restrição,
vinda no inciso XLIII do artigo 5º da Constituição Federal, onde
prevista tão somente a inafiançabilidade, nas hipóteses de alegada
prática daqueles crimes, a prestação de fiança constituindo tão
somente uma das modalidades de liberdade provisória, de mais
imediata concretização.
Mas, mais do que inautorizadamente ampliar o conteúdo restritivo
daquela regra constitucional, o dispositivo da Lei nº 8.072/90, ora
comentado, viola a cláusula fundamental do devido processo legal,
expressada na regra do inciso LIV do artigo 5º da Constituição
Federal (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal), bem como princípios e garantias dela
derivados, com igual assento constitucional, especialmente a
chamada presunção de inocência.
Proclama a regra do inciso LVII do artigo 5º da Constituição
Federal que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória”. Este princípio, que
consagra a chamada presunção de inocência e que se encontra nas
raízes do Estado Democrático de Direito, significa que o réu há de
ser tratado como inocente, até que haja uma condenação, imposta
com observância das regras do devido processo legal, contra a qual
não caiba mais recurso, ninguém podendo, assim, sofrer uma pena,
sem um processo regular e um julgamento definitivo, nem podendo
ficar preso, antes deste julgamento definitivo, a não ser em situações
excepcionais, em que esta prisão, dita provisória ou processual, seja
o único meio de garantir que o processo possa se desenvolver e
chegar normal e eficazmente a seu final.
A prisão decorrente de flagrante é constitucionalmente autorizada,
enquanto forma de coerção urgente e imediata, destinada a impedir
o dano ou os efeitos do ataque que está sendo ou acabou de ser
perpetrado contra o bem jurídico, de modo a restabelecer a paz
social teoricamente abalada naquele momento em que,
aparentemente, está sendo ou acabou de ser violada a lei penal.
Enquanto prisão provisória, que é, só pode, no entanto, ser mantida,
se, passado aquele momento, se verificar sua necessidade, nos
mesmos termos das demais modalidades de prisão provisória, isto é,
para garantir que o processo possa se desenvolver e chegar normal e
eficazmente a seu final. Não demonstrada esta necessidade, impõe-
se a concessão da liberdade provisória.
A eventual necessidade de manutenção da prisão decorrente de
flagrante há de ser demonstrada por fatos concretos, que hão de ser
examinados pelo juiz, em cada caso particularizado. Não pode,
assim, a lei estabelecer a vedação de liberdade provisória, de forma
abstrata, genérica e absoluta, para todos os casos em que alegada a
prática de determinados tipos de crimes. Tal vedação, retirando do
juiz o exame do caso concreto, acaba por se constituir na imposição
de uma prisão processual obrigatória, que se identifica a uma pena
antecipada, em que desconsiderado o estado de inocência, que,
como manda a norma constitucional, há de ser reconhecido a todos
os réus, não definitivamente condenados.
I.5.2.e. O rompimento com postulados fundamentais do
devido processo legal: as restrições ao direito de recorrer da
sentença condenatória
O estado de inocência, como mencionado no item anterior,
subsiste até que haja uma condenação definitiva, contra a qual não
caiba mais nenhum recurso. Assim, mesmo quando o processo
chega, no 1º grau de jurisdição (o primeiro juiz perante o qual se
desenvolve o processo), ao momento da sentença e esta é
condenatória, em regra, o réu deverá continuar em liberdade, para,
assim, exercer seu direito de recorrer, isto é, o direito de ver aquela
sentença reexaminada em outro grau de jurisdição (o 2º grau de
jurisdição sendo constituído pelos Tribunais de Justiça dos Estados
e, em São Paulo, também pelo Tribunal de Alçada, e, no âmbito da
Justiça Federal, pelos Tribunais Regionais Federais, os
pronunciamentos destes Tribunais ainda podendo ser, em
determinadas hipóteses, reexaminados pelo Superior Tribunal de
Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal).
Não havendo fatos que demonstrem a necessidade da prisão, para
aquele mesmo fim de garantir que o processo possa se desenvolver e
chegar normal e eficazmente a seu final, tampouco a condenação,
ainda sujeita a recurso, pode resultar na prisão (como é evidente,
havendo a possibilidade de recurso, o processo ainda não chegou a
seu final).
Indevidamente invertendo este princípio, a Lei nº 8.072/90 dispõe
que “em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá
fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade” (§ 2º do
artigo 2º), quando, vale sempre repetir, por força da garantia
constitucional do estado de inocência, a prisão decorrente de
sentença condenatória recorrível há de ser sempre uma exceção e
não a regra geral, a ser excepcionada por uma fundamentada decisão
que “permita” a apelação em liberdade. O dispositivo original da
Lei nº 6.368/76 (artigo 35), afastado por aquele dispositivo posterior
da Lei nº 8.072/90, ainda mais abusivamente, vedava qualquer
hipótese de apelação em liberdade do réu condenado pela prática do
crime de “tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas. O projeto de lei
nº 1873/91 (nº 105/96 no Senado Federal) pretendeu reviver esta
vedação, em dispositivo que, no entanto, acabou vetado pelo
Presidente da República, em razão do veto ao capítulo III daquele
projeto.
I.5.2.f. O rompimento com postulados fundamentais do
devido processo legal: restrição à autodefesa
Estabelece a regra do artigo 55 da nova Lei nº 10.409/02 que
“havendo a necessidade de reconhecimento do acusado, as
testemunhas dos crimes de que trata esta Lei ocuparão sala onde
não possam ser identificadas”.
Aqui se ensaia uma espécie de primeiro passo para a introdução,
em nosso ordenamento jurídico, das chamadas “testemunhas sem
rosto”, em clara violação ao direito do réu estar presente às
atividades de instrução probatória, produzidas no processo. Este
direito de presença integra a autodefesa, que, tanto quanto a defesa
técnica exercida por advogado, constitui desdobramento inseparável
da garantia da ampla defesa, que, assegurada na regra do inciso LV
do artigo 5º da Constituição Federal, é um dos mais importantes
corolários da cláusula fundamental do devido processo legal.
A autodefesa, sob esta vertente do direito de presença às
atividades de instrução probatória, viabiliza o contato permanente
do réu com seu defensor, assim permitindo a troca de informações,
entre estes, sobre fatos, objeto das provas, que vão sendo
produzidas, o que, decerto, é, com freqüência, indispensável à
plenitude do exercício da defesa. Um reconhecimento, feito no
processo, por testemunha não identificada e colocada em sala, a que
o réu não tenha acesso, certamente, não poderá ter qualquer
validade.
I.5.2.g. O rompimento com postulados fundamentais do
devido processo legal: a inversão do ônus da prova e a
prematura alienação de bens apreendidos
A Lei nº 10.409/02, nas regras vindas no parágrafo único de seu
artigo 44 e no § 1º de seu artigo 45, copia dispositivos constantes
dos §§ 2º e 3º do artigo 4º da Lei nº 9.613/98, esta última, a lei que,
obedecendo a determinações diretamente vindas dos Estados Unidos
da América, trata dos chamados crimes de lavagem de capitais.
Tais dispositivos, ao disciplinar medida cautelar de seqüestro de
bens, começam por inverter o ônus da prova, estabelecendo que é o
proprietário do bem, que o Ministério Público alega ser produto do
crime ou proveito auferido com sua prática, que terá que provar sua
origem lícita. Esta inversão do ônus da prova constitui clara
violação de um dos mais importantes corolários da cláusula
fundamental do devido processo legal, que consagra o princípio de
que quem alega um fato é que deve prová-lo.
Não bastasse isso, ainda se condiciona a apreciação do pedido de
restituição do bem ao comparecimento pessoal do réu, que, não raro,
poderá implicar na própria privação da liberdade do titular daquele
direito à restituição do bem, em hipóteses, decerto não raras, de
haver decreto de prisão provisória.
Igualmente violam a cláusula do devido processo legal
dispositivos que, vindos em regras dos artigos 46 a 48 e seus §§ da
nova Lei nº 10.409/02, já constavam, em linhas gerais, da Lei nº
6.368/76, ali indevidamente introduzidos através da Medida
Provisória nº 1713, editada pela primeira vez em 1998, por
inspiração da Secretaria Nacional Antidrogas e convertida na Lei nº
9.804, de 30 de junho de 1999. Os dispositivos, agora sim,
constantes de lei, regularmente elaborada, segundo a forma
constitucionalmente estabelecida para atos normativos que devem
emanar do Poder Legislativo, autorizam a alienação de bens
cautelarmente apreendidos, isto é, sem que sequer haja sentença no
processo principal efetivamente afirmando a origem ilícita daqueles
bens, prevendo-se tão somente caução consistente em certificados
de emissão do Tesouro Nacional, resgatáveis pelo seu valor de face.
É da tradição de nosso ordenamento jurídico, respeitosa do devido
processo legal, que a alienação do domínio de bens (isto é, a
transferência da propriedade) só se faça diante de título que permita
uma execução definitiva, isto é, quando não caiba mais qualquer
discussão sobre o direito que autoriza tal transferência do domínio
do bem.
A oferta, que costuma ser feita, de utilização dos recursos, obtidos
com aquela irregularmente antecipada transferência da propriedade
de bens, introduzida na legislação especial sobre drogas qualificadas
de ilícitas, para a prevenção e o tratamento, decerto, não deverá
seduzir quem esteja compromissado com o Estado Democrático de
Direito.
I.5.2.h. Os novos meios de investigação e de busca de provas
A revolução científico-tecnológica, que marca a atual etapa de
desenvolvimento das pós-modernas formações sociais capitalistas,
proporcionou um paralelo desenvolvimento de meios técnicos de
investigação. Colocados a serviço da intensificação do controle
sobre os indivíduos, estes novos meios de investigação facilitam a
ampliação do poder do Estado de punir, que se manifesta como a
resposta oficial ao desequilíbrio econômico e social gerado naquelas
formações sociais.
A pós-modernidade reaviva antigas premissas ideológicas,
levando a que o processo penal se afaste de sua função de meio de
tutela do indivíduo, como consagrado no Estado Democrático de
Direito, para ir se transformando em mero instrumento de realização
do poder do Estado de punir. Estas reavivadas premissas ideológicas
elegem a busca da verdade arrancada do indivíduo como o supremo
objetivo do processo, fazendo-a se sobrepor à proteção da liberdade
individual. Assim, decerto, faz lembrar, mais uma vez, das bruxas e
hereges, que deviam se submeter às torturas da Inquisição medieval,
para revelar a verdade, através da confissão. O toque pós-moderno,
mais “civilizado”, apenas substitui a tortura por formas mais
“científicas” e fisicamente indolores de intervenção sobre a pessoa,
mas sempre mantendo o mesmo objetivo de fazer com que, através
do próprio indivíduo, se revele a verdade sobre suas ações tornadas
criminosas.
Na legislação de exceção, que usa como principal pretexto o “mal
universal”, representado pelas drogas qualificadas de ilícitas, são
variados os meios utilizados para esta revelação da verdade.
Vejamos alguns deles.
- A quebra do sigilo sobre dados pessoais, as
interceptações telefônicas e as escutas ambientais
Autoriza a regra constante do inciso III do artigo 2º da Lei nº
9.034/95 “o acesso a dados, documentos e informações fiscais,
bancárias, financeiras e eleitorais”, lei esta que, inspirada pelo
pretexto de repressão à “criminalidade organizada”,
naturalmente, nem em sua versão original, nem com as
modificações introduzidas pela Lei 10.217/01, conseguiu
explicitar o que seja tal indefinível fenômeno.
Fundamentalmente, a partir deste dispositivo, foi se
generalizando a utilização da quebra do sigilo de dados
pessoais como meio de busca de provas no processo penal. A
nova Lei nº 10.409/02 também consagra tal meio, prevendo,
nos três primeiros incisos de seu artigo 34, o acesso a dados,
documentos e informações fiscais, bancárias, patrimoniais e
financeiras; a colocação, sob vigilância, de contas bancárias; e
o acesso a sistemas informatizados de instituições financeiras.
Regras constantes no artigo 11 da Lei nº 9.613/98 chegam a dar
a órgãos do Poder Executivo o poder de conhecer toda
transação financeira, superior a limite por estes mesmos
fixados, realizada por qualquer indivíduo, independentemente
da existência de qualquer investigação a respeito de eventuais
condutas puníveis.
A Lei nº 9.296/96, regulamentando a interceptação de
comunicações telefônicas e em sistemas de informática e
telemática, indevidamente ampliou onde a Constituição Federal
mandou restringir. Na tentativa de transformar em regra
investigatória o que só pode ser um meio excepcional de busca
de prova, começa a Lei nº 9.296/96 por, inusitadamente, expor,
de forma negativa, os requisitos necessários para a autorização
da medida (“Art.2º: Não será admitida a interceptação de
comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes
hipóteses: ...”). No terceiro dos requisitos enumerados, mais
generaliza a autorização da interceptação de comunicações
telefônicas, ao torná-la teoricamente admissível em todos os
fatos investigados que se adeqüem à definição de infrações
penais apenadas com reclusão, assim deixando ainda mais
transparente o desautorizado afastamento das diretrizes
impostas na última parte da regra do artigo 5º, inciso XII da
Constituição Federal.
Ao dispor que a lei deveria estabelecer as hipóteses
excepcionadoras da inviolabilidade do sigilo das comunicações
telefônicas, a Constituição Federal claramente sinalizou no
sentido da restrição do número e espécie de fatos puníveis
investigados, em que aquela excepcional medida restritiva do
direito à intimidade poderia se autorizar. A orientação do
constituinte, ditada por tal excepcionalidade, impunha a
restrição da medida a hipóteses de investigação de crimes mais
graves, evidentemente não podendo ser assim considerados
todos aqueles apenados com reclusão.
Com a Lei nº 10.217/01, que veio modificar a Lei nº
9.034/95, foi introduzida a previsão de outro meio invasor de
busca de provas: a “captação e interceptação ambiental de
sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos” (inciso IV,
acrescentado ao artigo 2º da Lei nº 9.034/95), isto é, a escuta e a
filmagem ambientais.
A Lei nº 10.409/02, remetendo à Lei nº 9.034/95, também
prevê, no inciso IV de seu artigo 34, a interceptação e a
gravação das comunicações telefônicas.
A verdadeira eficácia da quebra do sigilo de dados pessoais,
da interceptação de comunicações telefônicas, da escuta ou da
filmagem ambientais e de outros meios análogos, utilizados
para obter provas de eventuais condutas puníveis, através da
invasão do indivíduo, não é, como se anuncia, a de viabilizar
um supostamente mais eficaz controle da criminalidade.
Na realidade, o que estes meios invasores proporcionam é a
intervenção do Estado e seu maior controle sobre a intimidade e
a liberdade de todos os indivíduos, “suspeitos” ou não,
investigados ou não. Pense-se, por exemplo, na interceptação
de comunicações telefônicas. Quando se interceptam ligações
no telefone de alguém que está sendo investigado, não são
ouvidas apenas as manifestações de seu pensamento, mas sim
de toda uma série de pessoas, não investigadas, que,
eventualmente, utilizem o mesmo telefone. Familiares do
investigado ou outros moradores do local onde está instalada a
linha telefônica, empregados ou quaisquer pessoas que
freqüentem o local e falem ao telefone, bem como todos os que
entrem em contato com estas pessoas, através daquela linha
telefônica, estarão, da mesma forma, tendo sua intimidade
invadida.
- Observação e infiltração de agentes policiais
Foi também a Lei nº 9.034/95 que, com a regra vinda no
inciso II de seu artigo 2º, introduziu a ação controlada de
agentes policiais, como meio de investigação. A Lei nº
10.409/02, deixando expressa sua preocupação maior com o
“tráfico” internacional – preocupação decerto natural em quem
obedece a uma política ditada pelos Estados Unidos da
América –, dá características específicas a esta ação controlada
de agentes policiais (inciso II do artigo 33 e seu parágrafo único).
A ação controlada, no dizer da Lei nº 9.034/95, consiste em
“retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada
por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que
mantida sob observação e acompanhamento para que a
medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de
vista da formação de provas e fornecimento de informações”.
Já a Lei nº 10.409/02 a define como “a não-atuação policial
sobre os portadores de produtos, substâncias ou drogas ilícitas
que entrem no território brasileiro, dele saiam ou nele
transitem, com a finalidade de, em colaboração ou não com
outros países, identificar e responsabilizar maior número de
integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem
prejuízo da ação penal cabível”.
O que se propõe, assim, é a troca da imediata interrupção
de condutas, que, se supondo criminosas, seriam socialmente
negativas, por uma eventual obtenção de maiores informações e
provas, destinada a satisfazer uma busca da verdade, voltada
para a realização do poder punitivo, no caso da Lei nº
10.409/02, mais especificamente, a realização de um poder
punitivo, subordinado a internacionalizados interesses.
Com isto, o eventual êxito futuro na concretização do poder
do Estado de punir, através da imposição de penas, aqui ou
alhures, passa a constituir o único objetivo das atividades do
aparelho repressivo, ao preço do prolongamento de situações
afetadoras da própria segurança, que se diz querer trazer. Um
tal meio de investigação, definitivamente, rompe com o
mínimo de racionalidade, voltada para o bem-estar da
população, que se há de exigir no exercício do poder estatal.
A Lei nº 10.217/01 fez ressurgir, de forma ampliada, na Lei
nº 9.034/95, outro meio de investigação, que, através de veto,
havia sido originalmente eliminado daquele diploma legal.
Trata-se da infiltração de agentes policiais, naturalmente,
também prevista na Lei nº 10.409/02 (inciso I do artigo 33).
No inciso V, acrescentado ao artigo 2º da Lei nº 9.034/95, é
prevista a infiltração, não apenas policial, mas ainda de agentes
de “inteligência”, para investigações que versem, como dispõe
a nova redação do artigo 1º daquela lei, sobre “ilícitos
decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou
organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”,
estas ditas organizações ou associações criminosas
permanecendo, inevitavelmente, sem definição de seu
conteúdo.
As práticas de infiltração rompem com a transparência das
investigações, transparência esta que é indispensável para
assegurar o necessário controle que o conjunto da sociedade há
de ter sobre toda e qualquer atividade estatal. Além disso,
permitindo que agentes do Estado convivam com apontados
“criminosos” e com eles realizem fatos identificados como
crimes, tais meios de investigação rompem também com a
superioridade moral que o Estado há de ter. Sob tais
circunstâncias, resta o Estado nivelado àqueles que diz querer
enfrentar, assim, fazendo-se desaparecer a necessária fronteira
que haveria de existir entre a criminalidade e seu controle ou
enfrentamento.
- A delação premiada
O rompimento com a superioridade moral do Estado e com
o necessário conteúdo ético, que deve orientar o processo penal
ou qualquer outra atividade estatal no Estado Democrático de
Direito, aparece em um outro meio de busca de provas, este
inaugurado com a Lei nº 8.072/90 e repetido nos diplomas
legais posteriores, que, com aquela “hedionda” lei, compõem a
legislação de exceção.
Trata-se da delação, premiada com a redução da pena do
delator, que apontar outros autores ou partícipes do crime por
ele confessado. A Lei nº 10.409/02 veio ampliar o prêmio,
prevendo a hipótese de, reconhecida a prática do crime, deixar
o juiz de aplicar a pena, e, até mesmo, a hipótese de deixar o
Ministério Público de propor a ação penal (§ 2º e 3º do artigo 32 e
inciso IV do artigo 37). A regra do § 2º do artigo 32, decerto
inspirada em práticas correntes na matriz norte-americana,
ainda incentiva espúrios acordos entre Ministério Público e
indiciado ou réu, visando esta imoral prática da delação.
Trair alguém, desmerecer a confiança de um companheiro,
são condutas, decerto, reprováveis no plano moral, sendo
repudiadas em qualquer sociedade que veja a amizade e a
solidariedade como atitudes positivas e desejáveis para um
convívio harmônico entre as pessoas. Com a premiação da
delação, invertem-se estas premissas. Agora, é a traição que
aparece como positiva, merecendo até mesmo um prêmio. Com
o elogio e a recompensa à conduta traidora, o que o Estado está
fazendo é exercer um papel deseducador no âmbito das
relações entre os indivíduos, acabando por transmitir valores
tão ou mais negativos do que os valores dos “criminosos”, que
diz querer enfrentar.
- Os exames anti-doping
Falando em meios de investigação, que invadem o
indivíduo, para que, através dele próprio, se revele a verdade
sobre suas ações tornadas criminosas, não podemos esquecer
das propostas que pretendem institucionalizar a realização de
exames “anti-doping”, para detectar uso de drogas qualificadas
de ilícitas.
A previsão de tais exames, como de qualquer outra
modalidade de intervenção corporal não consentida é
inadmissível, seja para a formação de prova, no processo penal,
ou fora dele, seja para condicionar o exercício de qualquer
direito. Tal intervenção corporal claramente contraria as
normas constitucionais garantidoras da intimidade e da
liberdade individual. Inspeções no corpo humano, quaisquer
que sejam as razões que as inspirem, só são legítimas, quando
haja um livre consentimento do interessado.
No que diz respeito à formação de prova no processo penal,
através de submissão coercitiva do réu ou do investigado a
exame pericial, manifesta-se, além disso, evidente
contrariedade ao direito ao silêncio. Igualmente assentado em
norma constitucional, previsto que está na regra do inciso LXIII
do artigo 5º da Carta de 1988, o direito ao silêncio – ou direito
de não se auto-incriminar –, assegura que ninguém poderá ser
constrangido a produzir prova contra si mesmo, ninguém
podendo, portanto, ser constrangido a colaborar com qualquer
investigação ou busca de prova que o possa prejudicar.
Vale ressaltar que, mesmo sem a pretendida previsão
legislativa, exames visando detectar uso de drogas qualificadas
de ilícitas, vêm sendo, ilicitamente, realizados no Brasil. No
período de 1992 a 2000, só o Laboratório de Análise
Toxicológica da Faculdade de Farmácia da Universidade de
São Paulo já havia aplicado exames desta natureza em
funcionários de cerca de 300 empresas daquele Estado da
Federação (veja-se matéria publicada na edição de 19 de Outubro de
2000 da Folha de São Paulo).
A notícia destes exames traz um outro dado revelador. Dos
12.700 exames realizados no Laboratório de Análise
Toxicológica da Faculdade de Farmácia da Universidade de
São Paulo, naquele período, somente 2% deram resultado
positivo para o consumo de drogas qualificadas de ilícitas. Este
dado claramente demonstra que, paralelamente ao desprezo à
ordem constitucional, os exames “anti-doping”, como outras
medidas invasoras, impostas sob o mesmo pretexto de conter a
circulação das drogas qualificadas de ilícitas, não se limitam a
proporcionar uma intensificação do controle do Estado sobre
“suspeitos”, “drogados”, “desviantes”, “delinqüentes”, ou
“criminosos”, alcançando sim, como as demais medidas
invasoras da intimidade, a generalidade dos indivíduos.

I.5.2.i. Os resultados da maior intervenção do sistema penal:


o crescimento da prisão
Resultado direto da intervenção do sistema penal sobre os
produtores, distribuidores e consumidores das drogas qualificadas
de ilícitas aparece no inédito e vertiginoso aumento registrado, nas
últimas décadas do século XX, no número de pessoas encarceradas
e submetidas a outras medidas de controle penal, nos Estados
Unidos da América – os inquestionáveis senhores da
internacionalizada política proibicionista.
Nos últimos vinte anos, os Estados Unidos da América
quadruplicaram sua população carcerária. Ao final de 1999, já havia
2.026.596 pessoas encarceradas, número que, correspondendo a 690
presos por 100.000 habitantes, não encontra paralelo em nenhum
outro país dito democrático, em nenhum momento da história
recente. Em 1998, dos presos norte-americanos, os condenados por
tráfico ou posse para uso pessoal de drogas qualificadas de ilícitas
eram 58% dos internos em prisões federais e 21% dos internos em
prisões estaduais, as condenações por crimes daquela natureza
respondendo por cerca de 80% do aumento populacional nas prisões
federais, no período de 1985 a 1995 (estes e outros dados, fornecidos
pelo Bureau of Justice Statistics, US Department of Justice, podem ser
encontrados na web, no site www.drugwarfacts.org, bem como em trabalho de
Loïc Wacquant, publicado, em português, sob o título PUNIR OS POBRES: A NOVA
GESTÃO DA MISÉRIA NOS ESTADOS UNIDOS - Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 2001).

Países europeus, embora distantes deste impressionante furor


repressivo, de todo modo, acabam por se submeter, ainda que mais
moderadamente, à política proibicionista, ditada pelos Estados
Unidos da América, reproduzindo-se ali, ainda que em escala bem
mais reduzida, seus perversos resultados. Vejam-se alguns
exemplos:
• Na França, o maior número de presos cumprindo pena, em 1978,
era de condenados pela prática de crimes contra o patrimônio
(47,5%). Vinte anos depois, em 1998, os condenados por infrações
à lei criminalizadora de condutas relacionadas a drogas
qualificadas de ilícitas já ocupavam o primeiro lugar (18,7%),
enquanto os condenados por crimes contra o patrimônio haviam
descido para 17,9% do total de presos. Ao final de 1999, registrou-
se uma pequena queda na proporção de condenados por infrações
à lei criminalizadora de condutas relacionadas a drogas
qualificadas de ilícitas, que, atingindo o percentual de 16,8%, de
todo modo, correspondiam ao segundo maior contingente de
presos, apenas superado pelo número de condenados por crimes
sexuais, que, dada a quebra de um tabu quanto à comunicação de
fatos desta natureza, especialmente abusos no interior da família,
atingiram, então, o percentual de 21%. Além daqueles 16,8% de
presos condenados por infrações à lei criminalizadora de condutas
relacionadas a drogas qualificadas de ilícitas, há notícia de que
outros 20 a 30% de presos cumpriam penas por crimes, de alguma
forma, ligados ao uso ou à obtenção de tais substâncias psicoativas
(dados constantes de relatório, elaborado por comissão, criada por resolução
do Senado da França, para investigar as condições dos estabelecimentos
penitenciários daquele país, relatório este divulgado em 29 de junho de
2000).
• A Noruega, país de tradições reconhecidamente liberais, também
se rendeu à política proibicionista. Até 1964, a pena máxima
prevista para condutas relacionadas a drogas qualificadas de
ilícitas era de 6 meses de prisão; depois daquele ano, as
condenações já poderiam chegar a 2 anos de reclusão; em 1968, a
pena máxima passou para 6 anos; em 1972, para 10 anos, até
atingir, a partir de 1984, aos 21 anos de prisão, a maior pena
admitida naquele país, o que resultou na quadruplicação do
número de anos de prisão, impostos a condenados pela prática
daquelas condutas, no período de 1979 a 1990 (informações
constantes de páginas 71 a 73 da edição em espanhol da obra de Nils Christie LA INDUSTRIA DEL CON
HOLOCAUSTO? - Editores del Puerto, Buenos Aires, 1993, tradução de Sara
Costa).
• Até mesmo na Holanda é significativo o número de presos por
condenações impostas diante de condutas relacionadas a drogas
qualificadas de ilícitas, os condenados por infração a leis sobre
drogas, no período de 1990 a 1999, formando o terceiro
contingente dos presos naquele país, em percentual
correspondente, em média, a 17 ou 18%, atrás apenas dos
condenados por crimes envolvendo violência à pessoa e por
crimes contra o patrimônio (CBS/Statistics Netherlands - Statistical
Yearbook).
Em adequação com as tendências mundiais, o Brasil vem
apresentando um número crescente de condenados por condutas
relacionadas a drogas qualificadas de ilícitas. Não obstante as
reservas com que devem ser tratados os dados sobre a população
carcerária em nosso país, dadas as falhas em seu recolhimento,
sendo constante a falta de informações sobre significativo número
de condenações, de todo modo, vale mencionar que o último Censo
oficialmente divulgado pelo Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária do Ministério da Justiça, datado de 1995, revelava
que os condenados por condutas relacionadas a drogas qualificadas
de ilícitas atingiam a quarta posição entre o total de pessoas que,
então, cumpriam penas privativas de liberdade, posição que, em
1997, segundo dados publicados na imprensa, já passara a ser a
terceira, registrando-se cerca do dobro de condenados em relação
aos números fornecidos no Censo de 1995 (os dados relativos ao ano de
1997 constam de matéria publicada na Folha de São Paulo e se referem a Censo
que, realizado pelo Ministério da Justiça, até hoje não foi oficialmente
divulgado). Ainda que os números dos Censos sejam falhos, de todo
modo, a tendência de crescimento de prisões e condenações por
condutas relacionadas a drogas qualificadas de ilícitas pode ser
percebida através da mera observação da rotina da Justiça criminal,
especialmente no Estado do Rio de Janeiro.
I.5.2.j. A política proibicionista e a militarização da repressão
no Brasil
No Brasil, os resultados da repressão proveniente da política
proibicionista, trazem um aspecto ainda mais preocupante do que o
crescimento do número de pessoas submetidas à prisão. Neste
ponto, há de se considerar, especialmente, nossa história recente,
marcada por vinte anos de ditadura militar, findados em época não
muito distante.
No artigo 1º da Lei nº 6.368/76, sobressaía a linguagem
característica da antiga doutrina de segurança nacional, ali se
dispondo que “é dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar
na prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de
substância entorpecente ou que determine dependência física ou
psíquica”. Na Lei nº 6.368/76, esta linguagem era até
compreensível, na medida em que se trata de diploma legal
elaborado durante a ditadura militar.
No entanto, os resquícios da doutrina de segurança nacional estão
vivos. No artigo 2º da Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002, surge
o mesmo dever geral de colaboração, ali também se dispondo que
“é dever de todas as pessoas, físicas ou jurídicas, nacionais ou
estrangeiras com domicílio ou sede no País, colaborar na
prevenção da produção, do tráfico ou uso indevidos de produtos,
substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou
psíquica”.
A evocação da antiga doutrina de segurança nacional e da ditadura
militar que a produziu não se limita, no entanto, a este campo. A
política proibicionista de “guerra contra as drogas”, ditada pelos
Estados Unidos da América e obedecida à risca pelo Brasil, vincula-
se, para muito além da linguagem, a uma tática, baseada na
militarização da repressão. Em nosso país, esta repressão
militarizada vem sendo concretizada, através de um desvio de
funções das Forças Armadas, cujo periódico emprego como força
policial serve, ao contrário do que se divulga, não para um dito
“combate à criminalidade”, mas sim, fundamentalmente, para
prevenir conflitos sociais transformadores.
Neste ponto, devemos lembrar, antes de tudo, do órgão que, desde
1998, é o responsável pela política relacionada às drogas
qualificadas de ilícitas. Trata-se da Secretaria Nacional Antidrogas,
que, na sua origem, subordinava-se à Casa Militar da Presidência da
República, transformada, em 1999, sem perder seu caráter
militarista, em Gabinete de Segurança Institucional da Presidência
da República. A própria denominação da Secretaria – “Antidrogas”
–, logo adotada por diversos órgãos estaduais, já sugere uma visão
distorcida e delirante sobre as substâncias psicoativas, que passam,
elas próprias, a ser militarmente visualizadas como se fossem o
“inimigo”.
Cabe lembrar, também, a tentativa feita pelo General Alberto
Cardoso, em final de agosto de 1998, pouco depois da criação da
Secretaria Nacional Antidrogas, de desqualificar movimentos
sociais, como o Movimento dos Sem-Terra-MST, através de sua
associação ao demonizado tráfico de drogas ilícitas. Em sua fala,
amplamente noticiada nos jornais da época, o então titular da Casa
Militar e posterior titular do Gabinete de Segurança Institucional da
Presidência da República e, durante algum tempo, simultaneamente
titular da Secretaria Nacional Antidrogas, parecia estar seguindo as
diretrizes constantes de apostila da Escola de Inteligência Militar do
Exército, que, então já existentes, somente foram divulgadas em
época mais recente (veja-se a edição da Folha de São Paulo de 02 de agosto
de 2001, em que foram transcritos trechos deste documento militar).
Nesta apostila, fala-se que, para atingir os objetivos de
manutenção da ordem pública, “é muitas vezes necessário até
arranhar direitos dos cidadãos, numa espécie de arbítrio necessário”,
para, em seguida, mencionar-se que “é nesse quadro que se inserem
todas as atividades de defesa da segurança interna, integradas nos
diversos órgãos, militares ou não, que cuidam da segurança”. Ao
definir as “forças adversas” contra as quais se mobiliza, como
“grupos, movimentos sociais, entidades e organizações não-
governamentais que provocam reflexos negativos para a segurança
nacional”, o documento militar assim as aponta: “no momento atual,
verificam-se exemplos dessas entidades no crime organizado, no
narcotráfico e nos movimentos populares como o MST”.
Tampouco se podem esquecer as ações desenvolvidas pelas Forças
Armadas, ao atuarem, em Pernambuco, no final de 1999, em
operação destinada a reprimir plantações de maconha naquele
Estado da Federação, e no Rio de Janeiro, no final de 1994, na
chamada Operação Rio.
No Rio de Janeiro, em 1994, as Forças Armadas, em claro desvio
das funções que a Constituição Federal lhes atribui, assumiram
tarefas policiais e, sob o pretexto de repressão às drogas qualificadas
de ilícitas e a uma suposta e indefinida “criminalidade organizada”
com elas identificada, centraram sua tática no cerco e na ocupação
das favelas cariocas, conquistadas como se fossem territórios
inimigos. Esta tática da repressão militarizada sequer disfarçava,
assim, a genérica identificação das classes subalternizadas como
classes perigosas, tradicionalmente feita de forma mais sutil através
do normal funcionamento do sistema penal.
Editorial do jornal O Globo, constante da edição do dia 25 de
novembro de 1994, preocupado em minimizar a falta de resultados
visíveis da Operação Rio e justificar as ilegais, violentas e
humilhantes revistas pessoais dirigidas até mesmo contra crianças,
bem esclarecia a real finalidade da repressão militarizada. Sugerindo
que os objetivos da Operação Rio teriam sido atingidos, ao permitir
que os moradores das favelas cariocas reavaliassem suas relações
com a autoridade pública, explicitamente aparecia, naquele
editorial, a defesa da necessidade de uma violenta educação das
classes subalternizadas para a submissão.

II - AS AÇÕES DE REDUÇÃO DE DANOS

II.1 – A política proibicionista e as ações de redução de danos


A política proibicionista, que determina a criminalização de
condutas relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo de
algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas conhecidas, que,
assim, artificialmente diferenciadas, são qualificadas de drogas ilícitas,
alimenta-se e é alimentada, como visto, por um irracional temor quanto à
sua circulação, por uma fantasiosa e nefasta crença em medidas penais
supostamente controladoras ou evitadoras de sua disseminação, pela
estigmatização de seus heréticos produtores, distribuidores e
consumidores, por aquela idéia do “mal universal”, identificado a tais
diferenciadas substâncias.
Esta política proibicionista, que se desvincula de reais
preocupações com a saúde pública e acaba por impor sérias limitações às
intervenções terapêutico-assistenciais, que se fazem necessárias, na
hipótese eventual do consumo das substâncias psicoativas se tornar
excessivo, ou se fazer de forma descuidada ou descontrolada, decerto,
cria obstáculos ao livre desenvolvimento de programas e ações voltados
para a redução dos danos, eventualmente causáveis por um tal consumo
excessivo ou descuidado.
Aceitando as evidências de que a maioria das pessoas não deixará
de consumir tais substâncias e que a atitude mais racional e eficaz para
minimizar as conseqüências adversas do consumo de drogas – lícitas ou
ilícitas – está no desenvolvimento de políticas de saúde pública que
possibilitem que este consumo se faça em condições que ocasionem o
mínimo possível de danos ao indivíduo consumidor e à sociedade, os
programas e ações voltados para a redução de danos seguem uma linha
terapêutico-assistencial que, afastando-se do discurso dominante,
questiona a uniformidade do enfoque negativo dado às drogas tornadas
ilícitas e rompe com as generalizadas premissas demonizadoras das
pessoas que com elas se relacionam.
Fácil, assim, perceber as resistências, oposições e, até mesmo,
ações repressivas, explícitas ou disfarçadas, que, no Brasil, já se
voltaram – e, vez por outra, ainda insistem em se voltar – contra a
implementação dos programas e ações de redução de danos, a partir de
uma obtusa e superada leitura de dispositivos legais, encontrados na Lei
nº 6.368/76 e que, com o veto do Presidente da República a todo o
capítulo III do projeto de lei nº 1873/91 (nº 105/96 no Senado Federal),
permanecem em vigor.

II.1.1. As definições criminalizadoras e as ações de redução de danos


A obtusa e superada leitura da Lei nº 6.368/76, com que se
pretendeu – e, eventualmente, ainda se pretende – estender a intervenção
criminalizadora do sistema penal às ações de redução de danos, vale-se
dos dispositivos legais que tipificam as condutas de fornecer, ainda que
gratuitamente, ministrar ou entregar a consumo, sem autorização, drogas
qualificadas de ilícitas; auxiliar alguém a usá-las; contribuir para sua
difusão; ou, ainda, utilizar ou consentir que alguém se utilize de local
sob sua posse para consumo indevido daquelas substâncias (dispositivos
legais que constam do caput do artigo 12 e dos incisos I, II e III de seu § 2º da Lei nº
6.368/76 e que, à exceção do último, vinham reproduzidos, em dispositivos incluídos
no capítulo, vetado pelo Presidente da República, do projeto de lei nº 1873/91).
Estes dispositivos legais criminalizadores já são, em si, bastante
questionáveis. Pense-se no primeiro deles, que, desatendendo aos
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, equipara ao
“tráfico”, isto é, a um negócio ilícito, o fornecimento ou a entrega
gratuita de drogas qualificadas de ilícitas. Quem, por exemplo, comprar,
sozinho, uma determinada quantidade destas substâncias e ceder uma
parte para algum amigo estará realizando conduta definida no artigo 12
da Lei nº 6.368/76, sujeitando-se, assim, a uma pena mínima de 3 anos
de reclusão. Observe-se que, nos dispositivos vetados do projeto de lei nº
1873/91 (nº 105/96 no Senado Federal), pretendia-se solucionar esta
situação, distinguindo-se a conduta de quem “cede, eventualmente, sem
objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, droga ilícita”, para
tratá-la da mesma forma que a posse para uso pessoal, exigindo-se, no
entanto, que houvesse um consumo conjunto, o que conduziria à
esdrúxula situação de se tratar quem cede, mas não consome, como
“traficante”, em um inesperado incentivo ao consumo.
Igualmente desatendem aos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade os dispositivos que equiparam ao “tráfico” a mera
cessão de local para o consumo, ou qualquer outra modalidade de auxílio
ao uso de drogas qualificadas de ilícitas. Já o dispositivo que, genérica e
vagamente, proíbe contribuições para a difusão do uso das drogas
qualificadas de ilícitas claramente desatende à precisão nas definições
legais, que, como já mencionado, é uma exigência inseparável do
princípio constitucional da legalidade.
No entanto, independentemente dos questionamentos que podem e
devem ser feitos a estes dispositivos legais criminalizadores, sua não
incidência sobre as ações dos redutores de danos é evidente,
independendo ainda de ressalvas ou de leis reguladoras dos programas
desenvolvidos, como a seguir se verá.

II.1.2. O alcance de definições criminalizadoras: os limites dados pelo bem


jurídico a excluir as ações de redução de danos do âmbito de proibição
das normas criminalizadoras
A mera descrição das condutas definidas nos dispositivos legais,
considerados no item anterior, poderia dar a impressão de que as normas
criminalizadoras, que aparecem naqueles dispositivos, estariam a proibir
ações como a troca de seringas, o tratamento baseado na substituição de
substâncias psicoativas mais potentes por outras menos danosas
(exemplificado nas experiências de substituição do crack pela maconha),
ou a manutenção de locais para consumo seguro, quando realizadas sem
autorização expressa das autoridades sanitárias.
No entanto, esta mera descrição de condutas, que se encontra nos
dispositivos legais, ainda está longe de revelar o alcance da proibição,
contida na norma criminalizadora. Como antes apontado (veja-se o item
1.3.2 supra), todo dispositivo legal que proíbe a realização de determinada
conduta sob a ameaça de uma pena tem como elemento primário a
ocorrência de uma lesão (uma afetação, um dano) ou um perigo concreto
de lesão ao bem jurídico que o Estado pretende proteger com a
proibição. O bem jurídico delimita, assim, o próprio campo de incidência
do dispositivo legal, que, expressando a norma criminalizadora, descreve
(ou tipifica) a conduta criminalizada. Se não há lesão ou perigo concreto
de lesão ao bem jurídico, a conduta, ainda que aparentemente
enquadrável na definição criminalizadora, ficará fora do alcance da
proibição.
No caso das drogas tornadas ilícitas, como também já assinalado
(veja-se o item 1.3.3 supra), o único bem jurídico reconhecível nos
dispositivos legais criminalizadores é a saúde pública. Ora, as ações
desenvolvidas pelos redutores de danos visam precisamente à
minimização dos eventuais riscos à saúde envolvidos no consumo
daquelas substâncias psicoativas, assim visando à própria proteção do
bem jurídico, que está subjacente à norma criminalizadora. Aqui se tem
situação em tudo análoga à que ocorre em intervenções cirúrgicas com
fins terapêuticos. Pense-se, por exemplo, na amputação de uma perna,
recomendada para salvar uma vida ou para conservar ou reparar a saúde
de um indivíduo. À primeira vista, poderia parecer que a ação de
amputar uma perna seria enquadrável na definição do tipo de crime de
lesão corporal, que se encontra na regra do artigo 129 do Código Penal
(“ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”).
No entanto, é intuitivo que a realização de uma intervenção
cirúrgica, que tem por finalidade a amputação da perna de alguém, para
salvar-lhe a vida, conservar ou reparar sua saúde, não é uma conduta,
que esteja proibida sob ameaça de uma pena. De fato, esta não é uma
conduta proibida, não incidindo, aí, a regra do artigo 129 do Código
Penal. A explicação jurídica, que confirma a intuição, é a de que a regra
do artigo 129 do Código Penal não incide, porque não há, naquela
intervenção cirúrgica, de que resulta a amputação da perna, afetação da
saúde individual, mas, ao contrário, redução dos riscos para a integridade
daquele bem jurídico, que está subjacente à norma criminalizadora.
É exatamente isto que acontece com as ações de redução de danos.
A troca de seringas, a substituição de substâncias psicoativas mais
potentes por outras menos danosas, a manutenção de locais para
consumo seguro e outras ações igualmente informadas pela linha
terapêutico-assistencial dos programas de redução de danos longe estão
de poder fazer incidir qualquer dos questionáveis dispositivos da Lei nº
6.368/76, longe estando de poder ser objeto da repressão penal, pois tais
ações não são afetadoras da saúde pública, sendo, ao contrário, redutoras
dos riscos àquele bem jurídico, o que as faz permanecer fora do campo
da proibição legislativamente expressa.

II.2 – Legislações sobre redução de danos


Como visto, a não incidência de normas criminalizadoras sobre a
as ações de redução de danos independe de qualquer lei, que assim o
explicite, ou que faça ressalvas a este respeito, em dispositivos
criminalizadores, como os mencionados nos itens anteriores. Desde já e
desde sempre, tais ações estão fora do âmbito de proibição de quaisquer
normas criminalizadoras de condutas relacionadas às drogas qualificadas
de ilícitas, já que se trata de ações que não afetam, mas, ao contrário,
protegem o bem jurídico tutelado por aquelas normas, isto é, a saúde
pública.
De todo modo, as leis estaduais, já produzidas sobre a matéria, nos
Estados de São Paulo (Lei Estadual nº 9.758/97), Santa Catarina (Lei
Estadual nº 11.063/98) e Rio Grande do Sul (Lei Estadual nº 11.562/00),
ao regularem ações de redução de danos e integrá-las à política de
proteção e defesa da saúde, no âmbito daquelas unidades da Federação,
mais reforçam a evidência que afasta tais ações do âmbito de proibição
das normas criminalizadoras.
Vejamos um pouco deste tratamento legislativo dado às ações de
redução de danos.

II.2.1. As leis estaduais em matéria de redução de danos


Valendo-se da competência concorrente à da União, para legislar
sobre proteção e defesa da saúde, que lhes é dada pela regra contida no
inciso XII do artigo 24 da Constituição Federal, três Estados da
Federação anteciparam-se na previsão legislativa das ações de redução
de danos, regulando-as através das referidas leis estaduais nº 9.758/97,
do Estado de São Paulo, nº 11.063/98, do Estado de Santa Catarina e nº
11.562/00 do Estado do Rio Grande do Sul.
Naturalmente, se as ações de redução de danos estivessem
compreendidas no âmbito das normas criminalizadoras, referidas em
itens anteriores, ou se fosse necessária alguma ressalva para excluí-las
deste âmbito, não poderia tal matéria ser objeto de leis estaduais. A
competência para legislar sobre direito penal é privativa da União, como
dispõe a regra do inciso I do artigo 22 da Constituição Federal. Assim,
somente uma lei federal pode estabelecer o que é ou deixa de ser crime.
Neste ponto, a importância de leis estaduais, reguladoras das ações
de redução de danos, limita-se ao fato de reforçarem, como acima
mencionado, a evidência, que, decorrendo da natureza daquelas ações,
por si só, as afasta do âmbito de proibição das normas criminalizadoras
de condutas relacionadas às drogas qualificadas de ilícitas.
A real importância, que se há de atribuir às leis estaduais,
reguladoras das ações de redução de danos, reside sim no fomento que
trazem à indispensável integração de tais ações às políticas públicas de
proteção e defesa da saúde, concretizadas no âmbito dos Estados da
federação.
Assim é que as pioneiras leis dos Estados de São Paulo, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul, tendo em vista os riscos de transmissão de
doenças infecto-contagiosas, associáveis ao uso de drogas injetáveis,
disciplinam a atuação do sistema público de saúde, neste campo, dentro
de uma concepção de redução de danos, prevendo, expressamente,
dentre outras ações, a distribuição gratuita de seringas descartáveis aos
usuários daquelas substâncias, a ser executada, quer, diretamente, por
órgãos públicos, quer por entidades não-governamentais, devidamente
credenciadas.
Decerto, a regulamentação normativa, fomentadora da integração
das ações de redução de danos às políticas públicas de proteção e defesa
da saúde, ainda tem muito que avançar, seja para se estender a todo o
território nacional, seja para ultrapassar os limites da mera prevenção de
doenças transmissíveis, de modo a abranger também ações, informadas
pela mesma concepção de redução de danos, associáveis a outras formas
de consumo excessivo ou descuidado de substâncias psicoativas, lícitas
ou ilícitas.

II.3 – Entraves e riscos envolvidos na prática de redutores de danos


Como já analisado (veja-se o item I.4 supra), a intervenção do sistema
penal como forma de controle sobre as drogas qualificadas de ilícitas,
com a criminalização de condutas de produtores, distribuidores e
consumidores daquelas substâncias, acaba por afetar a própria proteção
da saúde pública, contraditoriamente acenada como fundamento desta
mesma criminalização.
Esta contraditória ação negativa do sistema penal sobre a saúde
pública, refletindo-se na criação de entraves e riscos ao livre
desenvolvimento dos programas de redução de danos, como também já
analisado (veja-se o item II.1 supra), pode, eventualmente, atingir os
próprios profissionais ou voluntários, que atuam como redutores de
danos.
Vejamos alguns aspectos, que podem fazer vulnerável esta atuação
dos redutores de danos.

II.3.1. Os riscos de redutores de danos sofrerem a intervenção do sistema


penal
Como antes assinalado (vejam-se os itens II.1.1 e II.1.2 supra), uma
leitura obtusa e ultrapassada de dispositivos legais, encontrados na Lei nº
6.368/76 – leitura desvinculada da consideração dos limites impostos
pelo bem jurídico ao alcance da proibição contida nas normas
criminalizadoras –, poderia, à primeira vista, dar a impressão de que
algumas ações de redutores de danos, quando realizadas sem autorização
expressa das autoridades sanitárias, seriam objeto da criminalização,
vinda naqueles dispositivos.
Por mais obtusa e superada que seja uma tal leitura, pode
acontecer que, eventualmente, prevaleça. A correta interpretação da lei,
com sua submissão aos princípios e regras constitucionais, nem sempre é
praticada. Errôneas, burocráticas ou invertidas interpretações, que
ignoram a inafastável prevalência das normas constitucionais sobre
dispositivos de leis ordinárias, não são incomuns na prática das agências
do sistema penal (polícia, Ministério Público, Justiça criminal).
Riscos de vulnerabilidade dos redutores de danos à intervenção do
sistema penal, portanto, existem, decorrendo da própria opção de exercer
uma prática, que se afasta do discurso dominante, que questiona e
enfrenta as premissas negativistas e demonizadoras da política
proibicionista, criminalizadora de condutas relacionadas a determinadas
substâncias psicoativas, tornadas ilícitas.
Eventuais intervenções indevidas das agências do sistema penal,
sobre a atuação ou sobre a própria pessoa dos redutores de danos,
fundadas naquela obtusa e superada leitura de dispositivos constantes da
Lei nº 6.368/76, deverão ser solucionadas, através dos meios que o
ordenamento jurídico fornece, para garantir o acesso à justiça e, assim,
assegurar os direitos de quem quer que esteja ameaçado de sofrer um
constrangimento em sua esfera jurídica. O mais importante e eficaz
destes meios, quando, direta ou indiretamente, ameaçada ou vulnerada a
liberdade de ir e vir, é a ação constitucional do habeas corpus, utilizável,
inclusive, em caráter preventivo.
II.3.2. O relacionamento de redutores de danos com consumidores de drogas
qualificadas de ilícitas
Na mesma linha do que acaba de ser exposto, no item anterior, é
freqüente a acrítica e burocrática aplicação da regra do artigo 16 da Lei
nº 6.368/76, que, indevidamente, criminaliza a posse para uso pessoal de
drogas qualificadas de ilícitas.
Assim, como nem sempre se reconhece, na prática das agências do
sistema penal, a inconstitucionalidade daquele dispositivo da lei
ordinária, sua aplicação subsiste, tornando os consumidores daquelas
substâncias vulneráveis à intervenção do sistema penal. Esta
vulnerabilidade, naturalmente, está a recomendar que o relacionamento
dos redutores de danos com os consumidores se faça de forma que não
os exponha a maiores riscos, neste campo.
De todo modo, também aqui, a solução imediata para afastar
eventuais constrangimentos, encontra-se nos meios fornecidos pelo
ordenamento jurídico para garantir o acesso à justiça, nos quais se inclui
a defesa exercitada, por advogado particular ou profissional da
Defensoria Pública, no processo penal a que alguém seja submetido.
Antes mesmo da defesa exercitada no processo penal, a assistência do
advogado ou defensor público deve ser requerida e efetivada, desde o
primeiro momento de eventual ação policial sobre o indivíduo (prisão
em flagrante, notificação para comparecimento à delegacia policial, etc.).
É preciso ter claro, no entanto, que a vulnerabilidade dos
consumidores de drogas qualificadas de ilícitas só irá, definitivamente,
deixar de existir, quando efetivamente descriminalizada a conduta
focalizada, isto é, quando, em obediência aos princípios e regras
constitucionais já apontados (veja-se, especialmente, o item I.3.4 supra), se
afastar toda previsão legal proibitiva daquela conduta, sob ameaça de
uma pena, qualquer que seja esta.
Um outro aspecto deve ser considerado no relacionamento entre
redutores de danos e consumidores de drogas qualificadas de ilícitas. A
utilidade e o acerto das ações de redução de danos não podem servir para
sua imposição aos usuários das substâncias psicoativas. Aqui também,
como em quaisquer outras circunstâncias, há de prevalecer a dignidade e
a liberdade do indivíduo, que sempre há de ter assegurada sua opção,
por, eventualmente, ter um comportamento danoso à sua própria saúde,
ou à sua própria vida, não importando o que outros achem que possa
servir para o seu bem.
II.3.3. O relacionamento de redutores de danos com produtores e
distribuidores das drogas qualificadas de ilícitas
No contato com consumidores das drogas qualificadas de ilícitas,
os trabalhos de campo, desenvolvidos por redutores de danos, acabam,
muitas vezes, por chegar a locais, onde se realiza a compra e venda
daquelas substâncias, ou a locais de consumo, ou mesmo de moradia,
situados nas proximidades dos informais estabelecimentos, vinculados às
atividades de produção e distribuição de tais mercadorias.
Dada a ilegalidade, imposta pela política proibicionista, a compra
e venda, como todas as demais atividades econômicas de produção e
distribuição das drogas qualificadas de ilícitas, devem se realizar de
forma clandestina, envolvendo, ainda, a segurança, em regra, armada,
que se faz necessária para evitar, seja a aproximação de forças policiais,
seja a de concorrentes no negócio estabelecido.
Devendo, assim, atuar desta forma clandestina, naturalmente,
produtores e distribuidores de drogas qualificadas de ilícitas precisam
manter afastados quaisquer estranhos. Tampouco poderá ser, por eles,
aceitável, a presença próxima de quaisquer atividades, que possam tornar
seus negócios vulneráveis à ação repressiva do sistema penal.
Com esta compreensão e afastados os estigmas e preconceitos –
produtores e distribuidores de drogas qualificadas de ilícitas só
empregam, eventualmente, a violência, porque esta é um subproduto
necessário de uma atividade econômica que foi tornada ilegal (veja-se o
item I.2.3 supra) – o relacionamento de redutores de danos com produtores
e distribuidores de drogas qualificadas de ilícitas deve, sempre que
possível, ser evitado. Quando isto não for possível, há de se buscar um
diálogo equilibrado, cujas coordenadas, naturalmente, só a prática
poderá melhor indicar, sendo certo que cada situação concreta terá suas
particularidades, somente identificáveis a partir de sua vivência. O que
se pode mencionar, em termos genéricos, é que o equilíbrio estará no
estabelecimento de uma convivência pacífica, que, deixando claro o
devido distanciamento que há de ser mantido, em relação às práticas
ilegais dos produtores e distribuidores das drogas qualificadas de ilícitas,
possa, ao mesmo tempo, assegurar um espaço de atuação para os
redutores de danos. Neste diálogo, devem ser demonstradas a
necessidade e a utilidade das ações de redução de danos, da mesma
forma que uma tal demonstração seria feita para quaisquer outras
pessoas, integrantes da comunidade onde desenvolvidas aquelas ações.
II.4 – Ações de redução de danos no sistema prisional
Para pensar em ações de redução de danos no sistema prisional, é
preciso, antes, tentar compreender o que significa a prisão – a mais
representativa das instituições totais, o lugar por excelência de
confinamento de pessoas –, sendo certo que quando se fala em prisão,
decerto se está a falar também dos estabelecimentos ditos “educacionais”
para adolescentes privados da liberdade, em tudo semelhantes às prisões
para adultos.
Para tentar compreender a privação da liberdade, é preciso
conduzir nosso olhar, nossa imaginação, nossos sentimentos, para dentro
dos muros das prisões, esforçando-nos por imaginar o que lá acontece,
esforçando-nos para deixar de lado a indiferença, os preconceitos, as
abstratas idéias privilegiadoras da “ordem”, da “segurança”, da “defesa
da sociedade”, que fazem acreditar na ilusão cruel de que, para se ter
tranqüilidade e segurança, seria necessário colocar pessoas atrás de
grades e muros.

II.4.1. As dores da privação da liberdade


A limitação do espaço, a impossibilidade de ir a outros lugares, de
buscar e estar com quem se deseja, o isolamento, a separação, a distância
do meio familiar e social, a perda de contato com as experiências da vida
normal de um ser humano, todas estas restrições, inerentes à privação da
liberdade, já são fonte de muita dor.
A esta dor da privação da liberdade adicionam-se as dores físicas,
provocadas pela privação de ar, de sol, de luz, pelo superpovoamento e
promiscuidade dos alojamentos, pela precariedade das condições
sanitárias, pela falta de higiene, pela alimentação muitas vezes
deteriorada.
Não bastasse isso, há a permanente vigilância, os regulamentos,
que devem ser obedecidos sem explicações, nem possibilidades de
questionamento, o sistema de regalias, que transforma direitos em
recompensas por comportamentos que aparecem, para a administração
penitenciária, como bons. Na prisão, a disciplina é o centro de uma
prática, em que se exige a submissão total a uma ordem autoritária, cuja
transgressão conduz à freqüente e incontrolada aplicação de sanções
disciplinares, que indevidamente resultando em condições de privação
da liberdade ainda mais rigorosas do que as admitidas para a privação da
liberdade imposta diante da prática de crimes, acabam por criar uma
“prisão dentro da prisão”.
Submetidos à dor da perda da liberdade, às privações físicas, às
tensões de relacionamentos insuportáveis, à opressão da permanente
vigilância, ao peso da obediência inquestionável, à violência
“legalizada” da prisão dentro da prisão e à violência informal dos
espancamentos e torturas, os presos não podem reclamar, não podem
discutir, não podem se organizar, quaisquer reivindicações, quaisquer
tentativas de luta por seus direitos logo sendo apontadas como
insubordinação, indisciplina, ameaça à estabilidade do sistema prisional,
sintoma de “periculosidade”.

II.4.2. O consumo de drogas no interior de estabelecimentos prisionais


Naturalmente, em uma tal situação de opressão, a busca de meios
de alteração do psiquismo, do prazer, do alívio, do desligamento, torna-
se ainda mais intensa. As substâncias psicoativas respondem a esta busca
e se fazem, inevitavelmente, presentes no interior dos estabelecimentos
prisionais.
Mesmo que o controle e a vigilância impedissem a entrada de tais
substâncias, através de visitantes ou dos próprios agentes penitenciários
ou policiais, certamente, outros meios acabariam sendo encontrados.
Pense-se, por exemplo, na produção clandestina e rudimentar de bebidas
alcoólicas. Como narra Drauzio Varella, a produção da “maria-louca”,
aguardente de alto teor alcoólico, feito com milho ou com arroz cru, tem
origem tão antiga quanto o sistema penal brasileiro (veja-se o capítulo sobre
a maria-louca às páginas 182 a 184 de ESTAÇÃO CARANDIRU, Companhia das Letras, São
Paulo, 1999).
Há, no entanto, uma enorme dificuldade de reconhecimento oficial
desta realidade, na medida em que aí se revela, com nitidez, um fracasso
dos anunciados objetivos do sistema penal de fornecer tranqüilidade e
segurança, através da imposição da pena a individualizados responsáveis
por condutas criminalizadas. Tais objetivos não são – nem podem ser –
cumpridos, apenas servindo para fortalecer a ilusória e nefasta crença na
reação punitiva.
Mas, para manter esta ilusória e nefasta crença e, assim, manter
um sistema, que acaba por produzir conflitos e situações negativas mais
graves do que as que enganosamente anuncia poder resolver, prefere-se
ignorar ou esconder a realidade.
E, no caso do inevitável consumo de drogas no interior dos
estabelecimentos prisionais, a ignorância ou a ocultação da realidade
acaba por se fazer, ao preço da saúde dos presos, que, já condenados à
privação da liberdade, se vêem privados também de informações, de
assistência terapêutica e das próprias ações de redução de danos.

II.4.3. Os presos e o direito à saúde


A deterioração física do ambiente prisional faz com que as prisões,
em geral, sejam estabelecimentos não muito diferentes de campos de
concentração. Um dos principais resultados desta deterioração, sempre
agravada pela superpopulação carcerária (presente não apenas no Brasil),
aparece na propagação de doenças infecto-contagiosas, como a Aids ou a
tuberculose.
O índice de atingidos por estas doenças, entre os presos
brasileiros, é muitas vezes superior aos registrados entre a população em
geral. A fácil propagação de doenças serve, como assinala Paulo
Teixeira, de “conclusão antecipada da condenação”, de “pretexto para
extirpar o mal do ‘outro’ na figura do ameaçador derrotado pela morte”
(“A AIDS NOS PRESÍDIOS”, editorial do Boletim Direitos Humanos em HIV/AIDS, Rede
de Direitos Humanos em HIV/AIDS, Ministério da Saúde, ano V, nº 1, 2001).
As condições propícias à fácil propagação de doenças infecto-
contagiosas, aliadas ao inegável e inevitável consumo de drogas no
interior dos estabelecimentos prisionais, já constituem um motivo
suficiente para que as ações de redução de danos sejam ali introduzidas.
Mas, mais do que isso, a imperativa extensão das ações de redução
de danos ao âmbito prisional constitui decorrência do próprio direito à
saúde, do qual não podem os presos ser privados. A pena privativa de
liberdade somente pode atingir o direito de ir e vir. O preso continua
sendo sujeito de todos os outros direitos, assegurados à pessoa, que não
sejam, necessariamente, afetados pela privação da liberdade.
O direito do preso à saúde é decorrência direta da própria garantia
constitucional, que assegura, a quem se encontra privado da liberdade, o
respeito à integridade física e moral (inciso XLIX do artigo 5º da Carta
de 1988). A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), concretizando tal
direito, especifica a assistência à saúde do preso, seja de caráter curativo,
seja de caráter preventivo.
Especialmente nos Estados-membros, em que a integração das
ações de redução de danos à política dos governos daquelas unidades da
Federação, relacionadas à proteção e à defesa da saúde, já se encontra
normatizada (veja-se o item II.2 supra), a imperativa extensão das ações de
redução de danos ao âmbito prisional nada mais é do que o puro e
simples cumprimento do que estabelecido nas leis estaduais que assim
passaram a regular estas ações.
II.5 – Organização das ações de redução de danos
Quando não integrados diretamente a órgãos governamentais, os
Programas de Redução de Danos (PRDs) deverão se estruturar sob a
forma de associações (“associações civis sem fins lucrativos”), como
quaisquer outras organizações não-governamentais, caracterizadas por se
constituirem em uma união de pessoas que se organizam com objetivos
não econômicos.
As relações dos PRDs, organizados sob a forma de associações,
com as pessoas, contratadas para realizar as ações de redução de danos,
mediante remuneração, são relações de natureza trabalhista, como outras
quaisquer, assim regulando-se pelas regras inscritas na Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT). Na hipótese dos programas diretamente
realizados por órgãos governamentais, o ingresso dos agentes redutores
de danos depende de aprovação prévia em concurso público, como
estabelece a regra contida no inciso II do artigo 37 da Constituição
Federal, que, assim, assegura a igualdade de acesso aos cargos ou
empregos públicos. Eventualmente, diante de necessidade temporária de
excepcional interesse público, podem os órgãos governamentais
contratar a prestação de serviços, por tempo determinado, sem a
realização do concurso.
Os agentes redutores de danos são responsáveis por suas ações,
que resultem lesivas a terceiros. A responsabilidade civil (indenização)
é, em princípio, independente da responsabilidade penal. Uma ação
lesiva pode não constituir uma infração penal, mas gerar a
responsabilidade civil. Por outro lado, a condenação de natureza penal
não exclui a responsabilidade civil, constituindo-se, ao contrário, em
título bastante para que se cobre, no juízo cível, a indenização devida. A
responsabilidade penal é sempre da pessoa que realizou a conduta
proibida. Já a responsabilidade civil pode recair sobre a pessoa jurídica
(no caso, o PRD), que, indenizando o lesado, terá, no entanto, o direito
de reaver daquele praticou o ato lesivo o valor que for pago.
III - O ROMPIMENTO COM A POLÍTICA PROIBICIONISTA

III.1 – Propostas parciais e suas limitações


Muitas das críticas e oposições à internacionalizada política
proibicionista, ditada pelos Estados Unidos da América, consideram
apenas aspectos parciais desta política, concentrando-se em propostas,
que, limitadas ao campo do consumo das drogas qualificadas de ilícitas,
sugerem, seja a descriminalização da posse destas substâncias para uso
pessoal, com a transferência de seu controle para o campo
administrativo, seja a impropriamente chamada despenalização
(substituição da pena de prisão por penas “alternativas”, não privativas
da liberdade). Com este mesmo caráter parcial, surgem também
propostas, que reivindicam a exclusão da maconha do rol das drogas
qualificadas de ilícitas.
Vejamos algumas questões relacionadas a estas propostas parciais.

III.1.1. Propostas descriminalizadoras ou despenalizadoras em relação ao


consumo de drogas qualificadas de ilícitas
As propostas despenalizadoras, em relação ao consumo de drogas
qualificadas de ilícitas, sugerem que a posse destas substâncias para uso
pessoal permaneça criminalizada, como na regra do artigo 16 da Lei nº
6.368/76, apenas pretendendo que se afaste a previsão da pena privativa
de liberdade, para impor tão somente as chamadas penas “alternativas”,
isto é, a pena de multa ou penas restritivas de direitos, de que é exemplo
a prestação de serviços à comunidade.
Caminha neste sentido o projeto de lei nº 6.108/2002,
encaminhado ao Congresso Nacional pela Presidência da República,
visando preencher os dispositivos do projeto de lei nº 1873/91 (nº 105/96
no Senado Federal), que acabaram vetados, quando da sanção da nova
Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002 e, assim, revogar a Lei nº
6.368/76.
Com efeito, o artigo 20-A deste novo projeto criminaliza as
condutas de “adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer
consigo para consumo pessoal, produto, substância ou droga
considerados ilícitos ou que causem dependência física ou psíquica, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar”, prevendo a imposição, pelo prazo máximo de um ano, de
ditas “medidas de caráter educativo”, consistentes em prestação de
serviços à comunidade; comparecimento a programa ou curso
educativo; comparecimento a atendimento psicológico; ou multa,
podendo tais “medidas”, que, na realidade, são penas, ser aplicadas de
forma isolada ou cumulativa.
Decerto, as chamadas penas “alternativas” causam menos dores,
são menos danosas do que a pena privativa de liberdade. No entanto, a
vulneração aos fundamentos do Estado Democrático de Direito e às
normas constitucionais, que proclamam a dignidade da pessoa humana e
asseguram a liberdade individual e a inviolabilidade da intimidade e da
vida privada, não é afastada pela mera substituição da previsão de pena
privativa de liberdade por uma previsão de penas de outra natureza, a
deixar subsistente a indevida intervenção do Estado sobre o indivíduo
que realiza uma conduta privada.
Como antes exposto (veja-se todo o item I.3 supra), condutas privadas,
como são a posse para uso pessoal de drogas qualificadas de ilícitas ou
seu consumo em circunstâncias que não ultrapassem o âmbito individual,
nas quais não se faz presente a concreta afetação de um bem jurídico de
terceiros, não podem ser objeto de criminalização, a Constituição
Federal brasileira, especialmente, quando assegura, de forma expressa,
os direitos concernentes à intimidade e a vida privada, desautorizando,
por ser com ela incompatível, a aplicação de quaisquer dispositivos
incriminadores de tais condutas, sejam quais forem as penas ou
“medidas” neles previstas.
Algumas propostas descriminalizadoras, inspiradas, notadamente,
no modelo português, embora sugerindo o imperativo afastamento da
intervenção do sistema penal sobre os autores de tais condutas privadas,
ainda insistem, no entanto, na proibição e na imposição de sanções,
apenas transferindo-as para o âmbito administrativo.
A Lei portuguesa n.º 30/2000, de 29 de novembro, qualifica como
contra-ordenação (isto é, infração administrativa) o consumo, a aquisição
e a detenção para consumo próprio de estupefacientes e substâncias
psicotrópicas, qualificados de ilícitos, em quantidade não superior à
necessária para o consumo médio individual, durante o período de 10
dias, prevendo o processamento e a aplicação de sanções por uma
Comissão para a Dissuasão da Tóxicodependência, funcionando nas
instalações dos governos civis e formada por um jurista designado pelo
Ministro da Justiça e outras duas pessoas, indicadas pelo Ministro da
Saúde e pelo membro do Governo responsável pela coordenação da
política de drogas, entre médicos, psicólogos, sociólogos, técnicos de
serviço social ou outros com currículo adequado.
Prevê a lei portuguesa sanções como multa; admoestação;
proibição do exercício de profissão ou atividade, que envolva risco para
a integridade física; interdição de freqüência de certos lugares; proibição
de acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; interdição de ausência
para o estrangeiro sem autorização; apresentação periódica em local
designado pela comissão; cassação, proibição da concessão ou
renovação de licença de uso e porte de arma de defesa, caça, precisão ou
recreio; apreensão de objetos que representem risco para a comunidade
ou favoreçam a prática de um crime ou de outra contra-ordenação;
privação da gestão de subsídio ou benefício atribuído a título pessoal por
entidades ou serviços públicos, que será confiada à entidade que conduz
o processo ou àquela que acompanha o processo de tratamento;
prestação pecuniária ou de serviços à comunidade.
Da nomeação das sanções, logo se vê que, na realidade, o avanço é
limitado, apenas se tendo promovido a administrativização da proibição,
assim, de todo modo, subsistindo a desautorizada intervenção do Estado
sobre autores de condutas privadas, como, sempre vale repetir, são a
posse para uso pessoal de drogas qualificadas de ilícitas ou seu consumo
em circunstâncias que não ultrapassem o âmbito individual.

III.1.2. Propostas de exclusão da maconha do rol das drogas qualificadas de


ilícitas
As propostas que sugerem a exclusão da maconha do rol das
drogas qualificadas de ilícitas acenam com o argumento de que seus
efeitos primários (efeitos derivados da própria natureza da substância),
seriam menos nocivos, incluindo-se tal substância entre as drogas ditas
“leves”, por isto, não devendo estar sujeita ao controle penal, que se
propõe seja reservado a drogas ditas “pesadas”.
Tais propostas são progressistas apenas na aparência de seus
defensores. Aqui se repete a mesma distinção artificial entre substâncias
psicoativas, que, estando na origem da intervenção do sistema penal
sobre autores de condutas relacionadas a algumas daquelas substâncias,
selecionadas para se tornarem ilícitas, alimenta toda a carga negativa,
dolorosa e violenta, resultante da política proibicionista.
Como sempre vale repetir, todas as substâncias psicoativas,
“leves” ou “pesadas”, lícitas ou ilícitas, provocam alterações no
organismo e dependendo da forma como forem usadas, podem
eventualmente causar danos, não se justificando um tratamento
normativo diverso em relação a condutas relacionadas a umas ou a
outras.
III.2 – O afastamento da intervenção do sistema penal: a efetiva
descriminalização das condutas relacionadas à produção, à
distribuição e ao consumo de todas as substâncias psicoativas
No que concerne às condutas consistentes na posse de substâncias
psicoativas para uso pessoal, ou em seu consumo em circunstâncias que,
não trazendo um perigo concreto, direto e imediato para outras pessoas,
não ultrapassam o âmbito individual, a efetiva descriminalização – isto é,
o afastamento de qualquer dispositivo criminalizador, explícito ou
disfarçado, cominador de penas de prisão ou de penas “alternativas” – é,
como exaustivamente exposto, um imperativo derivado da indispensável
obediência às normas constitucionais, garantidoras da liberdade, da
intimidade, da vida privada, da dignidade da pessoa e, assim, dos
próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Mas, a descriminalização não deve se limitar ao campo do
consumo. A busca da prevalência de uma racionalidade, que encontre no
bem-estar da pessoa humana o seu centro de referência, impõe que a
descriminalização se estenda também ao campo da produção e da
distribuição daquelas substâncias.
A violência, tão associada às drogas qualificadas de ilícitas, tão
provocadora da contemporânea histeria criada em torno da
criminalidade, já seria um argumento decisivo, a indicar o caminho da
descriminalização. O período da proibição do álcool, nos Estados Unidos
da América, também neste ponto, merece ser lembrado, valendo repetir
que a redução da violência, na famosa Chicago dos anos vinte e trinta do
século XX, não foi conseqüência da cinematográfica atuação dos
Intocáveis de Eliot Ness, mas simplesmente do fim da “Lei Seca”.
Mas, a redução da violência não chega a ser a razão maior, a
indicar o caminho da descriminalização. Mais importante é a advertência
de Nils Christie de que o maior perigo da criminalidade nas sociedades
modernas não é o crime em si mesmo, mas sim o de que a luta contra
este acabe por conduzir tais sociedades ao totalitarismo (tal advertência
encontra-se à página 24 do já citado LA INDUSTRIA DEL CONTROL DEL DELITO – LA NUEVA
FORMA DEL HOLOCAUSTO?).

Esta significativa advertência deve direcionar as atenções para a


necessidade de romper com a enganosamente salvadora intervenção do
sistema penal, para a necessidade de romper com a revivida fantasia
medieval que permite um pós-moderno sacrifício de novos hereges e
bruxas, romper com o controle desmedido, manifestado através do
exercício do poder do Estado de punir, romper com as visíveis ameaças a
princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, embutidas
nas legislações de exceção, produzidas sob o pretexto de controle de
selecionadas substâncias psicoativas, artificialmente diferenciadas de
outras substâncias de igual natureza, assim efetivamente rompendo com
a internacionalizada política proibicionista, causadora maior dos danos
relacionados às drogas tornadas ilícitas.
Esta internacionalizada política proibicionista somente se sustenta
pelo entorpecimento da razão. Somente uma razão entorpecida pode crer
que a criminalização das condutas de produtores, distribuidores e
consumidores de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas
sirva para deter uma busca de meios de alteração do psiquismo, que deita
raízes na própria história da humanidade. Somente uma razão
entorpecida pode admitir que, em troca de uma ilusória contenção desta
busca, o próprio Estado fomente a violência, que só se faz presente nas
atividades de produção e distribuição das drogas qualificadas de ilícitas,
porque seu mercado é ilegal. Somente uma razão entorpecida pode
autorizar que, sob este mesmo ilusório pretexto, se imponham restrições
à liberdade de quem, eventualmente, queira causar um dano à sua própria
saúde. Somente uma razão entorpecida pode conciliar com uma
expansão do poder de punir, que, utilizando até mesmo a repressão
militarizada, crescentemente desrespeita clássicos princípios
garantidores, assim ameaçando os próprios fundamentos do Estado
Democrático de Direito.
Uma maior tolerância com as diferenças, que permita a
compreensão de que nem tudo que se desconhece ou que
majoritariamente se rejeita é necessariamente mau, a percepção de que
eventuais adições – não só a drogas – são fatos da vida que devem ser
enfrentados, não com repressão, mas com soluções nascidas da
convivência, da solidariedade e da aproximação ao conflito, certamente
poderão criar condições para uma efetiva redução dos danos que,
eventualmente, possam resultar do consumo abusivo de substâncias
psicoativas, sejam as hoje tidas como lícitas, sejam as ainda qualificadas
de ilícitas.
Liberadas dos negativos efeitos da criminalização, as drogas que,
normativamente diferenciadas, são hoje qualificadas de ilícitas,
certamente se mostrarão menos danosas. Eventuais excessos ou
incentivos ao consumo descontrolado das substâncias psicoativas,
quaisquer que sejam elas, devem ser objeto de medidas que,
desvinculadas da nociva, contraproducente e dolorosa intervenção do
sistema penal, possam resgatar o compromisso com a razão e se mostrar
verdadeiramente eficazes na almejada redução dos danos, eventualmente
causáveis por um tal consumo excessivo ou descontrolado.
IV - FORMAS NÃO PENAIS DE CONTROLE DAS SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS
IV.1 – Descriminalização e formas não penais de controle de condutas
Descriminalizar uma conduta longe está de, necessariamente,
significar uma ausência de qualquer controle sobre esta conduta.
Descriminalizar significa, apenas, afastar uma das formas pelas quais se
exerce o controle social de condutas.
A força ideológica da enganosa publicidade do sistema penal cria
a falsa crença que faz com que o controle social, fundado na intervenção
do sistema penal, apareça como a única forma de enfrentamento de
situações negativas ou condutas conflituosas. Na realidade, não é apenas
a lei penal que controla condutas, visando regular o convívio entre as
pessoas e evitar aquelas situações negativas ou condutas conflituosas. O
controle de condutas concretiza-se, não só através de leis de qualquer
natureza, como de outras intervenções sociais.
A descriminalização pode se dar sob diferentes modalidades,
tendo, assim, diferentes conseqüências. Veja-se, por exemplo, o que
aconteceu com a descriminalização das relações homossexuais ou da
publicidade de contraceptivos, efetuada, há não muito tempo, em alguns
países europeus, que, por mais estranho que, hoje, possa parecer,
proibiam penalmente tais condutas. A descriminalização de tais condutas
implicou no reconhecimento do direito a uma forma de vida, que,
anteriormente, era contrária à lei, assim implicando no reconhecimento
social e legal das condutas descriminalizadas.
A descriminalização, porém, nem sempre significa a aceitação da
conduta descriminalizada e nem necessariamente implica no afastamento
do caráter socialmente negativo da situação considerada. Em tais
circunstâncias, a descriminalização não traduz a liberalização da
conduta, mas tão somente a substituição do controle exercido através do
sistema penal por outras formas de controle social formal ou informal.
Esta substituição pode se dar por um controle social informal,
exercido por organismos como a família, a escola, as igrejas, os clubes,
as associações, etc.. Em tal hipótese, a descriminalização conduz à
neutralidade do Estado diante das condutas descriminalizadas,
neutralidade esta motivada por uma reapreciação de seu papel em
determinados campos, de forma a reduzir sua intervenção sobre o espaço
de liberdade dos indivíduos, assim deixando que a própria sociedade
civil e seus organismos se encarreguem do controle de condutas e
situações, que aparecem como negativas.
Já na hipótese restante, a substituição do controle exercido através
do sistema penal se dá por outras formas de controle social formal. O
caráter socialmente negativo da situação considerada mantém-se íntegro,
transferindo-se, porém, o controle para outros organismos estatais, como
os juízos cíveis (aplicadores de leis produzidas no campo não-penal, no
campo do direito civil, do direito administrativo, etc.), ou não
necessariamente estatais, como sistemas de saúde ou de assistência
social.
O controle formal não penal (a terceira hipótese de
descriminalização acima considerada) pode ser visualizado, com clareza,
no próprio âmbito das substâncias psicoativas, bastando pensar nas
diversas restrições legais a que estão submetidas a produção, a
distribuição e o consumo das drogas lícitas.

IV.2 – Controle social formal sobre a produção, a distribuição e o


consumo de drogas lícitas
A produção e o comércio das drogas lícitas estão submetidos a
restrições legais, cuja disciplina vem estabelecida, fundamentalmente, na
Lei nº 9.782/99, que define o sistema nacional de vigilância sanitária.
Como determina aquele diploma legal, a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde,
regulamenta, controla e fiscaliza a produção e o comércio de
medicamentos e suas substâncias ativas, bebidas (alcoólicas ou não),
cigarros e outros produtos derivados do tabaco, da mesma forma que,
racionalmente, regulamenta, controla e fiscaliza quaisquer alimentos e
outros bens e produtos, que envolvem risco à saúde pública, inclusive no
que diz respeito à qualidade dos mesmos.
Além disso, os medicamentos, as bebidas alcoólicas, os cigarros e
outros produtos derivados do tabaco sofrem restrições à sua propaganda,
como estabelecidas na Lei nº 9.294/96. No que concerne aos cigarros e
outros produtos derivados do tabaco, a mesma Lei nº 9.294/96 (com as
modificações introduzidas pela Lei nº 10.167/00) estabelece restrições à
distribuição gratuita ou à comercialização em determinados lugares (por
exemplo, em estabelecimentos de ensino e de saúde), determinando,
ainda, a introdução, nas próprias embalagens dos produtos, de
advertências sobre o risco que causam à saúde.
Para infrações a tais restrições, são previstas sanções
administrativas, consistentes em multa; advertência; suspensão, no
veículo de divulgação da publicidade, de qualquer outra propaganda do
produto, por prazo de até trinta dias; obrigatoriedade de veiculação de
retificação ou esclarecimento para compensar propaganda distorcida ou
de má-fé; apreensão do produto; suspensão da programação da emissora
de rádio e televisão, pelo tempo de dez minutos, por cada minuto ou
fração de duração da propaganda indevidamente transmitida.
Decerto, a disciplina estabelecida na Lei nº 9.294/96 pode e deve
ser objeto de questionamentos e críticas. Pense-se, em primeiro lugar, no
tratamento diferenciado dado às bebidas alcoólicas. As restrições
impostas à propaganda de tais substâncias psicoativas não alcançam as
bebidas potáveis com teor alcoólico inferior a treze graus Gay Lussac,
assim delas escapando a cerveja. Tampouco há qualquer razão para o
tratamento muito mais rigoroso, seja em relação à propaganda, seja no
que concerne a outras restrições, que é reservado aos cigarros e a outros
produtos derivados do tabaco.
De todo modo, as restrições, estabelecidas na lei em foco,
constituem significativo exemplo de como pode o controle social formal
ser exercido sem a intervenção do sistema penal, de forma muito mais
racional e eficaz, ao mesmo tempo que menos danosa.
Ainda no campo da produção de drogas lícitas, vem tomando
corpo o ajuizamento de ações, visando responsabilizar civilmente os
produtores de tais substâncias psicoativas por danos à saúde de seus
consumidores, através do pagamento de indenizações. Não parece
admissível, no entanto, esta forma de responsabilização, até porque o
consumidor, ao optar por fazer uso de um produto nocivo à sua saúde, o
faz livremente.
Outras formas de responsabilização podem e devem, porém, recair
sobre produtores e distribuidores de mercadorias potencialmente nocivas
à saúde de seus consumidores. Poderia, por exemplo, o Estado
estabelecer restrições à produção e à distribuição de substâncias
psicoativas (quaisquer que sejam elas), que criassem, para seus
produtores e distribuidores, uma obrigação específica de contribuir para
o custeio do sistema de saúde pública.
No que concerne ao consumo, a Lei nº 9.294/96 fornece bons
exemplos de restrições, que, sem invadir o âmbito da liberdade
individual, se mostram igualmente mais racionais, eficazes e menos
danosas. Pense-se na restrição ao uso de cigarros e outros produtos
derivados do tabaco em recintos coletivos, com o que se evitam efeitos
eventualmente danosos ou indesejáveis para terceiros, respeitando-se, ao
mesmo tempo, a opção individual, com a reserva de área, devidamente
isolada e com arejamento conveniente, destinada exclusivamente ao fim
de uso daquelas substâncias psicoativas.
Remarque-se que, em determinadas hipóteses de consumo abusivo
de drogas lícitas, o controle social formal se faz através da própria
intervenção do sistema penal, sem que isto afete a legalidade da
produção, da distribuição ou do consumo não-abusivo daquelas
substâncias psicoativas. Neste ponto, como exemplo, vale lembrar da
criminalização da conduta de quem dirige veículo, em via pública, sob a
influência de álcool, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem
(artigo 306 da Lei nº 9.503/97 – Código de Trânsito).
Afastada a violenta, ineficaz e profundamente danosa política
proibicionista, criminalizadora de condutas relacionadas à produção, à
distribuição e ao consumo de algumas dentre as inúmeras substâncias
psicoativas conhecidas, outras modalidades de controle social, formal ou
informal, além das já mencionadas, certamente, poderão surgir.
O controle social, exercido através da enganosa intervenção do
sistema penal, “vende” a crença de que, sem ele, virá o caos, assim
encobrindo alternativas, assim mantendo as razões entorpecidas.
O afastamento desta equivocada e nefasta crença faz-se
indispensável, para a ampliação das alternativas, que, comprometidas
com uma racionalidade centrada nos direitos, no bem-estar, na dignidade
dos indivíduos, possam, efetivamente, reduzir os danos, eventualmente
causáveis por um consumo excessivo ou descuidado de qualquer
substância psicoativa.

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