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Borges e os precursores do ensaio

Introdução

O ensaio está na base da produção literária que atravessa a vida do escritor argentino Jorge
Luis Borges (1899-1986). Os textos de reflexão, discussão e crítica, principalmente a literária,
acompanham o escritor desde os primórdios até o final da sua obra, e tem uma relação intima com
suas outras composições em prosa - os contos ficcionais - e em verso. Nos ensaios, Borges pensou,
refletiu, polemizou, posicionou-se sobre os mais diversos aspectos da vida intelectual do século XX,
e também levou ao extremo as possibilidades narrativas e especulativas desse gênero literário.
Através do ensaio, o argentino trespassou as fronteiras entre gêneros, primeiro entre ensaio e poesia,
depois entre ensaio e prosa ficcional, e em muitas delas dialogou com várias áreas do conhecimento
humano, como a filosofia e a metafísica, a política, a matemática e a lógica. O escritor ainda renovou
a arte de narrar ao explorar todas as possibilidades ficcionais e dramáticas das ideias e concepções
que o atraíam.
Uma boa forma de acompanhar essa trajetória – das suas ideias e dos seus textos, e de como
eles dialogam e se interseccionam – é percorrê-la pelos seus textos ensaísticos publicados em vida –
tomaremos aqui como libro base e versão definitiva a edição das “Obras Completas (1923-1972)”,
publicada em 1974 em Buenos Aires pela Emecê Editores, sob supervisão e intervenção direta do
autor -, e também pelos três volumes dos “Textos Recobrados” (1921-1986), publicados
postumamente pela primeira vez em 2001 (utilizaremos aqui a edição de 2011 da Editorial
Sulamericana, de Buenos Aires). Também serão considerados os textos reunidos em “Borges en Sur
(1931-1980)” (2005) e, de importância secundária para nosso estudo, os textos publicados na
coletânea “Borges en El Hogar (1935-1958)“, revistas para as quais contribuiu por décadas, e que
reúnem crítica e resenha literária, discursos, prefácios, notas e miscelânea. A leitura será guiada
pelos “Textos Recobrados” que proporcionam uma visão cronológica e mais ampla da produção
ensaística de Borges, intercalados pelos textos das duas coletâneas de ensaios – “Discusión”(1932) e
“Otras Inquisiciones” (1952) – reunidos nas “Obras Completas”, cuja versão utilizaremos. Ainda
deste volume, é importante destacar que os Prólogos, Epílogos e Notas acrescentados especialmente
para essa versão de 1974, e que serão considerados para efeito de análise também como ensaios
literários. Embora ampla e com uma abrangência que dá conta da maior parte da produção ensaística
de Borges, ela não é completa nem definitiva, não esgota o conhecimento sobre sua obra, uma vez

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que livros em colaboração, textos de abertura e prefácios a coletâneas, além de entrevistas e
depoimentos, e até mesmo desenhos e ilustrações de sua autoria, continuam a ser publicadas e
revelados pelo baú do seu acervo pessoal e literário.
Nos “Recobrados”, a série de três volumes com quase 1200 páginas de textos não publicados
nas suas “Obras Completas”, encontramos logo na epígrafe que abre o primeiro volume (relacionado
à produção entre 1919-1929) e, portanto, principia a coletânea, uma referência direta à grande
produção poética e ensaística do período. A citação de Borges escolhida pelo editor desses textos
retoma uma declaração do próprio autor em seu “Ensaio Autobiográfico” (1970): “Este período, de
1921 a 1930, fue de gran actividad, pero buena parte de ésta era quizás temeraria y hasta insensata.
Escribí y publiqué siete libros: cuatro de ensayos y tres de poesia. También fundé tres revistas y
colaboré bastante asiduamente em otra docena de publicaciones, entre ellas La Prensa, Nosotros,
Inicial, Criterio y Síntesis. Esta productividade me asombra ahora, así como el hecho de que siento
sólo una remota relación con la obra de aquellos anõs” (BORGES, 2011, p. 17). Uma informação
adicional encerra a citação da epígrafe: “JORGE LUIS BORGES, Autobiografia, 1970 en Monegal,
1987, p. 183). (1)
Não faz parte do nosso interesse aqui a segunda parte da formulação – a de que Borges se
reconhece apenas remotamente nas obras daquele período –, porém é importante assinalar que ela é
relativizada em outros textos pelo próprio escritor, como no Prólogo para seu primeiro livro, “Fervor
em Buenos Aires”(1923), elaborada especialmente para a edição das “Obras Completas” (redigido e
acrescido, portanto, cerca de 50 anos depois da publicação do livro que marca o início oficial (pelo
menos pretendido pelo autor) da sua obra). Diz Borges: “He sentido que aquel muchacho que em
1923 lo escribió ya era essencialmente - ? qué significa essencialmente? – el senhor que ahora se
resigna o corrige. Somos el mismo; los dos descreemo del fracasso y del êxigo, de las escuelas
literárias y de sus dogmas; los dos somos devotos....Schopenhauer, de Stevenson y de Shitman. Para
mi, Fervor de Buenos Aires prefigura todo lo que haria después. Por lo que dejaba
entrever....”BORGEs, 1974, P. 13). A primeira parte da citação merece, porém, nossa atenção para
este estudo, uma vez que ressalta a intensa produção reflexiva e crítica do autor pelo ensaio, uma vez
que aos quatro livros de textos ensaísticos elaborados naquele período e por ele renegados –
“Inquisiciones” (1925), “El tamanho de mi esperanza” (1926), “El idioma de los argentinos” (1928)
e “Evaristo Carriego” (1930) - são seguidos, ainda naquele período, por um outra coletânea de
ensaios – o já referido “Discusión”, publicado em 1932 (este sim mantido nas “Obras Completas” ,
assim como o resgate de “Evaristo Carriego”, modificado e ampliado por outros textos
extemporâneos como “Dos cartas”, cartas de leitores que em 1952 e 1953 escreveram ao autor sobre
um dos capítulos – El Desafio –de “Historia del Tango” , incorporados nessa obra). São, portanto,

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cinco obras publicadas num período de sete anos (do renegado “Inquisiciones”, de 1925, ao
prestigiado “Discusión”, de 1932) que, lidos em sequência agora nas versões definitivas publicadas,
revelam-se fundamentais para entender a poética borgeana e as discussões que ela propunha na
forma de ensaio em artigos como “La poesia gauchesca”, “El arte narrativo y la magia”, “La
perpetua carrera de Aquiles y la tortuga”, “Flaubert y su destino ejemplar” ou “El escritor argentino
y la tradición”, entre outros, além dos textos de “Evaristo Carriego”.
A autoironia sobre a vasta produção ensaística na fase inicial da sua obra e uma certa auto
indulgência, chamando atenção pelo aspecto negativo e autocrítico do comentário, não devem nos
iludir, uma vez que essa produção não cessou ao longo das cinco décadas seguintes. Considerando
“Evaristo Carriego”, publicado em 1930, como um longo ensaio, vemos que ele foi seguido de outros
dois livros de pequenos textos ensaísticos e de crítica literária, que foram “Discusiones”(1932) e
“Historia da Eternidade”(1936). A seguir, há um intervalo de quase duas décadas, quando Borges
publicou os dois livros de contos que são decisivos na sua obra, “Ficciones”(1944) e “O Aleph”
(1949), para em seguida retomar o ensaio em “Otras Inquisiciones”(1952). A partir de então, Borges
não publica mais livros ou obras acabadas e genuinamente ensaísticas, mas pulveriza seus textos
especulativos em uma série de prólogos, artigos jornalísticos, resenhas de livros, crítica literária,
homenagens e discursos em uma série de revistas, diários e outras formas de divulgação e circulação,
algo que podem ser confirmados nos “Textos Recobrados” e nas coletâneas “Borges em Sur” e
“Borges em Hogar”. Sem contar nos textos híbridos, misto de conto e ensaio, ficção e análise
reflexiva ( como são, por exemplos, alguns textos de “El Hacedor” (1960), entre os quais podemos
citar “O Simulacro” e “Ragnarok”). Podemos verificar então como essa produção é precoce,
contínua e se desenvolveu até o final da vida, suplantando em número e volume a sua produção
poética ou contista. Sem esquecer que seu “baú aberto” tem nos revelado novos textos e uma série
de documentos e rascunhos, que indica que sua obra ainda pode guardar surpresas ou novas
abordagens. É o caso, por exemplo, das análises e críticas dos arquivos e manuscritos guardados pelo
autor e que se encontram atualmente na Universidade de Pittsburgh (EUA), detentora de boa parte do
seu acervo que, aos poucos, é revelado pelos pesquisadores daquela instituição, como o crítico
Daniel Baldestron, que nos últimos anos se especializou no estudo desse material inédito.
Retornando à ao comentário autobiográfico que o editor dos “Recobrados” utilizou como
epígrafe, ele explicita a intensa colaboração do autor em revistas e outras publicações através de
antologias, artigos, cartas, manifestos e proclamas, notas, parodias, relatos, resenhas, prólogos e
epílogos, além de traduções, conforme se verifica no Índice Temático dos textos que compõem o
primeiro volume dos “Recobrados”, o que demonstra a variedade e a atividade reflexiva e literária
incessante realizada principalmente através de textos de caráter e formulação ensaística.

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Praticamente todos os textos publicados no volume I dos “Textos Recobrados” é dessa época e da
colaboração com revistas e jornais, e são formados em primeiro lugar por poemas, mas onde os
textos que podemos considerar de especulação, discussão e reflexão em forma de ensaio são
compostos por 19 artigos, 12 resenhas, dois relatos, seis Notas, 4 manifestos e proclamas, além de
nove traduções de outras obras e escritores.
Nas décadas seguintes, o texto de caráter ensaístico se consolida na obra do escritor como
uma fusão inédita até então na literatura ocidental de prosa poética e filosófica, especulações
metafísicas, filosóficas, éticas e estéticas feitas através de textos em prosa ensaística de altíssimo
nível e urdida como uma conjugação de arte e reflexão crítica. É o que podemos verificar no segundo
volume dos “Textos Recobrados”, que contemplam o período de 1931 a 1955. Basta observarmos o
alerta da “Nota del Editor” que abre o volume II e descreve seu conteúdo: “três relatos, dois poemas,
ensayos, artículos, resenas, notas, prólogos, conferencias, um discurso,, dos traducciones y dos
encuestas de carácter autobiográfico. Bajo el titulo Miscelanea publicamos un manifesto, algunas
entrevistas y encuestas de la época, y três notas de acutlidad política y cultural” (BORGES, 2011, p.
7), além de dois textos de autoria incerta. Em um total de 118 textos publicados em diversos meios
nesse período, apenas dois são poemas, ao contrário do primeiro volume, onde eram maioria, o que
evidencia a transição que o escritor faz de uma produção ensaística para a poesia (ou vice versa), ou
seja, para um momento literário onde os ensaios continuam sendo elaborados e publicados em
abundância, mas agora em diálogo não tanto com a poesia, mas com o conto, com a prosa curta, com
um tipo de ficção especulativa realizada em enredos surpreendentes. É nesse período que se define os
parâmetros do seu projeto literário, que poderia se bastar pela obra oficial (as coletâneas de ensaios
já citadas ,“Discusión” (1932) e “Otras Inquisiciones” (1952)), mas que é melhor compreendida
com a análise dos outros textos recuperados pelas edições póstumas. Aí estão todos seus temas, aí
estão as principais propostas estéticas e os fundamentos sobre os quais ele construiu seu edifiício
ficcional e poético, aí estão reunidas as mais argutas e sugestivas reflexões sobre teoria e crítica
literárias e sobre papel da invenção e da imaginação como agentes condutores dos processos
criativos de artistas e suas obras.
A transição para do verso para a prosa curta, e do ensaio como laboratório ficcional para sua
criação literária, fica ainda mais evidente em outro volume de textos reunidos do autor publicados na
“Revista Sur”, de Victoria Ocampo. Escritora, mecenas e agitadora cultural que tinha próximo a si
um grupo de intelectuais e escritores argentinos que procuravam intercambiar ideias e movimentos
culturais e literários com a Europa, Ocampo tinha no periódico o mais importante meio de promoção
e divulgação, e para a qual Borges contribuiu de 1931 até 1980, quando escreveu uma homenagem
póstuma à Victoria numa última edição de “Sur”. Para a Revista, Borges publicou entre 1931 e 1970

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(quando a colaboração foi mais frequente) nada menos que 170 textos, dos quais, esclarece a “Nota
del Editor” da coletânea, quase a metade (75) reunidas nas “Obras Completas”, e fez crítica literária,
resenhas, textos de homenagens e agradecimentos. Mas, principalmente, aí publicou boa parte dos
textos que depois seriam reunidos nos quatro principais livros publicados no período: são 16 textos
de ensaios publicados em “Discusión” e outros 12 ensaios publicados em “Otras Inquisiciones” e,
entre essas duas obras, nesse intervalo de duas décadas, o escritor antecipou aos leitores de Sur seus
principais contos ficcionais – 19 no total, entre os quais podemos citar os mais representativos de
“Ficciones” e “El Aleph” - “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, “Pierre Menard, el autor del Quijote”, “El
Aleph” e “Emma Zunz”, além de outros.
Analisados em sequência cronológica, acrescido dos “Recobrados” do período, que com elas
dialogam e divergem, completam e questionam, percebemos como opera o processo criativo de
Borges, fazendo e discutindo sua obra e o fazer artístico, numa reflexão intertextual intensa e única..
E a análise em conjunto de ensaio e ficção realizada tanto nas obras renegadas quanto nas obras
publicadas dos anos 1930 e 1940 permite entender como se configurou nesses anos o ensaio como
forma híbrida, a partir de uma escrita autorreflexiva e que explora as possibilidades ficcionais de
teorias filosóficas e metafísicas, num ambiente entre ensaio e ficção, entre escritor e leitor. A
novidade representada por essa forma inventiva de escrever ajudou a configurar um modelo de
escritor típico da posmodernidade, que faz da reflexão um ato tão importante quanto a criação,
abrindo espaço para a crítica como exercício fundamental e simultâneo à criação literária, uma vez
que “longe de qualquer intenção meramente comunicativa, o ensaio dos escritores se oferece como
espaço discursivo de indagação que permite colocar em evidência o gesto crítico que toda prática
literária supõe entre os usos convencionais da linguagem” e que enxerga no ensaio “uma lógica
secreta que organiza a escritura de ficção” (OLMOS, 2019, p. 34), interferindo nela e por ela sendo
moldado. O fato de Borges praticar tanto a reflexão quanto a crítica, e o dialógo com outras
(inúmeras) obras e um sem número de escritores, na mesma medida e com idêntico grau de
refinamento e profundidade, reforça a importância do texto ensaístico em sua obra como a prática e
exercício de uma literatura sem fronteiras e aberta a todas as influências e trânsitos de temas e
gêneros literários. Assim, no que se refere à sua vasta produção ensaística e a escolha desse gênero
para explorar ao limite e dissolver com fina ironia seus limites e confinamentos, Borges realiza uma
experimentação que, por um lado desestabiliza as distinções entre crítica e ficção, pois faz do ato da
leitura e da reflexão a matéria narrativa de seus contos; e, por outro lado, problematiza a relação
entre obra e autor, ao postular que este “não se apresenta em termos de substância, como instância
prévia e exterior à obra, senão que se configura no próprio texto como construção discursiva” (idem,
p. 158).

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Escritor que sempre fez da leitura a antesala da sua escritura, o que se evidencia pelas
inúmeras resenhas, prefácios, traduções e notas preliminares ou introdutórias que Borges elaborou ao
longo da vida, ou nos inúmeros textos que discutiu (e mesmo negou) o papel do autor e destacou a
função criativa do leitor, o argentino recebeu dos fundadores do gênero ensaístico moderno grande
influência e inspiração, não só na forma e no conteúdo, mas também numa certa postura e
temperamento ante o objeto de sua aproximação literária. Por isso, vamos tentar estabelecer a seguir
a relação e as aproximações existentes entre o argentino e Michael de Montaigne (1533-1592) e
Francis Bacon (1561-16260, os dois pensadores e escritores que inauguraram esse gênero na Idade
Moderna e o distinguiram dos textos retóricos ou teológicos dos pensadores clássicos ou medievais.
O ensaio como uma expressão do livre pensar, da liberdade estética e com uma prosa cativante mas
com ideias inconclusas ou em formação, além de constituir-se como uma expressão da
individualidade que surgia nos séculos XVI e XVII e que era retomada reflexiva e artisticamente por
Borges no início do século XX, nos permitirão ver como o modus operandi e o modus pensanti do
escritor bebem de ambas fontes, numa técnica de bricolagem, de cortar e colar, que é uma das
principais características da sua obra, principalmente da sua obra ficcional que lhe deu um lugar de
destaque na história da literatura do século XX, e cuja gênese pode ser encontrada nesses dois
pensadores admirados e citados por Borges em poemas, epígrafes, epílogos e prólogos, além de
alguns enredos.

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Borges e os precursores do ensaio
Quando em 1580 o francês Michel de Montaigne publicou uma coletânea de textos em prosa,
chamada apenas de “Ensaios”, com assuntos variados e escrita envolvente, lançava uma nova forma
de escrever, um novo gênero literário, e iniciava uma tradição que com o passar dos anos tornou-se
uma das principais formas de expressão literária e da individualidade dos tempos modernos, a ponto
de vir a constituir-se em “toda o resto” da literatura produzida no último século no Ocidente
(CITAR ESPANHOLA). Esse tipo de texto, na maioria das vezes curto (mas nunca com o fôlego de
um romance ou novela, ou de um tratado científico), de temas escolhidos pela única e exclusiva
decisão e vontade do seu autor, caracteriza-se por conter comentários e digressões muitas vezes
profundas e outras triviais sobre os mais díspares assuntos - o comportamento dos canibais
sulamericanos ou a semelhança dos pais com os filhos; o comportamento e as boas maneiras à mesa
ou na cama; o medo e a crueldade, a solidão e a companhia dos amigos, só para citar alguns que
refletiam os assuntos e as preocupações daquela sociedade europeia que vivia o esplendor e o auge
do Renascimento, da expansão mercantilista e comercial, de consolidação da ascensão de uma nova
classe – a burguesia – e da entrada definitiva na Idade Moderna.
O tipo de texto que tomava forma com Montaigne, e que assumiu o nome da sua obra, se
diferenciava dos textos discursivos, retóricos ou educativos clássicos, principalmente dos pensadores
gregos, mas também daqueles que teólogos e pensadores escolásticos formulavam, teve um símile
praticamente contemporâneo no inglês Francis Bacon (1561-1626), que em 1597 publica os seus
“Ensaios” (a publicação desses textos do outro lado do Canal da Mancha é separada por apenas dois
anos da edição póstuma e definitiva dos “Ensaios” de Montaigne, em 1595), de mesmo caráter
especulativo e digressivo, com temas variados e em processo de construção, ou seja, um texto que
sempre é retrabalhado e revisado, complementado e estendido, como uma obra sem fim, e que tem
no autor, no falar de si próprio, uma das suas principais características. Textos que definem tanto a
forma quanto o conteúdo, o discurso e mensagem, detentores de uma lógica de quem quer “produzir
uma nova imagem da filosofia, diversa daquela tradicional e presente desde os gregos”
(SANTIAGO, 2007, s/p). Esse tipo de investigação, que é semelhante em Montaigne e Bacon,
sinaliza e marca a passagem definitiva do homem da Idade Média, impactado pelo Renascimento,
para o homem da Idade Moderna, atingido pela técnica e pelo racionalismo. A variedade de assuntos
é comum entre eles e serviu para configurar e caracterizar o gênero ensaístico - Bacon trata de temas
inusitados e até mesmo da vida cotidiana, como acontece no ensaio “De jardins”, onde discute os
cuidados com a jardinagem e o que elas dizem sobre o poder ou um determinado monarca;
Montaigne também é diverso: fala da educação dos filhos e de carruagens, enquanto discute assuntos
transcendentais como a solidão humana e a morte. Em comum, ambos procuram refletir e discorrer

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sobre um novo homem que surgia de uma nova sociedade, que exigia uma nova filosofia que
justificasse a sociedade emergente. Assim, os dois escritores e pensadores, antenados com os novos
tempos, especulam e tentam estabelecer os limites de uma nova ordem sócio-economico-política
apoiada na modo de produção capitalista. É sintomático então, que tanto Montaigne quanto Bacon,
demonstrem nos seus ensaios a preocupação de formar um novo leitor e cidadão, procurando dar
“conselhos civis e morais” (subtítulo autoexplicativo que acompanha a última e definitiva edição dos
“Ensaios” de Bacon).
Esse novo texto em prosa, digressivo e de formato variado, adaptável ao tema discutido, que
viria a se constituir na forma predominante de produção literária no Ocidente a partir do século XIX,
levou no entanto quase todo o século XVII para se difundir e popularizar pela Europa, inspirando
publicações com as mesmas características em outros idiomas (italiano, alemão, espanhol) e países
vizinhos. O sentido original do termo ou título escolhido – ensaio, e não discurso, tratado ou
miscelânea, como era hábito na época -, ressalta o seu caráter provisório, informal, quase oral,
próximo à língua falada e, portanto, considerados como tímidas tentativas literárias ou o equivalente
a um esboço de um pintor ou artista visual, onde destaca-se em primeiro plano a escolha “altamente
individual e idiossincrática”, tanto pelo seu conteúdo quanto pela forma dos seus textos (BURKE,
2001, s/p).
Mas foi sobretudo no século XIX e início do século XX que o ensaio tornou-se o gênero
preferido para artistas e intelectuais discutirem, opinarem e “testarem” suas teorias e sua prática
artístico-cultural-filosóficas. De Friedrich Nitzsche (1844-1900) a Sigmund Freud (1856-1939), de
de Johm Locke (1632-1704) a George Berkeley (1685-1753), passando por David Hume (1711-
1776) a G.K. Chesterton (1874-1936), a especulação sobre os mais diversos assuntos da vida
moderna se difundiu pela Europa e encontrou no Novo Mundo, na América que saía da dominação
colonial e buscava sua emancipação, o local mais propício à sua elaboração e difusão. Nomes como
Jose Martí (1853-1895), José Carlos Mariátegui (1894-1930), Germán Arciniegas (1900-1999),
Octávio Paz (1914-1998), Angel Rama (1926-1983) e Alfonso Reyes (1889-1959), entre inúmeros
outros, projetaram esse gênero para muito além das suas fronteiras. Ao lado deles, o argentino Jorge
Luis Borges foi um dos que mais se dedicaram ao gênero, conseguindo renovar essa tradição que
remonta a Montaigne e Bacon, e criar uma modalidade que elimina as fronteiras entre literatura e
especulação filosófica, entre teoria, crítica e o fazer literário, entre ensaio, ficção e poesia. Borges
fez do ensaio o locus preferido para explorar e discutir suas ideias estéticas, filosóficas e metafísicas
e, ao mesmo tempo, fez das suas ficções um campo de experimentação dessas ideias, explorando ao
limite as possibilidades narrativas e dramáticas de algumas das mais influentes linhas de pensamento
ocidental e das grandes obras da literatura mundial.

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Será importante agora entendermos a filiação de Borges com os dois pensadores e escritores
que deram forma ao ensaio moderno, os já citados Michel de Montaigne e Francis Bacon. Veremos a
seguir que além de um certo comportamento há também um temperamento intelectual diante do
mundo analisado e tematizado que aproxima muito o argentino dos seus precursores francês e inglês.

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Montaigne e a intimidade com os livros
“Historia da Noite” é uma das últimas obras publicadas por Jorge Luis Borges. Livro de
poemas que saiu à luz em 1977 numa edição da Emecê Editores de Buenos Aires (Argentina), a
coletânea se encerra com um epílogo, um dos muitos textos com os quais Borges costumava
comentar suas obras, seja nas primeiras ou nas últimas páginas. Próximo de completar 80 anos,
Borges chama atenção no Epílogo para alguns temas caros à sua obra, como a referência aos livros e
à imagem da biblioteca como representação do saber universal. “Tenho permissão para repetir que a
biblioteca de meu pai foi o fato capital da minha vida? A verdade é que nunca saí dela....”
(BORGES, 1977, p. ,,,,), afirma ele nesse texto conclusivo, numa declaração que assume ares de
testamento ou de comentário para uma vida que se aproxima do balanço final. O tom de entardecer
está presente também na maioria dos poemas coletados em “História da Noite”, dado seu caráter
confessional - “de quantos livros publicados, esse é o mais íntimo”, escreve o autor -, para
especificar em seguida sua filiação literária e apontar para o precursor da sua ensaística, uma vez que
o conjunto de textos “abunda em referencias livrescas; também abunda nelas Montaigne, o inventor
da intimidade” (idem, ibidem). A referência a Montaigne não é acidental (como nada, aliás, em
Borges). O argentino cita em sua obra várias vezes o escritor francês, considerado o primeiro grande
autor do ensaio literário moderno. Numa delas, no ensaio “A supersticiosa ética do leitor”, de 1930 (
publicado em “Discusión” (1932)), Borges equipara a prosa de Montaigne à de Miguel de Cervantes
e seu Quixote, como uma “prosa de sobremesa, prosa conversada e não declamada” (BORGES,
1974, p. 203). Isto é, uma prosa natural, sem rodeios e artifícios, o que conferia aos “Ensaios”
Montaigne ser um “livro admirável”(SCHWARTZ, 2017, p. 372). A questão da intimidade, no
entanto, é o que chama mais atenção no ensaio do escritor argentino sobre seu colega francês. A
escritura do “eu”, os comentários sobre suas leituras ou sua visão de mundo, sobre temas existenciais
ou metafísicos, denunciam esse intimismo a que Borges se refere. Mas não uma intimidade
psicológica, de um “eu lírico” ou de um “eu” divagando sobre as oscilações anímicas do literato que
se expõe através da sua escritura – aliás, nada mais distante da proposta e do projeto literário de
Borges do que reverlar-se ou expor sua intimidade pelas letras. O “eu” borgeano se revela aqui de
outra forma. Não pelo psicológico, mas pelo intelectual, pela razão, pela reflexão meticulosa e
metódica sobre questões transcendentes. A intimidade que Borges compartilha com Montaigne é a
cumplicidade e o parentesco pela forma preferida de pensar e escrever: a forma ensaística, o ensaio
elevado à categoria literária e a certo e determinante componente estético dessa escritura. Embora as
citações de Borges a outro ensaísta fundamental na constituição desse gênero, Francis Bacon, sejam
mais frequentes que a Montaigne ao longo da sua obra, e sua ligação a ele seja até mais profunda

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dada sua filiação à tradição filosófica inglesa, no entanto há uma grande aproximação entre o
comportamento e a persona literário-filosófica q entre Borges e Montaigne. A primeira, e mais
evidente, inclusive pela sua ampla utilização simbólica e visual (ou geométrica), é a já referida
imagem da biblioteca e do escritor recluso nesse ambiente. A citação da biblioteca paterna num
mesmo texto onde Borges comenta sobre o “inventor da intimidade” não deixa de ser relevante – foi
recluso em uma sala no alto de uma torre em seu castelo que Montaigne escreveu seus textos
ensaísticos, ambiente que muito lembra o espaço reduzido da biblioteca onde Borges leu seus
primeiros livros e imaginou o mundo além do pátio interno da sua residência e redigiu suas primeiras
tentativas de escritor. Remete igualmente às outras Bibliotecas que Borges frequentou enquanto
funcionário público, seja na exígua e acanhada Biblioteca Miguel Cané, na periferia de Buenos
Aires, ou na labiríntica Biblioteca Nacional da Argentina, onde foi diretor por quase duas décadas.
Há outros aspectos que assemelham a trajetória dos dois pensadores. Alguns deles, como o
ato de pensar e de caminhar são inseparáveis, uma tradição criada pelos peripatéticos (o termo vem
de “peripatói”, como eram conhecidos os portais cobertos do Liceu ateniense onde Aristóteles
ensinava seus alunos ao ar livre, caminhando, sob os portais ou as árvores que haviam em volta), que
influenciaram em grande medida o comportamento dos dois escritores aqui analisados. Montaigne
reflete longamente sobre o assunto no ensaio “Sobre três relações” (capítulo III, Livro 2), onde
aborda a sinergia que existe no seu modus operandi de andar e pensar, da simbiose do ato físico e
intelectual. Logo em seguida, ao descrever seu gabinete de leitura e reflexão, o deambulatório num
canto isolado da torre do seu castelo, Montaigne descreve a biblioteca circular e o plano que
comporta a mesa e a cadeira onde costuma sentar-se, e vai às minúcias sobre a conjugação desse ato
simbiótico: “ao curvar-se, ela vai me oferecendo com um só olhar todos os meus livros arrumados
em estantes de cinco prateleiras em toda a volta.....”(MONTAIGNE, ..... p. 379). Em ambos os casos
as semelhanças e coincidências com o comportamento do argentino mais de dois séculos depois são
evidentes e marcantes. É conhecido o gosto por longas caminhas pelas ruas infinitas da capital
argentina, descrita nos poemas dos primeiros livros, nos anos 1920-1930, assim como a descreve
Estela Canto, companheira de inúmeras caminhadas noturas, nas suas memórias: “De modo que
caminamos las doce cuadras hasta el parque. En total, esa noche hicimos unas cincuenta cuadras.
Tomando en cuenta la longitud de las cuadras en Buenos Aires, anduvimos algo más de siete
kilómetros. He sido y sigo siendo una caminadora incansable, pero nunca sospeché que Borges iba a
igualarme” (CANTO, s/d, p. 11). A própria escritora recorda que o reencontro com o amigo, muitos
anos depois, aconteceu também em uma caminhada, preferência apontada pelo próprio Borges em
outras declarações sobre seu prazer em pensar e inspirar-se poeticamente andando sob os
entardeceres e pelos arrabaldes de uma Buenos Aires que se tornou mítica pela sua escritura.

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Os atos de ler, pensar e escrever são descritos por Montaigne com imagens e figuras do
corpo humano, numa relação complementar entre o pensar e o andar (como os peripatéticos). O
pensador francês estabelece uma distinção entre os efeitos que sua reclusão intelectual produzem
sobre o corpo e a alma. Os livros são um prazer, mas também tem seus inconvenientes. “Neles a
alma se exercita mas o corpo, cujo cuidado também não esqueci, permanece enquanto isso sem ação,
degrada-se e se entristece” (MONTAIGNE, ..... p. 380). Para ele, o exercício físico, praticado com o
caminhar pela sua biblioteca, pelo seu espaço na torre, é o complemento que o pensamento exige.
“Meus pensamentos cochilam se os deixo sentados. Meu espírito não anda sozinho se as pernas não
o agitam” (idem, p. 378). Por isso, como parte desse ambiente, desse cenário recomendado pelo autor
para a melhor prática da atividade intelectual, é complementado por um deambulatório – “todo lugar
isolado requer um deambulatório”, diz ele (idem, ibidem). O gabinete para leitura e reflexão é
complementado por uma lareira, que aquece durante o inverno, e iluminada por uma janela, um
cenário enfim aconchegante e acolhedor para a reflexão. Só assim, o autor – e nós também, ou seja, o
homem moderno surgido a partir do Renascimento e que tem nos “Ensaios” uma inédita forma de
expressão e manifestação pessoal – consegue usufruir da solidão. E nessa busca interior, na
articulação entre um “eu” profundo e seu diálogo com obras e pensadores clássicos (são numerosas e
extensas as citações de Sêneca, Horácio, Virgílio, Plutarco, entre outros), é aí que Montaigne, o
ensaísta, o protótipo do escritor e pensador moderno, inicia uma “longa e rica tradição, fundando um
gênero literário e explorando uma mina intelectual que, se não inesgotável, de qualquer modo ainda
permanece inesgotada” (BURKE, 2001, s/p). É nessa entrega que o autor se expõe com estilo, com
sabedoria, mas também com franqueza, próprios dos momentos de solidão e do encontro consigo
mesmo. “Nosso mal está em nossa alma: ora, ela não pode escapar de si mesma” (MONTAIGNE,
2019, p. 167), por isso “é preciso sequestrar a si mesmo e reaver a si mesmo”. (idem, p. 166). Mesmo
quando dialoga com seu entorno, com a sociedade em que vive, as relações pessoais, ou os filósofos
e pensadores que cita e conversa, mesmo aí Montaigne faz do ensaio uma forma de falar de si
mesmo – “só falo dos outros para melhor falar de mim” (idem, p. 88).
Outro comportamento que podemos ver no precursor francês do ensaio é a adoção de uma
visão relativista e compreensiva com o outro e o diferente, com práticas e culturas distintas da
europeia daquele fim do século XVI, aceitando e tentando entender formas distintas de ver e de
conviver com o que é externo. Em um dos seus ensaios mais conhecidos, “Sobre os canibais” (2),
essa postura renascentista e que tentava jogar luzes sobre a visão de mundo obscurantista e
eurocêntrica ainda dominante, é evidente e pode ser ilustrada pela argumentação do autor, uma vez
que “nunca dois homens julgaram da mesma maneira a mesma coisa. E é impossível ver duas
opiniões exatamente iguais: não só em diversos homens, mas no mesmo homem, em horas

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diferentes” (idem, p. 140). Se esse mesmo homem, contraditório e inconstante não é garantia nem
certeza de caminho seguro a seguir, por que seria diferente entre povos ou culturas que surpreendiam
e desafiavam o sabe estabelecido? Montaigne começa este seu ensaio com uma definição prévia que
utilizará a partir daí e que remonta ao passado greco-romano, “pois os gregos assim chamavam – de
bárbaros - a todas as nações estrangeiras” (idem, p. 141), para logo em seguida reafirmar que “cada
um chama de barbárie o que não é seu costume” (idem, p. 145), já que “de fato, não temos outro
critério de verdade e de razão além do exemplo e da forma das opiniões e usos do país em que
estamos”. (idem, ibidem). O ensaísta avança nessa análise e atreve-se a equiparar e comparár com
atos dos conquistadores europeus: “como prova, tendo visto que os portugueses, aliados de seus
inimigos, usavam contra eles, quando os agarravam, outro tipo de morte, que consistia em enterra-los
até a cintura e darem no restante do corpo muitas flechadas e enforca-los depois....”(idem, p.150). O
ensaísta francês revela um espírito compreensivo com o diferente e crítico com o próximo (o
europeu, no caso) e sua reflexão e busca por um conhecimento não reduzido a ideais convencionais
permite que veja que “essas nações parecem assim bárbaras por terem sido bem pouco moldadas
pelo espírito humano”, ou seja, não teriam tido a oportunidade de encontrar e conviver com
sociedades mais avançadas. O relativismo de Montaigne não chega a abalar a visão da Europa como
o centro da cultura e da civilização ocidental, mas abre espaço, no entanto, para o questionamento
intelectual, a especulação sobre o papel e a diferença e o lugar que o outro ocupa, uma reflexão que
coloca em relevo a problemática que a recente descoberta da América despertava naquele momento
histórico. Assim são compreendidos os atos supostamente selvagens de matar, cozinhar e comer seus
adversários – “o matam a golpes de espadas. Feito isso, assam-no e o devoram juntos, e mandam
pedaços aos inimigos ausentes” (idem, p. 150) ou quando “cada um traz como troféu a cabeça do
inimigo trucidado e a pendura a entrada de sua casa”. (idem, p.149) – e situados dentro de um
contexto cultural próprio dessas tribos: “Não é, como se pensa, para se alimentarem...., mas para
simbolizar uma vingança extrema”, explica ele, para logo em seguida reforçar, que “não
empregavam sem motivo esse método de vingança”(idem, p. 150). (3)
Há outras semelhanças entre eles menos importantes, mas que merecem ser apontadas e
comentadas, como a herança genética, carregar e conviver com uma doença familiar hereditária – a
cegueira (ou, mais exatamente, uma espécie de glaucoma ocular degenerativo) em Borges; os
problemas renais e as cólicas de Montaigne, que acometiam seu pai e lhe atormentavam pela
segunda metade da vida. Ambas heranças tiveram tratamento literários diferentes – em Montaigne a
abordagem é direta, explícita, encarando o assunto sem meias palavras mais de uma vez, quando
discorre sobre o sofrimento e o envelhecimento, como no ensaio “Sobre a idade”( Capítulo LVII,
Livro 1). Montaigne conclui, resignadamente, no ensaio “Sobre a experiência”, que “estamos

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fadados a envelhecer, enfraquecer, cair doentes”, e cita como exemplo a primeira lição que os
“mexicanos ensinam a seus filhos, quando, ao saírem do ventre das mães, saúdam-nos assim: “Filho,
vieste ao mundo para suportar: suporta, sofre e cala-te” (idem, p. 544).
Em Borges a abordagem sobre a doença é mais discreta, resignada, de alusões indiretas,
embora talvez mais decisiva em sua escritura do que no do francês. Em Borges, a cegueira que foi se
acentuando com os anos e se agravou enormemente a partir de 1957, após uma cirurgia
oftalmológica mal sucedida, teve impacto direto numa produção literária que passou a se concentrar
na poesia, nos versos rimados e geralmente decassílabos), ou nos textos curtos, como em “El
Hacedor”, onde exercita um tipo híbrido de texto entre a poesia e a prosa sucinta, uma mescla de
ensaio e ficção (4), entre a poesia e o ensaio. Ricardo Piglia, numa análise precisa sobre esse
processo na obra de Borges afirma que a partir da segunda metade da década de 1950 Borges altera
sua forma de escrever e também, por conseguinte, seus temas e enredos. “Borges se quedo cego e su
capacidade de estilo se quedo destruída, porque no puede ler, no puede ler sus proprios
manuscritos.... Usteds lem qualquer texto de Borges dos años 60 para ca e lem los textos anteriores
(entre los años 40 e los de 20 años despues, es un otro escritor” (PIGLIA, 13’min).
https://www.youtube.com/watch?v=m3htEzn1BIc
Aquele escritor, portanto, que reescrevia ao infinito seus textos, buscava e estudava cada variação,
via-se agora confinado ao verso exato ao pequeno texto, memorizáveis “Borges, disse Piglia, nunca
escribio un texto con más de diez páginas” (PIGLIA, https://www.youtube.com/watch?
v=im_kMvZQlv8, min 7’50). . Essa mudança no estilo é acompanhada de uma devoção cada vez
maior à literatura nórdica, às sagas germânicas e escandinavas, também caracterizadas pela narrativa
curta e direta. No caso de Montaigne, a questão da doença, da congenia de cálculo renal, alterava seu
estado de humor e servia de temática para o filosofar sobre a precariedade e a finitude da vida, entre
outros, inspirando muitas páginas reveladoras sobre o íntimo do seu estado de espírito carregado de
dor e sofrimento.
Mais significativa é a prática comum entre os dois ensaístas que estamos analisando sobre o
prazer que advém da divagação e do livre pensar sobre um sem número de temas e assuntos, dos
mais profundos e complexos (como o ensaio “Sobre o medo a solidão” ou ainda “Que filosofar é
aprender a morrer”, todos estes do Livro Primeiro dos Ensaios) aos mais cotidianos, como a
embriaguez ou as “boas esposas”. Sua obra mais famosa é um compêndio dos mais variados e
díspares assuntos que ele não se furta a falar, como quando discorre sobre os gases abdominais ou
quando conta detalhes do ato sexual e de como os casais devem se comportar na cama; ou ainda
quando ensina como deveria ser a educação dos filhos e fala dos benefícios da solidão e reclusão
para a prática do livre pensar. Essa gama de assuntos é tão variada e inusitada como a que Jorge Luis

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Borges realizou em sua obra. Pensando apenas na sua produção ensaística, sem entrarmos na
diversidade de temas ficcionais ou poéticos, constatamos que o argentino praticou a crítica literária,
escreveu sobre cinema (roteiros para filmes, inclusive) e artes plásticas, refletiu sobre política e os
dilemas do homem moderno, fez inúmeras traduções, biografias, obras em colaboração, discursos,
manifestos, entrevistas, entre outros tipos de textos. Frequentou os enredos policias e trabalhou num
dos primeiros jornais populares do continente, escreveu sobre inúmeras obras e os mais diversos
escritores, transitando entre os mais diversos campos do conhecimento, da filosofia à lógica, da
metafísica à matemática, sem perder a mirada do literato. “Borges trabajó cómo trabajamos los
escritores en Buenos Aires, hice todo, hice todo como todos nosotros hicemos todo. Se ganava la
vida como se ganava la vida como nosotros. (PIGLIA, aula 2, 2’05min
https://www.youtube.com/watch?v=im_kMvZQlv8,)

A presença de um acentuado sentimento do humano que caracteriza esses “Ensaios” é


acompanhada de um forte racionalismo de um intelectual que desconfia e questiona muitos dos
dogmas que engessavam a passagem recente do período nebuloso e obscurantista que a Idade
Moderna havia herdado da Idade Média. “Nossa percepção, diz ele, é grosseira, obscura e obtusa”
( MONTAIGNE, 2019, p. 493), e é também “uma infelicidade estarmos nessa situação em que o
melhor critério de verdade seja a profusão das pessoas que acreditam, e numa multidão onde os
loucos ultrapassam de muito o número dos sensatos”. Bom senso que podemos confirmar nos
conselhos que dá sobre o relacionamento matrimonial, como vimos anteriormente, ou sobre práticas
como a virtude ou o amor, ou ainda, quando Montaigne se põe a discorrer e dá conselhos sobre a
educação infantil e afirma que “não é bom criar um filho no regaço dos pais” (idem, p. 95) ou que
“não basta fortalecer-lhe a alma, também é preciso endurecer-lhe os músculos” (idem, p. 96). Mas os
comentários variados continuam, revelando a preocupação com os costumes e educação (típicos de
uma sociedade burguesa que se consolidava no cenário mundial e principalmente europeu ao longo
do século XVI). “Eu almoçaria sem toalha, mas à moda alemã, sem guardanapo branco, é muito
desconfortável. Sujo-os mais que os alemães e que os italianos, e sirvo-me pouco da colher e do
garfo”, para em seguida lamentar que “não se tenha seguido um costume que vi começar com nossos
reis: que nos trocassem de guardanapos, assim como de prato, de acordo com cada serviço” (idem, p.
537). Montaigne também comenta sobre seus gostos pessoais, como quando discorre sobre
alimentação. “Não sou excessivamente guloso de saladas nem de frutas, exceto de melões. Meu pai
detestava qualquer tipo de molhos: gosto de todos eles” (idem, p. 563), e continua: “gosto muito de
peixe e faço dos dias magros meus dias gordos: e dos dias de jejum meus dias de festa”, explicando
que jejua “para preparar minha volúpia a tirar mais proveito e servir-se mais alegremente da

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abundância” (idem, p. 564). No ensaio “Sobre a crueldade”, o escritor elabora seu raciocínio e
divaga sobre a virtude, que “recusa a facilidade como companheira” (idem, p. 264) e que não pode
ser procurada pelo “caminho fácil, suave e em leve declive” (idem, ibidem)., porém pode ser uma
“qualidade amena e alegre”(idem, p.389), como afirma em outro ensaio – “Sobre versos de Virgílio”,
expondo a instabilidade do comportamento humano que é refletida nas idas e vindas do texto, no
discorrer que nos captura e faz acompanhar o raciocínio do escritor.
O humanismo de Montaigne é complementado pela atitude compreensiva e relativista para
com o outro, com o diferente, com práticas e culturas distintas da europeia daquele fim do século
XVI, aceitando e tentando entender formas diferentes e alternativas de ver e de conviver com o que é
exterior e desconhecido. Em um dos seus ensaios mais conhecidos, “Sobre os canibais”, essa postura
renascentista tenta iluminar a visão de mundo obscurantista e eurocêntrica dominantes até então, que
pode ser evidenciada na argumentação de que nunca “dois homens julgaram da mesma maneira a
mesma coisa. E é impossível ver duas opiniões exatamente iguais: não só em diversos homens, mas
no mesmo homem, em horas diferentes” (idem, p. 140). Se esse mesmo homem, contraditório e
inconstante, não é garantia de certeza e caminho seguro a seguir, por que seria diferente entre povos
ou culturas que surpreendiam e desafiavam o saber estabelecido? O francês começa o ensaio sobre os
canibais com uma definição prévia que utilizará a partir daí e que remonta ao passado greco-romano,
“pois os gregos assim chamavam – de bárbaros - a todas as nações estrangeiras” (idem, p. 141), para
logo em seguida reafirmar que “cada um chama de barbárie o que não é seu costume” (idem, p. 145),
já que “de fato, não temos outro critério de verdade e de razão além do exemplo e da forma das
opiniões e usos do país em que estamos”. (idem, p. 145). O ensaísta avança nessa análise e atreve-se
a compará-los com os atos dos conquistadores europeus: “como prova, tendo visto que os
portugueses, aliados de seus inimigos, usavam contra eles, quando os agarravam, outro tipo de
morte, que consistia em enterra-los até a cintura e darem no restante do corpo muitas flechadas e
enforca-los depois....”(idem, p.150). Encontramos aí o espírito disposto a compreender pelo
conhecimento o diferente e ser crítico com o próximo (o europeu, no caso), pois “essas nações
parecem assim bárbaras por terem sido bem pouco moldadas pelo espírito humano”, ou seja, não
teriam tido a oportunidade de encontrar e conviver com sociedades mais avançadas. O relativismo de
Montaigne não chega a abalar a visão da Europa como o centro da cultura e da civilização ocidental,
mas abre espaço, no entanto, para o questionamento intelectual, a especulação sobre o papel e a
diferença e o lugar que o outro ocupa, a reflexão sobre a questão cultural que emergia de forma
decisiva naquele momento colocada pela recente descoberta do novo mundo, a América, e que serve
de substrato para o ensaio “Sobre os canibais” (na verdade, os canibais a que se refere Montaigne
seriam índios brasileiros que ocupavam a Baía de Guanabara quando os francesas lá tentaram

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estabelecer uma colônia por volta do ano de 1555). Assim, são explicados e racionalmente
contextualizados os atos supostamente selvagens de matar, cozinhar e comer seus adversários – “não
é, como se pensa, para se alimentarem...., mas para simbolizar uma vingança extrema”, explica ele,
para logo em seguida reforçar, num comentário antí barbarismo ou selvageria, que “não empregavam
sem motivo esse método de vingança”(p. 150).
É importante assinalar, neste momento, como Borges retoma a análise comparativa e, de certa
forma, equipara duas práticas, uma de povos ditos primitivos, outra de povos ditos civilizados, para
questionar e problematizar sobre a incoerência e as contradições desses conceitos estabelecidos,
questão que atravessa sua obra e está no centro da maior parte dos contos de “O informe de Brodie”,
o livro de 1970 onde o tema da violência e do questionamento sobre o que efetivamente distingue a
civilização da barbárie. No conto que dá título à coletânea, numa narrativa que parafraseia e parodia
a obra mais importante do escritor inglês Jonathan Swift (1657-1745), “As viagens de Gulliver”
(mais especificamente, a terceira viagem de Lemoel Gulliver), essa questão é central: o personagem
principal, o missionário escocês David Brodie, encontra um povo – os Mlch – de comportamento
aparentemente mais primitivo que o nosso, da cultura ocidental, mas que havia solucionado de forma
“mais civilizada” os conflites inerentes às sociedades humanas.
Até aqui procuramos mostrar as várias semelhanças e coincidências que acontecem entre
Montaigne e Borges, e um certo comportamento que ajudado a moldar a persona literária e
especulativa do autor argentino, semelhanças essas que em alguns casos podem ser superficiais,
outras que se tornaram um padrão entre os escritores e filósofos praticantes do livre pensar e da sua
expressão em forma de ensaio escrito, como a variedade de assuntos, a mutabilidade da opinião e das
ideias expostas ou defendidas, uma certa postura solitária e autorreflexiva, um determinado modus
operandi diante da reflexão e da condensação desse pensamento em textos escritos em prosa.
Entretanto, o aspecto que mais aproxima a prosa ensaística de Montaigne e de Borges é o próprio
fazer ensaístico, a elaboração do texto e de como esse ato também é a expressão do eu que nele se
manifesta e se revela com intimidade. Talvez seja exatamente esse o aspecto que mais identifica os
dois escritores: a conexão que existe na obra, no pensamento e no comportamento dos dois
pensadores entre intimidade e literatura, entre o livro ou o texto escrito e a expressão mais profunda e
íntima do eu. Os livros estão em equivalência com o viver e o pensar, são tão necessários para a
existência como a conversa com os amigos e a companhia de “belas mulheres, honestas e
inteligentes” (MONTAIGNE, 2019, p. 377). A companhia dos livros é “bem mais segura e mais
nossa às necessidades mais”, e também um abrigo seguro pela “constância e a facilidade de seu uso:
acompanha todo o meu percurso e assiste-me por todo o lado; consola-me na velhice e na solidão;
descarrega-me o peso de um ócio enfadonho; e a todo instante me livra das companhias que me

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aborrecem; atenua as pontadas da dor se não for extrema e soberana“, (idem, p. 377). A convivência
próxima, íntima e diária com a leitura, a reflexão e os livros; o prazer ocioso e divagante, - “para me
distrair de uma ideia importuna, basta recorrer aos livros” (idem, ibidem)- que a leitura e o acesso
aos textos proporcionam permeiam todo o ensaio “Sobre três relações”. Fica evidente a relevância
que a leitura e os livros, e toda a vivência intelectual que eles permitem e acessam, tem para
Montaigne. “Pois é impossível dizer quanto me repouso e me tranquilo com essa ideia de que estão
a meu lado para me dar prazer quando eu desejar; e reconhecer quanto trazem de socorro à minha
vida: é a melhor provisão que encontrei nessa viagem humana e compadeço-me ao extremo dos
homens inteligentes que não os têm”(idem, p. 378). Assim, além de alívio, conforto e prazer, os
livros também são o companheiro, o amigo de todas as horas. “Não viajo sem livros, nem na paz
nem na guerra”. (idem, ibidem).
Essa relação íntima, companheira de vida e de crescimento pessoal, encontra na biblioteca a
acolhida perfeita, que favorece a convivência com os livros e a reflexão. A biblioteca ocupa posição
central na formação do jovem Borges – a biblioteca paterna, tantas vezes referida, como no “Ensaio
Autobiográfico”, onde ele afirma que “se tivesse de indicar o evento principal de minha vida, diria
que é a biblioteca de meu pai.....” (BORGES, AUTOBIOGRAFIA), – e no escritor adulto - os anos
que trabalhou como bibliotecário público e depois como diretor da Biblioteca Nacional Argentina – e
as referências a ela como imagem concentrada do infinito universo e fonte do inesgotável saber
humano estão em toda sua obra, seja em contos como “A Biblioteca de Babel” (de “Ficciones”),
onde é descrita como “interminable” e “iluminada, solitária, infinita, perfectamente inmóvil, armada
de volúmenes preciosos, inútil, incorruptible, secreta” (BORGES, 1974, p. 471), com formato
hexagonal, escadas infinitas e que, em êxtase místico, pode revelar “una câmara circular con un gran
libro circular de lomo contínuo, que da toda la vuelta de las paredes”, (idem, ibidem), ou ainda como
“hexágono, cuya circunverencia es inascesible” (idem, p.466), numa descrição e cenário que
parecem inspirados no ambiente da torre onde se refugiava Montaigne para redigir seus ensaios. Essa
biblioteca, que pode guardar o código secreto de Deus e é metáfora do mundo como livro, é
retomado também em ensaios como “Do culto dos livros”, de “Otras Inquisiciones” ( “o mundo,
segundo Mallarmé, existe para um livro; segundo Bloy, somos versículos ou palavras ou letras de um
livro mágico, e esse livro incessante é a única coisa que há no mundo: melhor dizendo, é o mundo”)
(BORGES, 1974, p. xxxxxx ver) ou na citação que Borges faz de Samuel Johnson (1709-1784) sobre
sua relação com o livro: “Leer para mí lo que para Samuel Johnson: ‘todo lo que nos hace olvidar el
aqui y el ahora, todo los que nos aleja de nuestras circunstancias personales, todo lo que nos
ennoblece, todo lo que nos mejora’. Y el placer privado de poseer um libro”. FACEBOO JORGE
LUIS BORGES Fans). Ou ainda no “ “Poema dos Dons”, publicado em 1960 em “El Hacedor”, onde

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o escritor volta à imagem da biblioteca como um lugar prazeiroso, quase místico: “Yo, que me
figuraba el Paraíso/Bajo la espécie de uma biblioteca” (BORGES, 1974, p.809). Por fim, mesmo no
ambiente doméstico, na simplicidade do apartamento que ocupou durante anos na rua Maipú, o
despojamento franciscano onde vivia e criava, a mesa e a cadeira onde escrevia praticamente até o
final da vida, e que chamou a atenção do escritor e crítico peruano Mario Vargas Llosa quando, em
1981, entrevistando um Borges octogenário, teria se surpreendido com a vivenda do argentino e
comentado com ele: “Vive usted prácticamente como un monje, su casa es de una enorme austeridad,
su dormitorio parece la celda de un trapense, realmente es de una sobriedad extraordinaria”, ao que
Borges teria respondido: “El lujo me parece una vulgaridad” (VARGAS LLOSA, 2020, p. .......).
Até seus últimos dias, o ambiente, o gabinete de leitura e escritura, reproduzem o espírito ascético,
recluso e solitário daquele ambiente onde Montaigne se encontra consigo e onde seus pensamentos
divagam, um lugar que é “circular e só é plano o espaço necessário para minha mesa e minha
cadeira” (MONTAIGNE, 2019, p. 377), e onde começou a escrever seus ensaios, criando assim,
desde a gênese do ensaio, uma identificação entre os modos de se portar, de se comportar perante os
atos de pensar e escrever, refletir e poetizar, especular e ficcionalizar, que aproximam os dois
ensaístas. A torre de Montaigne - com três janelas, com estantes de cinco prateleiras, com os livros
arrumados e à mão do escritor – e o gabinete caseiro de Borges assim como o espaço das bibliotecas
públicas onde trabalhou e escreveu parte da sua obra - estimulam a atividade intelectual e operam
como extensão do lar, do ambiente familiar e, portanto, da vida. O clima de intimidade com os livros
e a biblioteca se desenvolve ao longo do ensaio de Montaigne, reforçando a ideia de solidão e
intimidade (“Em casa, desvio-me um pouco mais frequentemente para minha biblioteca, de onde,
com uma só mão, comando minha residência” (idem, p. 378)), o que favorece o ato da leitura e seu
desenvolvimento seguinte e necessário, o pensamento: “ai de quem não tem em casa onde estar
consigo, onde falar privadamente consigo mesmo, onde se esconder” (idem, ibidem).
A biblioteca e a companhia dos livros convertem-se num local inspirador e propício à
reflexão e à busca solitária pelo conhecimento através da leitura e do pensamento. A individualidade
desse ato é valorizada, articulada, organizada e defendida com método e razoabilidade por
Montaigne, é resultado e reflexo do momento em que o ensaísta francês escreve. Publicada pela
primeira vez na primavera de 1580 em Bordeaux, França, e logo em seguida apresentado na corte do
rei Henrique III, em Paris, os “Ensaios” sofreram modificações, acréscimos e novos ensaios ou
partes inteiras de ensaios já existentes até o final da vida (a versão considerada definitiva é a
póstuma, de 1595, três anos após sua morte). Uma obra, portanto, do final do século XVI, o século
das luzes; do alvorecer do individualismo, da expressão desse novo sujeito histórico que surge com a
urbanização crescente da Europa e com a consolidação da primeira fase do modo de produção

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capitalista e do modo de vida burguês em seus primórdios. O escritor francês pratica uma exploração
de si mesmo, e investiga esse formidável mundo novo que o Renascimento havia aberto e que tem
seu período final enquanto processo histórico-cultural exatamente no final daquele século. Não é por
acaso então que a publicação – e a repercussão, o sucesso da obra atestada pelas suas repetidas
reedições – dos “Ensaios” marca a consolidação desse movimento, o substrato final de um saber
acumulado ao longo da redescoberta do Homem como um sujeito individual, particular e autônomo.
Um indivíduo que pensa, que articula um saber acumulado pela tradição greco-latina e preservado
pela escolástica medieval, que ganha autonomia para decidir o que é certo e errado, que busca nas
bases reais e concretas da experiência - não por coincidência um dos ensaios mais conhecidos do
francês intitula-se justamente “Sobre a experiência”, que por sinal é o último texto a aparecer na
edição francesa a partir da qual se origina a edição brasileira aqui utilizada. Mais que concluir o
livro, esse ensaio encerra o conhecimento acumulado ao longo de uma vida inteira de reflexões sobre
a vida real, os relacionamentos efetivos e sobre questões cotidianas de pessoas concretas.
Esse indivíduo, em busca de autoafirmação, divaga e se expõe em outro ensaio, “Sobre o
arrependimento”, onde argumenta a favor do fazer literário, dos textos que escrevia e das elaborações
intelectuais que praticava em torno do deambulatório do seu gabinete no alto da torre. E argumenta
também pela instabilidade, a variabilidade e a diversificação desses textos e pensamentos, numa
defesa apaixonada do seu método de escrever e que viria a se consolidar, a partir de então, como o
gênero ensaístico. “Devo adaptar minha história ao momento. Breve poderei mudar, não só por
acidente, mas também por intenção. É um registro de ocorrências diversas e mutáveis, de ideias
indecisas, e se calhar, contrárias”. (MONTAIGNE, 2019, p. 346). A esta variabilidade se presta o
ensaio, o fluir do texto em prosa sobre os mais diversos assuntos, um direito conquistado pela idade
(e também, claro, pela posição social aristocrática do autor), que lhe concede “mais liberdade de
tagarelar e indiscrição ao falar de si” (idem, p. 347). No francês, essa liberdade se torna exagerada,
beira o exibicionismo. Ele mesmo se declara assim. “Sou o primeiro a fazê-lo por meu ser universal:
como Michel de Montaigne, não como gramático ou poeta ou jurisconsulto” (idem, p. 348) . Essa
ideia norteia os “Ensaios” e é explicitada no texto endereçado ao leitor, onde seu autor se declara:
“Assim, Leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro”. A matéria imperfeita, mutante, instável,
“pois é a mim que retrato. Não pinto o ser, pinto a paisagem” (idem, p. 346), explica ele, e uma
paisagem que é mutante, que pode variar de um dia para o outro, desse instante para o instante
seguinte. E que não se furta a se mostrar – “meus defeitos, minhas imperfeições e minha forma
natural de ser hão de se ler ao vivo” (idem, p.37). Alguém que, “com uma vida tão particular”, queira
falar de forma ampla, geral e para um amplo público, não especializado nem erudito. “Não posso ter
certeza de meu objeto”, afirma ele, para defini-lo como confuso e cambaleante, “como uma

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embriaguez natural” (idem, p. 346). A solidão, um ato absolutamente individual, é condição então
para a operação de refletir e pensar, assim como para a leitura, o estudo e a busca pelo conhecimento
desse novo homem que está surgindo com a emergência da sociedade burguesa.
Montaigne resumiu nos seus “Ensaios” os dois últimos séculos de redescoberta do Homem
pelo Renascimento, e entregou o indivíduo pronto para viver a aventura da Idade Moderna, da era
industrial (a primeira revolução industrial estava em gestação), do mundo que vivemos hoje. O
indivíduo que pensa, que reflete sobre si, que explora esse mundo burguês (embora Montaigne fosse
aristocrata) que se abre, que não está mais preso aos dogmas da Igreja (embora Montaigne fosse
cristão convicto) ou de traições místicas obscuras, nem preso a regras rígidas de convívio social.
A afirmação da individualidade é feita e argumentada a todo momento nos “Ensaios”. O repetição da
ideia de uma liberdade plena (“todo livre”) e autêntica (não qualquer uma, mas a “verdadeira
liberdade”) enfatiza a irrupção política do indivíduo na sociedade europeia do final do século XVI.
Do sexo à velhice, do arrependimento às boas esposas, da embriaguez à inconstância, é um
indivíduo que se descobre e reflete sobre si mesmo pela primeira vez na história enquanto sujeito
autônomo: ´“A pessoa de Montaigne prestava-se a criar um novo tipo de homem: em lugar do cristão
crente, cético ou rebelde, o homem honesto que observa todos os preceitos e abandona as coisas a si
mesmas” (MONTAIGNE, AUERBACH, 2019. p. 29). Um novo indivíduo que, como Montaigne,
vê aberta a possibilidade e o campo infinito para expressar sua opinião (ou seus questionamentos) e
por isso, “diz tudo que lhe vem à cabeça, certo de que a coesão de sua personalidade será forte o
bastante para manter a unidade do todo.... Sobre todos os temas formula suas próprias ideias, e estas
são muitas vezes dubitativas e hesitantes” (AUERBACH, 2011, p.19 ). Montaigne representa
também a criação de um novo profissional neste mundo moderno: o escritor, o homem que escreve
livros e que não é nem poeta tampouco erudito: o autor moderno. Um escritor da aristocracia, que
vive encastelado numa torre medieval, mas que pela primeira vez na história da cultura ocidental
formou uma comunidade de leitores. Não leitores eruditos e que na sua maioria viviam nos
monastérios ou na nobreza, mas de leitores leigos, uma vez que Montaigne nem escrevia tratos
científicos nem teológicos, mas “foi o primeiro a escrever de modo leigo sobre temas importantes”
(AUERBACH< MONTAIGNE< 2019, p. 17). Ele falava e abordava acerca de quase tudo, genérico,
divagante, e de forma alguma especializado. Nesse sentido, era um espírito livre e poético. Escrevia
para uma comunidade que ainda estava sendo construída – a dos consumidores de livros e
publicações da indústria editorial nascente - , formada basicamente por quem possuía alguma cultura
e que começavam a se questionar, questionar sua vida e seu entorno, e que mesmo incerto, acabou se
constituindo como um público ávido por discutir e ter acesso ao conhecimento, aos novos saberes
que estavam se formando. “Montaigne dirige-se a uma nova coletividade e, ao fazê-lo, ele também a

21
cria”. Por isso, “formou uma comunidade de leigos, e seu livro tornou-se um livro para leigos”
(AUERBACH, p. 13)). E o cativa, envolve esse leitor pela sua prosa fácil e nuançada, pelo seu
desenrolar sedutor e fluído, “sem artifícios”, como diria Borges. E o conquista, como pois as pessoas,
seus vizinhos, o moradores da já urbana Bordeaux ou mesmo entre seus pares na corte em Paris
gostam de ler o que ele escreve ao seu bel prazer e fazem com que a impressão dos seus textos
ensaísticos esgotem-se neste incipiente mercado editorial, exigindo novas e sucessivas edições.
É conhecida e famosa a história de um barco carregado de livros que chega da Europa ao
porto de Buenos Aires para ser comercializado numa livraria local (OLMOS, p 42).
TALVEZ AQUI COMENTAR MIGNOLO OU SAID, FALAR DO MERCADO EDITORIAL DA
ÉPOCA. (

Há, em resumo, uma série de semelhanças e atitudes ante o fazer ensaístico, ao ato de pensar
e escrever textos em prosa curta para discutir e divagar sobre os mais diversos, pessoais e até mesmo
idiossincráticos interesses do autor, nesse ato absolutamente individual e subjetivo entre os textos de
Borges e Montaigne. Como já foi afirmado, essa proximidade revela uma certa atitude e postura, um
modus operandi que aproxima os dois autores, como o ato de isolar-se para pensar e escrever, e a
escolha do lugar onde acontece o ato criativo - a biblioteca, o gabinete com uma mesa ou um
deambulatório cercado de livros -, e onde o ato de pensar e andar (no gabinete no alto da torre, em
Montaigne; pelas ruas infinitas de Buenos Aires, no caso de Borges) se conjugam, complementam-se
e estimulam a divagação e a reflexão em forma de escrita. É dessa intimidade que Borges fala nas
palavras finais de “História da Noite”, e que é atribuída pelo argentino a Montaigne. Não a
intimidade do corpo ou a dos desejos, nem aquela familiar ou conjugal – é difícil imaginar, aliás,
temas menos borgeanos do que esses –, ou mesmo assuntos coloquiais. Mas a intimidade com os
livros, a convivência próxima e cotidiana com escritores e suas obras, numa vida em parte reclusa,
onde se entrelaçam a reflexão, a leitura e escritura, e na forma de ver a atividade de escritor que
ambos exerciam como labor principal – Montaigne, aristocrata e com uma vida sem dificuldades
financeiras dedicou-se, entretanto, no final da vida, ao isolamento reflexivo e à atividade de escritor;
Borges sempre viveu para e dos livros (de própria autoria, em colaboração e em coletâneas de outros
autores que selecionava), além dos inúmeros artigos, resenhas e críticas publicados nos mais
diversos meios e veículos de comunicação.
Até aqui vimos como são inúmeros os pontos coincidentes na atitude e na postura dos dois
escritores ante a leitura, a reflexão e a escrita, instrumentalizada através do texto ensaístico, onde a
prosa fluída, as digressões sobre os mais diferentes assuntos, a crítica literária e sobre o próprio fazer
artístico, a relação quase litúrgica com os livros e com o espaço quase sagrado da biblioteca, o ensaio

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como a expressão de uma individualidade moderna e posmoderna –sSe Montaigne representa a
emergência do mundo burgês e da sociedade moderna individualista, Borges pode ser considerado o
representante, pelo menos no campo do ensaio literário, do momento que marca a passagem para o
mundo e a forma de vida pós moderna.
É hora de analisarmos a influência de outra ramificação do ensaio moderno sobre a escrita
especulativa borgeana, qual seja, da literatura e filosofia inglesas que tanto fascinavam o escritor
argentino e que foram fundamentais na constituição da sua personalidade literária e ensaística,
configurando um certo espírito crítico, cético e irônico que procuraremos entender a seguir.

23
Francis Bacon e a filosofia da modernidade
Se Borges adota um certo modus operandi que remete a Montaigne, o fundador da ensaística
moderna, os padrões e pressupostos teórico-filosóficos, o estilo fragmentário e aforístico, refletem a
influência de outro precursor do ensaio como o conhecemos hoje, o inglês Francis Bacon (1561-
1626) e da tradição filosófica e literária inglesa da qual ele é herdeiro e na qual Borges se inspirou
desde cedo, desde as primeiras leituras na biblioteca paterna.
Foi Bacon, pensador, cientista, político e ensaísta, quem se propôs a criar uma nova imagem
da filosofia e estabelecer um método baseado em critérios científicos inspirados na natureza, que
organizariam e classificariam o conhecimento e a produção material visando o progresso e a
melhoria das condições de vida de uma sociedade que tornava-se moderna. Em seus “Ensaios”
(1597) e em obras como “The Advancement Learning”(1605) ou “Novum Organum” (1620), o
pensador inglês propõe uma nova forma de classificar e organizar o conhecimento e a sociedade
visando a satisfações das necessidades materiais a paz e a harmonia para os homens, colocando os
povos numa rota de progresso e bem estar social até então inéditos na história humana. A formulação
mais idealizada dessa ideia aconteceu na sua última obra, um dos seus raros textos ficcionais, onde
ele imagina uma “Nova Atlântida” (1627) da sociedade moderna governada por um colégio de
cientistas - a Casa de Salomão - que proporcionariam um novo mundo maravilhoso construído pela
ciência e pela dominação da natureza e das suas leis.
( É interessante notar como Borges aproveita lateralmente essas ideias de Bacon de forma
literária e dramática, explorando suas consequências em narrativas ficcionais. Dos “Ensaios”, Borges
retira a epígrafe que abre o “El Inmortal”, primeiro conto de “El Aleph” ( “Solomon saith: There is
no new thing upon the Earth. So that as Plato had na imaginatio, that all knowledge was but
remembrance; so Solomon giveth his sentence, that all novelty is but oblivision”(BORGES, 1974,
p./533),), onde sugere que o cientificismo de Bacon admitiria a ideia da repetição dos
acontecimentos sem necessariamente a repetição da história. Da de 1605 do inglês, Borges retira a
ideia que explora em “Do culto dos livros”, ensaio publicado em “Otras Inquisiciones”, de que o
Deus cristão teria escrito dois livros, as Escrituras e o mundo propriamente dito).

As especulações filosóficas e científicas de Bacon ganharam a forma de textos curtos e


aforísticos (outro ponto em comum com Borges), com os quais procurava configurar - mas não
delimitar nem confinar– essas novas ideias e consolidá-las através de um sistema metodológico onde
é “possível, a priori, por meio de argumentos e independente de qualquer experiência, chegar a
conhecimentos não analíticos, ricos em conteúdo”, a partir da hipótese de que “razão e experiência
convergem” (KEIMENDAHL, p.10). Contra a herança da Escolástica ou das trevas da Idade Média,

24
essa nova forma de pensar tem consciência da sua novidade e prepara o caminho para o surgimento
do pensamento racionalista que dominou a Europa e o Ocidente nos séculos seguintes - Descartes,
Hobbes, Locke, Spinoza e Leibinz, só para citar alguns, beberam dessa fonte e formularam as ideias
sobre as quais está assentada sobre as bases da modernidade, onde domina a busca por critérios
científicos e concretos de comprovação e utilidade, e por uma filosofia apoiada na associação entre
ciência e natureza. Para Francis Bacon, o conhecimento deveria ter uma função social de contribuir
para o progresso (dai o aforisma de que “saber é poder”, uma vez que “nenhum outro poder da terra
ergue um trono dominador nos espíritos e almas dos homens, em seus pensamentos, concepções,
opiniões e convicções, como o conhecimento e o saber” (BACON POR KROHN, p. 41) para superar
as demandas e necessidades materiais dos povos via utilização de novas técnicas, conquistando a
“libertação da humanidade pela submissão da natureza” (idem, p.35). Dentro dessa nova lógica, não
é o paraíso prometido pela religião que se quer acender, mas ele será conquistado pelo conhecimento
advindo da ciência e da interpretação da natureza, pela sua dominação e pelo que dela pode ser
utilizado: “um saber verdadeiro é um saber utilitário, ou, em duas palavras, é verdade, o que é
factível” (KREIMENDAHL, P. 16). Por isso, para pensadores como Bacon (mas para John Locke
também), para que a filosofia possa se tornar útil, “os seus resultados devem ser confiáveis, o que
precisamente deve ser garantido pelo método certo” (idem, p.14). Esse “rigor científico”, aplicado
também à filosofia, está na base do pensamento especulativo borgeano, principalmente quando
transita entre a filosofia e a metafísica e articula e discute temas como a eternidade e a refutação do
tempo como uma sucessão contínua de fatos, mas sempre seguindo uma lógica científica ou
especulativa rigorosa.
Se Bacon se propôs a criar uma nova imagem para essa jovem filosofia que surgia da nova
sociedade, e que estava, de forma resumida, baseada na ciência da natureza, na tecnicização do
mundo e na secularização profunda da sua forma de pensar e de se organizar política e socialmente, e
onde a “logica é instrumento do intelecto como o martelo é instrumento das mãos” (SANTIAGO,
s/p) , esse pensamento exigia também uma nova forma de se expressar, um novo estilo, e até um
novo formato para sua obra escrita, ou seja, que viria a ser o livro publicado. O caráter “em
construção” dessa filosofia, que é por sua natureza e da sociedade onde surge, inacabada, em
processo de elaboração, encontra no ensaio, no texto curto e na mensagem concisa a sua forma
preferida. No estudo que faz sobre a filosofia e a forma textual dos “Ensaios’ do pensador e político
inglês, o filósofo brasileiro Homero Santiago procura analisar a “forma do livro e alguns aspectos da
sua elaboração”, vendo na sucessiva reedição, complementação e reescritura dos ensaios uma das
suas características principais, além do seu caráter de “inacabamento necessário” (SANTIAGO,
2007, s/p). O trabalho contínuo sobre o texto, empreendido por Bacon fez com que sua primeira obra

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escrita tivesse dez ensaios na primeira versão publicada em 1597, depois recebesse o acréscimo de
outros 28 ensaios na segunda edição (1612) para chegar ao total de 58 ensaios na edição considerada
definitiva, de 1625. As incessantes revisões, inserções, retoques e mesmo mudanças de opinião ou
retificação de muitas das ideias e intuições que surgem aí revelam um espírito intelectual inquieto
que tem consciência de que, da mesma forma que essa nova sociedade ainda estava se fazendo,
também a sua filosofia deveria construir e elaborar o que ainda não tinha sido realizado e que tinha
ficado obscuro durante a idade das trevas. Esse estilo inconcluso, de esboço e que aceita novas
versões, está ligado também à forma como o pensamento lógico de Bacon se coloca no seu sistema
filosófico: “a nova lógica baconiana se abre para o novo e renega a perenidade, é uma lógica
histórica, pois pode e deve progredir conforme mudam nossas relações com as coisas, a maior ou
menor amplidão do mundo a que nos lançamos”(idem, ibidem), onde as verdades são temporárias e
as certezas não são mais inabaláveis. Por isso, sua filosofia e seu texto (seus ensaios) tornam-se
fragmentários, a ponto de seu sistema filosófico receber como apodo “esboços filosóficos”, já que
Bacon não pretende dar conta de todo o universo nem simplificar a realidade em algumas poucas
leis. A dificuldade de apreender um todo amplo se reflete portanto no texto curto (que no transcorrer
da sua obra se alonga, mas sem perder o caráter provisório e fragmentário), que poderia definir
Bacon também como um “estilista da pequena forma”(KROHN p.35), onde na sua maioria são
constituídos por máximas, aforismos, apotegemas, e onde muitos textos começam com uma citação
ou um enunciado que se quer geral, e adotam na maioria das vezes um sentido ou uma preocupação
elucidativa, formativa e educativa – vale lembra que seu livro “Ensaios” tem como subtítulo
“conselhos civis e morais”, como que a educar uma nova geração que passa a ter acesso a filosofia
moderna que está nascendo para acompanhar e tentar explicar essa sociedade da livre iniciativa e do
livre arbítrio, procurando renovar a sociedade pela ciência e pela técnica.
A forma ensaística, permite a Bacon exercitar e praticar suas reflexões e especular sobre o
método que construiria as bases da edificação da ciência moderna e sua forma não é ocasional ou
casuística, “mas exemplar de uma nova concepção de filosofia que se afasta da canônica ( filosofia =
contemplação -= fim em sim) na medida que se oferece ao homem como instrutora no combate que é
o da existência, concedendo-lhe armas, orientando-lhe por caminhos incertos e perigosos sempre em
direção à realização de seus desejos”. (SANTIAGO, 2007, s/p). Bacon visava fazer, contra o
obscurantismo e o misticismo vigente no período anterior à Renascença, uma completa renovação do
ser humano, da ciência e das artes sobre outros alicerces a partir dos quais se arquiteta a construção
de uma nova história humana, a partir de bases sólidas, observáveis e constatáveis pela observação e
na técnica, nos fatos e não num saber construído e conquistado a priori, pela razão. A importância de
Bacon para a inauguração da modernidade não estaria, então, na formulação de um grande e novo

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sistema que desse conta de interpretar todas as grandes questões filosóficas, mas sua contribuição
deveria sim ser entendida como “um conjunto de sinais cuja força de convencimento” (KROHN, 34)
estava em formulações metafóricas, em analogias e aforismas. O inglês buscou então “novas formas
estilísticas, que lhe permitiram ser um importante escritor e não tanto um destacado pesquisador
empírico” e que o “alto nível de sua estilística e retórica, que lhe garantiu no ambiente linguístico
anglo-saxão um bom lugar na história da literatura, também respira o espírito do humanismo
literário” (KROHN, p. 37), o que reforça sua inserção não só dentro da tradição filosófica inglesa,
mas também da tradição literária, alcançada sobre tudo pela sua produção ensaística.
A proximidade dessas ideias e da sua expressão formal em textos curtos e aforísticos é
evidente com a obra de Borges, tanto no que diz respeito aos arcabouços científicos e lógicos que
deveriam orientar o pensamento e a reflexão, algo que o argentino exercitou à exaustão em seus
ensaios e na sua obra ficcional, quanto à forma curta, crítica e aforística dessas ideias que são
organizadas e discutidas e se entregam ao debate público em fragmentos ensaísticos e que, no caso
de Borges, encontrou nos inúmeros diários e revistas periódicas para os quais contribuiu um meio de
comunicação mais amplo e popular.

Esse novo mundo que se descortinava e ampliava seus horizontes ao longo dos anos 1600
tinha suas semelhanças com a sociedade que surgia do final do século XIX e avançava pela primeira
metade do século XX adiante, época de formação e consolidação das ideias e da obra literária do
argentino. Se a relação com os livros e a atividade intelectual de Montaigne fascinava Borges pela
fluidez do seu texto e pela intimidade com os livros e a busca de um novo saber que se transformava
em textos em prosa ensaística, em relação a Francis Bacon há um deslocamento dessa afinidade (a
relação de intimidade com o pensamento e os livros) para outro campo – o do saber e o rigor da
busca do conhecimento sem verdades estabelecidas ou limites místicos. A intimidade com a ciência,
com o pensamento lógico e metódico, com a especulação sobre as fronteiras (ou a ausência delas)
entre o mundo físico e concreto e a metafísica, a dificuldade da apreensão de uma realidade que
escapa pelas mãos, com essa nova maneira de ver o mundo que surgia e que configuraria a
modernidade é o que podemos apontar como o que mais liga intimamente Bacon a Borges.

???????Assim, as reflexões filosóficas no formato de ensaios, de textos curtos, aforísticos e


especulativos, que econtram em Bacon um dos seus fundadores e e inspiradores, tivram em Borges
um fiel discípulo e continuador. Mas para além do método e do rigor com que elabora seu
pensamento, Bacon representa toda uma tradição que a filosofia inglesa projeta sobre Borges. Se

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com Montaigne é a intimidade com o saber através do seu principal objeto de transmissão, o livro,
com Bacon é a proximidade com a forma de pensar, ou melhor, de se postar, da postura rigorosa e de
lógica implacável colocadas pelo inglês nesse alvorecer da modernidade como uma das suas formas
estruturantes e transmitidas através do gênero ensaístico.

28
Borges e a tradição inglesa
A presença e o permanente diálogo do escritor argentino com a filosofia inglesa é declarada e
inspirou um sem número de análises e artigos críticos mostrando como as discussões metafísicas e
das diferentes correntes da filosofia ocidental (e da oriental traduzida por ocidentais), mas sobretudo
da inglesa, foram determinantes não só para os temas e conteúdos mas também na forma dos enredos
e narrativas que Borges publicou ao longo da vida. Nuño, Rest, Martin, Gutierrez, Prado, entre
muitos outros, analisaram essa relação sob o ponto de vista filosófico, e todos destacam a influência
que a tradição inglesa, expressa pela sua literatura e filosofia, teve na formação e produção literária
do argentino, que já se definiu como um “escritor inglês em língua espanhola”. O próprio Borges,
inúmeras vezes, destacou essa influência em sua obra e pensamento até o final da vida, como no seu
“Ensaio Autobiográfico’, onde remete à influência sobre seu pai e deste sobre o filho. Além da já
citada passagem sobre a biblioteca paterna, e revela suas primeiras leituras, na sua maioria de obras
inglesas. “O primeiro romance que li inteiro foi Huckleberry Finn. Depois vieram “Roughing It “ e
“Flush Day in California”. Também li os livros do capitão Marryat, “Os primeiros homens na Lua”,
de Wells, Poe, uma edição da obra de Longfellow em um volume, “A ilha do tesouro”, Dickens,
Dom Quixote, Tom Brown na escola, os contos de fadas de Grim,m, Lewis Caroll, As aventuras de
Mr Verdant Green, As mil e uma noites, de Burton.... Todos os livros que acabo de mencionar eu os
li em ingl6es. Quando mais tarde li Dom Quixote na versão original, preceu-me uma tradução
ruim.” Junto às primeiras leituras de obras literárias, Borges relembra e lista neste mesmo ensaio
autobiográfico a chegada das ideias inglesas pelas mãos do pai, Jorge Guillermo. “Ele me deu, sem
que eu percebesse, as primeiras lições de filosofia. Quando eu era ainda muito jovem, com a ajuda de
um tabuleiro de xadrez, explicou-me os paradoxos de Zenão: Aquiles e a tartaruga, o voo imóvel da
flecha, a impossibilidade do movimento. Mais tarde, sem mencionar o nome de Berkeley, fez todo o
possível para ensinar-me os rudimentos do idealismo”. Borges, ainda relembrando esse período,
recorda as preferências do pai por Keats, Shelley e Swuinburne, o gosto pela “literatura e livros do
Oriente (Lane, Burton e Payne)”(BORGES, 2009, p.13) ou pelo estudo de seus pensadores
preferidos que, além de Berkeley, eram Hume, Royce e William James. Já no final da vida, o escritor
argentino retorna ao tema numa entrevista que concedeu à crítica e ensaísta norte-americana Susan
Sontag (2013) onde ele confirma Huckleberry Finn, de Mark Twain, como a primeira novela lida, e
“luego leí La conquista de México y del Perú, de Prescott. Y sigo continuamente agradecido,
continuamente recibiendo y tratando de no ser del todo indigno con mis maestros. Yo pienso que en
un escritor influye todo el pasado, no sólo un país o un idioma, sino también los escritores que no ha

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leído, aun los que le llegan por parte del idioma, ya que el idioma, como lo ha dicho Croce, es un
hecho estético, y ese idioma es la obra de miles de personas “.

A continuidade desse pensamento e seus reflexos na obra de Borges podem ser notados em
vários momentos, tanto em textos ensaísticos como em textos ficcionais. Ao prefaciar como “Nota
preliminar’ a edição em espanhol de uma das obras fundamentais da filosofia moderna,
“Pragamtismo”, de William James, publicada em 1945 em Buenos Aires pela Emecê Editores,
Borges volta mais uma vez aos seus precursores e às suas leituras da filosofia inglesas e escrevia,
portanto, com autoridade e conhecimento do assunto, e também como herdeiro e renovador dessa
tradição, como um pensador próximo tanto pelos laços familiares no período formativo quanto pela
contemporaneidade das ideias. O texto de Borges, datado de 14 de março e recolhido depois nos seus
“Textos Recobrados” (1931-1955)“, começa com uma referência ao poeta e ensaísta inglês Samuel
Taylor Coleridge (1772-1834), um dos escritores preferidos e dos mais citados pelo argentino ao
longo da sua obra, para quem o mundo poderia ser dividido entre os seguidores de Aristóteles ou
Platão. ”Los últimos intuem que as ideais são realidades: os primeiros, que son generalizações”,
escreve Borges (BORGES, 2011, VER PÁGINA Nota preliminar). A observação que resume numa
frase uma reflexão ampla e universalizante sobre toda a tradição cultural do Ocidente, é variação e
desdobramento de semelhante digressão feita alguns anos antes, no ensaio “A poesia gauchesca”, um
texto clássico de Borges sobre essa forma poética típica do sul do continente americano e sobre as
discussões que ela engendrou num determinado período sobre refletir – ou não - a verdadeira
identidade nacional argentina. Nesse ensaio, Borges afirma que “El arte, siempre, opta por lo
individual, lo concreto; el arte no es platónico” (BORGES, 1974, p.180).

Aristotélicos e platónicos
A divisão entre aristotélicos e platônicos, proposta por Coleridge, recuperada por Borges
nesse ensaio de 1932 e desenvolvida depois na apresentação da obra de William James em 1945,
coloca em oposição não duas correntes filosóficas nem uma tentativa de resumir a história da
filosofia e do conhecimento humano em duas abordagens ou vertentes distintas. Mas, na verdade e
acima de tudo, coloca lado a lado duas posturas do sujeito pensante diante da questão do
conhecimento e da forma de abordá-lo, de acercar-se dele e da sua apreensão. Poucos anos depois,
em 1949, em outro ensaio, “Das alegorias às novelas” (publicado no outro livro de ensaios do
escritor, “Outras Inquisições”, de 1952), o argentino volta mais uma vez à questão e explica melhor
essa posição ou postura do escritor ou filósofo, definindo-a como a maneira de “intuir a realidade” e

30
repete, com algumas variações, exatamente o mesmo comentário feito em 1945 na Nota Preliminar.
A primeira metade do parágrafo é idêntica:
“Observa Coleridge que todos los hombres nacen aristotélicos o platônicos. Los últimos
intuyen que las ideas son realidade; los primeirros, que son generalizaciones; para estos, el
lenguaje no es otra cosa que un sistema de símbolos arbitrarios; para aquellos, es el mapa del
universo. El platónico sabe que el universo es de algun modo un cosmos, un odren; ese orden, para
el aristotélico pude ser un error o una ficcion de nuestro conocimento parcial. A través de las
latitudes y de las épocas, los dos antagnoistas inmortales cmabian de dialecto y de nombre; uno es
Parménides, Platón, Spinoza, Kant, Francis Bradley, el otro,, Heráclito, Aristótles, Lcoke, hume,
William James” (BORGES, 1974, p. 745 e BORGES, 2011, p. 190(Recobrados).
A partir dessa ponto, ha algumas variações, e a troca da ordem das orações. Na Nota
Preliminar, lemos que “El nominalismo inglês del siglo XIV ressurge em el escrupuloso idealismo
inglês del siglo XVIII; la economia de la fórmula de Occam, entia no sunt multiplicanda pra eter
necessitaten, permite o prefigura el no menos taxativo esse est percipi”. Já no texto de “Das
alegorias às novelas”, escrito quatro anos depois, o autor está mais preocupado em contextualizar
historicamente sua reflexão, e assim o texto fala de
“las árduas escuelas de la Edad Media, todos invocam a Aristóteles, maestro de la humana
razón (Convivio, IV, 2), pero los nominalistas son Aristóteles; los realistas, Platon, Geroge Herny
Lewes há opiniado que el único debate medieval que tiene algun valor filosófico es el de nomilaismo
e realismo; el juicio es temerário, pero destaca la importância de esa controvérsia tenza que uma
sentencia de Profirio, vertida y comentado por Boecio, provoco a princípios de siglo IX, que
Anselmo e Roscelino mantuviero a fines de siglo XI y que Ghillermo de Occam reanimó em el siglo
XIV”.
No prefacio a “Pragmatismo”, Borges atualiza essa filiação histórica das duas grandes
concepções filosóficas e a insere no pensamento do filósofo inglês, contextualizando a questão para
o século XX, uma vez que “William James enriquece, a partir de 1881, esa lúcida tradición. Como
Bergson, lucha contra el positivismo y contra el monismo idealista. Aboga, como é, por la
inmortalidadd y la libertad” (BORGES, 2011, p. 190). De forma geral, embora aristotélicos e
platônicos, “através das latitudes e das épocas os dois antagonistas imortais, trocam de dialeto e de
nome” (BORGES, 1974, p. 745), eles são representados pelo pensamentos de filósofos como
Parménides, Platão, Spinoza, Kant, Francis Bradley (entre os platônicos), que tentam apreender o
mundo real de forma racional e idealista, defendem o intelectualismo, são religiosos e otimistas, e
tendem ao dogmatismo, buscando explicações generalistas e universalizantes tanto no âmbito da
filosofia quanto da criação literária. Já os “aristotélicos”, representados por Heráclito, o próprio

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Aristóteles, John Locke, Hume e William James, seriam empiristas, fatalistas, materialistas, teriam
uma visão pluralistas dos acontecimentos e da realidade, uma atitude antirreligiosa e uma postura
cética diante dos fatos, da realidade ou do que seria a verdade. Herdeiros do Nominalismo e de uma
concepção individual e particular dos acontecimentos (o que, vale ressaltar, coincide com a
concepção e o tratamento que Borges vê no personagem Martin Fierro, que intenta através da voz do
personagem fazer falar um indivíduo, um homem específico, o tratamento específico sem a
preocupação de fazê-lo universal - “Ya veremos después que de todos los héroes de esa poesia,
Fierro es el más individual, el que menos responde a uma tradición” (BORGES, 1974, p. 180) disse
Borges como premissa para concluir que “El arte, siempre, opta por lo individual, lo conreto; el arte
no es platónico”.( Jose Hernandez, autor de Martin Fierro, poderia, portanto, ser incluído dentro
dessa divisão comentada por Borges entre os aristotélicos).
Voltando ao poema “A poesia gauchesca”. A poesia gauchesca foi um gênero que teve vida
curta, pouco mais de um século, e restrita, basicamente ao entorno e zona de influência de um vértice
formado por Montevidéu, Buenos Aires e Córdoba, na Banda Oriental e na Argentina, abrangendo o
pampa e os dois lados do Rio do Prata. Visto como arquétipo, como mito fundador da surgente
nação, como um protótipo do autêntico argentino que tentava se afirmar e via nesse vaqueiro dos
pampas os verdadeiros e tradicionais valores da Argentina, o gaúcho virou símbolo nacional e foi
vítima de apropriações políticas por diferentes grupos de interesse ao longo da história.. Foi também
tratado como modelo a seguir, como representante de uma “verdadeira” identidade nacional, e vítima
de generalizações e de tentativa de imitação do seu jeito de cantar e declamar sobre a vida pastoril, as
andanças e cavalgadas, a vida livre e espírito indomável, que exige uma paisagem e um falar
gauchesco, de cor local.
Neste ensaio onde investiga e inventaria a história desse gênero único, nosso autor define e
recorta a sua concepção, a sua ideia do que é valioso, o que é significativo na produção poética com
a temática do gaúcho, e analisa a construção e elevação desse personagem como mito fundador da
nação enquanto questiona sobre essa mitificação e o que seria definidor de uma discutida identidade
nacional. Não a imitação do falar, a transposição para os versos da oralidade e de um linguajar
supostamente emulativo do jeito do gaúcho falar, tampouco a descrição da lida no campo, o trabalho
nas estancias, a doma de animais, as cavalgadas; a vida livre, quase nômade, de um espírito
indomável num pampa infinito. A exaltação desse personagem e do seu ambiente, e a transformação
desse aspecto como critério definidor da verdadeira literatura nacional, é criticada por Borges, que
aponta como uma das contradições a condição urbana de quem produz o enunciado, uma vez que
seus autores, na sua maioria, escreviam desde as cidades, e quase sempre imaginando ou idealizando
essa figura. Borges inventaria então o que é importante, apontando para o que é genuíno ou autêntico

32
nessa produção, começando por Bartolomé Hidalgo (1788-1822), “o iniciador, o Adão”, (BORGES,
1974, p. 180) deste gênero. Para Borges, o que deve ser absorvido na produção desse poeta (que
chegou a servir como soldado e depois dirigente político em Montevidéu), não são os versos em que
tenta emular a fala do gaúcho que ele deve ter encontrado pelo campo numa das inúmeras guerras
que participou, nem as descrições da paisagem pampeana, a vida no campo, os hábitos e trejeitos. O
que é poético e faz os melhores momentos dos versos de Hidalgo e o faz merecer constar na galeria
dos cânones nacionais, não são esses aspectos pitorescos ou essa preocupação com reproduzir
corretamente uma fala ou uma paisagem, tampouco a intenção de moldar o personagem para
configurá-lo como mito idealizado, mas é a sua unicidade. “Em minha curta experiência de narrador,
comprovei que saber como fala um personagem é saber quem é, que descubrir uma entonação, uma
voz, uma sintaxis peculiar, é ter descubierto um destino” (p. 181), coisa que Hidalgo teria
conseguido fazer com seus poemas.
Hidalgo era de Montevidéu, mas viveu no final da vida e da sua poesia em Buenos Aires até a
morte. Seu sucessor, Hilário Ascasubi (1807-1875), ao contrário, era argentino de Córdoba e
publicou a maior parte dos seus poemas na “bélica” Montevideu (BORGES, 1974, p.184), onde
morou por mais de 20 anos. Como Hidalgo (e como boa parte da produção do gênero gauchesco), o
tema da guerra e as batalhas predominam neste gênero poético feito a partir das lutas emancipatórias
contra os mais diversos tipos de inimigos – a natureza rude, os povos originários guerreiros, o
invasor estrangeiro ou o antagonista interno – nas primeiras décadas do século XIX, onde a
emancipação da Argentina da dominação da metrópole espanhola havia há pouco acontecido, e onde
o vizinho Uruguai (então chamado de Banda Oriental), ainda era disputado por espanhóis e
portugueses e possui portanto fronteiras indefinidas, uma verdadeira terra de ninguém violenta e
selvagem. Neste ensaio, Borges tenta recuperar a importância de Ascasubi, o “Béranger o Rio da
Prata” (em referência ao escritor francês Pierre Jean de Béranger (1780-1857), poeta e criador de
canções revolucionárias pós Revolução Francesa e muito conhecido na época), e cuja participação na
história da literatura gauchesca era vista até então como apenas um rascunho, um borrador de José
Hernandez e de sua obra maior, “O gaúcho Martin Fierro”, ou então como um trovador e provocador
poético que teria irritado o ditador Juan Manuel Rosas (1793-1877). Ou então era lembrado pelas
suas descrições dos bailes (“bailes que parecem evoluir como exércitos” (BORGES, 1974, p.184)) e
das danças típicas, como a que dá o nome a seu poema mais conhecido, “La refalosa”, um relato
violento de uma sessão de tortura. A cena, que teria inspirado Borges e Adolfo Bioy Casares na
composição de “A Festa do Monstro”, conto que escreveram por volta de 1946 em referência à
tomada de poder pelo peronismo e onde há uma cena semelhante, composta por tortura e assassinato,
e uma epígrafe que remete ao poema de Ascasubi – “aqui começa sua aflição”. (BORGES e

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BIOY......), coloca frente a frente dois gaúchos – um partidário de Rosas e membro da sua milícia
violenta e sanguinária, conhecido como “mazorquero”, e outro, Jacinto Cielo, opositor do rosismo,
que é ameçado por uma carta onde sua morte cruel é antecipada com riqueza de detalhes. O título do
poema (que em português seria uma derivação do verbo “resvalar”) é uma referência a uma dança
onde casais bailavam soltos, mas também a uma das formas mais cruéis de execução de prisioneiros
ou inimigos políticos e militares: em pé, eles são degolados para que resvalem em seu próprio sangue
que escorre pelo chão. A cena teria inspirado também “O Outro Duelo”, conto que vamos analisar
com mais detalhe na segunda parte deste estudo, onde uma dupla de gaúchos, simbolizando toda uma
época– é degolada e ambos caem e esparramam seus corpos sobre o próprio sangue. num ritual
macabro que reforça a dominação pelo exercício da violência, comum naquele momento histórico.
Borges, no entanto, vê nos poemas de Ascasubi uma certa inocência típica dos aventureiros, de
homens de ação, de quem havia “peleado em Ituzaingó, defendido nas trincheiras de Montevideo,
lutado em Cepeda (batalhas históricas)”, ressaltando sua vivência em guerras e batalhas (idem,
p.185), mas distante do que provocar ou causar o que, nas palavras de Borges, seria um assombro.
Não seria portanto aí que iríamos encontrar a relevância dos versos de Ascasubi. É novamente na
entonação, no verso trivial ou despretensioso, o que dá perenidade à obra deste autor, é sua
entonação e uma certa “felicidade prosódica”. Não a reprodução de um mundo rural e distante do
citadino, onde se encontra Ascasubi; nem a recuperação e valorização de um universo rústico e
hábitos pastoris, elaborados por um literato, mas o cênico, a “fruição de contemplar”, como ressalta
Borges na obra do cordobês. “Nessa inclinação esta para mim a singularidade de Ascasubi” (idem, p.
183).
O ensaio sobre a poesia gauchesca prossegue com a resenha da literatura argentina e sua
produção poética sobre o gaúcho para falar de Estanislao del Campo (1834-1880), escritor, militar e
funcionário público e que, segundo Borges, procurava imitar Ascasubi. Del Campo publica em 1866,
após assistir a uma ópera no Teatro Colón em Buenos Aires inspirada na obra de Goethe, um poema
também chamado “Fausto” (que depois viria a ficar conhecido como “O Fausto Criollo”), onde um
gaúcho faz pacto com o diabo, em condições parecidas a seu homônimo alemão. Borges detém-se
longamente e ironicamente em discutir uma polêmica que um verso desse poema causou entre os
meios intelectuais argentinos na virada do século XIX para o XX. O verso fala de um cavalo
“parejero de color overo rosado” e a discussão girou em torno da inadequação desse termo – overo
rosado – ao animal usado pelo personagem, uma vez que esse tipo de cavalo era muito raro. “Sseria
o equivalente a falar de um gato de três cores” compara um Borges entediado com o non sense da
discussão, e se declara “indigno de terciar em esas controvérsias rurales soy más ignorante que el
reprovado Estanislao del Campo”. A questão que se coloca, no entanto, é que o verso “em um overo

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rosao” segue agradando nosso autor, “misteriosamente’. Novamente, Borges desloca sua atenção
para outro aspecto do poema, aquele que provoca “o prazer da contemplação da felicidade e da
amizade”. Não as descrições poéticas de amanheceres e anoiteceres no pampa que os versos se
esmeram em reproduzir e cantar (o que soaria um pouco falso, segundo ele), mas o “tono” - “o
essencial é o diálogo, é a clara amizade que transparece no diálogo” (BORGES, 1974, p.187).
Borges analisa ainda em “A poesia gauchesca” a obra de Antonio Lussich (1848-1928), que em 1872
publicou “Los três gaúchos orientales”, poema que remete aos gaúchos que participaram da
Campanha de Aparício, durante a Revolução do Uruguai (fato histórico que é retomado no conto O
Outro Duelo – os dois gaúchos que duelam no final são recrutados para lutar nessa guerra). Mas a
análise sobre a obra de Lussich, essa sim, é mais relevante para ressaltar sua influência sobre o
poema que teria inspirado José Hernandez e sido precursor do Martin Fierro, objeto principal desse
artigo de Borges de 1932. E aqui o que é importante é novamente o tom do texto e dos personagens,
o espírito e não o caractere – “... los hombres de Lussich no se cinen a la noticia histórica y abundan
em passajes autobiográficos. Esas frecuentes digressiones de oreden personal y patético, ignoradas
por Hidalgo o por Ascasubi, son las que prefiguran el Martin Fierro, ya em la entonación, ya en los
hechos, ya en las mismas palabras” (idem, p. 188).
Chegamos então ao cerne desse ensaio que é a análise de Martin Fierro, o poema de José
Hernandez que dá forma e contornos definitivos ao mito do gaúcho como representante de uma
“argentinidad” que tenta se definir e consolidar no final do século XIX e prossegue até pelo menos as
primeiras décadas do século XX, e que foi tema de inúmeros textos em prosa e verso do escritor
argentino. Borges começa sua reflexão acerca dessa obra resumindo em três as formas ou a visão da
crítica e dos escritores locais sobre o poema, que era visto ora com “elogios grosseiros ilimitados” (e
muitas vezes confundido erroneamente, segundo Borges, com epopeias como a Divina Comédia ou o
Cantar del Cid), ora com condescendência, ora como um retrato fidedigno da história e da forma de
falar da Argentina e do seu habitante mais típico, e que ocupou o pampa ao longo do século XIX. O
que faz do poema de Hernandez o auge do chamado gênero gauchesco e que fez sua importância
perdurar sobre a nação argentina e sobre a produção poética e ficcional dos seus escritores, é,
segundo Borges, o relato, a narrativa de um indivíduo que não pretende representar um ideal do
gaúcho ou trata-lo como modelo universal deste tipo sócio-histórico, mas sim a individualidade e
unicidade da sua história inventada. “No es el procedimento de Hernández, que presupone
deliberadamente la pampa y los hábitos diários de la pampa, sin detallarlos nunca - omisió
verosimil de un gaucho , que habla para otros gauchos”. (BORGES, 1974, p. 194)). Não é,
novamente, a questão da paisagem ou a descrição da vida no campo de um vaqueiro que importa,
que destaca a obra e a faz perdurar, mas “la narración del paisano, el hombre que se muestra al

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contar” (p. 197)). Essa operação, essa máquina literária que compõe versos, contempla “uma dupla
invenção: a dos episódios e a dos sentimentos do herói”, o que atenderia com mais propriedade, ,
segundo Borges em “La poesia gauchesca”, sua forma de fazer literatura, que prioriza e privilegia a
criação e a invenção literária a partir da imaginação do autor e não de uma preocupação em
reproduzir a realidade, as situações, o jeito de se comportar e falar, seja de um gaúcho ou qualquer
outro personagem literário. Ao criticar a visão que vê no poema Martin Fierro uma epopeia que daria
forma heroica à formação da nação argentina, Borges prefere encarar os dois volumes do poema
como uma novela, pois seu relato estaria centrado na história narrada desse indivíduo chamado
Martin Fierro, e não como uma saga elegíaca de um herói mítico.
Ao executar essa operação crítica, reinterpretando a história literária argentina, Borges recorta
os elementos que serão incorporados ao seu projeto estético e elege os nomes e os aspectos da
tradição a que se filia. Veremos adiante, quando analisarmos o texto que Borges escreveu como
Prólogo ao livro O informe de Brodie, como ele retorna à essa questão do “tono”, do tom que
transparece na forma de construir o texto, (que e finalmente teria alcançado no final da vida ao voltar
aos temas locais). O tom de cada um, o local que não se preocupa em revelar o universal, mas ao se
voltar para o particular e o que é estritamente pessoal e único revela em si todo o universo – cada “
homem que é todos os homens” (idem, ibidem), escreveu repetidas vezes Borges, e que no caso
argentino é representado pelo Martin Fierro, que torna-se então a concretização literária da arte que
não deve buscar as generalizações ou os denominadores comuns, que não é platônica, portanto,
porque a arte que se realiza plenamente é aquela que “opta por lo individual, lo concreto” (idem,
ibidem). O concreto é a história, o sentimento, a entonação do Martin Fierro, não sua transformação
em mito nacional nem as descrições do pampa ou da vida que levou entre as populações originárias.
O projeto de Borges, portanto, articulado neste texto e desenvolvido em outros ensaios ao longo da
vida, renega essa postura platônica, idealista e racionalista, em favor de uma concepção pragmática,
particular e concreta, apoiada na experiência do individual. Assim, em resumo, no projeto estético
defendido por Borges nesse ensaio, a oposição entre nominalistas e realistas poderia ser transferida
para a oposição entre aqueles que defendem que a poesia e a literatura de forma geral reproduza de
forma realista a cor local na maneira de falar, na descrição dos cenários e nos caracteres típicos do
gaúcho, e aqueles outros, como os nominalistas, que não se preocupam em emular nos seus textos
esses caracteres, e conseguem sim uma entonação, uma voz pessoal e um jeito particular, como é o
exemplo do Martin Fierro, de ser literatura que permanece.
Voltemos agora à “Nota Preliminar” redigida para a edição argentina de “Pragmatismo”, de
William James, e às conexões que essa análise nos permitirá fazer com a filosofia inglesa e sua

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tradição pragmática, liberal e plural, da qual James faz parte, é um importante renovador e
influencidador num círculo muito próximo a Borges, ele incluído.

Nominalismo, pragmatismo e ceticismo


No ensaio “Das alegorias às novelas”, Borges avança ainda mais na discussão entre as duas
formas do artista se aproximar do universo que quer tratar e assim recoloca a questão entre
aristotélicos e platônicos para, à maneira de William James, restabelecê-la na disputa entre
nominalistas e realistas. Afirma o escritor argentino que para o realismo “o primordial eram os
universais (Platão diria as ideias, as formas; nós, os conceitos abstratos), y para el nominalismo, los
indivíduos”, para em seguida concluir e deixar bem claro que não se trata de disputa entre correntes
filosóficas, mas da postura diante do seu objeto: “la historia de la filosofia, no es un vano museo de
distracciones y de juegos verbales; verossimilmente, las dos tesis correspondem a dos maneras de
intuir la realidade” (BORGES, 1974, p. 746). Ao estabelecer esse princípio – um princípio ético,
acima de tudo, conforme Borges afirma textualmente na já citada apresentação ao livro
“Pragmatismo” e que vale ser repetida aqui: “Para um critério estético, los universos de otras
filosofias pueden ser superiores.....; eticamente, es superior el de William James”(BORGES, 2011, p.
191) – de como se portar diante do seu objeto , as “maneiras de intuir a realidade” (aristotélicas ou
platônicas; nominalistas ou realistas). Avançando na análise que faz da transição do mundo das
alegorias para o das narrativas novelescas com personagens individualizados e não mitificados,
Borges estabelece um confronto entre as ideais do filósofo italiano Benedito Croce (1866-1952) e do
escritor e crítico inglês Gilbert K. Chesterton (1874-1936). O primeiro não concorda em estabelecer
uma separação entre conteúdo e forma. “Esta es aquél y aquél es esta”, explica Borges retomando o
italiano, para quem a alegoria tenta conciliar em uma forma dois conteúdos: “el imediato o literal ....
y el figurativo” (BORGES, 1974, p. 744). Chesterton, por sua vez, coloca uma questão que é
fundamental para a modernidade e também para a obra de Borges: a impossibilidade da linguagem
esgotar a expressão da realidade. “El hombre sabe que hay em el alma tintes más desconcertantes,
más innumerables y más anónmos que los colores de una selva otonãl”, cita o argentino da obra do
inglês. (BORGES, 1974, p. 745).
Assim, se por um lado a obra de Borges pode ser lida a partir dessa dificuldade ou
impossibilidade da palavra na sociedade moderna dar conta de uma realidade múltipla,
multifacetada, complexa e inabarcável; por outro lado, essa forma de pensar alegórica, neste
momento histórico ou no contexto da cultura Ocidental da primeira metade do século XX , “además
de intolerable, es estúpido y frívolo” (BORGES, 2011, p. 745). Essa transição da alegoria para a
novela, das espécies para os indivíduos, do realismo ao nominalismo, teria seu marco inicial em

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algumas traduções que o o escritor e filósofo inglês Geoffrey Chaucer fez em 1382 de traduziu
alguns versos de Boccaccio, quando nesse momento realiza a passagem de uma concepção alegórica
da arte para uma nominalista e individualizada ACHO QUE JÁ FALEI DISSO, RETIRAR.

É importante agora entendermos a repercussão das ideias nominalistas e sobre como essa
corrente de pensamento se incorpora à forma de pensar do argentino. Concomitantemente ao
aprendizado da língua inglesa, as leituras de Borges na língua da avó paterna Fany Haslam ajudaram
a configurar sua forma de pensar e ver o mundo e seu estilo enquanto escritor. A influência inglesa é
antiga na família, sobretudo a influência da filosofia pragmática e das questões metafísicas
levantadas por William James (1842-1910) sobre seu pai, Jorge Guillermo (PRADO, 2007, p. 1). Na
biografia que Maria Esther Vázquez escreveu sobre o escritor argentino, ela recorda dos comentários
de Jorges Luis sobre seu pai Jorge Guillermo e cita basicamente os mesmos autores já referidos:
“como lector – recordaba Borges – tenia dos interesses: los libros de metafísica y los de psicologia;
leia a Berkeley, a Hume, a William James y luego a los autores que trataban de civilizadiones
orientales: Lane, Burton (com su prestigiosa traducción de Las Mil Y Una Noches) y Payne”
(VÁZQUEZ, 1999, p.28). Os autores que escreviam sobre as chamadas civilizações orientais
(traduções ou comentários sobre obras, cultura e filosofia) eram, como se vê, também ingleses, o que
implica que parte da visão que o escritor argentino possui sobre o mundo oriental é mediada pelo
olhar e pelas concepções ocidentais de acento inglês.
O nominalismo surge em Borges através das leituras de Guillermo de Occam, citado e
aludido inúmeras vezes nos seus textos, seria um continuador da toda a tradição Clássica (que para
Borges remonta a Aristóteles) e principalmente da Idade Média, desde aquele que é considerado o
fundador do nominalism, o teólogo e filósofo francês Roscelino de Compiègne (1050-1120), e
também do teólogo francês Pedro Abelardo (1179-1142), um dos mais influentes pensadores da
Escolástica (corrente do pensamento ligada ao Cristianismo que predominou na Europa durante a
Idade Média, até o surgimento do Renascimento). Borges faz referência a esse percurso histórico das
ideias com as quais ele dialoga: “Tratemos de’entender, sin embargo, que para los hombres de la
Edad Media lo sustantivo no eran los hombres sino la humanidad, no los individuos sino la especie,
no las especies sino el género, no los géneros sino Dios.”(BORGES, 1974, p.746). e que renasce
mais adiante no século das luzes - “el nominalismo inglês de siglo XIV ressurge em el escrupuloso
idealismo inglês de siglo XVIII”.(BORGES, 2011, p.190), junto com o surgimento de uma
concepção das relações políticas que daria no liberalismo, primeiro esboçado pela teoria do Estado
como Leviatã (1651) por Thomas Hobbes (1588-1679), onde em meio à violenta Guerra Civil
inglesa, ele defende um novo contrato social entre soberano e seu povo, e depois na defesa do livre

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arbítrio por John Locke, que estabeleceu as bases para o Estado Liberal Moderno ao defender que o
homem, por livre e espontânea vontade, cede o direito de ser governado por um Estado que o
representa e o protege da tirania. Considerado fundador do empirismo e de grande influência sobre o
pensamento político moderno, Locke foi inúmeras vezes citado por Borges, é referência nos ensaios
citados (“Das Alegorias a las novelas”, “Nota Preliminar”) e é também personagem de “Funes, o
memorioso”, como o autor da ideia - radicalizada pelo personagem principal do conto - de um
idioma individualizante, onde cada coisas, “cada piedra, cada pajaro y cada rama tuviera um nombre
próprio”.
Essa linha contínua, que vem de Aristóteles, passa pelos medievalistas Roscelino e Abelardo,
chega ao filósofo e teólogo escolástico inglês Guilherme de Occam (1285-1347), assume sua
expressão literária nas traduções de Chaucer e chega até Locke, Bacon, Hume, Berkeley e William
James. Nessa sucessão de pensadores e ideias desenvolvidas na Ilha da Gra Bretanha, Borges
encontra uma identificação e simpatia filosófica e estética e se “sente atraído por essa postura ou
temperamento que recusa o genérico por que sente que o individual es ireductible, inasimilable e
impar” (PRADO, s/p).
Neste mesmo ensaio de 1952, onde trata de alegorias e novelas, Borges constata que o
nominalismo tomou conta do mundo atual. “Nadie se dclara nominalista porque no hay quien sea
outra cosa” e “abarca toda la gente”, numa tendência que remonta o fim da Idade Média. Naquela
época, diz Borges, “lo substantivo no eran los hombres sino la humanidade, no los indivíduos sino la
especia, no las espécies sino lel gênero, no los géneros sino Dios”, o que corresponderia e daria
origem a uma concepção alegórica da literatura, um “fabula de abstracciones”, enquanto a novela,
pelo menos a novela moderna, seria a fábula de indivíduos. A divisão nào é estática nem estanque,
pois as abstrações acabam por personificar suas narrativas, o que seria uma característica da novela,
enquanto estas, ao tratar de indivíduos, buscam o genérico, o que leva a Borges a ver que “en las
novelas hay un elemento alegórico” (p. 746). O nominalismo seria, portanto, uma resposta e uma
maneira de encarar esse mundo fragmentado, onde o homem não consegue mais elaborar abstrações
generalizadoras e universais, dada a complexidade e amplitude dessa sociedade industrial que avança
século XX adiante, e onde cada individuo e cada situação são irredutíveis, onde o real é muito mais
complexo e fugaz que as combinações de palavras ao infinito podem alcançar.
Embora Borges seja irônico ao comentar sobre o nominalismo e o sucesso dessa concepção
no meio intelectual contemporâneo – afinal, tudo e todos são únicos e buscam personalizar sua
história nessa sociedade liberal que valoriza exatamente o individualismo -, esta corrente de
pensamento é provavelmente a forma de se aproximar da realidade que mais influenciou a sua visão
de mundo e seus textos. “Se a uma doctrina filosófica tradicional quede acercarse a Borges es al

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nominalismo y em menor medida al idealismo de George Berkeley” (PRADO, Zulmira). Podemos
identificar a influência dessa corrente em “Funes, o memorioso”, onde Borges explora às últimas
consequências as possibilidades narrativas dessa concepção de que cada momento é único e
irredutível – Irineo Funes é um jovem que tem um dom especial, o de lembrar todos os momentos
vividos e de reproduzí-los ipsi literis. Funes, o personagem principal do conto, “no so recordaba cada
hoja, de cada árbol de cada monte, sino cada uma de las veces que le habia percebido o imaginao”.
Funes percebia e recordava com exatidão tudo o que percebem os sentidos, o que é concreto ou
diverso, o singular e, o que era singular, concreto. Essa memória incrível, que para fazer um mapa de
um país só conseguiria fazê-lo em tamanho real, onde poderia recordar e nominar cada vez tudo o
que pensou, imaginou ou viveu, em cada detalhe.
A operação mental que Funes faz (ou melhor, de que é vítima) é a de negar a possibilidade
da generalização, uma vez que “renuciaba a lo general, a lo universal, a lo que iguala. Se dejaba
arrastar serenamente y sin temor por las impressiones súbitas, por las intuiciones” (GUTIÉRREZ,
EDGARDO, 2001, p. 53) e, em sentido contrário, afirmava o particular, a experiência única e
irredutível do eu, ideia que Borges leva ao extremo e a explora nos seus desdobramentos que levam
ao paradoxo e ao absurdo de uma mente que possa armazenar tantas recordações como a de todos os
homens juntos “desde que el mundo es mundo”. ( GUTIERREZ – BORRGES p.51). E também de
que as palavras não tenham mais nenhuma ou muito baixa relação com o real, e assim, por
consequência, nenhuma possibilidade de conseguir universalizar e querer tornar geral o que é
específico e nominal. Em última instância, esse impasse expõe a crise da linguagem como
representação do real e sua função de simulacro das relações, num momento da história cultural – a
metade do século XX, quando Borges escreve seu conto e articula nos ensaios essa ideia – e num
local – o sul do continente americano – em que escritores e artistas como ele se vêem num impasse,
onde a realidade imaginada, por paradoxal e contraditória, absurda e inexplicável racionalmente que
sejam, tornam-se verossímeis enquanto, percorrendo o caminho inverso, suas verdades (pelo menos
as verdades até então consideradas) se tornam mentira. Buscar essa verdade universal ou uma lei
geral seria uma procura fadada ao fracasso, uma vez que sente “que o individual é irredutível,
inassimilável e ímpar”.(PRADO, BORGES, p. 5.) PARA CONCLUSAO

A proposta que Funes postula se filia à outra, a do filósofo liberal inglês John Locke (1632-
1704), que especula sobre a criação de um “idioma impossível”, sendo a do conte de “Ficciones”
ainda mais radical, uma vez que o personagem fictício recusa aquela proposta - “por demasiado
platônica e demasiado general” - e reivindica algo muito mais radical – não apenas que “cada cosa
individual, cada piedra, cada pájaros y cada rama tuviera um nombre próprio” (BORGES, 1974,

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p......) , segundo o que imaginava Locke, mas as coisas imaginadas e pensadas ou que poderiam um
dia existir seriam também conhecidas por seu próprio nome e não por abstrações generalizadoras,
como acontece com o personagem de memória absoluta. Borges leva esse raciocínio ao limite e à
caricatura, neste conto que, enfim, resume o conflito, o embate e as discussões entre realistas e
nominalistas, ou entre realistas e empiristas ou pragmáticos, e que é uma discussão tipicamente
inglesa, de temperamento e herança calcada na tradição de uma filosofia – mas também na literatura
– produzida na Inglaterra a partir do Renascimento, e que tem em Locke (e antes dele em Hobbes)
um dos seus precursores. É sintomático e nada casual, pois, que ao citar os filósofos que se filiariam
a uma ou outra forma de “intuir a realidade”, aristotélicos ou platônicos, são ambas as listas
formadas basicamente por pensadores clássicos (Platão, Aristóteles, Parmênides, Heráclito) e
majoritariamente por uma grande maioria inglesa: Bradley (classificado do lado dos platônicos),
Locke, Hume e William James, além de Occam e Francis Bancon, citados em outros ensaios, entre
os filósofos, e Coleridge e Chesterton, entre os literatos, definidos como aristotélicos (a lista
comporta ainda dois germânicos - Libniz e Kant, posicionados entre os platônicos). Se Funes faz
uma “caricatura cômica y paródica do nominalismo e do empirismo inglês”. (GUTIERREZ, p. 53),
ele evidencia também, no campo ficcional, a importância que essa tradição inglesa tem na vida e na
obra do argentino. Essa tradição, portanto, transparece não só entre os filósofos, mas também entre
os escritores, uma vez que “no deberiamos olvidar, sin embargo, que la tradición filosófica de un
país no puede degajarse de la tradición literario sino que ambas se complementan e reverberan, de
mo que muchos de los escritores ingleses y norteamericanos que Borges admirou compartían esa
simpatia con un espíritu humanístico, escépticco, liberal que no fue en absoluto monopolio de los
filósofos” (PRADO, 2007, s/p).
A incidência desse pensamento pode ser vista em Borges pelo compartilhamento de algumas
ideias comuns, quais sejam exatamente o nominalismo, o livre pensar, uma atitude anti-metafísica,
anti-religiosa e anti sistêmica, em um texto que se preocupa em ser entendido e onde pode-se
perceber um fino senso de humor, que de forma geral se desenvolveram e consolidaram como um
jeito ou “temperamento” típico das expressões literárias e filosóficas, que vem dos Clássicos e do
Humanismo, e que perduraram, mais que em outros lugares da Europa, entre os pensadores e
escritores ingleses. O Racionalismo de ascendência cartesiana, que vicejou na França e se irradiou
depois por toda a Europa, e que foi decisivo para a entrada no período moderno, eliminou alguma
dessas características trazidas do Humanismo (mas que perduraram sobretudo na Inglaterra). “Uma
filosofia sin compromisso exige determinadas condiciones políticas para poder ser realmente
ejercida, condiciones que, a raiz de um turbulento siglo XVII, se dieron em Inglaterra mucho antes
que em el resto de Europa”, contextualiza a crítica Bernat Castany Prado (xxxx) , reforçando que

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naquele período e naquela sociedade surgiu a percepção de que a liberdade individual não era
apenas uma questão ou discussão no campo do direito político, mas era também uma questão do
espírito, um princípio de vida que se incorporou no seio da cultura e da vida sócio-política daquele
país. “Importa constatar que los ingleses simpre estuvieram del lado de la libertadad individual:
Scoto y su perreminencia de la voluntad sobre la razón; Locke y su defensa de la libertad como ley
básica que debe hobernar al hombre; Berke;ey y su derecho individual de proteccíon contra
dirigentes y boernantes políticas; william James y su defensa pragrmática del libre albedrio”
(PRADO< …..p. 6).
A postura nominalista se desdobra depois no empirismo de Hume e no idealismo de
Berkeley, outras doutrinas que Borges dialogou ao longo dos anos e da sua obra. Essa tradição, que
não seria apenas uma “idiossincrasia” típica da tradição inglesa, mas, historicamente, herdada do
humanismo clássico, foi analisada pelo estudo sobre “La tradicion inglesa em la obra de Jorge Luis
Borges” (PRADO, 2007, s/p), a crítica catalã Bernat Castany Prado recupera essa tradição que vem
de Aristóteles e chega do ao Pragmatismo de William James. Vale acompanhar a Nota Preliminar,
onde em algumas poucas linhas o escritor argentino resume 20 séculos dessa filosofia e seus
antecedentes: “A través de las latitudes y de las épocas, los dos antagonistas inmortales comabian de
dialecto y de nombre: uno es Parmenides, Platón, Anselmo, Leibiniz, Kant, Francis Bradley; el outro,
Heráclito, Aristóteles, Rosecelín, Locke, hume, william James. El nominalismo inglês del siglo XIV
ressurge em el escrupuloso idealismo inglês del siglo XVIII”, (BORGES, 2011, p.190) ISSO JÁ FOI
CITADO. ISSO PODE SAIR

Além do nominalismo, a tradição filosófica e também literária inglesa caracterísza-se pela


ampla e total liberdade de pensamento (forjada, segundo Borges, nas lutas religiosas do século XVII
entre puritanos e católicos, e da defesa ampla da liberdade religiosa que está, inclusive, no centro do
pensamento político de Locke, e que influenciará depois o Iluminismo francês) , o que teria ajudado
na emergência de um sentimento de que todas as crenças teriam direito e liberdade de se expressar,
pressuposto que teria se estendido para todo o corpo político e social. Postura essa que teria atraído
Borges e sua olhar especial pelo “heterodoxo, pelo marginal ou periférico..... e su defensa de los
judios em uma época de proundo antissemitismo y su interés por culturas no hegemônicas como la
escandinava o budista”, criando uma “una cohesión articulada entre los diversos hábitos del
pensamento borgeano – vindicación de las ideas minoritárias, inquisición de las mayoritarias – y uma
relacción de dichos hábitos con la defensa de la libertad de pensamiento y expresión heredados, en
parte, de la tradición inglesa” (PRADO, 2007,s/p)

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A postura anti-dogmática, de liberdade de expressão e pensamento, e de aceitação do
diferente, se revela também num posicionamento contra elaborar sistemas que possam explicar num
todo supostamente coerente as contradições da vida moderna, ou de uma redução e simplificação
dessa complexidade em algumas regras ou linhas básicas generalizantes (como, por exemplo,
buscam fazer as escolas francesas e alemãs). Esse espírito anti sistematização, que possui estreita
relação com nominalismo e ao mesmo tempo dialoga permanentemente com posições contra
metafísicas, encantou Borges durante sua formação como intelectual e também ao longo de toda sua
vida, como vimos nos ensaios até aqui analisados. Assim, uma das consequências dessa postura é a
existência de uma ampla e quase infinita gama de interesses e assuntos que poderiam ser abordados
pela filosofia, vista como uma forma de aquisição de conhecimento ilimitado, sem reducionismos,
aberta à diversidade. O respeito à individualidade e à liberdade de pensamento juntamente com a
postura que anti reducionista, teria sido forjado nas lutas religiosas que aconteceram na Inglaterra
pela afirmação dos puritanos calvinistas contra a Reforma , o que teria feito surgir um profundo
sentimento anti escolástico e anti metafísica entre os pensadores da Ilha, afastando-se portanto da
teologia e dos seus dogmas. Como diz Prado, “la importância que la tradición anglosajona le confiere
a lo irracional tiene tambien una explicación ideológica; la secular reaccion de los pensadores
ingelses contra el determinismo escolástico ou racionalista o positivista”, que via o mundo já dado a
priori, onde tudo e o todo, e suas justificativas ou explicações, buscavam ordenar o universo
mediante um conceito ou uma visão pre concebida e, assim, irrefutável. CETICISMO E LIGAÇÃO
COM BORGES?????
Por fim, a outra característica fundamental da tradição filo-literária inglesa que encontramos
muito forte em Borges é um refinado, discreto e implacável senso de humor. Os já citados “Funes, el
memorioso” e “Pierre Menard” podem ser novamente resgatados aqui. Funes é um exemplo da
exploração de uma ideia filosófica ao absurdo da caricatura, e uma profunda reflexão irônica e
sarcástica sobre essas possibilidades filosóficas. Menard também pode ser lido como “finas bromas,
de paradoias, de burlas de teorias literárias o doctinas filosóficas” (GUTIERREZ, p.64).. Outra
amostra desse humor está no ensaio publicado em “Arte de injuriar”, que está em “História da
Eternidade”, de 1936. Nele, Borges cita uma série de formas ou técnicas de ofender, todas elas no
formato de epigramas indiretos e sutis e de um sarcasmo mais típico do espírito inglês do que de um
humor revolucionário ou escatológico, comuns em outras culturas europeias ou do Mediterrâneo. Por
fim, vale assinalara a proximidade entre Borges e Kafka e a proximidade do humor praticado por
ambos - “el tono es tipicamente inglês y está .... em íntima relación com el esceptiscismo que recorre
su tradición filosófica y literária”. (PRADO, 2007 s/p. ).

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Macedonio Fernandes e William James
A filosofia inglesa chegou a Borges pela tradição familiar mas tembém por outra
personalidade decisiva na sua vida, o amigo escritor e pensador Macedonio Fernandes (1874-1952)
que, entre outras coisas, havia trocado correspondências com o filósofo William James no começo
dos anos 1900, o que conferia contemporaneidade a renovação a debates que vinham dessa tradição.
Essa ligação e as ideias pregadas em caminhadas, encontros e conversações fez de Macedonio um
mestre a quem Jorge Luis se dizia discípulo. A marca desse encontro foi ressaltada superlativamente
no “Ensaio Autobiografico” de Borges: “Supongo que el mayor acontecimento de mi regresso de
Europa fue Macedonio Fernández. De todas las personas que conocí em mi vida – y he conocido
algunos hombres notables – ninguno me impresionó de froma tan profunda y perdurable como
Macedonio” (BORGES, 2009, p. AUTOBIOGRAFIA). Além de admirar a persona, Jorge Luis
Borges se autoacusa de plágio de algumas ideias e forma de escrever de Macedonio, e tentava seguir
sua sem cerimônia e iconoclastia, além de ter no escritor e pensador amigo da família uma espécie de
guia metafísico que teria despertado no jovem Borges o interesse pela filosofia e pelas questões
metafísicas, pela lógica e pela matemática, entre outros campos do conhecimento e especulação. “Yo
sentia Macedonio es la metafísica, es la literatura”. Não para seguir uma determinada corrente de
pensamento ou filiação filosófica, mas extamente ao contrário, por questionar e dissolver num
comentário definitivo os limites dessas correntes, o fascínio de Borges por esse “excêntrico gaúcho
metafísico”(GUTIERREZ, p.61) e “primeiro metafísico argentino que não havia precisado educarse
em Europa ni viajar a Paris para estar a la moda con los acontecimentos culturales del mundo ni para
ponerse al tanto a las opiniones de la intelectualidade de las metropolis” (idem, ibidem).
As intuições de Macedonio propõe a dissolução entre as sensações e imagens oníricas,
eliminando as diferenças entre sonho e realidade, o real e o imaginado, uma vez que “no hay
irrealidade em el ensueño, el ensueno y la vigília son plena e igualmente reales, el mundo, el ser, la
realidade, todo es um sueno sin sonador, um solo soueno, solo um sueno y el sueno de uno solo, por
tanto el sueno de nadie, tanto más es real cuanto más es enteramente um sueno” (idem, p. 57), como
está num dos poucos textos publicados por Macedonio, que notabilizou-se (Borges ajudou muito
nisso) por ser um filósofo, pensador e escritor oral, não escrito. O discípulo teria então conseguido
sistematizar e organizar essas questões melhor que o mestre, mas, mais do que isso, teria explorado à
exaustão o que essas especulações permitiriam em termos narrativos. As especulações que
Macedonio estimulava sobre a dissolução da realidade em sonho e dos sonhos tornarem-se realidade
estão na base de enredos que resultaram em alguns momentos memoráveis da literatura do século

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XX, como os já citados “Funes, el memorioso” e “Pierre Menard”, ou em uma espécie de declaração
explícita de princípios em “El Zahir”, conto de “El Alpeh” (1949), onde Borges afirma que “los
verbos vivir y soñar son rigorosamente sinónimos”. (BORGES, 1974, p.590).
Avançando nesta argumentação, a outra conclusão a que chega Macedonio e é cexplorada
literariamente por Borges é a a desconexão entre a relação que deveria haver entre um fato e outro, a
ruptura da bipolaridade entre causa e efeito ou, levando às últimas consequências, a abolição da
dualidade entre alma e corpo, portanto entre realidade e ficção. Transferindo essa forma de ver o
mundo para realidade ficcional, ela questiona “a la causalidade como fundamento del contar
cuentos, ya se trate de cuentos literários o de cuentos metafísicos”(GUTIERREZ, 2001, p. 59). A
lógica cartesiana e positivista que predominou no pensamento europeu e também americano no final
do século XIX e principio do século XX é relativizada por uma visão menos dicotômica da realidade
e introduz uma abolição dessas dicotomias e dualidades. “La metafísica de Macdonio debe ser
pensada, pues, como uma metafisica sin sujeito ni objeto, sin lo interno y lo externo, sin consciência
y realidade, sin yo y mundo, es decir, al modo de las metafisicas orientales, sin los pares de
categorias típicos de las metafísicas dualistas. El ser, o todo lo que es, es, para Macedonio, un
almismo o psiquismo”. (idem, ibidem).
Se Macedonio é o elo que liga os Borges com a atualidade do pensamento inglês através das
ideias de William James, ele é a conexão também com o idealismo inglês de Berkeley e Hume. As
discussões provocadas pelo amigo e por um certo orientalisimo advindo da leitura de textos budistas,
encontrava na filosofia inglesa seu correspondente no idealismo de George Berkeley (1685-1753),
que junto a Hume estiveram sempre perto do pensamento de Borges e do empirismo produzido na
ilha da Grã Bretanha. Em “La ruinas circulares”, conto de “Ficciones”, podemos ver como Borges
explora à exaustão e ao absurdo as ideias idealistas ou imaterialistas do filósofo George Berkeley
(1685-1753), da mesma forma que fez em “Funes” sobre as ideias nominalistas. No ensaio, Borges
dedicou um texto exclusivo aos paradoxos do pensamento do irlandês - “La encrucijada de
Berkeley”, publicado inicialmente em “Inquisiciones” (1925) (um dos livros de ensaios que depois
Borges eliminou das suas Obras Completas, tema retomado mais tarde em outro ensaio, “Nova
refutação do tempo”, de Outras Inquisiciones” (1952), o que ressalta a importância que as ideias de
mais esse pensador inglês tiveram sobre o argentino.
No ensaio dedicado ao Bispo irlandês, excluído das Obras Completas, Borges aprofunda e
leva ao limite a proposta do idealismo de que somos apenas percepção, que tudo parte da nossa
mente, como o sonho, e questiona a materialidade e concretude do mundo externo. “Berkeley afirma:
sólo existen las cosas em cuanto se fija em ellas la mente. Lícito es responderleL: si, pero sólo existe
la mente como perceptiva y meditadora de cosas. De esta manera queda desbaratada, no sólo la

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unidad del mundo externo, sino la espiritual. El objeto caduca, y juntamente el sujeto”, o que leva o
argentino a concluir que a vida se resumo a um intrincado e instáveis estados de espírito, “un
ensueno sin sonador” (BORGES, INQUISICIONES.1925, LA ENCRUJILLADA DE
BERKELEY”).
Muitos anos depois, em parceria com Alicia Jurado, Borges revisita esse tema ao publicar um
pequeno livro sobre filosofia oriental, “Que es el budismo” (1976). Ao retomar uma das correntes ou
doutrinas do budismo – a Mahayana ( que vem do sânscrito e significa “Grande Veículo”), que se
destaca pelo seu “idealismo absoluto”, por uma teoria que afirma que por trás das aparências não há
nada e o universo é uma ilusão, Para o budismo, escreve Borges e Jurado, somos “una ilusión
vertiginosamente producida por uma serie de hombres momentâneos Y solos”, mostrando a
permanência até o final da vida dessas questões filosóficas colocados pelos pensadores ingleses, que
chegam a Borges pelo empirismo e pelo pensamento de Berkeley e também por Hume ( o argentino
até fez uma “broma” , foi irônico com as ideias dos dois pensadores em ”La postulación de la
realidade”, de “Discusión” (1932), um dos seus primeiros e mais importantes ensaios filosóficos-
metafísicos. Borges aborda diretamente a ligação entre os dois filósofos que lhe acompanhariam o
resto da vida e inicia assim seu ensaio: “Hume notó para siempre que los argumentos de Berkeley no
admiten la menor réplica y no producen la menor convivcción”) (BORGES, 1974 ......). . Foi Hume
quem conduziu ao extremo a crítica contundente à metafísica, levando ela a se aproximar do
ceticismo, na medida em que “la disolución del sujeto, idea tan de moda em la actualidad
posmoderna, fue uma de las contribuiciones más importantes que el filósofo escocés legó a la
historia del pensameineto filosófico. El yo, entendido como sustância idéntica y permamente es, de
acuerdo com Hume, una creencia infundada, una superstición. No hay yo sino um conjunto de
relaciones trabadas por pincipios associativos ( GUTIERREZ, p.49). Esse questionamento está no
centro do debate sobre as formas de intuir a realidade discutidas por Borges e estabelece as bases
para as especulações filosóficas e narrativas que ele faz ao longo da sua obra a partir e sobre o “eu” –
a inexistência, a negação ou o questionamento do “eu” como sujeito histórico e criador de uma obra.

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Ao refazer o caminho que vem de Chaucer a Hume e Berkeley, conseguimos entender agora como
essa tradição e as discussões que ela propunha chegaram a Buenos Aires do início do século XX
sugeridas pelo contato e proximidade do renovador e continuador dessa tradição, o psicólogo e
filósofo norteamericano William James (184201910), e sua repercussão entre o meio intelectual
daquela época, e sobretudo em Jorge Luis, impulsionada pela empolgação de Macedonio Fernandes
e pela influência de Jorge Guillermo Borges. Na defesa que faz em sua obra filosófica mais
importante, “Pragmatismo”, de que as teorias filosóficas ou científicas deveriam ser avaliadas e
criticadas de acordo com seus fins ou resultados, uma vez que elas seriam apenas uma aproximação
da realidade, uma realidade que pela sua natureza é inabarcável, e que poderia ser alcançada apenas
pela representação que a linguagem consegue elaborar pelo discurso e pelas narrativas que engendra.
James adota também uma postura de afirmar a primazia do particular e do individual sobre o geral e
o abstrato e a distinção entre os “espíritos brutos” - onde estariam os empiristas, sensualistas,
materialistas, fatalistas e céticos, entre outros - e os “espíritos delicados” – grupo que seria formado
por racionalistas, idealistas e dogmáticos, entre outros. Essa classificação sugestiva repete de certa
forma a divisão que Borges fez entre aristotélicos e platônicos (sendo que os espíritos “rudes”
estariam filiados à primeira corrente, enquanto os “delicados” seriam uma manifestação da forma
platônica de apreender a realidade.) como postura intelectual ante a intenção de apreender o real (as
tais “maneiras de intuir a realidade”).
Mas devemos acrescer outra categoria que transcende essa bipolaridade e encanta a Borges,
que é a do ceticismo, de um espírito cético e crítico sobre as intenções totalizadoras. Borges reafirma
na “Nota preliminar” a transposição desse embate pela imagem do fluxo incessante das coisas e da
vida, e se colocaria como “un tercer espiritu que, después de conocido el subtítulo de Pragmatismo
(“Un nuevo nombre para alguns antiguos modos de pensar”), no puede ser considerado creación
personal de James sino eslabónd e uma tradición milenária que bautizaremos provisornalmente con
el nombre de escéptica. Borges sugere esta triada de temperamentos o espíritus em el cierre mismo
de la “Nota preliminar” a “Pragmatismo”” (PRADO, 2007, s/p), onde o argentino afirma que : “el
universo de los materialistas sugere uma infinita fábrica insomne; el de los hegelianos, um labirinto
circular de vanos espejos, cárcel de uma persona que cree ser muchas, o de muchas que creen ser
una; el de James, unrio. El incessante e irrecuperable rio de Heráclito”. (BORGES, 2007, p. 192).
Uma terceira via que atenderia as aspirações da grande parte dos homens pensantes, uma vez que
deseja incorporar ambos os lados, buscando combinar as duas formas de pensamento em direção a
um ceticismo essencial para o qual a verdade nada mais é que uma construção verbal que se torna
disponível para todos e que “defende hipóteses tranquilas, soluções medias, não busca simetrias
perfeitas dos sistemas filosóficos, dos epigramas ou dos relatos policiais senão que “mas bien

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recuerda a la populosa novela o al multanime Shakesperare”. (PRADO, 2007, s/p). Borges então se
apropria das discussões que James propõe na obra que ele prepara a “Nota preliminar” e
principalmente da sistematização que sua discussão sobre o Pragmatismo faz do ceticismo, dessa
impossibilidade de se alcançar qualquer certeza sobre a verdade o a realidade imediata. A obra de
Borges e seus comentários e pensamento filosófico sempre mostraram, praticaram e defenderam a
ambiguidade e a pluralidade das coisas e do mundo, os paradoxos e o relativismo ou a falta de
certezas. Ao defender que o pragmatismo é um método, mais que uma doutrina, James fornece a
Borges o arcabouço que vai nortear parte significativa da sua obra, tanto a ficcional quanto a
ensaística, ou seja, a “criação de universos impossíveis que surgem de “receitas racionalistas e
materialistas” (idem, ibdem). Por fim, a crítica catalã assinala ainda que Borges adere à terceira via
filosófica proposta por James, pelo seu caráter ético (e não estético, ou seja, não são as possibilidades
estéticas dessa corrente que atrai Borges,) – “eticamente, es superior el de William James”, diz ele na
“Nota Preliminar”, pois não o tem “dogmas ni doctrinas, excepto su método”, que consiste em ir às
últimas consequências (mesmo que seja ao absurdo) das possibilidades estéticas que outras
doutrinas, mais radicais, possibilitariam (como acontece com outras como ele explorou em Funes ou
no Menard). Assim, a preferência ética não é pela adesão a esta teoria (embora manifeste simpatia)
ou outra, mas pela postura, pela “extracion de inferências de ciertos premisas abstractas hasta dar
com um absurdo, es decir, hasta poner de manifesto uma carência de acuerdo y nexo entre nuestras
nociones, fijadas por simples palavras, y nuestro conocimiento real, derivado de la percepcíon....
utilizando la milenária prueba indirecta o reductio al absurdum que William James hereda de um
Hume que desarollo “hasta el fin la línea de pensamiento iniciada por Locke” (PRADO, 2007, s/p).
Essa terceira hipótese, cética, que não busca simplificar o universo e se conforma em não conhecê-lo,
em reconhecer os limites da razão para apreender um corpus complexo, desordenado e irredutível,
deixou forte impressão em Borges.
Chegamos assim ao ensaio borgeano entendido como a elaboração estética de ideias
filosóficas reflexionadas pelo autor ao longo da sua vida, e também ao texto ficcional como a
exploração dramática e narrativa dessas ideias levadas às últimas consequências, “La unión de las
três interpretaciones –el cuento como refutación, como metáfora epistemológica y como
narrativización de las cosmovisiones humanas – enriquece la obra de Borges. (PRADO, 2007, s/p).
Chegamos também à crise da pos modernidade, que essas discussões e textos de Borges revelam e
denunciam. Para Borges, essa concepção, cuja consequência é abolir também os limites entre
realidade e sonho, ficção e verdade, e questionar o tempo como uma sucessão linear de sequencias de
acontecimentos no espaço, ou em inventar mundos onde o passado, presente e futuro se confundem,
num presente permanente, portanto eterno e atemporal, é uma escolha, uma opção que em última

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instância é ética, a favor da pluralidade, da tolerância, da incerteza e particularidade do mundo. Por
isso, essa forma de pensar agradava tanto Borges, despertava uma “simpatia filosófica” pelo autor
que renovava uma longa história do ceticismo, desconfiando das verdades e do consensado como
real. Assim, Borges e James, e junto com eles toda a tradição inglesa, coincidem na busca dessa via
intermediária, entre aristotélicos e platônicos, ou entre rudes e delicados, ou ainda entre nominalistas
e realistas, encontrando no ceticismo o pilar que organiza não a forma de ver, mas uma postura, um
temperamento diante dos desafios que a filosofia – e a literatura - moderna impõe. Conforme
podemos conferir na obra prefaciada por Borges, James defende que o pragmatismo “no tiene
dogmas ni doctrinas, excepto su método”. E é exatamente isso que Borges incorpora dessa filosofia:
uma postura, um temperamento, um método de ver e abordar a realidade em seus textos, usando a
ironia, o paradoxo e a imaginação para levar ao absurdo e contraditório as premissas de algumas
dessas escolas filosóficas, um procedimento criativo que o crítico brasileiro Davi Arrigucci Jr
precisou como uma mistura de gêneros e devido “ao teor intelectual e filosófico das narrativas”. que
o autor argentino exercitou ao longo de toda sua obra, tendo criado “um novo gênero literário que
participa do ensaio e da ficção: ensaios que exploram suas possibilidades ficcionais e ficções que são
verdadeiros tratados filosóficos” (ARRIGUCCI JR, 1996, s/p).

Conclusão
As leituras, a influência de pessoas muito próximas e importantes à sua formação (o pai Jorge
Guillermo, Macedonio Fernandes) e os debates e diálogos com colegas e outros pensadores sobre as
questões suscitadas pela literatura e filosofia herdadas da tradição inglesa estão presentes na obra de
Borges através de uma apropriação que poderíamos chamar de paródica, levadas aos limites da
perplexidade ou do absurdo como já mostramos nos contos “Funes, o memorioso” e “Pierre Menard,
o autor do Quixote” (entre outros). Apropriação da filosofia pelas suas possibilidades estéticas e
dramáticas, e apropriação de uma literatura que se revela reflexiva, cética e de fina ironia.
A paródia e mesmo apropriação de textos, que Borges executa na obra ficcional, acontece
paralelamente à sua obra ensaística, pela investigação e reflexão exercitada em breves textos de
prosa pelos textos ensaísticos, como destacamos nos já citados “A Poesia Gauchesca”, “Das
alegorias à novela” e na “Nota preliminar” à tradução espanhola de “Pragmatismo”, entre outros que
poderiam ser aqui arrolados e discutidos mas que não fazem parte do escopo principal deste
trabalho.

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Assim, o que Borges construiu como obra literária está no limite dos gêneros e transpassa
suas fronteiras, numa prosa inédita no cenário literário ocidental até então, em textos que
provocavam o deslocamento e a estranheza, “mostrando uma liga de inteligência com imaginação
sempre rara em toda parte, em qualquer época” (ARRIGUCI, 1996, s/p), com um “corte lapidar de
cada frase, revelando poder de síntese e rigor de construção similares aos do verso”, continua o
crítico brasileiro, para quem essa “atitude inquisitiva de busca intelectual do narrador, lembrava o
ensaísta e podia cristalizar em sentenças de tom aforismático, às vezes casadas com muita graça e
uma perspectiva de humor desconcertante. E naquela prosa de clareza, concisão e elegância
clássicas, cada termo reverberava com uma inesperada ironia. Assim, tudo no conjunto confluía de
algum modo para um resultado único, de efeito artístico avassalador”, e completa apontando para o
caráter original e excepcional da sua obra e dos seus temas e a surpreendente abordagem filosófica
do tratamento textual e a “qualidade ímpar de sua prosa; na tradição hispânica, nenhuma brilhou
tanto, desde o Século d Ouro de Cervantes e Quevedo”(idem, ibdem).
Falamos acima da apropriação de textos e pensamentos que Borges faz da literatura e do
pensamento de alguns escritores e filósofos ao longo da sua obra, como um permanente cortar e
colar, uma bricolagem de textos e ideias (SARLO.....), um sintoma que marca e simboliza a perda da
aura do texto original, num processo que ocorreu ao longo do século XIX e que teve seu auge e canto
do cisne na obra poética de Charles Baudelaire (1821-1867), “As Flores do Mal” (1857), analisado
por Walter Benjamin em um dos seus ensaios mais famosos sobre a modernidade
(BENJAMIN< .......) . Esse tomar emprestado o texto dos outros que Borges faz é um dos efeitos
dessa crise que é acompanhada da crise da linguagem como representação do concreto e sua função
de simulacro, embaralhando o que é realidade do que é ficção.. Junto a esse questionamento do
poder da linguagem em fazer uma transcrição artística fiel à realidade, aliada às discussões
filosóficas e metafísicas sobre a linearidade do tempo e do questionamento dos limites do racional
para apreender essa realidade mutante e instável, dissolvem esses limites e torna a realidade
imaginada verossímil, a verdade em mentira. Assim, neste mundo ilusório, construído artificialmente
e conduzido pela linguagem (vale citar novamente “Avatares de la tortuga”, ensaio de “Discusión”
(1932), onde encontramos a afirmação de que “es aventurado pensar que una coordinación de
palabras (outra cosa no son las filosofías) pueda parecerse mucho al universo” (BORGES, 1974,
p.258). Afinal, o mundo é ilusório e resultado de uma elaboração artificial conduzida e formulada
pela linguagem. Da mesma forma, a verdade e a história são produtos do discurso, do juízo e
julgamentos de cada um.
Assim, ao paradoxo colocado pelo idealismo e pelo empirismo ingleses, de questionar a
própria existência da matéria como a conhecemos, num momento em que objeto e sujeito caducam, o

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tempo e o espaço se dissolvem ou deixam de ser concretos e objetivos, o pensamento de ascendência
nominalista e pragmática, mas acima de tudo um pensamento cético, herdado da tradição inglesa, é
apropriado criativamente e inventivamente por Borges e resultam em jogos literários sofisticados e
eruditos, superando os impasses metafísicos pela criação literária, pela filosofia e literatura de cunho
fantástico, com a criação de universos aparentemente impossíveis e irracionais. Ao especular sobre
universos alternativos e levar as ideias propostas por essas discussões ao limite, ao extremo das suas
possibilidades e ao absurdo aparente das suas conclusões, Borges se candidata a ser o elo, a ponte
que liga o espírito inglês de ascendência humanista ao desencanto cético tão característico da pos
modernidade. Se a modernidade pode ser caracterizada pelo racionalismo e pelo cientificismo, pela
substituição do oral pelo escrito (que representa a lógica formal), do particular para o universal o
particular e concreto pelos princípios gerais), o local pelo geral (diversidade e individualidade versos
leis universais e absolutas), o temporal pelo atemporal (o transitório pelo permanente), enfim, contra
todas esses elementos que foram se consolidando no ambiente sócio-cultural da sociedade burguesa
ocidenteal desde os século XV e XVI, Borges e suas elaborações filosóficas e existenciais se coloca
contra o racionalismo e a generalização; contra o realismo e o positivismo, o cientificismo e a lógica
formal, impõe-se a dúvida e a desconstrução dos axiomas, o ceticismo que questiona as verdades
absolutas e, mais ainda, questiona o próprio conceito de verdade. Contra o confinamento do
pensamento em sistemas agregadores e totalizantes ou o atrelamento à realidade, Borges propõem
uma imaginação sem limites, onde os mundos possíveis precisam apenas ser pensados e imaginados.
Uma instância que enfim revela a crise da linguagem como representação do real e da sua
função de simulacro das relações, num momento da história cultural – a metade do século XX,
quando Borges escreve seus contos e articula nos ensaios essa ideia – e num local – o sul do
continente americano– em que escritores e artistas como ele se vem num impasse, onde a realidade
imaginada, por paradoxal e contraditória, absurda e inexplicável racionalmente que seja, torna-se
verossímel enquanto, percorrendo o caminho inverso, suas verdades (pelo menos as verdades até
então consideradas) se tornam mentira. Buscar essa verdade universal ou uma lei geral seria uma
procura fadada ao fracasso, uma vez que Borges sente “que o individual é irredutível, inassimilável e
ímpar”(PRADO, 2007, s/p).

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NOTAS
(1) A epígrafe tem uma nota no pé de página do I volume dos “Textos Recobrados”, esclarecendo
que “el cuarto libro de ensayos que Borges menciona es Evaristo Carreigo, Bunos Aires, Manuel
Gleizer Editor, 1930, cuya nueva edición ampliada por el autor fue publicada veinticinco anos
después por Emecê Editores, Buenos Aires, 1955”.
(2)Na verdade, os canibais a que Montaigne se refere são índios que ocupavam a Baía de
Guanabara, no litoral brasileiro, quando os francesas lá tentaram estabelecer uma colônia por
volta do ano de 1555.
(3) Borges retoma narrativamente essa questão no conto que dá título à coletânea “El informe de
Brodie”. O conto é uma releitura da terceira viagem de Lemoel Gulliver, em “As Viagens de
Gulliver”, do escritor inglês Jonathan Swift, e traz o relato do missionário escocês David Brodie e do
seu encontro e convivência com um povo – os Mlch - de hábitos considerados primitivos e
selvagens, que, no entanto, haviam solucionado de forma “civilizada” – mais civilizada que as
nações modernas - os conflitos de poder e organização social inerentes às sociedades humanas.
Nesta obra, de 1970, predominam os temas da violência e do questionamento sobre o que seriam
“povos primitivos” ou povos de comportamento “civilizado”, que está na origem desse texto
ficcional do final da vida de Borges.
(4) Um bom exemplo do que falamos é “El Simulacro”, texto que está na coletânea de “El Hacedor”,
um relato entre o ficcional e o real sobre a devoção causada pela morte de Eva Perón (1919-1952)

“Nunca saiu de Buenos Aires. Entre 1923 e 1961 fez tudo em BsAs”. Com as livrarias de
BsAs fez tudo. (idem, min 10’). https://www.youtube.com/watch?v=m3htEzn1BIc (pg16)

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