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XXIV Encontro Anual da ANPOCS

GT 11 Pessoa, Corpo e Doença :


- Sessão 1 : Sofrimento Psíquico, Representações e Experiência.

Stéphane MALYSSE 1

« Imagens da loucura »

Atráves do espelho da normalidade.

1
Dr.em Antropologia pela E.H.E.S.S e Pesquisador-Visitante no I.S.C / UFBA.

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Este artigo propõe uma reflexão sobre o estatuto heurístico do visual do corpo em
Antropologia seguindo basicamente dois roteiros de discussão: o primeiro, pretende
mostrar qual foram as relações entre as imagens do corpo2 e a loucura ao longo das suas
histórias respectivas, enquanto o segundo baseia-se sobre minhas experiências de pesquisa
de campo no Hospital Juliano Moreira de Salvador3, uma tentativa de delinear as
possibilidades de desenvolvimento de uma antropologia visual do corpo aplicada ao vasto
campo da doença dita “mental”. Meu objetivo imediato, na realização deste trabalho de
campo durante seis meses no H.J.M., foi conhecer o aspecto audiovisual do mundo social e
material do internado em Hospital Psiquiátrico, na medida em que este mundo é
subjetivamente visto e vivido por ele. As imagens da loucura que são, como diz Foucault,
“conhecidas”, fazem parte da pesquisa a partir do meu próprio olhar subjetivo e passando
para o outro lado da normalidade através da produção destas imagens procurei abrir um
espaço de reflexão interdisciplinar sobre a loucura (Psiquiatria, filosofia, psicologia,
psicanálise, semiótica, antropologia, hermenêutica...) para mostrar a proliferação de
discursos e de representações que ela suscita. Para renovar o discurso sobre a loucura,
“uma das possibilidades seria que nos dirigíssemos ao paciente despojados do corpo de
conhecimentos, ou seja se submetter a narrativa dos delírios, das performances. »
(M.Veras, diretor do H.J.M) Numa perspectiva de pesquisa de campo aberta por Goffman,
considerei que “qualquer grupo de pessoa desenvolve uma vida própria que se torna
significativa, razoável e normal, desde que você se aproxime dela e que uma boa forma de
conhecer qualquer desses mundos é submeter-se à companhia dos eus participantes, de
acordo com as pequenas conjunturas a que estão sujeitos” (1973). Porém, esta tentativa de
observar a “loucura” visualmente não pretende explicar a loucura em si, mas, numa
perspectiva reflexiva, procurei compreender e interpretar a minha própria interação com um
grupo de pacientes do H.J.M, estudando as visões que uma pessoa “normal” podia obter da
loucura ao mergulhar pela primeira vez no seu universo. Meu trabalho de campo se
concentrou na área feminina e particularmente nos locais livres – definidos por Goffman

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Uma imagem do corpo designa uma representação fotográfica ou vídeografica do corpo humano e é considerada como
uma representação social do corpo, uma visão desse “real-cheio de irreal” (Merleau-Ponty) compartilhada socialmente.
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No Juliano Moreira encontram-se asilados 168 pacientes separados por sexos: 102 do sexo feminino e 66 do sexo
masculino. O hospital, sob a direção do psicanalista lacaniano M. Veras, realiza mensalmente mais de 3000 consultas. Os
pacientes ficam em media um mês no Hospital que é o único hospital da Bahia com uma emergência funcionando 24
horas. Cf Jean Wyllis, Correio da Bahia, 13/08/2000.

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como espaços em que o internado pode ter livremente uma certa amplitude de atividades
proibidas. Nesse “não-lugar”, um pátio ao ar livre no H.J.M, minha interação com as
pacientes tomou a forma de sessões de gravação audiovisual, nas quais a própria interação
ocupava o papel central da dita “observação-participante”. Basicamente, o roteiro das
filmagens foi seguindo os meus encontros com as pacientes e logo no início, várias
questões surgiram da própria situação de observação: Como ver a “loucura” e pensá-la
em imagens ? Como vejo este sofrimento, interagindo com essas “pessoas” e entrando na
visão do mundo delas ? Como ver ou distinguir o normal do patológico, numa fotografia
ou num filme de vídeo ?

1. Imagens da psiquiatria no século XIX :


Do olhar clinico ao olhar antropológico.

“A visibilidade é uma armadilha.”


Michel Foucault

Albert Londe, « Contracture hystérique », 1888.

A Antropologia, e antes dela, a Etnografia, sempre foi fascinada pelos aspectos


visuais dos outros corpos, do corpo do Outro. Até 1950, o corpo era considerado como o

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melhor meio para compreender as diferentes culturas, para estudar “cientificamente” as
diferenças étnicas e éticas que sobre ele se espalhavam. A partir desse momento
epistemologico, dessa visão do corpo como chave para entender o Outro, as novas teorias
raciais aparecem nas Ciências Humanas, assim como nascem duas novas disciplinas: a
antropologia física e a antropometria. Sem dúvida, essas novas visões do corpo do Outro,
criando a noção de “tipo”, influenciaram profundamente os primeiros usos da fotografia na
área da psiquiatria. Enquanto o corpo era visto como uma prova visível das diferenças
humanas, os cientistas da época pensavam o corpo como “sintoma” e acreditavam que era
através da aparência física do corpo que as diferenças psicológicas se manifestavam.
Pensando e vendo o corpo humano como mero indicador visual da emoção, como sintoma
da alma, os científicos da época, fascinados pela fotografia, acreditavam no caráter
científico do seu uso pela Medicina.

Bourneville e Regnard, 1878.


“A fisionomia exprime a felicidade; ela vê um ser imaginário que segue do olhar”

No século XIX o olhar sobre doentes e sobre a doença mudou assim como mudaram
as idéias e as representações do corpo. Os psiquiatras do final do século XIX, vendo
também o corpo como “palco” no qual os conflitos interiores se tornavam visíveis
pensavam poder traçar visualmente o perfil da personalidade e da fisionomia do “louco”.
Nas primeiras colaborações entre fotografia e psiquiatria, na metade do século XIX, “a
fotografia não servia apenas à identificação dos pacientes, mas podia ajudar a conhecer os

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sintomas, elaborar as tipologias nosográficas dos doentes e ser utilizado como substrato
terapêutico”(Samain,1992). Na verdade, o olhar clínico que aparece, no inicio do século
XIX, faz com que a medicina não queria somente entender, mas também ver . Neste
contexto geral de « visualização » das doenças (Doenças de pele, Raios X,
Malformações...) a fotografia era geralmente vista como uma ajuda preciosa para descrever,
nomear e classificar as diferentes doenças. Mas, “o corpo sígnico, portador de mensagens
passíveis de interpretação por parte do medico e do paciente, depende também das
representações sociais sobre o corpo e a doença” (Ferreira, 1990), no contexto médico do
final do século XIX, a psiquiatria não deixou de ser profundamente iludida pela magia da
fotografia.

Na vasta obra fotográfica de Charcot por exemplo, o papel da visualidade se destaca


obviamente : a sua visão do uso da fotografia em psiquiatria como “decifração” das
doenças mentais ajuda a entender o modo como a psiquiatria reagiu a esses distúrbios e
construi rapidamente as suas classificações baseando-se na fotografia. O uso da fotografia
em psiquiatria sempre procurava identificar os vários « tipos » de alienação, tal como o
Duchenne de Boulogne tentou construir um verdadeiro tratado das emoções humanas «em
imagens ». Registrar, classificar e construir uma carta « visual » das doenças foi o grande
desafio da ciência médica do século passado, não é por acaso que as primeiras pesquisas
sobre as relações entre arte e psiquiatria datam do final do seculo XIX, quando as
manifestações artisticas dos doentes, utilizadas para classificar os doentes, eram vistas e
interpretadas através das ditas categorias científicas.

Toda a iconografia fotográfica médica, tanto do Hospital da Salpêtrière que do


Hospital Saint-Louis, demostra que as experiências com a fotografia eram profundamente
orientadas por uma visão medical e um exame objetivo dos pacientes. Querendo « fixar nas
suas crises e nos seus delirios as mulheres... », Charcot pretendia registrar pela fotografia a
evolução das doenças mentais, sem ver que através da imagem, a histeria se tornava
estética. Trabalhando no serviço fotográfico de Charcot, Bourneville e Regnard buscavam
« isolar », em imagens quase fantásticas, os movimentos da alma repercutidos sobre os
corpos das histéricas. Nessas imagens, o papel da fotografia era atestar o « incrível » ; o

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texto que acompanha as fotos exprime uma emoção que já se encontra bem além da mera
observação científica : « Os olhos são totalmente convulsados em cima e na direita ; a boca
aberta deixa sair uma lingua cianosada : uma expressão demoníaca. » (Bourneville e
Regnard, 1878 )

Bourneville et Regnard : « Retratos de histeria, 1875-78 »

Nesta « imagem da loucura », as categorias estéticas do maravilhoso ao fantástico, do


lindo e do estranho se catalisam na representação acabada da cabeça da medusa que
paralisa nosso olhar sobre a loucura.

Georges Luys : Estudos de psicologia experimental, 1887.

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A partir da relação ambígua entre a aparência e a natureza das doenças, essas
representações “medicais” das doenças “mentais”, sem consciência das “armadilhas da
visibilidade”, caíram logo na ilusão de uma fotografia-médica. De fato, essas experiências
questionam a própria natureza das imagens, pois o quê é uma imagem ? Um elemento
importante do relatório médico ? Um objeto real manipulado ? Uma construção
imaginária ?

Essas figuras da loucura são figuras da dor, pois o sofrimento do Outro não é um
mero discurso, ele aparece nas imagens que mostram como os medicos da época estão
longe de imaginar o quanto suas próprias presencas influenciam as cenas que eles
fotografiam. O processo complexo de criação de imagens da loucura não confrontam
direitamete o médico-fotógrafo e o paciente mas sim o artista-fotógrafo e o paciente, o que
é bem diferente. Captar ou produzir uma imagem é também ver, ouvir e participar de uma
história individual e nesse sentido, as imagens não servem para descrever, caracterizar ou
identificar os sintomas da loucura, mas para ilustrar, mostrar e acompanhar um discurso
antropológico sobre a loucura incorporado pelo pesquizador.

Pois, a imagem em si, como o corpo, é uma ficção, é “uma realidade revelada”
(Fachel Leal,1993) que obedece mais a subjetividade do que a objetividade concernente à
realidade: tanto a “imagem” quanto o “corpo” não podem servir de “prova científica”numa
pesquisa antropológica. As imagens do corpo, meras representações ou visões de uma dada
noção do corpo não chegam a ser representações antropológicas do real “corporal” mas se
aproximam do que R.Barthes chama de “figuração” do corpo (Barthes, 1975:55). Quando
ele diz que “a fotografia dispensa os seus detalhes, que são a matéria prima do saber
etnológico”, acrescentando que é “justamente pelo fato de ser um objeto antropológico
novo que a fotografia deve escapar às discussões ordinárias sobre a imagem”
(Barthes,1980), ele tenta explicar justamente esse duplo desafio que constitui o uso das
imagens fotográficas nas Ciências Humanas. Para escapar as armadilhas das ilusões do real,
é preciso se livrar das discussões ordinárias sobre a imagem, quer dizer libertar-se da
tradição do olhar fotográfico como registro do real e pensar novamente a imagem,
descobrindo o seu valor de mero índice. Philippe Dubois explica que “como índice a

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imagem fotográfica não teria outra semântica que não sua própria pragmática. Sua
realidade primordial nada diz além de uma afirmação de existência. A foto é em primeiro
lugar índice. Só depois ela pode tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo)”
(1999:53). Essa nova visão da imagem, aplicada às imagens do corpo abre as perspetivas de
uso das imagens para falar dos corpos, corpos dos outros ou outros corpos... Através dos
discursos antropológicos, o que era índice (uma imagem de corpo) pode tornar-se ícone,
facilitando a descrição micro-funcional e comunicando sobre as culturais visíveis do corpo
(o que pode ser visto do corpo numa dada cultura). Assim, nesse primeiro passo, podemos
estudar as iconologias de uma dada cultura corporal, considerando as imagens do corpo que
circulam numa dada sociedade como representações sociais que religam os indivíduos à
sociedade, o índice ao símbolo.

Ainda hoje, a fronteira que separa “Corpo” e “Imagem”, organizados em dois universos
acadêmicos distintos nas Ciências Humanas e Sociais, parece-me prejudicar à própria
pesquisa antropológica no sentido que essa divisão artificial não ajuda a entender a
importância atual do olhar na reunificação do saber antropológico. Como diz David Mac
Dougall, “se a antropologia sempre se interessou pelo visual, seu problema sempre foi o de
saber como tratá-lo” (1997), e esse problema aparece intimamente ligado aos que surgem
com a “noção de pessoa” e de “técnicas corporais”, conceitos apresentados por Marcel
Mauss em 1950 frente a Escola de Psicologia Francesa. Sem me perder nos labirintos da
uma antropologia « mental », procurei mudar o meu olhar sobre a loucura e mostrar até que
ponto a proliferação de discursos sobre a « loucura » aparece como uma prova que ela é um
« fato social total » (Mauss, 1950) e que ela deve ser vista tanto como indíce de uma
situação de queda social quanto como símbolo do « social ». Pois Canguilhem ja defendia a
tese do que os problemas das estruturas e dos comportamentos patológicos humanos serão
mais facilmente compreendidos, não isoladamente, mas se tomados como um todo único.
Assim, após contextualizar a minha pratica imagética na aréa da « loucura », tentarei, numa
segunda parte, abordar as técnicas corporais, definidas como « montagens fisio-psico-
sociológicas de várias séries de atos » (Mauss, 1950) no contexto a-normal, extra-ordinario
e extra-cotidiano da loucura.

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2. A “loucura” na tela do corpo:

Interações e revelações.
«Quando os normais e os estigmatizados chegam a se encontrar frente a
frente, e sobretudo quando eles tentam comunicar-se e conversar, acontece uma
das cenas primitivas da sociologia, pois, nesse momento, as duas partes
presentes são obrigadas a lidar direitamente tanto com as causas quanto com os
efeitos do estigma. » E.Goffman.

Em Ciências humanas, o pesquisador sempre tem algumas hipóteses de partida que


lhe permitem não se perder nas suas numerosas observações de campo. Ele sempre precisa
de um fio condutor, de algumas pistas para encostar seu caminho no campo com seus
objetivos de pesquisa. Na minha prática da Antropologia, os corpos e suas imagens me
servem de catalisador de sentidos, de eixo central de observações diretas e indiretas. A
antropologia visual me parece ser a mediação ideal para estimular um novo olhar sobre o
corpo e sempre andei no campo procurando construir um corpus de imagens para melhor
apreender os detalhes significativos e simbólicos dos seus usos sociais. Orientado nessa
metodologia por David Le Breton, procurei pensar o corpo como “uma ficção cultural e
culturalmente operante” e considerá-lo como “observatório privilegiado de uma contexto
social particular” (Le Breton, 1992).

Neste trabalho o « corpo » surge no ponto de encontro e de tensão que divide a


Ciência da Saúde da Ciência Humana, e pensando o corpo como “uma pista de pesquisa e
não uma realidade em si”, David Le Breton convida a “usar o corpo menos como
fornecedor de certezas ou provas científicas que como foco de pesquisa”. Influenciado
também pela fenomenologia da visão de Merleau-Ponty, considerei “meu corpo como meu

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ponto de vista sobre o mundo”, a “sentinela discreta” dos meus atos de observação e como
“um entrelaçamento de visões” antropológicas. A partir desse momento, percebi claramente
que existem várias maneiras do corpo ser corpo e ser visto, da consciência ser consciência,
do homem ser homem, pois as noções de corpo e de pessoa estão intimamente cruzadas e
ligadas. A Antropologia Visual do Corpo deve assim permitir revelar e analisar as diversas
maneiras de ser « incorporado » numa dada sociedade e as diversas funções das imagens
nesses processos de incorporação. Aplicada ao campo da “doença mental”, essa nova
metodologia permite estudar as representações sociais e visuais da “loucura” e abordar as
relações entre as noções de “pessoa”, “corpo” e “doença mental” com um novo olhar. Se
vemos o corpo como um “espelho do social”, como considerar suas imagens ? Como
pensar as relações contextuais que se estabelecem entre o Visual, o Corporal e o Cultural ?
Como analisar antropologicamente as representações em imagens dos corpos ? Em
Antropologia, as representações “em imagem” dos corpos individuais vão de encontro a
essa dupla ambigüidade heurística, a esse duplo desafio da interpretação: o que fazer de
imagens que mostram somente uma parte ínfima do “eu” visível de uma pessoa e da cultura
na qual ela se incorpora ? Como mostrar a loucura na tela do corpo ? Como pensar uma
hermenêutica visual das representações da loucura ? Assim, vendo o corpo na sua
ambigüidade fundamental e como diz Merleau-Ponty, percebendo-o como uma
concretização do “gênio do equivoco” próprio ao homem, é preciso repensar o estatuto
heurístico das imagens do corpo, vendo elas como um duplo objeto desvanecendo, para
tentar constituí-las como verdadeiros espelhos das realidades socioculturais do corpo, e
mais ainda no caso de “imagens da loucura”.

No contexto da minha interação pessoal com a loucura no H. J. M, resolvi considerar


os movimentos do corpo como uma tela de projeção própria, reveladora da afetividade e da
simbólica corporal que estava em jogo nesses encontros. Le Breton explica que a
“simbólica corporal” varia com a condição cultural, a condição social, a idade, o gênero, a
historia pessoal e o contexto de interação, e, no caso da loucura, esse fato social total, é
toda esta simbólica corporal que revela a afetividade mútua que entra em jogo no encontro
do pesquisador com as pacientes, tornando visível a “loucura” . No caso específico da
simbólica corporal anormal, “a dissociação entre os movimentos exteriores do corpo e o

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curso das idéias não indica ao certo que a unidade entre o corpo e a alma se desfez, nem
que cada um dos dois reencontra, na loucura, sua autonomia. Sem dúvida a unidade está
comprometida em seu rigor e em sua tonalidade” (Foucault,1973:231). Considerando o
corpo como tecido social de inscrições simbólicas, no caso da loucura, aparece com clareza
que o corpo deixa de responder aos poderes da auto-regulação social para ser submetido
direitamente aos sistemas sociais de regulação oferecidos pelo Hospital. Considerando a
loucura como um tipo de performance “social”, percebi que as diferenças vistas nos usos do
corpo mostram uma falta de rigor e de tonalidade “social”, um tipo de des-contextualisação
e des-construção dos atos e dos gestos mais elementares da vida em sociedade. Quero
mostrar agora como o “louco” vive numa relação fantasmática com o seu corpo, se
tornando plenamente este “real cheio de irreal” do qual falava Merleau-Ponty.

Mas antes de considerar a loucura como performance, me parece importante analisar o


ato de filmar “a loucura” como performance antropológica. No seu ensaio sobre a loucura,
Foucault convida o leitor a uma « absoluta redescoberta do visível » e foi um pouco essa
experiência que tentei fazer no H. J. M., pois sem saber nada da loucura, comecei a
perceber e a pensar a imagem do louco não como a imagem que olhava mas como a
imagem que me olhava e que me interpelava na minha própria “normalidade”. Procurar ver
como o olhar do louco é capaz de inquietar o edifício da nossa visão do mundo constituíu o
meu desafio neste vasto campo de pesquisa. Finalmente, a idéia era de desenvolver um
olhar-espelho, que fosse o avesso do olhar-panóptico : “O panóptico é ume maquina de
dissociar o par ver-ser visto : no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver, na

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torre central, vê-se tudo sem nunca ser visto” (Foucault, 1977:180 ). Na minha experiência
de filmagem no H.J.M, era totalmente impossível dissociar o par ver-ser visto, em função
disso a pesquisa tomou a forma de uma interação pessoal com a “loucura”. A meu ver, a
combinação dos modos de interpretação documentários e reflexivos abre diferentes
dimensões de significados da “loucura”, nos quais as imagens podem ser analisadas e
interpretadas sem cair na ilusão médica de uma classificação visível que ajudaria entender
a loucura como “doença”.

Nesse sentido, meu trabalho focalizou-se mais nos “efeitos do estigma” que na
interpretação das causas, mesmo se elas transparenciam em todos os momentos da minha
“participação-observante”. No campo, a lógica da negociação entre o “vídeo-maker” e os
protagonistas das imagens é sempre um modo “negociado” de ver e ser visto : a primeira
vez que cheguei, com a câmera na mão, na área feminina do Hospital J.M., queria pôr em
pratica a “antropologia compartilhada”, desenvolvida na Africa por Jean Rouch, que
consiste em envolver os protagonistas nos processos tanto do roteiro quanto da filmagem.
Chamando todas as mulheres para participar do filme, me encontrei rapidamente invadido
tanto do lado da filmagem (o campo da câmera e o espaço sonora ficavam tão cheios que
não conseguia nem ver nem entender nada) que na minha própria privacidade corporal (o
meu corpo tornou-se foco das interações e tive que sair correndo...). Foi então, a partir
dessa primeira interação com a “loucura” que tomei consciência do fato de que o meu
trabalho antropológico nesse campo envolvia, numa totalidade “pesquisante”, o corpo do
pesquisador, os olhares, os gestos e todas as interações verbais que iam acontecer, muitas
vezes sem o meu próprio domínio.

Gravando tudo (imagens e sons), comencei a dar uma atenção minuciosa aos fatos e
gestos (os meus e os delas), pois, o material comportamental, visível nas imagens, é feito
de gestos, olhares, poses e atos verbais que cada um comunica, intencionalmente ou não, na
situação de interação na qual ele se encontra. Esses elementos eram considerados como
signos externos de uma orientação e de uma implicação com a loucura , como elementos
significativos da minha própria interação com a loucura. Esse retorno do olhar produz um
efeito de conhecimento e permite estudar as técnicas pelas quais um indivíduo orienta e

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controla as imagens que os outros fazem dele, pois a imagem do corpo é feita e
transformada pela imagem do outro. Georges Devereux, etno-psiquiatro francês, convidava
os pesquisadores em ciências sociais à não deixar de analisar de maneira introspectiva as
suas « contra-transferências », assim chamando os envolvimentos pessoais, íntimo e
cultural no campo das suas pesquisas e das claras deformações que delas resultam
(Devereux,1980 :50). Me parece, que neste conjunto de elementos calidoscópios, ele teria
incluído sem dúvida os contra-olhares, olhares de quem não pode entender ainda o que
seus olhos vêem, mas que já está mergulhando na « carne-do-mundo » como diz Merleau-
Ponty, porque ele está participando de uma troca significativa de olhares, um diálogo
visual.

“Vamos que lhe mostro tudo, embora, dá licença.... me segue !”4 Enquanto estava
filmando5, as pacientes sempre me seguiam, ou melhor, me guiavam nas suas loucuras, nos
primeiros momentos senti até que ponto seria difícil controlar meus gestos, tanto os da
filmagem quanto os da interação com elas. As primeiras perguntas eram sempre as mesmas
: “Quem é você ?” “Da onde você vem ? ” “O que você faz aqui ? ”. Para dizer a verdade,
explicava que não era nem médico, nem dentista, nem psicólogo, que era um pesquisador
francês e que estava lá para ver e filmar o cotidiano delas. “Você é um rei, um gato, um
anjo...” “Como você é bonito, você é radiante !” : as respostas delas me mostraram que antes

4
Os textos em itálico e negrito são extratos dos meus diálogos com as pacientes do H.J.M
5
É importante salientar que filmava sempre sozinho e que a camera digital que usava não somente me permetia uma
proximidade e expressividade corporal como liberava meu olhar e meus gestos do ato de filmar.

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de tudo, eu era um homem e que já não podia mais esquecer que a observação-participante
é a exposição do seu próprio corpo e da sua personalidade aos imprevistos do campo, como
dizia Devereux, « o sexo do observador joga um papel importante na pesquisa ».

3. A loucura como performance :

As patologias das interações sociais.

“ A performance é o que quebra as fronteiras entre as disciplinas e linguagens,


um olhar sem compromisso em relação a todos os movimentos anteriores.”
Richard Schechner

Para E. Goffman, a totalidade das atividades de um indivíduo que acontece durante o


tempo no qual ele está em presença de outros indivíduos e que produzem um efeito,
qualquer que seja, sobre eles, pode ser designado pelo termo performance. Procurando
estudar « as implicações corpóreas daquilo que se denomina doença mental, parece que a
imersão no estado da loucura envolve experiências e performances corporais que não são
reconhecidas pela comunidade » (V.Jucá, 2000). Na verdade, é possivel ver a « loucura »
como um efeito social do « louco » sobre os normais, pois em todo caso, somos nós, os
« normais » que definimos o outro, e como diz C. Canguilhem « O alienado não é tanto

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desviado, mas sobretudo diferente e é pela anomalia que o ser humano se destaca do todo
formado pelos homens e pela vida » ( 1966:89)

“Sou bonita, tio ?” Durante as interações com as pacientes do J.M., uma grande parte
dos diálogos giravam em torno da apresentação de si, e era óbvio que elas tentavam
controlar a minha impressão delas, sobretudo em frente ao que elas chamavam de “televisão
pra ver”. Através dos chamados rituais de apresentação, elas demostravam que tinham total
consciência do fato de serem filmadas, e muitas se preparavam para entrar em cena:
pentear-se, arrumar-se, limpar-se, colocar brincos, colares, maquilagem.... eram muitas as
estratégias de apresentação que eram atuadas antes e durante os momentos da filmagem. A
estética corporal e a beleza apareceram como um foco de atenção das mulheres, fiquei
impressionado pela quantidade de acessórios (bolsas, brincos, roupas, pentes, batom,
toalhas... ) que elas utilizavam para lidar com a dificuldade de cuidar do seu corpo e da sua
aparência dentre desse universo. O cuidado com a “fachada pessoal” demostra até que
ponto as relações entre beleza e adoecimento são profundas. No caso desta pesquisa, o
olhar-espelho da câmera vinha acentuar ainda mais essa busca de uma boa imagem de si,
pois assim que o doente entra no H.P algumas mudanças ocorrem na sua carreira moral : a
imagem que ele tem dele mesmo e a relação com sua rede social se transformam
irremediavelmente.

“Ao tirar as vestimentas do antigo eu – ou ter suas vestes arrancadas – a pessoa passa
a não sentir necessidade de uma nova roupa e nova audiência diante da qual se vesta. Ao
contrário, pode aprender, pelo menos durante certo tempo, a apresentar, diante de todos
os grupos, as artes amorais do despudor.” (Goffman,1973) As mulheres que queriam ser
filmadas, as que se comunicavam comigo, não eram aquelas que estavam “dobradas sobre
si mesmas” (dormindo ou se escondendo da câmera...), mas sempre as mais animadas,
ativas e “performáticas”, as que procuravam dobrar-se na própria interação. Nestes casos,
“as artes amorais do despudor” eram encenados com muita ostentação e os limites entre
apresentação de si e provocação sexual se apagavam para colocar o observador na situação
do embaraço da nudez. Rapidamente, as mulheres mais provocativas entenderam que o meu

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próprio olhar não era tão importante quanto o campo da câmera e começaram a inventar
estratégias para entrar, a qualquer preço, no meu campo de visão.

“Roubo meu pente, meu pente... (chorando) ... a mulher tomou meu pente...” Com toda a
ênfase que esses cuidados da aparência tomavam, esses mesmos acessórios de beleza eram
muitas vezes pretextos a brigas. Dentro do Hospital, o paciente não pode mais ter acesso a
sua « fachada pessoal », suas coisas e seus bastidores pessoais, observei que as mulheres
criavam estratégias e acessórios de substituição para construir uma nova imagem delas,
uma aparência que podia mudar a cada visita que eu fazia. As dificuldades em resgatar sua
aparência e em cuidar de si, explicam uma grande parte das tensões entre as pacientes :
brigas que podem parecer como regressões infantis a primeira vista mas que devem ser
interpretadas como meio de construção da imagem de si neste não-lugar, como lutas pela
aparência. Mas, paradoxalmente, as brigas eram bem mais importante quando as pacientes
queriam “se ver” no espelho da minha câmera, quer dizer, para conseguir a minha atenção .
“O homem não é seu !” As minhas interações sempre criavam um clima de ciúme de atenção
e minha presença tornava-se conflitante : “Me entrevista !” “Tira meu retrato ! ” “Filma
minha mão !”. Nestes casos, os alo-contatos de agressão, os insultos e outras queixas
intensificavam-se : ‘“Satanás, diabo, pesta, suja, fedorenta, criminosa, sapatona, assassina,
maconheira, chupadora...”. A partir da imagem que elas construíam , umas das outras, se
formava por oposição a imagem que elas queriam passar para câmera, para meu ponto de
vista.

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“O internado tende a criar ume historia, uma tática, um conto triste, um tipo de
lamentação e defesa e que conta constatemente a seus companheiros, como uma forma de
explicar a sua baixa posição presente.” (Goffman,1973 ) Aqui no H.J.M, as mulheres, nos
seus delírios confessionais, me contavam suas histórias tristes, suas versões da realidade
delas e respondiam espontaneamente à pergunta que nunca lhe fazia direitamente :
- “ O que você faz aqui ?”
- “Estou aqui para trabalhar !”, “ Eu sou psicóloga e estou aqui para ajudar as pessoas
deficientes”.“ Meu Pai de Santo me mandou brincar de Oxalá, lavou a minha cabeça e tirou
tudo...” . “Sou a menina das fotos da televisão, eu faço fotos pornô e parei porque vocês não
me ajudam.... Estou grávida e só quero criar o meu filho”. “Eu fez oito dias que entrei aqui
hoje, mas eu não entrei maluca não, entrei para dar um socorro de Jesus Cristo que me
mandou vir aqui porque se não essas velhas, essas podres iam ficar tão fedorentas !”. “Com
a maconha, você fica doida !”. “Vou sair hoje ! ”...

Na carreira moral e social do doente mental, a passagem de pessoa a paciente se faz


sob o olhar dos outros, dos outros pacientes e do corpo médico. Contando para mim as
vicissitudes da história do doente mental, elas demostravam até que ponto, o louco é, na sua
experiência ordinária e cotidiana, a figura típica da « distância ao papel social »
(Goffman). No hospital, as pacientes, cujas competências sociais eram limitadas pelo
contexto da interação, tinham muitas dificuldades em respeitar os « rituais de resguardo »,
as distancias « sociais » (o fato de não invadir a esfera privada do outro). Goffman define
“os oitos territórios do eu : espaço pessoal / o lugar / o espaço útil / a vez / o envelope
físico da pessoa / as reservas de informação / as posses”, aparece claramente que no H.P as
cenas de violação dos territórios do eu, não seguidas pelos rituais sociais de reparação dessa
invasão, mostram o desregramento dos mecanismo psicológicos de autoregulação. Nesses
casos, a gramática social das condutas descarrila e é precisamente essa atividade social
ritualizada, como a reparação ou a neutralização da infração, que desaparece nos sintomas
mentais : « Os sintomas mentais não existem em si. O louco existe somente no olhar dos
outros. Essa versão pobre do interacionismo como teoria do espelho não basta para
explicar a loucura. Os sintomas mentais são atos cumpridos por um indivíduo que
proclama abertamente, diante dos outros, que ele precisa de uma idéia dele mesmo que
sua organização social não lhe oferece. Conseqüentemente, se o doente persite no seu

17
comportamento sintomático, ele provoca uma devastação na organização e nas mentes dos
membros... Essa devastação mostra até que ponto os sintomas medicais e mentais são
radicalmente diferentes nas suas conseqüências sociais. A doença mental não é um mero
problema de designação, pois é essa devastação que precisamos explorar »
(Goffman,1973:332) O que significa a experiência que consiste em colaborar com o
« devastador », cujo comportamento ataca a sintaxe das condutas e desordena o acordo
usual entre a postura e o lugar, entre a expressão e posição ?

Nas áreas livres do espaço feminino, fora dos dormitórios coletivos, os alo-contatos e
auto-contatos são muito freqüentes, e os gestos ao outro, sejam de cordialidade ou de
agressividade multiplicam-se. No meio dessa cacofonia gestual e social, minha presença
filmadora parecia incentivar mais ainda toda a dramaturgia da loucura. Num envolvimento
exagerado e não controlado comigo e com a câmera, elas mostravam incoerências nas suas
performances e entravam num clima de excitação coletiva. Este estudo das modalidades
interpessoais de gestão da dita loucura parecia como uma verdadeira patologia da interação
social. Para Goffman, a fórmula da relação social com o doente mental consiste em arranjar
o lugar de alguém considerando sua incapacidade de ficar no seu : « a loucura no lugar é
uma loucura do lugar ». Através da ritualização dos meus encontros com as pacientes neste
hospital, percebi que a patologia do laço social era muito mais que uma doença mental, pois
ela desorganizava não somente a relação do « doente » com a sua rede social, mas também
a experiencia social em si que ele não consegue mais representar-se. Nesse sentido, a
intervenção da minha filmagem estimulava e participava da « loucura », pois para entrar na
tela da câmera as pacientes brigavam, sem respeitarem a sua vez, gritavam, cantavam,
tiravam todas as suas roupas e saíam radicalmente do quadro « normal » da interação,
extravasando e transbordando meu controle sobre o ato filmico . “Tira mão do rapaz”.
“Abrem a roda aqui, vocês estão lhe sufocando !”. “Salta o braço dele !” “Ele não fuma ! ele
não arranja nada !”. Algumas pacientes, conscientes da falta de auto-controle das outras,
colocavam em pratica, verbalmente ou gestualmente, um tipo de alo-controle, tentando
proteger meu “corpo pesquisante”, dos contatos fisícos ou dos pedidos pessoais (cigarro,
maconha, ligação, dinheiro...).

18
Em vários momentos, as pacientes interagiam mais com a câmera do que comigo,
falando direitamente como mundo de fora, as vezes para dar notícias suas, as vezes para
reclamar da situação atual delas : “Quero falar, quero falar, um, dois, três.... Quem fala aqui é
C.L., mãe de vinte e quatro filhos, venho aqui para buscar remédios mas não consegui sair mais.
Quero falar que a comida não presta, o mingau não presta, até o diretor não presta... nada
presta aqui .” “ Não tem abacaxi, falta melancia...” . “O ladrão levou tudo meu e eu fiquei só
com a roupa de corpo mas estou no J.M. tratada como alguém da familia, estou bem...” Quando
as pacientes « se comunicavam com a televisão »6, cheias de vontade de dar noticias suas
ao mundo, as aberturas à comunicação se intensificavam e todo mundo queria e falava ao
mesmo tempo, numa polifonia alucinante. Declarações públicas, anúncios, palavrões e
provocações chegavam até o delírio coletivo. Uma das pacientes utilizava a câmera para
comunicar se “visualmente”, sempre insistindo para que eu filmasse uns números de
telefone ( da sua filha ) e uns recados que ela desenhava nas paredes azuis da área livre. Se
comunicando comigo e com os outros “em imagens”, pelas inscrições que ela deixava na
parede, ela gritava por ajuda. No fundo, me parece que minha boa recepção no âmbito
dessas pacientes dependeu sobretudo das imagens que eu espelhava : minha aparência
exótica e os poderes de comunicação da imagem através da câmera. Logo no início, fui
acolhido pelas pacientes como uma pessoa que podia ajudar, uma pessoa receptiva,
respeitada e logo em seguida, protegida. Nesta experimentação antropológica, apareceu
uma virtude da imagem, se a loucura se apresenta ao olho sensível do pesquisador, apenas
com os poderes do horror ou da aversão, ele, com medo, não poderia cumprir a sua tarefa
central, a de observar. A sideração se opõe à observação e todas essas imagens vêm
rapidamente constituir um hábito, o de poder acostumar-se ao horror, às deformações do
rosto e do corpo humano. As imagens que mostram a loucura devem tentar tocar a
sensibilidade de quem vê, sem ofuscar o olhar para que a realidade da loucura não cegue
mais nenhum corpo médico.

6
Ao inicio, sempre explicava que eu não era “reporter” e que as imagens não iam passar no jornal, cortando dessa forma a interação com
“ a televisão”, mas depois, quando me deu conta que minha informação não mudava a viagem delas, comecei a entrar em sinergia com as
“loucuras” delas, deixando simplesmente elas se exprimir da forma que queriam.

19
4. “Alucinações visuais”:
As estruturas imaginárias da loucura.

« O hospital psiquiátrico, lugar de revelações desse ireal, torna-se a casa


das pessoas illuminadas e mais : chamava-lhe o País da Iluminação por
causa da luz brilhante deslumbrante e fria, astral, e do estado de tensão
extrema em que as coisas se encontravam... » G. Durand

M. Merleau-Ponty diz que «o espelho arranca para fora minha carne e, no mesmo
passo, todo o invisível de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo : o homem é o
espelho do homem ». Nesse jogo complexo de espelho, procurei experimentar o espelho da
minha « normalidade » na área feminina do Hospital J.M procurando ver quais são as
funções simbólicas e culturais da imagem em relação com às representações sociais e
medicais da loucura. Se o homem é espelho do homem, uma pessoa “normal” precisa
quebrar todas as estruturas antropológicas do seu imaginário para pensar a loucura, pois é
preciso atingir a situação limite da imaginação humana para apreender a “iluminação” ou
loucura. Nesse sentido, é importante “restituir o lugar estratégico que ocupa a consciência
imaginante do pesquisador na concepção de formas ricas e férteis, a partir das quais ele
modela os dados sensíveis e opacos do mundo social, na busca de representar a alma
interior que habita os pensamentos exteriores vividos por uma coletividade »
(G.Durand,1997). Uma fenomenologia do grande mito da loucura humana deve entregar-se
com complacência às imagens para observar as relações da loucura com o imaginário.

20
As expressões humanas e as cenas retratadas pelo meio da fotografia e pela vídeo
parecem interpretar o texto sábio das tragédias pessoais e colocam em questão o problema
da recepção das imagens ou seja, das representações sociais da loucura. Pois, para
trabalhar com « imagens da loucura », o pesquisador deve trabalhar a sua narrativa
antropológica a partir do « pensamento imagético, aquele através do qual ele adquire
maior competência no entendimento da estética que rege a dramática das diversas formas
da vida social » (Durand, 1997). Já mostrei até que ponto a «ação das energias mentais do
pesquisador » (Simmel, 1984) deve fazer parte da sua abordagem antropológica da loucura,
mas é importante insistir tanto sobre o papel da imaginação na construção do pensamento
antropológico sobre o mundo e as coisas quanto sobre o papel do sujeito antropologizado :
« a imaginação criativa orienta e modela a percepção dos dados sensíveis que configuram
o mundo social. » (Durand, 1997)

O simbolismo imaginário que preside e organiza o olhar antropológico sobre a loucura


define as representações que as pessoas « normais » constrõem desse fenômeno limite da
consciência humana. Além dos discursos psiquiátricos e psicanalíticos, as representações
veiculadas pela mídia participam da construção do imaginário coletivo. Frequentemente, os
discursos jornalisticos insistem sobre a insuficência e a ineficiência dos serviços
psiquiátricos, reativando os antigos demônios dos maus-tratos, dos abusos medicamentosos
e dos isolamentos em locais insalubres. Falar sempre de « eletrochoques, cirurgias no
cérebro, campos de concentração » e denunciar a « crise em manicômios »7 não ajuda a
entender a situação social da loucura e consolida mais ainda a visão do H.P. como um mero
depósito, um tipo de inferno real da humanidade.

«A exibição de fotografias nas salas dos estabelecimentos totais, onde se mostra o ciclo
das atividades pelas quais o internado ideal passa com a equipe dirigente ideal,
freqüentemente tem uma relação muito pequena com os fatos da vida institucional, mas,
pelo menos, alguns internados passam uma tarde agradável posando para as fotografias. »
(Goffman, 1974). Para Goffman, que pesquisou num hospital psiquiátrico de Washington
D.C., as fotografias dos loucos não retratam bem a realidade vivida por eles e menos ainda

7
Folha de São Paulo, página C1, 30/07/00

21
os poderes das instituições no controle da loucura. No seu ensaio, ele considera que as
instituições totais, como os hospitais psiquiátricos, promovem « uma refração do
comportamento e as paredes das instituições atuam como um prisma grosso e deformado »
(Goffman, 1973). Essa visão do H.P. se encontra também no documentário de F. Wiseman,
que filmou uma dessas « instituições totais » nos USA, na época de realização do trabalho
de campo de Goffman (1954-1957). Mesmo sendo em dois hospitais diferentes, o olhar é o
mesmo, e o filme Titticut follies (1957) pensa em imagens o que Goffman escreveu. No seu
filme, Wiseman mostra um manicômio judiciário do Connecticut (USA) seguindo todas as
etapas da carreira de um « louco », da admissão, passando pelas várias rotinas cotidianas e
pelos ritos de controle da instituição total, no sentido usado por Goffman. Neste filme, o
olhar do realizador é sempre discreto, exterior às cenas filmadas, pois ele nunca chega a ser
um interlocutor e não interage com os doentes. Numa focalisação externa, ele sempre filma
as interações entre a instituição e os doentes mentais : as entrevistas « privadas » com o
psiquiatra, as bancas de avaliação dos casos, as conversas entre dos pacientes com os
guardas ou enfermeiros... O documentário parece retratar a vida cotidiana dos internados
entre dois espetáculos teatrais, duas festas para e com os « doentes », mas na verdade, a
imersão nesse universo começa com os corpos nus dos novos internados que deixam suas
coisas e roupas nas mãos da instituição para terminar com a morte de um dos doentes que
se recusou a alimentar-se. Neste filme, a nudez, a violência corporal e as outras figuras da
dor ocupam um lugar de destaque. O realizador focalizou o seu olhar sobre os cuidados do
corpo e da mente, desenvolvidos no âmbito do H.P., mostrando ao espectador tanto cenas
de entrevista sobre a sexualidade e o sentimento de culpa, quanto momentos de assistência
corporal “total” (dar banho, fazer a barba, alimentar com força...). As imagens da loucura
são impressionantes, para o espectador seguir as etapas e as figuras da dor da vida desses
pacientes durante duas horas traz um sentimento de angústia e uma forte sensação de mal-
estar : na suas projeções em sala, muitas pessoas do público não agüentavam mas que uma
hora de filme. No filme, as « doenças mentais » são reveladas pelas incoerências do
discurso (repetições, gritos, delírios...), pelas anomalias dos gestos (automutilações,
expressão de raiva, gestos repetitivos), pela estranheza das expressões faciais e corporais.
O hospital retratado neste filme funciona como um tipo de prisão com os internados em
celúlas individuais, as vezes o realizador se aproveita dos mecanismos da vigilância

22
panóptica para filmar os internados nas suas crises mais forte, mais privadas. O olhar de
Wiseman sobre a loucura é descomprometido, radical e frontal, pois ele vai até os fundos
dos bastidores dessa instituição, retratando sem compromisso as vicissitudes da vida dos
internados na edição das cenas filmadas.

O hospital psiquiátrico onde realizei o filme « Louco pra ver » (2000) é bem diferente
dessa instituição americana visitado por Wiseman. Primeiro porque o H.J.M não é
judiciário, mas também porque, comparando com as cenas retratadas no filme de Wiseman,
fica claro que os pacientes não são vistos nem tratados como « seres perigosos ». No
H.J.M., as pacientes podem andar livremente nos pátios, participar de uma emissão de
rádio8 e os espaços de interação entre elas não são vigiados. Apesar disto algumas figuras
da loucura reaparecem nos dois filmes, nos dois hospitais : os movimentos circulares dos
pacientes indicando perda de controle espacial, pois para passar o tempo elas giram em
círculo, aparentemente sem saber o que fazer. Essas deambulações e toda a temática
dionisíaca dos prazeres – comer, ritos de inversão, bagunça, sujeira, sexo e os movimentos
estilizados dos corpos – encontram um eco simbólico nas « imagens da loucura ». As vezes,
essas imagens parecem se aproximar de uma estética do corpo grotesco, forma hybrida na
qual a fronteira entre o eu e os outros é apagada, convidando a pensar em imagens que « na
loucura, a totalidade corpo-alma se fragmenta segundo figuras que envolvem segmentos de

8
A Radio da Gente mantém uma programação musical ouvida internamente desde 1994.

23
corpo e idéias da alma. Fragmentos que isolam o homem de si mesmo, mas sobretudo que
o isolam da realidade; a loucura consiste apenas no desregramento da imaginação.”
(Foucault, 1972 :232).

Numa antropologia que se quer polifonica, reflexiva e plural, as imagens entram


como um recurso teórico-metodológico de valor singular, pois de um lado elas incitam, por
sua natureza ligada ao sonho, a um excesso de interpretação e de imaginação ; do outro,
elas também reduzem essa margem de interpretação pois representam com os atributos do
real, devendo ser vistas como mero catalisador de informações e deformações ligadas à
subjectividade do olhar do pesquisador : « O ato pelo qual o observador procura conhecer
a pessoa que ele observa é uma reedição pela qual ele também aceita ser observado »
(Simmel,1981). A arquitetura panóptica do olhar perdeu poder com a aparição da
fotografia e agora é preciso tentar uma interpretação das imagens da loucura que seja capaz
de questionar a demência totalitária da doutrina racionalista, lembrando com Freud que as
imagens driblam com maior facilidade a censura da conciência...

24
Filmografia

« Louco pra ver », Filme de observação- participante de Stéphane MALYSSE, 160’,


Hospital Juliano Moreira, Digital Video, 2000.

« Titticut Folies », filme documentario de Frederic Wiseman, 120’, 1957, Conecticut, USA.

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