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João José Alves Dias

Outra Perspetiva
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Autor:
© João José Alves Dias (1957-)
CHAM - Centro de Humanidades; DH - FCSH;
CEH, Universidade NOVA de Lisboa
Imagem da Capa:
São João Evangelista
– pormenor.
iluminura de Jean Colombe [Bourges, ativo 1463-1491]
Folha de um Livro de Horas
© FR-Paris: Musée du Louvre
Cabinet des dessins, RF 29086
Grafismo da Capa:
Nicolau Tudela
Edição:
Outra Perspetiva - Lisboa
Impressão:
Artipol – www.artipol.net
Tiragem: 500 exemplares
Depósito legal:469219/20
ISBN:978-989-54526-2-0

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Para o Pedro Mesquita

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IN PRINCIPIO reúne algumas das diferentes «folhas de
sala» produzidas em colaboração com a Biblioteca Nacional de
Portugal.

A instituição tem o hábito de acompanhar cada uma


das suas iniciativas culturais com uma informação gráfica,
volante, que distribui graciosamente. São pequenas folhas
que o frequentador da instituição pode «colher» e levar, como
memória ou como simples apontamento, e que lhe permitem
aprofundar, ou recordar, o que está exposto. Infelizmente
algumas que produzi ficaram perdidas, porque as não
preservei… Nos últimos tempos passaram a ser incluídas,
como memória, na «agenda» da página eletrónica
institucional da Biblioteca.

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Letra perfeita e clara
que se pode ler sem óculos:
Nos 550 anos da morte de Gutenberg

... mundissime ac correctissime


litterae, nulla in parte mendaces,
quos tua dignatio sine labore et
absque berillo legeret...
Aeneas Silvius Piccolomini

Por norma, numa carta ou num diário escreve-se aquilo que se observa, se
vive, ou se pensa de entre o mais extraordinário do que nos acontece e não
tanto o quotidiano, porque esse, pela sua constância, quase não se regista.
Assim aconteceu em 1455, numa carta que o bispo italiano Enea Silvio
Piccolomini (Aeneas Silvius Piccolomini), futuro Papa Pio II, escreveu, a 12
de março, para o Cardeal Juan Carvajal. Nela, o Bispo diz que se encontrou,
na feira de Frankfurt, com um homem maravilhoso que tinha consigo não a
Bíblia completa mas alguns dos seus livros, numa escrita perfeita e clara, que

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o destinatário poderia ler sem esforço e sem óculos1. Conjugando esta
informação com as notas manuscritas no fim de dois volumes dos
exemplares de uma Bíblia impressa2 que se guarda na Biblioteca Nacional de
França – nas quais notas se informa que o trabalho de se iluminar, rubricar
e encadernar se acabou, na Igreja de Santo Estêvão (Stephanskirche), de
Mainz, quer a 15, quer a 24 de agosto de 1456 –, é comumente aceite que
esse homem maravilhoso seria Johann Gutenberg, o qual se encontrava a
receber encomendas para a Bíblia que estava a imprimir, como se conclui
pelo resto da carta. Estes são os raros testemunhos contemporâneos dos
primeiros anos de impressão, dado que os livros nada dizem acerca do modo
como são produzidos – nem data, nem local, nem oficina.

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«De viro illo mirabili apud Frankfordiam viso nihil falsi ad me scriptum est. Non vidi
biblias integras, sed quinterniones aliquot diversorum librorum, mundissime ac
correctissime litterae, nulla in parte mendaces, quos tua dignatio sine labore et
absque berillo legeret» (Erich Meuthen, «Ein neues frühes Quellenzeugnis (zu
Oktober 1454?) für den ältesten Bibeldruck. Enea Silvio Piccolomini am 12. März
1455 aus Wiener Neustadt an Kardinal Juan de Carvajal Meuthen, Erich». In:
Gutenberg-Jahrbuch, vol. 57 (1982) p. 108-118). Cf. também de Martin Davies,
«Juan de Carvajal and Early Printing: The 42-line Bible and the Sweynheym and
Pannartz Aquina». In: The Library, 6th series, 18 (September 1996), p. 193-215.
2
Paris, Bibliothèque nationale de France, département Réserve des livres rares, A-
71 (1-2); VELINS-70

10
Bible de Gutenberg : [Biblia latina]. Ex. sur vélin - Volume 4
[https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9912845/f319.image]
Bible de Gutenberg :
[Biblia latina]. Ex. sur
vélin - Volume 2
[https://gallica.bnf.f
r/ark:/12148/bpt6k
991282d/f399.item]

O trabalho de se iluminar, rubricar e encadernar acabou-se, na Igreja de Santo


Estêvão (Stephanskirche), de Mainz, quer a 15, quer a 24 de agosto de 1456
[Paris, Bibliothèque nationale de France, département Réserve des livres rares,
A-71 (1-2); VELINS-70]

Aceita-se que Gutenberg apresentava as folhas que hoje


conhecemos impressas com apenas 40 linhas como mostruário daquela que
é comumente denominada a Bíblia de 42 linhas.

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O livro impresso começava uma aventura que nunca mais terminaria
até aos dias de hoje. Sem dúvida que foi o grande invento que ajudou a
mudar a humanidade. Embora já lhe tenha chamado o último invento
medievo3, julgo que será mais certeiro dizer que é o primeiro invento da
modernidade pois ele mesmo se transforma e dá corpo a essa nova era.

Gutenberg era ourives de profissão em Straßburg, na época uma


cidade do império na margem do Reno. Na sua profissão utilizava punções
com letras quer para marcar o metal, quer para nele inscrever algumas
frases. A invenção tipográfica consistiu na junção de técnicas: a de estampar
blocos com imagens e frases – como se de um carimbo se tratasse, o que
tinha já grande desenvolvimento no Oriente – e a arte de escrever com ajuda
de punções que vinha desde os romanos. Gutenberg juntou diferentes
punções, cada um com uma letra – móveis entre si – de modo a formar
palavras e, consequentemente, um texto. O truque foi fazer baixar sobre
esses punções, depois de tintos, a folha de papel e, sobre ela conseguir uma
pressão uniforme, a fim de lhe imprimir o que por baixo estava escrito.

No cólofon da primeira obra impressa em Leiria, na tipografia de


Ortas, em janeiro de 1494 – obra que se encontra exposta no expositor 12
[Nevi'im Rishonim = Profetas Primeiros (BNP, INC. 1415)] – ficou-nos, em

3
João José Alves Dias, «A Imprensa Incunabulística Portuguesa: novas interpre-
tações» / II Encontro Internacional de Estudos Medievais / Humanas: Revista do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, 21 (1) tomo 2, 1998, pp. 273-296.

12
hebraico, a manifestação de admiração pelo novo invento, assim como uma
alusão à sua produção: «De perto nos chegaram, há pouco, novidades sobre
as quais um filho nunca teria interrogado o seu pai. Na verdade, é caso para
perguntar se alguma vez existiu um facto como este, desde os tempos mais
recuados da história da Humanidade. A mão escreve um livro às avessas;
abaixa o que está elevado e sobe o que está em baixo. A escrita é produzida
com chumbo, graças a uma ponta de ferro».4

A 3 de fevereiro de 1468 morreu em Mainz, cidade do Santo Império


(hoje território da Alemanha), Johann Gutenberg. Sobre essa data passaram
– no dia 14 de fevereiro (segundo o sistema atual de datação) – 550 anos.
Durante meio século a imprensa desenvolveu-se e transformou-se. As novas
tecnologias quase dispensaram o uso de tipos – já quase ninguém sabe o
que é que significa, na verdade, tipografia = escrever com tipos – e é difícil
encontrar uma oficina com prelos. Vamos assim, nesta exposição, conhecer,
ou recordar, como tudo começou e que técnicas se foram aperfeiçoando
durante o período incunabular, isto é, desde os começos, 1455, até ao ano
de 1501; desde a escrita gótica, à escrita itálica, passando pela lombarda e
pela humanista, nomes que cada escrita foi tendo durante esses anos. De
Mainz, no centro da Europa, até Portugal.

4
João José Alves Dias, Nova forma da transmissão do verbo – a imprensa / Nova
História de Portugal, dir. de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. V, Portugal
do Renascimento à Crise Dinástica, coord. de João José Alves Dias, Lisboa, Editorial
Presença, 1998, p. 498.

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Aldo Manuzio o inventor do itálico
Escolhemos como mote principal da mostra o itálico ou cursivo. Em
setembro de 1500, em Veneza, é impresso, na Casa de Aldo Manuzio, um
livro com a correspondência de Catarina de Siena, freira dominicana
canonizada que, nos dias de hoje, é aceite como Doutora da Igreja. O livro
inclui uma gravura da Santa, idealizando uma das muitas experiências de
êxtase do seu casamento místico com Jesus, trocando com ele o seu
coração.

Poderia ser um livro, um simples livro ilustrado, como muitos dos


outros que eram impressos na cidade italiana. Porém a gravura apresenta
três frases escritas - «iesu dolce; iesu amore; iesu» - numa letra diferente de
todas as outras que a tipografia experimentara e conhecera até então: uma
letra levemente inclinada à direita, um ductus que Aldo Manuzio desenhara
e fizera abrir pelo gravador Francesco Grifo e que ajudava a expressar e a
destacar o êxtase sentido pela santa. Um tipo novo que depressa começou
a correr mundo e que hoje é conhecido como itálico. Uma forma de letra
que no meio de um texto extenso se destaca e chama a atenção do leitor.

Ao passar o quinto centenário da morte de Aldo Manuzio (ca. 1450-


-1515), o homem que ajudou a transformar a tipografia em arte, a Biblioteca
Nacional de Portugal e a Universidade Nova de Lisboa – através do Centro

15
Gravura de Santa
Catarina de Siena,
[Epistole. Orazioni
scelte], Bartolommeo de
Alzano, Veneza, Aldo
Manuzio, setembro 1500
(BNP INC. 1123)

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de Estudos Históricos (CEH) e do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar
(CHAM) – associaram-se em torno dessa mesma efeméride, organizando
uma mostra da obra dos prelos venezianos aldinos (escolhida de entre o
acervo que se encontra à guarda da BNP) e de um seminário, evocando não
só o tipógrafo e Humanista, mas também o itálico como um dos seus
grandes legados à humanidade.

Aldo Manuzio (Bassiano, Lácio, Estados Papais, ca. 1450) tanto pode
ser classificado como um Humanista que se transformou em tipógrafo,
como um tipógrafo que se formou pelo gosto e interesse no estudo e na
divulgação dos clássicos; imprimiu o conjunto de textos inaugurais da
cultura ocidental, na língua original – quer fosse o latim, quer fosse o grego
clássico. A passagem do quinto centenário da sua morte, que ocorreu em
Veneza, a 6 de fevereiro de 1515, está a ser evocada nas principais
Bibliotecas do mundo.

O repertório atribuído à oficina de Aldo Manuzio, impresso durante


a sua vida, está contabilizado em 131 obras, das quais são guardadas pelas
Biblioteca Pública de Évora, uma, e pela Biblioteca Nacional de Portugal, 30,
em 45 volumes distintos. Conserva ainda a BNP duas contrafações realizadas
em Lyon (França).
Dessas 31+2 obras escolheram-se 12 de entre aquelas que
constituem, na nossa ótica, marcos da atividade e inovação dos prelos de
Aldo Manuzio e que ajudam a reconhecer e a divulgar o trabalho deste
grande Humanista.

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Mas Aldo Manuzio não se limitou à invenção do itálico: aperfeiçoou
o parque tipográfico em caracteres gregos que até então só ensaiara dar
pequenos passos (incluindo nesse parque capitulares de grandes
proporções); desenhou um novo corpo romano, o R:114, que permitiu a
impressão de livros em formatos anteriormente quase só reservados a livros
de devoção (in 8.º); inventou o «índice» dos livros; realizou obras ilustradas
que se transformaram em livros de prestígio, de conhecimento, de estudo,
de divulgação e de sonho.
Ao passar o quinto centenário da morte de Aldo Manuzio (ca 1450-
1515), o homem que ajudou a transformar a tipografia em arte, esta mostra
evoca não só o tipógrafo e Humanista, mas também as suas inovações como
grandes legados deixados à Humanidade.

18
Marca de impressão, [Epistole. Orazioni scelte], Bartolommeo de Alzano,
Veneza, Aldo Manuzio, setembro 1500 (BNP INC. 1123)

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A diáspora da palavra
obras de autores portugueses impressas fora de
Portugal no séc. XVI (1501-1520)
A cultura portuguesa no século XVI
conheceu o mundo. Muitas são as obras
escritas por portugueses – de grandes
livros, a pequenos textos, passando por
poemas isolados – que foram impressas
além-fronteiras. Umas acompanharam
a diáspora dos seus autores, outras
foram aí produzidas por razões
económicas ou por interesse dos locais
nos escritos desses portugueses – uns
vivos, outros mortos.

Mas quantos, onde, quando, de


quem, por quem e para quem? Que
temas e que línguas foram utilizados?

Gesta proxime per Portugalenses in


India, Ethiopia et alijs orientalibus
terris. Colonie: Joannem Landen, 1507

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Para responder as estas questões elaborámos um projeto de
investigação que consiste no levantamento de toda a obra de autores
portugueses – porque nascidos em Portugal – impressa entre 1501 e 1600,
fora das fronteiras territoriais lusitanas.

Exaltação da escrita (homenagem a Jerónimo Osório)


In Bispo de Angra do Heroísmo, 1564-1566 (Manuel de Almada) – Epistola
Reverendi patris domini Emanuelis Dalmada aduersus epistolam Gualteri Haddoni …
contra Reuerendi Patris Dn. Hieronymi Osorij … Antuérpia: Ex officina Gulielmi Siluij
(= Willem Silvius), 1566.

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Os resultados dessa investigação vão sendo apresentados – em
exposições sequenciais – na Biblioteca Nacional de Portugal, com os livros
escolhidos entre os exemplares estudados que se encontram nas coleções à
guarda da BNP e da Biblioteca Pública de Évora.

Nem tudo o que foi referenciado constitui obra de tomo; diríamos,


até, que alguma dessa produção pode ser considerada apenas uma pequena
peça de «adorno» que só viveu, sobreviveu e é hoje conhecida e
referenciada, porque «parasitou» uma outra obra, essa sim na época mais
importante - como é o caso das pequenas poesias (ou dos epigramas)
escritos por Aires Barbosa, professor em Salamanca, dedicadas ao seu
colega e amigo Nebrija.

Nesta mostra apresenta-se uma seleção do que foi produzido


durante as duas primeiras décadas do século XVI. Se acaso não for maior -
em quantidade - a obra produzida por autores portugueses impressa fora de
Portugal tem um valor idêntico à produzida intramuros e não pode ser
ignorada.

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Cancioneiro Geral de
Garcia de Resende.
A arte de trovar, que em todo tempo foi mui
estimada…
A BNP assinala os 500 anos da edição do
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
com uma pequena mostra em que se
expõem as variantes de impressão da
primeira edição.
Cancioneiro geral: com privilégio /
[Ordenado e emendado por Garcia
de Resende, fidalgo da casa del
Rei nosso senhor e escrivão da
fazenda do príncipe], Almeirim,
Lisboa. 28 setembro 1516.
[http://purl.pt/12096]

Encontrava-se a Corte portuguesa,


nesses anos de 1515 e 1516, quer em Lisboa quer em Almeirim, quando
Garcia de Resende – talvez inspirado pelo Cancioneiro do reino vizinho de

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Castela (impresso em Valencia, em 1514) – meteu mãos à obra, ordenando
e emendando a impressão de um Cancioneiro Geral de Portugal.

Garcia de Resende – fidalgo da casa


del Rei, escrivão da fazenda do Príncipe D.
João, a quem a obra é dedicada e cujas
armas ilustram a última das folhas
preliminares – para além de compilador
desta obra era também escritor e poeta
nela representado. É assim que, com a
autoridade de quem compõe, informa no
prólogo «que a natural condição dos
portugueses é nunca escreverem coisa que
façam», perdendo-se as memórias que
poderiam rivalizar com as «dos feitos de
Roma, Troia e todas outras antigas crónicas
Gravura Heráldica do Cancioneiro Geral
de Garcia Resende [http://purl.pt/12096] e histórias». Mas não é só na obra épica que
os portugueses são parcos e modestos.
Pelas mesmas razões «muitas coisas de folgar e gentilezas são perdidas sem
haver delas notícia. No qual conto entra a arte de trovar, que em todo tempo
foi mui estimada».

Pelos romances e trovas se fica a conhecer muita da nossa história,


diz-nos ainda o poeta, argumentando que a mesma poesia serve ainda de
castigo àqueles que fogem às normas (pois eram caricaturados nessa poesia

26
de folgar, com destaque no próprio índice). Na obra apresentam-se
composições produzidas entre o ano de 1449 e o ano de 1516, de
aproximadamente três centenas de compositores – nem todos dignos do
nome de poeta. Mas é graças a esta obra que hoje conhecemos alguma da
melhor poesia lírica do país, produzida na época.

Os exemplares do Cancioneiro Geral, com data de impressão de


1516 – cuja composição teria acabado a 28 de setembro, nos prelos de
Hermão de Campos, alemão, bombardeiro e imprimidor (capacidade que
lhe advinha porque controlava a arte da fundição de metais) segundo o
cólofon –, apresentam, numa grande parte do corpo da obra, folhas
compostas e impressas em momentos distintos, por razões que a razão
ainda desconhece.

As variantes de impressão determinam-se quer pela composição


diferenciada (o partir das linhas em momentos de escrita diferentes); quer
no uso de Alfabetos com desenhos diferentes; quer pela introdução ou
ausência de tipos (como o do sinal de parágrafo); quer ainda pela mudança
registada na ortografia de palavras. De quase todas essas variantes tem a
coleção da Biblioteca Nacional de Portugal exemplares originais. (Optou-se,
com consciência, por colocar alguns fac-similes, em vez de reservar na
exposição todos os originais, para facilitar eventuais investigações). Se o
observador prestar atenção às duas primeiras folhas expostas (as que
registam as versões «Gorge» e «Iorje» no começo da 11ª linha) facilmente
encontrará todas as variantes assinaladas.

27
RES. 110 A. RES. 112 A.

28
Sabe-se que os livros até ao momento em que são encadernados –
o que pode até distanciar mais de um século sobre o momento em que
foram impressos –, podem ir recebendo folhas infiltradas. Folhas essas que
recriam uma realidade diferente da verdadeira e que a ajudam a esconder.
É uma gralha que é corrigida; é um deitado que é desmanchado durante a
impressão; ou um rato que roeu um caderno, ou um meio caderno, já
impresso; uma chuva que desfaz algumas folhas armazenadas; um incêndio;
e tantas e tantas outras fatalidades que podem atacar as folhas impressas.
Não se esqueça que também existem ordenações de impressão
extraordinárias: para aumentar uma tiragem que começou por ser mais
pequena e que se quer a meio maior; para fuga ao pagamento de direitos
de autor; para contornar a censura; e tantas outras coisas que a nossa
própria imaginação não consegue hoje comprovar.

Pelas suas caraterísticas (em especial nas poesias de folgar, mas


também naquelas que adornavam façanhas humanas de santidade –
chegando algumas a ser consideradas heréticas - e nas que envolviam
convívio de cristãos com judeus) a obra não escapou ao «machado» da
Inquisição. São muitos os cortes ordenados (uns cortando o poema na sua
totalidade, outros fazendo apenas censuras parcelares). No Index librorum
prohibitorum (Lisboa, 1581) aparece entre os «livros proibidos em
linguagem» as «Obras de graças, zombarias, que andam no Cancioneiro
Geral, português ou castelhano, no que toca à devoção e cousas Cristãs e da
Sagrada Escritura, ou em outra qualquer parte onde estiverem». O Index

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auctorum damnatae memoriae (Lisboa, 1624) publica toda a censura,
assinalando-a verso a verso. Vejam-se dois pequenos exemplos, da forma
como era indicada a censura:

«Fol. 19, p. 2, coln. 1, nas


obras do Coudel mor se
risque uma que começa:
Pelas praças de Lisboa; e
acaba: por si, e pelo
parceiro.»

BNP RES. 111 A. (fol. 19 verso)

30
«Fol. 31., p 2., coln. 3, em
uma resposta que começa
Quem mais perde, se
risque o sétimo verso: Ca
dito tem, com os dois
seguintes; E logo adiante
se risque toda a cantiga de
Antão de Montoro em
louvor da rainha Dona Isa-
bel, que começa: Alta Ray-
nha soberana; e acaba:
recibiera carne humana,
donde se riscará também
todo o nome do Autor.»

BNP – RES. 111 A. (fol. 31


verso)

31
32
Aqu e le ún ic o e xe m p lo …
450 anos da lírica de Camões
Aquele único exemplo… é o
primeiro poema impresso de
Luís de Camões, hoje conheci-
do. É uma «Ode ao Conde de
Redondo», pedindo a prote-
ção para um livro de um
amigo. Integra o conjunto de
paratextos dos Coloquios dos
simples, e drogas he cousas
medicinais da India, de Garcia
de Orta. Foi impresso, em Goa,
em 1563, por Ioannes de
Endem, um impressor alemão
que havia pouco tempo
instalara o seu prelo na Índia
portuguesa.

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Se a Lírica de Luís de Camões é hoje abundante, a sua quase
totalidade só foi impressa depois da morte do poeta. Para além da obra
épica (Os Lusía-
das, impressos, em
Lisboa, em 1572), só
foram divulgados, em
vida do autor, três
poemas: a ode que
agora se evoca; uma
elegia e um soneto,
ambos publicados
na Historia da Prouin-
cia Sancta Cruz, de
Pero de Magalhães de
Gândavo, impressa
em Lisboa, em 1576.

Embora pas-
sem este ano os 450
anos sobre a impres-
são da obra de Garcia
de Orta, que inclui,
repetimos, a primeira
composição lírica de

34
Luís de Camões, a sua primeira versão impressa esteve afastada do
conhecimento comum até à segunda metade do século XIX. É certo que a
«Ode ao Conde de Redondo» passou a integrar a lírica de Camões a partir
da segunda edição das Rimas, impressa em 1598, mas copiada de uma
versão manuscrita que se afastava, em alguns versos, da versão original. Nas
edições seguintes, a ode continua a ser reproduzida com variantes. Faria e
Sousa, na edição comentada, impressa em 1685, confronta as duas versões,
anotando as suas principais variantes, mas prevalecendo a edição de 1598.
E assim se manteve e assim continua na magna edição que o Visconde de
Juromenha faz das Obras de Luiz de Camões (Lisboa, 1861, vol. II, p. 275-
-278).

Serão Tito de Noronha (1881) e, depois, Teófilo Braga (1887) a


defenderem a reintegração da forma primitiva do poema no contexto da
Lírica de Camões. Longe estavam de supor que havia, impressa, em vida do
poeta, uma outra versão da mesma Ode.

A mostra, patente na Biblioteca Nacional de Portugal e feita em


colaboração com o Centro de Estudos Históricos, apresenta as duas versões
da primeira composição poética impressa de Luís de Camões (publicadas em
1563) e as diferentes edições da sua obra lírica, dadas à estampa entre 1595
e 1688.»

35
BNP RES. 456 P.
36
BPE RES 480
37
38
Antes de Lineu
o mundo das plantas na coleção de
impressos da BNP
A moderna taxonomia assenta no trabalho de sistematização levado a cabo
no séc. XVIII por Lineu (1707-1778) que constitui, ainda hoje, um marco na
história da ciência, e da botânica em particular, ao ponto de se poder falar
no antes e no depois de Lineu. Já desde o séc. XVI, porém, que outros, como
o português Garcia d’ Orta, desenvolviam esforços pioneiros de recolha e
sistematização do conhecimento botânico.

Em 2013 completam-se 450 anos sobre a impressão de um dos mais


importantes livros científicos, entre aqueles que foram produzidos no
séc. XVI, no que às plantas diz respeito: Os Coloquios dos simples, e drogas
e cousas medicinais da India, de Garcia d’Orta (Goa, 1563).

Quando Garcia d’Orta nasceu, os principais livros acerca das plantas


eram ou filosóficos ou farmacopeicos: resultado de um saber prático. Os
textos mais estudados e divulgados tinham largos anos – alguns, mesmo,
mais de um milénio, como são os casos dos trabalhos de: Aristóteles,
Teofrasto, Dioscórides, Caio Plínio. Esses trabalhos haviam sido, ao longo do
tempo, comentados, ilustrados e precisados; porém, a base era sempre, ou

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quase sempre, a mesma. Muitas vezes não se sabia com exatidão qual era o
simples de que se falava; qual era, com precisão, a correspondência entre as
plantas da Europa Ocidental e as plantas da Europa Oriental. Não se
conhecia a correspondência exata com o termo grego, latino ou árabe que
os diferentes autores utilizavam. Era, pois, pela prática que se chegava a
uma conclusão.

Pietro Andrea Mattioli – Opera quae


extant omnia […]. [Frankfurt]: off. Nicolai
Bassaei, 1598
BNP RES. 2001 A.

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Com as descobertas da imprensa e do mundo, a Europa passou a juntar ao
saber prático o saber teórico e da observação. No que ao conhecimento
botânico dizia respeito, as viagens de exploração, o conhecimento de novos
simples, a formalização de novas drogas e de novos químicos depressa
tornam obsoletos alguns dos conceitos apresentados nesses livros legados
pelo passado.

Garcia de Orta; Cristovão da Costa -


Aromatum, et simplicium aliquot
medicamentorum apud Indos nascentium
historia: [...]. Antuerpiae : Officina
Plantiniana, apud Viduam, & Ioannem
Moretum, 1593
BNP RES. 4111 P.

41
É neste contexto que surge a obra de Garcia d’Orta cuja importância
não passou despercebida no mundo científico contemporâneo à sua
produção.

Anthoine Colin, mestre-farmacêutico de Lyon, que, em 1602,


publicou a sua Histoire des drogues espisceries, et de certains medicamens
simples, qui naissent és Indes, tant orientales, que occidentales – trata-se, na
verdade, da compilação e tradução de seis tratados científicos de diferentes
autores, um dos quais Garcia d’Orta, que é apresentado com o nome Garcie
du Jardin –, refere na advertência ao leitor:
«É um dever de franqueza reconhecer aqueles pelo meio dos quais
se beneficiou, e é razoável que a honra lhes seja prestada. Pelo que, amigo
leitor, mestre Garcia d’Orta (que foi cerca de 30 anos médico do vice-rei de
Portugal) é o primeiro que com louvor foi pioneiro no conhecimento dos
medicamentos nas Índias Orientais. Depois dele, Cristóvão da Costa
escreve sobre o tema, mas de modo diferente (porque ele ficou restringido
à pouca glória restante) de aumentar o seu volume pelos escritos do seu
antecessor. Imitando-o, Nicolas Monardes (famoso médico de Sevilha)
incluiu na parte oposta os seus desenhos sobre as Índias Ocidentais, com
tal sucesso que ninguém até aqui ousou minorar esse mérito. Tendo todos
três escrito nas suas línguas maternas, parecem ter transmitido esse bem
aos seus vizinhos, os quais ficariam privados dele sem a pena de Charles de
L’Écluse d’Arras. Este douto personagem, tendo reconhecido a importante
utilidade de uma tal obra, para a tornar mais familiar a todas as nações,
traduziu-a para latim, usando porém mais a liberdade de autor do que a

42
exigência do intérprete. Porque ele mudou e resumiu o estilo claro de
Garcia d’Orta; ele cortou o que Cristóvão da Costa tinha acrescentado e
esclareceu Monardes em muitos locais, embelezando o conjunto com
meritosas e doutas observações. Deste modo, a sua fama correu mundo,
assim como a dos primeiros autores que de outro modo teriam ficado
confinados aos limites dos seus países.» (2.ª ed. Lyon, 1619, p. [5]).

Com o Renascimento teórico associado à nova capacidade descritiva


chega-se ao saber científico, em que a Botânica deixa de ser encarada
apenas como «matéria médica» e passa a ser, primordialmente, biológica, e
em que os estudos têm já como objetivo a descrição e a classificação, no que
constitui um primeiro passo para o reconhecimento da sexualidade das
plantas.

43
44
Santa Teresa de Ávila:
Caminho de Perfeição (1515-1582)

Em Gotarrendura, uma localidade perto de Ávila, no reino de Castela, nasce,


a 28 de março de 1515, uma criança do sexo feminino a que é dado o nome
de Teresa. Neste ano, de 2015, comemora-se o quinto centenário desse
acontecimento. Por norma (no século XVI) a mulher só toma um outro
nome, para além do que recebeu no batismo, quando casa ou quando entra
para a vida religiosa. O mesmo se passa com a terceira filha do casal Alonso
Sanchez Cepeda e Beatriz d’Ávila y Ahumada: Teresa recebeu como ápodo
o nome de Jesus. Um prenúncio de toda a misticidade que envolve a sua
vida, durante a qual sente e descreve, como poucos, o êxtase da sua entrega
divina.
Quando morre, em 1582, deixa: obra própria (que a consagra
Doutora da Igreja); uma vida de contemplação e de devoção que constitui a
base da sua quase imediata beatificação; e uma Ordem contemplativa, que
funda, virada para a meditação, e que a transforma numa das maiores
místicas da Igreja. Santa Teresa de Ávila suplanta hoje o nome de Teresa de
Jesus. Não é aqui o lugar para fazer a sua biografia, que já está escrita.
Camino de Perfeccion (Caminho da Perfeição) – que tomámos de
empréstimo para subtítulo desta folha – é um dos livros que madre Teresa
de Jesus lega à humanidade e o único para o qual desenvolve esforços para

45
Pormenor de gravura da obra: Vita S. Virginis Teresiae a Iesu Ordinis Carmelitarum
excalceatorum piae restauratricis […]. Antuerpiae: apud Ioannem Galleum, M.DC.XXX. (BNP
E.A. 14//6 P.)

46
ver impresso. Corre o ano de 1580 quando D. Teotónio de Bragança,
arcebispo de Évora, recebe o pedido de o fazer publicar. Embora frei
Bartolomeu Ferreira acabe a censura a 7 de outubro de 1580, o livro só fica
impresso em fevereiro de 1583, em Évora, na oficina gerida pela viúva de
André de Burgos, sob a denominação Tratado que escriuio la Madre Teresa
de Iesus. A las hermanas religiosas de la Orden de Nuestra Señora del
Carmen del Monesterio del Señor Sanct Ioseph. De Auila de donde a la sazon
era priora y fundadora. Madre Teresa de Jesus morrera cinco meses antes
(4 de outubro de 1582). Mas este é o seu primeiro livro impresso.

A Biblioteca Nacional de Portugal assinala a passagem dos 500 anos do


nascimento de Santa Teresa com a exibição:
a) de uma carta, autógrafa, que a carmelita escreve, de Ávila, a 22 de
outubro de 1571, a D. Guiomar Pardo y Tavera (c. 1555-9.XII.1620),
futura marquesa de Malagón y Frechilla (BNP/COD. 10973);
b) de um dos exemplares do Camino de Perfeccion (Évora, 1583) – cuja
edição fac-similada se encontra em produção acompanhada de uma
versão modernizada (edição conjunta da BNP e do CEH-Nova)
((BNP/RES.4833 P.);
c) e do Álbum de gravuras, produção holandesa, impresso em 1630, em que
é representada a vida de Santa Teresa (BNP/E.A. 14 P.).

47
48
Muitas e muito estranhas
cousas que viu e ouviu…:
O primeiro século de edições da Peregrinaçam
d e Fer na m M e nd e z P in to (1 6 1 4 - 17 1 1 )
Muitas e muito estranhas cousas que viu e ouviu... é um dos subtítulos da
obra que Fernão Mendes Pinto construiu para nela narrar o muito que de
extraordinário viveu e presenciou.

A Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto se fosse escrita hoje,


século XXI, continuaria a ser um livro polémico. Polémico porque nos mostra
o descobridor português tal como ele foi: num momento aventureiro, num
momento soldado, num momento ladrão, num momento mercante, num
momento crente, num momento missionário, num momento embaixador,
num momento homem... mas quase sempre diferente e distante daquela
figura nobre e exemplar que todos gostaríamos que tivessem sido os
descobridores. Fernão Mendes Pinto coloca na boca de Raja Benão,
apresentado como um velho conselheiro e interlocutor do rei dos Tártaros,
mas que não é mais do que um alter ego, esta apreciação sobre os
portugueses: …homens que por indústria e engenho voam por cima das

49
águas todas para adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza neles é

50
águas todas para adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza neles é
tanta, que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira
que lhes causa a sua cobiça é tamanha, que por ela negam a Deus e a seus
pais (cap. 122). É essencialmente por ser um livro polémico, que descreve a
realidade que o Outro não conhece (ou em que não quer acreditar),
conseguindo ironizar e
criticar, que o seu autor
recebe o ápodo de
mentiroso! O próprio autor
tem consciência dessa
probabilidade: … que é
muito para se recear contá-
lo, ao menos a gente que viu
pouco do Mundo: porque
esta, como viu pouco,
também costuma a dar
pouco crédito ao muito que
outros viram. (cap. 14).

51
Mas não é a biografia de Fernão Mendes Pinto que nos interessa
nesta exposição: 1614 nada representa na vida desse escritor que nasce em
Montemor-o-Velho, circa 1510, e morre em Almada, no Pragal, a 8 de julho
de 1583.

O que hoje se evoca


são os 400 anos que passam
sobre a impressão da sua
obra e o impacto, a fortuna,
que a mesma teve em todo
o Mundo. O que está
presente é a aventura de
uma obra, na vertente das
suas muitas e diferentes
edições ocorridas entre
1614 e 1725. O herói da
exposição é o livro,
enquanto livro.

52
Foi na época a obra portuguesa que conheceu o maior número e
variedade de traduções impressas. Se Os Lusíadas (1572), de Luís de
Camões, um seu contemporâneo, foi traduzida para castelhano (1580), latim
(1622), inglês (1655) e italiano (1658), no primeiro século após a sua
impressão, a Peregrinação (1614) foi-o para castelhano (1620), francês
(1625), neerlandês (1652),
inglês (1653) e alemão
(1671) todas conhecendo
diferentes impressões e
edições, algumas delas
apresentadas nesta exposi-
ção pela primeira vez.

53
As surpresas (que foram uma constante) registadas ao longo da
elaboração do catálogo, obrigaram a um confronto suplementar: o da
observação de todos os exemplares das obras expostas. Optou-se, assim,
por apresentar no momento da inauguração um Guia da Exposição – onde
o visitante pode observar e apreender toda a investigação – enquanto não
se consegue o confronto de todos os exemplares conhecidos de todas as
edições da Peregrinação impressas nos séculos XVII e XVIII.5

Ilustram e animam a exposição as doze gravuras abertas a buril, na


Holanda, em Amesterdão, entre 1652 e 1671 e gradualmente impressas du-
rante esse período nas edições em neerlandês e em alemão. Através delas,
o texto de Fernão Mendes Pinto ganha alma. O leitor consegue ver e acom-
panhar a narrativa.

5
Muitas e muito estranhas cousas que viu e ouviu… O primeiro século de edições da
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: Guia da Exposição. 3.ª ed. Lisboa: Biblioteca
Nacional de Portugal : Centro de Estudos Históricos : Centro de História d’Aquém e
d’Além-Mar, 2016; (1.ª 2014; 2.ª 2016 – ed. eletrónicas).

54
Ilustrações da edição impressa em 1671, em língua alemã.

55
56
Cervantes: a figura que se
esconde por detrás da obra
Miguel de Cervantes Saavedra morreu em 1616, em Madrid, a 22 de abril.
Foi romancista, dramaturgo, poeta e militar. Contava então 68 anos de
idade, dado ter nascido em Alcalá de Henares, em 1547, onde foi batizado a
9 de outubro, na igreja de Santa María la Mayor (aceita-se que tenha nascido
no dia de S. Miguel, 29 de setembro).

As aventuras de um cavaleiro que luta contra a fantasia como se ela


fosse uma realidade transformaram-se na sua obra-prima: El Ingenioso
Hidalgo Don Quixote de la Mancha, publicadas em 1605 e em 1615.

Don Quixote, Sancho Pança e Miguel de Cervantes constituem uma


tríade com valores diferentes de enraizamento cultural popular. Numa
estatística empírica arriscamos dizer que a taxa de popularidade do nome
«D. Quixote» deve superar, em uns 75 a 80%, a taxa de conhecimento do
nome do seu autor, ficando pelo meio a da figura «Sancho Pança».

57
El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha / Compuesto por Miguel de
Ceruantes Saauedara. Em Lisboa: Impresso com lisença do Santo Officio por Iorge
Rodriguez, Anno de 1605.

Madrid, BNE, CERV.SEDÓ/8686

58
Não é raro um autor ser menos conhecido do que um herói por si
inventado. Nos dias de hoje, graças aos meios audiovisuais, é normal
conhecerem-se as figuras do Super-Homem, do Capitão América, do Tintim,
do Pinóquio e de tantos outros, desconhecendo-se, na maioria das vezes, o
nome do seu criador literário.

Antes de ser o autor de «obras de gosto e de entretenimento»


publicou alguns poemas (1569) - como aluno do Estudio General da Vila de
Madrid; passou por Roma (ao serviço do cardeal Acquaviva); e aos 24 anos
foi soldado na batalha de Lepanto (1571) onde foi ferido e ficou com o braço
esquerdo inutilizado. As experiências militares sucederam-se no
Mediterrâneo. Acabou cativo em Argel (1575-1580). Regressou a Madrid –
querendo alguns que tenha passado por Lisboa –, dedicando-se a escrever
obras de teatro.

Portugal e Espanha, no início do século XVII, eram dirigidos pela


mesma Coroa, sendo comum o bilinguismo da Corte e dos meios literários.
Portugueses escreviam quer em português, quer em castelhano, publicando
em ambas as línguas quer num lado quer do outro da «fronteira territorial»
que nunca deixou de existir. O mesmo se passava com os castelhanos. A
tradução de Os Lusíadas foi uma exceção.

59
El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha / Compuesto por Miguel de
Ceruantes Saauedara. Em Lisboa: Impresso com lisença do Santo Officio por Iorge
Rodriguez, Anno de 1605.

Oviedo, Biblioteca da Universidad, CEAT - 43

60
Miguel de Cervantes Saavedra constitui um bom exemplo do autor
castelhano que ultrapassa – desde o início da publicação da sua obra – a
fronteira, sem necessidade de tradução. Galatea, a primeira novela
cervantina (obra que nunca completou), conhece uma segunda impressão
em Lisboa, no ano de 1590, cinco anos apenas depois da edição primeira que
ocorrera em Alcalá de Henares, em 1585. A edição portuguesa, comprada
em Évora no ano de 1610, serviu de base à tradução que se publicou em
Paris, em 1611, dado ambas conterem as mesmas omissões.

Francisco de Robles publica, em dezembro de 1604 (mas com data,


na portada, de 1605), em Madrid (en la imprenta de Juan de la Cuesta), um
novo livro de Cervantes: Don Quixote., na sua primeira parte. A obra
transforma-se num êxito editorial, um verdadeiro best-seller. E de imediato
aparecem edições sobre edições, algumas sem conhecimento nem do autor
nem do editor, como aconteceu em Valencia e em Lisboa, aproveitando o
facto de o privilégio da primeira edição referir apenas «el reino de Castilla».
As três, ou mais, edições de Lisboa, podem não ter sido impressas nesse ano
de 1605 – podem até ser contrafações de outras edições, que só um estudo
do papel e do parque tipográfico ajudará a determinar – sendo, contudo,
essa a data necessária a continuar a figurar na portada, para não ser
apreendida. Ontem, como hoje, já se conheciam todas as técnicas de
pirataria de direitos de autor.

61
El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha / Compuesto por Miguel de
Ceruantes Saauedara. En Lisboa: Impresso por Pedro Crasbeeck, Anno M. DCV. [=
1605]

Madrid, BNE, Cerv/1273 R/32301

62
Miguel de Cervantes não se esgota na criação da figura de D. Quixote. Em
1613, publicam-se as suas Novelas Ejemplares em que o autor redige o seu
autorretrato:
Éste que veis aquí, de rostro aguileño, de cabello castaño, frente lisa y
desembarazada, de alegres ojos y de nariz corva, aunque bien
proporcionada; las barbas de plata, que no ha veinte años que fueron de
oro, los bigotes grandes, la boca pequeña, los dientes ni menudos ni
crecidos, porque no tiene sino seis, y ésos mal acondicionados y peor
puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros; el cuerpo
entre dos extremos, ni grande, ni pequeño, la color viva, antes blanca que
morena; algo cargado de espaldas, y no muy ligero de pies; éste digo que
es el rostro del autor de La Galatea y de Don Quijote de la Mancha, y del
que hizo el Viaje del Parnaso, a imitación del de César Caporal Perusino, y
otras obras que andan por ahí descarriadas y, quizá, sin el nombre de su
dueño. Llámase comúnmente Miguel de Cervantes Saavedra. Fue soldado
muchos años, y cinco y medio cautivo, donde aprendió a tener paciencia en
las adversidades. Perdió en la batalla naval de Lepanto la mano izquierda
de un arcabuzazo, herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa,
por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los
pasados siglos, ni esperan ver los venideros, militando debajo de las
vencedoras banderas del hijo del rayo de la guerra, Carlo Quinto, de felice
memoria.

No ano seguinte, 1614, é a Viage del Parnaso que é impressa (Madrid, viuda
de Alonso Martin) seguindo-se-lhe Ocho comedias, y ocho entremeses
nuevos nunca representados, pela mesma casa impressora, em 1615.

63
Segunda parte del ingenioso Cauallero don Quixote de la Mancha / Por Miguel de
Ceruantes Saauedra, autor de su primera parte. Madrid, por Juan de la Cuesta, 1615.

Madrid, BNE,

64
Mas o êxito da primeira parte da obra El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de
la Mancha foi tamanho que um denominado «Alonso Fernández de
Avellaneda», aproveitando os oito anos de tardança do aparecimento da
continuação da narrativa, ousa escrever e publicar um Segundo tomo del
ingenioso hidalgo don Quixote de la Mancha (Tarragona, en casa de Felipe
Roberto, 1614).

Miguel de Cervantes publica então a sua Segunda parte del ingenioso


Cauallero don Quixote de la Mancha (Madrid, por Juan de la Cuesta, 1615) e
com ela imortaliza a sua obra.

O tempo corre adverso, os seus projetos ainda não estão terminados. Quer
compor uma obra que não seja para sorrir. Escreve Los Trabalos de Persiles,
y Sigismunda. Na dedicatória da obra, que só será impressa depois da sua
morte, escreve:
Ayer me dieron la estremaunción y hoy escribo esta. El tiempo es breve, las
ansias crecen, las esperanzas menguan, y, con todo esto, llevo la vida sobre
el deseo que tengo de vivir.

Não viveu muito mais, não chegou a escrever a segunda parte da sua
Galatea, mas deixou uma obra que muito tem feito sonhar. Ajudou a criar
um mundo que sabe sorrir com as suas desventuras. Todos nós já fomos,
somos ou seremos, em qualquer momento da nossa vida, um Dom Quixote
que acaba por deixar de acreditar e morrer...

Lisboa, 1 de agosto de 2016

65
66
Shakespeare: 400 anos
Quem não conhece a expressão: ser, ou não ser, eis a questão... 6
Pode-se afirmar, sem qualquer dúvida, que quase todos sabem que
foi escrita por Shakespeare e que constitui o começo do primeiro
verso daquilo que poderíamos classificar como um poema
monológico integrado no poema dramático Hamlet. Felizes são
«aqueles que por obras valerosas se vão da morte libertando», como
Camões lembrou. É que se, por um lado, estamos a evocar a
passagem de 400 anos sobre a data da morte do seu autor, por outro
lado, estamos a dizer que ele continua vivo, dado que todos os dias
alguém, no mundo, lembra e pronuncia uma frase por si escrita ou
assiste a uma representação (quer em teatro, quer em cinema) de
uma das muitas obras que nos deixou.
William Shakespeare foi um autor (poeta e dramaturgo) e
ator inglês que nasceu em 1564 e morreu em 1616 (ambos os
momentos a 23 de abril) 7. A sua obra é vasta. Aceita-se, comumente,

6
No original «To be, or not to be, that is the question ... » (1.º Ato, 1 ." Cena).
7
Na verdade, os 400 anos da morte de Shakespeare só ocorrem a 3 de maio
porque a Inglaterra só adotou a reforma do Calendário, proposta pelo Papa
Gregoriano, em 1752 (ver o texto das p. 71-73).

67
que compôs 38 peças de teatro (tragédias e comédias baseadas em
factos e personagens históricas), 154 sonetos, 2 longos poemas
narrativos e diversos pequenos poemas. Em todos os seus escritos
perpassa o tratamento do homem como escravo das suas paixões,
nos diversos contextos políticos e culturais, transformando-se,
contudo, ao mesmo tempo, em poeta do amor.

Foi o romantismo que o redescobriu, sobretudo o alemão. Em


Portugal começou a ser apreciado em italiano através das
representações das óperas de Bellini - [I Capuleti e i Montecchi = Os
Capuletos e os Montequios = Romeu e Julieta], levada à cena em 1835,
em Lisboa e no Porto, - e de Verdi - Macbeth, representada no S.
Carlos, em 1849 -, em cujos programas se publicava o texto em
italiano e em português 8.

O rei português, D. Luís, em 1877, começou a publicar uma


série de traduções 9 das obras de W. Shakespeare, tornando-as

8
A opera representada em Lisboa, no Teatro S. Carlos, em 1798, Giulietta e
Romeo, do compositor Nicola Antonio Zingarelli, sobre libreto de Giuseppe
Maria Foppa (estreada em Milão, em 1796), tem por base a novela quinhentista
de Luigi da Porto, fonte comum de inspiração do tema também a W.
Shakespeare.
9
Com a colaboração do Conselheiro Antonio José Viale, professor dele e dos
filhos (D. Carlos e D. Afonso) escolhido por D. Fernando.

68
acessíveis a quem não dominava o inglês ou o francês - língua em que
foi abundantemente lido em Portugal, durante o século XIX. Essas
traduções foram importantes para a difusão da sua obra, tanto em
Portugal como no Brasil.

Revisitemos, na tradução do rei D. Luís, uma adaptação em


prosa do poema declamado por Hamlet: «Ser ou não ser, eis o
problema. Uma alma valorosa, deve ela suportar os golpes pungentes
da fortuna adversa, ou armar-se contra um dilúvio de dores, ou pôr-
lhes fim combatendo-as? Morrer, dormir, mais nada, e dizer que por
esse sonho pomos termo aos sofrimentos do coração e às mil dores
legadas pela natureza à nossa carne mortal; e será esse o resultado
que mais devamos ambicionar? Morrer, dormir, dormir, sonhar
talvez; terrível perplexidade.»

Imagem: Shakespeare. Desenho de Nogueira da Silva, ca 18 50-1860.


BNP E. 525 V. [http:/ /purl.pt/4942]

69
Lisboa, 20 de setembro de
1582

Lei da mudança dos dez


dias do mês de outubro
que se suprimiram por
causa da Reforma
promulgada pelo papa
Gregório XIII, na bula
«Inter gravissimas» de 24
de fevereiro de 1582.

PT/TT/LO/003/3/036

70
Quando 23 de abril, em
Londres, era 3 de maio, em Paris
Há 400 anos, a 3 de maio do ano de 1616, morreu em Stratford-upon-Avon,
William Shakespeare. Não, não é engano. Hoje, sim, dia 3 de maio, é que
ocorrem 400 anos sobre a data da sua morte, segundo o calendário que está
- e estava já - em vigor em Portugal (e em toda a Europa que seguia a Igreja
Católica de Roma). Quando em Londres era 23 de abril, em Lisboa, ou em
Madrid, ou em Roma, era 3 de maio, desde o ano de 1583. Por isso, e ao
contrário do que tem sido anunciado e festejado, Miguel de Cervantes, o
famoso criador da personagem D. Quixote, não foi enterrado no dia em que
Shakespeare morreu. Entre a morte dos dois grandes escritores existe uma
diferença de onze dias, dado que na contagem comum e vulgar da Europa
de hoje, Cervantes morreu em 22 de abril e Shakespeare morreu a 3 de
maio, desse ano de 1616. Afinal o Dia Internacional do Livro, que se festejou
a 23 de abril, passado, não foi, nem é, a data da morte de nenhum destes
dois autores.

E aqui mais uma vez pode aplicar-se a famosa frase de


Shakespeare: Ser, ou não ser! E a questão prendeu-se e prende-se com o
facto de que o firmamento (o céu) que se pode observar sobre o Canal da
Mancha é, poeticamente falando, o mesmo em ambas as margens – mas o

71
calendário seguido no Reino-Unido marcava, nesse momento, uma data
diferente, daquela que era marcada no calendário seguido em Paris. Entre
as duas margens do Canal havia, nesse ano de 1616, dez dias de diferença
num mesmo momento. Pode parecer confuso, mas não é.

Todos sabemos, quase empiricamente, que a terra demora um ano


a completar uma orbita em volta do Sol. O problema é que o ano não
corresponde a uma unidade precisa quando transformado em dias. Quando
Roma, do Imperador Júlio César, no ano 46 a.C., implementou o novo
calendário, fez o ano corresponder a 365 dias e 6 horas, determinando que
as 6 horas de diferença se agrupavam num dia, que se acrescentava ao
calendário, de 4 em 4 anos, criando o famoso ano que ainda hoje se designa
por “ano bissexto” – no calendário romano havia, assim, nesse ano, duas
vezes (bi) um sexto dia antes de se chegar ao mês de março. Mas o problema
é que o movimento de traslação não corresponde exatamente a esses 365
dias e 6 horas. E esse dia que se foi acrescentando de quatro em quatro anos
produziu um desajuste entre o ano astronómico e o tempo medido pelo
calendário. Hoje, sabe-se, que o ano trópico – medido pelo tempo do
equinócio vernal do hemisfério norte – demora, em média, menos 11
minutos do que aquele que estava calculado. Assim, no século XVI, havia já
uma diferença entre o dia astronómico do equinócio da primavera, que
deveria ocorrer no dia 21 de março - segundo a convenção estabelecida pelo
calendário - e a data em que, na prática, acontecia: o dia 11 de março. E isso

72
era, como é, importante para a Igreja de Roma, dado a Páscoa ter como
referência a data do Equinócio para a sua determinação.

No ano de 1582, pela bula Inter gravissimas, de 22 de fevereiro, o


Papa Gregório XIII, promulgou um novo calendário – hoje
denominado Calendário Gregoriano – que determinou que no mês de
outubro desse ano, ao dia 4 seguir-se-ia o dia 15 de outubro. Eram assim
supridos dez dias no Calendário (esses não podem ser suprimidos, porque o
calendário é uma ficção terreste, mas podem ser comutados para um novo
sistema e receberem uma nova designação). E foi isso que aconteceu na
Europa mais respeitadora das normas decretadas pelo Papa de Roma. Mas
o Reino-Unido, assim como a Europa que já não obedecia ao Vaticano, não
aceitou a comutação do calendário – e nesses países a seguir ao dia 4 de
outubro, continuou, nesse ano, a seguir-se o dia 5 de outubro. Para prevenir
o futuro, o novo calendário determinou também que nem todos os anos de
quatro em quatro anos fossem bissextos. Os anos fim de século – embora
até essa data todos o fossem – passavam-no a ser apenas de 400 em 400
anos (os anos de 1600, 2000, 2400, etc.).

Para o que nos interessa Portugal, Espanha, França – e os outros


países da Igreja Católica – passaram a seguir o Calendário de Roma. A Igreja
Anglicana só aceitou o Calendário Gregoriano em 1752 (quando já havia
onze dias de diferença por causa do dia acrescentado em 1700 que, segundo
o novo sistema, deixara de ser bissexto).
3 maio 2016

73
74
Raúl Rêgo Bibliófilo
Qualquer estudioso do livro português conhece o valor dos estudos, em forma
de ensaio, que Raúl Rêgo assinou, ao longo da sua vida, nos diferentes jornais
em que colaborou. Eram crónicas realizadas com o conhecimento profundo e
sábio de um homem culto, que lia, estudava e amava os livros que lhe chegavam às
mãos. É certo que Raúl Rêgo colecionava livros, era um dos grandes bibliófilos
portugueses. Mas colecionar livros é diferente de ser bibliófilo; e ser bibliófilo
também é diferente de ser um estudioso e um expert no assunto: é que um
livro cerrado não traz cultura! Mas o bibliófilo não gosta apenas do livro pelo
conhecimento (ou divertimento) que o mesmo lhe pode proporcionar... gosta do
livro pelo cheiro, pelo formato, pela época em que foi feito, pelo autor que o
escreveu, pela tipografia que o imprimiu e, também, pelo seu conteúdo. Enfim,
gosta do livro pelo livro. E Raúl Rêgo era esse expert, esse bibliófilo, que se
passeava de livraria em livraria na busca de saciar o seu prazer infinito. Depois de
ter caçada a presa, anotava-a, estudava-a e, na maioria das vezes, escrevia
sobre ela.

A Biblioteca Nacional de Portugal organiza, neste momento em que passa


o centenário do seu nascimento, uma mostra evocativa desse bibliófilo. Mostra
que faz uma viagem entre alguns dos seus livros, objetos de estudo e de coleção
– o que nos legou desses anos de investimento. A escolha incidiu entre os livros

75
do século XVI, escolhendo daqueles apenas os que não existem nas coleções da
própria BNP. É a oportunidade para o público entrar em contacto com os
tesouros que ajudaram a formar a cultura do intelectual. Quando se conseguiu
localizar a(s) crónica(s) que Raúl Rêgo dedicou ao mesmo livro, essa crónica é
também apresentada.

Para além desses “meus livros” – nome retirado de uma das suas
crónicas narrativas – apresentam-se, também, alguns livros (ou catálogos de
livraria ou de leilões) que Raúl Rêgo prefaciou, divulgou ou estudou

Apontamento biográfico:

Raul Rêgo – Jornalista, defensor dos direitos cívicos, republicano,


democrata e Pena de Ouro da Liberdade (1976).

Raul d’Assunção Pimenta Rêgo (Morais, Macedo de Cavaleiros,


15.04.1913 - Lisboa, 1.02.2002). Formado em Teologia (1936), mas nunca
ordenado padre, afastou-se cedo da Igreja.

Começou a sua atividade como professor - profissão que teve de


abandonar por pressão do Governo –, enveredando em seguida pelo jornalismo:
Seara Nova (1937), Agência Noticiosa Reuters (Portugal), Jornal do Comércio
(1942-1971) e Diário de Lisboa (1959-1971). Uma nova fase da sua vida de
jornalista começou no jornal República, em 1971, quando integrou a direção deste
vespertino lisboeta (um dos principais jornais defensores dos direitos cívicos e
democráticos durante o Estado Novo) que acaba, em 1975, devorado pela própria

76
Revolução, por não querer abdicar dos seus princípios. Raul Rêgo passa a dirigir
A Luta, jornal criado em 1975, tendo por base os mesmos valores.

Desde sempre democrático e republicano, a sua presença foi uma


constante nas principais manifestações cívicas e anti opressão, tendo conhecido a
cadeia por mais de uma vez. Ajudou a fundar o Partido Socialista, em 1973. Foi
deputado, ministro e presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, depois da
Revolução de Abril (1974). Entrou para a Maçonaria, quando esta organização se
encontrava em clandestinidade (1971), sendo Soberano Grande Comendador
(1984-1988) e Grão-Mestre (1988-1990), no Grande Oriente Lusitano.

Conciliou a sua vida de jornalista e de político com a de homem da cultura,


como escritor e como historiador. Como Humanista que era, tinha como exemplo
Erasmo e como paixão os livros – que colecionava e estudava, sendo um dos
principais Bibliófilos portugueses.

No mínimo que fazia, colocava sempre e sempre os valores da dignidade


humana acima dos seus interesses. Tome-se, apenas como exemplo: a denúncia
dos atos da Inquisição aproveitando, assim, para denunciar os procedimentos da
polícia política.

Entre as muitas obras que escreveu destaquem-se três, como exemplos


das suas preocupações e interesses: História da República, Lisboa, 1986; O
último regimento da inquisição portuguesa, Lisboa, 1971; O processo de
Damião de Goes na Inquisição, (2.ª ed, Lisboa, 2007).

77
78
J. V. de Pina Martins
«um admirador, quase um companheiro
for a d o t emp o, d a q uele te mp o sem
tempo que nós chamamos o Renascimento»

J. V. de Pina Martins, assim gostava de escrever o seu nome, nasceu


em Penalva de Alva, a 18 de janeiro de 1920, e morreu em Lisboa, a 28 de
abril de 2010. A sua vida foi uma formação contínua em torno da língua e de
livros, ambos nos seus diferentes e variados aspetos… Filólogo de formação
(Filologia Românica, Universidade de Coimbra), começou por ensinar língua
e literatura portuguesas em «La Sapienza» (Università di Roma), onde foi
leitor de 1948 a 1955. Paralelamente, inscreveu-se como estudante de
«Storia del Libro» em La Scuola Vaticana di Biblioteconomia.

Na Itália pós-guerra foram muitas as famílias que desmantelaram as


bibliotecas e venderam os seus cimélios. Pina Martins, que desenvolvia o
«amor à beleza e à ciência» através do livro, teve, assim, oportunidade de
começar a formar uma biblioteca dedicada ao Humanismo e à Cultura
Europeia dos séculos XIV a XVII. Se o seu primeiro amor começou por ser
francês – Blaise Pascal, mais motivado pela filosofia e a teologia

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(espiritualidade e defesa do cristianismo jansenista), com uma dissertação
de licenciatura Miséria e grandeza do Homem em Les pensées de Blaise
Pascal –, a sua passagem por Roma transformou-o em «um admirador,
quase um companheiro fora do tempo, daquele tempo sem tempo que nós
chamamos o Renascimento» (nas palavras de Eduardo Lourenço 10) que
aparece aprimorado no estudo Humanisme et Renaissance de l’Italie au
Portugal. Les deux regards de Janus. Giovanni Pico della Mirandola e Sá de
Miranda transformam-se nas duas faces, tal como um Janus, que viviam no
pensamento intelectual de Pina Martins. A eles se juntavam depois, e só
depois, Camões, Erasmo, Thomas More, João de Barros e tantos outros.

Usou pelo menos dois pseudónimos: Duarte de Montalegre (a partir


de 1941), autor de uma meia dúzia de livros, entre ensaios e poesia; e Miguel
Mark Hytlodey (2005), como autor da Utopia III (acerca desta obra ainda
falta publicar a decifra de alguns nomes fictícios, mais pessoais).

De 1955 a 1962 exerceu funções de Leitor de Cultura Portuguesa na


Universidade de Poitiers. Entre 1962 e 1972 foi «segundo assistente» da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; a esta Universidade voltou,
em fim de carreira, como catedrático convidado (1983-1990), depois de se
ter doutorado em Paris, em 19 de dezembro de 1974 (Université Sorbonne
Nouvelle - Paris 3).

10
«Recordando J. V. Pina Martins» / Estudos Italianos em Portugal, Instituto Italiano
de Cultura de Lisboa, nova série, n.º 5, 2010, p. 177.

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81
Colaborou com a Biblioteca Nacional em diversas iniciativas, com
destaque para a exposição comemorativa do 4º centenário de Os Lusíadas
em 1972.

A Fundação Calouste Gulbenkian serviu-lhe de abrigo e lugar de


trabalho, quer em Paris, como diretor do Centro Cultural Gulbenkian, quer
em Lisboa, como diretor do Serviço de Educação. Passou pela Academia das
Ciências de Lisboa (Académico desde 1985) de que foi presidente.

Dedicou uma parte da sua vida ao estudo do Tratado de confisom,


que em 1965 (25 de maio) deu a conhecer em ensaio publicado no Diário de
Notícias. Um dos primeiros livros impressos em língua portuguesa que, com
alegria, veio ter com ele. A esta obra voltarei no último momento desta
evocação. Pina Martins defendeu sempre que a sorte não era do
investigador que encontrava o documento. A sorte era do documento que
era descoberto por esse investigador, que o tirava do anonimato e lhe dava
o valor que entendia ele merecer. Mas foram muitos os livros que ganharam
alma e vida graças aos estudos de Pina Martins. Hoje apenas o queremos
recordar – como ele gostava – rodeado pelos seus muitos maravilhosos
livros com que, com gosto e amor, formou a sua “Biblioteca de Estudos
Humanísticos de Lisboa”, lindamente instalada na Rua Marquês de
Fronteira. Acerca de alguns livros dessa biblioteca escreveu o livro Histórias
de Livros para a História do Livro, através do qual o leitor faz uma viagem a
um submundo, por vezes de quase especulação, em torno do comércio –

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quer de compras, quer de vendas, quer de trocas – das raridades
bibliográficas e do grande desconhecimento de alguns livreiros.

Na sua casa, no Centro Cultural Gulbenkian, em Paris – que dirigiu


entre 1972 e 1983, com excelentes manifestações culturais e científicas –,
convivi com Pina Martins pela mão de Oliveira Marques, nos anos de 1979,
1980 e 1982. Foram dias de convívio quer às refeições, quer junto do piano,
por cujas teclas Piccolina (a sua afável gata) se passeava e «imitava alguns
compositores modernistas» como ele gostava de dizer. Era eu, então, um
jovem que nem a licenciatura em História tinha ainda terminado. Pina
Martins aceitou publicar um dos meus primeiros trabalhos de investigação,
nos Arquivos do Centro Cultural Português, começando então um diálogo de
respeito e de aprendizagem que durou até ao fim dos seus dias. As conversas
com Pina Martins eram sempre um encontro com os heróis que também
povoam e alimentam a minha imaginação: os livros.

Admiro o respeito que teve para comigo quando eu ousei duvidar,


num jantar, que o Tratado de Confisom, tivesse sido impresso em Chaves.
Sim, dizia eu – como ainda digo – «se acabou na uilla de chaues»… como lá
está escrito, mas o manuscrito! [desconhecia, então, que não era, nem o
único nem o primeiro, a pensar dessa maneira. Já antes, num outro jantar
público, «com a concordância de Lopes de Almeida, Marcello Caetano
exprimia-se mais ou menos assim: Sem querer desfazer do valor do rapaz,
estou convencido de que ele não tem razão. A data do colofão não é o termo
na composição e impressão do livro, mas da redação do manuscrito. O livro

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acabou-se na vila de Chaves, o que quer dizer, o manuscrito foi concluído na
vila de Chaves, na data indicada»11]. E continuava eu: «O impresso,
Professor, foi-o, certamente, na Galiza, e por isso a presença involuntária de
diversos castelhanismos no texto, causados pelo compositor/impressor.»
Pina Martins respondia-me, então, com palavras quase idênticas àquelas
que ele mesmo escreveu, contando o episódio do jantar com Marcello
Caetano: «quando tive conhecimento das primeiras objeções, preparei novo
artigo, não só reduzindo à sua insignificância estes reparos, que não tinham
fundamento, mas trazendo novos elementos que, entretanto, eu tinha
alcançado de um confronto muito pormenorizado com incunábulos
espanhóis de Zamora e Salamanca um pouco anteriores a 1489. O meu
artigo começava por indicar que, de facto, se destinava a pessoas cultas (e
Marcello Caetano era cultíssimo), mas não especialistas de bibliografia.»11 E
fique o João sabendo que estou convencido que a todos convenci. Ousei
contra-argumentar ainda: mas Professor, acha mesmo que é possível (quer
pelo peso, quer pelo volume) um impressor ambulante transportar a
quantidade de tipos em chumbo que foram necessários para realizar os
deitados de apenas um caderno (em formato de fólio) composto por 16
páginas!… E a máquina, o peso e o tamanho da máquina prelo que foi
necessário transportar para a impressão de um deitado, com aquela

11
J. V. de Pina Martins - «De como identifiquei o Tratado de Confissom». Revista
ICALP, vol. 15, março de 1989, 119-130. [http://cvc.instituto-
camoes.pt/dmdocuments/idconfissom.pdf].

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complexidade, para ficarem certos todos os frentes e versos das 15 folhas [=
60 p.] que formam o incunábulo? O tamanho da carroça que era necessária?
Olhou para mim e disse apenas: «o coração tem razões que a própria razão
desconhece» e essa frase tinha-lhe sido ensinada por um dos seus primeiros
mestres: Blaise Pascal.

Que saudades eu tenho desse tempo e desse respeito. E é esse


respeito que gosto de salientar nesta evocação.

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Letra Perfeita e Clara que se pode ler sem óculos: nos 550 anos da morte de
Gutenberg ………………………………………………………………………………7
Aldo Manuzio o inventor do itálico …………………………………………………… 13
A diáspora da palavra: obras de autores portugueses impressas fora de
Portugal no século XVI (1501-1520) ……………………………………… 19
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende: a arte de trovar, que em todo
tempo foi mui estimada… …………………………………………………….. 23
Aquele único exemplo… 450 anos da lírica de Camões ……………………… 31
Antes de Lineu: o mundo das plantas na coleção de impressos da BNP ... 37
Santa Teresa de Ávila: Caminho de Perfeição (1515-1582) ………………. 43
Muitas e muito estranhas cousas que viu e ouviu …: o primeiro século de
edições da Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto (1614-1711). 47
Cervantes: a figura que se esconde por detrás da obra ……………………. 55
Shakespeare: 400 anos ………………………………………………………………………. 65
Quando 23 de abril, em Londres, era 3 de maio, em Paris …………………… 69
Raúl Rêgo Bibliófilo …………………………………………………………………………… 73
J. V. de Pina Martins «um admirador, quase um companheiro fora do tempo,
daquele tempo sem tempo que nós chamamos o Renascimento». 77

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