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AS AVENTURAS DE SABUGO

Osmanito Torres - 2007

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Capítulo I

Sabugo de milho sujo

O trem cortava a paisagem proporcionando aos seus passageiros


uma vista impressionante. Serras azuladas ao longo contrastavam
com o verde das matas que as circundavam e cobriam. Era um dia de
verão e em seus vagões de passageiros encontravam-se pessoas de
vários lugares que iam a vários destinos. Desde os vilarejos,
pequenas cidades até os grandes centros e a paradas onde sempre
haviam vendedores de alimentos, animais, frutos e outras coisas
produzidas na região. Ali por aquele lugar o progresso chegava a
passos lentos dando a impressão aos visitantes de estarem voltando
no tempo.
- Cuidado com essas malas amigo! – avisou em voz alta um
senhor bem vestido de preto ao carregador que retirava seus
pertences de um vagão de bagagem – Estão cheias de perfumes
importados caríssimos e não quero levar um prejuízo neste fim de
mundo.
- Não se preocupe senhor. Pretende passar muito tempo por essas
bandas?
- Só o bastante para encher os bolsos, amigo – sorriu o homem
oferecendo uma gorjeta – tome aqui, obrigado.
- Eu que agradeço cavalheiro... como se chama mesmo?
- Wilson, para os amigos...
O forasteiro com roupa escura acendeu um cigarro e pôs-se a
olhar ao redor enquanto soltava fumaça em forma de anéis. Esperava
que a cidade que ficava próximo à estação pudesse atender às suas
expectativas. Talvez os negócios ali fossem melhores que os
anteriores.
***

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Fernando tinha apenas sete anos quando foi à escola pela
primeira vez. As aulas eram particulares e razoavelmente caras. É
claro que seus pais, não podiam pagar pelos estudos naquela escola
onde somente os ricos da cidade frequentavam. No entanto, seu
padrinho que era um dos homens mais bem sucedidos e influentes da
região, estava custeando tudo. No início não foi muito difícil para
ele, porque sua mãe lhe ensinara a ler e escrever quando ainda
moravam na roça. Como era prestativo, ajudava alguns dos alunos
com as tarefas de casa.
Um dia na escola, estava com uma dor de barriga insuportável.
Saiu da sala de aula às pressas para a privada que ficava do lado de
fora aos fundos da residência do Professor. Todos acharam
engraçado ele sair correndo com dificuldade, segurando em uma das
mãos dois ou três sabugos de milho, enquanto que com a outra
apertava o ventre. Até o professor que era um senhor idoso muito
sério começou a sorrir sem parar. Fernando só voltou depois de uns
vinte minutos. A turminha começou a sorrir e gozar dele. Quando um
dos alunos começou a gritar, todos os demais o seguiram em um coro
só:
− Sabugo de milho sujo! Sabugo, sabugo de milho sujo!
Fernando fechou a cara com raiva e sentou-se em seu banco.
Não adiantou muito zangar-se com a garotada pois cinco anos
depois, não só os alunos veteranos e os novatos o chamavam por este
apelido, mas também toda a vizinhança. Fernando acabou se
acostumando e com o tempo quando lhe perguntavam seu nome ele
dizia: - Pode me chamar de Sabugo.
Na vizinhança, Sabugo era considerado um capeta em forma
de gente. Principalmente quando se juntava com outros moleques na
faixa de sua idade e metiam-se nas mais inesperadas confusões. Uma
vez, o seu pai que se chamava Fernão, teve uma séria conversa com o
delegado. Sabugo e outros garotos haviam escavado um buraco em
uma rua arenosa e o disfarçado com palha e areia. Apenas não
esperavam que o primeiro a passar por ali, fosse o Delegado João
Bravo, montado a cavalo. Sua montaria afundou as patas no buraco,

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assustou-se e arremessou o homem ao chão. Ele demorou pelo menos
meia hora para se recompor da queda infeliz.
Quando o senhor idoso elevou a sua voz aos berros e
xingamentos, toda a turma parou de sorrir e correu em disparada por
entre as casas da rua, até desaparecerem como fantasmas. Sabugo por
sua vez, vendo que tinha sido descoberto e reconhecido, resolveu
ficar parado ali no local até que o irritado Sr. João o segurasse pelo
braço e o colocasse na sela de seu cavalo.
Foi uma surpresa para o pai de Sabugo quando o viu
chegando com o oficial de polícia. Bom... pelo menos, havia dado
boas risadas com a turma e andado na garupa de um cavalo da polícia
pela primeira vez na vida. Ruim foi ter de suportar as broncas feias
de seu Fernão que tinha sido obrigado a assinar um documento de
responsabilidade.

Eram seis horas da manhã e Sabugo abria os olhos grandes.


Passou as mãos em seus cabelos claros e encaracolados. Olhou para
o velho relógio comprado em São Paulo por seu pai, o qual bateu
pela sexta vez. Aquele barulho era tedioso; o pior era ter que ouvir o
tempo todo as batidas correspondentes à hora atual. Por exemplo,
quando dava doze horas, o relógio soava doze vezes seguidas.
Na cama ao lado, roncava um velho nos seus sessenta e tantos
anos o qual usava um tapa-olho. Era o seu avô que morava ali desde
a morte da avó materna. Ele roncava como um porco, mas todos já
haviam acostumados a dormir mesmo ouvindo-o roncar durante toda
a noite. Depois que seu Fernão trouxera o relógio, os sons das
badaladas misturavam-se aos roncos do velho e as vezes pareciam
formar uma dupla de hóspedes incômodos.
Seu avô era uma figura um pouco estranha. Era conhecido
pelo apelido de Vovô Bimba, o velho pirata. Fumava cigarro de
palha, e usava o fumo que ele próprio plantava na roça e vendia aos
rolos em dias de feira. Era comum nos dias de sábado gritar no meio
das pessoas na feira.
- Olha o fumo! O rolo é grosso!!!

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Ele tinha um dos olhos cegos resultado de uma perfuração
que havia sofrido trabalhando em derrubada de roças e era por isso
que usava sempre um tapa-olho na cara para esconder o objeto de seu
trauma. Às vezes quando queria assustar alguma criança, apenas
levantava o tapa-olho e o pobre desabava na carreira, deixando para
trás o velho em gargalhadas, exibindo os raros dentes amarelos e
gastos que possuía.
Quando estava com preguiça de ir ao banheiro, seu Bimba
fingia estar paralisado para ser carregado pelos vizinhos. Nestas
ocasiões, Sabugo era o encarregado de limpar a bunda dele depois
que fazia suas necessidades. O pai de Sabugo dizia:
- Vai, Fernando! É seu avô querido...
Quando todos saíam, o velho punha se a rir com desdém. Mas
Sabugo tinha um bom coração e fazia sempre o que lhe pediam. Na
última vez, fez o velho curar-se definitivamente das suas crises de
paralisia por limpar sua bunda com folhas de urtiga.
O avô de Sabugo era um velho avarento, mas tinha um
carinho especial por seu neto. Assim, quando recebia alguns trocados
do aluguel de pastos que possuía, sempre lhe dava um pouco de
dinheiro. Em troca, Sabugo confidenciava-lhe suas peripécias e
segredos. Quando ninguém mais sabia o que Sabugo tinha na cabeça
ou estava aprontando, seu avô sabia pelo menos encontrar o fio da
meada.
****

Naquele dia, o padre vinha realizar a confissão trimestral na


paróquia e Sabugo resolvera aproveitar a oportunidade. Sempre que
havia confissão ele ganhava alguns trocados como coroinha, mas só
que desta vez, ele tinha um projeto especial de extrema urgência.
Para isso, Sabugo tinha de conseguir um bom dinheiro. Não era a
quantia que às vezes recebia de seu avô, era preciso muito mais, por
isso ele já estava preparado e com um plano formado em sua mente
irrequieta.

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Era um domingo especial e Sabugo se vestindo depressa saiu
em direção à praça da feira. Depois de Comprar um potinho de
geléia, entrou em uma farmácia da esquina.
- Bom dia seu Jonas! Meu avô pediu para pegar mais alguns dos seus
comprimidos.
- Já acabaram aqueles? - estranhou o farmacêutico - É apenas um a
cada final de semana. São muito fortes estes purgativos. Tome aqui,
dá para a metade do ano.
Sabugo sorriu guardando o embrulho com vários
comprimidos na cor branca. Depois de sair da farmácia, continuou a
sua caminhada desta vez em direção à igreja. Olhou para a geléia
com desejo de consumir quem dera um bocado, pois ainda não havia
tomado café e seu estômago definitivamente não era seu amigo.
A paróquia estava bem animada com a chegada do pároco
que sempre vinha da cidade próxima, uns cem quilômetros de
distância. Chamavam-no Padre Paulo. O padre vinha de trem e era
esperado sempre por alguns na estação que ficava a alguns
quilômetros de distância. De lá para cá montava às vezes em um
cavalo, um burro, montaria muito usada na região, ou em uma
carroça fechada, sendo conduzido até a igreja da cidade. Este dia era
um domingo de páscoa, e sempre havia missas e novenas na época.
Também nessa ocasião, batizavam-se crianças, realizavam-se
casamentos e o padre fazia questão de confessar todos os que
estivessem dispostos.
Assim que chegava, era seu costume ficar sentado no
primeiro banco da Igreja distribuindo água benta a algumas velhas
beatas, algumas delas desdentadas as quais sorriam pateticamente.
Depois disso distribuía algumas beijocas às criancinhas que lhe
traziam. Algumas delas disparavam no choro.
Mas havia uma coisa que o padre gostava em especial.
Algumas mulheres sempre traziam ou enviavam por seus maridos ou
filhos alguns bolos, doces, tortas e pudins. Sempre que recebia estas
iguarias que eram carinhosamente preparadas, o sacerdote retirava
alguns minutos antes de algum ofício para saboreá-las.

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- Bom dia Padre Paulo! – saudou Sabugo aparecendo por entre os
fiéis.
- Olá, Fernando, meu coroinha mais fiel! – respondeu o sacerdote -
Como estão seus pais? E seu avô o velho Bimba?
- Estão bem. Papai e mamãe estão se preparando e mais tarde virão
se confessar também. – Sabugo olhou para o lado e prosseguiu em
voz baixa – é que estão fazendo uma lista dos pecados desta semana.
O padre sorriu, franziu as sobrancelhas e num gesto de advertência
um pouco irônico retrucou:
- E você, Sabugo... Já fez a sua?
- Claro! – respondeu - E não esqueci do suborno.
Sabugo retirou a mão que estava atrás das costas, exibiu um
pote com doce caseiro e o padre teve uma grata surpresa.
- Ah! Uma compota de geléia. É a minha preferida! – o padre lambeu
os beiços. – Fernando, meu filho não vou esquecê-lo na oração de
agradecimentos de hoje. – brincou - São coisas como essas que me
fazem desistir das dietas e regimes que o médico me receita.
O padre pousou as mãos sobre a cabeça de Sabugo em um
gesto de agradecimento. Não foi uma boa idéia, Sabugo há alguns
dias estava com coceiras na cabeça, resultados de uma pediculose, e
quando ele coçava, elas inflamavam ficavam purulentas e vazavam.
De vez em quando, sua mãe dava uma olhada em seus cabelos e
aplicava um preparado especial para remover a praga. O padre fez
uma cara de nojo e continuou:
– Peça pra sua mãe raspar sua cabeça filho. Tá parecendo índio –
recomendou - Apronte-se imediatamente para tocar o sino do
confessionário, vou fazer uma refeição e iremos começar.
- Sim senhor – disse Sabugo – mas antes, permita-me ir à privada.
O sacerdote retirou-se esfregando as mãos na roupa. Sabugo
sorriu. Como conhecia bem o gorducho do padre, logo a geléia seria
consumida. Sabugo havia desmanchado várias pílulas laxantes do
avô na compota e uma dose assim faria um rápido efeito.
Encontrando um livro grosso sobre uma das mesas Sabugo foi para o
banheiro, sentou-se sobre o vaso e pôs se a ler em voz alta um texto.

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Sabugo gostava tanto de ler que era uma das suas manias fazer isso
mesmo quando ia à privada.

Capítulo II
Uma dor de barriga daquelas

O Padre dirigiu-se à sala reservada e pôs se diante da mesa.


Ali estavam alguns dos presentes do dia. Esta era a parte que mais
gostava. O pessoal católico da cidadezinha era generoso e sempre
levavam diversos tipos de alimentos para o guloso sacerdote. Dentre
alguns presentes dos moradores, escolheu alguns bolinhos, frutas e
leite. Separou uma grande porção da geléia presenteada por Sabugo e
sentou-se animado.
- Ó Senhor! Perdoe todos os pecados deste povo! – brincou –
inclusive o da simonia! E não se esqueça de continuar deixando
passar por alto a minha gula.
Os moradores continuavam a chegar e sentavam-se nos
bancos, aguardando a hora da confissão como quem aguardasse a
hora do julgamento. Ali estavam crianças, jovens, idosos, senhores e
senhoras. Alguns deles traziam a Bíblia sob o braço num gesto de
devoção. Muitos haviam caminhado dez quilômetros ou mais, uns de
carroça, jegue ou de cavalo.
Ali, tanto pobres como ricos aguardavam a missa e os ofícios
relacionados. Uma diversidade de pessoas e tipos. Miguel por
exemplo, era dono de um armazém. Sua esposa Lola, era conhecida
como uma mulher muito religiosa, mas segundo comentários, sempre
passava a perna nele quando viajava para São Paulo a negócios. O
materialismo dele era seu forte. Mas para dar aparência de piedade,
sempre estava presente nestas ocasiões. Sua filha pequena segurava
sua mão direita e olhava atentamente para o grosso livro debaixo do
braço do pai.
- Pai – sussurrou uma mocinha – Isso não é uma bíblia! O senhor
trouxe um dicionário!

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- Mamãe! – perguntou um garotinho – se o padre perguntar o que eu
fiz o que eu falo?
- Fale tudo de ruim que você aprontou desde o ano passado... –
respondeu sua mãe sorrindo.
- E se ele contar pra senhora? – preocupou-se o rapazinho.

Uma velha que estava conversando com outras resolveu sorrir


de algo contado pelas amigas, mas arrependeu-se. Sua chapa de
dentes soltou-se de sua boca caindo no chão. É que o único protético
da cidade que já era idoso e ruim da vista, às vezes errava nas
medidas ou confundia-se com os moldes. Desta forma, algumas
dentaduras ficavam frouxas ou eram levadas pelo cliente errado.
As velhas danaram a sorrir da coitada. Uma delas que era um
pouco frouxa, ao sorrir soltou sem querer um ruidoso pum, causando
mais risadas no grupo.

Enquanto isso, o padre havia completado a sua refeição e


havia devorado tudo o que tinha posto diante de si. Começava a
vestir seu traje tradicional e cantarolava uma canção antiga enquanto
organizava as coisas de viagem.
Dirigiu-se ao confessionário mas antes de entrar, olhou para
um lado e para o outro.
- Onde está o Sabugo? Ainda não voltou... – pensou o sacerdote.
O pároco entrou no confessionário e segurou o terço de
orações nas mãos. Fez a primeira oração e benzeu-se. Sabugo
demorava-se a ponto de deixá-lo impaciente. Passaram-se alguns
minutos. A geléia, os bolinhos e o leite no seu estômago começavam
a causar-lhe um mal estar repentino. O sacerdote sentiu alguma coisa
apertar suas entranhas e sua barriga parecia estar entrando em
colapso. O suor começou a escorrer por sua face, parou de rezar o
terço e emitiu um gemido entrecortado pelo trincar dos dentes de
suas próteses dentárias. De repente, recebeu uma mensagem do
intestino.
- Humm... Malditos gases! – reclamou irrequieto - Não posso ficar
soltando gases dentro do confessionário.

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Olhou para o salão da igreja em meio à cortina entreaberta do
confessionário. Muitos fiéis aguardavam o chamado do sino.
Algumas velhas corocas tomavam a dianteira em entoar cânticos,
sendo seguidas por muitos dos presentes. As vozes das velhas
causavam-lhe irritação extrema. Alguns dentre os presentes não
sabiam a letra do hino, por isso apenas moviam os lábios para lá e
para cá e emitiam sons desafinados.

No confessionário, os laxantes que havia ingerido com a


geléia começavam a fazer efeito rápido. O padre não conseguiu
resistir a um espasmo mais extenso de suas vísceras e curvou-se em
meio a agonia de uma cólica forte.
- Mas que demora do menino... – pensou – deve estar com uma dor
de barriga danada também...
O padre cansado da demora do ajudante resolveu iniciar a
confissão por tocar ele mesmo o sino de chamada. Assim, uma
multidão começava a se preparar para relatarem ao sacerdote os seus
erros mais escondidos. Alguns que até a poucos instantes estavam
nos primeiros lugares da fila retornavam discretamente ao seu final.
Depois de verificar que tinha sido pela primeira vez na vida passado
de trás pra frente em uma fila, um senhor magro e pálido abriu a
cortina e um pouco apreensivo sentou-se diante do o confessionário.
- A bênção bom padre. - disse o fiel sentando-se com o chapéu em
suas mãos.
- Deus lhe abençoe... – o sacerdote tentou terminar a saudação mas
uma outra cólica forte o fez entrecortar a voz e interromper a bênção.
O fiel à frente estranhou e ficou pasmado ao ouvir o som de
um gás espremido soltado pelo padre.
- Desculpe meu filho... É que hoje não estou muito bem – continuou
o pároco em meio a um sorriso – mas diga o que tem feito de errado,
faça como eu, deixe sair o que está lhe incomodando...
O fiel ia começar a falar, mas a catinga era difícil de suportar.
Padre Paulo que se revolvia em sua poltrona soltou mais um gás
fétido que incomodara até ele próprio.

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- Continue meu filho – balbuciou com dificuldade segurando o
ventre – deixe sair todos os seus podres...
O fiel que vez por outra tapava o nariz tentava conseguir
fôlego para continuar e abanava as mãos frente ao nariz. O homem se
chamava José Félix, era idoso e já sofria de asma por um bom tempo.
Quando se encontrava em ambientes fechados ou empoeirados o
problema de saúde se agravava. Também cheiros fortes como os de
perfume ou carniças conseguiam quase que tapar sua respiração. Para
acabar de completar, o padre soltara mais um ruidoso e fétido vento
piorando o ambiente.
Félix que colocava uma das mãos na garganta, não agüentou
mais a situação extrema e saiu depressa do recinto dirigindo-se para
fora ainda respirando com dificuldade. Os demais fiéis que o viam
afastando-se tão depressa com o rosto vermelho, acharam que sua
penitência tinha sido pesada demais para ele. Uma velha que usava
um óculos tão grosso como o fundo de uma garrafa, apontou-o com o
guarda chuva preto, e exibindo o único dente em sua boca murcha
sussurrou para a amiga ao lado:
- Se aquele homem santo e doente já foi condenado, imagine o que
nos espera comadre. - Depois, olhando para cima e apertando os
beiços uns contra os outros concluiu – mas lhe garanto que foi uma
juventude inesquecível.
O padre no confessionário passou a mão na traseira por baixo das
veste fazendo uma descoberta reveladora:
- Humm... Não é mais gasoso... É líquido...

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Capítulo III

Um sacerdote improvisado.

Sem perda de tempo o pároco levantou-se apertando as pernas


uma contra a outra e abandonando o seu posto no confessionário,
dirigiu se para a privada. Sabugo ouviu o barulho dele se arrastando
em meio a fortes gemidos, o padre aproximava-se com dificuldade.
Quando esbarrou na porta da privada, Sabugo gritou:
- Tem gente!
- Sabugo, meu filho! Sou eu... – suplicou com dificuldade - Saia daí
em nome de todo os santos!!! – Implorou o Sacerdote.
- Saia loogoooo! Saia ou vou quebrar a porta!
Sabugo, que havia trancado a privada com segurança,
espantou-se com o grito, mas no momento sorria pra se acabar. As
pílulas tinham feito o serviço desejado, e isso em apenas pouco mais
de meia hora.
- Paciência, padre! - berrou - ainda estou apertado e com dor de
barriga. Só mais um pouco!
O Padre já não agüentava mais aquela situação. Olhou para os
lados na esperança de encontrar alguma moita próxima ao muro, mas
inutilmente. Além disso, não tinha mais tempo nem para se acocorar
na boca da fossa. Sentiu escorrer por entre suas pernas o produto de
suas dores, manchando as suas vestes brancas.
- Saia logo que estou me sujando todo!– gritou desesperado enquanto
batia na porta.
Um garotinho apareceu curioso e assustado com aquela cena.
O padre acenava com as mãos mandando o guri retirar-se. Mas o
coitadinho na sua inocência, apenas olhava com espanto para o
sacerdote com um enorme pirulito nas mãos. O padre com as pernas
entreabertas avançou na direção do menino imitando um monstro
ameaçador. Os grunhidos do padre, e a cena incomum causaram uma
grande depressão na imaginação do pequenino, o qual desabou no
choro.

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O choro do garoto era estridente, mas não incomodava tanto
quanto as cólicas que aumentavam como as dores do parto. O pároco
sentia que seu interior se esvaía.
- Ai meu deus e agora? Menino termine logo! – berrou. – olhe filho...
Desta vez, ao invés dos dez por cento, vou te dar onze por cento! mas
abra logo esta porta...
Sabugo sentindo que seu plano estava saindo às mil
maravilhas respondeu:
- Só abro se o senhor me der metade de todas as ofertas de hoje!
O padre já não conseguia mais se mexer nem pensar direito.
O garotinho estava chorando muito alto, e algumas pessoas poderiam
se aproximar para verificar o que estava acontecendo. Com as mãos
na barriga, e se segurando para evitar um desastre maior, o padre
bradou:
- Ta bom! – concordou – eu lhe dou a metade, alma desalmada!
- Pois jure em nome da virgem santa! – retrucou Sabugo com
firmeza.
- Eu juuuroooooo... por todos os santos... – respondeu o padre - Saia
daí logo!
Sabugo abriu a porta e arregalou os olhos ao ver o padre naquela
situação.
- Saiaa logoooo... Gemeu profundamente revirando os olhos.
E virando-se para o menininho que observava atentamente aquela
situação disse:
- E leve este curioso daqui!
As pessoas estavam impacientes. A demora do padre fazia-
nas cochicharem entre si. Além do mais haviam escutado gritos nos
fundos da igreja e antes, ouviu se barulhos no confessionário.
Sabugo raciocinou que o Padre não iria sair tão cedo da privada. No
entanto, os ofícios tinham que continuar. Como o padre Paulo estava
no momento impossibilitado de realizar as confissões, Sabugo
pensou:
- E agora? Quem vai confessar todos esses pecadores condenados? –
sua mente irrequieta não demorou a formular o que fazer afinal, a
maioria das ofertas era lançada durante a confissão. Dirigiu-se ao

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confessionário e preparou-se. Colocou a caixa de donativos em frente
e ocultou-se dentro dele. Em seguida, fez soar o sino da chamada.

A cortina balançou e o primeiro ‘réu’ Pediu a bênção, sentou-se em


frente e Sabugo com voz forte e dissimulada disse:
- Conte seus pecados filho.
- Dentre outras coisas, eu sou um adúltero, padre... Engano minha
esposa – choramingou o homem que segurava em suas mãos o
chapéu – mas o arrependimento me consome tal qual o ferrugem em
uma peça de ferro exposta ao tempo...
- Isso é muito poético eu admito... Mas ainda é muito sério. –
indignou-se o falso padre - Quantos sabem?
- É oculto padre... – respondeu o vaqueiro – e se minha mulher
souber estou morto, pois se trata de uma santa...
- Seu erro é grande, mas... – atalhou Sabugo - O perdão é para os
arrependidos. No entanto, - continuou Sabugo – sua penitência será
pesada. Sabugo segurou o riso e continuou:
- Reze trezentos pais-nosso, quinhentas Ave-marias, duzentas salve-
rainhas e feche a novena com pelo menos setecentos cruz-credos.
- Essa última ainda não vi em nenhuma novena, padre...
- Pois bem, aprendê-la faz parte da penitência. Agora, como disse o
Senhor: - Vá e não peque mais cabra safado!
Em seguida entrou um homem e sentou-se. Ficou em silêncio
e depois perguntou ao falso padre que aguardava-o começar a falar.
- Bom padre, poderia eu confessar meus erros em forma de rimas?
Sabugo estranhou mas não vendo nenhum mal na iniciativa
do senhor concordou.
- Não vejo problema... confesso que será a primeira vez que ouço um
artista se confessar. Mas não espere que os céus lhe aplaudam amigo.
O homem levantou-se e fazendo pose de artista de teatro
começou sua declamação:

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Meu bom padre por favor
Tenha a santa piedade
Quero confessar meus erros
Desde a minha tenra idade
Se por acaso eu mentir
É porque já me esqueci
Do que é falar a verdade

Na fila de confessandos estava a mãe de Sabugo. Ela tinha


pouco mais de trinta anos e conhecera Fernão quando este trabalhava
na juquira. Era morena e muito bonita. Poderia ser mais bonita ainda
se tivesse os meios necessários para cuidar da beleza. No entanto,
Rosa não se preocupava com o fato de ser pobre e não ter às vezes as
coisas que desejava para si. Estava acostumada a fazer sacrifícios e
amava a pequena família que possuía. Hoje, estava mais triste que
antes pois preparava-se para confessar algo que a incomodava por
muitos anos.
- Você está bem Rosa? – perguntou Fernão ao seu lado – Me parece
abatida...
- Não é nada, apenas uma dorzinha de cabeça...
Sabugo achava que estava saindo-se muito bem e
provavelmente até receberia elogios do padre por dar conta de
realizar um sacramento tão importante. Além disso, quem melhor do
que ele para ouvir os pecados de tanta gente, uma vez que ele próprio
conhecia a maioria?
Provavelmente, pensava, até os céus bradavam com tanta
gente sendo perdoada e acertando suas contas.
Foi quando sentou-se o próximo a fazer a confissão. Ouviu
uma voz conhecida dirigindo-se a ele para confessar seus pecados.
Sabugo reconheceu a voz de sua mãe que estava ali em frente e
começava a abrir a boca para falar suas coisas ocultas. Ele realmente
não poderia ouvir nada do que ela fosse dizer. Não, isso jamais. Para
ele, ela era e sempre seria a sua santa mãezinha. Assim, enfiou os
dois dedos nos ouvidos com toda a força que tinha enquanto sua mãe

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falava. Não conseguia mesmo ouvi-la, pois falava baixo e com a voz
entrecortada talvez por vergonha. Só notou que ela estava muito
emocionada e falava com dificuldade. Depois de alguns minutos,
quando verificou que ela havia terminado, retirou os dedos das
orelhas que já estavam tinindo. Disfarçando a voz disse:
- A senhora não precisa mais chorar. Está perdoada de todos
os seus erros e já pode se considerar quase uma santa.
A senhora ficou pasma depois da declaração do ‘padre’. Saiu
reconfortada embora pensativa e Sabugo fez soar o sino novamente.
A fila estava diminuindo gradativamente. Na privada, o padre se
espremia e gemia. Sua roupa arrastava-se pelo chão. Estava um
pouco aliviado e tentava levantar-se, mas seu corpo tremia e ele
suava. Sabugo havia colocado na geléia que oferecera ao padre,
quase todos os comprimidos laxantes receitados ao seu avô. Era uma
receita infalível, pois o comprimido fazia efeito imediato.
- Preciiisooo sairrr... – gemia o padre com as mãos na barriga - mas
como dóóóóiiii...
O sacerdote levantou-se, mas outra cólica violenta o fez
acocorar-se sob o som de forte descarga intestinal. A porta do
banheiro estava aberta, e sorrateiramente, surgiu o garotinho de antes
que deixara de chorar e agora sorria com um pirulito nas mãos.
- Vai embora pirralho! – gritou o velho.
Seu estômago que já não estava muito bem entrou em
convulsão, o pobre padre não conseguiu segurar o jato de vômito que
veio em seguida.
Recuperando-se das golfadas, e olhando que o garoto ainda o
observava desta vez com sorrisos e nítido asco, o padre começou a
fazer uma série de caretas na direção do pirralho.
Sabugo continuava com as rápidas confissões improvisadas.
Sentou-se em frente do confessionário um velho gago chamado João
e começou a gaguejar seus pecados.
- Eu... Eu j... Já men... menti-ti... – esforçou se ele com dificuldade –
ro-rou-bebei, já-já côcô-bicei, blá-blá-blas-femei... Já ingá-ingá-
enganei...

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- E eu já me cansei – atalhou Sabugo do confessionário em meio a
risos. – amigo, até rezar um rosário como penitência, seria um
suplício muito penoso... Não pra você, é claro, mas para os santos
que porventura fossem designados para te ouvir. Por outro lado,
creio até que o senhor trata-se de uma penitência ambulante, uma vez
que quando fala, não só paga os próprios pecados como obriga os
seus ouvintes a pagarem os seus.
- E... e..e o ki-ki- eu fa-fi faço saci..saci... Sacerdote? – perguntou o
gago com dificuldade.
- Nada, amigo! – respondeu Sabugo – e pelos poderes a mim
concedidos junto ao papa, eu o declaro beatificado São João da
língua presa.
Depois disso, Sabugo gritou em voz alta fazendo os fiéis
arregalarem os olhos:
− O próximo venha rápido! Pois se o céu não espera, o inferno
aguarda com ansiedade!
Quando entrou no confessionário um garotinho de apenas seis
anos de idade, Sabugo achou graça e perguntou ao gurizinho que
trazia uma bíblia em miniatura sob o braço:
- Muito bem, amiguinho... você pecou?
- Não Padre... – respondeu o menino sem titubear – e nunca hei
de pecar.
- Claro que você pecou... – retrucou Sabugo – até eu peco...
- Padre, o senhor veja bem – raciocinou o pequeno
inteligentíssimo – quando uma fruta ‘peca’ ela não cai da árvore?
- Cai sim – concordou o ‘padre’.
- Então... – concluiu o rapazinho – se eu tivesse ‘pecado’ eu nem
estaria aqui conversando com o senhor.

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Capítulo IV
Uma cena incomum

O pai de Sabugo se chama Fernão da Silva. Quando era


rapazola, foi pro garimpo com o pai e quase morre de malária. Lá no
garimpo, a malária era tão perigosa que até macacos de repente
despencavam das galhas pelando de febre. O médico disse que ele
deveria evitar comer mamão. Isso foi duro de fazer, pois na roça era
só o que tinha. Quando cresceu um pouco mais a malária voltou e lá
foi ele furar os dez dedos da mão para fazer o exame.
- Filho, você não tem uma gota de sangue! – disse a doutora –
deixe ver os dedos dos pés.
Para curar da malária, a mãe de Fernão fez até promessa.
Assim, ele passou a tomar um chá amargo preparado com quina e
cedro manso todo dia até recuperar-se. Quando completou a maior
idade, seu Fernão teve de pagar a promessa de sua mãe. A promessa
era a seguinte:
Ele tinha de carregar ela nas costas, subindo a escadaria da
igreja do Senhor do Bonfim de quase um quilômetro e beijar o pau
da cruz à entrada. Como sua mãe morrera antes da época do
pagamento da promessa, ele teve de carregar a tia que era a única da
família de sua mãe ainda viva.
O problema é que ela era muita gorda e durante o pagamento
da promessa, os dois levaram várias quedas até a chegada no topo. O
padre na ocasião emocionado, disse que nunca havia observado tanto
sofrimento em sua vida. Segundo ele, tinha presenciado uma segunda
via sacra. O esforço fora tão grande que lhe causara uma hérnia.
Fernão então sentiu ainda mais a falta da saudosa mamãe.

Ele que sempre fora muito atento e cauteloso, escutou um


barulho atrás da igreja e pensou consigo:
- Que raios de bagunça! Serão os moleques? Antes de minha
confissão, vou ver o que se passa...

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Seu Fernão que se aproximara da privada aos fundos, parou
diante daquela cena, estupefato. O padre todo borrado de cócoras,
suas vestes sujas e espalhadas pelo chão, fazia uma série de caretas
para o garotinho em sua frente. Teria o sacerdote aderido totalmente
à loucura que assola os mais entendidos? Seu Fernão conseguiu
finalmente balbuciar:
- Padre Paulo?
O Padre parou imediatamente. Ficou imóvel como uma
estátua. Sorriu sem graça como um delinqüente flagrado com a mão
na massa. Ele se lembrou de outro momento vergonhoso de sua vida.
Tinha sido também em uma privada como aquela, só que em outras
circunstâncias. Até a voz de seu Fernão pareceu com a de seu
falecido pai que havia dito naquela ocasião:
- Paulinho! Larga essa galinha e saia já daí que o rei vai
comer nas suas costas, moleque!
O pior não foi a dor da surra, mas o olhar de reprovação da
mãe, e o de gozação de seus irmãos e colegas de escola. Até
Anastácio, um dos seus vizinhos que era conhecido como o homem
mais carrancudo da cidade, sorria quando o via passar. Não entendia
como o ocorrido havia se espalhado tão depressa.
Algo que o fazia tremer de ódio era quando ouvia alguém
cacarejar perto dele em meio a sorrisos. Que injustiça para um pobre
pecador arrependido.
Ele resolveu que para reparar tal grande erro, seria então
padre pro resto de sua vida. Agora, ali diante de seu Fernão, a coisa
era pior ainda. Que palavra poderia explicar tal comportamento
bestial? Que substantivo, adjetivo, pronome ou advérbio seria capaz
de definir tal situação cômica, patética e ridícula?
- Sabugo... – murmurou o padre.
- Sabugo? – estranhou seu Fernão.
- Foi ele... A geléia... A geléia do Sabugo... Ele me trouxe
uma geléia estragada...
O padre não suportava mais o caos emocional e mental
gerado por tão terríveis momentos de pressão, a inconsciência

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dominou seu corpo entregando-lhe ao chão. Virou-se para trás em
um desmaio repentino causado pelo esgotamento.
- Padre! – Gritou seu Fernão que se aproximava para apanhá-lo do
chão, mas desistindo em seguida. – Socorro! Ajudem! O padre
morreu! – gritou seu Fernão preocupado.
O garotinho que até aquele momento estivera sorrindo, saiu
correndo em meio aos berros abandonando até o pirulito que lambia.
Os gritos de seu Fernão misturaram-se aos seus formando uma
perfeita sirene de alarme improvisada. Em poucos minutos, devotos
que se aglomeravam aos pés das estátuas, abandonam seu posto de
devoção e dispararam em direção dos gritos em uma multidão guiada
pelo reflexo. Sabugo, no entanto encontrava-se entretido no
confessionário contando as contribuições lançadas na caixa de
ofertas.
- Tá morto? – foi a pergunta quase unânime de toda a multidão que
rodeava o corpo do padre, metade dentro da privada, metade fora.
Algumas velhas disparam em gritos histéricos que fariam qualquer
anjo perder a paciência.
- Não sei, quando cheguei, ele tava se desmanchando em bosta –
respondeu seu Judas Fernão – daí deu um berro e desabou. Vamos
gente! Vamos levá-lo pro hospital!
As pessoas olhavam entre si. Faziam sinal com a cabeça
como quem desejasse dizer: ‘Vai, pega você... ’
A espera acabou quando alguns indecisos reagiram e um
pouco que relutantes, agarraram o padre pelas pernas e braços e
retiraram-se devagar rumo à rua. Fizeram isso com dificuldade, uma
vez que o padre era muito gordo e pesado. Aristides um negro forte e
entroncado que costumava descarregar cargas pesadas reclamou do
peso, e quando tentava uma maneira de firmar as mãos, sujou-se com
os dejetos que manchavam a vestimenta do padre. Alguns ao redor
não conseguiram conter um sorriso disfarçado.
Seu Fernão permanecia observando o grupo se retirar seguido
pela multidão. Sabugo ainda balbuciava as contas dos valores da
caixa. Ele sorria satisfeito ao ver que as ofertas tinham sido
generosas. No entanto, notou que a maioria das pessoas tinha se

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retirado do salão e havia uma confusão generalizada atrás da igreja.
Era provável que algumas pessoas tivessem ido até a privada por
notarem o choro do garoto ali. De qualquer modo, Sabugo não
imaginava o que de fato estava ocorrendo.
Alguns que estavam carregando o sacerdote estranharam:
- Escutem... Se o padre está aqui, quem estava confessando o
povo?
- É mesmo... Acabei de sair de lá...

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Capítulo V

Sabugo tem bom coração

Seu Fernão já sabia quem estava no confessionário, ou pelo


menos tinha quase certeza. Sabugo estava contando as contribuições
na mesa próxima ao confessionário. O bolso de sua calça tinha um
furo pequeno, e às vezes escorregavam por ele algumas moedas. A
pouco ele havia colocado ali as sobras dos comprimidos laxantes que
havia pego na farmácia. Por azar ou providência, alguns deles caíram
no chão quando seu Fernão se aproximou e foram rolando até os pés
dele. Seu pai abaixou-se e apanhou uma das pílulas, e depois de
analisá-la por um breve momento, dirigiu-se a Sabugo com o olhar
de reprovação.
- O Rei vai comer nas suas costas, moleque! – Gritou seu pai
que foi logo retirando o cinto das calças.
Fernão na raiva, havia esquecido que suas calças estavam
mais folgadas que as demais. Sua esposa em casa havia sugerido usar
o cinto mais apertado que o costume. Elas arriaram quando o cinto
foi retirado. Algumas senhoras que estavam ali próximas, inclusive
uma que se ajoelhara para rezar nos pés de uma estátua, olharam
assustadas para aquela cena estupefatas. A velha que tinha a
dentadura frouxa, ficara com a boca aberta deixando as próteses
caírem novamente ao chão. Desta vez, desistiu de colocá-las na boca
novamente e guardou-as dentro de sua bolsa em um gesto rápido.
Após isso, exibiu um sorriso patético no qual apenas se via as sua
gengivas escurecidas por baixo dos lábios engelhados.
Seu Fernão não costumava usar roupa de baixo desde
pequeno, pois sempre ficava com as virilhas assadas do calor. A
velha que usava os óculos de fundo de garrafa retirou-os do rosto e
esboçou um patético sorriso com o único dente que restara na arcada,
ao olhar para a figura paralisada de vergonha de Fernão.

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Sabugo segurou o riso que rapidamente se desfez, as notas e
moedas em suas mãos o denunciavam e seus olhos arregalam-se ao
máximo, suas pernas começavam a tremer.

- Paii... calmaaa.... Olha me deixa explicar... – suplicou Sabugo que


ameaçava correr em disparada – nada de violência na casa de Deus!
Seu Fernão segurou as calças com uma das mãos e avançou
com o cinto em outra. A fivela alcançou a porta do confessionário
fazendo um barulho temido. Seu Fernão apressou-se rodopiando o
cinto no ar.
Sabugo gritou e protegeu a cabeça com as mãos. Seu Fernão
arremeteu outra vez correndo atrás de seu alvo ao redor da mesa
onde se colocavam os utensílios sagrados do padre. Os Gritos de
Sabugo misturam-se com o barulho das peças caindo ao chão.
- Eu mato este moleque de taca! – Gritou – é hoje que te mato
Fernando.
Sabugo corria entre os bancos de um lado para o outro e por
baixo com agilidade incomum. Saindo da igreja, correu pela rua e
vários garotos curiosos saíram atrás da confusão em uma gritaria
terrível. Sabugo entrou em uma capoeira fechada. Moleque danado,
acostumado a passarinhar com os colegas, dificilmente era superado
quando corria no mato. Seu Fernão se lembrou de uma ocasião,
quando tentou correr atrás de Sabugo e entrou em uma vasta
vegetação de espinhos rasteiros. Daquela vez, passou quase um mês
sem poder caminhar direito, resultado de uma infecção nos pés.
Ele parou e com o cinto em uma das mãos apenas observou
Sabugo enfiar-se na capoeira depois de saltar sobre uma cerca de
arame farpado.
- De noite te pego! – gritou, enquanto se afastava colocando o
cinto em sua cintura.

Já era noitinha e a porta do quarto de pacientes na casa do


médico onde estava o padre, se abriu lentamente. Sabugo entrou de
cabeça baixa e as pernas cortadas de capim-navalha. Ele havia

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passado toda a tarde às escondidas na capoeira com medo de ser
pego pelo pai.
- Sabugo o que está fazendo aqui garoto? – perguntou o sacerdote
que estava deitado em uma cama. Ele levantou-se com dificuldade e
continuou - Você está todo cortado... A roupa cheia de carrapichos...
– o padre olhou mais perto e continuou – até carrapato tem aqui! O
que foi que aconteceu?
- É que eu me escondi no mato...
O padre puxou-o para o seu lado, sentou-o na beirada da
cama e pôs se a olhar para ele por alguns minutos. Sabugo não disse
nada, ele estava envergonhado do que havia aprontado. Seus olhos
encheram-se de água e ele abriu no choro. O padre o abraçou e
passou a mão em suas costas franzinas. Passaram-se alguns minutos
então usou os braços para enxugar as lágrimas, enfiou a mão no
bolso e retirou dali as contribuições que havia guardado.
O sacerdote compadeceu-se. Ele tinha afeição por Sabugo e
conhecia-o desde pequenino. Desde bem tenra idade, sempre ajudava
de bom coração na paróquia e sempre de forma voluntária.
- Papai vai me bater... vai me bater muito.
- Não fique com medo, Sabugo... Eu vou lhe levar em casa. Sabe,
hoje aprendi muita coisa. Às vezes, Deus usa os pequenos para nos
mostrar que precisamos nos limpar por dentro... Até pequenos como
você... – o sacerdote fez uma pausa e continuou – sei que você vai
usar bem essas contribuições que nos deram. Pegue-as e vá, siga seu
coração! Mas espere... – o sacerdote contou os donativos, retirou
alguns trocados, colocou em seu bolso e concluiu – Este é pela
geléia.
Sabugo estava com os olhos ainda cheios de água, mas havia
estampado em seu rosto um sorriso de orelha a orelha. Ele recebeu de
volta o dinheiro do padre e saiu apressadamente para a rua.
Havia uma viúva que vivia em uma casa um pouco afastada
da cidade, ela era idosa e morava sozinha. Sabugo a via várias vezes
na feira e em dias de missa à entrada da igreja e sentia pena. Como
era aleijada de uma das pernas, resultado de uma queda infeliz e não
tendo ninguém que a ajudasse, pedia esmolas na rua. Às vezes

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passava fome e frio. Naquela noite seus recursos haviam acabado
totalmente.
Deitada em sua cama velha e coberta com um lençol de
retalhos, ouviu um barulho na porta e achou que talvez fosse algum
animal tentando entrar. Ela levantou-se da cama com dificuldade,
acendeu uma lâmpada a querosene e dirigiu-se para a entrada. Abriu
a porta e olhou, mas não viu ninguém. Ficou ali por alguns instantes
até observar algo no vão da porta. Abaixou-se para apanhar o
embrulho e após olhar para um lado e outro, abriu-o.
Foi uma grata surpresa para a pobre senhora idosa. Ali havia
dinheiro que ela só conseguiria juntar depois de um bom tempo
pedindo nas ruas. Quem teria deixado ali tenta esmola? Talvez Deus
tivesse mesmo ouvido suas orações. A senhora olhou para o céu e
depois murmurou com as forças que ainda lhe restavam devido o nó
na garganta que se formava.
- Obrigado!

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Capítulo VI

Uma cidade de ingênuos

As ruas naquela manhã estavam bem movimentadas. Sabugo


gostava de passear por elas. Encontrava amigos e conhecidos bem
como muitos parentes que às vezes sorriam e o chamavam para
perguntar por seus pais. Um velhinho chamado Urias, vendia um
ensopado preparado com bucho de vaca. Sabugo limpava os pratos
que os clientes sujavam e em troca ganhava uma saborosa refeição.
Depois de comer, saía para a pracinha no centro da cidade. Ali
encontrava alguns moleques que se divertiam jogando piões
artesanais e bolinhas de gude. Às vezes, a aula terminava mais cedo e
ele costumava rever alguns colegas antes de voltar pra casa.
Aureliano, um criador de animais da região estava passando por ali
cedo vindo de sua fazenda a alguns quilômetros. Gostava de andar a
cavalo e dispensava o veículo que tinha em casa para estas viagens,
exceto quando era acompanhado de sua esposa. Ali, apenas ele, o
juiz e a prefeitura da cidade possuíam veículos motorizados.
Tratavam-se de unidades caríssimas e muitas delas eram importadas
de outros países.
O velho era padrinho de Sabugo. Quando seu pai Fernão
aprendeu a carpintaria, sempre fazia serviços na sede da fazenda e na
residência dele. Sua mãe Rosa por um bom tempo trabalhara na sua
casa da fazenda após o falecimento da esposa de Aureliano. Na
época em que Sabugo nasceu, sua família morava nas terras do velho
fazendeiro onde viviam da agricultura.
Assim, em uma noite de lua cheia quando as dores de parto
tornaram-se insuportáveis para sua mãe, seu avô Bimba o apanhou,
pois o médico havia chegado tarde na casinha de palha. Quando ele
desmamou, Aureliano que estava presente, fez questão de apadrinhá-
lo no batizado. Depois de alguns anos, responsabilizou-se pelos
estudos do menino colocando-o para estudar na escola do mestre

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José França, o qual havia ensinado seus próprios filhos que se
formaram depois em uma universidade do Rio de Janeiro. Um dos
filhos exercia a profissão de Médico na cidade e se chamava Ítalo.
Outro de seus filhos George, tinha ido para os Estados Unidos há
alguns anos e sempre escrevia para o pai orgulhoso.
- Olá Fernando! – gritou o fazendeiro acenando para o garoto
ao passar em frente à praça.
- Oi padrinho! – respondeu Sabugo correndo atrás de seu
cavalo.
Sabugo conhecia bem o velho fazendeiro e gostava dele como
um pai. Ia sempre que queria para a sua fazenda e Aureliano dizia a
Sabugo que ele tinha futuro nos estudos. Quando crescesse, com
certeza seria um ótimo capataz em sua fazenda. O velho, sempre
usava aquele chapéu de couro com a figura de um cavalo em metal
prateado. Tinha sido um presente do filho dele que estudava nos
Estados Unidos da América.

Na cidade, quase sempre, alguns vigaristas apareciam para


tapear incautos. Certa vez, um homem que se fazia passar por médico
e cientista, tentara realizar duas cirurgias em uma senhora que sofria
de artrite crônica. Esta não suportando a dor dos cortes que lhe foram
feitos na barriga levantou-se e saiu correndo pelas ruas seguidas de
uma multidão.
O falso médico tentou fugir depois de roubar um cavalo, mas
foi parado pelos guardas e levado pra cadeia. Ficou ali por uns três
dias e como a mulher não havia morrido, uma vez que os cortes não
tinham sido tão profundos, apenas levou uma baita surra e foi
escoltado até a saída da cidade. Bem, de certa forma foi a primeira
vez que se viu aquela senhora com tal moléstia nas juntas, conseguir
tanta força para disparar na carreira.
Uma outra vez, um espertinho levou embora o dinheiro de
muita gente por vender-lhes tal elixir da longa vida. Este dizia que a
fórmula havia sido preparada por magos indianos e podia se tomada
com regularidade, aumentar a vida de alguém em até trinta anos.
Além disso, o rótulo do produto escrito à mão, indicava que o elixir

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milagroso, feito com ervas milenares secretas encontradas na China e
na India e nas mais diversas partes do mundo, era capaz de curar até
mesmo as mais mortíferas moléstias. A esposa do juiz que acreditava
em tudo que ouvia, e tinha mania de doenças, havia comprado e
decidira tomar a dispendiosa poção. No entanto, é certo que era
alérgica a algum componente da fórmula. A velha teve um ataque lá
mesmo no local e quase batia as botas.
Foi uma confusão enorme e o próprio prefeito, o genro da
velha, junto com outros, foram correr atrás do sujeito com paus,
pedras e tiros até que este sumiu ao entrar em um matagal. Após isso,
a velha ficou com a pele toda empolada e como lembrança, as
alergias transformaram-se em manchas escuras pelo corpo. Por muito
tempo ficou sendo chamada de onça-pintada. Sabugo estava entre os
meninos que quando havia comícios ou eventos públicos, gritavam
seu apelido ao vê-la ao lado do marido discursando.

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Capítulo VII

Uma raposa vestida de gente

Havia chegado naqueles dias na cidade, um caixeiro viajante.


Apresentara-se como Wilson e havia se hospedado em um hotel no
centro por alguns dias. Visitou a assistência social oferecendo
perfumes às mulheres abastadas, freqüentou cabarés, bares de
cachaceiros e pela manhã, ia a algumas casas de pessoas mais
endinheiradas oferecendo cosméticos, perfumes e peças de roupas.
Dessa vez, estava na casa de um fazendeiro abastado conversando
com a dona.
- Veja querida! – disse o vendedor à senhora que o havia convidado
para entrar e sentar – este batom combina muito com a cor de sua
pele e seu lindo cabelo ruivo...
- Hmm... Mas é uma cor muito regalada – hesitou a dona – não sei se
o meu marido vai gostar, ele é muito reservado, sabe...
- Claro que vai! – atalhou o caixeiro - Saiba que é a última moda no
Rio de Janeiro e toda dondoca está usando. Deixe me mostrar e juro
que seu marido vai adorar...
O caixeiro segurou o rosto da senhora e passou o batom em
seus lábios de forma desajeitada. Alguns borrões faziam a cena da
aplicação do cosmético parecer uma comédia.
Foi quando a porta se abriu de repente. Aureliano, o marido
da senhora estava voltando mais cedo da fazenda, e ao entrar,
deparou-se com o estranho ali no sofá da sala pintando sua esposa.
- Que raio é esse Tereza? – berrou o marido nervoso – quem é
essa almofadinha passando a mão em você?
A senhora afastou-se com rapidez esboçando uma cara de
preocupação. Seu marido era um dos homens mais ciumentos da
cidade e costumava se engalfinhar com qualquer um que cismasse
em olhar para sua ruiva. Além disso, nunca andava desarmado e
portava um grosso calibre por dentro das calças. O vendedor virou-se
devagar com o batom na mão, mas não conseguia dirigir uma só

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palavra. Os lábios da dona estavam mal pintados e aumentou muito
mais a raiva do velho fazendeiro.
- Mas o que é isso? – berrou – quer dizer que minha mulher
anda se maquiando como uma meretriz de cabaré? Vamos Tereza...
Limpe já essa boca!
Wilson, o vendedor, enquanto o velho discutia com a esposa
suspendeu o máximo que pode as suas calças, imitando uma voz
completamente afeminada e gesticulando com as mãos dirigiu-se ao
marido enraivecido.
- Ora meu amigo... Porque a gritaria? – chegando-se diante do
fazendeiro continuou – estava realizando uma demonstração de
produtos de beleza para minha amiga aqui. Creio que não tenha bom
gosto o bastante para apreciar a última moda das grandes capitais. – o
vendedor fez uma cara de decepcionado e continuou – Oh! Não vou
perder saliva discutindo com um rude homem do campo acostumado
a lidar com animais...
O velho franziu as sobrancelhas como que pego de surpresa.
- Assim você me ofende – retrucou com rispidez – senhor...
Senhor...
- Wilson – apresentou-se – digamos encantado.
Seu Aureliano segurou meio cauteloso a mão de Wilson e
limitou se a dar um leve aperto. A esposa sorriu um a valer
observando as calças levantadas do vendedor que se fazia passar por
afeminado. A pouco, ele havia até mesmo lhe dirigido algumas
palavras galanteadoras e em um tom bem viril.
- Sim, meu bem... – disse Tereza – você o assustou, quer dizer
‘a’ assustou... daí borrou o batom.
- Ah, então esse, ou essa aí é um maricas sem vergonha!
Nunca vi mesmo macho que é macho vendendo cosméticos de porta
em porta.
- Doutor – interpelou o vendedor – respeito é bom e eu gosto.
Não sou maricas nenhum, na sociedade Paulistana, as pessoas
referem se a mim como ‘homem sexual’.
- Pois para mim dá na mesma! – zombou o rude esposo sob os
risos de Tereza que não se conteve – de qualquer forma acho que está

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tendo intimidades demais com minha esposa. Aliás, pegue suas
coisas e ponha-se daqui pra fora porque não vou lhe comprar nada.
- Olha amigo – retrucou Wilson – estou aqui para oferecer
produtos finos nesta cidade mixuruca. Agora se você não valoriza a
beleza de sua esposa e a última palavra em moda, me dirigirei
imediatamente para a residência da primeira dama onde gente
decente, fina e esclarecida me aguarda. – Wilson usando o lenço que
havia retirado do bolso, fingindo-se ofendido enxugava prováveis
lágrimas que fazia crer que lhe saltavam pelos olhos. Daí acrescentou
entre fingidos soluços – lá, irei falar como fui tratado por alguém de
quem ela mesma deu ótimas informações, mas que agora vejo se
tratar de um grosso do pior calibre!
Depois se dirigindo à Tereza, o excelente ator concluiu.
- Mas quanto a você, amiga... Espero que aceite o convite
para tomarmos um chá juntas qualquer hora dessas.
Tereza não conseguia segurar o riso, um pouco sem jeito e
tomado de surpresa, o marido verificando que o vendedor já estava
dirigindo-se para a porta, apressou-se no seu encalço.
- Espere... - gritou ele segurando Wilson pelo ombro – o que
foi mesmo que você disse? A esposa do prefeito Oswaldo falou sobre
mim?
Wilson esticou um olhar cúmplice para Tereza que disfarçou.
Em seguida respondeu:
- Foi isso mesmo. Por isso dirigi-me para cá para tratar com
um cavalheiro. Infelizmente, o senhor parece ter sido criado em uma
senzala, talvez tenha crescido mamando aos peitos de criadas.
- Um momento, Sr. Wilson... – argumentou o esposo - quer
dizer senhorita ou sei lá o quê... Devo-lhe desculpas mas não
continue a ofender-me... me diga, a primeira dama disse mesmo que
sou um ‘cavalheiro’?
- Claro! – sorriu o vendedor. Ele aproximou-se do ouvido do
homem e acrescentou um cochicho – Imagine que ela até mesmo
disse ainda nutrir uma afeição especial por você.

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Capítulo VIII

A melhor mentira do mundo

Wilson era um vigarista astuto, cauteloso e armava bem suas


investidas. Gostava de conhecer muito bem as suas vítimas e sabia
que o homem ali, era o mais rico proprietário de terras da região e
um famoso criador de gado e cavalos de raça. O golpe deveria ser
perfeito e em menos de 24 horas daria cabo dele. Aureliano o esposo
de Tereza gostava de cobri-la de jóias valiosas e presentes caros
importados. Ela era uma ótima pessoa e se empenhava por valores
sociais, no entanto tinha alguns problemas de comportamento que
tiravam seu marido do sério.
O velho já havia sido casado anteriormente com uma mulher
chamada Rose Perkins uma americana que se tornara a mãe de seus
filhos, mas que havia morrido em um acidente durante uma viagem
aos Estados Unidos. Sua esposa era de uma família rica e muito do
que possuía devia ao investimento de sua riqueza. Depois da morte
de sua esposa e de profunda depressão, conheceu Tereza em uma de
suas viagens ao Rio de Janeiro. Muitos diziam que embora casado
com ela a uns doze anos, ainda nutria afeição por outra pessoa, um
amor antigo e impossível do qual tentava ainda se recuperar.
Tereza era uma ruiva fogosa e alguns diziam que vivia com
Aureliano apenas pelos prazeres materiais que lhe proporcionava.
Quanto aos outros prazeres, em vista da idade dele, às vezes deixava
que lhes consumissem dia a dia. A mulher no entanto, era de família
nobre e havia passado algum tempo estudando em Paris na França.
Devido a isso, falava e escrevia fluentemente o Francês.
Algumas vezes em festas sociais, a ruiva bebia tanto que se
soltava e deixava o velho morto de vergonha. Como ali ninguém
entendia o Francês, aproveitava para falar mil besteiras em voz alta
na língua estrangeira, a qual dominava com perícia. Certa vez depois
de beber um litro de uísque, subiu em cima de uma mesa de
convidados na inauguração de um salão de festas, e depois de dançar,

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gargalhar e cantar em Francês começou a se despir. Aureliano e seu
filho mais velho Ítalo, médico, conseguiram retirá-la de lá e a tempo,
uma vez que todos os convidados aplaudiam e ovacionavam a
dançarina improvisada. Então, depois desse dia, Aureliano não
deixava bebida nenhuma ao alcance da esposa e não permitia que
bebesse nada alcoólico em recepções.
Wilson ficou sabendo tudo isso conversando com bebedores
de cachaça em bares e bordéis da cidade. O vendedor descobrira que
Aureliano ex-viúvo e agora muito bem casado, havia tido um caso
com a primeira dama antes dela se envolver com o Prefeito Oswaldo.
O prefeito não era rico na época, mas era considerado um partidão
devido a sua formação e aparência européia. Ela, era a filha do Juiz
da comarca, portanto um ótimo aliado político para ele.
Aureliano não se conformou observando o rival roubar a
mulher de sua vida diante de sua vista. O pior ainda foi que a
namorada apaixonou-se de vez pelo galã e nunca mais sequer olhou
pra sua cara. O ódio dela por ele aumentou devido as investidas
desesperadas de Aureliano para tentar romper o seu noivado e o
casamento.
Agora, mesmo ex-viúvo e casado com uma beldade, ele ainda
pensava nela, e ter algum dia a musa de sua vida a seu lado era seu
sonho. Neste exato momento, com os olhos fixos naquele visitante
inseperado, seu coração parecia bater mais forte com aquele lampejo
de esperança. Em voz baixa, perguntou a Wilson:
- O que foi que você disse?
- O que você ouviu amigo – respondeu o vigarista – ela me
compartilhou alguns segredos particulares.
O criador esboçou um sorriso amarelado. Sua esposa franzira
as sobrancelhas tentando entender o que cochichavam. Aureliano
encarregou-se de levar o vendedor para a varanda um pouco a
distância, fora da vista da mulher.
- Que segredos? – interpelou o fazendeiro curioso.
- Escute – sorriu Wilson – estou hospedado no Hotel no
centro da cidade. Ainda hoje, estive conversando com a primeira
dama e ela me falou sobre sua antiga paixão. – O falso maricas

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apontou o dedo para Aureliano e concluiu – Trata-se do senhor, seu
Aureliano!
- Eu? – abobalhou-se o velho.
- Sim... – confirmou Wilson – ela disse que já não suporta
mais fingir e precisa se entregar inteira e definitivamente ao seu
grande amor. – O vigarista fez uma pausa e continuou fazendo um
gesto com os dedos de uma das mãos – Ela disse que só de pensar em
encontrá-lo, já sente suas entranhas arderem como fogo.
- Que maravilha! – animou-se Aureliano apertando o chapéu
nas mãos – mas ela lhe falou se quer me encontrar em algum lugar?
O vendedor salafrário enfiou as mãos em um dos bolsos do
paletó e retirou dali um bilhete perfumado. O homem abriu a boca e
arregalou os olhos. Suas mãos tremiam e transpiravam. Sua excitação
era tanta que o velho começou a sentir falta de ar. Sentou-se em uma
das poltronas de palha e talos dispostas na varanda, e enxugou a testa
com o lenço que retirara do bolso do paletó.
Em seguida abriu o papel dobrado e deparou-se com letras
delicadas e enfeitadas. As frases curtas e singelas eram tudo o que ele
esperava ler em toda a sua vida. Wilson era um tremendo falsário.
Havia observado o estilo de letra da primeira dama, em algumas
cartas manuscritas pregadas no mural da Ação Social. Tinha levado
pelo menos duas delas sem que os funcionários percebessem, daí
havia sido fácil imitar a caligrafia da senhora.
- É a letra dela! – reconheceu o fazendeiro excitado – eu
sabia! Ela me ama... Quer se encontrar comigo! – o fazendeiro olhou
a carta de cima a baixo e reclamou: – mas aqui não diz onde, nem
quando...
- Claro seu tolo! – disse Wilson – já imaginou se esta carta cai
em mãos erradas? No entanto, não se desespere porque eu posso
arrumar tudo. – Wilson fez uma pausa e continuou – E hoje à noite!
Mas em troca, você vai ter de comprar de mim tudo o que sua esposa
escolher.
- Ora – respondeu Aureliano – mas isso não é problema. Se o
que diz for verdade, tudo que minha esposa escolher e quiser, eu lhe
pago.

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- Por acaso está me achando com cara de salafrário, senhor
Aureliano? – perguntou, fingindo estar ofendido.
Wilson combinou então o horário e todos os passos
necessários para a organização do encontro. Por volta das oito horas
da noite, Aureliano deveria estar no hotel discretamente e procurar o
caixeiro no quarto indicado. Este permitiria que o fazendeiro
permanecesse ali até a hora em que supostamente a primeira dama
iria surgir para a noite tão sonhada.
Wilson lembrou-o que partiria cedo para a estação e assim,
precisaria receber o pagamento ainda a tempo.
- Quanto ao dinheiro, não se preocupe. – Disse o velho - Vou
deixar o bastante com ela e poderá partir sem problemas.
O falso caixeiro apanhou suas malas e retirou-se. O velho
dirigiu-se para a esposa e disse:
− Gostei desse vendedor!

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Capítulo IX

A noite foi feita para dormir

O dia quase não passa para Aureliano. Ele andava de um lado


para o outro, permanecia desassossegado, porém sorridente. A ruiva
esposa desconfiava do marido, pois ele não era de rir para as paredes.
Parecia aguardar com ansiedade e excitação algo para acontecer.
Finalmente, acendeu um charuto depois de uma grande xícara de café
disse:
- Querida, vou até a fazenda ver uma égua puro sangue que
estou negociando e volto amanhã.
- Mas assim de repente? – estranhou Tereza – acabou de
voltar de lá...
- Eu não posso perder essa égua que estou negociando. Faz
tempos que só a vejo de longe, mas parece que agora, vou conseguir
aquela danada. Se der certo, passo a noite galopando e chego aqui
ainda de madrugada.
- Daqui a pouco – prosseguiu o marido - aquele maricas voltará para
lhe vender os produtos de beleza que lhe mostrou à tarde. Escolha
tudo o que desejar e pague-lhe o dobro. – Ele tirou uma chave do
bolso e concluiu – aqui está a chave do cofre.
Sob o olhar incrédulo de sua esposa, Aureliano apanhou o
chapéu pendurado na parede e em seguida, depois de dar um leve
beijo de despedida saiu em direção ao portão.
Tereza ficou observando da janela a saída do marido. Ele
montou no cavalo e foi-se embora rapidamente, pois já era escuro.
O fazendeiro logo chegou ao hotel. Deixou o cavalo em frente
e como combinado, seguiu um corredor estreito e pequeno, cujas
paredes eram pintadas de verde, até chegar ao quarto indicado por
Wilson Vigarista. Algumas batidas na porta bastaram para que uma
chave girasse a lingüeta da maçaneta com um ruído peculiar.

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- Entre, doutor – convidou o vendedor – ainda está um pouco
cedo, mas é melhor se preparar, pois a senhora confirmou que virá.
- Tem certeza? – excitou-se Aureliano entrando portas
adentro – mal vejo a hora de segurar essa mulher em meus braços.
Você não consegue imaginar a minha aflição!
- Calma amigo! – sorriu Wilson – guarde essa afobação toda
pra logo mais. Agora seja paciente, pois a senhora me disse que terá
que esperar o prefeito cair no sono e então virá.
- Quanto tempo? – preocupou-se alvoroçado – Acha que ela
irá demorar muito?
- Ora meu amigo - respondeu Wilson – para quem já esperou
uma vida inteira, algumas horas a mais não farão nenhuma diferença.
- Você está certo... – concordou Aureliano – enquanto isso, eu
acho que vou beber alguma coisa pra acabar com este nervosismo. –
Aureliano enfiou a mão no bolso retirando dali algumas notas de
valor alto. Em seguida deu a Wilson – Vá comprar dois litros de
uísque do mais caro que encontrar. Depois vamos beber pela saúde
da primeira dama.
Wilson Vigarista sorriu animado e saindo do quarto,
atravessou a rua até uma casa de bebidas finas do outro lado, para
comprar o uísque solicitado. O fazendeiro deitou-se na cama e pôs
se a olhar o bilhete supostamente enviado pela sua amada. Ele fechou
os olhos e pôs-se a imaginar todas as palavras que queria dizer a ela,
e as coisas que planejava fazer. Para tornar mais vívidas suas
fantasias indecorosas, o velho beijava os seus próprios braços
enquanto sussurrava palavras, as quais poderiam corar até mesmo a
mais indecente das rameiras.
Ficou ali até que seus devaneios patéticos foram
interrompidos pela chegada do ‘vendedor de cosméticos’, que trazia
na mão dois litros do mais puro e genuíno uísque escocês.
Wilson costumava beber cachaça de engenho e outras bebidas
fortes como rum, tequila, vodka, gim, saquê, conhaque, álcool
comum misturado com água, além de bebidas finas importadas nas
casas de suas amantes na capital. No entanto, o uísque em suas mãos
dificilmente era encontrado em qualquer lugar.

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- Escute amigo... – disse Aureliano com cara de desconfiado,
pois notou que o vendedor já não falava ou se comportava como em
sua casa – a quanto tempo você vive essa vida?
- Vida? como assim? – perguntou Wilson – de vendedor
caixeiro?
- Não, de homossexual... – sorriu o velho fazendeiro bebendo
uma grande dose de bebida.
- Ah, sim... – Wilson o imitou com o copo na mão e
continuou – pra dizer a verdade, eu não sou homossexual coisa
nenhuma!
- Não? – espantou-se Aureliano encarando-o desconfiado.
- A algum tempo atrás, tive um acidente... – Wilson sentiu
uma grande vontade de sorrir, até cuspiu um pouco do uísque mas
conteve-se. Refez-se e continuou – foi terrível para mim, visto que
tinha muitas amantes...
- Continue... – disse Aureliano intrigado.
- Foi uma queda do telhado. Neste acidente, tive o meu
membro decepado no meio... – o vigarista pôs as mãos no baixo
ventre e gemeu – amigo... não gosto nem de me lembrar... ainda sinto
as dores. Foi meio mundo de sangue...
- Decepou o quê?
- Espero que não sorria de mim... Eu não sou mais um homem
completo, amigo! hoje em dia, para que as mulheres não me tentem a
fazer algo que já não posso mais, finjo ser afeminado... é uma boa
desculpa.
Aureliano estava de boca aberta diante da confissão, mas ao
mesmo tempo pensava que estava sendo vítima de uma brincadeira.
- Talvez o sr. Não acredite, por isso eu vou lhe mostrar o que
me restou...
Ainda cedo no almoço, o esperto larápio visitara a cozinha
para paquerar uma cozinheira. Wilson havia guardado uma lingüiça
calabresa e depois de cortá-la no meio, colocara metade dela dentro
das calças. Agora, exibia-a para o espantado senhor à sua frente. Seu
Aureliano tremeu horrorizado e pôs uma das mãos na boca.

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- Credo em cruz! – benzeu-se – que mutilação horrível... tem
certeza que perdeu a metade?
- Talvez um pouco mais... os médicos tentaram fazer o
melhor, mas infelizmente... espero que nunca revele meu segredo, sr.
Aureliano...
- Pode ficar descansado, amigo... – confirmou o velho
bebendo mais uma dose de bebida – seremos guardiães dos segredos
um do outro...
Enquanto Aureliano bebia e parolava sobre sua história com a
primeira dama em tempos antigos, Wilson Vigarista relatava-lhe
casos que havia tido com várias mulheres nos seus ‘anteriores’
tempos de conquistador. O salafrário aproveitou um descuido de
Aureliano, e derramou em seu copo uma forte dose de sonífero que
trazia em um pequeno frasco.
O sonífero tinha efeito imediato e o dono de terras não
demorou muito a sentir-se sonolento. Depois de tomar todo o
conteúdo do seu copo, emborcou completamente sem sentidos.
Wilson puxou-o para cima da cama com dificuldade, visto que o
homem era muito pesado. Ajeitou-o, pegou sua roupa, seu chapéu e
retirou todas as coisas valiosas que este trazia consigo, o que incluía
um revólver de grosso calibre que o fazendeiro levava dentro das
calças.
Wilson pegou o chapéu e alguns de seus pertences e trancou
as janelas. Depois de tirar uma boa mordida como tira-gosto, atirou o
pedaço da lingüiça calabresa em cima do corpo do velho que estava
estirado e saindo do quarto, fechou bem a porta. Estava com um dos
litros de uísque em sua mão e um sorriso de satisfação no rosto.
- Agora vamos à Ruiva solitária... – murmurou o pilantra.
Dona Tereza estava no seu quarto escovando sua cabeleira
ruiva. Ela tinha um par de olhos de fazer qualquer decrépito se mexer
na cadeira. Suas mãos eram delicadas, e sua voz era como um
convite à tentação. Embora estivesse pensando o que seu marido
poderia estar inventando, Tereza aguardava o vendedor que poderia
chegar a qualquer momento. Não eram apenas seus produtos que lhe
interessavam. O rapaz era bonito e ela havia achado muito engraçado

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a forma como ele havia ludibriado o seu marido evitando
complicações para os dois.
Com certeza se tratava de alguém muito esperto e inteligente,
ele a fazia lembrar-se dos rapazes que a cortejavam em suas idas ao
Rio de Janeiro nas visitas que fazia à suas tias.
Estava pensando sobre isso quando algumas batidas fizeram-
na levantar-se. Ela estava sozinha em casa, assim dirigiu-se para a
sala e abriu a porta.
- Olá! – sorriu o vigarista. – aqui estou de volta.
- Seja bem vindo – saudou Tereza – entre e fique a vontade.
Espero que tenha trazido todos os artigos que vende.
- Sim, - confirmou Wilson – e também outros igualmente
interessantes.
O pilantra fez a mão que estava atrás de suas costas aparecer.
Ele exibiu o litro de uísque importado à senhora e acrescentou:
- O Sr. Aureliano pediu-me que trouxesse um bom uísque
para tomarmos juntos, enquanto você escolhe os artigos que deseja.
- Bom... – disse Tereza apanhando a bebida e analisando o
rótulo – Meu marido saiu a pouco e não sei a que horas volta. De
qualquer maneira, talvez não se importe de provar este envelhecido
em minha companhia mesmo...
As horas foram passando e entre uma dose e outra, Wilson e a
Ruiva olhavam um a um os artigos trazidos por ele. No entanto,
devido as investidas e persuasão dele, a conversa estava tendo um
tom cada vez mais particular. Por alguns momentos, notava que os
olhos dela brilhavam e seu rosto corava como os de uma moça tímida
da roça, diante de um elogio de um homem casado. Ele não deixava
de sentir forte atração por aquela mulher irresistível, achava que ela
também pudesse sentir algo forte pelo menos no momento.
Wilson abraçou-a levemente, tomou uma outra dose de
bebida e disse em seguida:
− Tenho algo aqui que trouxe pra você – retirou uma peça de roupa
da mala que trouxera, peça esta que ele havia roubado de uma
anterior amante francesa – é uma camisola de seda chinesa

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caríssima que não está à venda, e eu gostaria de vê-la vestida
nela...

Capítulo X

Os maus têm mais sorte

Sabugo tinha acordado mais cedo naquela manhã e dirigira-se


rapidamente para a rua. Era um domingo um pouco nublado e
provavelmente poderia chover a qualquer hora. No entanto, algumas
gotas de chuva ou mesmo um temporal inteiro não iria atrapalhar o
passeio pelo mato que havia planejado com alguns de seus amigos.
Sabugo lembrava-se de alguns desses passeios que fizera com
sua turma. Em uma das vezes, haviam descoberto uma caverna no
sopé de uma serra na mata. Por um bom tempo, a caverna tinha sido
o esconderijo secreto de Sabugo e sua turma.
Infelizmente, em uma determinada ocasião, o grupo de
moleques teve de correr na mais louca disparada do local. Isso
aconteceu porque um casal de onças-pintadas resolveu usar a caverna
como sua casa. Felizmente, o grupo viu os animais de longe à
entrada da caverna e tiveram tempo de baterem em retirada correndo
pela picada até à beira do rio onde haviam deixado a canoa, em meio
a gritos e berros. Era a primeira vez que viam um bicho daqueles tão
perto assim.
Certo que uma vez que se tratava de um local longe do habitat
humano, os bichos tinham todos os direitos concedidos pela natureza
de apossarem-se do local expulsando os inquilinos atuais. Ele cheio
da ciência, explicou aos amigos que eram animais recém-casados, os
quais estavam à procura de uma casa própria para criarem seus
filhotes. Assim foram de certa forma ‘despejados’ pelos bichos
ferozes e nunca mais puderam andar pelas imediações com medo de
serem devorados.

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Sendo assim, a turma se limitava a percorrer a mata próxima
e freqüentavam a beira do rio onde havia uma velha canoa. Quando
estavam preparados, desciam o rio na canoa seguindo pela margem
como sempre e podiam pescar e acampar a margem às vezes durante
o dia inteiro. Também na mata em alguns lugares úmidos e
encharcados, conhecidos como brejos, procuravam frutas da região,
derrubavam palmeiras e comiam seus palmitos. Era de fato uma
festa.
Neste domingo já estava combinado. Sabugo e mais quatro
garotos iam passar o dia inteiro à beira do rio pescando e tomando
banho como sempre faziam anteriormente. Só que desta vez eles
tinham um projeto especial. Alberto que era filho de um vaqueiro
chamado Franco, havia confirmado apanhar o revólver do pai às
escondidas e levá-lo consigo para o acampamento.
Na verdade, o grupo tinha como objetivo dirigir-se para a
caverna apossada pelas onças e despejarem-nas definitivamente de lá
com alguns tiros. Para isso, pensavam, as seis balas no tambor
deveriam bastar. O simples ato de pensar na situação que iriam
enfrentar, já deixava os garotos ansiosos e excitados, porém
confiantes. Carlinhos que era o menor da turma apenas de pensar em
dar um tiro na direção da caverna da onça já se mijava todo. Os
outros dois eram Juca, primo de Sabugo e Dudu, que era filho de
uma ex-viúva e trabalhava com o padrasto em uma mercearia.
Pois bem, aquele dia havia chegado e a turma estava que não
cabia de empolgação. Por outro lado, qualquer adulto que soubesse
de seus planos, tomaria imediatamente medidas para frustrá-los.
Assim a decisão unânime foi não contar de jeito nenhum aonde iriam
naquele domingo.

Wilson o vigarista, tivera um noite tumultuada. Abriu os


olhos e olhou para o relógio no criado mudo. Levantou-se de
imediato. Ainda era cedo e a ruiva deitada ao seu lado estava
dormindo sem chances de despertar tão cedo. Dirigiu-se para o
escritório do fazendeiro e retirou um quadro grande da parede. Ali
estava o cofre.

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Na noite anterior, havia perguntado à ruiva várias coisas e
havia tido entre informações a respeito da localização do cofre,
outras revelações surpreendentes. Usando a chave que tinha
encontrado entre os seus seios, abriu com facilidade o cofre. A
combinação para girar o segredo era fácil de lembrar-se: - Um para a
esquerda e outro para a direita.
Wilson deu assovios ao ver vários pacotes de dinheiro no
cofre, além de jóias que julgou serem caríssimas. De fato, eram
usadas pela ruiva apenas em ocasiões muito especiais. Wilson
apanhou todo o conteúdo do cofre e colocou-o em uma das bolsas
que havia esvaziado.
Voltou ao quarto onde dormia Tereza, e observando que
continuava entorpecida pela droga, dirigiu-se cauteloso para a porta
dos fundos. A qualquer hora, o fazendeiro em seu quarto poderia
acordar e dar-se conta do golpe que havia sofrido.

Sabugo estava com sua turma reunida na praça da cidade, a


qual no horário estava completamente deserta. O filho do vaqueiro
Frank como prometido havia trazido o revólver e uma vez que
Sabugo era o líder da turma, todos resolveram por unanimidade que
ele deveria portar o trabuco. Assim, enfiaram a arma na bolsa.
Havia na mochila de Sabugo, várias coisas que costumava ser
úteis em diversas situações, nela levavam alguma comida, e um dos
meninos cujo pai trabalhava em um armazém, havia colocado junto
uma garrafa de cachaça. Era uma mochila grande e como estava
relativamente pesada, combinaram de revezarem-se durante o trajeto
ao levarem a carga.
É claro que se os pais dos garotos soubessem o que estavam
aprontando, suas costas e joelhos iriam pagar um preço razoável pela
audácia e ignorância que os movia. Era difícil os pais deixarem-nos
sair para longe sozinhos pois o grupo estava sempre aprontando das
suas e dando dor de cabeça para suas famílias. Assim, quando eles
saíam os responsáveis por eles preparavam-se para qualquer danação.
Wilson o forasteiro, havia saído discretamente da residência
do fazendeiro e caminhava em direção à saída da cidade. Ainda

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estava cedo e embora houvesse pessoas nas ruas, a maioria não tinha
iniciado suas atividades rotineiras. O vigarista imaginava como faria
para sair da cidade da maneira mais fácil e sem levantar suspeitas.
Pegar o trem estava fora de questão, pois certamente ele não chegaria
à estação a tempo de fugir nem se fosse a cavalo. Por outro lado,
levantando-se de seu transe antes do previsto, a estação seria o
segundo lugar depois de sua casa onde o fazendeiro roubado ia lhe
procurar. Se ele fosse para outra direção inusitada, seu golpe seria
perfeito.
No entanto, Wilson não conhecia a geografia da região nem
sabia que direção tomar ao partir para fora da cidade nas matas
próximas. Talvez pudesse ficar escondido na redondeza até que as
buscas cessassem, daí seria mais fácil tomar o trem em outro dia
qualquer. Mas pensando bem, se o corpo de policiais tivesse cães
disponíveis, e se estes conseguissem seguir seus rastros, não
conseguiria ir muito longe. Talvez seria apropriado roubar um cavalo
em algum lugar e fugir de forma mais rápida.
Andando apressado, aproximou-se da turma de Sabugo na
praça, os quais conversavam. Wilson ouviu-os falando sobre a mata,
o rio e o barco que usariam para atravessá-lo e sorriu agradecido pela
providência.
- Que sorte! – pensou – esses garotos conhecem a região e
serão o passaporte que preciso para fugir daqui.
Os meninos notaram a aproximação do estranho que esboçou
um largo sorriso.
- Olá amiguinhos!
Um pouco desconfiados, a turma retribuiu a saudação. Wilson
aproximou-se de Sabugo, e colocou as mãos sobre seu ombro.
- Qual o seu nome garoto? Parece ser o mais animado da
turma!
- Fernando... Mas todos me chamam de Sabugo. – respondeu.
− Sabugo, ham... Muito bem e parece que vocês estão se dirigindo
para o rio eu suponho... Mas que coincidência! Por acaso, estou
também indo nesta direção. Posso ir com vocês amiguinho?

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Capítulo XI

Nunca fale com estranhos

Os garotos olharam um para o outro. Não haviam pensado na


possibilidade de aparecer algum adulto para descobrir seus planos.
Sabugo nunca tinha visto o forasteiro, o qual estava ali parado com
as mãos na cintura e cara de bonzinho. Embora seus pais ensinassem
que não se deve dar ouvidos a estranhos, aquele homem parecia
amigável.
De fato, as suas roupas eram apresentáveis e dificilmente algum
indivíduo perigoso se vestiria assim. Mas Sabugo e os demais
olhavam um para o outro e cochichavam sobre ele à medida que iam
andando pela estrada.
− Qual é o seu nome? – perguntou Carlinhos.
− Ah! Um curioso na turma. – retrucou o criminoso – eu me chamo
Wilson.
− E o que faz por aqui, Sr. Wilson? – atalhou Sabugo – eu conheço
quase todo mundo da cidade e nunca o tinha visto.
− Eu sabia que era o mais esperto da turma. – elogiou Wilson
passando a mão na cabeça de Sabugo – Na verdade, eu sou da
cidade grande. Estou aqui só de passagem e uma vez que não
conheço os locais pitorescos desta região, decidi andar um pouco
hoje. Disseram-me que existe um rio aqui perto, e parece se tratar
de um local agradável.
− É mesmo... - concordou Juca – e passa nas terras do homem mais
rico daqui...
− E quem é o ricaço, amiguinho? - perguntou Wilson esticando os
lábios para o garoto que exibia um sorriso de porteirinha.
− É o Sr. Aureliano. - respondeu - Ele é o maior criador de animais
da região.

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O vigarista parou de caminhar um momento, o sorriso em seu
rosto se desfez rapidamente. Parecia que afinal, tinha feito uma
decisão muito precipitada. Achando que fugia do homem do qual
havia roubado uma grande soma, no entanto parecia estar dirigindo-
se ao seu encontro. Ficou estacionado ali por alguns momentos
enquanto os garotos continuavam caminhando devagar.
− Hei Sr. Wilson! - disse um dos meninos observando que ficara
parado – vai ficar aí parado ou desistiu do passeio?
Wilson esticou os lábios um pouco sem graça desta vez e
continuou a andar junto com a turma de Sabugo. Pensando bem,
talvez não fosse má idéia esconder-se nas terras do inimigo ou até
mesmo atravessá-las. Afinal, quem iria imaginar que estivesse por
aquelas bandas?
- A sede da fazenda fica próximo ao rio? Existem moradores
onde vamos? - perguntou Wilson a Sabugo.
- Não! - respondeu Sabugo - A sede fica a mais de uma légua
e onde vamos é isolado, não vai ninguém a não ser pescadores,
caçadores e raros banhistas como nós. Às vezes vaqueiros
atravessam gado onde o rio é mais estreito.
Menos mal, pensou o vigarista, parecia que afinal, não tinha
feito uma decisão tão errada de acompanhar os garotos. Assim,
quando chegasse ao rio, colheria mais algumas informações e
seguiria o rumo mais seguro possível pela mata ou pelo rio.
Aureliano o fazendeiro, passou a mão na cabeça que parecia
querer estourar de tanta dor. Soltou um gemido rouco e moveu-se
lentamente na cama. Abriu os olhos devagar movendo-os à sua volta
e aos poucos sua vista começava a clarear. Ficou ali deitado
recobrando-se aos poucos da sonolência que o fazia desistir de
manter as pálpebras abertas. Suas pernas não queriam obedecer ao
seu comando, e um formigamento estranho tomava conta de quase
todo o seu corpo. Passou a mão levemente pelo rosto, ao passo que as
lembranças do dia anterior iam retornando aos poucos em sua mente.
Havia algo frio em cima de sua barriga exposta. Fez esforço para
levar a mão na direção até conseguir segurar o corpo estranho.
Levou-o na direção dos olhos e espantou-se ao reconhecer o achado.

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- M..mas isso é um pedaço de lingüiça calabresa...
Estava quase nu ali naquele quarto. Suas roupas não estavam
por perto e a arma que levava sempre abaixo do cinto da calça
coberto pelo paletó, tinha sumido também. Seu Aureliano fez grande
esforço até conseguir sentar-se na cama. A dor de cabeça o fazia
franzir os músculos de seu rosto, mas estava conseguindo entender
muito bem o que tinha acontecido.
− Fui roubado! - balbuciou – desgraçado, me enganou!
Dirigiu-se até a porta segurando-se pelas paredes com
dificuldade. Atirou a lingüiça para o lado com raiva. Suas pernas
estavam bambas e entorpecidas e o velho arrastava-as com muito
custo. Enquanto tentava abrir a porta que estava bem trancada,
pensava no que talvez pudesse ter acontecido em sua casa, uma vez
que o salafrário havia com certeza, passado a noite lá. Teria Tereza
sido vítima de abusos ou violência sexual? Como tinha sido incauto
deixando-se enganar daquela forma.
A porta estava trancada por fora e não era possível arrombá-
la. Não tinha forças para isso. Talvez houvesse alguém ali por perto
que pudesse ouvir seus gritos e socorrê-lo. Assim, o fazendeiro
começou a usar as forças que tinha para gritar e bater na porta em
desespero.

Wilson continuara a caminhada junto com os garotos que


conversavam sobre tudo o que lhes vinham à cabeça, menos sobre
seus planos. Já era quase nove horas da manhã, e ao contrário do que
pensava, o sol havia se mostrado firme e brilhante. No momento, a
luz e o calor tornaram-se quase insuportáveis fazendo-os reclamar,
uma vez que naquele ponto da estrada não havia nenhuma sombra à
beira do caminho. Wilson lembrou-se do chapéu do velho que havia
roubado e que guardara dentro de sua sacola. Parou um pouco e
retirando o mesmo, admirou a qualidade da peça, ajeitou-o sobre sua
cabeça e sorriu, sentindo-se um pouco mais confortável.
Agora está bem melhor, pensou o criminoso sem notar que o
seu gesto não passara despercebido por Sabugo, o qual havia
reconhecido imediatamente o chapéu. Não havia dúvida de que

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pertencia mesmo a Aureliano, pois até as marcas de uso comum
estavam lá, inclusive a figura do cavalo em metal com uma das patas
quebradas. Sabugo intrigado aproximou-se de Wilson e perguntou:
− Gostei do seu chapéu! - Wilson sorriu e Sabugo continuou – foi
caro?
− Na verdade... - respondeu o bandido pousando a mão de leve
sobre a aba do chapéu e girando-o um pouco para a direita – faz
tanto tempo que o comprei que não me lembro mais do preço que
paguei... Talvez tenha ganhado-o em um jogo de cartas.
Sabugo estremeceu por dentro. Jamais o seu padrinho se
desfaria do seu chapéu de estimação, pois ora, já o usava durante
anos e considerava-o como amuleto de sorte. Seria aquele estranho
um ladrão, um criminoso que havia assaltado o fazendeiro durante a
noite? E se seu padrinho uma hora dessas estivesse inerte no chão de
seu quarto crivado de balas? E sua madrinha? Talvez tivesse tentado
gritar por ajuda e também tivesse levado um tiro? Seu coração
começava a bater cada vez mais forte. Muitas coisas começaram a
passar por sua mente. Se aquele estranho fosse mesmo um criminoso
perigoso, sabe-se lá o que iria acontecer com eles agora que estavam
em um lugar deserto longe da cidade. E os garotos que estavam com
ele? Todos os outros podiam correr pelo mato com facilidade e
livrar-se de uma perseguição, mas Carlinhos era muito pequeno e
suas perninhas não conseguiriam acompanhá-los em uma correria
desenfreada. Estaria Wilson armado? Ele se lembrou de que em uma
determinada ocasião, seu padrinho estava realizando um serviço de
limpeza em sua arma e ele deixou-o segurá-la um pouco, depois de
retirar os cartuchos. Ela era pesada e tinha o cabo decorado com
marfim.
− Você tem uma arma, seu Wilson? - perguntou Sabugo
disfarçando sua preocupação.
− Claro que sim! - respondeu o ladrão – um homem sem sua arma é
um homem pela metade.
− Podemos ver sua arma sr. Wilson? Por favor...

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Capítulo XII

O seqüestro de Sabugo

Wilson fez um sinal negativo com a cabeça, mas depois parou


um pouco, retirou o revólver que apanhara do fazendeiro,
descarregou os cartuchos na mão e após de enfiá-los nos bolsos,
entregou a arma aos garotos que olhavam admirados.
Sabugo temendo que algum dentre eles revelasse que também
tinham uma arma semelhante escondida em sua bolsa, fez
discretamente um sinal para que mantivessem silêncio. Alberto
cuidou para que Carlinhos continuasse calado. Sabugo segurou a
arma e parou de repente. De fato, a arma ali em suas mãos era
mesmo o revólver de seu padrinho. Suas suspeitas estavam
confirmadas, aquele homem era mesmo um criminoso e todos ali
corriam perigo.
Wilson continuava andando e estavam já vendo a beira do rio,
onde havia um pequeno barco a remos amarrado a um toco de árvore.
À margem tinha também uma pequena choupana coberta com palhas,
e era usada por pescadores e caçadores que às vezes dirigiam-se para
aquela região. A choupana não tinha paredes, algumas toras de
madeira estavam dispostas ao redor das vigas de sustentação
formando bancadas improvisadas. No meio da barraca um grupo de
pedras em um círculo pequeno servia como fogareiro improvisado.
Restos de madeira e carvão evidenciavam que há pouco tempo
alguém estivera ali no local, talvez na noite anterior.
Sabugo aproximou-se de Alberto que segurava Carlinhos pela
mão ao passo que mantinha os olhos fixos em Wilson que descia em
direção ao rio.
− Beto... - cochichou – o Sr. Wilson é um ladrão...
− Ladrão? – estranhou Alberto – o que você está querendo dizer?
− O chapéu que está usando e esta arma, pertencem ao padrinho...

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Sabugo percebeu que Wilson já estava na beira do rio e dirigia-se
para o barco, provavelmente iria verificar se estava em plenas
condições de uso. Juca e Dudu haviam descido juntamente com
ele e dirigiram-se para a barraca de palha, onde deixavam a
mochila que levavam.
− O Sr. Wilson é um bandido Beto. - sussurrou Sabugo – se ele está
com objetos que pertencem ao padrinho, provavelmente o
roubou... estamos enrascados agora!
Beto arregalou os olhos e começou a tremer. Carlinhos que
ouvira a conversa pois estava junto a eles, começou a ficar assustado.
− O que vamos fazer – perguntou Beto – começando a chorar de
medo.
− Vá com o Carlinhos se esconder no mato que eu vou avisar os
outros. - Sabugo fez uma pausa e continuou – e tem de ser agora.
O garoto pegou o menino no colo e tratou de embrenhar-se na
capoeira rapidamente. Ia chorando com medo e fazia neste desespero
o menor chorar também. Juca estava próximo ao barco com o
vigarista e Sabugo ouvia os dois conversarem animadamente. Foi
quando ao se aproximar um pouco mais, depois de descer a
ribanceira do rio, ouviu Juca apontar-lhe o dedo e dizer:
− Sabugo é afilhado do Sr. Aureliano, que trata-o como a um
filho...
Sabugo estremeceu novamente. Ele viu como as feições de
Wilson mudaram de repente, seu rosto endureceu e seus lábios
ficaram brancos. Seus olhos estavam fixos em Sabugo que segurava
em suas mãos o revólver descarregado. Quando Wilson começou a
caminhar rapidamente na direção dele, olhou para os dois garotos e
gritou:
− Corram, corram!
Juca e Dudu não entenderam muito bem o que estava
acontecendo, mas sua intuição lhes dizia que não se tratava de coisa
boa. Dudu lembrou-se da ocasião em que Sabugo havia dado um
grito similar. Foi quando tentaram entrar no pomar de um velho
chamado Boneco. Naquela ocasião, tiveram de sair correndo como
loucos, pois dois cachorros muito bravos tinham sido soltos pelo

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velho que também vinha correndo aos gritos com uma espingarda
nas mãos.
Assim, percebeu que deveriam correr o máximo que podiam
sem fazer nenhuma pergunta ou titubear. O criminoso, tendo sido
descoberto, avançou na direção de Sabugo apressadamente. Juca e
Dudu tinham subido a ribanceira do rio e aos gritos haviam entrado
na capoeira fechada próxima ao rio. Apenas se ouvia o farfalhar de
galhos e folhas sendo afastadas e pisadas, cedendo lugar à sua
passagem em desabalada carreira.
Sabugo foi o último a correr. Ele estava com a pesada arma
na mão e infelizmente não conseguira subir a ribanceira a tempo.
Wilson alcançou-o e segurou sua perna puxando-o para baixo. Antes
de Wilson tomar-lhe a arma das mãos, teve tempo de arremessá-la
para dentro do rio em um local de difícil acesso e com uma
profundidade razoável.
− Moleque! - gritou o bandido cerrando os dentes de raiva – você
vai pagar caro por isso!
Um pouco ao longe, escondidos no mato estavam os garotos
que haviam se juntado. Todos estavam aos berros e preocupados com
o que poderia acontecer a Sabugo. Eles viram Wilson segurar seu
amigo pela camisa e levá-lo em direção da cabana.
− Muito esperto, garoto – disse o vigarista que o segurava ao
mesmo tempo em que apanhava as mochilas que estavam no
chão – mas você agora vai comigo!
− O bandido vai matar o Sabugo – gritou o pequeno segurando em
Alberto – e agora?
− Temos que procurar ajuda – desesperou-se Juquinha.
Wilson levou Sabugo até o barco e o fez entrar. Jogou as
mochilas a seus pés e empurrou o barco para fora da margem. O
grupo de garotos pensava ele, iriam com certeza em busca de ajuda.
Logo a notícia do roubo e o paradeiro do ladrão iria se espalhar pela
cidade. No entanto, iriam demorar pelo menos duas horas para
chegar à cidade e pelo menos uma para que os homens da lei
chegassem ao local, isso daria tempo para escapar sem muitos
problemas. Sabugo por mais que tentasse esconder seu medo não

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conseguia, e imaginado o que poderia lhe acontecer começou a
chorar.
− Fica tranqüilo garoto – sorriu Wilson entrando no barco e
pegando um dos remos – não vou lhe fazer mal. Quero apenas
que me diga que caminho pegar para sumir daqui, daí deixo você
ir embora. - depois endurecendo o rosto ameaçou – mas se não
me disser o caminho, nunca mais vai voltar pra casa! Jogo-te no
meio do rio!
− O que você fez com o Sr. Aureliano? – perguntou apreensivo.
− Ah, o seu padrinho querido! - zombou o vigarista sorrindo – não
se preocupe. Digamos que tanto ele como sua ruiva gostosona,
resolveram dormir até mais tarde. É claro que quando tiverem
disposição para se levantarem, terão uma péssima surpresa. - o
ladrão pegou sua bolsa, abriu-a e retirando dela um maço de
dinheiro exibiu sorridente – Sabe o que é isso, amiguinho?
Dólares! Eu nunca tinha visto tantos assim em minha vida. Quem
diria que iria encontrar isso aqui neste fim de mundo. Garanto a
você que vou sumir desta região e me aposentar de vez. Talvez
até pego um barco para a América e inicio uma vida nova.
Os garotos haviam tomado um pouco de coragem e ao ver
que o barco já se havia afastado bastante, correram até a margem do
rio onde haviam estado a pouco. Dali gritavam e acenavam para
Sabugo que olhava-os de longe, cada vez mais longe à medida que o
barco ia sumindo na curva que o rio fazia mais abaixo.

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Capítulo XIII

De volta ao esconderijo

O sol já estava alto no céu. Já haviam descido o rio por cerca


de meia hora e pouco até chegarem ao local onde caçadores e
pescadores da região encostavam para entrarem na mata.
− É ali – apontou o garoto – ali nós vamos descer.
− Espero que não esteja me enganando garoto.
O vigarista ancorou o barco à margem do rio e apanhando sua
bolsa e a mochila de Sabugo, dirigiu-se a uma vereda estreita que
rumava à mata em frente.
− O que há depois dessa mata? - perguntou a Sabugo que ia à sua
frente sob seu olhar atento.
− Um ponto de ancoragem em um local onde passam sempre
barcos de passageiros.
− Ótimo! - animou-se o bandido sorrindo – vou pegar o primeiro
deles que passar. Quanto tempo vai levar para chegar lá?
− Já estive lá uma vez com meu avô - Sabugo olhava para a sua
mochila que até o momento estava com Wilson Vigarista – Isso
foi no verão passado. Levamos umas três horas andando nesta
picada.
− Três horas? - reclamou Wilson parando de caminhar – isso tudo?
Sabugo na verdade, nunca estivera neste local e nem sabia se
existia de fato. O que sabia era que a picada era usada por caçadores
que adentravam a mata cortando as terras de Aureliano. Um desvio
dela apenas levava ao local onde haviam encontrado a caverna
ocupada pelas onças há algum tempo atrás. A distância era de cerca
de apenas meia hora ou menos. Ficava próxima de uma serra que já
avistavam dali e tinha certeza que não era possível atravessá-la a
menos que fizessem uma volta pela mata fechada de cerca de um
quilômetro ou mais. Seu pai Fernão e outros costumavam caçar por
ali, mas ele nunca nem em sonho havia ido tão longe. Na verdade,
Sabugo estava tentando ganhar o máximo de tempo possível para

53
tentar algo. Talvez em um momento de distração do criminoso,
pudesse fugir mato adentro deixando o larápio sozinho e perdido na
floresta. Se tivesse sorte, no mínimo poderia alcançar o barco e
retornar.
Sabugo ouviu alguns trovões ecoando. Olhou para os céus e
de fato como era de se eserar, o sol estava cedendo lugar a nuvens
cor de cinza que começavam a cobrir os céus. Não iria demorar a
chover.
− Vamos garoto! - apressou-se Wilson empurrando-o nas costas
com a mochila que levava em uma das mãos - Estou levando suas
coisas pra você apressar o passo!
− Acho que é melhor você ir à frente – sugeriu – assim vai abrindo
o caminho.
− Ok, garoto! - concordou Wilson entregando-lhe a mochila – mas
se tentar correr eu te pego e aí você vai se arrepender.
Wilson começou a andar abrindo caminho com as mãos e os
pés, visto que a vegetação havia coberto alguns trechos. Sabugo
estava com a mochila nas costas e pensava em uma maneira de usar a
arma que estava dentro dela em seu favor, mas estava com medo de
pegá-la e ser visto pelo criminoso que a cada minuto olhava para trás.
Foram andando com rapidez e vencendo obstáculos no
caminho como pedras, galhos e árvores caídas. Passaram por um
córrego onde já havia estado com sua turma. A caverna estava bem
mais próxima do que pensava e de fato, depois de passarem por
algumas árvores grandes e atravessarem uma ponte improvisada por
cima de um riacho, observou-se o sopé da serra à frente. Estavam a
cerca de trinta metros da entrada coberta por vegetação. Os ventos
tornavam-se cada vez mais fortes e as copas das árvores balançavam.
Pingos fortes de chuva começaram a cair forçando-os a apressar-se.
− Tem uma caverna ali! - gritou Wilson apontando com o dedo –
vamos pra lá!
Wilson não perdeu tempo. Aproveitando que a picada havia
saído em um local onde a vegetação não era tão intensa, correu
apressadamente sendo seguido por Sabugo que não tinha tanta

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pressa. Ele correu devagar observando-o dirigir-se rapidamente para
a entrada da caverna.
Se as onças ainda estivessem ali, estava preparado para correr
como da outra vez e estaria livre do seu algoz. Wilson parou, e
notando que Sabugo estava diminuindo o passo, segurou-o pelo
braço e o fez correr na frente. A caverna parecia estar deserta, mas
era comprida e tinha pelo menos duas galerias de alguns metros de
extensão. Talvez os bichos selvagens não morassem mais ali, ou
estivessem andando pela mata dedicando-se à caça.
− Essa caverna veio a calhar, hem amiguinho?
− É mesmo... - concordou Sabugo que ao chegar à entrada pôs-se a
olhar para o interior preocupado.
− Parece que é bem grande... - observou o vigarista que havia
sentado em uma pedra na entrada – deve estar cheia de morcegos
no interior.
A chuva caía torrencialmente. Era por volta de meio dia e o céu
estava escuro e cheio de nuvens carregadas.
− Essa chuva vai atrasar o pessoal que vem atrás de nós! – disse
Wilson acendendo um charuto que retirara do bolso do casaco.
Depois de uma tragada continuou – Estes aqui também são
presentes do fazendeiro. Se você tivesse idade de fumar eu iria te
oferecer um...
Sabugo olhava de vez em quando para os fundos da caverna.
Mesmo quando era dia de sol forte ali era escuro, agora então não
podia se ver quase nada à pouca distância.
− Pode me emprestar seu isqueiro Sr. Wilson?
− Claro, tome aqui! - O criminoso gentil esticou-se entregando o
isqueiro ao garoto - está pensando em explorar a caverna não é?
Notei sua curiosidade – o vigarista soltou uma baforada e
continuou – mas não gaste todo o combustível, pois é o único que
tenho e não quero ficar sem fumar. Sabugo abriu a mochila com
cuidado. Espantou-se, pois o cabo do revólver apareceu pela
abertura.

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− Parece que tem muita coisa aí nesta bolsa – observou Wilson
enquanto Sabugo preocupava-se – o que mais tem aí dentro
garoto, alguma coisa de comer?
Sabugo retirou um saco plástico bem volumoso cheio de farofa
de carne seca e farinha de mandioca. Era o lanche do dia que
haviam preparado em casa.
− De comer... - o garoto jogou o saco nas mãos de Wilson e depois
retirou uma garrafa escura de dentro da mochila - ... E de beber!
Wilson não conteve um sorriso de surpresa ao ver a garrafa de
cachaça na mão de Sabugo.
− Amiguinho o que vocês iam aprontar hem? A vida não podia ser
melhor. - o satisfeito ladrão experimentou a farofa, e depois de
tomar um grande gole no gargalo da garrafa e fazer uma careta de
satisfação continuou – comida, bebida, charutos, um amigo e
dólares! Só faltou mesmo uma companhia feminina.
Sabugo meneou a cabeça e virou-se para o interior da caverna
com o isqueiro em suas mãos. Ali no interior da gruta mais para o
fundo fazia um cheiro forte. Ele acendeu o isqueiro e as paredes
iluminaram-se com a luz tênue. Era estranho que não houvesse
nenhum morcego naquela galeria ali. Continuou andando e
abaixando-se um pouco, pois as paredes iam estreitando até uma
bifurcação que parecia formar uma área maior. Parecia que tinha algo
no chão a pouca distância e se movia lentamente. O isqueiro apagou-
se quando ele tropeçou em uma pequena elevação no piso e bateu
contra a parede. Tentou andar um pouco e acabou levando uma
queda. O isqueiro caiu de suas mãos e rolou para o fundo da galeria
fazendo um barulho peculiar.
− Hei garoto! - gritou Wilson que ouvira o barulho – está tudo bem
aí?
Sabugo continuava no chão, esticando a mão e tateando no
local onde o objeto caíra. Sua mão de repente tocou algo macio.
Parecia o pêlo de um gato, só que um pouco mais áspero. O cheiro
ali era bem mais forte do que antes e chegava a ser insuportável. A
coisa em que tocara moveu-se lentamente emitindo grunhidos. Ele,
no entanto estava paralisado de medo. Suplicava para que talvez, por

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felicidade ou providência, fosse algum rato ou um animal comum na
região.
A onça está bem aqui ao alcance de minha mão – pensou – vou
morrer devorado por esse bicho. Escutou o ronronar do animal que se
movia, suas garras roçavam o seu braço. Parecia ser um gato. Ouviu
o barulho de metal deslizando na rocha quando passou a mão pelo
outro lado. Era o isqueiro de Wilson. Segurou-o firme e riscou-o
fazendo com que uma faísca incendiasse o pavio embebido pelo
combustível. A luz se formou novamente ainda tão fraca como da
outra vez, mas o que desejava ver estava ali tão perto que isso não
fazia diferença.
− Um Filhote de onça – sussurrou Sabugo para si mesmo
levantando-se rapidamente. Arregalou os olhos e olhou para o
lado apavorado. Se o filhote estava ali, onde estavam os pais?

Capítulo XIV

Se correr o bicho pega!

Wilson estava sentado à entrada da caverna olhava para a


chuva torrencial com a garrafa de cachaça em suas mãos. Estava
terminando de fumar o charuto que acendera, e já havia tomado
quase a metade do álcool. Aquela sensação de formigamento no
corpo e o leve torpor que estava sentindo causavam-lhe uma
sensação prazerosa.
− Ei garoto! - gritou, olhando para o fundo da caverna – está se
divertindo aí também? Se for fazer alguma necessidade, afaste-se
o máximo possível ok?
Sabugo havia segurado um dos filhotes nas mãos e depois de
olhar para a parte mais profunda da galeria fez uma descoberta nada
agradável. Um par de olhos brilhava na escuridão da gruta e
atenciosamente fixavam-se nele. Ouviu então um rosnar rouco que

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vinha da mesma direção, de início baixo, mas que gradualmente
aumentara de intensidade fazendo-o tremer-se de cima a baixo.
O filhote da onça sob seu braço esquerdo emitiu alguns
miados com dificuldade e Sabugo começou a se afastar de costas o
mais rápido possível. Seus olhos grandes arregalados estavam
encandeados com a chama do isqueiro. Era com certeza a mãe das
criaturas que não havia visto quando adentrou para a galeria na
caverna, pois evidentemente estava em uma parte mais recôndita.
Suas pernas estavam bambas, arrepiou-se até as pestanas de medo
enquanto ia afastando-se rapidamente de costas em direção à saída.
Sentiu vontade de soltar o maior berro que já havia dado em sua
vida, mas talvez fosse pior. Então virou e apressou-se na direção de
Wilson, que à entrada da caverna observava em pé o tempo melhorar.
Sabugo aproximou-se dele e jogando o filhote em suas mãos com um
movimento rápido gritou:
− Segura esse gatinho!
Em seguida Sabugo emitiu um pavoroso berro ao passo que
saía em disparada com a mochila em suas costas e o isqueiro na mão.
Wilson o vigarista ficou paralisado, e olhava com os olhos a saltarem
de suas órbitas para o bicho peludo em suas mãos. Um esturro ouviu-
se de dentro da toca da onça. Wilson ainda estava com o filhote em
seus braços e via Sabugo correr em direção da mata em meio a gritos
de desespero. Um dos animais não demorou a apontar a cerca de
alguns metros de distância. Seu rosnado pareceu a Wilson como uma
sentença definitiva de morte. O medo o dominou completamente e
diante de tão grande pavor, abriu a boca e gritou ao máximo de sua
voz. Seu berro de terror ecoou nas galerias da caverna e retornaram a
ele amplificado, misturado com o som do esturro da fera e os miados
do gato em suas mãos. Sentiu algo líquido e quente escorrer por entre
suas pernas imediatamente.
Foi afastando-se de costas ao passo que tremia como uma
vara verde. O animal movia-se lentamente em sua direção exibindo
uma dentadura pavorosa. Wilson não parava de gritar e Sabugo a
uma distância segura do local, havia parado para observar a situação.

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Parecia que pelos gritos do homem, já estava sendo devorado vivo
pela onça parida.
− O filhote – gritou de longe com as palmas das mãos ao lado de
sua boca – solte o filhote Sr. Wilson!
Ao passo que se afastava para trás devagar sob o olhar
ameaçador da criatura descomunal, foi levando lentamente o felino
que segurava com as duas mãos ao chão. Ele olhou para a bolsa que
havia colocado um pouco mais para dentro. Não era possível chegar
mais perto para apanhá-la, pois a onça estava a uns três metros de
distância dele e apenas com um salto o partiria em dois. Na bolsa
estava todo o produto do roubo. Mas tratava-se de sua vida que
estava em jogo. Colocou o bicho no chão e notando que a onça
apenas rosnava próxima a ele, virou-se rapidamente e irrompeu em
uma obstinada carreira no rumo de Sabugo. Suas pernas moviam-se
com tanta rapidez que pareciam ter vida própria. Naquele momento
mesmo que tentasse parar suas pernas não obedeceriam. Estava
correndo tanto que as botas batiam em suas nádegas e o
impulsionavam para frente. Seus gritos ecoavam na mata e juntaram-
se aos berros de Sabugo que observando o criminoso se aproximando
resolvera correr e extravasar todo o estresse do momento. Nunca
havia passado por uma situação tão terrível como essa. Quem dera
fosse apenas um pesadelo.
Wilson gritava e corria seguindo o garoto em meio à
vegetação da floresta. Não tinha coragem de olhar para trás porque
parecia ouvir sem nenhuma dúvida o som das patas da fera selvagem
abrindo mato em seu encalço e os seus esturros horríveis. Galhos
retorcidos quebravam-se em seu rosto, espinhos penetravam em suas
mãos quando tentava agarrar-se a algumas árvores no caminho e
sentia cipós enroscarem-se em suas pernas atrasando seus passos
agoniados. Saltava por cima de árvores caídas e elevações rochosas
com a destreza de um veado. Seus olhos estavam abertos o máximo
possível, mas seu foco era apenas o caminho à sua frente. Enquanto
corria feito um condenado, sentia um calafrio de medo percorrer sua
espinha dorsal, e no momento já não possuía mais nenhum líquido
em sua bexiga. Foi quando de repente seus pés foram seguros por

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ramas que se desprendiam do solo. A queda foi inevitável e Wilson
despencou ao chão gritando e rolando de cima de uma elevação que
culminava em um córrego enlameado de um brejo que se formava
logo abaixo.
Sabugo ouviu os gritos dele e o barulho do farfalhar de folhas
e galhos que se partiam durante sua precipitação descida abaixo.
Resolveu parar e escutar o que se passava ao redor já que achava
estar bem longe da caverna. Talvez a fera tivesse alcançado o infeliz
e atacado-o pelas costas. Nenhum barulho além dos pingos da chuva
nas folhas e dos gritos de Wilson podia ser ouvido à distância.
− Socorro! - gritou Wilson que se encontrava encharcado dentro de
uma poça de água e lama – socorro! - insistia o vigarista tentando
agarrar-se a alguma galha próxima.
Demorou algum minuto atolado, e parando de gritar,
começou a olhar para todos os lados com apreensão e ouvir os sons
ao seu redor com atenção. Tinha medo de que a onça que segundo
pensava quase o tinha segurado pelos pés a pouco, estivesse
rondando o local.
Fora o crepitar dos pingos de água nas folhas, nada mais se
fazia ouvir. Passou se algum tempo e Wilson notou o barulho de algo
se aproximando em meio à espessa folhagem. Tinha certeza que o
bicho que se dirigia até ele era quadrúpede, pois ouvia o leve som de
quatro patas na sua direção. Seu coração disparou quando ouviu um
rosnado familiar, Pensou em fugir dali o mais rápido possível, mas
seus movimentos eram limitados pela lama espessa que segurava
suas pernas. O barulho foi aproximando-se cada vez mais. Os olhos
esbugalhados, os lábios brancos de medo e o tremer de todo o seu
corpo, fazia dele a imagem mais concreta de alguém à beira de um
ataque de pânico.
Foi quando a folhagem próxima balançou ameaçadoramente.
Wilson emitiu um alto grito apavorado e quase cai de costas
petrificado quando Sabugo saltou de quatro pés na margem diante
dele, emitindo o berro mais feio que já ouvira em toda a sua vida.
Wilson quase morre de um ataque cardíaco com aquela aparição, e

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como não bastasse estar todo enlameado, sentia que algo mais estava
poluindo sua vestimenta.
− Borrou-se de medo, Sr. Wilson? - gargalhou Sabugo pondo-se de
pé e ajeitando a mochila em suas costas.
− Moleque desgraçado! - xingou o vigarista que ainda tremia
bastante, mas encontrava forças para segurar em uma raiz na
margem e sair do lamaçal – você me paga!
Sabugo esboçou um sorriso zombeteiro. Poderia muito bem
ter ido embora correndo na mata e deixado o larápio se virar. No
entanto, havia notado que o homem ali à sua frente não era de fato
tão perigoso assim como pensava. Talvez fosse possível encontrar
uma maneira de recuperar todo o dinheiro que ele havia roubado e
que no momento havia ficado na toca das onças.
Além do mais, um garoto pequeno e sozinho no mato em um
local tão perigoso, seria alvo fácil para algum animal feroz como o
que vira há pouco.

Capítulo XV

Em busca de Sabugo

Naquela manhã, a cidade estava em polvorosa. A notícia do


seqüestro de Sabugo e do roubo do fazendeiro havia se espalhado. Os
amigos de Sabugo haviam ido à delegacia e informado o delegado
sobre o sequestro cedo pela manhã. O desespero na casa de Sabugo
era grande e Fernão seu pai, havia selado o cavalo e enfiado nas
calças o velho revólver calibre 45 que possuía desde que era um
mero rapaz. Aureliano havia sido libertado pela camareira, e logo
cedo tinha sido uma grande movimentação de pessoas na sua casa. O
delegado havia montado uma equipe de buscas junto com alguns
homens e capangas de Aureliano, nem seus conselhos insistentes
fizeram Fernão desistir de seguí-los.
Seu Bimba, também aflito com a situação, resolveu
acompanhar a turma. Levantou o colchão de sua cama e retirou dali

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um velho rifle papo-amarelo que possuía a muito tempo. Ele foi até a
cozinha onde estava a mãe de Sabugo sentada à mesa. Ela estava
muito preocupada e chorava com a possibilidade de nunca mais ver
seu filho único. Havia feito um café forte e amargo pois sua dor de
cabeça havia voltado naquela manhã, então usava o terço para recitar
suas orações. Pensava que seus pecados estavam sendo cobrados. O
velho pirata aproximou-se dela e pôs a mão sobre seu ombro. Ficou
ali por alguns momentos olhando para o crepitar do fogo de lenha.
Depois começou a enfiar balas no pente do rifle.
- Nós vamos trazer o menino, Rosa. – disse confiante – só
volto com ele. Só volto com seu Sabugo.
Era um grupo de uns vinte homens a cavalo, munidos de
armas de fogo e facões. Seu Aureliano estava em estado de choque.
Depois de ter sido levado para sua casa, deparara-se com sua esposa
despida, cheirando a álcool, estirada na cama e o cofre totalmente
esvaziado. Além disso, a droga ainda fazia efeito em seu corpo e mal
conseguia mover-se. Alguns afirmavam que o velho poderia até
morrer e seu filho que era médico na cidade e possuia uma clínica,
estava cuidando de medicá-lo.
O grupo estava em frente ao rio e o delegado observava com
atenção à outra margem do rio com um binóculo de longo alcance.
As nuvens ameaçadoras que cobriam os céus começavam a
desmanchar-se em água e a pequena barraca coberta de palha serviu-
lhes de abrigo improvisado.
- Não temos Barco para atravessar o rio. – disse o delegado –
alguém tem uma idéia?
- Se descermos o rio – respondeu um dos vaqueiros de
Aureliano – poderemos atravessar a cavalo a alguma distância daqui.
É um local onde o rio é mais raso e os animais poderão nadar sem
problema. Já atravessamos manadas de gado neste local por diversas
vezes...
- Não podemos esperar a chuva passar. – completou o velho
homem da lei que dirigiu-se ao seu cavalo, e em um gesto rápido
montou-o – Vamos!

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O grupo de cavaleiros seguiu a margem do rio em uma trilha
de gado. Seu Bimba estava usando uma capa para chuva e seu
chapéu de couro. O tapa olho preto e o rifle na mão direita fazia-o
parecer um bandoleiro mexicano. Segurava as rédeas com a mão
esquerda e mesmo com a chuva caindo em suas costas, conseguia
manter aceso na boca protegido pelo chapéu, o pau-ronca de fumo
grosso.
A chuva era torrencial e quase não se via nada à frente.
Seguiam com cuidado pela vegetação rasteira em fila sempre
beirando o rio. Fernão imaginava o que poderia ter acontecido a
Sabugo até o momento. Com a chuva que estava caindo, seria muito
difícil seguir qualquer rastro deixado no chão. Os cães que seguiam
os cavalos estavam inquietos e latiam incomodados com a chuva.
Assustava-lhe a idéia de nunca mais ver o garoto. De qualquer modo,
não descansaria até encontrar o criminoso e arrancá-lo de suas mãos
sob a mira de sua arma.
Pobre Fernão. Uma arma em sua cintura era mesmo um
perigo para ele próprio. Certa vez havia resolvido usar o revólver
para matar um porco que iriam preparar em uma festa de casamento.
Na ocasião, foram cerca de cinco tiros que apenas causara mais
sofrimento para o bicho. Quando ele se aproximou para atirar a cerca
de uns trinta centímetros do porco, este alcançou-lhe ainda o braço e
aplicou-lhe uma mordida arrancando-lhe carne e sangue. Diante
disso, abandonou o revólver e desatou a correr para fora do chiqueiro
enquanto o animal mesmo ferido lhe perseguia aos guinchos. Os
vizinhos que estavam no local cuidaram de sangrar o porco com uma
faca. Depois não perderam a oportunidade de sorrirem às suas custas.

Depois de quase uma hora, o grupo chegou a uma parte mais


estreita do rio onde pararam na margem extensa contornada por areia
e cascalho.
- Temos um problema – disse um dos capangas de Aureliano
– sempre há piranhas aqui nesta passagem. Se alguém ou um dos
cavalos tiver algum ferimento, é melhor não entrar na água.

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- Para o diabo com as piranhas! – berrou Bimba adiantando-
se aos demais – tenho uma pereba na perna, mas estou com tanto frio
que se mil dessas piranhas me picassem eu não sentiria!
Sob o olhar dos surpresos companheiros, o velho pirata atiçou
seu cavalo para as águas do rio. Em poucos instantes já encontrava-
se a uma distância considerável. O cavalo começou a relinchar e
revolver-se na água. Bimba berrou e levantou a perna direita onde
havia agarrada uma grande piranha preta. Ele emitiu um grito feio de
dor enquanto continuava forçando o animal a continuar nadando em
frente.
- Desgraçadas! – xingou disparando alguns tiros na água –
esporam como arraias!
- Vamos! – gritou um dos cavaleiros sendo seguido pelos
outros – vamos dividir as piranhas com o velho Bimba ou o coitado
não passa de hoje!
O grupo de cavaleiros atirou-se na água em meio aos gritos e
latidos dos cães enquanto a chuva caía cada vez mais forte. Naquele
ponto do rio a travessia podia ser feita em poucos minutos pois a
distância para a outra margem era pouco mais de cinqüenta metros e
os animais podiam nadar com facilidade. No entanto, era melhor
apressarem-se pois se a chuva continuava a aumentar e ficaria cada
vez mais difícil embrenharem-se na mata.
- Não poderemos seguir a cavalo no mato após atravessar –
gritou um dos homens – neste ponto o mato é muito fechado.
- Vamos alcançar o local onde deixaram o barco – sugeriu o
delegado – de lá os cães tentarão encontrar alguma pista.

Sabugo estava com Wilson debaixo de uma pedra comprida e


inclinada próxima a algumas árvores grandes diante de um riacho na
mata. A chuva já havia parado totalmente a algum tempo mas o sol
das seis horas com certeza permaneceria escondido. O vigarista havia
retirado sua roupa e pendurado-a sobre alguns galhos para que a água
secasse, enquanto que Sabugo sorria vendo-o somente de ceroulas de
bolinhas.
- Porque não acendemos um fogo sr. Wilson – sugeriu.

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- Você acha que sou algum idiota, garoto? – retrucou o
criminoso que sentara-se e cruzara as mãos por sobre o joelho – se os
seus amigos estiverem atrás de nós, é certo que verão ao longe a
fumaça da fogueira.
- Não acho – discordou Sabugo – as copas das árvores são
muito altas e a fumaça se espalha antes de atingir o alto. Ainda mais
depois da chuva e com o vento que está soprando. Com certeza hoje
não temos lua e quem irá poder ver de longe alguma fumaça?
- Talvez tenha razão espertinho... – disse Wilson espantado
com a lógica devastadora de Sabugo. Olhava para os lados e tremia
de frio – que outro motivo você me dá pra acendermos uma
fogueira?
- Podemos ficar protegidos contra o ataque de animais
selvagens como aquela onça...
O vigarista olhou para os lados e levantou-se. Pois as mãos na
cintura e depois de alguns segundos atento aos sons da floresta disse:
- Vamos lá garoto, você venceu... procure alguma madeira
seca pra começar...
Em pouco mais de meia hora, já ardia uma fogueira de bom
tamanho. Sabugo aquecia-se diante do fogo e Wilson havia estendido
suas roupas próximas para que secassem com mais rapidez. A noite
estava chegando e cada um estava preocupado a seu modo. Wilson
imaginava uma maneira de retornar à toca da onça e recuperar o
produto de seu roubo, e Sabugo pensava o que talvez estivesse se
passado em sua casa com o seu desaparecimento, e como sua mãe
poderia estar no momento. Dentro de sua bolsa, sempre em suas
costas estava a arma do Sr. Franco pai de Alberto um de seus colegas
de aventuras. Talvez pudesse usá-la em um momento apropriado.

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Capítulo XVI

Os nossos bichos de estimação

A noite havia chegado de fato e a escuridão que cercava o


abrigo era cortada apenas pelos raios que explodiam no céu ainda
escuro. Wilson estava atento a todos os barulhos que vinham do
mato. Temia que se aproximasse do local um animal selvagem ou
algum homem da lei em busca de sua cabeça. Suas roupas espalhadas
próximas ao fogo secavam-se lentamente e Sabugo olhava para as
chamas que dançavam impelidas por lufadas de vento.
Na verdade, o pensamento do vigarista voltava-se para a toca
da onça. Lá estava a bolsa com todo os dólares que certamente
fariam dele um novo homem rico. Precisava voltar até lá.
- Senhor Wilson...
- O que foi garoto?
- Você já teve algum animal de estimação?
- Acho que sim... – respondeu o preocupado ladrão – e você?
- Meu primeiro animal de estimação foi uma Esperança...
- Ah, um gafanhoto esverdeado – sorriu Wilson – e porque
você escolheu a ‘Esperança’?
- Minha mãe me disse que a Esperança é a última que morre...
– Wilson Vigarista deu uma gargalhada enquanto atiçava o
fogo.
- E creio que ela ainda viva até hoje, não é mesmo?
- Na verdade, ela morreu mais cedo do que eu imaginava.
- Oh, que triste! E como aconteceu? Alguém sentou-se em
cima da Esperança?
- As galinhas comeram ela. – Sabugo estirou as pernas e
encostou-se na rocha que erguia-se sobre suas cabeças – Ela
escapuliu das minhas mãos para o terreiro. Quando uma

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galinha comeu uma das perninhas dela, ela tentou saltar mas
ia só para um lado. Daí foi presa fácil.
- Que triste fim para a esperança de alguém amiguinho –
sorriu Wilson olhando para o céu escuro que era cortado de
vez em quando por luminosos raios.
- Quando eu tinha uns três anos de idade me deram um
pintinho enjeitado. Eu sempre vivia com ele nas mãos e um
dia dormi com o pobrezinho na rede. Quando acordei, eu
tinha esmagado o coitado, até as tripas tavam saindo pela
bunda dele. – Wilson sorriu e Sabugo fazendo gestos para
demonstrar continuou – Eu na minha inocência tentei enfiar
de volta as tripas mas não teve jeito. O coitadinho morreu e
me deu muita dó.
- Então você desistiu de ter animais de estimação?
- Claro que não, Meu avô depois me trouxe um Jabuti. Sabe, é
uma espécie de tartaruga que vive nas florestas. Até bota
ovos, quer dizer a fêmea do Jabuti, a Jabota.
- Deixe-me adivinhar! Era o bicho de estimação ideal pra
você!
- Pra dizer a verdade não, era pesado e andava muito
devagar... algo que me consolava era o fato de que ele poderia
viver mais de cem anos.
- E o que aconteceu com o Jabuti?
- Imagine... um dia quando cheguei em casa da escola, meu
pai havia preparado o almoço com ele... Eu chorei durante o
resto da tarde inteira.
Wilson sorriu e observou:
- Acho que o problema é que seus animais de estimação
sempre fazem parte da cadeia alimentar de alguém.
- Eu tive um macaco prego. Meu avô pegou ele na roça e
trouxe pra mim. Ele era bem pequenino ainda.
- Ah, agora sim – exclamou Wilson – Boa escolha! Eu
sempre quis ter um macaco de estimação.

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- Vivia se balançando em uma rede que eu fiz pra ele dormir.
– Sabugo esticou as mãos na direção do fogo e continuou –
Mas ele morreu.
- Raios garoto! Alguém comeu ele também?
- Não... acho que foi a pior morte que um macaco já teve na
vida. Ele subiu em uma mangueira e foi brincar com uma
casa de vespas Tatú. Chamam-na assim por causa do formato
de sua casa que assemelha-se ao casco de um tatu. – Sabugo
fez uma sinal com o dedo indicador e o polegar da mão
direita – essas vespas são pretas e enormes deste tamanho.
Alguns chamam de Vespa-rei e suas ferroadas são terríveis. O
macaquinho desceu na maior gritaria sob as picadas.
- Não resistiu às picadas? – perguntou Wilson – morreu de
febre?
- Adivinhou sr. Wilson... ele morreu de noite e eu levantei de
manhã cedo e o enterrei de trás da casa. Até fiz uma oração
por sua alma junto com meu avô.
- Acho que você deveria escolher animais de estimação
menos exóticos não acha? Que tal criar um gato, um cachorro
ou um preá?
- Já tive um cachorro e faz bem pouco tempo. – Sabujo
apertou os lábios um contra o outro e depois de atirar uma
pedra na direção do riacho à frente, não conseguiu disfarçar
uma certa tristeza – ele foi assassinado...
Wilson exibiu os dentes perfeitos embora um pouco
amarelados pelo fumo.
- Assassinado? Não se assassina um animal... animais são
mortos...
- Não se diz que algumas pessoas são mortas? Então porque
não posso dizer que um animal é assassinado? – O vigarista
continuava achando engraçado e Sabugo continuou seu relato
– foi à noite na fazenda, ele latiu pra alguém que passava na
estrada. Deram um tiro na cabeça dele.
- Qual era o nome dele?
- Eu chamava ele de Bilú...

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- Então Sabugo, vamos fazer uma prece pela alma do Bilú...
não apenas pelo Bilú, mas por todos os animais de estimação
que você perdeu. Principalmente pela Esperança que foi
devorada pelas galinhas...
- Sr. Wilson sabe que animal de estimação eu queria ter?
- Não imagino...
- Quando eu entrei naquela caverna e vi os filhotes das
onças... pensei em pegar um pra mim...
- Certo, e porque você ao invés de correr com o bicho jogou-o
em meus braços?
- Se eu tivesse corrido com ele a onça me pegava...
- Daí resolveu me sacrificar...
- Claro que não... o que eu fiz foi salvar sua vida. A onça iria
preferir antes levar o filhote para dentro que lhe perseguir...
- É mesmo? – indignou-se Wilson – e porque você correu pra
longe?
- É que a outra onça poderia sair também...
- Garoto... – disse o vigarista balançando a cabeça – você é o
capeta em forma de gente... mas quanto a este desejo de ter
uma onça como animal de estimação, eu não lhe aconselho.
- Porquê?
- Você poderia se tornar parte da cadeia alimentar dela...
Sabugo achou graça. Wilson estava admirado dele e de sua
tranqüilidade. No entanto ainda preocupava-se com o fato de que
seria impossível sair do local naquelas circunstâncias. Precisava
recuperar o dinheiro roubado ou todo o esforço feito até o momento
não seria compensado. Por outro lado, o que seria do garoto? E que
garoto esperto aquele. Havia passado pouco tempo com o menino,
mas de fato não sentia nenhuma vontade de fazer-lhe qualquer mal o
que não era mesmo de seu feitio. Nunca havia matado ninguém.
Além disso, algo que incomodava era a idéia de ser encurralado ali
naquele local e morto por um bando de capangas do velho roubado, o
qual deveria estar tinindo de ódio. Agora, o medo de morrer era
muito mais forte do que a vontade de gastar os dólares do criador de
gado.

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- Onde você aprendeu tudo isso, garoto? – perguntou Wilson.
- Tudo isso o quê?
- Essa inteligência toda... quem te ensinou a falar assim?
Sabugo parou pra pensar um instante depois afirmou
categoricamente.
- É porque eu gosto de ler muito. Acho que não tem nenhum
livro na biblioteca do meu Professor que eu não tenha lido ainda.
Sabe, quando vou pra privada tenho de levar alguma coisa pra ler.
- Já leu a Bíblia alguma vez?
- Já, inteirinha... levei um mês.
- Um mês? – espantou-se Wilson – tem certeza?
Wilson fez um sinal de parabéns com o rosto e Sabugo
retornou ao assunto:
- Sr. Wilson... qual era o seu animal de estimação?
- Não era um animal... era um pássaro... aliás vários
pássaros... eu gostava de criar pássaros raros e colocava-os
em gaiolas. Eu tinha muitos pássaros presos... minha mãe não
gostava e dizia que algum dia iriam me pôr em uma gaiola
também... pra eu ver o que era bom.

Capítulo XVII

Como um pássaro na gaiola

Wilson Vigarista estava com os olhos muito pesados. Não


conseguia mais se manter acordado, afinal já era tarde da noite.
Sabugo estava encostado na parede rochosa e virado com o rosto
para o lado parecia estar sonolento e esgotado.
Seus pensamentos começavam a vaguear, as vezes estremecia
e abria os olhos fitando a fogueira. Aproveitava para atirar mais um
pedaço de pau e atiçar o fogo. Vestiu a camisa que já havia secado e

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encostou-se. Sua cabeça foi aos poucos se inclinando e seus braços
começaram a pender em um nítido estado de sonolência.
- Wilson não lhe disse? – gritou sua mãe apontando-lhe o
dedo indicador – eu disse que algum dia você iria pagar por ter preso
tantos pássaros.
- Mas mamãe – defendeu-se Wilson abrindo as mãos furadas
de espinhos – são meus bichinhos de estimação. Não os solte...
Sua mãe começou a abrir as portas de todas as suas gaiolas e
os pássaros presos começaram a sair voando em todas as direções.
Eram tantos que quase não se podia ver o telhado da casa.
- Não mamãe, Não solte! – gritava desesperado enquanto
tentava alcançar alguns com as mãos. Tentou segurar um dos
pássaros mas espremeu-o sem querer e suas tripas saíam pelo fundo.
Sua mãe segurou-o pelos dois punhos, amarrou-os e o levou em
direção a uma gaiola enorme. Ele tentou espernear mas ela segurou
suas pernas pelos calcanhares e juntado os tornozelos amarrou-os
lançando lhe dentro da jaula.
- Não mamãe, eu não consigo me mexer! Socorro não me
prenda! Eu nunca mais vou roubar, nunca mais!
Tentava libertar-se mas os braços e pernas não se moviam.
Estava preso dentro de uma gaiola gigante. Era difícil acreditar que
sua própria mãe estivesse fazendo aquilo. Gritava e revolvia-se de
um lado para o outro batendo nas barras da gaiola. Ao longe ouvia
cachorros latindo em sua direção. Ouvira também alguns tiros que
ecoavam no espaço e os sons dos cães que continuavam latindo sem
parar.
- Socorro! Não quero ficar preso!
- Sr. Wilson, sr. Wilson! – ouviu alguém chamar – pode
acordar agora, Já amarrei o senhor todinho!
- Sabugo?
Seus olhos foram abrindo devagar. A fogueira ainda ardia e
os olhos grandes e sorridentes de Sabugo surgiram diante dele.
Tentou procurar uma posição melhor mas caiu para o lado. Seus
punhos estavam bem amarrados e também seus pés. Wilson

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estremeceu. Tentou forçar as cordas com todas as forças que tinha
mas percebeu que estavam bem amarradas.
- Não vai conseguir se soltar Sr. Wilson – avisou Sabugo – é
um nó-cego que aprendi com meu avô. Nós brincávamos de amarrar
e nem ele conseguia se soltar quando eu fazia o nó.
- Seu miserável, me solte!
- Não solto!
O vigarista ouviu latidos de cães à distância e gritos. Os seus
sonhos se misturavam com a realidade e a situação no momento era
até mesmo pior. Não era possível que alguém tão esperto como ele,
com anos de experiência pudesse ter sido tão ingênuo e dormir no
ponto.
- Desgraçado! Onde conseguiu cordas pra me amarrar?
- Eu trouxe. Estavam dentro de minha mochila, mas não é só
isso. – Sabugo enfiou a mão dentro da mochila e retirou de lá o
revólver que ocultara por tanto tempo – se o sr. tentar se livrar já
sabe. Como diz meu avô, vai levar chumbo quente – Sabugo
levantou-se e erguendo para os céus a arma que segurava com as
duas mãos disparou duas vezes. O impacto dos disparos era forte e
quase seus braços eram jogados pra trás.
- O que está fazendo moleque! Vai denunciar nossa posição!
– Wilson tentou se levantar mas resolveu ficar quieto pois o garoto
sentou-se diante dele e apontou-lhe a arma.
- Você não teria coragem...
- Não mesmo, mas se for preciso... atiro no seu saco.
Os latidos e gritos eram cada vez mais perto e já se podia
ouvir barulho de facões abrindo mato e o farfalhar da movimentação.
Não demoraria muito para que os perseguidores do larápio
chegassem no local. Estava tudo realmente perdido, e
definitivamente não havia nada mais a ser feito. Tinha sido capturado
pela pessoa mais improvável, um garoto. Poderia realmente se odiar
por toda a vida por isso e com razão. Tinha cometido vários erros ao
elaborar e executar seu plano, mas o maior deles tinha sido conhecer
o garoto. Que diabo de garoto!

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O mato abriu-se de repente a poucos metros, estava escuro
mas rosnados e fungados denunciaram a aproximação de pelos
menos dois cães. Eles aproximaram-se aos latidos dos dois
refugiados debaixo da formação rochosa. Ao longe podia agora se
ver a luz de tochas e ouvir vozes e gritos de homens que se
aproximavam.
- Estão chegando! – animou-se Sabugo.
- Droga! Maldição! – berrou Wilson totalmente imobilizado.
Mal podia acreditar. Seus amigos não haviam falhado com
eles e tinham avisado as autoridades de seu paradeiro. Apenas mais
alguns minutos e poderia avistar o grupo de resgate chegando.
- Estou aqui! – gritou sob os latidos furiosos dos cachorros que
ameaçavam atacá-los – Estou aqui!
Fernão estava a uns cem metros de distância do local mas
ouviu bem claro o grito de seu filho. Esboçou um sorriso de alívio e
desabou na carreira com uma tocha na mão.
- É o menino! Ele está para este lado!
Foi uma confusão a notícia. Os homens desabaram no aceiro
de Fernão que mesmo correndo muito entre a vegetação
imprevisível, foi ultrapassado pelo velho Bimba o qual, segundo
alguns de seus amigos caçadores, mesmo tendo um só olho
enxergava no escuro.
- Eu vou atirar primeiro, saiam da frente!
Os capangas de Aureliano e alguns dos policiais começaram a
atirar para o alto e os cachorros que estavam seguros por eles foram
soltos. Seguindo os gritos que ouviam ao longe embrenharam-se no
mato com destreza inigualável. Wilson amarrado e deitado no chão
estava amedrontado e havia desistido de tentar alguma maneira de
fugir. Sabugo gritava o tempo todo e os cães não paravam de latir
nem um momento exibindo os caninos avantajados.
Os passos apressados de Bimba abriram os arbustos à frente
da clareira próximo ao riacho. Ele avistou a fogueira e os cães que
próximos aos dois latiam e rosnavam furiosos. Sabugo gritou
espantado com aquela aparição. Wilson vendo aquela figura que

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mais parecia um terrível pirata dos sete mares acompanhou-o em um
berro tenebroso.
- Vovô! – reconheceu Sabugo a pouca distância.
Mais dois cachorros surgiram da mesma direção e uniram-se
aos demais em um coro de eriçar os pelos de qualquer animal
acuado. Os gritos e passos apressados, a luz de tochas na escuridão e
o som de galhos partidos denunciaram a chegada de vários do grupo.
Seu Bimba aproximou-se com cautela apontando o rifle na direção
de Wilson que estava com os olhos arregalados mas arriscava-se a
falar:
- Este aí é seu avô? Mas de onde essa figura surgiu? De um
livro de faroeste?
- Você está bem? - perguntou o velho admirado da cena.
O delegado junto com Fernão tornaram-se visíveis entre as
árvores e aproximaram-se também com cuidado. Fernão correu na
direção de Sabugo que naquela altura estava também emocionado.
Fernão agarrou o garoto que estava abraçado ao avô. Os cachorros
aos poucos começavam a aquietar e parar de latir.
- Fernando... meu Deus que susto você nos deu...
Os demais homens chegaram e o delegado ao observar a
situação de Wilson não deixou de ficar muito surpreso. Começou a
sorrir desdenhosamente seguido por todos os demais. O vigarista fez
uma cara de decepção e ameaçou:
- Se me matarem não digo onde está o dinheiro!
- Não vai ser preciso. – disse um dos capangas exibindo uma
mochila conhecida de Wilson – já o encontramos a algum tempo
perto daqui em uma toca de onças. Foi uma grande surpresa pra nós.
- E as onças? Encontraram-nas também? – perguntou Sabugo.
- Vimos elas de longe sob a luz das tochas. Mas quando os
cães e o Seu Bimba correram na direção delas cada um berrando
mais feio que o outro, os bichos abriram no mundo.
- É mesmo – concordou o delegado – Seu Bimba levantou o
tapa olho e elas levaram o maior susto de suas vidas. Acho que até
agora estão correndo sem direção. Esqueceram até dos filhotes.

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Os homens começaram a gargalhar sob o olhar de reprovação
do velho pirata que reclamou.
- Ainda não atirei em ninguém ainda! Quem quer ser o
primeiro?

Capítulo XVIII

O passado sempre volta

A cidade estava em polvorosa. Pela manhã haviam chegado


os homens do grupo de busca. Entre eles estava Wilson que montado
a cavalo estava algemado com as mãos para frente. A procissão
impressionante parou os transeuntes e de um lado a outro da rua e as
pessoas paravam para observar. Quando alguns começaram a
aplaudir o grupo, todos os demais seguiram-nos em meio a gritos e
assovios. Sabugo estava no cavalo do delegado novamente, apenas
desta vez de maneira bem mais honrosa. Wilson ao seu lado
reconheceu:
- Ei garoto, você é o herói!
Correndo ao encontro do grupo Sabujo avistou alguns de sua
turma. Eles pulavam de alegria de vê-lo voltar são e salvo. Acenou a
eles do cavalo em uma pose de militar condecorado.
No entanto, as notícias não eram boas. Aureliano estava no
hospital desde o outro dia e sua situação havia piorado. Um médico
da cidade grande e seu próprio filho, tentavam restabelecê-lo do
choque que sofrera seguido de um infarto. No momento estava
consciente mas encontrava dificuldades até para falar.
Rosa a mãe de Sabugo encontrou-o à porta e o abraçou como
se estivesse recebido-o através da ressurreição. Aquela tinha sido a
noite mais aflitiva para ela e o momento em que se sentira mais
sozinha em sua vida. Tinha tido tempo para refletir sobre muitas
coisas.

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Tudo parecia bem e todos estampavam um sorriso de
tranqüilidade na face, menos ela.
- Está tudo bem, Rosa? – perguntou Fernão.
- Seu Aureliano está a beira da morte no hospital. Disseram
que o choque foi demais para seu coração.
Fernão parou e a fitou por alguns momentos. O criador de
gados era seu melhor amigo, lhe devia muitos favores. Olhou para o
filho que comia na cozinha com o avô.
- Eu vou até lá...
- Vou com você... – disse Rosa seguindo-o.
O casal saiu em direção à rua principal. Sabugo conversava
animadamente com seu Bimba e não havia notado sua saída.
Wilson o vigarista estava na prisão atrás das grades e pensava
em uma maneira de sair de lá. No entanto tudo estava perdido e não
via nenhuma solução para o seu caso. Mas talvez pudesse ter uma
chance, uma única. Virou-se para o oficial que estava no momento na
prisão e pediu:
- Amigo, poderia conseguir-me papel e tinta?
- Vai escrever para a mamãezinha? – zombou o policial
enquanto abria uma gaveta de sua mesa e retirava de lá um pequeno
bloco de papel.
- Não – sorriu Wilson – vou escrever para minha fada
madrinha e pedir pra ela me tirar daqui.
Sabugo logo após tomar uma refeição saiu à rua e chamava a
atenção das pessoas por onde passava. Todos estavam comentando
como ele tinha capturado o bandido que roubara seu padrinho. Na
verdade, Sabugo queria ver novamente a cara de Wilson. Embora
quisesse, não conseguia ter raiva dele, assim cruzou a rua principal e
depois de alguns metros alcançou o prédio da delegacia. A porta
estava aberta e o oficial o recebeu na entrada.
- Ora, ora! Chegou o capeta mais famoso da cidade – o
policial apontou para uma cela à sua direita e continuou – como pode
ver o ladrão ainda está atrás das grades.
- Posso falar com ele um pouco?

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- Claro que pode, mas não se aproxime muito da cela, não se
pode confiar nesta espécie de gente nem um pouco.
Wilson apareceu nas grades surpreso com a providência.
- Olá, amiguinho! Você foi mesmo enviado por Deus.
Wilson fez um sinal com o dedo indicador para ele se
aproximar um pouco mais.
- Estou precisando de um grande favor. Espero que não nutra
por mim nenhum ressentimento ou mágoa.
- Você mereceu estar aí - Sabugo aproximou-se com cuidado
sob o olhar atento do vigarista que passou a falar-lhe em voz baixa:
- Poderia entregar uma carta a uma pessoa, amiguinho? –
perguntou enquanto dobrava com cuidado a folha de papel que usara
para escrever.
- Para quem é a carta?
- Você deve conhecer com certeza... – explicou Wilson –
trata-se da sua madrinha Tereza, a esposa do sr. Aureliano. Esta carta
é um pedido de desculpas, uma vez que provavelmente vou
apodrecer na cadeia. – Sabugo olhou a carta por alguns instantes,
mas nada conseguiu entender. Wilson encostou-se na grade da cela e
continuou – Eu escrevi em Francês. Sabia que é falta de educação
olhar a correspondência alheia?
- Está bem, eu entrego a carta. Estou indo mesmo visitar o
padrinho que está no hospital por sua causa. Sabia que se ele morrer
você será o culpado?
- Me disseram, mas acredite não era minha intenção. Não
sabia que o velho sofria do coração. – Wilson fez um gesto de
despreocupado e concluiu – No entanto, torço para que não tenha um
infarto completo mais tarde.
Fernão estava diante do leito de Aureliano. Ele estava deitado
imóvel, apenas movia lentamente as mãos quando falava. O corpo
meio roxo era sinal de que sua situação era grave. Ítalo pousou a mão
sobre o ombro de Rosa e disse-lhe em voz baixa:
- Venha comigo Rosa, deixe papai falar a sós com ele – Ela
estava visivelmente emocionada e Ítalo a levou até uma sala separada

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onde continuou a falar-lhe – Ele me disse tudo sobre o que aconteceu
entre ele e a senhora no passado e do resultado do seu envolvimento.
- Então já sabe que meu filho é também seu irmão... –
concluiu a senhora sentando-se na cadeira que o doutor lhe ofereceu
– é uma vergonha muito grande para mim.
- Eu sei, para mim também. Mas tudo vai terminar da melhor
forma...
- Não sei como meu marido vai reagir quando souber. É algo
que nunca havia contado a ninguém.
- Nunca contou a ninguém além de meu pai? – perguntou
Ítalo.
- Contei ao padre durante uma confissão... não tenho
realmente coragem para contar ao meu marido, talvez jamais terei.
Tenho medo de perder os dois para sempre.
- Isso não irá acontecer. Mas quero lhe dizer que gosto muito
do rapazinho e me sinto feliz.
Na sala onde se encontrava Fernão, o fazendeiro reunindo
todas as suas forças esticou a mão para saudá-lo. Aureliano ficou
segurando a mão de seu velho amigo, enquanto balbuciava palavras
entrecortadas pela respiração ofegante.
- Espero que você me perdoe... que algum dia me perdoe
amigo...
- Nunca fez nada de mal para que eu possa lhe perdoar...
- Vou morrer deste ataque, Fernão. É hora de pagar meus
erros e vou no caminho de meus pais, não tem jeito...
- Não diga isso, patrão... ainda temos muitas coisas pra fazer
juntos aqui...
A mão de Aureliano amoleceu de vez e ele parou de falar, no
entanto continuava a respirar. Fernão saiu da sala e gritou pelo nome
de Ítalo que apressou-se a atender ao seu chamado.
- Desmaiou novamente. Ele falou com você , sr. Fernão?
- Sim, dizia que era para perdoá-lo e repetia isso vez após
vez.
- Não falou nada mais?
- Não... achei que estava delirando.

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- Deve ser o peso do passado sr. Fernão – disse o médico
segurando-o pelos ombros e levando-o até a porta – agora, deixe-me
com ele a sós pois vou lhe aplicar algumas injeções.

Capítulo XIX

O dia mais triste de minha vida

Rosa estava em pé diante da porta de saída. Segurou o braço


de Fernão e ambos dirigiram-se para a rua de volta para casa. Ela
havia decidido contar toda a verdade a seu marido embora não
tivesse idéia de como começar e do que aconteceria. Afinal, ele tinha
todo o direito de saber que Fernando, o Sabugo não era realmente seu
filho biológico. Achava no entanto que havia demorado muito tempo
para relatar toda a verdade, talvez fosse tarde para conseguir perdão
da família.
Tereza estava na área da varanda sentada, imersa em seus
pensamentos. Ainda não havia se recobrado do turbilhão de
acontecimentos que haviam passado por sua vida nos últimos dias.
Uma verdadeira tempestade. Seu marido a beira da morte a deixara
confusa e deprimida.
Ítalo e sua esposa havia haviam visitado-a e ela ficara
sabendo que Sabugo, o garoto que Aureliano gostava como a um
filho, era de fato mesmo proveniente das entranhas dele. Ela
lembrava-se da época em que estava noiva do fazendeiro e às vezes
vinha do Rio de Janeiro para a fazenda onde o velho vivia. Rosa que
tinha cerca de vinte anos de idade, era casada com Fernão e
trabalhava na casa do criador como caseiros. Foi exatamente naquela
época que os dois desenvolveram um relacionamento oculto e rápido
que resultou em um filho ilegítimo. De qualquer forma, Tereza
também havia sido traída e enganada durante todos estes anos.
Mas Tereza lembrava-se da traição que cometera a pouco
tempo com o estranho vigarista. Claro que durante a ocasião estava

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sob efeito do álcool, da droga e não estava totalmente lúcida. Mesmo
assim, sentia-se culpada porque algum sentimento havia se
desenvolvido em seu coração com relação ao galante vigarista. Mas
estava fervendo de raiva de seu esposo e depois de o visitá-lo no
hospital, voltara para casa pensativa. Ainda não tinha tido a
oportunidade de conversar com ele pois ainda estava muito mal. –
Tomara que morra, ia levar o seu segredo para o túmulo – pensava.
Estava observando o movimento da rua até notar a
aproximação de Sabugo ao longe. Ele veio diretamente para o portão
e o abriu devagar, vendo sua ‘madrinha’ sentada em uma das
cadeiras de talos na varanda com os olhos fixos nele.
- Olá, madrinha! – saudou ao aproximar-se.
- Olá, Fernando, já viu seu Pai... que dizer, seu Padrinho?
- Estou indo lá agora. Passei aqui para entregar-lhe essa carta.
– Sabugo enfiou a mão no bolso e retirou a carta enviada por Wilson
o vigarista – Está escrita em Francês e é um pedido de desculpas do
sr. Wilson que está preso no momento.
Tereza recebeu a carta meio surpresa. Não imaginava que
pudesse ainda ter contato com o homem que lhe causara tanta
pertubação. Era um papel simples escrito com tinta comum.
Diferentes do material que costumava usar. Levou o papel ao nariz
tentando sentir o perfume que ainda estava em sua lembrança da
noite passada. Seu coração bateu forte e ela desdobrou o papel que
estava completamente tomado por letras bem desenhadas. Como
poderia estar sentindo-se assim? Deveria odiar-se por isso.
O Francês era correto e muito bem escrito. Na cidade,
ninguém mais sabia falar o idioma exceto ela. Seus olhos corriam
devagar como que tentando imaginar todas as emoções contidas nas
linhas. Ela leu toda a carta e releu-a novamente. Depois deixou
pousar suas mãos sobre o colo e pôs se a olhar para o nada. Ficou
assim por alguns instantes até que Sabugo cortou o silêncio:
- Já vou então, tudo bem?
- Não... – Tereza levantou-se e colocando a carta entre os
seios continuou – Espere, sente-se um pouco e faça-me um favor.

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A ruiva entrou e depois de vários minutos retornou com outra
carta nas mãos. Esta estava escrita em papel importado, decorado e
perfumado. As letras embora escritas com pressa eram delicadas e
belamente desenhadas ressaltando sem dúvida todo o conteúdo da
mensagem.
- Leve ao Crápula do sr. Wilson na cadeia. Está em Francês
também. Esta carta confirma a aceitação de suas desculpas. No
entanto, aviso-o de que deve pagar tudo o que deve não importa
como. – Sabugo recebeu a carta que estava em um envelope e Tereza
chamando-o mais para perto acrescentou – vá até Aureliano pois ele
tem algo a lhe falar, mas não demore pois está muito mau e tenho
medo de que morra sem lhe ver...
Sabugo virou-se para o portão apressado. Fechou-o atrás de si
e começou a correr na direção do hospital.
Passou na delegacia novamente para entregar a carta enviada
por Tereza mas não quis entrar para ver Wilson. – Maldito seja –
pensava. Entregou a carta para o guarda de plantão e saiu com
rapidez para a rua.
Corria rápido e de seus olhos começava a correr lágrimas. Já
podia imaginar seu padrinho estirado em uma cama morrendo aos
poucos. Ia depressa e não ligava para as pessoas na rua que
chamavam o seu nome ou sorriam para ele. Virou à esquerda depois
de passar pela praça e avançou sem diminuir o passo. Avistou logo à
frente o Hospital particular de Ítalo, o filho de Aureliano que estava
na porta e viu-o aproximar-se.
Ítalo desceu as escadas e recebeu-o com um abraço. Havia
várias pessoas na entrada, algumas demonstravam pelas sua faces
extrema preocupação. Estavam ali algumas das pessoas mais
influentes da cidade. Uma das que choravam era a esposa do
Prefeito, a qual havia sido namorada de Aureliano durante a
juventude. Sabugo em soluços agarrou-se às pernas do homem de
estatura alta que embora não soubesse, era seu meio-irmão.
- Venha Fernando, venha rápido! – Exclamou o médico
puxando-o pela mão.

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Entraram no quarto onde estava o fazendeiro estirado. Uma
agulha perfurava-lhe o braço esquerdo e um líquido claro era
injetado em suas veias. Ele estava um pouco roxo e seus olhos
entreabertos. Sabugo nunca havia visto alguém em tal situação, e
nunca imaginaria de ver alguém que tanto gostava daquele jeito.
Aureliano esticou devagar a mão para Sabugo que aproximando-se
do leito a segurou. Já não era mais aquele aperto de mão forte de
outrora que inspirava confiança e determinação. Vê-lo ali estático fez
Sabugo lembrar-se de todas as vezes em que costumava estar com
seu padrinho. Seus olhos vazavam água o tempo todo e ele sentia
uma angústia sem igual. Virou-se para Ítalo e perguntou.
- Ele não vai morrer, vai tio?
O doutor nada respondeu, mas também estava visivelmente
emocionado diante da cena. Apenas deu as costas e saiu enxugando
os olhos com um lenço. Sabugo ficou ali sozinho sentado ao lado do
velho que puxou-o para si e pousou-o sobre seu peito. Aureliano
levantou a voz em um murmúrio:
- Meu filho... você está aqui...
- Estou aqui, padrinho...
- Não me chame de padrinho... – o senhor idoso deu alguns
gemidos e continuou a murmurar – me chame de papai... – Sabugo
continuava abraçado a ele e disse em voz baixa enquanto soluçava:
- Papai...
O braço de Aureliano foi afrouxando pouco a pouco,
enquanto em seu rosto formava um sorriso. Sabugo não sentia mais
forças nenhuma nas mãos de seu padrinho. Até a poucos instantes,
seus ouvidos colados sobre o peito dele ouviam o pulsar de seu
coração, mas agora não mais ouvia. Um grande medo tomou conta
dele. Levantou-se e balançou-o com os dois braços enquanto
chamava o seu nome. Aureliano não respondia. Sabugo posuou
novamente o ouvido sobre o peito dele mas não conseguia ouvir
nenhum sinal. Começou a chamá-lo e balançá-lo cada vez mais forte.
Ítalo entrou no quarto com outro médico. Ele afastou o garoto
de seu pai enquanto o outro doutor usava o seu estetoscópio. Depois
de alguns instantes virou-se para os dois e para os demais que

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aproximavam-se da sala e em uma voz entrecortada por um suspiro
concluiu:
- Não há nada mais que possamos fazer...

Capítulo XX

O dia mais feliz de minha vida

A porta da humilde casa se abriu e Rosa apareceu. Deu um


sorriso triste e abraçou Sabugo com lágrimas nos olhos. Ítalo estava
no portão com o chapéu nas mãos. Apenas acenou para os dois e
voltou apressado. Sabugo entrou devagar. Seu pai e seu avô estavam
sentados na mesa da cozinha observando-o sem dizer nada. Seu
Bimba fez um gesto com a mão e quando Sabugo aproximou-se, ele
o colocou no colo.
- Tudo vai ficar bem... – disse.
Os três estavam ali tristes e pensativos. Ninguém falava nada
mas seus olhos diziam e perguntavam muitas coisas uns para os
outros. Talvez alguns deles encontravam todas as respostas dentro de
si mesmos, falavam em silêncio.
- Filho, temos algo para lhe falar. – disse Fernão encarando-o.
Sabugo olhou para a mãe e para seu pai. Talvez já soubesse o
que eles queriam lhe falar. Não tinha certeza mas poderia ser de fato
o que pensava. Tudo era claro e insuportável para ele agora. Tremia
de apreensão mas poderia poupar seus pais de envergonharem-se
mais à sua frente.
- O padrinho pediu-me para chamá-lo de pai...
- Ele era seu pai, Filho – disse sua mãe emocionada – seu
verdadeiro pai.
Sabugo sentiu o mundo cair em sua cabeça. Não sabia se
levantava e saía, se corria para algum lugar tranqüilo para chorar ou
se chorava ali mesmo. Precisava se controlar.

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- Hoje é o dia mais triste de minha vida, vocês mentiram pra
mim..- disse Sabugo soluçando.
- Eu nunca menti pra você... disse Fernão também com os
olhos a sair água. Seu Bimba levantou-se e saiu para fora com um
cigarro de palha entre os lábios.
- Eu menti pra você – concluiu Rosa com muita dificuldade
pra falar – menti pra todos vocês. Mas eu era muito jovem, não tinha
madureza. De qualquer forma, creio que não fui uma boa mãe.. – ela
virou-se para Fernão que evitava fitar a esposa – fui uma má esposa.
Não mereço sua consideração – Rosa parou de falar e irrompeu em
choro. Depois de alguns instantes retomando a calma prosseguiu –
Mas hoje é o dia mais feliz de minha vida, porque estou tirando de
minhas costas uma carga muito pesada que já não podia mais
suportar.
- Não Rosa – argumentou Fernão – você não se livrou da
carga. Você apenas a colocou em cima de nossas costas. Nas costas
de todos nós.
- Você está sendo egoísta! – revidou Rosa – A carga não é
toda a verdade que falei. Mas o remorso que sinto por não ter
contado a muito tempo atrás. – o que você não quer me ajudar a
carregar eu mesmo levarei por toda a minha vida. No entanto não me
envergonharei nunca de meu filho.
- Isso mesmo, do seu filho... – gritou Fernão.
Fernão se levantou e se dirigiu para o quarto. Rosa e Sabugo
ouviam-no abrir o guarda roupa e retirar de lá algumas de suas
roupas e pertences. Ele vestiu-se, colocou várias coisas suas em uma
sacola de couro e fechou-a depois de pôr sua arma dentro. Colocou o
chapéu preto que gostava, vestiu o paletó pendurado em um cabide e
pôs-se de pé na porta da rua. Rosa segurava o rosto entre um pranto
sem fim. Os olhos de Fernão olhavam-na mas aos poucos foram
afastando-se para a direção da estrada. Sabugo viu o pai caminhar
para fora. Sua mãe o segurava e o apertava contra seu corpo. Seu
Bimba também observava de longe encostado na cerca, enquanto
fumava seu cigarro.

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Fernão continuou andando distanciando-se da casa onde tinha
sido feliz por tanto tempo. Pensava consigo mil coisas e lembrava-se
de tudo como se estivesse diante da própria morte. Só tive um filho –
pensava – nunca mais tive outro. Não posso mesmo ter filhos, por
isso Rosa nunca mais dera à luz. Havia sido infiel uma vez apenas.
Mas isso não vinha ao caso, nada o faria voltar ali nunca mais. De
vez em quando voltaria para visitar Sabugo e o velho Bimba. Rosa
que conseguisse outro alguém e o esquecesse.
- Papai! – escutou ao longe – não vá embora papai! –
Fernando corria atrás dele feito um louco aos prantos.
Fernão diminuiu seus passos e parou no início da subida.
Sabugo continuava a gritar por ele enquanto corria ao seu encontro.
Fernão continuava de costas para ele com a cabeça baixa. Continuou
a andar decidido, pensava: - Tem de ser assim.
- Papai! Não vá embora... Eu amo o senhor... – gritava o
garoto no aceiro do pai.
Parou enfim pois não suportava mais a comoção que se
formava em seu interior. Fernando o alcançava com seus olhos
grandes cheios d’água. O pai comovido não podia mais continuar.
Não poderia abandonar sua família, a fonte de sua alegria. Virou-se
então e estendeu os braços para receber seu filho acompanhando-o
em seu choro.
- Papai não vai embora, Não vai mais embora meu filho!
Rosa vinha vindo com seu Bimba. Ela correu ao encontro dos
dois e participou no abraço em família. Seu Bimba jogou o cigarro de
palha para o lado e não escondeu também uma lágrima que escorria
pelo único olho que possuía. Fernão que sempre recitava a oração do
Padre-Nosso à noite em companhia de Rosa, entendeu em seu caso o
significado da expressão que rezava: “..perdoai nossas ofensas assim
como perdoamos a quem nos tem ofendido.”

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Espere, ainda não acabou

Três dias depois do enterro do sr. Aureliano, Wilson


conseguiu fugir da cadeia. Alguns disseram que alguém facilitou sua
fuga. Afirmavam que em um descuido dos guardas uma pessoa não
identificada libertou o criminoso depois de drogá-los com sonífero.
De qualquer forma, todos sabiam que não tinha sido
coincidência o fato de que a Viúva havia também desaparecido com
todo o dinheiro de Aureliano. Ouro e jóias que havia no Banco e no
cofre de sua casa. O valor disso tudo ultrapassava a casa dos
trezentos mil dólares. Dizem as más línguas que ela depois de
comprar passagem, embarcou em um navio em Santos para Paris na
França onde encontrou-se com Wilson o vigarista.
As duas cartas em Francês foram encontradas, uma na
delegacia e outra na casa da viúva. Um professor um dia as traduziu
confirmando o envolvimento dos dois. As duas cartas e sua tradução,
encontram-se expostas no museu da cidade e servem de inspiração
para casais apaixonados.
Ítalo e Seu irmão George que havia vindo da américa,
resolveram dar a casa de seu pai a Fernão e Rosa além de terras e
gado. Fernão e Rosa sentindo-se solitários resolveram adotar um
bebê. Seu Bimba tornou-se capataz na fazenda herdada pelos filhos
de Aureliano e casou-se pela segunda vez aos setenta e poucos anos,
dizendo ele que no ápice de sua virilidade.
Quanto a Sabugo, George pediu aos seus pais a permissão
para levá-lo à América onde cursaria em uma grande universidade.
Assim, em um dia quente de agosto, ele embarcou em um navio para
Nova York. Recentemente Rosa leu uma de suas cartas que recebera
com alegria e saudades. Junto à carta havia uma foto dele com
George próximo à Estátua da liberdade. Sabugo disse na carta que
falava muito bem o inglês e que já tinha vivido muitas aventuras nas
terras do tio Sam.
Fernão abraçou Rosa e sorriram. Nada mais iria atrapalhar
sua felicidade.

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