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construção de identidades;
1
Professora da UFPA. Pesquisadora da ONG Sodireitos. Belém – Pará.
2
Pesquisador e Articulador da ONG Sodireitos.
3
Hazeu, M. (Coordenador). Sodireitos. 2008.
Dominicana), famílias de mulheres, profissionais de Organizações não-
governamentais (ONGs) com ações diretas ou indiretas de enfrentamento,
organizações governamentais, e pessoas da comunidade que conhecem a
realidade do tráfico de mulheres.
Como dados adicionais foram utilizados procedimentos de observação
em locais estratégicos de ação do tráfico: aeroporto de Belém, Paramaribo e
Santo Domingo; Posto de Saúde em Paramaribo; Clubes em Paramaribo,.
além de conversas com as mulheres em pontos de prostituição.
As discussões e abordagem tomam como marco referencial legal o
protocolo adicional à convenção das nações unidas contra o crime organizado
transnacional – relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de
pessoas, em especial mulheres e crianças, que define o tráfico de pessoas
“como recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de
pessoas, recorrendo-se à ameaça, ao uso da força ou a outras formas de
coação, tais como rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, situação de
vulnerabilidade, entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios, para obter
o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, para fins de
exploração”.
Atenta-se, portanto, para a situação das mulheres, que neste contexto,
assume características bem peculiares, com o tráfico envolto num contexto de
desigualdades de gênero, num mercado altamente marginalizado e muitas
vezes, ilegal, como o mercado de sexo, ou para a esfera doméstica ou privada,
e por isso mesmo, de difícil visibilidade e intervenção do Estado.
Para este texto, especificamente, pretende-se apresentar e discutir um
perfil qualitativo das mulheres envolvidas em situações de tráfico enfocando
alguns dos aspectos da construção de suas identidades e subjetividades, o que
envolve apresentar algumas de suas vivências antes, durante e após a
experiência de tráfico, discutindo-as do ponto de vista de seu papel e
significado nesta construção.
04) “LA. 17 anos, tem uma filha de dois anos e está grávida pela 2ª vez.
Estudou até a 5ª série do ensino fundamental. Mora com o companheiro.
LA foi traficada, aos 14 anos, para uma boate no Oiapoque,depois, por sua
conta, para a Guiana Francesa e para um garimpo no Suriname. Foi convidada
por uma „conhecida‟ para morar em Macapá e ser babá. A mãe não deixou,
mas LA fugiu de casa. 'Eu não sabia o que ia acontecer, eu só queria trabalhar
pra ajudar minha família', conta. Na boate do Oiapoque, ela ficou apenas
quatro dias. A gente era de menor e ele não quis aceitar a gente. A gente teve
que ficar só pra pagar a passagem e depois ele mandou a gente embora.
LA ficou na rua e depois morou com um “amigo”. Nas boates por onde passou,
era chamada de vários nomes. 'Me chamavam de Darla, Darling e Darlene”.
“No garimpo viveu com um surinamês, de quem engravidou e teve a filha mais
velha. 'Ele bebia e me batia muito, fugi dele e pedi ajuda pra polícia da França”.
“LA foi deportada para o Brasil depois de um ano e oito meses. Voltou grávida.
Ela ficou durante três meses num albergue do estado, sendo depois levada
para morar com a mãe. Fez denúncia, mas não tem informações d o processo.
Sabe que o dono da boate no Oiapoque está preso e a mulher que a levou,
foragida. Hoje LA vive com um companheiro de quem espera o segundo filho.
Não estuda e trabalha em casa”.
“Recebe-nos para a entrevista em sua casa, com a filha no colo; enquanto
conversamos, ela penteia o cabelo da boneca de sua filha”.
“Ao perguntarmos por que ela acha que tal situação ocorrera com ela, ela
responde, com voz tranqüila e resignada: 'Se eu tivesse outra situação, isso
não tinha acontecido'. Seus planos? 'Não dá pra fazer muita coisa, ele (marido)
não quer que eu volte a trabalhar, pra estudar não dá, ele não deixa eu sair de
casa”.
HISTÓRIA 6): MA, 27 anos, quatro filhos. Viajou quatro vezes para o
Suriname, sendo que a primeira vez foi para um clube e depois para
garimpos. Parda. Ensino Fundamental incompleto.
Relata que vivia dificuldades financeiras depois que o marido a deixou. Foi
convidada por um amigo e sabia que ia ser garota de programa. Não fui
enganada, mas ninguém sabe direito: passagem, médico, roupa, comida,
moradia... O problema é a dívida!'. Eu briguei muito no clube, reclamava meus
direitos e levava meninas pra polícia, a gente é explorada. Depois que conheci
a vida no clube, não quis mais ir. No garimpo você é independente, é muito
melhor”.
Ela afirma que, se tivesse outra forma de viver, não iria. 'Hoje vejo sexo como
trabalho, eu tenho que ganhar. Quero sair dessa vida, tanto que me viro, levo
coisas, roupas pra vender, faço outros trabalhos, cozinheira, faxineira. Não vivo
só disso”.
Vive uma experiência de namoro com um francês: 'Estou apaixonada, mas
tanto no trabalho, quanto nessa relação, é igual numa coisa – com os dois eu
quero ganhar. Ele tem que me dar, me ajudar, senão não tem nada. Estou indo
pra arrumar a vida dos meus filhos. Quero que seja a última vez, queria voltar a
estudar”.
As histórias
São histórias reais, assim como os sujeitos que as constituem. Nem
vilãs, nem heroínas, nem representantes da totalidade das condições e das
mulheres em situação de tráfico.
Todas elas, entretanto, expressam o caráter multidimensional do crime
de tráfico, no qual se entrecruzam as relações macro-sociais de mercado e seu
conseqüente impacto na precarização das condições de vida e das relações de
trabalho, a reedição de práticas exploradoras de trabalho, tais como trabalho
escravo rural ou urbano, casamento servil ou forçado, confinamento de
mulheres para prestação de serviços sexuais em garimpos, clubes ou áreas
urbanas e outras formas diversas de exploração transversalizadas pelas
relações e valores culturais de classe, gênero e intergeracionais.
Em todas também, a mesma faceta da exploração que transforma o
dominado em coisa, em objeto de produção e satisfação dos interesses de
lucro de outrem, anulando sua possibilidade de decidir, escolher e recusar.
O que é ser mulher para cada uma delas? O que é ser mulher em cada
um dos espaços sociais nos quais viveram? E como aprenderam a ser mulher?
E como essas experiências e as condições de vida combinam-se na
construção das identidades sociais, profissionais, sexuais?
Aludimos à dimensão relacional do gênero, à sua construção e
reconstrução nas relações entre as pessoas, entre os gêneros, nas quais
também são criadas as diferenças e desigualdades assim como pelas formas
como cada um significa suas ações e experiências.
Esta ênfase torna-se indispensável para deslocar as assimetrias da
mera derivação biológica e situar a discussão das feminilidades e
masculinidades no campo dos processos históricos e culturais. Estes
processos são, ao mesmo tempo, determinados e determinantes da forma
como a sociedade trata e legitima as diferenças, legitimando também a
inferioridade feminina.
Marcadores materiais e simbólicos entrelaçam-se na construção das
histórias. São estes que permitem classificar as pessoas e definir quem vale
mais ou quem pode menos. No caso do tráfico de pessoas o binômio
dominação masculina e submissão feminina é levado às últimas conseqüências
e as identidades femininas construindo-se em relação, ou em contraposição, à
identidade masculina. É como se a mulher aprendesse a se pensar a partir do
homem ou por ele.
As expectativas
“Eu fui por necessidade. Não foi por sonho”. (MA).
“Eu achava que teria que ir pra lá porque lá é melhor do que aqui.”
(GA).
“É com a ilusão de uma vida melhor, com uma proposta boa de
ter um trabalho, que ganhe melhor, pra dar uma vida melhor pra sua
família, pros seus filhos. Mas é tudo uma ilusão, porque eles falam que é
uma coisa e é outra.” (DI).
“Eu disse pra minha tia: um dia que voltar novamente pra lá e
conseguir minha casa, um dia que eles tiverem na rua e falarem pra
eles: ah, porque tua mãe é uma filha da p... Eu tenho certeza que eles
vão bater no peito e vão dizer, com todo orgulho, que ela é. Se não
fosse isso, eles não tinham uma casa e não tinham o que comer”. (AL).
De volta às perguntas
O que é ser mulher para cada uma delas? O que é ser mulher em cada
um dos espaços sociais nos quais viveram? E como aprenderam a ser mulher?
E como, essas experiências e as condições de vida combinam-se na
construção das identidades sociais, profissionais, sexuais?
É preciso deixar claro que a questão da identidade já se coloca num
campo fluído, complexo, ambivalente. Colocar-se no campo do pertencer ou do
encaixar-se nas convenções. Passa pelas negociações individuais ou das
codificações sociais, que define quem e quanto vale, quem pertence, quem
está fora. Típico das identidades seria a mudança, a transitoriedade, o refazer
contínuo. Mas que para essas mulheres não parece ser bem assim. Quem
são? Pergunta que certamente se coloca muito mais para nós, pensadores,
pesquisadores, do que para essas mulheres. Estariam elas preocupadas em
pertencer? Ou ao contrário, já estão elas encaixadas em identidades menores,
que as humilha, violenta, estigmatiza? Prostitutas, vítimas de tráfico, pobres.
São mulheres, decerto, mas essa identidade mais ampla não confere
significado às outras identidades menores, são mulheres, mas vistas,
percebidas, olhadas, de forma diferente das outras mulheres “de bem”. Seria a
essa identidade que querem pertencer? Quem é? Como afirma Bauman, só
parece fazer sentido para quem acredita que pode ser outra coisa diferente do
que é, e para quem pode fazer escolhas.
Essas mulheres, como grande parte das pessoas, encaixam-se em
identidades impostas por outros e, carecem das condições concretas para
delas livrarem-se, embora desenhem variadas estratégias para isso.
Antes da viagem condições de violência, de pobreza extrema, das não-
condições mínimas de sobrevivência, desencadeadoras dos sonhos e das
expectativas com o estrangeiro, o sonho se dissipa e as condições são
semelhantes ou até piores, durante no período em que passam fora, já que
precisam enfrentar os rótulos do “estrangeiro ameaçador”, no retorno ao Brasil
as mesmas condições de falta de condições e perspectivas e novamente, mais
um agravante, o estigma de fracassada, que não cumpriu as expectativas
(delas e de suas famílias) de sucesso internacional, de salvadora da família. A
volta em geral se faz acompanhada de muito menos respeito, o que ajuda a
compor o cenário de mais uma tentativa para algumas.
Qual das difíceis opções escolher? Nunca ter ido? Voltar para a luta no
Suriname? Ficar no Brasil como fracassada? Como ambicionar uma outra
identidade que lhe foi sucessivamente negada? Optar por uma identidade não
tem sido cenário que se apresenta para elas, para quem a opção está entre ser
explorada ou ser excluída, já que sempre estiveram fora dos contextos de
escolhas ou negociações de identidades.
Nesta discussão não é possível concluir sem fazer alusão a duas
questões de extrema importância: primeiro olhar para o Estado ausente, dupla
ou triplamente violador que não garante as condições e políticas mínimas de
direitos básicos, cuja falta acirra as vulnerabilidades das mulheres ao tráfico,
que não garante estratégias de enfrentamento e punição dos criminosos, que
não atende adequadamente as mulheres no retorno oferecendo condições de
permanecerem.
Em segundo lugar, e finalmente, olhar para as mulheres, para formas de
atendimento que ajudem a construir a clareza das situações e a assumir essas
contradições. Que elas possam trabalhar a consciência de suas condições
concretas de vida, noção fundamental de identidade. A consciência da
desigualdade, de todas as naturezas, das próprias condições de exclusão, é o
primeiro passo para o inconformismo social e, por conseguinte, para a
construção de posições emancipatórias de vida, para a assunção de papéis
mais protagonistas. Parafraseando Hanna Arendt, quando se é atacado como
mulher, pobre ou prostituta, é a partir da assunção destes papéis e posições
que é preciso defender-se e não como sujeito abstrato. Qualquer trabalho de
atendimento a ser pensado para e com essas mulheres não pode prescindir
dessa clareza.
Referências bibliográficas
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Universitária, 2007.
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LEAL, Maria Lucia; LEAL, Maria da Fátima (Org.). Pesquisa sobre tráfico de
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SARTI, Cynthia A. A Família como Espelho: um estudo sobre a moral dos
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SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania: por uma Sociologia
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