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[-] Sumário # 6
EDITORIAL 3

ARTIGOS
APROXIMAÇÕES D’O CASTELO DE KAFKA
Cláudio R. Duarte 5

O VELHO MUNDO PRECISA SUCUMBIR


Mito e história em “Berlin Alexanderplatz”
Rapahel F. Alvarenga 17

A FRATURA DA FORMA
Constituição e implicações da representação da metrópole
em “Berlin Alexanderplatz”
Gabriela Siqueira Bitencourt 69

LOUIS-FERDINAND CÉLINE
“Voyage au bout de la nuit” e a crise do realismo
Daniel Garroux 98

DA CENTRALIDADE DE CANUDOS
César Takemoto 123

JOÃO TERNURA
Um livro à revelia do próprio autor
Helena Weisz 131

OTIMISMO E SEBASTIANISMO
NA HISTÓRIA RECENTE DA TROPICÁLIA
Carlos Pires 146

O DIA-A-DIA COLONIZADO
Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos
Nils Göran Skare 162

TRADUÇÕES LITERÁRIAS
VARIANTE DA ABERTURA DE O CASTELO
Franz Kafka 181

A BAILARINA E O CORPO
Alfred Döblin 184
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Editorial
A edição nº 6 de Sinal de Menos gira em torno das seguintes questões: como a
literatura tem representado a cultura dos marginalizados na sociedade moderna? Como o
que está “à margem” da sociedade, incluindo aí o inconsciente de seus sujeitos, irrompe nas
relações sociais?
A seção de ARTIGOS abre com um ensaio de CLÁUDIO R. DUARTE sobre O Castelo
de Franz Kafka. O autor esboça as linhas fundamentais de sua construção e mostra por que
este é talvez o romance mais complexo de Kafka, sintetizando momentos fundamentais de
sua obra, pois além da dominação e da alienação, ele introduz de forma poderosa a
irredutível não-identidade da figura de K.
A seguir, temos dois ensaios sobre o romance Berlin Alexanderplatz de Alfred
Döblin. O primeiro, de RAPHAEL F. ALVARENGA, procura integrar à explicação
materialista a dimensão mítico-religiosa deste que é um “romance de formação” de um
marginal, inscrevendo a obra no conturbado contexto político e cultural da República de
Weimar, a cujo destino está enredado o de suas personagens. O texto de GABRIELA S.
BITENCOURT busca, a partir da análise de alguns elementos formais da representação do
espaço urbano no livro, discutir quais os desdobramentos do uso da montagem e como, por
meio dela, a configuração da “metrópole literária” afeta a forma do romance.

Em seguida, DANIEL GARROUX faz uma leitura de Voyage au bout de la nuit, de


Louis-Ferdinand Céline, sob o ponto de vista da ruptura da forma realista tradicional. Ao
colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo não-linear que emana de uma consciência
cindida a narrativa subverte alguns dos pressupostos de que o gênero do romance havia se
servido até então. O ensaio desenha a experiência social de fundo sedimentada no romance.

No próximo artigo, CÉSAR TAKEMOTO tenta repensar a centralidade do evento da


guerra de Canudos para a configuração artística de duas obras importantes da literatura
brasileira do século XX: Os Sertões de Euclides da Cunha e Grande Sertão: Veredas de
Guimarães Rosa. Para tal, o autor se utiliza de uma crônica de Machado de Assis para daí
avançar alguns pontos na interpretação de uma determinada constelação histórica
brasileira.
Em seu artigo, HELENA WEISZ acompanha a trajetória do mais ambicioso projeto
do escritor brasileiro Aníbal Machado. Um livro que começou a ser escrito ainda no
primeiro Modernismo, acompanhou todos os percalços e contradições desse movimento e
só foi terminado em 1964.
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Fechando a “sessão brasileira”, CARLOS PIRES analisa um balanço histórico da


música popular e das transformações do Brasil, desde o final da década de 1960, feito por
Caetano Veloso, em 1993. Essa reconstrução da história recente do país reposiciona
o tropicalismo como um evento sem certas linhas de força, que são centrais para entendê-
lo. A análise busca compreender qual o sentido desses apagamentos pontuais, que
aparecem quase como sintomas no discurso de Veloso.
O último ensaio, da autoria de NILS GÖRAN SKARE, pensa a cotidianidade, no
sentido de Henri Lefebvre, sob o ponto de vista da teoria lacaniana do discurso, em suas
modalidades fundamentais (a do mestre, a do universitário, a da histérica, a do analista e,
por fim o “dialeto” do capitalista). Se o cotidiano é o lugar potencial do acontecimento, o
capitalismo, segundo o autor, seria um sistema que busca administrá-lo e, no limite,
evacuá-lo do cotidiano.
A seção de TRADUÇÕES LITERÁRIAS traz uma variante da abertura de O Castelo
de Kafka, que lança certa luz sobre o caráter da luta de K. no romance, e um pequeno conto
de ALFRED DÖBLIN (“A Bailarina e o corpo”), ambos traduzidos diretamente do alemão.
Lembramos que a revista vem aceitando contribuições. O próximo número trará uma
entrevista com Robert Kurz, repensando temas de seu livro seminal, O colapso da
modernização, após 20 anos de sua publicação.

DEZEMBRO de 2010
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Aproximações d’O Castelo de Kafka

Cláudio R. Duarte*

1. Como nas grandes obras, a abertura de Das Schloß (1922) nos põe imediatamente diante
de uma célula de seu princípio de construção:

“Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta
[Schloßberg, colina do castelo] não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o
clarão mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de
madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.”1

A primeira visão das terras do conde Westwest é esta: o vazio aparente na paisagem em
preto e branco. K. fica por longo tempo parado sobre a ponte observando a presença-
ausência da aldeia e do castelo, envoltos na bruma e na neve. Eles não só não se oferecem à
perspectiva enquanto paisagem, como K. parece nada saber sobre eles. O que aqui fica
pressuposto é a indistinção de aldeia e castelo.

2. Isto que nos põe imediatamente diante do enigma de K.: não só ele aparentemente
desconhece que chegou a seu destino, a uma aldeia e a um castelo (“Em que aldeia eu me
perdi? Então existe um castelo aqui?”, DS, 8/10), como ignora o tal conde e suas
propriedades – “o que torna impossível”, como já apontava Adorno, “que ele tenha sido
chamado até lá”, isto é, que ele seja de fato um agrimensor, com seus ajudantes, que tenha
se adiantado a eles durante a noite e tenha lhes confiado aparelhos de medição. 2
Certamente é por isso que ele não reconhece os ajudantes, Artur e Jeremias, quando estes
chegam à hospedaria no dia seguinte, enviados pelo castelo (DS, 31/32). Quem é K., afinal?
Um impostor? Um comediante (“Chega de comédia”, diz ele, DS, 9/11)? O que veio fazer
ali? O que ele quer? Como a personagem se desenvolve na trama desde o início obscura?

* Bolsista CNPq, doutorando DG-FFLCH/USP.


1 KAFKA, Franz. Das Schloß [1922]. (Kritische Ausgabe. Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt a. M.: S.
Fischer, 1982, p. 7. (Trad. Modesto Carone: O Castelo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 9).
Doravante, cito o texto diretamente no corpo do texto sob a abreviação DS, seguido do número das páginas em
alemão e em português, respectivamente.
2 ADORNO, Theodor W. “Anotações sobre Kafka” [1953] in:__. Prismas. (Crítica cultural e sociedade) [1955]. São

Paulo: Ática, 1998, p. 242. Marthe ROBERT também apontou a impostura deste início (“Simbolismo y crítica de
los símbolos” in:__. Acerca de Kafka/Acerca de Freud [1967]. Barcelona: Anagrama, 1970, p. 42-3).
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3. Como se sabe, longe de responder claramente tais questões, o romance de Kafka constrói
um mundo cerrado e enigmático, que tende a suscitar múltiplas interpretações. O narrador
em terceira pessoa baixa ao horizonte das personagens e tende a se reduzir à visão de fora,
com um acesso limitado ao seu mundo interior. Ele se centra na ótica de K.: o texto se
condensa e se fecha nos primeiros dias de sua permanência na aldeia e opera como uma
contínua apresentação, multiplicação e destruição de aparências e de imagens positivas. Daí
a vulnerabilidade e a fragilidade de muitas interpretações da obra, que somente ganham
alguma consistência quando se dispõem pacientemente a ler os detalhes do ponto de vista
da totalidade da composição (mesmo inacabada).

4. Se K. não é simplesmente um estrangeiro, mas um falso agrimensor (Landvermesser) (o


qual, Schwarzer pretende reduzir a “um reles e mentiroso vagabundo [Landstreicher]”, em
um momento de fúria, DS, 12/13) – um intruso que se vê nitidamente como um “agressor”
–, o castelo aceita e alimenta a luta com outra impostura. De fato, após o primeiro
telefonema de Schwarzer, que dava sinal negativo ao suposto agrimensor, K. espera apenas
que os aldeões se atirem sobre si e o expulsem do território do conde. Mas, após o
inesperado segundo telefonema que o confirma como agrimensor (o próprio “chefe do
escritório” é quem telefona), ele reflete o seguinte:

“Então o castelo o havia designado agrimensor. Por um lado isso era desfavorável a ele, pois
indicava que no castelo se sabia tudo o que era preciso a seu respeito, as relações de força
tinham sido pesadas e aceitavam a luta sorrindo.” (DS, 12/14, grifos meus).

Se os camponeses levam as leis e as tradições à risca, o castelo sustenta a impostura de K. e


indiretamente confirma-se também como farsa. Por isso, na seqüência deste mesmo trecho,
K. sente também certa liberdade e certo destemor em relação a seu adversário:
“Mas por outro lado isso também era propício, pois a seu ver provava que o subestimavam e
que ele teria mais liberdade do que de início podia esperar. E se acreditavam com esse seu
reconhecimento [Anerkennung] como agrimensor – do ponto de vista moral, sem dúvida
superior – conservá-lo num estado de medo contínuo, então eles se enganavam: isso lhe dava
um leve tremor, mas era tudo.” (DS, 12-3/14)

Nessa chave, novos problemas se colocam: onde a lei tem sua verdadeira sede ou ponto de
sustentação? Qual é a diferença entre a aldeia e o castelo? O que há por trás daquele “vazio
aparente”?

5. Como no conto “Diante da lei”, estamos o tempo todo “Diante do castelo”, mas o castelo
– a lei ou a sede da lei – não está simplesmente ausente. Muito pelo contrário, o castelo está
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presente demais lá embaixo, na aldeia. O paradoxo inicial de O Castelo é que apesar de seu
título ele se passa o tempo todo na aldeia. Talvez porque o castelo é, de certa forma, nada
mais que a aldeia. Como ensina o professor da aldeia: “Não há diferença entre os
camponeses e o castelo” (DS, 20/21). “As autoridades judiciais” – escreve Wilhelm Emrich
– “não estão fora, mas habitam em pleno centro da vida terrena, ou mais ainda, elas são a
vida mesma. (...) A lei desconhecida segue sendo desconhecida ainda que incessantemente
esteja presente e opera em todas as relações da vida e do pensamento.”3 A fantasmagoria do
castelo manifesta-se na aldeia, na vida dos aldeões, na sua consciência e na sua prática
reificadas; no limite, ele se confunde com eles e é idêntico a eles. “Em lugar nenhum K.
tinha visto antes, como ali, as funções administrativas e a vida tão entrelaçadas – de tal
maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham
trocado de lugar” (DS, 94/92-3).

6. Kafka nos insere num mundo ficcional em que há e não há distinção entre as coisas e os
seres. Pensando na dona do Albergue da Ponte (Gardena = guardiã) e talvez em Frieda e
nos ajudantes, K. se pergunta: “o que significava, por exemplo, o poder até agora apenas
formal que Klamm exercia sobre o ofício de K., comparado com o poder que Klamm tinha
em toda a sua efetividade no quarto de dormir de K.?” (DS, 94/93). Essa indistinção entre
as ordens do mesmo e do outro – a coerção da identidade que aliena e esmaga as
particularidades – tende a ser a forma predominante do livro. Como ruína desse mesmo
processo social efetivo, ele próprio restou como torso monumental de exposição do
problema da reificação e do poder alienado, na sociedade moderna.

7. O romance foi lido diversas vezes como uma espécie de metafísica da ausência, de busca
impossível do santo Graal ou da morada do deus absconditus, ou mais simplesmente como
a busca da integração na vida da aldeia ou do castelo (K. sendo o protótipo do judeu,
segundo alguns, para outros uma espécie de “messias”), nesse caso, vale dizer, uma
integração no seio da mais completa alienação. Na versão alucinada de Günter Anders, por
exemplo, a vida de K. consistiria nas “tentativas e esforços mil vezes repetidos para ser

3 EMRICH, Wilhelm. Protesta y promesa [1960]. Barcelona/Caracas: Alfa, 1985, p. 128-9. Este ponto foi reforçado
por ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p.
187. Para análises específicas de O Castelo, beneficiei-me de comentários de: ROBERT, Marthe. “Le dernier
messager” in:__. L‟ ancien et le nouveau. De Don Quichotte à Franz Kafka. Paris: Grasset, 1963; EMRICH,
Wilhelm. “Der menschliche Kosmos: der Roman „Das Schloss‟” in:__. Franz Kafka. Frankfurt a. M./Bonn:
Athenäum, 1958; KRAFT, Herbert. “Being There Still: K., Land Surveyor, Stable-Hand, ...” in:__. Someone like K.
(Kafka‟s Novels). (Trad.: R. J. Kavanagh e H. Kraft). Würsburg: Königshausen & Neumann, 1991; BOA, Elizabeth.
“The Castle” in: Preece, J. (ed.). The Cambridge Companion to Kafka. Cambridge: Cambridge University Press,
2002.
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aceito” na aldeia do castelo, em que se esforçaria para “atender a todas as prescrições,


apropriar-se „interiormente‟ delas e justificar até mesmo as pretensões „imorais‟ dos
governantes”! Kafka se torna, assim, um “moralista do nivelamento” e da “obediência”. 4 No
entanto, desde o início K. confessa que não é poderoso e que seu respeito pelos poderosos é
uma estratégia ou artimanha (DS, 16/17). Por certo, trata-se de uma busca obstinada, mas
com um sinal desde o início negativo: é impossível imaginar que K. leve realmente “a sério”
o que se passa no castelo a partir da admissão de sua impostura, muito menos que ele
atribua um caráter natural ou divino a ele ou um sinal positivo à sua busca, às prescrições
do castelo etc. Mediante o estranhamento deliberado, Kafka cria um universo que escapa à
clareza, à coerência, à previsibilidade e à distinção precisa, ao mesmo tempo em que busca
trilhar o que escapa aos poderes obscuros – o caminho aporético e circular de K. entre a
aldeia e o castelo. Numa variante do início do romance, K. diz que veio para “lutar” (“Zum
Kampf bin ich ja hier”) e, segundo uma camareira, todos na aldeia estariam cientes da
chegada de um forasteiro.5 Dessa perspectiva, salvo engano não continuada e não
incorporada pelas diversas outras passagens da versão final do romance, trata-se de forma
ainda mais explícita de uma luta radical entre o “sistema” e um “indivíduo”, o seu “resíduo”.

8. Um equívoco comum da crítica é julgar que a obra de Kafka não contém qualquer espécie
de desenvolvimento em seu núcleo, como se o autor fizesse um finca-pé arbitrário numa
simples “paralisação do tempo”, em que os “acontecimentos consistem em imagens
isoladas”, por onde ele se torna o “glorificador do compromisso e do ritualismo em geral”,
isto é, o apologista da mera repetição de formas sociais vazias.6 Contudo, um
desenvolvimento bloqueado e interrompido não é absolutamente um não-desenvolvimento.
É preciso aqui distinguir, no plano analítico, o movimento da forma e o do conteúdo. Em
certo sentido, temos um “movimento” de reiteração da forma e um movimento de
diferenciação e de decomposição do conteúdo. Pode-se pensar esse duplo movimento em O
Castelo como imposição coercitiva da identidade, sempre pressuposta na aldeia; mas uma
identidade nunca realizada até o fim, pois negada precisamente pela ação e a interação de
K. com as outras personagens. Esse desdobramento leva de estranhamento a
estranhamento, destruindo as suposições do “herói” (e do leitor). O estranhamento

4 ANDERS, Günter. Kafka: pró e contra – Os autos do processo [1951]. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 26 e
33.
5 KAFKA, Franz. Das Schloß. Apparatband. (Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt am Maim: S. Fischer,

2002, p. 116.
6 “Onde só há repetição, não há progresso do tempo. Todas as situações do romance de Kafka são, de fato, imagens

paralisadas.” (ANDERS, op. cit., p. 30, 83 e 39.)


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funciona como desnaturalização das referências realistas tradicionais e, ao mesmo tempo,


como apresentação das contradições sociais reais: as deformações da perspectiva realista
não são uma mania do autor nem de uma mera figura de estilo, mas se tratam precisamente
de traços produzidos pela violência social da identidade. Esta é conduzida pelo escritor até
o absurdo a fim de poder nomeá-la de modo mais radical, ao mesmo tempo em que expõe,
assim, o sofrimento e as deformações sociais por ela produzidos.

9. Se K. sofre de certa ingenuidade nos primeiros dias, esta vai sendo minada pelos
acontecimentos e é transformada num processo crítico que esclarece não obviamente o
castelo, desde o início fechado e inacessível à interpretação, mas alguns pressupostos cegos
e absurdos de sua autoridade, na aldeia. Em contraste com o ritualismo burocrático mais
estrito que zela pela identidade, a não-identidade ganha relevo. Ela fica sob permanente
controle e ao final tem ser neutralizada. Os aldeões sempre estão vigiando o forasteiro K.,
que não pode pernoitar no albergue dos senhores; Momus o inquire e registra todos os seus
passos; os ajudantes são enviados por um funcionário do castelo (Galater) em nome de
Klamm, supostamente para diverti-lo (e confundi-lo); o prefeito o rebaixa a servente da
escola; os professores da escola o vigiam e humilham; ele é expulso do corredor do albergue
dos senhores etc. O ponto máximo desse poder panóptico é quando Erlanger ordena o
retorno de Frieda à sua função de atendente no balcão: “é nosso dever vigiar o bem-estar de
Klamm”, diz o secretário, “de tal forma que mesmo incômodos que não são nada para ele –
e é provável que não exista absolutamente nenhum – nós os eliminamos quando nos
chamam a atenção como possíveis perturbações” (DS, 428/402). A “normalidade” do
tempo social se realiza pelo rígido controle do espaço da aldeia. É nesse sentido que todas
as autoridades do castelo, segundo o prefeito da aldeia, são nada mais que “autoridades de
controle” (DS, 104/103). Um sistema que, em sua fantasia, funciona como uma máquina
impessoal sem falhas.

10. As relações impessoais de dominação se materializam em relações interpessoais e,


como tais, estão sujeitas a toda ordem de contingências e arbitrariedades. É o que aparece,
por exemplo, na forma de relações de propriedade sobre as coisas, os lugares e as próprias
pessoas. Se em Der Prozeß “tudo pertence ao tribunal”, no condado, de maneira análoga,
tudo é propriedade do conde Westwest. Como logo informa Schwarzer a K.: “Esta aldeia é
propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no
castelo. Ninguém pode fazer isso sem permissão do conde” (DS, 8/10). O caso mais extremo
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deste poder coisificador é a propriedade exercida sobre as mulheres da aldeia. “Na verdade”
– diz Olga, tendo em mente o episódio da carta de Sortini a Amália – “consta que todos nós
pertencemos ao castelo, que não existe distância e portanto nada para transpor” (DS,
309/293). Deste modo, “Klamm é sem dúvida como um comandante sobre um exército de
mulheres, ordena ora esta, ora aquela, para ir até ele.” (ib.). A própria Frieda também
concebe sua relação com K. como sendo uma relação de “propriedade” (DS, 245/235) e não
deixa nunca de se subordinar às injunções do castelo. E assim o abandona no final.

11. Ao contrário do que geralmente se afirma, O Castelo não analisa “o poder de um


despotismo arcaico a exemplo da monarquia austro-húngara”.7 Como apontou Löwy, a
alienação burocrática moderna é o metro fundamental das relações sociais no romance,
ganhando até mesmo, numa fala do prefeito da aldeia (DS, 110/107-8), a forma metafórica
de uma “máquina autônoma”, que “dispensa a participação humana”.8 É possível ver na
base social, porém, algo como uma “economia mercantil simples”, típica de uma sociedade
agrária9, subordinada à burocracia de uma grande empresa ou de um Estado tipicamente
modernos. O aparelho administrativo do castelo cobra os seus tributos, os aldeões têm os
seus negócios isolados ou funções particulares, como camponeses, artesãos, hospedeiros e
funcionários, enquanto K. espera tornar-se, de início, uma espécie de assalariado
contratado pelo castelo. Assim, Kafka parece mesclar no romance as formas de dominação
mais modernas e abstratas e as mais tradicionais e imediatas. O interesse estético dessa
mescla é a ênfase no poder social reificado da identidade e de sua reprodução. A dominação
social se infiltra e se dissemina desde a família patriarcal camponesa tradicional até os
grupos mais amplos e abstratos, nos albergues e nos escritórios da maquinaria burocrática.

12. A marca histórica do romance pode parecer apagada e diluída, mas não é indefinida.
Em um ponto da construção ela é central: é a forma burocrática que em geral molda a
“linguagem protocolar” (Anders) do romance, principalmente dos discursos dos
funcionários (Prefeito, Brügel, Momus, Erlanger, Professor). Desde o início, com
Schwarzer, K. comprova a “formação de certo modo diplomática” da “gente miúda” do
castelo (DS, 11/13). Mas esse estilo protocolar se espraia também pela fala de Gardena
(dona do Albergue da Ponte), de Olga, de Pepi e do próprio K.10

7 Cf. a boa leitura de: LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. São Paulo: Azougue, 2005, Cap. 5 (“O
castelo – despotismo burocrático e servidão voluntária”), p. 163.
8 Idem, ibidem, p. 165.
9 ADORNO, op. cit., p. 254.
10 Cf. CARONE, Modesto. “Pósfácio” in: O Castelo, op. cit., p. 479.
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13. A forma histórica torna-se inteligível também na descrição da arquitetura do castelo,


que frustra toda expectativa do leitor. Depois de seus contatos telefônicos, somente o
agrimensor K. não se espanta com a aparência prosaica do suposto castelo, tão parecida
com a morfologia da aldeia e de sua própria cidade natal, em algum lugar da Europa do
início do século XX. O imaginário feudal desaba:
“No conjunto o castelo, tal como se mostrava da distância, correspondia às expectativas de K.
Não era nem um burgo feudal nem uma residência nova e suntuosa, mas uma extensa
construção que consistia de poucos edifícios de dois andares e de muitos outros mais baixos
estreitamente unidos entre si; se não se soubesse que era um castelo seria possível considerá-
lo uma cidadezinha.” (DS, 17/18)

De fato, quando chega mais perto o agrimensor se decepciona: “na verdade era só uma
cidadezinha miserável, um aglomerado de casas de vila, que se distinguiam por serem todas
talvez de pedra, mas a pintura tinha caído havia muito tempo e a pedra parecia se esboroar”
(ib.). Kafka toma o processo de destruição da imagem ao pé da letra.

14. A modernidade do romance kafkiano vem indicado ainda no nome do conde – algo
como “Oesteoeste” –, o qual sugere a onipotência mundial do ocidente capitalista, bem
como a decadência da sociedade que o suporta (é no extremo ocidente o ponto de ocaso do
sol, daí o ambiente frio e tenebroso do romance). O contexto imediato da obra, o pós-
Primeira Guerra Mundial, não é outro que o do mundo dominado de ponta a ponta pela
ordem do capital, segundo o modelo mesclado já referido (§ 11).

15. O nome Westwest sugere também a contigüidade e a identidade forçada do “Castelo-


aldeia” – um nome que é apenas o início de uma longa série de duplos que moldam o
romance (dois albergues, dois ajudantes, duas garçonetes, dois professores, castelões e
subcastelões, senhores e seus secretários, Sordini e Sortini, Klamm e K. etc.). O molde
estrutural destas duplicidades é a contraposição entre o castelo e a aldeia, ou ainda, a lei e a
ordem e o seu avesso obsceno – a desordem e a contradição imanentes.

16. O núcleo dialético do romance é a mediação de campos opostos: a ordem que aparece
como desordem, o sistema como contradição, a exceção como regra, a essência (Wesen)
como monstruosidade (Unwesen). Assim, o segredo da mais rígida burocracia é algo da
ordem do capricho, da incoerência e da loucura – a “ridícula embrulhada [lächerliche
Gewirre] que, conforme as circunstâncias, decide sobre a existência de uma pessoa” (DS,
102/101). Esse movimento é irônico e produz o humor corrosivo do livro, que adentra no
reino do inverossímil. Os criados dos senhores do castelo são tão selvagens e dominados
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por “impulsos insaciáveis” (DS, 348/328) quanto os seus senhores. A noite no albergue dos
senhores transforma-se numa espécie de prostíbulo. A verdade do bom funcionário Sordini
é o obsceno Sortini; ou ainda, por trás da seriedade funesta do castelo esconde-se a
infantilidade, o escárnio e a impostura. O clima de comédia domina o subtexto. Assim, já no
início, Schwarzer aparece com “trajes de cidade, rosto de ator” (DS, 7/9).

17. O figurino tipicamente burguês de Klamm (gorducho, dorminhoco, casaca preta,


fumando charuto, com tudo a seu dispor) se contrapõe aos farrapos de K., tal como as
excelentes e modernas instalações do albergue dos senhores contrastam com a pobreza e a
doença nas casas campesinas. Porém, não se trata apenas da desigualdade social entre as
condições de vida de senhores, funcionários e aldeões, mas sobretudo da igualdade de um
sistema que captura a todos na mesma hierarquia cega e coisificada de sua dominação. Para
além da desigualdade, trata-se de reconhecer o sistema que articula todos os sujeitos como
carcaças mortas – como suportes de sua identidade fundamental. Nesse sentido, o romance
parece criar um mundo que mimetiza as contradições da forma do valor e da cisão de
gêneros da sociedade moderna. É nesse sentido, ainda, que a dona do Albergue da Ponte é
tanto objeto “feminino” de Klamm quanto se corporifica como sujeito da dominação
patriarcal de Frieda. Nesse núcleo de contradições, ficam postas ou pelo menos
pressupostas, ainda, formas irredutíveis de negação nas figuras de K. e de Amália (a firme
recusa da proposta indecente de Sortini) e até certo ponto de Olga e Barnabás (a sua
abnegação em favor da família, apesar de seu lamentável conformismo diante da
autoridade), de Pepi (a menina sonhadora que pensa em incendiar o castelo!) e do menino
Hans (que parece se contrapor ao professor e ao pai).

18. Para além do inalcançável Klamm e do etéreo conde Westwest deve haver um rei –
jamais dito e muito menos nomeado no romance – uma sugestão da instância totalmente
abstrata, impessoal e fetichista da lei. Mas o vazio do poder opera plenamente na aldeia, em
cada funcionário, posto ou cargo desejado e ocupado pelo mais simples e indiferente
aldeão, que sonha em obter alguma distinção social ou compensação imaginária galgando
os degraus irrisórios da hierarquia social do condado.

19. O castelo não tem nada de divino ou de diabólico em si, mas é o pleno resultado do
processo social moderno – encantado por uma aura sagrada. Nesse sentido, o moderno
entrelaça-se ao mítico, mas não deixa de dar sinais de sua obsolescência e decomposição,
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embora se sustente no ar com uma gargalhada diabólica. Klamm não lê nenhum protocolo,
a eficiência administrativa dos funcionários é mais que duvidosa, só os dominados
sustentam a sua legitimidade quase sagrada. As interpretações teológicas forçam o texto
para materializar o “metafísico”.11 Mais válido seria dizer que o romance trata da dominação
moderna recoberta pelo terror e pela mística das prerrogativas senhoriais. Tal como a
ordem se entrelaça à desordem, o moderno se entrelaça ao arcaico e o histórico ao
metafísico.

20. O trabalho compulsivo dos funcionários do castelo é potencialmente idêntico à


petrificação do movimento da vida na aldeia. Ao mesmo tempo, o movimento petrificado de
funcionários e aldeões para resguardar a identidade de seu modo de vida, comandado pelos
senhores do castelo, é idêntico ao sono, à negligência e ao desprezo de Klamm em relação
ao empenho burocrático ou “erótico” de seus subordinados.

21. Em vez do uso autônomo do tempo, o tempo dos camponeses se subordina ao do


castelo e, por isso mesmo, em vez de referidos aos valores de uso, eles se subordinam às
tarefas terrivelmente abstratas do aparelho administrativo. Isso é iluminado pelo caso de
Barnabás, que, apesar de excelente sapateiro, torna-se um mensageiro do absurdo social, só
podendo se dedicar residualmente à sua atividade.

22. Esta a distinção fundamental dos camponeses em relação a K.: o seu objetivo declarado
não é ocupar um cargo superior no condado ou simplesmente se alojar na aldeia, mas de
início distinguir-se como trabalhador livre e independente do castelo. Nessa chave, K. pode
ser lido como alegoria do proletariado moderno. O agrimensor tem por volta de trinta anos
e aparece como um homem “bastante esfarrapado”, com uma “minúscula mochila”,
empunhando um cajado cheio de nós (DS, 11/12), que, é claro, se apresenta como
agrimensor, trocando o seu tempo por dinheiro e aparentemente só desejando trabalhar no
condado. Seu confronto com o castelo, que o coloca como “agressor”, visa multiplicar a sua
relação com “outras forças que não conhecia” (DS, 92-3/92). Por isso ele apoia-se em
Frieda e em Barnabás e na experiência de Olga, Amália, Hans e Pepi. De forma ardilosa, ele
gere e executa o poder contra o poder existente. É como se podem compreender todas as

11 As interpretações gnósticas, como a de Erich Heller, são tão insustentáveis quanto as teológicas: “O castelo do
romance de Kafka é, por assim dizer, a guarnição muito bem armada de uma companhia de demônios gnósticos
que sustentam com êxito um posto avançado contra as manobras de uma alma impaciente. Nenhuma idéia
concebível de divindade pode justificar os intérpretes, que vêem no Castelo a residência da „lei e da graça divinas””
(HELLER, Erich. Kafka. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 116).
14
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suas relações. Mas como mantém a luta de forma isolada, ele inevitavelmente cai na
condição de miséria e abandono.

23. K. representa o “homem abstrato”, anônimo, arrancado de referências históricas e da


plenitude de uma existência cotidiana.12 No percurso de sua luta contra o castelo, ele recebe
uma série de determinações, que em parte são máscaras (usadas de forma estratégica):
segundo o resumo de Gardena, ele não é do castelo nem da aldeia, é um “nada” que “está
sobrando e fica no meio do caminho” e que traz “aborrecimento” à comunidade (DS,
80/80), um estrangeiro que ignora e perturba os costumes do condado. Seu desejo de
aproximação de Frieda é o desejo de permanecer na aldeia – até ser rebaixado ao posto
insignificante de servente da escola. Nessa luta, ele pode se passar casualmente por pai de
família (num diálogo inicial com o dono do albergue a respeito do pagamento dos serviços
no condado, mas uma referência abandonada) ou por antigo ajudante do agrimensor
(“Josef”, num telefonema para o castelo) e, é claro, por amante e noivo de Frieda, que, tudo
indica, não passaria de uma tática para se aproximar de Klamm e do castelo. Fica claro na
trama que seu objetivo ao se unir a Frieda não é Klamm, “mas sim passar por ele, ir em
frente rumo ao castelo” (DS, 176/169).

24. Há aqui o sentido social fundamental do protagonista, muito pouco observado pela
crítica standard, nesta série de atributos negativos: de forma objetiva e segundo a letra do
romance, K. é menos o estrangeiro em geral que o moderno indivíduo sem propriedade, um
“sujeito sem objeto”, i.e., um proletário mobilizável pelo castelo.13 Nessa luta em plena
areia movediça, ele degringola para a condição de pária social e é mantido à margem – mais
que exilado, um homo sacer exterminável, como ele mesmo diz, em “situação de
emergência” (“Notlage”, DS, 198/191). Mas K. é também, justamente por causa desta
condição negativa, o homem capaz de dizer “não” (DS, 84/84). Temos aqui um indivíduo
proletarizado contraposto à comunidade tradicional dos aldeões, fixados à propriedade e
anexados ao castelo. O seu “não” é reforçado pelo “não” dado por Amália à proposta sórdida
de Sortini.

12 Neste ponto podemos seguir ANDERS, op. cit., p. 50. Cf. também ROSENFELD, Anatol. Letras e leituras. São
Paulo: Perspectiva, 1994, p. 47-51.
13 “Na sociedade burguesa, o trabalhador, p. ex., existe de um modo puramente não objetivo, subjetivo; mas a coisa

que se põe diante dele se tornou agora a verdadeira comunidade que ele tenta devorar, mas que o devora.”
(MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politschen Ökonomie (1857-1858). Berlin: Dietz, 1953, p. 396.)
15
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25. Entre as alternativas do contrato de trabalho ou da simples anexação à aldeia/castelo,


K. não hesita em escolher a primeira condição: “Só como trabalhador da aldeia, o mais
distante possível dos senhores do castelo, ele era capaz de conseguir alguma coisa lá” (DS,
42/43). Neste momento de afirmação, K. não quer “favores” e parece exigir apenas os seu
“direito” (DS, 119/116): estabelecer-se na aldeia para se tornar um trabalhador. Mas isso faz
parte de seu jogo com o castelo. O seu objetivo não é simplesmente “trabalhar”, mas
confrontar as autoridades do castelo. E é menos penetrá-lo – que afinal parecia um “alvo
fácil” (DS, 50/51) durante o dia, período em que se tornava supostamente um local de
trabalho frenético, tal como sondado pela manhã no Albergue dos Senhores –, do que
desmascarar o seu encanto e a sua impostura. Nas palavras de K., ao pensar no
comportamento do prefeito e do professor, tudo ali não passa de um “embuste oficial” (DS,
235/225).

26. Como a crítica já observou, a profissão de K. é alegórica. “A agrimensura seria, assim,


uma investigação sobre o significado das relações de propriedade e da propriedade da terra.
Seria um ato revolucionário”.14 “Ele é o Agrimensor, aquele que mede a terra, mas o
Agrimensor de um mundo que não quer deixar repor em causa as suas medidas, o
Agrimensor de um mundo sem medida. Por isso a sua qualidade de agrimensor não é
reconhecida por ninguém. (...) O seu olhar, unicamente, faz voltar as coisas à sua medida.
Desde que aparece, o cenário rasga-se e por detrás do fausto das aparências e da lenda
revela-se a realidade irrisória.” 15 Assim, a fragilidade do poder é exposta por K. tanto
quanto isso é tolerado pelo castelo como uma espécie de jogo cômico (segundo, por
exemplo, as duas cartas de Klamm).

27. O agrimensor alegórico questiona a propriedade, as leis, os poderes do castelo. Ao


mesmo tempo é capaz de medir a deformação da particularidade de cada um frente à
coação da identidade. Kafka assinala literalmente o peso deste domínio: nas costas
curvadas dos funcionários, na doença e no envelhecimento que grassa por todos os lados,
tal como nos “rostos literalmente torturados” dos camponeses, cujos “crânios pareciam ter
sido achatados em cima e os traços da face formados na dor da pancada” (DS, 39/40). Os
aldeões são como animais domesticados pela lei do castelo. A própria escola fica ao lado do
celeiro e Frieda começou no posto mais baixo, como “criada de estrebaria no Albergue da
Ponte”. Por isso, também, ela manda literalmente os servidores do castelo para a estrebaria,

14 EMRICH, Wilhelm. “Der menschliche Kosmos: der Roman „Das Schloss‟”, op. cit., p. 300.
15 GARAUDY, Roger. Um realismo sem fronteiras [1963]. Lisboa: Dom Quixote, 1966, p. 173-4.
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no albergue dos senhores, a golpes de chicote. K. percebe esse poder como histórico-natural
e em parte como uma espécie de servidão voluntária: “A reverência diante da autoridade é
inata em vocês, continuará a ser incutida durante a vida toda das formas mais variadas e
por todos os lados; até vocês ajudam nisso como podem” (DS, 288/274).

28. É nesse sentido também que K. assume o caráter de um mestre para Hans, para Olga e
para Pepi. Ele mesmo se oferece como “médico” para a mãe de Hans. Se os aldeões e os
funcionários aparecem na posição de objeto ou de “instrumento” do Castelo (tal como
Momus, DS, 183/176: “Werkzeug”) –, então, no fundo, a sua função é virtualmente o de
encarnar uma lei simbólica que barra o gozo desse Outro absoluto e impostor.

29. Dessa perspectiva, K. busca a ruptura não só do pacto mítico que subordina os aldeões
como servos dos senhores do castelo – partes anexadas à propriedade do conde, mas
também tenta romper a força concreta da idéia de contrato moderno, desnaturalizar a
própria categoria do ser como mero trabalhador de uma potência alienada. Ele percebe
criticamente a carta jocosa de Klamm, que não só o admitia como agrimensor, como dizia
que lhe interessava “ter trabalhadores satisfeitos” (DS, 40/41). Ele percebe que sua
admissão como simples trabalhador abstrato era um sinal de “perigo” – com isso, pensa ele,
o castelo o punha “alegremente” no seu devido lugar, numa condição aparentemente
“inelutável”: “Se K. queria ser trabalhador, podia fazê-lo, mas tão-somente com a mais
completa seriedade, sem qualquer outra perspectiva. K. sabia que não se ameaçava com
uma coerção real, essa ele não temia e aqui muito menos” (DS, 43/43). O que K. vê como
maior problema é o “ambiente desencorajador” dos aldeões. Eles representam o principal
suporte do poder do castelo. Em sua reificação, eles são o verdadeiro castelo.

30. A forma social da identidade prevalece: o fim da obra projetado por Kafka (segundo
Brod) era irônico: K. morreria de extenuação, enquanto o castelo admitiria, por fim, a sua
permanência condicional na aldeia, territorializando-o no posto que o poder moderno,
enfim, pode melhor “administrar” os homens: o posto de meros trabalhadores.

(Novembro/Dezembro de 2010)
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O velho mundo precisa sucumbir


Mito e história em Berlin Alexanderplatz

Raphael F. Alvarenga*

“[…] wenn die Welt so finster wird, daß man mit den Händen
an ihr herumtappen muß, daß man meint, sie verrinnt wie
Spinnengewebe. Ach, wenn was is‟ und doch nicht is‟! […]
Wenn alles dunkel is‟, und nur noch ein roter Schein im
Westen, wie von einer Esse: an was soll man sich da halten?”1

A que deve se agarrar o indivíduo quando colapsam ao seu redor todos os


referenciais, quando tudo lhe parece turvo, obscuro, confuso? Haverá saída, ou uma
qualquer esperança de salvação, para aquele que tudo perdeu, que se perdeu a si mesmo no
seio da desumana e impessoal cidade grande? E poderá nos tempos modernos, num
universo completamente dessacralizado, um homem arruinado ser dotado de
exemplaridade trágica? Do ponto de vista da produção artística, como organizar, traduzir
em forma, o estado de generalizadas desorientação, cegueira, confusão? Como expor, em
seu conjunto, relações e dinâmicas que parecem se dar à revelia dos homens, que em geral
não as compreendem? Berlin Alexanderplatz2, a grande obra épica de Alfred Döblin (1878-
1957), cuja intenção de essencializar questões e matérias históricas é por assim dizer
manifesta desde o prólogo – “valerá a pena para muitos que [...] habitam uma pele
humana”3 –, a princípio parece ter sido composta para responder a perguntas como as
acima. Se, quando publicado em 1929, o livro causou rebuliço nos meios literários e
militantes alemães, suscitando, à esquerda e à direita, de ataques veementes a elogios

* Pós-doutorando, bolsista da Faperj.


1 Wozzeck, Libretto von Oper in 3 Akten, 15 Szenen, Musik von Alban Berg [1922], Text von Georg Büchner [1837],
Bruxelles, La Monnaie, 2008, ato I, cena 4. Em tradução livre: “[...] quando o mundo fica sombrio a ponto d‟a
gente ter que tateá-lo com as mãos, d‟a gente achar que ele desmorona feito teia de aranha. Ah, quando algo é e no
entanto não é! [...] Quando ‟tá tudo escuro, e só resta no poente um luzir rubro, como que saído duma fornalha: a
que deve a gente se agarrar?”
2 Faremos uso da seguinte edição: Berlin Alexanderplatz. Die Geschichte vom Franz Biberkopf (1929), München,

Deutscher Tachenbuch, 2009, doravante BA. A tradução citada no corpo do texto é a mais recente, de Irene Aron
(São Paulo, Matins Fontes, 2009), cujas páginas em nota seguirão sempre as do original. Tratando-se de um
alemão um tanto especial, o do livro, que mistura com frequência num mesmo parágrafo, às vezes numa mesma
frase, norma culta e citações poético-literárias clássicas com linguagem coloquial popular, dialeto, gíria de rua etc.,
achamos melhor, para uma maior apreciação e para evitar leituras enviesadas de certos trechos, reproduzir em pé-
de-página as citações no original.
3 BA, 12/10: “wird sich für viele lohnen [...] in einer Menschenhaut wohnen”.
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entusiasmados – um pouco como aconteceria na França, três anos depois, com a publicação
do Voyage au bout de la nuit de Céline –, a principal razão reside no fato de, como nas
maiores criações da arte moderna, ser forte neste romance, se ainda for possível chamá-lo
assim, a dissonância produzida pela tensão entre a forma estética avançada e o material
deteriorado, decadente, atrasado, quando não arcaico, captado no turbilhão da metrópole
moderna, mais precisamente no bairro proletário em torno da “Alex”, a famosa praça do
leste de Berlin, símbolo maior da modernização da cidade, não muito longe da qual o Dr.
Döblin mantivera durante muitos anos um consultório médico. Tal tensão, que não se pode
eliminar da obra sem que se perca em qualidade artística, é reveladora tanto do estado da
sociedade em seu conjunto como da situação – diga-se já: monológica, demandando
tratamento épico – dos sujeitos, no livro condensada na figura de uma personagem
“protagonista” marginal e, por assim dizer, irredimível. Uma e outra, personagem e
sociedade, no caso, a berlinense e de modo mais geral a alemã dos anos 1920, por sua vez
inseridas no contexto global do capitalismo em crise, aparecem no livro como que à deriva,
sem rumo definido, atravessando sucessivas crises sem no entanto se desenvolverem, não
logrando atingir níveis mais elevados de consciência, maturidade e autonomia; impotentes,
dependem de circunstâncias e fatores externos sobre os quais não têm controle.
Em Berlin Alexanderplatz, então, embora mediante um sem número de referências
mítico-religiosas o processo sócio-histórico seja algo ofuscado, veremos que longe de ser ou
servir de mero pano de fundo para as ações das personagens, por detrás de tais referências,
e como que camuflado por elas, o conturbado contexto social e político da República de
Weimar, quando não aparece de forma explícita no entrecho, está o tempo todo
pressuposto, os altos e baixos do anti-herói coincidindo, pode-se dizer, com os trâmites da
nação alemã. Tudo se passa como se Döblin, na época próximo de Brecht e Piscator, tivesse,
de certa maneira, intentado epicizar o período pós-revolucionário, os tempestuosos anos
iniciais (ocupação franco-belga da Ruhr, hiperinflação, miséria, insurreições operárias,
tentativa de putsch delinquente etc.) e principalmente os de falsa bonança (estabilização
monetária e modernização recuperadora proporcionadas pelo Plano Dawes) e que
antecedem o que viria a ser a verdadeira tempestade (crise financeira global e resistível
ascenção de Hitler ao poder), que já se anunciava no horizonte. Mais precisamente, apesar
da forma fragmentada, nota-se no livro como que um movimento totalizante, abarcando
um período que, forçando um pouco a nota, poderíamos denominar, por um lado, pós-
pseudo-revolucionário, por outro, à vista do que viria a se produzir, pseudo-pré-
revolucionário, ou seja, os anos que sucedem à revolução traída e malograda de 1918-1919 –
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que deu origem à República sem que se alterassem, fundamentalmente, as relações de


poder oligárquicas pré-existentes – e que precedem o grande desastre, mas durante os
quais, sob a luz da recente experiência soviética, então ainda muito intensa e (aos olhos dos
donos do poder) ameaçadora, pressentia-se, premente, a possibilidade de um novo
despertar revolucionário, da instauração, para falar como Benjamin, de um “verdadeiro
estado de emergência”.
Sem perder de vista a tensão entre forma e material, tentaremos recompor e, até
onde for possível, expor, por um lado, as constelações formadas pelas matérias,
experiências e configurações extra-artísticas, vale dizer, tanto as históricas, sociais e
políticas como também as subjetivas, e por outro, a passagem na mediação literária.

***
Uma rápida recuperação, o homem está outra vez lá onde estava, nada aprendeu,
nada assimilou.4
Brumm, brumm, moureja o bate-estacas a vapor diante do Aschinger na Alex. Tem
altura de um andar e crava as estacas no chão como se nada fossem. [...] Na avenida, estão
pondo tudo abaixo, põem abaixo prédios inteiros junto à linha urbana [...] Demoliram
Loeser e Wolff com a placa de mosaicos, vinte metros adiante, ele se reergue outra vez, do
outro lado, diante da estação, já existe outro.5
Você não perdeu tanto quanto Jó de Hus, Franz Biberkopf, as coisas recaem
lentamente sobre você. [...] Você suspira: onde buscar abrigo, a desgraça se abate sobre mim,
onde me agarrar? [...] Você não perderá riqueza, Franz, você mesmo será queimado até o
fundo da alma! Veja como a prostituta já se regozija! A prostituta Babilônia! [...] A mulher
está embriagada do sangue dos santos. Agora você a percebe, sente-a. Você será forte, não se
perderá?6
O tempo é outonal, no cinema Tauentzienpalast passa o filme Os últimos dias de
Francisco, cinquenta belas bailarinas estão no salão de dança Jägerkasino, podes beijar-me
por um buquê de lilases. Ali, Franz conclui: minha vida acabou, estou liquidado, para mim
chega. / Os elétricos percorrem as ruas, cada um vai numa direção, não sei para onde devo
ir. O 51, Nordend, Schillerstrasse, Pankow, Breite-strasse, Bahnhof Schönhauser Alle,
Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstrasse,
Bahnhof Schmargendorf, Grune-wald, vamos lá. Bom dia, aqui estou eu, podem me levar
para onde quiserem. E Franz começa a observar a cidade como um cão que perdeu o rastro.
Que cidade é esta, que cidade gigantesca, e que vida já levou nesta cidade. Desce na Stettiner
Bahnhof, segue ao longo da Invalidenstrasse, lá está o Rosenthaler Tor. Confecção Fabish, já
fiquei parado ali, apregoando prendedores de gravatas, Natal passado. Em direção a Tegel,

4 BA, 163/183: “Eine rasche Erholung, der Mann steht wieder da, wo er stand, er hat nichts zugelernt und nichts
erkannt.”
5 BA, 165-66/185-86: “Rumm rumm wuchtet vor Aschinger auf dem Alex die Dampframme. Sie ist ein Stock hoch,

und die Schienen haut sie wie nichts in den Boden. […] Über den Damm, si legen alles hin, die ganzen Häuser an
der Stadtbahn legen sie hin […] Loeser und Wolff mit dem Mosaikschild haben sie abgerissen, 20 Meter weiter
steht er schon wieder auf, und drüben vor dem Bahnhof steht er nochmal.”
6 BA, 380/436-37: “Du hast nicht soviel verloren wie Hiob aus Uz, Franz Biberkopf, es fährt auch langsam auf dich

herab. […] Du seufzt: wo krieg ich Schutz her, das Unglück fährt über mich, woran kann mich festhalten. […] Du
wirst keine Gelder verlieren, Franz, du selbst wirst bis auf die innerste Seele verbrannt werden! Sieh, wie die Hure
schon frohlockt! Hure Babylon! […] Das Weib ist trunken vom Blut der Heiligen. Du ahnst sie jetzt, du fühlst sie.
Und ob du stark sein wirst, ob du nicht verloren gehst.”
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pega o 41. E quando surgem os muros vermelhos, os pesados portões de ferro, Franz fica
mais calmo. Isto faz parte da minha vida e preciso observar, observar.7
Quem é esse que está aqui na Alexanderstrasse e move devagarinho uma perna atrás
da outra? Seu nome é Franz Biberkopf, o que ele andou aprontando, vocês já sabem.
Vagabundo, criminoso da pesada, pobre-diabo, homem derrotado, agora é a vez dele.
Malditos punhos que o abatem! Punho terrível que o atingiu! Os outros punhos bateram e
soltaram, ficou uma ferida, só ficou ele, a ferida sarou, Franz ficou do jeito que era e pôde
seguir em frente. Agora, o punho não larga, o punho é incrivelmente grande, envolve-o de
corpo e alma, Franz anda a passos pequenos e sabe: minha vida não me pertence. Não sei o
que devo fazer agora, mas acabou-se para Franz Biberkopf e fim.8

As passagens acima, escolhidas mais ou menos ao acaso, dão uma ideia geral,
embora ainda um pouco vaga, do que se pode encontrar no grande romance de Döblin, o
qual, como indica o subtítulo, conta a história de Franz Biberkopf, um homem do povo, pau
para toda obra, a bem dizer um brutamontes infantil, inocente e bonachão, mas que em
determinadas situações sói perder a cabeça, tornando-se violento como uma fera. Foi assim
que, num acesso de raiva e ciúmes, matou acidentalmente a noiva, Ida, de quem era cáften,
a pancadas, indo parar atrás das grades. Num breve prólogo, o narrador resume o que
acontecerá com aquele homem, anunciando que no fim da história, após muito apanhar da
vida, o encontraremos “muito mudado, maltratado, mas enfim endireitado” 9. Trata-se de
um procedimento épico, anti-ilusionista, propositalmente “alienante”, reiterado em seguida
nas prolepses que abrem cada uma das nove seções (ou “livros”), e que visa a anular no
leitor, de antemão, a criação de expectativas, a fim de que se mantenha atento a motivações,
relações e movimentos mais amplos, sem deixar-se levar aleatoriamente pelo drama
individual de uma personagem particular, “como se o curso da mundo ainda fosse em
essência o da individuação, como se o indivíduo alcançasse o destino com suas emoções e

7 BA, 387/444-45: “Es ist herbstlich, im Tauentzienpalast spielen sie die ‚Letzten Tage von Franzisko‟, fünfzig
Tanzschönheiten sind im Jägerkasino, für einen Fliederstrauß darfst du mich küssen. Da findet Franz: Mein
Leben ist zu Ende, mit mir ist es aus, ich habe genug. / Die Elektrischen fahren die Straßen entlang, sie fahren alle
wohin, ich weiß nicht, wo ich hinfahren soll. Die 51 Nordend, Schillerstraße, Pankow, Breitestraße, Bahnhof
Schönhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstraße,
Bahnhof Schmargendorf, Grunewald, mal rin. Guten Tag, da sitz ick, die können mir hinfahren, wo sie wollen.
Und Franz fängt an, die Stadt zu betrachten, wie ein Hund, der eine Fußspur verloren hat. Was ist das für eine
Stadt, welche riesengroße Stadt, und welches Leben, welche Leben hat er schon in ihr geführt. Am Stettiner
Bahnhof steigt er aus, dann zieht er die Invalidenstraße lang, da ist das Rosentaler Tor. Fabisch Konfektion, da
hab ick gestanden, ausgerufen, Schlipshalter vorige Weihnachten. Nach Tegel roten Mauern, die schweren
Eisentore, ist Franz stiller. Da ist von meinem Leben, und das muß ich betrachten, betrachten.”
8 BA, 398/456: “Wer ist es, der hier auf der Alexanderstraße steht und ganz langsam ein Bein nach dem andern
bewegt? Sein Name ist Franz Biberkopf, was er betrieben hat, ihr wißt es schon. Ein Ludewig, ein
Schwerverbrecher, ein armer Kerl, ein geschlagener Mann, er ist jetzt dran. Verfluchte Fäuste, die ihn geschlagen
haben! Schreckliche Faust, die ihn ergriffen hat! Die andern Fäuste schlugen und ließen ihn los, da war eine
Wunde, da war er bloß, die konnte heilen, Franz blieb, wie er war, und konnte weitereilen. Jetzt, die Faust läßt
nicht los, die Faust ist ungeheuer groß, sie wiegt ihn mit Leib und Seele ein, Franz geht mit kleinen Schritten und
weiß: mein Leben ist nicht mehr mein. Ich weiß nicht, was ich jetzt tun muß, aber mit Franz Biberkopf ist es aus
und Schluß.”
9 BA, 11/9: “Wir sehen am Schluß den Mann wieder am Alexanderplatz stehen, sehr verändert, ramponiert, aber
doch zurechtgebogen.”
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sentimentos, como se o íntimo do indivíduo ainda pudesse alguma coisa sem mediação” 10.
Ao mesmo tempo, a narrativa visa a anular, ou a quebrar, a tranquilidade contemplativa do
leitor, a possibilidade de uma observação totalmente desinteressada do curso catastrófico
do mundo, que haviam tornado-se escárnio com a Primeira Guerra. A distância estética é,
como já em Proust e em Kafka, o tempo todo encurtada a fim de que o plano superficial e
naturalizado dos acontecimentos quotidianos seja atravessado e, para além dele, apareça,
nua e crua, a negatividade subjacente à positividade dos fatos: “ora o leitor é deixado de
fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa de
máquinas”11. Por isso a combinação mediadora de registro mimético realista e princípios de
construção não-realistas, necessários para dar conta da matéria, que é opaca, constituída
por relações sociais alienadas objetivadas, engessadas, e que pede um novo alheamento,
uma segunda alienação. Paradoxalmente, o encurtamento da distância, que revela o horror
sob a pedra da cultura, a brutalidade da existência quotidiana, produz estranhamento,
distanciamento. O que Brecht diz do novo teatro vale também, nesse sentido, para a Nova
Música e para o romance modernista:

A resposta reside no estilo alienante da representação. Nesta, o fio da história é um fio


fragmentado; o todo isolado é constituído de partes independentes que podem e devem ser
comparadas com os incidentes das partes correspondentes na vida real. Este modo de
representar extrai toda a sua força de comparações com a realidade; em outras palavras, está
a todo instante dirigindo a atenção para a causalidade dos incidentes reproduzidos. [...] A
platéia não é totalmente “arrebatada”; não precisa amoldar-se psicologicamente, adotar uma
atitude fatalista para com o destino representado.12

Com isso em mente, voltemos ao livro. A história começa com a saída de Franz
Biberkopf da prisão de Tegel, bairro de Berlim situado no noroeste da cidade, em 1927, após
ter cumprido ali quatro anos de sua pena, e a partir daí acompanhamos sua tortuosa e
custosa reinserção na sociedade. Desde o início, esta, e acima de tudo a cidade, em
permanente transformação, dividem com a personagem o primeiro plano. Apesar da
dificuldade em se arrumar trabalho em tempos de crise e desemprego em massa, “der
Franz” promete a si mesmo manter-se decente, mas, ingênuo, é enganado e passado para
trás com facilidade. O nome Biberkopf, aliás, literalmente “cabeça de castor”, no dialeto

10 Theodor W. Adorno, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman” (1954), in Noten zur Literatur,
Frankfurt/M., Suhrkamp, 1981, pp. 41-47, aqui p. 42, trad. Modesto Carone: “Posição do narrador no romance
contemporâneo”, in Benjamin, Adorno, Horkheimer & Habermas, Textos escolhidos, São Paulo, Abril (col. Os
Pensadores), 1980, pp. 269-73, aqui p. 270.
11 Ibid., p. 46, trad., p. 272.

12 Bertolt Brecht, Diário de trabalho, vol. I: 1938-1941, trad. R. Guarany e J. de Melo, Rio de Janeiro, Rocco, 2002,

pp. 100-01, entrada do dia 3.8.40.


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local significava então algo como “cara de burro”, ou coisa parecida. O prenome Franz, por
sua vez, parece ser uma alusão a Francisco de Assis, mas também, ou principalmente, a
Franz Woyzeck, o famoso anti-herói proletário recriado por Georg Büchner a partir do fait
divers de um soldado que, tomado de ciúmes, assassinara a amante13. Trata-se, em suma,
de um simples de espírito, que fala aos passarinhos e em momentos críticos, de alucinação e
delírio, comunica com coelhos, camundongos, intropatiza com as plantas, a terra, ouve
apelos no vento... Um dos traços que sobressaem durante a leitura é que, como já dizia
Adorno, não há vida reta num mundo torto: apesar da promessa que fizera de permanecer
honesto após sair da prisão, Franz Biberkopf vive iludido e se iludindo, é trapaceado e
acaba sem querer envolvendo-se em novos crimes; mesmo resistindo com unhas e dentes,
mesmo não querendo, “é obrigado a querer”, “está acima dele, ele tem de querer”14. Através
do livro, como costumam dizer alguns críticos, acompanhamos os inúmeros altos e baixos

13 A comparação mereceria um desenvolvimento a parte. Não se pode ignorar o fato de os fragmentos da peça de
Büchner, inacabada quando de sua morte em 1837, terem permanecido durante muito tempo ignorados
precisamente por estar a obra à frente de seu tempo, fazendo uso de procedimentos épicos que viriam a ser
empregados e desenvolvidos na Rússia e na Alemanha, mais ou menos a partir da encenação de Mistério-Bufo, de
Maiakóvski, por Meyerhold, em 1918. Numa palavra: em Woyzeck, o que está em jogo é a destruição da “peça bem
feita”, do drama realista burguês, atrelado às unidades clássicas de ação, tempo e lugar, além de restrito à esfera
privada da vida, concentrado na dinâmica e na riqueza psicológicas, na profundidade interior das personagens,
assim como no diálogo, na tensão e na resolução de conflitos interindividuais. Não à toa, a peça de Büchner fora
ressuscitada, tirada do esquecimento, quase um século depois, após a Primeira Guerra, quando tudo aquilo
(profundidade subjetiva, totalidade harmônica e significativa, continuidade e desenvolvimento progressivo) já
soava mais do que falso, justamente por Alban Berg, cuja forma operística modernizada pelas descobertas da Nova
Música, longe de fornecer, como era comum na ópera clássica tanto quanto o seria no cinema, um mero fundo
musical psicológico, que sugerisse a cada etapa os estados de ânimo, os sentimentos ou as impressões das
personages, visava ao contrário expor as lacunas deixadas pelas palavras, não o que está nas personagens, mas
antes aquilo que se passa entre elas, vale dizer, o estado de alienação, desumanização e absurdidade, que se
encontra objetivado para além das personagens (a este respeito, veja-se Theodor W. Adorno, Berg. Der Meister
des kleinsten Übergangs, in Gesammelte Schriften, Bd. 13, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1997, pp. 428-29, trad. M.
Videira: Berg. O mestre da transição mínima, São Paulo, Unesp, 2009, pp. 179-80). Com a ópera de Berg,
terminada em 1922 e encenada em Berlim em 1925, a modernidade da música fazia enfim justiça à modernidade
daquele texto. Simplificando ao extremo, digamos que, embora Berg não tenha rejeitado de todo a tonalidade
clássica, combinando-a ao contrário, de maneira muito a propósito, com a técnica schönberguiana, a não-
hierarquização dos tons na construção musical dodecafônica (as doze notas da gama cromática tendo todas igual
importância) condizia com a fragmentação da narrativa, a não-linearidade causal e a autonomia relativa das cenas
da peça de Büchner. A este respeito, citemos o bom comentário de Anatol Rosenfeld, Teatro moderno, São Paulo,
Perspectiva, 1977, pp. 64-65: “Um dos aspectos da obra de Buechner que nos toca particularmente como moderno
é a solidão de suas personagens. Já não se trata da solidão romântica, mas da solidão da lonely crowd, concebida
como fato humano fundamental num mundo que, tendo deixado de ser um todo significativo de que todos
participam, se transforma em caos absurdo em que cada um é, forçosamente, isolado. [...] A imagem do homem
apresentada por Buechner desqualifica a do herói trágico que é denunciada como falsa. Surge, talvez pela primeira
vez, o herói negativo que não age, mas é coagido, o indivíduo desamparado, desenganado pela história ou pelo
mundo [...] Woyzeck é um caso extremo, verdadeiro „drama de farrapos‟: é um fragmento; mas é uma obra que só
como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua
de cenas sem encadeamento causal. Cada cena, ao invés de funcionar como elo de uma ação linear, representa um
momento em si substancial que encerra toda a situação dramática ou, melhor, variados aspectos do mesmo tema
central – o desamparo do homem num mundo absurdo.” É grande a semelhança com a história de Franz
Biberkopf: em ambos os textos, no de Büchner e no de Döblin, além da situação monológica, há grande destaque
para o lado grotesco, para a redução zoológica do homem (enquanto Woyzeck é incapaz de controlar o músculo
constritor, Biberkopf pesa quase cem quilos, come feito um glutão e copula à maneira de um animal selvagem) e
para o automatismo de suas ações (os dois assassinam as amantes como se fossem autômatos guiados por forças
que se manifestam à despeito de suas vontades).
14 BA, 163 e 314/183 e 359: “er will nicht, er wehrt sich, es geht über ihn, er muß müssen.”
23
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desta personagem a um tempo comum e incomum – mas, como previne o narrador: “Será
um mendigo comum e um homem rico incomum?”15 –, a luta com o destino e consigo
mesmo, as ilusões e os desenganos, os remorsos e os pensamentos mórbidos, a propensão
ao alcoolismo e a perdição no submundo do crime e da prostituição, e, sobretudo, seu total
esmagamento por forças obscuras e poderes que não domina. Tal esmagamento, todavia, só
pode ser apreendido suficientemente se não se perder de vista que aquele movimento
negativo de sobe e desce na situação da personagem, o vaivém entre fortitude e fastio,
autossuficiência e afogamento no álcool, que parece não conduzir a lugar algum, cada novo
episódio começando como que do zero, como que repetindo a sequência de acontecimentos
do anterior, vem sempre conjugado ao movimento vertiginoso da cidade, com suas
incessantes demolições e (re)construções.
De modo muito explícito, pelo menos é o que aparenta numa primeira leitura, Döblin
tenta dar um sentido ao ritmo ensandecido da metrópole e às sucessivas quedas e
adversidades sofridas por seu herói através da referência a mitos bíblicos e helênicos
relacionados à loucura, à obediência e a rituais de sacrifício, com destaque para as
tribulações de Jó, o holocausto de Isaac e os remorsos de Orestes, três personagens que têm
em comum o fato de serem meros joguetes de forças que escapam a elas, sendo salvas, por
intervenção divina, no derradeiro momento, quando já tudo parece perdido. Se
considerarmos com Lévi-Strauss que o mito é antes de tudo uma solução imaginária para
tensões, conflitos e contradições reais, sociais e históricas, então tal solução, que no mais
das vezes assume contornos edificantes e complacentes, parece estar de fato muito
claramente presente no livro em questão. Ali, a experiência de impotência do sujeito em
busca de um lugar ao sol no seio da monstruosa metrópole moderna, sem controle sobre o
que lhe advém, sobre a própria história ou o sobre o conjunto de forças sociais agindo sobre
ele, ganha não somente apoio em explicações mitológicas como também uma conotação de
exemplaridade. Trata-se, à primeira vista ao menos, de uma tentativa, longe de ser
excepcional na arte modernista do início do século, de outorgar um sentido arcaico-
mitológico ao curso desprovido de sentido do mundo da mercadoria fetichizada. Na célebre
justificação de T. S. Eliot, num texto sobre Joyce: “É simplesmente uma maneira de
controlar, ordenar, dar forma e significância ao imenso panorama de futilidade e anarquia
que é a história contemporânea.”16 No que concerne a Döblin, entretanto, como veremos,

15 BA, 394/453: “Ist ein Bettler gewöhnlich und ein Reicher ungewöhnlich?”
16 Thomas Stearns Eliot, “Ulysses, Order and Myth” (1923), in Selected Prose, ed. Frank Kermode, London, Faber
and Faber, 1975, p. 177: “It is simply a way of controlling, of ordering, of giving a shape and a significance to the
immense panorama of futility and anarchy which is contemporary history.”
24
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parece mais adequada a explicação de Roberto Schwarz: “vários dos principais escritores
modernistas procuraram dar parentesco mítico a seus episódios contemporâneos, para lhes
atenuar a contingência e lhes emprestar generalidade, dignidade arquetípica, eternidade
etc., mesmo que irônicas, ou para acentuar a sordidez.” 17
A este respeito, diga-se de passagem, as referências mítico-religiosas, judeo-cristãs e
gregas – Esther (livro 1), Jeremias (livros 1 e 5), Agamemnon, Clitemnestra, Orestes e as
Erínias (livros 2 e 6), Adão e Eva (livros 2, 3, 4 e 8), Menelau, Telêmaco e Helena (livro 4),
Jó (livros 4 e 8), Aquiles (livro 6), Abraão e Isaac (livros 6 e 7), a prostituta Babilônia e a
Morte ceifeira (livros 6, 8 e 9), Salomão/Eclesiastes (livros 7, 8 e 9), os anjos Sarug e Terah
(livro 8), Macabeus (livro 9) –, estão intrinsecamente relacionadas às vicissitudes das
personagens, muitas vezes, com efeito, recebendo tratamento irônico, como por exemplo
quando os adornos e apetrechos de guerra de Aquiles são comparados às roupas surradas e
sujas de Biberkopf18, comparação que tem por efeito um distanciamento, impedindo que o
leitor enxergue no anti-herói moderno e em sua luta contra as forças anônimas da
metrópole um qualquer resquício de nobreza trágica. Salvo engano, algumas daquelas
referências, em muitos momentos, também não deixam de interferir na percepção que se
tem, a cada novo episódio, da cidade de Berlim, como que preparando o terreno para ela,
antecipando-a, ou reforçando-a. Sob fundo mitológico, além de contrastada explicitamente
com cidades da antiguidade – a par de Babilônia, também Nínive, Roma, Cartago e
Jerusalém (livros 5 e 6) –, a metrópole moderna é sucessivamente apresentada como um
universo confuso, estranho, destituído de todo e qualquer sentido (livro 1), como um grande
organismo burocrático tendo em si mesmo uma lógica obscura que absorve e devora a todos
(livro 2), como uma gigantesca máquina, perigosa, violenta, mortífera (livro 4), como
entidade sedutora, artimanhosa, incitando ao gozo e à volúpia do pecado (livro 6), por fim,
como um ser autônomo, que segue indiferente seu curso, sempre igual, automatizado (livro
9). Assim, em contraste com a imagem do espaço urbano que aos poucos se constitui, a um
tempo caótica, violenta, sedutora e indiferente, aparecem no correr da história três
heterotopias, por assim dizer, no seio das quais se encontraria a ordem, a paz, ou antes
ainda, a ausência do fardo da responsabilidade: a prisão (livros 1 e 8), o paraíso bíblico
(livros 2, 3, 4 e 8) e o asilo de loucos (livro 9). A mensagem parece clara: neste mundo-cão
não viverás em paz; esta só existiu no passado mítico/bíblico da humanidade; nesta vida só
a encontrarás no presídio ou no sanatório. Sem prejuízo do fato de ser um tanto forçado

17 Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Seqüências brasileiras, São Paulo, Companhia das
Letras, 1999, p. 138.
18 Cf. BA, 243/278.
25
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chamar de “pacífica” a vida severina de encarcerados e alienados – embora, pensando bem,


a imagem não deixe de ser poderosa: comparados à vida louca do lado de fora, na inóspita
cidade grande, a prisão e o manicômio teriam ares mais amenos, tranquilos, quiçá até mais
“salutares” –, a mensagem pode ser lida de ponta-cabeça. Explicando melhor: a violência
seria, como de fato é no capitalismo, o normal, e a paz, a exceção quase inconcebível,
inimaginável, que confirmaria a regra geral. Se, na época em que Döblin compunha seu
romance, a cultura da violência, o vínculo social perverso do capital, a guerra como
consequência lógica e incontornável do mercado, já eram estetizados pela indústria da
cultura do entretenimento, pelo complexo industrial de produção das consciências, que
opera tanto a legitimação da existência de um certo grau de violência, ao torná-la coisa
corriqueira, quanto certa estabilização na estruturação da barbárie, então talvez fosse o caso
de afirmar que também a arte, em larga medida, acabou participando de tal processo geral
de estetização, legitimação e naturalização da violência19.
Se Döblin não escapa à tendência20, cabe no entanto ressaltar que o recurso ao mito,
no livro de que estamos tratando e na literatura modernista de modo geral, de um ponto de
vista materialista, deve ser encarado antes de tudo como uma maneira de expor a
liquidação do indivíduo na sociedade moderna, liquidação das condições da formação da
individualidade autônoma, que no entanto haviam sido postas (pelo menos enquanto
pressupostos) pela própria sociedade burguesa. Noutras palavras, em razão de a situação
histórica do capitalismo dito tardio, monopolista, assemelhar-se, no nível das aparências,
àquela, pré-individual, sem sujeito, de épocas remotas, pré-capitalistas, nas quais a
humanidade encontrava-se enredada numa totalidade mítica plena de sentido21, a
referência ao mito expõe o fato de a sociedade capitalista, da mercadoria fetichizada, não
ser tão desencantada, esclarecida, racional e civilizada quanto pretente ou aparenta. Não
surpreende que a despeito dos supostos propósitos moralizantes de Döblin, tão ressaltados
pela crítica, a forma fragmentada, polifônica, hipercomplexa e no fim das contas assaz

19 Estetização que, com frequência, vai de par com aquela da “vida bandida” dos de baixo, ou seja, com a exploração
artística da atração sensual da feiúra, do imundo, do disforme, coisa que se encontra já nos irmãos Goncourt
(veja-se a respeito o ensaio de Auerbach sobre Germinie Lacerteux, no Mimesis) e que pode ainda ser notada nos
dias de hoje, quiçá mais do que nunca, sobretudo em produções espetaculares como o filme Cidade de Deus. Em
literatura, no século XX, os romances de Genet constituem possivelmente o exemplo maior de estetização do sujo,
do sórdido, da vida do crime.
20 Evocando as descrições detalhadas de tortura e morte no romance histórico Wallenstein (1920), um crítico não

hesitou em acusar Döblin de fascinação obsessiva com a violência e de querer transformar a crueldade em
experiência estética. Cf. Wilfried G. Sebald, Der Mythos der Zerstörung im Werk Döblins, Sttutgart, Klett, 1980,
pp. 49-51 e 156-60.
21 Cf. Theodor W. Adorno, “Standort des Erzählers”, op. cit., p. 47, trad. cit., p. 273.
26
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dissonante de sua narrativa faça explodir toda impressão de sentido e coerência globais 22.
Com isso em vista, faz-se necessário integrar a dimensão mítico-religiosa da obra à
explicação materialista, isto é, ligar o congelamento do tempo histórico e a fragmentação da
forma literária que ali tem lugar à expansão do trabalho industrial alienado e à subsequente
fragmentação dos processos social e perceptivo no seio disforme da urbs moderna, mas
igualmente, no caso específico de Berlin Alexanderplatz, à persistência da “miséria alemã”
no contexto geral da República de Weimar, a um tempo dependente-independente, incapaz
de superar o multissecular atraso do país no desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo.

***

De forma resumida, pode-se dizer que o desenvolvimento do capitalismo industrial,


e com ele a expansão vertiginosa das relações mercantis, isto é, a generalização das formas
capitalistas de trabalho e a colonização do quotidiano pela mercadoria, constituem um
processo que acaba por tornar a vida, em todos os seus aspectos, não somente morna,
monótona e mesquinha – algo muito patente nas personagens de um Flaubert, de um
Tchekhov, mergulhadas no tedium vitae e na insignificância quotidiana –, mas
fundamentalmente brutal, desumana. Ao mesmo tempo, o funcionamento normalizado e
quotidiano desta vida social alienada tende cada vez mais a dissimular e a objetificar a
brutalidade e a desumanidade do processo global capitalista. A partir de meados do século
XIX, mais precisamente após o trauma de junho de 1848, a arte de modo geral e a literatura
em particular (pelo menos aquela que interessa) passam a recompor, no nível da forma, e
assim a elevar à condição de experiência estética, fazendo delas uma evidência chocante, a
derrocada do curso da experiência, a desvitalização da vida e a desumanização das relações
humanas. Não obstante, se, por um lado, à banalização e ao embrutecimento da existência
corresponde um processo de crescente ofuscamento das relações sociais, por conseguinte,
da história e seu sentido geral, por outro lado, o decorrente ceticismo quanto à
possibilidade de se apreender as tendências globais da sociedade e da história, quiçá
mesmo a impossibilidade objetiva de tal apreensão, inverte-se, a partir das últimas décadas
do século XIX, progressiva e quase que inevitavelmente em mística e metafísica. Com

22 Para uma análise pormenorizada da estrutura e dos pontos de vista narrativos, da apreensão formal dos percalços
e vicissitudes sofridos pelo protagonista após a saída de Tegel, assim como da maneira com que a cidade se
imiscui e ganha corpo no romance, veja-se a dissertação de Gabriela Siqueira Bitencourt, Fratura da metrópole.
Objetividade e crise do romance em Berlin Alexanderplatz, Universidade de São Paulo, 2010, principalmente o
capítulo III, assim como, da mesma autora, o artigo publicado no presente número de Sinal de Menos: “A fratura
da forma: constituição e implicações da representação da metrópole em Berlin Alexanderplatz”.
27
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efeito, pelo menos desde Nietzsche e Malthus, o caráter histórico da concorrência


capitalista, da divisão social do trabalho, das relações de classe e da dominação do capital é
dissimulado, dissolvido em explicações de caráter mítico, metafísico, ou ainda
pseudocientífico, como o famigerado “darwinismo social”, que transforma em lei
“sociológica” eterna a luta de morte de todos contra todos pela sobrevivência na selva do
mercado23, sem falar nas explicações em termos de superioridade racial, em Thierry, Taine,
Le Bon, Gobineau e, entre nós, Euclydes da Cunha. Segundo Lukács, tais tendências à
mistificação, que se combinam então sem problema com o culto positivista dos fatos
particulares, arrancados e isolados de seu verdadeiro contexto, atingiriam “seu ponto
culminante na falsificação bárbara da história e sua transformação em mito pelo
fascismo”24.
De tais tendências, desnecessário dizer, participa também boa parte da arte da
primeira metada do século XX, mesmo (ou sobretudo) a mais avançada. No caso específico
de Döblin, não deixa de ser sintomática a progressiva despolitização pela qual passa a partir
de meados dos anos 1920 (a bem dizer, durante a composição do Berlin Alexanderplatz,
entre 1927 e 1929, o autor oscilava ainda entre a alternativa revolucionária e a
transformação espiritual do mundo). Alemão de origem judia, não custa lembrar, o autor
demonstrava a princípio sensibilidade esquerdista, em suas próprias palavras, “fora
socialista atuante”25, como se pode aliás ver nos artigos que escreveu entre 1919 e 1921, sob
o pseudônimo de Linke Poot (“Pata Esquerda”), para o jornal Die Neue Rundschau26. Num
deles, de 1919, defendia com entusiasmo a classe operária revolucionária, simpatizando
com os conselhos de trabalhadores e soldados formados no imediato pós-guerra, que em
seguida seriam suprimidos pelo governo social-democrata de Friedrich Ebert:

Uma associação de camaradagem entre homens livres constitui a célula natural e


fundamental de toda a sociedade, a pequena comunidade; é por aí que se deve começar... É
isso que o príncipe Kropotkin há muito já sabia e ensinava, aquilo que aprendera dos
relojoeiros suíços na Federação do Jura, em jargão político: o sindicalismo, o anarquismo.27

23 A este respeito, cf. Georg Lukács, Probleme des Realismus III: Der historische Roman, Neuwied/ Berlin,
Luchterhand, 1965, p. 212.
24 Ibid., p. 305.
25 Alfred Döblin, “Posfácio para a reedição de 1955”, anexo à ed. da Martins Fontes, p. 527.
26 Cf. Alfred Döblin, Der deutsche Maskenball. Von Linke Poot (1921), Olten/Freiburg, Walter, 1972, e Michel

Vanoosthuyse, “Linke Poot: Döblin, les débuts de Weimar et les intellectuels”, in Études allemandes, n° 6, Lyon
(janvier 1993).
27 Alfred Döblin, Schriften zur Politik und Gesellschaft, Olten/Freiburg, Walter, 1972, p. 92, apud David B.

Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Döblin, Berkeley/Los Angeles, University of California, 1988, p. 54.
Döblin se refere aí a um famoso texto de Peter A. Kropotkin, Memoiren eines Revolutionärs, Bd. II, Münster,
Unrast, 2002, p. 319: “Die Art wie jeder jeden als Gleichen sah und behandelte, die ich in den jurassischen Bergen
fand, die Unabhängigkeit im Denken und im Ausdruck, wie ich sie sich unter den dortigen Arbeitern entwickeln
28
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Em princípio, então, rejeita a República, a qual via, não sem razão, como uma traição dos
ideais revolucionários e sob cuja fachada continuaria viva a antiga estrutura capitalista de
poder imperial. Em 1921, porém, algo resignado, Döblin demonstrava aceitar Weimar, pelo
menos enquanto ideal pelo qual valeria a pena lutar, e clamava pelo suporte dos colegas do
meio artístico, que deveriam “espiritualizar” a nova República, contribuir para a superação
tanto das arcaicas estruturas, ainda vigentes, de exploração e dominação, quanto das
altercações partidárias que, após a guerra, teriam impedido às forças de esquerda
estabelecer uma verdadeira ordem digna do homem. Desapontado cada vez mais com a
incapacidade do novo Estado de renovar a ordem das coisas, Döblin vai aos poucos adotar
uma atitude “biologista”, por assim dizer, ligada a uma filosofia especulativa da natureza, o
que aparecerá explicitamente no tratado Das Ich über der Natur, de 1927: as antigas
questões políticas são como que esvaziadas, ou simplesmente deixadas de lado; passa para
o primeiro plano a compreensão do universo como dinâmica ordenada, onde tudo tem seu
lugar, inclusive as guerras imperialistas, vistas como inevitáveis28. É preciso ter em mente
que tal visão despolitizada do mundo, calcada numa filosofia da harmonia cósmica, divina,
era a de Döblin no momento em que se pôs a compor Berlin Alexanderplatz, apesar de o
contato frequente com Brecht fazer com que mantivesse ainda acesa a esperança numa
mudança revolucionária.
Antes de retomarmos a discussão de nosso livro, acrescentemos ainda o fato, que não
deixa de ser revelador, de o autor flertar desde cedo com o exotismo e o esoterismo
orientais. Já no “romance chinês” Die drei Sprünge des Wang-lun (1915), publicado em
pleno conflito mundial, a atitude ambígua do nosso autor se deixa ver plenamente. No livro
são consagrados os ensinamentos taoístas de Li-zi (séc. V a. C.), pregador da passividade
diante do fluxo inalterável da vida; ao mesmo tempo, a história termina com o protagonista
passando à ação e morrendo ao liderar uma insurreição. Passividade e aceitação serena
do curso do mundo, por um lado, por outro, engajamento prático e intervenção
transformadora da sociedade: eis os dois polos, antagônicos e inconciliáveis, encontrados
em muitas de suas obras, como também no próprio curso de sua vida. Continuando o que

sah, und ihre grenzenlose Hingabe an die gemeinsame Sache sprachen meine Gefühle noch viel mehr an; und als
ich die Berge nach einer guten Woche Aufenthalt bei den Uhrmachern wieder hinter mir ließ, standen meine
sozialistischen Ansichten fest: Ich war ein Anarchist.” Em tradução aproximada: “O modo como cada um é visto e
tratado, que presenciei nas montanhas do Jura [suíço], a independência de pensamento e de expressão que pude
ver entre os trabalhadores lá, sua devoção ilimitada à causa comum, tocaram profundamente meus sentimentos; e
quando, após uma semana passada junto aos relojoeiros, deixei as montanhas, minhas visões socialistas estavam
estabelecidas: eu era um anarquista.”
28 Para tudo isso, cf. David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Döblin, op. cit., pp. 54-59.
29
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dizíamos, a fascinação de Döblin por civilizações e concepções de mundo não-ocientais em


seguida reaparecem na novela “Der Überfall auf Chao-lao-sü” (1921) e em Manas (1927),
longo poema épico concebido em parte para dar conta da “crise do romance” 29 e que,
segundo o próprio autor, deveria servir de base para Berlin Alexanderplatz, sendo este uma
espécie de “Manas em dialeto berlinense”30. Durante o exílio, a fim de “aliviar a sede de
aventuras”, escreveria a Amazonas-Trilogie (1937-38), sobre povos e culturas pré-
colombianos, e, voltando-se uma vez mais para a China, The Living Thoughts of Confucius
(1940). Por fim, influenciado por anos de leituras de Espinoza, Pascal e Kierkegaard,
acabaria por se converter ao catolicismo romano em 1941 – decisão que Brecht, que
admirava os trabalhos do amigo desde que lera ainda jovem seu Wadzeks Kampf mit der
Dampfturbine (1914/18), no qual se repudiava o heroísmo trágico31, teria considerado como
uma dolorosa traição, como atesta o poema “Peinlicher Vorfall” 32. Tal parti pris pelo
irracional não deixaria de envergonhar e incomodar a Brecht, que, após um discurso
pronunciado por Döblin durante o exílio californiano, por ocasião de seus 65 anos, em 14 de
agosto de 1943, no qual defendia que “die Relativität ist der Tod aller Moral” 33, notaria em
seu diário:

29 “Die Krise des Romans” é o título de um famoso texto programático, escrito por Otto Flake em 1922, e que
mobilizou toda a classe literária alemã, de modo que quase todo “romance” escrito após esta data teve por meta,
por assim dizer, a superação do Bildungsroman clássico, ou pelo menos a renovação do gênero, que após os
horrores da Primeira Guerra havia se tornado, por óbvias razões, uma forma caduca. Der Zauberberg (1924), de
Thomas Mann, e Der Mann ohne Eigenschaften (escrito entre 1921 e 1942), de Robert Musil, são dois dentre os
mais notáveis exemplos de tentativas de superação, ou transformação, do romance de formação clássico. Também
o Doktor Faustus (1947), escrito no exílio, espécie de Bildungsroman ao avesso, no qual o protagonista se forma
no momento em que, firmado o pacto com as forças demoníacas, dá as costas para o mundo e passa a viver isolado
da civilização.
30 Alfred Döblin, “Posfácio para a reedição de 1955”, cit., p. 527.

31 Cf. Bertolt Brecht, Tagebücher 1920-22, Frankfurt/M., 1978, p. 48, apud Heidi Thomann Tewarson, “Alfred

Döblin und Bertolt Brecht: Aspekte einer literarischen Beziehung”, in Monatshefte, vol. 79, n° 2 (Sommer 1987),
pp. 172-85, aqui p. 172, entrada de 4/9/1920: “Ich lese heute früh den Schluß von Döblins „Wadzeks Kampf‟ und
finde darin anklingende Ideen. Der Held läßt sich nicht tragisieren. Man soll die Menschheit nicht antragöden.
Und es steht Herrliches drin über die Tragödie. (Es wird Schamgefühl gefordert!) Es ist überhaupt ein starkes
Buch. Es läßt den Menschen schamhaft im Halbdunkel und macht nicht Proselyten. So ist es, steht drinnen auf
300 Seiten. Ich liebe das Buch.”
32 Cf. Bertolt Brecht, “Peinlicher Vorfall”, in Gesammelte Werke, Bd. 10: Gedichte 3, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1967,

pp. 861-62: “Als einer meiner höchsten Götter seinen 10 000. Geburtstag beging / Kam ich mit meinen Freuden
und meinen Schülern, ihn zu feiern / Und sie tanzeten und sangen vor ihm und sagten Geschriebenes auf. / Die
Stimmung war gerührt. Das Fest nahte seinem Ende. / Da betrat der gefeierte Gott die Plattform, die den
Künstlern gehört / Und erklärte mit lauter Stimme / Vor meinen schweißgebadeten Freunden und Schülern / Daß
er soeben eine Erleuchtung erlitten habe und nunmehr / Religiös geworden sei und mit unziemlicher Hast /
Setzte er sich herausfordernd einen mottenzerfressenen Pfaffenhut auf / Ging unzüchtig auf die Knie nieder und
stimmte / Schamlos ein freches Kirchenlied an, so die irreligiösen Gefühle / Seiner Zuhörer verletzend, unter
denen / Jugendliche waren. / Seit drei Tagen / Habe ich nicht gewagt, meinen Freunden und Schülern / Unter die
Augen zu treten, so / Schäme ich mich.”
33 Apud Harold von Hofe, “German Literature in Exile: Alfred Döblin”, in The German Quaterly, vol. 17, n° 1 (jan.

1944), pp. 28-31, aqui p. 31.


30
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Döblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padrões fixos de natureza
religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma
sensação incômoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente
horror experimentado quando um companheiro de prisão sucumbe à tortura e fala. [...]
Quando Döblin começou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, também ele era
culpado da ascensão dos nazistas (“O senhor não disse, Sr. Thomas Mann, que ele é como
um irmão, ainda que um mau irmão?”, perguntou à primeira fila) e depois continuou
obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convicção de
que ele diria “porque acobertei os crimes da classe dirigente, desencorajei os oprimidos, iludi
com canções os famintos” etc., mas tudo o que fez foi anunciar com teimosia, sem
arrependimento ou pesar, “porque não procurei Deus”.34

A dimensão místico-cristã, que dá mostras da total despolitização do autor durante o exílio


– já em Paris, antes mesmo de imigrar para os EUA, Brecht não deixava de notar inclusive
certa tendência fascista nas ideias sionistas do amigo 35 –, faria ainda aparição em Der
Unsterbliche Mensch (1946) e em seguida em “Die Pilgerin Ætheria” (1949). A superação da
“longa noite” e o começo de uma nova vida são os temas de Hamlet oder Die lange Nacht
nimmt ein Ende (1956), seu último romance, segundo alguns críticos interessante do ponto
de vista formal, não obstante ser a experiência histórica da Segunda Guerra totalmente
hipostasiada através do amálgama de fé católica, mitologia grega, poesia trovadora
medieval, referências literárias diversas e, para completar, terapia de grupo junguiana.
Do que precede não se pode inferir a presença, através da obra de Döblin, de uma
temática místico-religiosa – para não dizer regressiva – difusa. Lê-la com este (ou qualquer
outro) a priori pode levar a interpretações descabidas. Também não há problema
simplesmente em se fazer uso de referências orientais. Brecht, por exemplo, aliás
influenciado por Döblin, também estudou os clássicos da Índia e da China, coisa que se
reflete em alguns de seus melhores poemas e peças. Haveria então que se interrogar sobre a
maneira com que são usadas tais referências, e com qual finalidade. O que vale, aliás, para
qualquer referência mítica, religiosa, metafísica, seja ela ocidental ou não. Pois, caberia
perguntar, o que se busca afinal, a perenização de uma situação histórica através de sua
essencialização, um estranhamento fascinado, ou então, ao contrário, um meio de produzir
o distanciamento necessário para lançar uma luz crítica sobre tudo o que pareça ou se
apresente como natural? A este respeito, vale ainda o que já dizia Pascal: “La Chine
obscurcit, mais il y a clarté à trouver; cherchez-la. [...] Ainsi cela sert, et ne nuit pas.”36

34 Bertolt Brecht, Arbeitsjournal, Bd. 2: 1942-1955, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1973, p. 605, trad. R. Guarany e J. de
Melo: Diário de trabalho, vol. II: 1941-1947, Rio de Janeiro, Rocco, 2005, pp. 194-95.
35 Cf. Bertolt Brecht, Briefe, Frankfurt/M., 1981, carta n° 184, apud Heidi Thomann Tewarson, “Alfred Döblin und

Bertolt Brecht”, op. cit., p. 183: “In Paris entsetzte mich Döblin, indem er einen Judenstaat proklamierte, mit
eigner Scholle, von Wallstreet gekauft. In Sorge um ihre Sohne klammern sich jetzt alle (auch [Arnold] Zweig hier)
an die Terrainspekulation Zion. So hat Hitler nicht nur die Deutschen, sondern auch die Juden faschisiert.”
36 Blaise Pascal, Pensées (post., 1670), Paris, Dezobry et E. Magdelene, 1852, art. XXIV, § 46, p. 328.
31
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***

Voltando então, já não sem tempo, a Berlin Alexanderplatz, digamos que a fim de
montar sua epopeia metropolitana, que evoca, quiçá involuntariamente, mas de todo modo
com grande mestria, estados arcaicos e civilizados coexistindo no seio de um mesmo espaço
social, intricado e estilhaçado, qual seja, uma cidade grande em constante transformação e
expansão, em princípio inapreensível em sua totalidade, visando então recompor o mosaico
caótico e polifônico do espaço urbano moderno e do lugar, ínfimo e precário, ocupado pelo
sujeito isolado e perdido no seio deste último, nosso autor toma naturalmente o cuidado de
distanciar a narrativa de todo psicologismo. As dificuldades da integração social, a retirada
ou a exclusão da comunidade, a opacidade do sujeito em relação a si mesmo, a estranheza
para com o mundo à sua volta, a impossibilidade subjetiva e objetiva de se encontrar paz
neste mundo, de se adequar a seu curso desenfreado e insandecido, de ser e permancer
decente etc., não são por Döblin contrabalançadas pela simples focalização na riqueza
sensorial ou psíquica das personagens: o “herói” – e doravante o uso deste termo, mesmo
sem aspas, será sempre num sentido negativo –, Franz Biberkopf, como não podia deixar de
ser, é pobre em sensações, sua vida interior é quase inexistente. Como já sublinhado, é
antes a cidade que pulsa, cacofônica.
Desde as primeiras páginas, pode-se “ouvir” o bumbar e o rufar das máquinas na
Alexanderplatz, o bulir e o burburinhar das ruas em torno à famosa praça, o trepidar do
chão com a passagem do bonde ou do metrô, estridentes. Às descrições do cenário urbano,
com contornos e tonalidades fauvistas e intensidade expressionista, integram-se estatísticas
demográficas e econômicas, publicidade de tudo quanto é produto, panfletos de
propaganda política, previsão do tempo, itinerários de ônibus, trens e elétricos, filmes e
peças em cartaz, canções populares, prescrições e regras de administrações e repartições
públicas, considerações sociológicas, discursos jurídicos, descobertas científicas recentes,
notícias políticas, artísticas e esportivas do tempo e os mais banais faits divers do
momento, “tudo isso em fusão inextricável com a matéria narrativa e os monólogos
interiores das personagens formando uma unidade fervilhante, turbilhonando no amplo
ritmo de uma linguagem ao mesmo tempo expressiva e naturalista” 37. Com efeito, a
linguagem usada por Döblin é bastante híbrida, misturando e combinando a todo momento
citações do Antigo Testamento e do Apocalipse de João na tradução de Lutero, além de
empréstimos da poesia de Goethe e Schiller, com o característico Berlinerich, o patoá

37 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel: Alfred Döblin” (1959), in Letras germânicas, São Paulo/Campinas,
Perspectiva/Usp/Unicamp, 1993, p. 168.
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berlinense, falado nos enfumaçados bistrôs e nos cinzentos pátios de imóveis proletários, ao
qual se misturam o jargão da malandragem (Gaunensprache), a gíria das ruas (Rotwelsh) e,
cá e lá, algumas expressões em iídiche.
Para a contínua justaposição de referências míticas, literárias e fatuais dispersas, e
para obter o efeito de simultaneidade espaço-temporal de planos, acontecimentos e
elementos os mais diversos, Döblin faz uso de técnicas de colagem, de montagem e de corte,
inspiradas nos quadros dadaístas de Kurt Schwitters e no estilhaçar fulgurante das imagens
nos filmes contemporâneos, notadamente no documentário Berlin: Die Sinfonie der
Großstadt (1927), de Walther Ruttmann, no Metropolis (1927), de Fritz Lang, e
principalmente no cinema épico-revolucionário de Eisenstein – A Greve é de 1924, O
Encouraçado Potemkin, de 1925, e Outubro, de 1928 –, técnicas que demandam, no caso
da literatura, um sofisticado trabalho de fragmentação e recomposição da sintaxe. O
resultado é notável: os inesgotáveis recursos empregados pelo autor fazem com que o leitor
sinta, com certo arrepio, tanto o frenesi alucinante da cidade grande no conjunto de suas
manifestações como a desumanidade da vida urbana, o abandono e o desterro de seus
habitantes. A influência de Joyce e a proximidade de Dos Passos são evidentes – Ulysses é
de 1922, Manhattan Transfer, de 1925, ambos publicados em tradução na Alemanha em
1927 – e já foram suficientemente sublinhadas38, mas Döblin vai além ao pôr, ao lado da
grande cidade como sujeito onipotente que o esmaga, um indivíduo marginal como
protagonista por assim dizer de um romance de formação, cujos moldes como se sabe são
burgueses. É no universo do submundo do crime, da boêmia e da prostituição da Berlim da
segunda metade dos anos vinte, como lembra Rosenfeld, “descrito com realismo
alucinatório”39, que nossa personagem vai, por assim dizer, “desenvolver-se”. Seu
desenvolvimento, porém, pouco tem que ver com a formação burguesa clássica, que é
simplesmente parodiada, quando não negada.

***

38 A literatura a respeito é bastante vasta. Além do comentário do próprio Döblin, “,Ulysses‟ von Joyce” (1927), in
Matthias Prangel (Hrsg.), Materialen zu Alfred Döblin ‚Berlin Alexanderplatz‟, Frankfurt/ M., Surkamp, 1975, pp.
49-52, veja-se H. Szulanski, Eine Parallele zwischen James Joyce und Alfred Döblin, tese de doutorado,
Université libre de Bruxelles, 1949, Volker Klotz, Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung an den
Roman von Lesage bis Döblin, München, Hanser, 1969, Breon Mitchell, “Joyce and Döblin: at the Crossroads of
Berlin Alexanderplatz”, in Contemporary Literature, vol. 12, n° 2 (Spring, 1971), pp. 173-187, Andrew McLean,
“Joyce‟s Ulysses and Döblin‟s Alexanderplatz Berlin”, in Contemporary Literature, vol. 25, n° 2 (Spring, 1973),
pp. 97-113, Joris Duytschaever, “Joyce, Dos Passos, Döblin: Einfluß oder Analogie?”, in Prangel (Hrsg.),
Materialien, op. cit., pp. 136-49, Pierre-Jean Le Quéau, “Babylone, encore: Joyce, Döblin et Dos Passos”, in
Religiologiques, n° 5 (1992), pp. 1-17, e Frauke Tomczak, Mythos und Altäglichkeit am Beispiel von Joyces
Ulysses und Döblins Berlin Alexanderplatz, Frankfurt/M./Berlin, Peter Lang, 1992.
39 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel”, op. cit., p. 169.
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A maior parte das leituras feitas desde que o livro foi publicado, em 1929, com
pequenas variações, diz mais ou menos o seguinte: Döblin, no final do romance, faria com
que a morte simbólica de Franz Biberkopf, vale dizer, sua morte enquanto personagem de
narrativa épica e seu renascimento para uma nova vida, com o novo nome de Franz Karl
Biberkopf, coincidisse com sua integração subserviente ao curso do mundo. Deus ex
machina, o autor de fato “ressuscita” seu anti-herói40 – cena que lembra o final do segundo
Fausto, ou ainda, o deliberadamente forçado “final feliz” da Ópera de três vinténs, de
Brecht/Weill, estreada no ano anterior –, mas na condição de não-sujeito, ou de um sujeito
física e psicologicamente mutilado. Após todas as pancadas que levou da vida, Biberkopf
teria ficado calejado, tornado-se humilde, “esperto”; não se metendo mais a besta, não
pondo mais o dedo onde não é chamado, “faz seu trabalho como auxiliar de porteiro [numa
fábrica de porte médio], registra os números, controla carros, verifica quem entra e quem
sai”41, e só. A pretendida moral da história não passaria, ainda segundo tais leituras, de uma
lição de sabedoria de almanaque, do homem que após muito pelejar e nadar sozinho contra
a corrente percebe a futilidade da luta, abandona a arrogância, aceita humildemente sua
finitude, assume a inteira responsabilidade pelos reveses sofridos e aprende a necessidade
da solidaridade humana para não soçobrar na loucura. Coisa tipicamente alemã, ademais, a
solidaridade em questão seria concebida “num vácuo apolítico”42 e a ausência de um
qualquer horizonte utópico, de perspectivas de um futuro melhor, se traduziria no
contentamento da personagem com a forma presente da vida, com o trabalho e os pequenos
prazeres quotidianos. Não seria à toa, nesse sentido, que o texto venha cortado de citações
do Eclesiastes, que resumiriam a sabedoria que teria a duras penas aprendido Biberkopf:
toda resistência é inútil, desejar ou lutar por um câmbio da situação dada é vão, procurar
compreender o que se passa acarreta sofrimento, o que se está torto não se pode endireitar,
aproveite pois o agora porque a vida é curta e nada de novo surgirá sob o sol...
Supondo por ora que as consagradas leituras estejam corretas, o que dizer da
exemplaridade buscada pelo autor na história de Franz Biberkopf? Esta seria no limite
ridícula, ou ridicularizada, posta em xeque a cada episódio pela sofisticada apreensão
formal da vida anônima, insignificante, confusa e atroz do lúmpen na Berlim proletária dos
anos 1920, à qual Döblin, como visto, dá um sentido mítico: “a grande Babilônia, a mãe da

40 Cf. BA, 442/507.


41 BA, 454/520: “Biberkopf tut seine Arbeit als Hilfsportier, nimmt die Nummern ab, kontrolliert Wagen, sieht, wer
rein- und rauskommt.”
42 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel”, op. cit., p. 170.
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putaria e de todos os horrores da Terra” 43. O tom paternalista assumido pelo narrador no
prólogo, nas prolepses e diversas vezes no próprio corpo da narrativa soaria irônico,
quando não despropositado, contradizendo as supostas intenções do autor, que teria
pretendido seriedade. Se é assim, então se poderia dizer que no interstício entre os temas
propostos – quais sejam: a metrópole moderna como conjunto de forças incontroláveis e
como campo de prova, por um lado, e, por outro, a vida terrível de um marginal, ex-
condenado, como exemplo moral de reinserção social – e a forma com que é montado o
entrecho apareceria a não-identidade entre a intenção autoral e o efeito crítico-estético
produzido no leitor, que perceberia o quanto a idealização de uma personagem, e mais
ainda sua exemplaridade, nos tempos modernos tornam-se uma impossibilidade objetiva44,
muito embora o narrador denomine “trágico” o destino do protagonista45.
No melhor dos casos, isto é, nas melhores leituras, o que se sugere é que Berlin
Alexanderplatz seria paradigmático do quanto as intenções do autor importam pouco e são
no fundo secundárias numa obra artística de qualidade, visto que mesmo se a pregação da
moral de Salomão se revela caduca, retrógrada mesmo, seria no nível das soluções formais
que se encontraria o que há de mais avançado. Como sublinha nesse sentido Rosenfeld, o
domínio linguístico dessa epopeia moderna “exigiu os recursos de um mestre consumado” e
a mensagem que, segundo o crítico, seu autor procurou passar, supostamente explícita
desde o prólogo e reiterada nas prolepses, de uma lição “multimilenar, antiqüíssima, dir-se-
ia arcaica”, seria “captada através de recursos ultramodernos, extremamente requintados”,
o exato oposto do que viria a ser o caso no romance socialista da Alemanha Oriental, o qual
apresentaria “lições ultramodernas através de recursos quase arcaicos”46.
Tais leituras, via de regra, passam ao largo do essencial, a saber: aquilo que acontece
com Biberkopf no verdadeiro epílogo constituído pelas três últimas páginas do livro, as
quais, ao contrário do que se costuma dizer, são construídas de forma muito sutil e
sofisticada, de modo a não dar de bandeja a “mensagem” da história, apesar desta só se
apresentar ali, e que por isso mesmo desde a publicação do livro tem sido mal interpretada,
não raro confundida com seu contrário, isso tanto por críticos de esquerda como pelos mais
conservadores e reacionários. Parece incrível, mas mesmo os leitores de costume mais

43 BA, 253/290: “die große Babylon, die Muter der Hurerei und aller Greuel auf Erden.”
44 Coisa que aliás já haviam notado, no século XIX, por exemplo, Hegel e Baudelaire: enquanto para o primeiro isso
se daria em razão das condições modernas de vida, que fazem com que haja contradição entre as aspirações
individuais e os interesses da sociedade de forma geral, para o segundo a causa principal residiria na divisão da
sociedade em classes antagônicas, visto que o que é exemplar ou ideal para o proletariado não o é,
necessariamente, para a burguesia, e vice-versa.
45 Cf. BA, 451/517: “tragische Schicksal”

46 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel”, op. cit., pp. 170 e 171.


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competentes e agudos – para não citar senão que os maiores tendo escrito a respeito:
Benjamin, Adorno e Rosenfeld – não vislumbraram direito o que tem lugar ali, ou por
outra, parecem ter tirado suas conclusões simplesmente por fazer vista grossa do famoso
epílogo. Resumidamente: Benjamin interpreta o livro como um Bildungsroman – ainda
que a formação no caso seja a de um marginal, pois de toda maneira, segundo o crítico,
seria homóloga à burguesa –, como se os problemas de Biberkopf se resolvessem quando
sua “fome de destino” é saciada, e como se nós, leitores, nada mais pudéssemos com ele
aprender a partir do momento em que encontra um emprego fixo, ou seja, a partir do
momento em que se integra à sociedade, de modo que podemos deixá-lo tranquilo em seu
cubículo de assistente de porteiro47; Adorno também se fixa no fato de o autor ter
arranjado, de maneira forçada, para a sua personagem, após esta ter comido o pão que o
diabo amassou, uma ocupação por assim dizer digna, um lugar na sociedade, vendo no
“milagre da integração”, no “permanente ato de graça com que os amos acolhem ao
[indivíduo] que não oferece resistência, forçado a engolir sua renitência”, “na humanidade
com a qual Döblin deixa seu Biberkopf encontrar abrigo”, uma tendência fascista 48; para
Rosenfeld, como visto, a mensagem arcaica visada pelo autor talvez não condissesse com a
forma avançada e ultramoderna do livro.
Acontece que a história de Franz Biberkopf não acaba simplesmente com ele fechado
em seu cubículo de auxiliar de porteiro, integrado e conformado com seu sanduíche; a
solidariedade evocada, como ficará claro, assim esperamos, na leitura que faremos das
páginas finais do livro, não tem nada de abstrata ou vazia; por fim, os parágrafos finais não
são, como vem repetindo entediosamente a crítica há 80 anos, fora de esquadro,
inadequados, ou ambíguos, notadamente do ponto de vista político. Ao contrário do que
comumente se encontra na vasta bibliografia a respeito, cabe sublinhar que, como nas peças
que produzia Brecht a partir da mesma época, as considerações morais no romance de
Döblin são no fundo secundárias, e a “mensagem”, a “moral da história”, só é dita, ou
desvendada, embora de modo não evidente, no epílogo49, após um longo e tortuoso

47 Cf. Walter Benjamin, “Krisis des Romans: zu Döblins „Berlin Alexanderplatz‟” (1930), in Gesammelte Schriften,
Bd. III, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1991, pp. 230-36, trad. S. Rouanet: “A crise do romance: sobre Berlin
Alexanderplatz de Döblin”, in Obras escolhidas, vol. I, São Paulo, Brasiliense, 1994, pp. 54-60.
48 Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung. Philosophische Fragmente (1944/47),

Frankfurt/M., Fischer, 2003, p. 163.


49 Cf. Bertolt Brecht, Écrits sur le théâtre, vol. 1, trad. B. Perregaux, J. Jourdheil, J. Tailleur e G. Delfel, Paris,

L‟Arche, 1972, pp. 266-67, apud José Antonio Pasta, Trabalho de Brecht. Breve introdução ao estudo de uma
classicidade contemporânea (1986), São Paulo, Duas Cidades/Ed. 34, 2010, p. 169: “Na verdade, no teatro épico,
as considerações morais não apareciam senão em segundo plano. Seu propósito era menos moral que o estudo.
Entretanto, é verdade, depois do estudo vem a pílula: a moral da história. [...] Não éramos apenas os porta-vozes
da moral, mas os porta-vozes das vítimas. Trata-se aí de duas atitudes completamente diferentes, pois com
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“processo de revelação”50: é a própria verdade do todo que vem à luz; para além das
personagens, o que é finalmente posto em causa é a ordem social mutiladora.

***

Trocada em miúdos, a observação de Benjamin, de o livro de Döblin ser à sua


maneira um Bildungsroman, até que faz sentido. Aqui cabe a comparação, notada de
passagem na conclusão da famosa resenha do crítico, com L‟Éducation sentimentale,
romance que, como se sabe, pinta o quadro geral de uma geração perdida, que fora a do
próprio autor, de indivíduos que passam ao largo de seu próprio tempo, de sua própria
vida. Ao procurar imitar os livros, adotando de forma irrefletida as idées reçues do
romantismo, Frédéric Moreau e seus colegas se tornam incapazes não somente de contruir
e determinar eles mesmos o próprio destino, mas igualmente de tirar das experiências
vividas uma qualquer lição de vida a não ser a de ter passado ao largo da mesma, de tê-la
perdido: “Ils l‟avaient manquée”51, resume o narrador.
Tal crise é manifesta já no título, irônico, do romance de Flaubert: a suposta
educação sentimental não conduz o sujeito a lugar algum; no fundo não há mais acúmulo
de experiências, amadurecimento, tampouco desengano. É a crise terminal do
Bildungsroman, cuja existência coincidira com o ciclo histórico que inicia com a queda da
Bastilha em julho de 1789 e termina grosso modo com o massacre do campo proletário em
junho de 1848, ciclo durante o qual, segundo Lukács, teriam primado sobretudo tentativas
ou soluções de compromisso, de se juntar o que a primeira Revolução Francesa havia
separado, a saber, duas visões de mundo distintas e incompatíveis, burguesa e aristocrática,
que por sua vez correspondiam a dois modelos sociais irreconciliáveis. Nas palavras de
Paulo Arantes:

O Wilhelm Meister – e embutida nele a Bildungsethik – vinha finalmente consagrar esse


dispositivo bifronte: de um lado, o ímpeto imponderável do “longo esforço de formação
interior”; de outro, a par da natural sede de nomeada, os interesses materiais mobilizados
pelo processo de ascensão social que se punham em cena, sublimados, na face da
“personalidade cultivada” voltada para o palco do mundo.52

frequência utilizam-se justamente argumentos morais para persuadir as vítimas de se acomodarem ao seu
destino.”
50 BA, 453/519: “ein Enthüllungsprozeß”

51 Gustave Flaubert, L‟Éducation sentimentale. Histoire d‟un jeune homme (1869), 2 volumes, Paris, Fasquelle,

1929, vol. 2, p. 272.


52 Paulo Eduardo Arantes, “Uma irresistível vocação para cultivar a própria personalidade”, parte II, in

Trans/Form/Ação, vol. 26, n° 2 (2003), pp. 7-42, aqui p. 23.


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O burguês tentava ou desejava tornar-se nobre, em geral sem sucesso, o que, talvez não
ainda, ou não tanto, em Goethe, mas certamente no tempo de Flaubert, gerava uma
sensação de inadequação, de desconforto existencial, que em Frédéric é muito patente:
“Suas ambições intelectuais o haviam deixado, e sua fortuna (ele o percebia) era
insuficiente [...] ele sentia a necessidade de sair desta existência, de se agarrar a alguma
coisa.”53 Donde a conclusão: “Todo o mal residia nessa vontade moderna de se elevar acima
de sua classe, de ter luxo”54. No fundo, malgrado os inúmeros projetos que se sucedem uns
aos outros, Frédéric não deseja trabalhar, e a par dos planos de casamento com Madame
Dambreuse, que lhe asseguraria boa vida pelo resto de seus dias, evita assumir
compromisso com o que quer que seja.
Ora, aos olhos de Benjamin, como já assinalado, o romance de Döblin seria como
“L‟Éducation sentimentale dos marginais”, ou seja, o “estágio mais extremo, mais
vertiginoso, mais definitivo, mais avançado, do velho „romance de formação‟ da era
burguesa”55. Ali também as personagens não se formam, não têm como se desenvolverem,
se tornarem paulatinamente individualidades autônomas, pois aquilo que Hegel chamava
de “espírito objetivo” entretempo se congelou em normas, convenções e instituições
caducas, que ao invés de servirem à formação do sujeito ao forçá-lo a agir de forma
racional, o mutilam e desintegram: a experiência inscrita numa duração, numa
temporalidade dilatada, por isso mesmo plena de sentido, comunicável, se despedaça em
vivências dispersas que fecham o sujeito num registro monológico; a dicotomia indivíduo-
sociedade, quando não desaparece por completo, já não é mais clara e distinta, nem dada de
antemão, da mesma forma que o sujeito, em vez de fazer o trabalho reflexivo de crítica do
objeto e de retorno crítico sobre si mesmo, saindo enriquecido da confrontação com a
realidade objetiva, como que fica colado a ela, sem possibilidade de recuo, distanciamento,
discernimento. A cidade, nesse contexto, não é mais tão-somente um cenário ou pano de
fundo quase neutro contra o qual se destaca e progride o protagonista em sua busca por um
lugar no mundo no qual possa se reconhecer e ser reconhecido em sua individualidade. Na
prosa de Döblin pelo menos, a relação intencional do eu despedaçado, desestruturado e
descentrado de Franz Biberkopf com o movimento da metrópole se reflete na contínua
flutuação da perspectiva dos monólogos interiores à visão “objetiva”, em terceira-pessoa, a

53 Gustave Flaubert, L‟Éducation sentimentale, op. cit., vol. 1, p. 190.


54 Ibid., p. 195.
55 Walter Benjamin, “Krisis des Romans”, op. cit., p. 236, trad. cit., p. 60: “[...] so ist die Geschichte dieses Franz

Biberkopf die ‚Education sentimentale„ des Ganoven. Die äußerte, schwindelnde, letzte, vorgeschobenste Stufe des
alten bürgerlichen Bildungsroman.”
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um tempo próxima e distinta da do protagonista. O resultado é uma visão alucinatória,


reflexo da paranoia urbana generalizada 56.
Rosenfeld tem toda razão quando afirma que no estágio em que se encontrava a
classe burguesa na Alemanha do final dos anos vinte57, dificilmente um herói burguês se
adaptaria aos propósitos da epopeia metropolitana tal como a concebia Döblin. Razão pela
qual suas personagens são, em sua maioria, proletárias e marginais, o cenário ideal para a
construção de seu mito urbano sendo os bairros populares em torno da Alexanderplatz,
universo dominado por malandros, boêmios, conspiradores, ladrões, drogados, cáftens,
meretrizes e trabalhadores precarizados de toda ordem. Ao mesmo tempo, a
conscientização política do herói, sua adesão a um movimento de oposição, a uma
organização revolucionária, poderiam facilmente pôr a perder tais propósitos, aos quais
também não poderia senão dificilmente se adaptar “um proletário sindicalizado com
consciência de classe”58. Aqui outro ponto de proximidade com L‟Éducation sentimentale.
Seria sem dúvida interessante comparar as cenas em que Frédéric acompanha seus amigos
aos clubes políticos após fevereiro de 1848 com as reuniões que passa a frequentar Franz
depois do acidente que lhe deixou maneta. Interessante notar que, tanto num romance
como no outro, a súbita perda de interesse dos protagonistas pelo mundo da política é
condicionada pela esfera privada do amor. Assim, um pouco à maneira com que, no
romance de Flaubert, Rosanette, por natureza aversa à República de Fevereiro, apoquenta
Frédéric por suas inclinações republicanas – que em si mesmas não se fundam numa
qualquer convicção profunda e refletida, ao contrário do que se passa com o amigo
Dussardier, o bravo caixeiro –, também Mieze, no romance de Döblin, instigada por Eva,
partidária da ordem, faz pressão sobre Franz para que deixe de lado os debates políticos –
“é isso o que ele faz, política e nada mais que política”59 –, considerados suspeitos e mesmo
perigosos, e abra mão de sua amizade com Willi – “Aquilo é um malandro. Ele vai levar o

56 Cf. Sabine Hake, “Urban Paranoia in Alfred Döblin‟s Berlin Alexanderplatz”, in German Quarterly, vol. 67, n° 3
(Summer 1994), pp. 347-68.
57 No Doutor Fausto (1947), um dos últimos grandes romances de Thomas Mann, o narrador Serenus Zeitblom

pinta de forma magistral o universo espiritual, político e artístico da burguesia alemã nos anos 1910 e 1920, no
qual cultura e barbárie abraçavam-se sem remissão – como precedentemente apontado também em A montanha
mágica (1924), no qual a personagem de Hans Castorp descobre o horror sob a pedra da civilização, ou antes
ainda em A morte em Veneza (1912), na sedução do artista Gustav von Aschenbach pela beleza olímpica do
adolescente Tadzio, indissociável do contexto de doença, putrefação e morte. No caso da situação de época
descrita por Zeitblom, boa parte dos que se ocupavam então do pensamento e da arte tomava livremente licença
para legitimar a força bruta e o desencadeamento de energias primárias violentas, dando vazão a uma espécie de
“neobarbárie consciente”. Em suas palavras: “tratava-se de abjurar todo enternecimento, obra da idade burguesa,
de modelar a humanidade à intenção de épocas duras e sinistras, desdenhosas do sentimento humano, para
preparar uma era de grandes guerras e revoluções” (Le Docteur Faustus. La vie du compositeur Adrian
Leverkuhn racontée par un ami, trad. L. Servicen, Paris, Albin Michel, 1950, p. 468).
58 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel”, op. cit., p. 169.

59 BA, 277/317: “det macht er, Politik und nischt als Politik bei de Kommunisten und Anarchisten”
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Franz para o mau caminho”60 –, rapaz boêmio, ladrão de ocasião, fã de Nietzsche e de


Stirner61, que, entre um chope e outro, carregava o outro a meetings comunistas e
anarquistas – segundo Eva frequentados por “um populacho desses que só tem um par de
calças com furos no traseiro”62. De modo semelhante ao que Frédéric, mergulhado no idílio
turístico de Fontainebleau, desdenha a “agitação” que tomava conta da capital francesa
naqueles ensolarados dias de junho, a qual, diante de seu suposto amor por Rosanette e da
“natureza eterna”, parece-lhe “miserável”63, também Franz, cansado daquelas discussões
que, no fim das contas, (a seu ver) não levavam a nada, se retira dos debates e conflitos do
tempo, chegando a declarar: “a política não me importa nada, e se as pessoas são tão tolas
de se deixarem explorar, não tenho nada a ver com isso”64.
A despeito da diferença de contexto, nos dois casos trata-se, para falar como Marx,
de tentativas frustradas de consumar a emancipação pessoal pelas costas da sociedade.
Indivíduo de aspirações românticas tanto quanto banais, o pequeno-burguês Frédéric
Moreau, que apesar dos inúmeros projetos (ou antes, por esta mesma razão) não trabalha
de jeito nenhum, que desde sempre se regalara com seu desprezo dos homens comuns e da
idiotia alheia, oscilando em permanência entre o ideal sublime e inatingível (fosse a
República majestuosa ou Mamãe/Madame Arnoux) e a facilidade do ganho imediato (tanto
os interesses econômicos pessoais como a relação erótica de substituição com a rameira
Rosanette, ou a conjugação das duas coisas, pseudo-amor e dinheiro fácil, na perspectiva de
casamento com a rica viúva Dambreuse), irrealiza “as alternativas históricas de sua época
ao vivenciá-las como alternativas eróticas”65. Por sua vez, o que diz o proletário Franz
Biberkopf, cuja vida ao lado da jovem Mieze parece importar mais do que tudo, ou ser tudo
o que lhe restou (além da bebida, é claro, e da pseudo-amizade de Reinhold), é mais ou
menos o seguinte: se não trabalho, se não posso arrumar um emprego decente por ter
perdido o braço, logo não exploro ninguém, tampouco sou explorado, e se não dependo do
Estado para nada, visto que recuso o direito ao auxílio desemprego, então esse papo de

60 Ibid.: “Det is ein Lausejunge. Der verführt den Franz.”


61 A referência a estes dois autores não é nada gratuita, principalmente no que concerne a Stirner, que, embora do
ponto de vista subjetivo, de sua posição com relação aos conflitos sociais do tempo, pareça inicialmente
anticonformista, do ponto de vista de sua produção teórica (da teodiceia do indivíduo absoluto) demonstra ser, na
verdade, ultraconformista para com a situação social dada. A observação é de Theodor W. Adorno, Zur Lehre von
der Geschichte und von der Freiheit (1964-65), Frankfurt/M., Suhrkamp, 2006, p. 85.
62 BA, 277/317: “son Gesindel, die keene heile Hose uffn Hintern haben.”

63 Gustave Flaubert, L‟Éducation sentimentale, op. cit., vol. 2, p. 154.

64 BA, 287/329: “die Politik geht mir nichts an und wenn die Menschen so dämlich sind ausbeuten zu lassen, kann

ick nichts für.”


65 Dolf Oehler, “O fracasso de 1848” (1980), trad. Samuel Titan Jr., in Terrenos vulcânicos, São Paulo, Cosac &

Naify, 2004, p. 31.


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exploração, de greve geral, de luta política contra o Estado, por sua abolição ou reforma,
não me concerne em nada.

Em Flaubert, digamos em resumo, a vida das personagens não ensina nem pretende
ensinar uma qualquer lição aos leitores; não somente não parece haver uma moral da
história como a própria noção de sentido da vida é problematizada, posta em questão.
Frédéric prefere o sonho à vida, a evazão aos enfrentamentos efetivos. Por sua vez, embora
desde sempre na roda-viva – nas trincheiras prussianas, nas convulsões revolucionárias do
pós-guerra, no duro retorno à “normalidade”, às voltas com a criminalidade, encerrado na
prisão por assassinato, de novo no turbilhão, na luta contra o alcoolismo, para manter-se
reto quando suas pulsões destrutivas o levam sempre de volta ao mau caminho e à
perdição, novamente a recaída, a queda no crime, no álcool, a culpa, a loucura, a punição,
mas nunca a redenção –, por se crer independente e autosuficiente, embora de fato não o
seja e esteja sempre a se apoiar num Outro (Eva, Mieze, Reinhold, álcool) para lidar com a
realidade, Franz é tão incapaz quanto Frédéric de tomar em mãos as rédeas do próprio
destino. Como notou Dolf Oehler, a fraqueza psíquica de Frédéric, que o leva a escolher
objetos amorosos sucedâneos ao invés de voltar-se para o verdadeiro amor, tende a se
tornar, em Flaubert, a chave para a história da revolução de 1848, antes a causa secreta da
catástrofe que seu resultado:

Seu comportamento erótico pode ser compreendido como metáfora tanto de seu
comportamento político como do comportamento da esmagadora maioria das classes
médias, que desde o início haviam preferido à verdadeira República, ao ser sublime e
majestoso, uma República pronta a se prostituir com os piores partidos – mas sempre se
apresentando como República “honrada”.66

Salvo engano, algo análogo ocorre no livro de Döblin: os fracassos do indivíduo Franz
seriam alegorias dos fracassos de toda a sociedade alemã, incapaz de superar sua miséria e
seu atraso histórico, de se desenvolver e se estabelecer em bases sólidas, consistentes,
duráveis, equilibradas; Reinhold, por sua vez, apresenta todos os traços de um líder
fascista, inclusive semelhança física com Hitler, além de ser um sedutor nato, exercendo um
fascínio irresistível sobre as mulheres e sobre o próprio Franz, cuja tendência homossexual

66 Ibid., p. 24.
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é um tanto evidente, tendo sido bem captada na famosa adaptação de Fassbinder 67; no que
diz respeito à jovem imaculada Mieze (diminutivo de Marie/Maria), “a putinha pálida
recolhida na Invalidenstrasse”68 e que também deixa-se fascinar momentaneamente por
Reinhold, ela “parece simbolizar todos os desejos utópicos que o mundo não permitirá que
se realize”69. A morte de Mieze, em suma, representaria alegoricamente a morte da utopia.
Que o destino de Franz Biberkopf esteja enredado ao de Weimar, sendo em grande
medida alegoria deste, fica claro (embora, salvo engano, nenhum crítico o tenha visto) no
fato de ele ter tido a crise de ciúmes, assassinado a noiva, a prostituta Ida, e terminado
preso, tudo em 1923, precisamente o ano da crise de hiperinflação 70, das insurreições
operárias massacradas pela social-democracia e do malogrado putsch da cervejaria, que
levou Hitler à prisão. Ainda nesse registro, a relação de Franz com prostitutas 71 e seu
ingresso na vida marginal, não muito diferente do que ocorre no romance de Flaubert,
seriam signos do malogro da revolução espartakista, da prostituição de seus ideais e da
incapacidade do povo alemão de superar o atraso, a posição marginal em relação a países
como França e Inglaterra. Prosseguindo, os anos de “calmaria” na vida de Franz, os quatro
que passa em Tegel (1923-27), coincidem não por acaso com o período economicamente

67 O filme, de 1980, com duração de quinze horas e meia, de resto deixa um pouco a desejar, apesar de notável
interpretação da parte dos atores Günther Lamprecht e Gottfried John. Com orçamento pequeno, mas com a ideia
fixa de cobrir quase que integralmente o romance de Döblin, Fassbinder foi obrigado a se limitar basicamente aos
interiores (ao quarto de Franz, ao apartamento de Eva, à sala de Reinhold, ao bistrô de Henschke e ao escritório
de Pums), mergulhando o espectador na “atmosfera” da época, o que em si não deixa de ser interessante, não
fosse o fato de o principal, isto é, a metrópole, o efeito de simultaneidade dos planos etc., quase não aparecer.
Filmada à maneira de um melodrama, a história individual de Franz Biberkopf acabou ganhando destaque,
centralidade demais, caindo na banalidade. O longo e tão celebrado epílogo do filme, uma livre interpretação do
diretor à luz da história posterior, é uma visão alucinada, terrificante, quase um transe. Note-se, não obstante tudo
isso, que o quarto dos treze episódios (“Eine Handvoll Menschen in der Tiefe der Stille”), honra lhe seja feita, do
ponto de vista estético, é muito superior a todo o resto e é o que, em termos de forma, mais se aproxima do livro.
68 BA, 322/369: “der Mieze […] das blasse Hurchen […] von der Invalidenstraße aufgelesen”

69 Wallace Steadman Watson, Understanding Rainer Werner Fassbinder. Films as Private and Public Art,

Columbia, University of South Carolina, 1996, p. 247.


70 No final de 1918, US $ 1 valia 4 PM (Papiermark) ; em 1° de janeiro de 1923, valia 7.000 PM; em 1° de junho do

mesmo ano, 160.000 PM; e em fim de outubro de 1923, já equivalia a 4.200 bilhões PM. Com a situação
completamente fora de controle, em 15 de novembro de 1923, o velho Papiermark foi substituído por uma nova
moeda, o Rentenmark, intercambiável contra 1.000 bilhões PM, ou seja, US $ 1 ficou fixado a 4,2 RM. No ano
seguinte, o Rentenmark seria ainda substituído pelo Reichsmark. Para maiores detalhes, cf. Peter Gay, Le suicide
d‟une république: Weimar, 1918-1933, trad. J.-F. Sené, Paris, Gallimard, 1995.
71 O tema da prostituição é onipresente no romance, e quase sempre relacionado aos temas religiosos. Além da já

evocada prostituta Babilônia, que no final é derrotada pela Morte ceifeira, pode-se percebê-lo na onomástica, nos
nomes das personagens femininas, quase todas meretrizes. Tanto Minna como Lina são formas diminutivas de
Maria Magdalena. Mieze, como já assinalado, é diminutivo de Marie, nome dado por Franz, pois o nome
verdadeiro da menina é Emilie, também conhecida por Sonja (evidente referência à personagem de Crime e
castigo, que também se prostitui para sustentar o herói, Raskolnikov). Eva, que, supõe-se, teria levado Franz para
o mau caminho após a guerra, também se chama Emilie e é Franz/Adão quem lhe dá o nome bíblico. Emilie, em
latim Aemilia (masc. Aemilius), de aemulus, significa “emulação”, “rivalidade”; é também uma personagem de
Othello, a mulher de Iago, manipulada por este por ser acompanhante de Desdêmona (é ademais bastante
emanciapada para uma mulher da época, como o são Eva e Mieze). Ida, por fim, nome de raiz germânica, proviria
possivelmente do Althochdeutsch id, que costuma se traduzir por “trabalho”, “labor”. Prostituição, tentação,
trabalho, rivalidade, ciúmes, morte – eis alguns dos significantes associados às personagens femininas e que vêm
expressos igualmente em seus nomes.
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sem turbulências da República, proporcionado pelo plano Dawes e pela estabilização


monetária. Na saída de Tegel, em meados de 1927, apesar dos claros indícios de
modernização do país, Franz se vê às voltas com a miséria, com a corrupção, com o
desemprego, com a insignificância, com o desespero e com a confusão político-ideológica.
Por volta da mesma época, em agosto, os nazistas organizaram a primeira grande reunião
do partido, tendo encontrado bastante apoio entre militares, proprietários e industriais. Ao
sair da prisão, Franz quer permancer decente, de maneira mais ou menos análoga a Hitler
que, depois do fracasso do putch, percebeu que estrategicamente seria mais eficaz agir por
vias legais e democráticas do que tomar o poder a força. O momento em que Mieze é
assassinada pelo protofascista Reinhold, em 1° de outubro de 1928, coincide não por acaso
com o início da resistível ascenção do partido delinquente de Hitler. Acresce que em
setembro, uma seção dos Stahlhelme (“capacetes de aço”), grupo extremista formado por
antigos combatentes hostis a Weimar, declarou abertamente seu ódio ao regime. Por fim,
tem-se um momento decisivo no epílogo do livro, que desvendaremos mais adiante.

***

Na época em que Shakespeare compunha suas maiores obras, pobres ociosos,


mendigos e vagabundos foram proscritos por lei na Inglaterra – a “Elizabethan Poor Law”,
também conhecida como “Act for the Relief of the Poor”, data de 1601. Ou seja, os pobres
que por ventura se encontrassem sem emprego eram classificados ou como fisicamente
hábeis ou como incapazes para o trabalho e então levados, segundo fosse o caso, para
hospitais ou asilos de caridade (halmshouses), casas de trabalho forçado (poorhouses,
workhouses, houses of industry), instituições correcionais (houses of correction) e até
mesmo para a prisão. Por um decreto de 1656, Louis XIV criou em Paris o Hôpital Général
no intuito de nele encerrar todos os pobres encontrados naquela cidade (mendigos, doentes
mentais, delinquentes, inválidos) a fim de adestrá-los para o trabalho. Vinte anos mais
tarde, um novo decreto real ordenava a criação de um Hôtel Général em todas as cidades do
reino. Passando pelo Iluminismo no século XVIII e pela “questão social” no século XIX até
os dias de hoje, saber como manter o povo com a mão na massa e o que fazer com os
ociosos e tidos por inaptos ou incapacitados para o trabalho sempre foi central para a
sociedade cuja organização da produção tem por a priori fetichista a mercadoria72. No

72 Veja-se, por exemplo, Voltaire, “Les embellissements de la ville de Cachemire” (1750), in Œuvres complètes, t. VI,
Paris, Alexandre Houssiaux, 1853, p. 618: “Quoi ! depuis que vous êtes établis en corps de peuple, vous n‟avez pas
encore trouvé le secret d‟obliger tous les riches à faire travailler tous les pauvres! Vous n‟en êtes donc pas encore
aux premiers éléments de la police ?”
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início da década de 1920, Henry Ford falava em “freedom of starvation” 73 para os que não
desejassem servir a sociedade com seu esforço, disciplina e labor, e a conclusão “lógica” que
alguns cientistas eugenistas da época tiraram do princípio fordista74 (a bem dizer,
rousseauista75) segundo o qual não haveria lugar na civilização para preguiçosos foi a
necessidade, sobretudo do ponto de vista econômico, do trabalho forçado para uma parcela
da população e, para os “naturalmente” incapazes de trabalhar, nada menos que o
extermínio sistemático76. Apesar de o exército de reserva de trabalhadores ser no
capitalismo uma condição necessária do sobrelucro, em períodos de super-produção e, por
conseguinte, de escassa compra da falsa mercadoria trabalho, a possibilidade de indivíduos
desempregados descobrirem finalmente o que fazer de seu “tempo livre”, sempre
representou uma séria ameaça para os donos do poder.
A percepção de que um indivíduo autônomo e emancipado é incompatível com a
atividade alienada, com a exploração e a dominação do trabalho social, de que um “outro
homem precisa de uma outra profissão ou então de nenhuma”77, não é rara na literatura
moderna: de Shakespeare e Cervantes a Conrad, de Diderot a Georges Arnaud, passando
por Büchner, Kafka e Céline, têm-se incontáveis exemplos de crítica ao trabalho, de
personagens conscientes da “pouca vergonha” que é a vida de privações do operário, do
pequeno trabalhador que procura ganhar honestamente o pão de cada dia. Em Berlin
Alexanderplatz a coisa não é diferente. Depois de ralar em inúmeros subempregos (como
peão de obra, carregador de móveis, camelô, vendedor de jornais etc.) e não chegar a lugar
algum, Franz Biberkopf, malandro à sua maneira, conclui que a “vida de otário” do
trabalhador honesto não é mesmo para ele:

73 Henry Ford, My Life and Work (1922), Charleston, BiblioBazaar, 2006, p. 16.
74 Cf. ibid., p. 19: “Money comes naturally as a result of service. And it is absolutely necessary to have money. But we
do not want to forget that the end of money is not ease but the opportunity to perform more service. In my mind
nothing is more abhorrent than a life of ease. None of us has the right to ease. There is no place in civilization for
the idler.”
75 Cf. Jean-Jacques Rousseau, Émile ou de l‟éducation (1762), Paris, Garnier Frères, 1904, livro III, p. 217:

“Travailler est […] un devoir indispensable à l‟homme social. Riche ou pauvre, puissant ou faible, tout citoyen oisif
est un fripon.”
76 Em 1935, Alexis Carrel, biólogo racista e eugenista francês, prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1912 e

pesquisador respeitado do Rockfeller Institut de Nova Iorque até 1938, dizia em seu best-seller internacional
L‟Homme, cet inconnu, Paris, Librairie générale française, 1965, pp. 345-46: “Há ainda o problema não resolvido
da multidão imensa dos deficientes e criminosos. [...] O custo das prisões e dos asilos de alienados, da proteção
pública contra os bandidos e os loucos, como sabemos, tornou-se gigantesco.” Eis a solução, a mais “humana e
econômica”, que propunha o respeitado cientista – que além de tudo pregava a fraternidade entre os homens! –
para dispor destes “seres inúteis e nocivos” à civilização dos homens sãos e normais: tratamento dos menos
perigosos “na base do chicote”, “seguido de uma curta permanência no hospital”, e para os demais, vale dizer, para
os assassinos, autores de roubo à mão armada, sequestradores de crianças e loucos tendo cometido qualquer
crime, sem “preconceitos sentimentais”, seria-lhes reservada a câmera de gás.
77 BA, 252/288: “Ein anderer Mensch braucht auch einen anderen Beruf oder auch gar keinen.”
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Nada de trabalhar. Tire essa história de trabalhar da cabeça. O trabalho vai provocar bolhas
na mão, e não dá nada de dinheiro. Além do mais, de trabalhar nunca ninguém ficou rico, é o
que estou dizendo. Só trapaceando.78
Ele quer por si mesmo manter-se de pé. Algo que traga dinheiro rapidamente, isso ele quer.
Trabalhar, besteira. [...] fica enraivecido [...] por vezes se espanta de ver como alguém pode
ser tão tolo e se ralar enquanto outros dirigem seu próprio carro ali perto. Comigo não. Era
uma vez, meu rapaz. Prisão de Tegel, alameda de árvores negras, as casas balançando, os
telhados ameaçando cair na cabeça da gente e eu ainda por cima tenho que ser decente! [...]
Dinheiro para cá, dinheiro para ganhar, é de dinheiro que o homem precisa.79
Ando por aí, faço umas poucas coisas, mas trabalhar, não trabalho, deixo que outros
trabalhem para mim. [...] tenho um braço só. O outro se foi. Foi esse o pagamento que recebi
por ter trabalhado. Por isso não quero saber mais nada de trabalho decente, entende? [...] O
seu trabalho decente é escravidão.80

Quando, após um meeting, um velho anarquista lhe diz que para recusar o trabalho “é
preciso primeiro trabalhar”, porque o trabalho, o chão da fábrica por assim dizer, é
condição para a associação, a organização em torno dos meios de produção, a luta de
classes efetiva através “de greve, greve em massa, greve geral”81 – e não era outro, diga-se
de passagem, o argumento marxista82 –, Franz não entende, fica atado à ideologia do self-
made man: “Estou me lixando para todas essas arengas, essas greves [...] O homem está
por sua própria conta. Faço sozinho aquilo de que preciso. Sou provedor de mim mesmo!
Ora essa!”83 Orgulhoso e obstinado, Franz Biberkopf deseja autonomia, não quer nem ouvir
falar da assistência do Estado: “Não quero, não fica bem para um homem livre [...] Sou um
homem livre ou não sou ninguém.”84 Sua concepção da liberdade é tipicamente burguesa:
se imagina livre, dono do próprio nariz, quando em realidade, enquanto indivíduo alienado,
separado da potência social de transformação, das forças produtivas da sociedade, está

78 BA, 245/280: “Bloß nicht arbeiten. Schlag dir das ausm Kopp mitm Arbeiten. Vons Arbeiten kriegst du Schwielen
an die Hände, aber keen Geld. Höchstens noch in Kopf. Vons Arbeiten is noch keen Mensch reich geworden, sag
ich dir. Nur vom Schwindeln. Siehste ja.”
79 BA, 253/289: “Er will auf eigene Beide stehen. Was rasch Geld bringt, will er. Arbeiten, Quatsch. […] […] kriegt ne

Wut […] manchmal staunt er, wie einer so dämlich sein kann und sich abrackern und andere dicht daneben
fahren Auto. Sollte mir passen. Das war einmal, mein Junge. Tegeler Gefängnis, Allee schwarzer Bäume, die
Häuser wackeln, die Dächer wollen einem aufn Kopf fallen und ich muß anständig werden! […] Geld her, Geld
verdient, Geld braucht der Mensch.”
80 BA, 270-71/309-10: “Ich geh rum, ich tu ein bißchen, aber arbeiten tu ich nicht, ich laß andere für mich arbeiten.

[…] ich hab bloß einen Arm. Der andere ist ab. Das hab ich dafür bezahlt, daß ich gearbeitet habe. Darum will ich
nischt mehr wissen von anständiger Arbeit, verstehste? […] Deine anständige Arbeit ist ja Sklaverei.”
81 BA, 271/311: “So, dann haste aber nicht weiter zugehört. Daß ich von der Arbeitsverweigerung gesprochen habe.

Dazu muß einer erst arbeiten. […] Von Streik hab ich geredet, Massenstreik, Generalstreik.”
82 Cf. Karl Marx, Les luttes de classes en France (1848-50), Paris, Éds. Sociales, 1974, p. 81: “O direito ao trabalho é

no sentido burguês um contrassenso, um desejo vão, lamentável, mas por trás do direito ao trabalho há o poder
sobre o capital, por trás do poder sobre o capital a apropriação dos meios de produção, sua subordinação à classe
operária associada, isto é, a supressão do assalariado, do capital e de suas relações recíprocas.”
83 BA, 272/311: “Ich pfeife überhaupt auf das ganze Gemeckere, auf deine Streiks […] Selbst ist der Mann. Ich mache

allein, wat ich brauche. Ick bin Selbstversorger! Nanu!”


84 BA, 240-41/275: “Ich will das nicht, das gehört sich nich für einen freien Mann […] Ich bin ein freier Mann oder

keiner.”
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subsumido a um poder objetal que foge completamente à sua compreensão, a seu controle,
e que dirige inclusive sua vontade, seus atos 85. Em suma, sua postura é contraditória,
embora ele não perceba a contradição: não quer depender de nada nem de ninguém, para o
que, dentro das condições vigentes, depende de arrumar dinheiro, coisa que de resto não
tem como obter com os bicos incertos que vez por outra, e depois do acidente cada vez
menos, consegue encontrar. Razão pela qual as experiências do crime, da prisão, do
alcoolismo, da violência e da loucura estão sempre a assombrá-lo, e sua posição com
relação ao trabalho, por isso mesmo, também não é estática; não se trata de uma
progressiva tomada de consciência; trata-se de uma posição assaz volúvel como de resto o é
a própria personagem.
Num primeiro momento, como vimos, ao sair da prisão procura um emprego
decente, vende entre outras bugingangas pregadores de gravata, revistas de educação
sexual e o jornal do Partido Nacional-Socialista, nada que lhe traga dinheiro ou
reconhecimento, muito pelo contrário: dos inúteis pregadores ninguém quer saber, as
revistas, consideradas imorais, pornográficas, trazem-lhe problemas com Lina, a namorada
polonesa, e o jornal nazi, naturalmente, o põe em conflito com os militantes comunistas.
Após ser passado para trás por um colega de trabalho, Lüders, tio de Lina, e se afogar no
álcool por algum tempo, posto que não querendo, porém forçado a querer, cai novamente
na via do crime e logo perde o braço direito num acidente provocado pelo “amigo”
Reinhold. De volta às ruas, ao frequentar os meetings políticos com Willi, “politiza” seu
discurso, embora de forma enviezada: o trabalho só serve para alimentar os capitalistas
sanguessugas; de trabalhar decentemente ninguém nunca enriqueceu etc. Por fim, não mais
sustentado por Eva e Herbert, mas pela nova namorada, a pequena Mieze, que se prostitui a
um tempo para manter-se independente e cuidar do estropiado amado, sente-se mais e
mais um inútil, deseja fazer algo, ser produtivo, recuperar de alguma maneira a autoestima,
a dignidade perdida: “Tenho que trabalhar, senão as coisas não funcionam para mim. Senão
me acabo.”86 E mais para frente: “Eu também – vou – trabalhar de novo.”87

85 Cf. Karl Marx & Friedrich Engels, A ideologia alemã (1845-46), trad. M. Backes, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2007, p. 57: “O poder social [soziale Macht], quer dizer, a força de produção multiplicada, que nasce
por obra da cooperação dos diferentes indivíduos sob a ação da divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos,
por não se tratar de uma cooperação voluntária mas sim espontânea, não como um poder próprio, associado, mas
sim como um poder [Gewalt] alheio, situado à margem deles, que não sabem de onde ele procede nem para onde
ele se dirige, um poder que eles não podem mais dominar, portanto, mas que, pelo contrário, percorre uma série
de fases e etapas do desenvolvimento peculiar e independente da vontade e dos atos dos homens, e que inclusive
dirige esta vontade e estes atos.”
86 BA, 320/367: “Ich muß arbeiten, sonst geht es nicht mit mir. Sonst geh ich kaputt.”

87 BA, 363/417: “Ick – geh – ooch wieder arbeeten.”


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Um detalhe da narrativa pode esclarecer um pouco mais essa questão, em tudo


central, do trabalho. Por meio de colagens, reproduz-se em diversas partes do livro, sem
julgamento, no corpo do texto, o conteúdo de jornais da época, de todas as cores:
Morgenpost, Grüne Post, Berliner Zeitung, Pfaffenspiegel, Schwarze Fahne, Atheist,
Arbeitslosen, Berliner Arbeiter-Zeitung, Neue Welt etc. Particularmente no livro 2, o
contraste ideológico é bastante gritante: em poucas páginas tem-se linhas do jornal nazi Die
Völkischer Beobachter (“Federalismo verdadeiro é antissemitismo, luta contra o judaísmo
e, igualmente, luta pela autonomia da Baviera”), do jornal comunista Die Rote Fahne
(“Krupp permite que seus funcionários aposentados morram de fome, um milhão e meio de
desempregados, crescimento de 226 mil em 15 dias”) e do jornal evangélico Der
Friedensbote (“Ó peregrino silencioso pelo mundo, leva contigo Jesus Cristo...”). Biberkopf
simplesmente não dá a mínima para o que é propagado em cada um destes veículos: vende
o Beobachter apesar de não ter “nada contra os judeus”88, que “são gente decente”89; aos
comunistas com quem discute no bar diz “não é da minha conta” 90, “que me importa tudo
isso”91; e ao ler no bonde com a namorada o poema religioso do jornal luterano pensa na
sede que sente, pois “dois copos é muito pouco”92. Não é difícil perceber que o que
condiciona a indiferença com relação ao conteúdo de tal e tal discurso ideológico é a
indiferença com relação aos conteúdos do trabalho: “Se tiver que ser [...] se isso dá para
alimentar a gente” 93, pouco importa o emprego. Na cabeça de Biberkopf a coisa é simples,
como fica manifesto em sua fala aos militantes comunistas: “E é preciso ter paz para que a
gente possa trabalhar e viver. Operários de fábrica e comerciantes e todos, para que haja
ordem, do contrário, não se pode trabalhar de verdade. E de que vocês vão viver, seus
fanfarrões? Vocês se embriagam com esse palavreado [marxista-leninista]!”94 Por ser “a
favor da ordem” 95, simpatiza com os fascistas, que de resto não propunham uma mera
ideologia, mas antes um arcaísmo, sem ter que aderir ao que defendem: a revolução alemã
não logrou, “não conseguiram nada”, “não vai dar em nada essas coisas de vocês”, mas

88 BA, 82/89: “Er hat nichts gegen die Juden”


89 BA, 63/67: “es sind anständige Leute”
90 BA, 95/105: “geht mich nicht an”

91 BA, 96/106: “Was geht mich das alles an”

92 BA, 97/107: “zwei Glas war zu wenig”

93 BA, 62/66: “Wenns sein muß […] wenns seinen Mann ernährt.”

94 BA, 94/103: “Und es muß Ruhe werden, damit man arbeiten und leben kann. Fabrikarbeiter und Händler und

alle, und damit Ordnung ist, sonst kann man eben nicht arbeiten. Und wovon wollt ihr denn leben, ihr
Großschnauzen? Ihr macht euch ja mit Redensarten besoffen!”
95 BA, 82/89: “er ist für die Ordnung”
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quem sabe com “estes daqui da faixa [com a suástica]” não dê “alguma coisa” 96. No fundo
mesmo, se diz indiferente a todas “essas bobagens”97: “se gostam do jornal [nazi] não faz
diferença para mim, basta que o comprem” 98. Entrementes, ao ficar novamente
desempregado, embebeda-se, prometeu levar uma vida decente, e aí brada orgulhoso:

Eu não vou para o céu. Por quê? [...] para mim ninguém tem de dizer nada. Mas se existem
criminosos, sou aquele que pode falar a respeito. Honra seja feita. Juramos ao Karl
Liebknecht, estendemos a mão a Rosa Luxemburgo. Vou para o paraíso quando morrer, e
eles vão se curvar diante de mim e dizer: esse é Franz Biberkopf, honra seja feita, esvoaça
bem alto a bandeira preta-branca-vermelha, mas ele guardou isso para si, não se tornou um
criminoso como outros homens que querem ser alemães e enganam seus conterrâneos. 99

Tais exemplos demonstram algo notado por Adorno nos anos 1940, referindo-se não
por acaso ao romance de Döblin, a saber, que uma característica daquela geração seria a
capacidade “de exercer qualquer trabalho, porque o processo de trabalho não os liga a
nenhum em particular”, o que “lembra a triste ductibilidade do soldado retornando para
casa de uma guerra que não lhe dizia respeito, ou do trabalhador ocasional, que acaba por
entrar em ligas e organizações paramilitares”100. Com a industrialização, o ajuste do
indivíduo às demandas da sociedade, por irracionais que fossem ou sejam, tornou-se mais
deliberado e total que em épocas passadas, justamente porque deve ser o modelo para todo
e qualquer comportamento subjetivo. Como sublinha Horkheimer: “o sujeito deve, por
assim dizer, dedicar todas as suas energias para estar „dentro e a partir do movimento das
coisas‟, nos termos da definição pragmatista [de Dewey].” 101 O segredo do funcionamento
da ideologia no capitalismo, seja tal segredo dissimulado, como outrora, ou confesso de
maneira cínica, como agora, não é outro senão a idiotia daqueles que, não acreditando
realmente em nada, obedecem a ordens e executam-nas sem questionar, sendo facilmente
mobilizados sem que conheçam as razões ou os propósitos102.

96 BA, 87/94-95: “Sie habens nicht zustande gebracht […] kommt nichts raus bei euren Sachen […] Weiß nicht, ob
bei denen was rauskommt mit die Binde hier.”
97 Ibid.: “für die Zicken”

98 BA, 170/191: “Warum nicht, ob sie ihn mögen, ist mir egal, wenn sie ihn bloß abkaufen.”

99 BA, 129/143: “Ich komm nicht in den Himmel. Warum? […] mir hat keiner was zu sagen. Wenn es aber

Verbrecher gibt, so bin ich es, der darüber reden kann. In Ehren treu. Dem Karl Liebknecht haben wirs
geschworen, der Rosa Luxemburg reichen wir die Hand. Ich werde ins Paradies gehen, wenn ich tot bin, und sie
werden sich vor mir verbeugen und sagen: das ist Franz Biberkopf, in Ehren treu, ein deutscher Mann, ein
Gelegendeitsarbeiter, in Ehren treu, hoch weht die Flagge schwarz-weiß-rot, aber er hat es für sich behalten, er ist
kein Verbrecher geworden wie andere Männer, die Deutsche sein wollen und ihre Mitbürger betrügen.”
100 Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 163.

101 Max Horkheimer, Eclipse of Reason (1947), New York, Continuum, 1974, p. 96.

102 Cf. Slavoj Žižek, The Individual Remainder. On Schelling and Related Matters (1996), London/ New York,

Verso, 2007, pp. 200-201. Para Žižek, isso explicaria o “paradoxo” de os intelectuais cínico-esclarecidos, que se
gabam de não acreditar numa qualquer causa social, serem em geral, nos dias de hoje, os primeiros a deixarem-se
seduzir por fanatismos e fundamentalismos de toda ordem.
48
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***

Tradicionalmente, o romance da desilusão expõe a falsidade da concepção burguesa


da vida, do homem, da sociedade e da arte, que “desaba miseravelmente ao chocar-se com a
brutal prepotência da vida capitalista”103. Não que seja falsa em si mesma, a ideologia
burguesa, mas antes, como se sabe, é a pretenção de estar realizada que se mostra ilusória:
ao defrontarem-se com a crua realidade da economia capitalista, “os mais altos produtos
ideológicos da evolução revolucionária burguesa se reduzem a meras ilusões” 104. Enquanto
em Balzac o processo de formação do capitalismo e sua dinâmica eram expostos no terreno
do espírito, nos autores que sucedem, em Flaubert mormente, os valores burgueses,
humanistas, já se encontram incorporados “na relação capitalista de mercadoria para
mercadoria”105. Com o colapso progressivo dos referenciais burgueses, as coordenadas da
experiência (espaço e tempo, sujeito e objeto, identidade e diferença) tendem a se
embaralhar. Este estado de desorientação subjetiva ganha uma amplitude extrema nas
vésperas da Primeira Guerra: nas obras de Heym, Trakl, Rubiner e Meidner, o indivíduo
desindividualizado, ou na impossibilidade de se individualizar, de discernir as coisas e os
outros em sua diferença específica, encerrado monadologicamente sobre si mesmo no seio
caótico e mecanizado do universo industrial e urbano, aparece como uma concentração
alucinada e potencialmente explosiva de forças contraditórias. Não à toa, o “outcast e o
marginal tornam-se personagem central do drama expressionista – figura que pela sua
própria condição social está em situação monológica”106. Pressente-se, de forma
angustiante, “nas páginas sombrias de Kafka e nas telas de Kokoschka, a deformação
absurda da pessoa humana que iria atingir a Europa com o triunfo iminente do nazismo” 107.
O vento apocalíptico que soprou durante a Primeira Guerra fazia-se ainda ouvir após o fim
desta, ao mesmo tempo em que a incrível energia utópica liberada pela eclosão da
Revolução Russa de 1917 apontava no horizonte o nascimento de um outro mundo. Nas
palavras de Maiakóvski:

[...] a Revolução lançou à rua a fala rude de milhões, a gíria dos arrabaldes se derramou
pelas avenidas centrais; o idiomazinho enfraquecido dos intelectuais, com as suas palavras

103 Georg Lukács, “Balzac: Les Illusions perdues” (1935), trad. L. F. Cardoso, in Ensaios sobre literatura, Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 101.
104 Ibid., p. 102.

105 Ibid., p. 121.

106 Anatol Rosenfeld, O teatro épico (1965), São Paulo, Perspectiva, 2004, p. 104.

107 Alfredo Bosi, História concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultrix, 1994, p. 496.
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esterelizadas: “ideal”, “princípios da justiça”, “princípio divino”, “a imagem transcendental


de Cristo e do Anticristo”, tôdas essas falas que se proferiam num murmúrio nos
restaurantes, foram varridas. É o nôvo cataclismo da língua. Como torná-lo poético? As
velhas regras, com as „rosas formosas‟ e os versos alexandrinos, não servem mais. Como
introduzir a linguagem coloquial na poesia e como livrar a poesia de tais falas? 108

O poeta russo expõe aí, em poucas palavras, um movimento dialético conhecido: as


transformações no processo social como que exigem do artista uma nova organização
formal da obra, assim como as forças produtivas emancipadas na obra de qualidade
prefiguram um estado não alienado, apontam na direção da emancipação social, emperrada
pelas relações sociais de produção capitalistas. Noutras palavras, a carnificina militar
imperialista de 1914-18, marco extremo da crise da cultura e da civilização burguesas, assim
como as inovações técnicas (iluminação elétrica, cinema, automóvel), uma nova concepção
científico-filosófica do universo (teoria da relatividade geral), uma nova explicação
globalizante do homem (psicanálise), uma nova teoria geral da linguagem (linguística
saussuriana), a concepção de uma nova humanidade criada pela revolução soviética, as
transformações aceleradas da vida quotidiana urbana contemporânea e a crescente
deteriorização das condições da formação do sujeito autônomo do liberalismo/romantismo
– tudo isso reclamava uma revolução das formas artísticas tradicionais, burguesas, do
mesmo modo que, inversamente, de forma dialética, também as tendências artísticas de
vanguarda (cubismo, expressionismo, dadaísmo, Bauhaus, dodecafonismo...), combinando
o experimentalismo estético a um elevado grau de abstração antirrealista, continham em
germe um devir que transcendia a mera aparência quotidiana das coisas.
Para muitos artistas, com efeito, “desilusão” naquele contexto passou a não ter outro
sentido senão o de desvendar, por detrás da aparência, ou antes, na própria aparência, a
essência monstruosa (Unwesen) da sociedade capitalista, e despertar ao expô-la o
sentimento da necessidade de sua superação histórica pelo proletariado. Em suma:
“desilusão” equivalia a “consciência de classe”. Ao contrário da burguesia, que graças ao
dinheiro sempre pôde bem ou mal se preservar, se proteger da quotidianidade, o
proletariado, com muito mais intensidade, encontra-se mergulhado no turbilhão da vida
quotidiana, por isso mesmo só ele poderia negá-la praticamente, ao negar a si mesmo
enquanto classe antagônica do capital109. O artista não tinha como fazer vista grossa para a
nova situação, voltar a pintar como Tiziano ou Rembrandt, compor como Haydn ou Mozart,

108 Vladimir Maiakóvski, “Como fazer versos?” (1926), trad. Haroldo de Campos, in Boris Schnaiderman, A poética
de Maiakóvski através de sua prosa, São Paulo, Perspectiva, 1971, pp. 167-219, aqui pp. 170-71.
109 Cf. Henri Lefebvre, La vie quotidienne dans le monde moderne, Paris, Gallimard, 1968, p. 79.
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escrever como Stendhal ou Dostoiévski. Como explica Brecht, polemizando com o autor de
“Narrar ou descrever?”110:

O debate sobre o realismo bloqueará a produção se continuar assim. [...] o fato de que o
proletariado desumanizado põe toda a sua humanidade no protesto e encabeça a luta contra
a desumanização da produção é uma coisa que o professor [Lukács] não vê. [...] O escritor vê
algo novo quando observa o proletariado trabalhando em termos abstratos, e devemos ser
claros a esse respeito. A forma narrativa de Balzac, Tolstói etc. foi a pique nos “desalmados”
complexos factuais, minas de carvão, dinheiro etc. Homilias de professores não a farão
flutuar de novo.111

O que estava em jogo então era encontrar, ou criar, uma linguagem capaz de abarcar em seu
conjunto a vida material prática e a Revolução, ou seja, o mundo da mercadoria, o
conhecimento científico deste mundo e a ação destinada a controlá-lo e superá-lo, o que
implicava de certo modo uma união teórico-prática entre o artista e o operário, o cientista e
o revolucionário. Bons exemplos da tendência são a Proletkult de Bogdanov, ou inspirada
diretamente nela, a Liga para a cultura proletária (Bund für proletarische Kultur), criada
em Berlim na primavera de 1919, ou ainda, quase uma década depois, próxima do partido
comunista, a Liga dos escritores proletários revolucionários (Bund proletarisch-
revolutionärer Schriftsteller), fundada em 1928.
De maneira geral, é esse o contexto político e cultural ao qual pertence o Berlin
Alexanderplatz. Se Thomas Mann confessou ter ficado admirado com o bem-sucedido do
grande experimento de Döblin, o de ter elevado a realidade proletária contemporânea à
esfera épica112, Brecht, por sua vez, parece não ter se dado de todo por satisfeito com a
representação da classe operária no romance, ou antes, com a ausência desta 113. Na revista
Linkskurve, foram publicados ataques veementes de críticos comunistas espumando com o

110 Cf. Georg Lukács, “Narrar ou descrever? Contribuição para uma discussão sôbre o naturalismo e o formalismo”
(1936), trad. G. V. Konder, in Ensaios sôbre literatura, op. cit., pp. 47-99.
111 Bertolt Brecht, Diário de trabalho, vol. I, op. cit., entrada de 18.8.38, pp. 15-17.

112 Cf. Thomas Mann, “Vorwort zu dem Katalog Utländska Böcker 1929”, apud Olivier Bernhardt, Alfred Döblin und

Thomas Mann: eine wechselvolle literarische Beziehung, Würzburg, Königshausen & Neumann, 2007, p. 85:
“Der Raum verbietet mir, auf das nach seinen künstlerischen Mitteln aufregend interessante Werk, das ich vorhin
beim Namen nannte, näher einzugehen, aber ich bekenne, daß ich in Bewunderung stehe vor diesen großartig
gelungenen Versuch, die proletarische Wirklichkeit unserer Zeit in die Sphäre des Epischen zu erheben.”
113 Segundo testemunho de Gabriele Sander, Döblin. Berlin Alexanderplatz, Stuttgart, Reclam, 1998, p. 115, apud

Gabriela Siqueira Bitencourt, Fratura da metrópole, op. cit., p. 12: “Wir beide, Brecht und ich, hatten den Roman
mehrfach gelesen. Vieles gefiel uns daran; aber wir waren in einem Punkt nicht einverstanden. In Döblins Buch
nahm das Lumpenproletariat den entscheindenden Platz ein, Huren und ihre Zuhälter. […] Döblin hatte die
Arbeiter vergessen, und das schien uns deshalb so wesentlich, weil der deutsche Roman und vor allem auch
Thomas Mann immer die industriellen Arbeiter vergessen hatte.”
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fato de Franz Biberkopf não ser um proletário com consciência de classe114. Se prostitutas,
cáftens, trambiqueiros e assassinos de fato aparecem no primeiro plano, não é verdade que
os trabalhadores, trabalhadores sindicalizados, não figurem na trama. Em pelo menos três
momentos significativos eles têm voz no capítulo. Primeiramente, na confrontação, que tem
lugar em grande parte no bar de Henschke, entre Franz, então vendedor do jornal nazi, e
alguns militantes comunistas, dentre os quais um antigo camarada seu, Georg Dreske, ex-
spartakista, agora um amolador desempregado. Em seguida, como já visto, nos meetings
anarquistas e comunistas, que frequenta com Willi, durante um tempo seu principal
parceiro de bebedeira. Por fim, na cena final, à qual voltaremos adiante.
Obviamente, não é na e pela fala do anarquista que o livro é “revolucionário”, como
tampouco é ponto alto de uma peça como Santa Joana dos Matadouros (1931), de Brecht, a
fala do dirigente comunista, cujas palavras não “dispõem de vibração à altura da virada
superadora e inaugural que parecem prometer” 115. À maneira das melhores obras do
modernismo, a modernidade não está tanto no que é dito, mas no como é dito. Por tudo que
ele abrange, apresenta e expõe, o livro de Döblin em seu conjunto, à maneira de um
Ulysses, ou pouco depois, de um Voyage au bout de la nuit, voluntariamente ou não, sugere
ou aponta para formas de vida mais complexas e universais que as burguesas, claramente
decadentes, lesadas, mutiladoras. Nas palavras de Benjamin: “raramente a serenidade do
leitor fora perturbada por ondas tão altas de acontecimentos e reflexões, raramente ele fora
assim molhado, até os ossos, pela espuma da linguagem verdadeiramente falada” 116. Ao
lado de tal riqueza, desnecessário lembrar, as promessas de integração à ordem vigente,
marcada pelo selo do empobrecimento, da reificação e da mutilação de toda expressão
individual, soam como piadas de mal gosto, pois, nas palavras de Debord:

Nenhuma melhoria quantitativa de sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica,


representam um remédio durável à sua insatisfação, pois o proletariado não pode se
reconhecer verdadeiramente numa injustiça particular que teria sofrido nem, por
conseguinte, na reparação de uma injustiça particular, tampouco de uma série de injustiças,
mas somente na injustiça absoluta de ser rejeitado à margem da vida.117

114 Por outro lado, talvez em resposta às críticas negativas da esquerda, Die Ehe (O matrimônio), peça escrita em
seguida a Berlin Alexanderplatz, após muitas discussões com Brecht e Piscator no inverno de 1929-30, e estreada
no fim de 1930, aos olhos de muita gente, pouco se distinguia de uma peça de agit-prop comunista, tendo
encontrado hostilidade em Munique, em Leipzig e em Berlin, por criticar a família burguesa e pregar a legalização
do aborto. Cf. Peter Jelavich, Berlin Alexanderplatz. Radio, Film, and the Death of Weimar Culture, Berkeley/Los
Angeles, University of California, 2009, p. 31.
115 Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, op. cit., p. 134.

116 Walter Benjamin, “Krisis des Romans”, op. cit., pp. 233, trad. cit., p. 56.

117 Guy Debord, La société du spectacle (1967), in Œuvres, Paris, Gallimard, 2006, § 114, p. 816.
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À luz do que precede, a hipótese que defendemos é a seguinte: a passagem de Franz


Biberkopf a uma postura mais ativa no final do livro, o fato de o entrecho fechar com ele a
marchar, não mais solitário entre solitários, mas solidário entre solidários, é condizente
com e fiel à riqueza possível sugerida no nível da forma.

***

Se no curso de suas desventuras o herói döbliniano teve de ser destruído, “queimado


até o fundo da alma”118, a razão reside, esta era a convicção do Döblin logo após a derrocada
da revolução alemã, no fato de uma nova vida só poder florecer, parodiando Schiller, das
ruínas da anterior119, daquela “vida subjuntiva”, para falar como Kierkegaard, vida
hipotética, que poderia ser ou ter sido diferente se tal e tal oportunidade tivesse se
apresentado, se tal e tal medida tivesse sido tomada... Franz Biberkopf, um pouco à
maneira do esteta kierkegaardiano, passou boa parte da vida a se proteger e a se defender
dos outros e da sociedade mediante aquilo que o filósofo dinamarquês chamou de “má
ironia”120, que é o que lhe permitia manter certa distância, se defender do curso
desenfreado do mundo, por isso atinha-se a uma atitude essencialmente passiva, de não
enfrentamento. Segundo Kierkegaard, a passagem para a vida ética ocorreria no momento
em que o esteta volta para si a ironia a fim de medir a distância que separa o que ele se
imagina ser daquilo que ele efetivamente é. O resultado seria o abalo das certezas prévias, a
reapropriação das próprias escolhas, a superação do tédio e da postura niilista. Embora,
obviamente, Biberkopf nada tenha de um intelectual romântico entediado, ele partilha com
este a “arte” de não escolher, de recusar ou postergar a ação, a decisão, a confrontação com
a realidade, com os outros, razão pela qual, entre outras, precisa de dinheiro, e rápido,
porque é o dinheiro que torna possível o conforto da passividade, da não-intervenção121.
Porém, ao contrário do “sujeito ético” kierkegaardiano, para o qual escolher o que lhe

118 BA, 380/436: “Franz, du selbst wirst bis auf die innerste Seele verbrannt werden!”
119 Cf. Alfred Döblin, “Ruinen, neues Leben” (08/09/1919), in Kleine Schriften, Bd. 1, Olten/Freiburg, Walter, 1985,
pp. 239-42, apud Wulf Köpke, “Döblins Theaterprovokationen”, in International Alfred-Döblin-Kolloquium
Mainz 2005, Bern, Peter Lang, 2007, pp. 65-80, aqui p. 80.
120 Søren Kierkegaard, Le concept d‟ironie constamment rapporté à Socrate (1841), Œuvres complètes, vol. 2, Paris,

Orante, 1975, p. 240.


121 Mais uma vez, caberia aqui a comparação com Frédéric Moreau. Leia-se, por exemplo, o que escreve Franco

Moretti, Signos e estilos da modernidade. Ensaios sobre a sociologia das formas literárias (1988), trad. Maria
Beatriz de Medina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 286: “Essa atitude estética perante a vida e a
história é a chave de outra novidade da obra de Flaubert. Ali o dinheiro deixa de ser o meio pelo qual se satisfaz o
desejo, como Marx ressaltou acontecer com o Mefisto de Goethe. Em Educação sentimental o dinheiro é desejável
porque permite não a satisfação, mas o seu adiamento. Agora que é rico, Frédéric pode finalmente entregar-se aos
seus sonhos como sonhos; por saber que pode realizá-los assim que desejar, não há necessidade de fazê-lo agora
[...] A vida de Frédéric é, na verdade, um monumento à indecisão irônica; tanto que consegue permanecer
indefinido até naqueles anos cruciais, entre 1848 e 1851, em que todos tinham que tomar partido.”
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acontece é a atitude ética por excelência, em Biberkopf tal escolha não se confunde com o
desejo das coisas como elas são, com o contentamento com o mundo tal como ele é.
Kierkegaard já estava descrevendo, à maneira estilizada dos filósofos, a necessidade de um
novo tipo de Bildung, não mais exatamente aquele definido por Goethe e Hegel. Nas
palavras de Franco Moretti:

Crescer não significa mais aprender a reconhecer no mundo a inteligência sem rival do
espírito hegeliano, mas aprender a temer o poder do mundo. E é realmente este o tipo de
Bildung (se é legítimo chamá-la assim) de que um mundo baseado em relações de poder e
dedicado a elas, e não a fins morais ou modelos racionais, precisa para funcionar. 122

Como veremos, o herói de Döblin, por sua vez, acaba escolhendo, mas sua escolha, a única
autêntica, concernirá à transformação da realidade: ao contrário do esteta, de um Frédéric
Moreau, sua recusa deixa de ser abstrata e niilista, e ao contrário do sujeito ético, tal como o
concebe Kierkegaard, ele já não se conforma, não mais aceita resignado a necessidade de as
coisas serem como são. Por isso também, o “sacrifício de si” no final do livro, que não é
sacrifício de sua existência presente, mas do homem que fora até ali, pouco tem a ver com
aquele de Isaac por Abraão, ou com o do herói trágico grego de modo geral. Franz Biberkopf
não mais treme e teme diante do poder do mundo como outrora, está novamente de pé,
“enfim endireitado”123. A mensagem, supostamente ancestral, buscada por Döblin nos
mitos bíblicos e helênicos, salvo mal-entendido, não é a do temor e tremor, é outra: como
Adão e Eva, sua personagem perde a inocência, preço pago pelo verdadeiro conhecimento
das coisas; como Jó, se dá conta da distância, ou inadequação, entre seu desejo de pôr um
fim à onda de azares que o acomete e sua própria capacidade, enquanto indivíduo isolado
das forças sociais, de transformar efetivamente a sua realidade; como Abraão/Isaac, acaba
por aceitar o “sacrifício” (a amputação do braço, a morte de Mieze, a perda dos “amigos”),
admite sua parte de culpa, de responsabilidade, nas coisas que sucederam; como com
Orestes, por fim, mais do que o fato de a sua parte de responsabilidade ser mitigada por
circunstâncias atenuantes, de ser considerado “inocente” e “livre” para seguir com sua vida,
através da ressurreição do herói “dentro do espírito da liberdade” é superado o “pathos da
experiência da sedução demoníaca e da cegueira humana, que irremediavelmente conduz
ao abismo”124.

122 Ibid., p. 209.


123 BA, 11/9: “doch zurechtgebogen”
124 Werner Jaeger, Paidéia. A formação do homem grego (1936), trad. Artur M. Parreira, São Paulo, Matins Fontes,

1995, pp. 286 e 304.


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Que o crime de um herói trágico, que não sucumbe senão perante a potência superior
do destino, tenha ainda que ser punido, a razão, segundo Schelling, reside no fato de tal
punição implicar nada menos que “um reconhecimento da liberdade humana, uma honra
que se prestava à liberdade”125. Quando Hegel sustenta que os “heróis trágicos são a um
tempo culpados e inocentes”126, o conceito de culpa presente na afirmação é dialético, ou
seja, ao contrário do que ocorre no drama ou no grande romance burguês, a culpabilidade
não é pautada pelo conhecimento que se tem da ação e de suas consequências, nem pela
vontade moral consciente do herói. De modo que, quando Édipo ou Antígona assumem o
destino como resultado de seus próprios atos, eles negam por aí mesmo o destino imposto
do alto, como necessidade cega, ou por outra, repõem como seus os pressupostos de suas
ações. Trata-se de duas noções distintas de destino, a segunda tendo a ver com a posição
dos pressupostos do agir (no drama burguês, ao contrário, supõe-se que os heróis tenham
desde o início pelo menos alguma consciência dos pressupostos e das consequências
daquilo que fazem, o que implica já terem assimilado as regras do jogo, uma certa
adaptação prévia ao curso do mundo, que é o que lhes permite agir de maneira deliberada e
decisiva e assim responder plenamente por aquilo que fazem, dizem ou decidem). É óbvio
que Franz Biberkopf não é um herói trágico (que se erige livremente contra a potência
superior do mundo objetivo e que tendo sua liberdade reconhecida pela punição após
sucumbir, após ser derrotado pelo destino, também deixa de ser livre), tampouco é um
herói burguês (consciente das forças em jogo, por isso mesmo livre e responsável por seus
atos, dono do próprio destido), mas no final de sua história percebe-se algo daquela noção
(salvo engano, mais hegeliana que propriamente grega) do destino como não sendo, ex
post, uma fatalidade, algo imutável, num trecho, poder-se-ia dizer, bem brechteano:

O ar pode lançar granizo e chuva, não há como se defender contra isso, mas contra muitas
outras coisas, é possível. Então não gritarei mais como antes: o destino, o destino. Não é
preciso reverenciar isso como sendo o destino, é preciso olhar, tocar e destruir.127

Contra o mau tempo, Biberkopf percebe que nada pode fazer a não ser abrir um guarda-
chuva, mas contra a condição desumana de vida, isto é, o trabalho, à qual se vê sacrificado
desde sempre (estando empregado ou não), contra o fato de não ter a menor probabilidade

125 F. W. J. Schelling, Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo (1795), in Obras escolhidas, sel. e trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Abril (col. Os Pensadores), 1980, décima carta, p. 34.
126 G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik (1820-29), Bd. III, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1990, p. 545: “Die

tragischen Heroen sind ebenso schuldig als unschuldig.”


127 BA, 454/520-21: “Die Luft kann hegeln und regnen, dagegen kann man sich nicht wehren, aber gegen vieles

andere kann man sich wehren. Da werde ich nicht mehr schrein wie früher: das Schicksal, das Schicksal. Das muß
man nicht als Schicksal verehren, man muß es ansehen, anfassen und zerstören.”
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de alcançar, dentro da classe na qual querendo ou não se encontra subsumido, condições


que o ponham numa situação emancipada128, contra a situação de classe, em suma, toma
consciência que é não somente possível, mas preciso lutar. Nasce nele o desejo de ruptura
com o que está posto. Isoladamente, porém, sabe que não tem o menor controle sobre as
forças, instituições e relações sociais objetivadas, sobre as condições de existência e de
produção da sociedade vigente, e que o destino é mais forte que ele, e que não poderá
mudá-lo, mas: “Se somos dois, é bem mais difícil ser mais forte do que eu. Se somos dez, é
ainda mais difícil. E se somos mil e um milhão, então é realmente muito difícil.”129 No fim,
então, acaba dando razão ao velho anarquista. Ao contrário do herói trágico, que segundo
Schelling é livre na luta individual contra o fatum e acaba não-livre após ter sido
reconhecida sua liberdade, Biberkopf percebe, após ser destruído pelas forças sociais
objetivadas, que só alcançará a liberdade pela e na luta coletiva.

A lição que aprende o anti-herói no final é condizente com a atitude que a forma da
narrativa de Döblin requer do leitor desde as primeiras páginas do livro; a “mensagem”
final ganha força pois é confirmada no nível da forma: ficar desperto, atento a tudo o que
acontece, tomar cuidado para não se deixar atropelar pelo curso das coisas, não se deixar
embasbacar, usar a razão. Assim como é quase impossível ao leitor se identificar com
qualquer uma das personagens – ainda mais quando se trata do protagonista, assassino,
estuprador, ladrão e alcoólatra, embora seja ao mesmo tempo difícil permanecer
completamente indiferente à sua sorte –, também ele, Biberkopf, aprendeu que não se deve
deixar fascinar, porque é seu fascínio pela personalidade de Reinhold que, indiretamente,
leva à morte de Mieze, do mesmo modo que, no plano histórico-político, o fascínio pela
personalidade autoritária de Hitler, por um lado, e a indiferença política (inclusive da parte
dos bem-pensantes), por outro, deixariam livre o caminho para sua ascenção democrática
ao poder em 1933. Em suma, a atitude fascinada, embasbacada, irrefletida, ou então a
indiferente, no limite cínica, ambas de toda maneira essencialmente passivas, favorecem a
exploração e a manipulação das pessoas: “Por isso, calculo tudo primeiro e, se chegar a hora
e for conveniente para mim, vou agir de acordo. Ao homem foi concedida a razão, ao invés
disso, os bois formam uma agremiação.”130

128 Cf. Karl Marx & Friedrich Engels, A ideologia alemã, op. cit., pp. 104-6.
129 BA, 453/519-20: “Was ist denn das Schicksal? Eins ist stärker als ich. Wenn wir zwei sind, ist es schon schwerer,
stärker zu sein als ich. Wenn wir zehn sind, noch schwerer. Und wenn wir tausend sind und eine Million, dann ist
es ganz schwer.”
130 BA, 454/520: “Darum rechne ich erst alles nach, und wenn es so weit ist und mir paßt, werde ich mich danach

richten. Dem Mensch ist gegeben die Vernunft, die Ochsen bilden statt dessen eine Zunft.”
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Devemos assim, diante disso, descartar a interpretação, bastante corrente, que


sustenta haver no final do livro uma contradição performativa, vale dizer, entre o pregar o
uso da razão e o aderir cegamente a um movimento de massa (note-se que já é um avanço,
porque há críticos, e não são poucos, que não chegam nem a enxergar o fato, bastante
óbvio, que Biberkopf passa do “eu” ao “nós” e termina marchando junto aos manifestantes,
com os tambores a rufar atrás dele). Há também os que sustentam que estariam as colunas
a marchar para um novo abatedouro, uma nova guerra, e que Döblin, visionário, teria
prefigurado os acontecimentos por vir, os nazistas no poder etc. Na mesma linha, tomam o
rufo dos tambores, a onomatopeia “rataplã, rataplã”, como índice do nível de insconsciência
da massa alienada, como evidência de que Franz estaria ou sendo conduzido em meio a
uma multidão de autômatos iguais a ele, ou, ao contrário, olhando para ela com indiferença,
senão com desprezo. Mais uma vez, faz-se necessário pôr abaixo tais leituras, verdadeiros
tiros à queima-roupa, que ignoram completamente o contexto no qual foi escrita e no qual
se passa a história. Até porque, nunca é demais lembrar, dependendo do contexto, é
preferível “grito em lugar de cantilena, rufar de tambor em lugar de nina-nana”131.

***

Voltemos pois ao fecho do livro. É significativo que Franz não termine no bar de
Henschke, com a cara cheia, lembrando de coisas do passado e exclamando: “c‟est là ce que
nous avons eu de meilleur!”132 Não. Tirando alguns altos momentos – e Franz os nomeia,
lembra-se com orgulho de ter lutado ao lado dos spartakistas, e parece ter experimentado,
durante um breve período, uma autêntica felicidade ao lado de Mieze –, sua vida em
realidade não passou de uma sucessão de desgraças e mal-entendidos: guerra, crime,
prisão, alcoolismo, mutilação, tratamento de choque... E agora, depois de tudo, o que se
tornou? Não passa de um estropiado a exercer funções simples, repetitivas, alienadas.
Arrumou um trabalho, por certo, mas por quanto tempo? Então não há saída? Por si só,
nada indica que se libertará do círculo vicioso: por ora é assistente de porteiro, mas se
perder o emprego, não mergulhará no álcool, não recairá na vida de antes, no submundo do
crime? Se o fizer, não acabará, muito provavelmente, fazendo novas passagens pelo cárcere,
não enlouquecerá, terminando de novo no sanatório? O velho anarquista tinha razão: “Pois
então”, dizia ele a um Franz irônico e cínico, “tente agir sozinho [...] sozinho não se faz

131 Vladímir Maiakóvski, “Como fazer versos?”, op. cit., p. 171.


132 Gustave Flaubert, L‟Éducation sentimentale, op. cit., vol. 2, p. 274.
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nada. Precisamos de organização de luta.”133 E completava, como que prevendo o que viria a
acontecer com aquele que, sem parar de rir, dizia-se autossuficiente: “Você é tapado. Você
ainda vai quebrar a cara. Não conhece a coisa mais importante para o proletariado:
solidariedade. Você não sabe o que é isso.”134
Acontece que no final, no epílogo formado pelas três últimas páginas, a coisa muda
de figura. As interpretações do famoso fecho são das mais variadas e, em geral, bastante
estéreis. Além das já citadas, vejamos mais algumas: após o renascimento, Biberkopf volta
mudado e luta para se manter fiel a si mesmo contra a influência do coletivo 135; as
trompetas e os tambores dos manifestantes são claramente o que o novo Biberkopf rejeita,
o que não quer mais, nunca mais marchar cegamente para a guerra 136; ele evita as colunas
que marcham na rua, foge delas, pois aprendeu que o poder mundano é perecível, devendo
por isso ser examinado com a devida calma 137; com este apêndice supérfluo e desnecessário,
Döblin faz seu herói saltar de vez para fora da esfera pública138; de toda evidência, Franz se
torna um homem pio e temeroso de Deus, um verdadeiro militante cristão 139. Ainda pior
que leituras desse cunho são as que aderem ao relativismo pós-moderno, com sua pregação
da infinidade de leituras e interpretações possíveis, todas válidas, visto não haverem
critérios objetivos nos permitindo determinar que uma leitura seja mais ou menos
verdadeira que outras. De fato, não é incomum nos dias de hoje a postura pseudocrítica que
estima que o final do livro deva permanecer para todo o sempre “em aberto”, projetando
desse modo sobre a personagem de Döblin a própria incapacidade de tomar partido no que
quer que seja: Franz Biberkopf ficou mais sábio, mas hesitaria ainda quanto a se engajar
nas lutas do tempo, até porque não saberia por onde começar, ou como fazer 140. Contra tal

133 BA, 272/311: “Na, denn versuchs man alleene. […] alleene kannste nischt machen. Wir brauchen Kampf-
organisation.”
134 BA, 272/311-12: “Du bist vernagelt. Da wirste dir den Kopp einrennen. Du kennst nicht die Hauptsache beim

Proletariat: Solidarität. Det kennste nicht.”


135 Cf. Walter Muschg, “Nachwort des Herausgebers”, in Alfred Döblin, Pardon wird nicht gegeben, Olten, Walter,

1960, pp. 371-84; Albrecht Schöne, “Döblin: Berlin Alexanderplatz”, in Benno von Wiese (Hrsg.), Der deutsche
Roman. Vom Barock bis zur Gegenwart, Bd. 2, Düsseldorf, Bagel, 1963, pp. 291-325; James H. Reid, “Berlin
Alexanderplatz: A Political Novel”, in German Life and Letters, n° 21 (1968), pp. 214-23.
136 Cf. Volker Klotz, Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis Döblin,

München, Hanser, 1969.


137 Cf. Hans-Peter Bayerdörfer, “Der Wissende und die Gewalt: Alfred Döblins Theorie des epischen Werkes und der

Schluß von Berlin Alexanderplatz” (1970), in Matthias Prangel (Hrsg.), Materialen zu Alfred Döblin ‚Berlin
Alexanderplatz‟, Frankfurt/M., Surkamp, 1975, pp. 150-85, aqui pp. 158-60.
138 Cf. Leo Kreutzer, Alfred Döblin. Sein Werk bis 1933, Stuttgart, Kohlhammer, 1970.

139 Cf. Anne Liard Jennings, Alfred Döblin‟s Quest for Spiritual Orientation, Urbana, University of Illinois, 1959,

apud Ulrich Dronske, Tödliche Präsens/zen. Über die Philosophie des Literarischen bei Alfred Döblin, Würzburg,
Königshausen & Neuman, 1998, p. 155.
140 Cf. Peter Bekes, Alfred Döblin, Berlin Alexanderplatz. Interpretation, München, Oldenbourg, 1995, pp. 104-10.

Para o autor, a passagem final em itálico seria “ambivalente, senão contraditória”: de um lado, tem-se a destruição
do velho mundo, a liberdade de realizá-lo e a miragem de um novo mundo, de outro, a canção dos tocadores de
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postura, caberia relembrar que o epílogo do livro é decerto enigmático, concebido para sê-
lo, mas como todo enigma, ao contrário do mistério, não apresenta aquele caráter de
absoluta indecidibilidade que tentam lhe colar alguns críticos pós-modernos, supondo
antes a possibilidade de decifração, que tem a ver com o conteúdo de verdade da obra, que
por sua vez remete sempre ao plano da realidade sócio-histórica141.
Continuando, lembremos ainda que alguns críticos enxergaram no final, por
diferentes razões, menos uma contradição que uma conjunção dos opostos, indivíduo e
coletivo entrando como que em simbiose justamente enquanto opostos142; a arrogância e o
orgulho do antigo Franz Biberkopf são destruídos, assim como a convicção de que sozinho
pode ter razão contra todos, ao mesmo tempo que o novo Biberkopf destrói a crença
enganadora num destino todo-poderoso143; haveria assim uma superação da (falsa) escolha
entre a autoasserção (Selbstbehauptung) do indivíduo em oposição à sociedade e a
aceitação cabal dos ditames sociais, uma superação, enfim, da contradição entre
passividade e atividade, compreensão e ação formando um só e mesmo movimento144. Mais
uma vez, o problema com todas estas interpretações é que, ao desconsiderar a situação,
caem na metafísica, tirando lições ou teorias supostamente universais acerca do indivíduo e
da sociedade.
Citemos por fim uma das leituras mais inteligentes de que pudemos nos interar, que
é a que compara o final de Berlin Alexanderplatz com o d‟A montanha mágica, vendo uma
diferença decisiva nas posturas dos dois protagonistas: Hans Castorp no fim do livro de
Mann acaba tropeçando na Primeira Guerra sem refletir e sem fazer o balanço de suas
experiências do tempo passado em Davos, enquanto que Franz Biberkopf se põe a refletir,
com a devida calma, antes de tomar qualquer medida, observa criticamente o que se passa à
sua volta, começa a tomar consciência da situação, a entender o que aconteceu com ele,

tambor, com seu apelo a marchar para a guerra. Não é difícil enxergar que a “contradição” em questão está antes
na cabeça do crítico que no que diz o texto, como se fosse possível transformar o mundo sem luta, revolucioná-lo
sem revolução...
141 Para as noções de caráter enigmático e conteúdo de verdade da obra de arte, cf. Theodor W. Adorno, Ästhetische

Theorie (1970), Frankfurt/M., Suhrkamp, 2003, pp. 182-204. Veja-se também, para a diferença específica de
enigma e mistério, José Antonio Pasta, “O romance de Rosa: temas do Grande Sertão e do Brasil”, in Novos
Estudos, Cebrap, n° 55 (1999), pp. 61-70.
142 Cf. Otto Keller, Döblins Montageroman als Epos der Moderne, München, Fink, 1980; Erwin Kobel, Alfred

Döblin. Erzählkunst im Umbrich, Berlin, Walter de Gruyter, 1985.


143 Cf. Klaus Müller-Salget, Alfred Döblin. Werk und Entwicklung, Bonn, Bouvier, 1972.

144 Cf. Matthias Prangel, “Franz Biberkopf und das Wissen des Wissens. Zum Schluß von Berlin Alexanderplatz

unter der Perspektive einer Theorie der Beobachtung der Beobachtung”, in Gabriele Sander (Hrsg.),
Internationales Alfred-Döblin-Kolloquium Leiden 1995, Bern, Peter Lang, 1997, pp. 169-80.
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quais as causas, as razões de sua desgraça145. Pois bem, ao contrário das leituras habituais,
quase sempre arbitrárias, e partindo por assim dizer de onde parou esta última, cabe
sustentar que Franz enfim tira uma lição de suas experiências, que não é aquela, a que
havíamos indicado lá atrás, com Rosenfeld, duma solidariedade vazia e apolítica; também
não é mais aquela sabedoria do Eclesiastes, do contentar-se com o que se tem, sem
questionar etc., que só figura no texto para contrastar com a verdadeira sabedoria, que é
emancipadora. A postura que foi a sua desde o começo, passiva e reativa diante do destino,
muda completamente: não adianta culpar ou maldizer o curso das coisas; é preciso
transformá-lo. De um lado, repete-se aquilo que foi o caso desde o início: “não acredito em
mais nada neste mundo [...] e não me meto” 146; de outro, ocorre uma tomada de
consciência: “não gritarei mais como antes: o destino, o destino [...] é preciso olhar, tocar,
destruir”147. Entre as duas maneiras opostas de encarar o curso degradado da vida, da não-
intervenção à destruição, o que se passa? Biberkopf avista “com frequência” de sua janela
manifestantes “com bandeiras, música e canto”, e põe-se a pensar, percebe que “algo está
ocorrendo no mundo”148. Enfim, a frase chave para se entender os parágrafos finais:
“Biberkopf é um pequeno operário”149, pois é nesta condição que ele vai marchar... ao lado
dos trabalhadores.
O que nos permite fazer tal afirmação? Muita coisa, na verdade. Segundo consta,
para começar, até sua publicação definitiva, em forma de livro, em outubro de 1929, Döblin
teria feito revisões, cortes e adições no romance, principalmente no prólogo, reescrito
inúmeras vezes, mas também na conclusão. À vista disso, pode-se avançar a seguinte
hipótese, algo a que, salvo engano, a crítica até agora não parece ter prestado a devida
atenção: Franz passa, como é dito aliás explicitamente, o inverno de 1928-29 no manicômio
de Buch150; o que dá a entender que o que segue (visita ao túmulo de Mieze com Eva,
processo contra Reinhold e o funileiro Matter, oferta de emprego etc.) tenha lugar na

145 Cf. Helmut Koopmann, “Der Schluß des Romans Berlin Alexanderplatz: eine Antwort auf Thomas Manns
Zauberberg?”, in Werner Stauffacher (Hrsg.), Internationale Alfred-Döblin-Kolloquien Münster 1989-
Marbach/N. 1991, Bern, Peter Lang, 1993, pp. 179-91.
146 BA, 454/520: “Ich schwör sobald auf nichts in der Welt […] und fall sobald nicht rein.”

147 BA, 454/521: “Da werde ich nicht mehr schrein wie früher: das Schicksal, das Schicksal […] man muß es ansehen,

anfassen und zerstören.”


148 BA, 454/520: “Sie marchieren oft mit Fahnen und Musik und Gesang an seinem Fenster vorbei […] es geht was

vor in der Welt.”


149 BA, 454/521: “Biberkopf ist ein kleiner Arbeiter.”

150 Cf. BA, 442/507. Diga-se de passagem, um fato notável, em geral esquecido pela crítica, é que apesar de todas as

referências mítico-religiosas encontradas no romance, o narrador, do início ao fim da história, toma o cuidado de
datar os acontecimentos. Tem-se assim uma estrutura temporal bastante nítida, as datas sendo explicitamente
indicadas ao longo do texto: 1927 (livro 1), novembro de 1927 (livro 2), fim de 1927 (livro 3), janeiro e fevereiro de
1928 (livro 4), fevereiro a abril de 1928 (livro 5), abril a junho de 1928 (livro 6), agosto e setembro de 1928 (livro
7), setembro e outubro de 1928 (livro 8), inverno de 1928-29 (livro 9).
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primavera de 1929 (confirma-o ademais um trecho que precede imediatamente os


acontecimentos finais, no qual o narrador se refere na forma pretérita ao “frio terrível” do
último inverno151). Se é assim, então não é possível ignorar o acontecimento histórico-social
maior daquele momento, aquilo que ficou conhecido como o Blutmai, as manifestações do
dia do trabalho, os três dias de protesto que resultaram num banho de sangue.
Relembrando resumidamente os fatos: o social-democrata Karl Friedrich Zörgiebel (SPD),
prefeito de polícia de Berlim, que havia proibido as demonstrações naquele ano, receoso
que dessem lugar a conflitos entre membros do Partido Comunista Alemão (KPD) e os do
Partido Nacional-Socialista (NSDAP), mais precisamente entre a Roter Frontkämpferbund
(RFB) e a Sturmabteilung (SA), colocou nada menos que treze mil policiais nas ruas e deu
ordens de atirar nos manifestantes, que, instigados pelo KPD, puseram-se a marchar apesar
da interdição. É preciso entender que as demonstrações organizadas pelo KPD naquele
momento, principalmente as do 1° de maio, tinham um significado mais amplo do que se
lhes constuma atribuir: elas eram articuladas e percebidas como “prelúdios à grande
transformação”152. Embora não tenha havido um inquérito oficial sobre a brutalidade
policial, embora nenhum policial tenha sido inculpado, é fato que, após três dias de
barricadas e batalha de rua, trinta e três pessoas foram mortas, quase duzentas ficaram
feridas e mais de mil e duzentas foram presas 153. Os acontecimentos foram tão marcantes,
que ao que parece Brecht teria percebido ali, naquele exato momento, que a Revolução não
estava mais no horizonte próximo154. Quanto a Döblin, tampouco ficou indiferente, bem ao
contrário: juntamente com Heinrich Mann, Carl von Ossietzky e o advogado de defesa Hans
Litten, criou o Ausschuß zur Untersuchung der Berliner Maivorgänge, uma comissão
incumbida de investigar o ocorrido a fim de ajudar os trabalhadores e manifestantes
inculpados.
Se nossa hipótese parecer ainda extravagante, note-se que talvez nem seja preciso
evocar tal acontecimento extraliterário para determinar a “cor política” daqueles com quem
Franz se põe a marchar na última cena. Contra os que sustentam, e não são poucos os

151 BA, 448/514: “war ja eine furchtbare Kälte den ganzen Winter”. De resto, no mesmo parágrafo, há uma passagem
cheia de sarcasmo e duplos sentidos, na qual fala-se da “sujeira tremenda [furchtbarer Dreck]” que tomou conta
da cidade, “pois o magistrado de Berlim é tão refinado e humano que deixa toda neve se transformar devagarinho,
aos poucos, em sujeira, que ninguém toque um dedo nela [denn der Magistrat von Berlin ist so vornehm und
human und läßt den ganzen Schnee sich selber sachte peu à peu in Dreck auflösen, daß mir den keener anrührt]”.
Desnecessário adicionar que se está a falar de tudo menos da neve, que a sujeira que se alastra é outra.
152 Eric D. Weitz, Creating German Communism, 1890-1990: From Popular Protests to Socialist State, New Jersey,

Princenton University, 1997, p. 186.


153 A respeito, veja-se entre outros Pamela E. Swett, Neighbors & Enemies. The Culture of Radicalism in Berlin,

1929-1933, Cambridge, Cambridge University, 2004, pp. 120-36.


154 Baseamo-nos aqui na transcrição duma palestra de Iná Camargo Costa, “Brecht e o teatro épico”, de 3 de maio de

2005.
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críticos que o fazem, que o trecho final seja ambíguo, fora de esquadro, politicamente
indefinido etc., um outro trecho, dez páginas antes, parece corroborar a hipótese de que os
manifestantes aos quais Franz se une, marchando para a guerra com tambores e bandeiras,
são em realidade trabalhadores comunistas:

Júbilos e gritos, marchar a seis e a dois e a três, marcha a revolução francesa, marcha a
revolução russa, marcham as guerras dos camponeses, os anabatistas, seguem todos atrás da
morte, há um júbilo atrás dela, vão rumo à liberdade, seguem em rumo à liberdade, o velho
mundo deve sucumbir, desperta, ó brisa da manhã, rataplã, rataplã, a seis, a dois, a três,
irmãos, rumo ao sol, à liberdade, irmãos, rumo à luz, do passado escuro reluz claro o futuro,
marcar passo e direita e esquerda e esquerda e direita, rataplã, rataplã. 155

Ao comparar tais linhas, que no lugar onde figuram parecem, estas sim, fora do lugar, com
os dois derradeiros parágrafos, em itálico no livro, percebe-se logo que um trecho prefigura
e anuncia o outro:

Rumo à liberdade, direto para a liberdade, o velho mundo precisa sucumbir,


desperta, brisa da manhã.
E marcar passo e direita e esquerda e direita e esquerda, marchar, marchar,
seguimos para a guerra, caminham conosco cem tocadores de tambor, eles tamborilam e
assobiam, rataplã, rataplã, um vai por vias retas, o outro pelas tortas. Um fica parado, o
outro cai, um continua a correr, o outro jaz mudo, rataplã, rataplã. 156

Exatamente os mesmos termos empregados anteriormente para descrever as guerras dos


camponeses do século XVI, a Revolução Francesa e a Revolução Russa, reaparecem no
fechamento do entrecho: “rumo à liberdade”, “o velho mundo precisa sucumbir”, “desperta,
ó brisa da manhã”, “rataplã, rataplã”. Duas coisas parecem estar em jogo aí: por um lado, a
fidelidade a acontecimentos emancipatórios, frente aos quais a Alemanha, cujo atraso
político-social e a quase visceral incapacidade revolucionária eram notórios, histórica e
ideologicamente se opôs, e por outro lado, a reabertura de um horizonte utópico. Acresce
que o primeiro trecho contém dois versos de um famoso hino do movimento operário,
ouvido nas revoluções russas de 1905 e 1917, e que se tornaria extremamente popular na
Alemanha a partir do início dos anos vinte: “Brüder, zur Sonne, zur Freiheit, Brüder zum

155 BA, 444/509: “Jubel und Schreien, Marschieren zu sechsen und zu zweien und zu dreien, marschiert die
französische Revolution, marschiert die russische Revolution, marschiert die Bauernkriege, die Wiedertäufer, sie
ziehen alle hinter dem Tod einher, es ist ein Jubel hinter ihm her, es geht in die Freiheit, die Freiheit hinein, die
alte Welt muß stürzen, wach auf, du Morgenluft, widebum widebum, zu sechsen, zu zweien, zu dreien, Brüder, zur
Sonne, zur Freiheit, Brüder zum Lichte empor, hell aus dem dunklen Vergangenen leuchtet uns Zukunft hervor,
Schritt gefaßt und rechts und links und links und rechts, widebum widebum.”
156 BA, 454-55/521: “Es geht in die Freiheit, die Freiheit hinein, die alte Welt muß stürzen, wach auf, die Morgenluft.

/ Und Schritt gefaßt und rechts und links und rechts und links, marschieren, marschieren, wir ziehen in den
Krieg, es ziehen mit uns hundert Spielleute mit, sie trommeln und pfeifen, widebum, widebum, dem einen geht‟s
grade, dem andern geht‟s krumm, der eine bleibt stehen, der andere fällt um, der eine rennt weiter, der andere
liegt stumm, widebum widebum.”
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Lichte empor, hell aus dem dunklen Vergangenen leuchtet uns Zukunft hervor” 157 – hino
este que aliás já havia sido evocado precedentemente, no episódio do confronto com o
grupo de Dreske no bar de Henshke158. Seja como for, embora Döblin não dê de barato a
resposta, não diga explicitamente quem seriam aqueles com quem marcha Franz Biberkopf,
não há ambiguidade alguma nas palavras finais, não resta dúvidas que ali não se está
marchando para uma guerra nacionalista, imperialista – o proletariado, desenraizado que
é, como se sabe desde Marx, não tem pátria, não se lhe pode retirar o que não possui –,
tampouco se marcha para uma guerra sobre a qual nada se sabe; bem ao contrário, e de
forma bastante clara até, apesar de não dito explicitamente, marcha-se para a guerra de
classes, “rumo à liberdade”.

***

No início do epílogo, o narrador fala da história de Franz Biberkopf como sendo “um
processo de revelação”159, ao cabo do qual se teria atingido “o ponto de inflexão, a partir do
qual recai então a luz sobre o todo”160. Enquanto pretendia ser autossuficiente, nosso anti-
herói andara no escuro, mas enxerga melhor agora:

É preciso acostumar-se a dar ouvidos a outrem, pois o que os outros dizem também me diz
respeito. Percebo então quem sou e o que sou capaz de empreender. Por toda parte ao meu
redor, trava-se minha batalha, preciso ficar atento, antes de atinar com as coisas, já estou
metido nela. 161

Sua batalha de todo dia, é disso que se dá conta, não é só dele. Enquanto trabalhador, seu
estatuto muda; o discurso da luta de classes, do grupo de Dreske ou do velho sindicalista, o
qual, antes, quando vivia de favor – era Eva, por exemplo, quem pagava o aluguel de seu
quarto –, na sua concepção “não lhe dizia respeito”, agora, ao frequentar o pátio da fábrica,

157 Trata-se de uma canção composta por Leonid Petrovitch Radin numa prisão moscovita no inverno de 1885-86,
traduzida e adaptada para o alemão por Hermann Scherchen em 1918 (as duas estrofes finais parecem ter sido
adicionadas posteriormente): “Brüder, zur Sonne, zur Freiheit, / Brüder, zum Lichte empor. / Hell aus dem
dunklen Vergangnen / leuchtet die Zukunft hervor! // Seht, wie der Zug von Millionen / endlos aus Nächtigem
quillt, / bis euer Sehnsucht Verlangen / Himmel und Nacht überschwillt. // Brüder, in eins nun die Hände, /
Brüder, das Sterben verlacht: / Ewig der Sklav‟rei ein Ende, / heilig die letzte Schlacht! // Brechet das Joch der
Tyrannen, / die uns so grausam gequält. / Schwenket die blutrote Fahne, / über die Arbeiterwelt. // Brüder,
ergreift die Gewehre, / auf, zur entscheidenden Schlacht! / Dem Kommunismus zur Ehre, / ihm sei in Zukunft die
Macht!”
158 Cf. BA, 89/97: “Was sie singen wollen weiß Franz schon, entweder die ‚Internationale‟ oder ‚Brüder, zum Lichte,

zur Freiheit‟, falls sie nicht was Neues haben.”


159 BA, 453/519: “ein Enthüllungsprozeß”

160 Ibid.: “den Umschlagspunkt, von dem erst Licht auf das Ganze fällt.”

161 Ibid.: “Man muß sich gewöhnen, auf andere zu hören, denn was andere sagen, geht mich auch an. Da merke ich,

wer ich bin und was ich mir vornehmen kann. Es wird überall herum um mich meine Schlacht geschlagen, ich
muß aufpassen, ehe ich es merke, komm ich ran.”
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adquire todo sentido; percebe que sua luta é travada por muitos outros. Trata-se, a bem
dizer, do nascimento, nele, de uma solidariedade de classe, só possível quando se passa do
regime do favor ao regime do contrato “livre” de trabalho, no qual as identidades sociais
(patrão e empregado, burguês e proletário) ficam mais nítidas, o trabalho tornando possível
o reconhecimento de si e do outro. Acresce que ao sentir na própria pele a realidade
operária, passa a enxergá-la com outros olhos, percebe quiçá pela primeira vez a
possibilidade/necessidade de transformá-la162. Uma vez que um trabalhador se considera
um proletário, se percebe a si mesmo como fazendo parte do proletariado, isto é, parte dos
sem-parte, tal percepção muda sua própria realidade, fazendo com que aja
diferentemente163. Porque não basta a tomada de consciência; a libertação da dominação de
classe não acontece simplesmente mediante uma reflexão desvinculada da práxis de
libertação. Ao mesmo tempo, a práxis autêntica, por assim dizer, não se autoriza num
Outro, não é por ele coberta, ou acobertada, mas intervém no ponto mesmo de
inconscistência da ordem simbólica instituída. Como fica claro na cena do tribunal, a
admiração fascinada por Reinhold, personagem autoritária que durante quase todo o livro
satifaz o impulso masoquista de Franz em seu desejo de ordem e obediência, como que se
desfaz; Mieze, seu grande amor, se foi; e Eva, que perdeu o filho que esperava de Franz
durante a estadia deste em Buch, muda de vida e se afasta de vez do antigo amante. Está
portanto solto no mundo, por conta própria quiçá pela primeira vez na vida, e é a partir
deste momento, quando se encontra esvaziado de todo conteúdo substancial, de todo e
qualquer apoio simbólico que dê sentido à sua existência, é que se constitui para ele a
possibilidade de ruptura com a ordem vigente, através justamente da subjetivação de classe.
Como o poeta, Franz Biberkopf não procura mais o abrigo de uma gruta, mas ao
contrário daquele, deixa claro que não deseja ser carregado pela avalanche das coisas. A
destruição do velho mundo, da qual fala o epílogo, não é destruição cega; não se pode dizer
que o final não seja claro do ponto de vista político. Franz rejeita o discurso nacionalista 164,
e o faz com ironia, evocando e alterando os versos da canção patriótica de guerra “Die

162 Lição quase idêntica, diga-se de passagem, àquela encontrada no fim de uma peça de Bertolt Brecht, Die
Maßnahme. Lehrstück (1929-30), in Gesammelte Werke, Bd. II, Prag/London, Malik, 1938, p. 359: “[...] nur
belehrt von der Wirklichkeit, können wir / die Wirklichkeit ändern.” Trad. Ingrid D. Koudela: A decisão. Peça
didática, in Teatro completo, vol. 3, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004, p. 266: “Só ensinados pela realidade é que
podemos / Transformar a realidade.”
163 Cf. Slavoj Žižek, Living in the End of Times, London/New York, Verso, 2010, p. 226.

164 Note-se que já se havia feito mofa do heroísmo patriótico noutros momentos da história, por exemplo, na cena

em que a prostituta e então namorada de Franz, a polonesa Lina, parte com tudo para cima do jornaleiro
vendedor de literatura por ela considerada pornográfica (cf. BA, 77-78/83-84). Ao narrar o episódio o narrador
em terceira-pessoa faz referência explícita ao drama patriótico Prinz Friedrich von Homburg (1809-10), de Kleist,
fazendo com que o caráter cômico da cena realce a absurdidade e o ridículo do ato heróico efetuado em nome da
pátria.
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Wacht am Rhein”, em diversos momentos no livro entoada por ele: “Pátria amada, põe-te
em sossego, tenho olhos abertos e não me meto.” 165 Não se mete com quem? Ora, com os
nazistas, que diziam que o uso do intelecto era coisa de judeus166. Naquele contexto, a
tomada de posição em prol do pensamento – “dem Mensch ist gegeben die Vernunft” – era
em si mesma considerada suspeita.

***

A grande “lição” do livro, se podemos falar nesses termos, não é aquela, tão
sublinhada, da solidaridade; também não é, em última instância, a da consciência de classe
– Biberkopf já era consciente, e o diz com todas as letras em certo momento, do fato da
exploração, de que uma classe enriquece às custas do trabalho da outra etc. A “lição” que
visa a passar Döblin, no fim das contas, não difere muito daquela do amigo Brecht nas
“peças didáticas”, rigorosamente contemporâneas, vale dizer: na verdade o que se propõe é
um experimento, ao cabo do qual o leitor é levado a perceber diferentemente certas
realidades, a refletir sobre elas, a observar de forma crítica as situações nas quais se vêem
envolvidas as personagens, ou seja, deverá ser capaz de medir o que dizem, ou como agem,
de acordo com o contexto no qual se encontram inseridas. Bom artista, Döblin não
estabelece nem prega um qualquer programa político, não aponta uma saída nem fornece
uma imagem da vida reconciliada, haja vista que a formulação desta última supõe antes de
tudo a crítica, o enfretamento da barbárie e a superação prática e efetiva da vida alienada.
Sobre o que acontece com Franz Biberkopf nada se fica sabendo. Morrerá durante os
protestos ao lado dos camaradas de luta? Será preso? Perderá o emprego? Será
determinado o suficiente para sustentar duravelmente o seu engajamento, forte o suficiente
para manter o não-consentimento, para afirmar e reafirmar sua recusa da heteronomia?
Será capaz de viver, até o fim, como aqueles proletários veteranos da Revolução de 1830, ao
mesmo tempo a morte da utopia e a recusa radical da ordem estabelecida167? Fica, aí sim,
em aberto, a cargo do leitor imaginar, se perguntar, refletir a respeito.

165 BA, 454/520: “Lieb Vaterland, kannst ruhig sein, ich hab die Augen auf und fall sobald nicht rein.” Os versos da
canção original são os seguintes: “Lieb‟ Vaterland, magst ruhig sein, / Fest steht und treu die Wacht am Rhein!”
166 Uma canção nazi de 1928 de fato dizia: “‚Intellekt‟. Hinweg mit diesem Wort dem bösen, / Mit seinem jüdisch-

grellen Schein! Wie kann ein Mann von deutschem Wesen / Ein Intellektueller sein!”
167 Veja-se a respeito o belo estudo de Jacques Rancière, La nuit des prolétaires. Archives du rêve ouvrier, Paris,

Fayard, 1981.
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Trata-se assim, mais ou menos como no teatro brechteano, de um experimento


quase científico, demandando olho clínico168 – como Galy Gay, por exemplo, de Um homem
é um homem (1925/38), que de resto também tematiza o poder de sedução do falso coletivo
sobre o indivíduo, Biberkopf passa por uma metamorfose, é dissecado, desmembrado e
recomposto, ganhando no fim uma nova identidade169 –, em todo caso um experimento
revelador, ou ilustrativo, que permite enxergar melhor, em sua complexidade, certas
realidades, situações, assim como certos discursos, ligados a interesses particulares
determinados e assim por diante. Não é à toa, então, que o próprio narrador, no epílogo,
descreva a história de Franz Biberkopf como “um processo de revelação”. E com efeito,
quando se chega ao fim do livro, com Franz a caminhar solidário com os trabalhadores, e à
condição de que o leitor reflita sobre tudo que passou e junte os fios da trama, muito do que
antes parecia solto, disperso no entrecho, se aglutina e se cristaliza numa nova forma,
reaparece sob nova luz: a percepção de que “não se deve fiar no dinheiro ou no
conhaque”170, a luta por não se deixar embasbacar171, a necessidade de sair da toca da vida
privada e ganhar as ruas172, a aspiração a uma vida livre e independente173, a percepção da
vida urbana moderna como alienada, essencialmente marcada pela falta de tempo e pela
sede de entretenimento 174, o que dissimularia o fato de ser em realidade “uma guerra não-
declarada”175 em meio à qual mesmo quando não se morre também não se chega a viver 176.
Fica claro que a postura com relação a tal guerra não declarada, que é a guerra do mercado,
agora é outra: antes, Franz só queria sobreviver, recomeçar a vida e manter-se de pé, de
forma honesta se possível, eventualmente pelo viés do crime, da ilegalidade: “A guerra não
tem fim enquanto vivermos, o importante é ficar firme sobre as pernas.” 177 Agora, ao
contrário, ele se posiciona, sabe que é preciso escolher seu campo, porque a vida do
trabalhador decente é uma indecência, e com a vida do criminoso também não se vai muito
longe; percebe, ademais, que coisas importantes, que concernem a todos, estão

168 Cf. Bertolt Brecht, “Döblin”, in Gesammte Werke, Bd. 18, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1976, p. 63: “er sieht die
Literatur mehr als Arzt als als Schriftsteller.”
169 A ideia da semelhança entre as duas personagens, assim como da obra como experimento quase científico levado

a cabo por meios artísticos, surgiu ao reler Augusto Boal, Theatre of the Oppressed (1974), trad. C. A. & M.-O.
McBride, New York, Theatre Communications Group, 1985, pp. 98-99.
170 BA, 63/67: “man soll nich auf Geld schwören oder auf Kognak”

171 Cf. BA, 133/67: “Das 11. Gebot heißt: Laß dir nicht verblüffen.”

172 Cf. BA, 158-60/176-78.

173 BA, 240-41/275: “Ich bin ein freier Mann oder keiner.”

174 Cf. BA, 23/22: “die Leute in der Stadt keine Zeit haben und unterhalten sein wollen.”

175 BA, 404/463: “es ist unerklärter Krieg”

176 Cf. BA, 390/448: “Er lebt nicht und er stirbt nicht.”

177 BA, 403/461: “Der Krieg hört nicht uff, solange man lebt, die Hauptsache ist, daß man uff die Beene steht.”
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acontecendo no mundo, que o momento, a situação histórica, demandam decisão,


desenlace, tomada de partido178; tem a experiência, aprendeu alguma coisa – se formou?
Não resta dúvida que sim, embora não se forme, desnecessário dizer, à maneira de um
sujeito burguês; a sua não é uma solução de compromisso, tampouco termina por aceitar os
poderes do mundo como se fossem forças naturais, contente com o emprego que lhe fora
concedido apesar de tudo. Franz se forma, mas enquanto sujeito de classe, em ruptura com
a condição dada, que, para falar como Adorno, é “condição falsa”, visto que não condizente
com as possibilidades objetivas (isto é, segundo o nível atingido pelas forças produtivas) de
uma humanidade emancipada. Tal ruptura, aliás, aparece também no nível da forma.

***

No romance-crônica November 1918, monumental tetralogia consagrada à revolução


alemã, escrito na França e nos EUA, entre 1937 e 1943, e publicado integralmente entre
1948 e 1950, Döblin parece rejeitar definitivamente os ideais revolucionários aos quais
aderiu e pelos quais militou na juventude. O livro, que em muitos respeitos, em termos de
composição, assemelha-se ao Berlin Alexanderplatz, oscila entre o romance de cunho
histórico, a crônica jornalística e a narrativa épico-religiosa. No nível do conteúdo, a
revolução é ironizada, satirizada, apresentada de maneira quase grotesca, como uma triste
comédia: Rosa Luxemburgo, por exemplo, é pintada como uma espécie de fanática religiosa
que, assim como o protagonista da história, Friedrich Becker, personagem fictícia, oscila,
como outrora o próprio Döblin, entre dois extremos contraditórios, a saber, entre a
esperança utópica de uma transformação radical da sociedade, por um lado, e, por outro, a
fé religiosa em uma transcendência radical de todas as coisas mundanas 179. Acrescente-se
ainda que a Revolução, com maiúscula, que instaura necessariamente uma temporalidade
de ruptura radical, é também ela negada e banalizada no nível da forma, o entrecho se
reduzindo a uma narrativa cronográfica dos acontecimentos, na qual são deliberadamente
mesmerizados, postos em pé de igualdade, grandes feitos e detalhes menores e sem

178 Cf. Slavoj Žižek, “A escolha de Lenin” (2002), trad. L. B. Pericás e F. Rigout, posfácio a Às portas da Revolução.
Escritos de Lenin de 1917, São Paulo, Boitempo, 2005, pp. 173-342, aqui p. 205: “[...] numa luta histórica
concreta, a atitude de „inocência‟ („Não quero sujar minhas mãos ao me envolver na luta, só quero levar uma vida
modesta e honesta‟) personifica a máxima culpa. Em nosso mundo, não fazer nada não é algo desprovido de
sentido; já tem um significado – significa dizer „sim‟ às relações de dominação existentes.”
179 Cf. Heinz D. Osterle, “Alfred Döblins Revolutionsroman”, posfácio a Alfred Döblin, Karl und Rosa, Munich,

Deutscher Taschenbuch, 1978, pp. 665-95.


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importância180. Deliberadamente, dizíamos, porque escrevendo no final dos anos trinta


Döblin tinha uma visão mais distanciada da coisa que no início dos anos vinte: a ausência
de uma ruptura revolucionária radical em 1918-19 acabou abrindo espaço e dando lugar à
pseudo-ruptura reacionária de 1933, o que não deixa de confirmar o famoso diagnóstico de
Benjamin, segundo o qual todo fascismo seria indício de uma revolução malograda.
Voltando ao Berlin Alexanderplatz, a solução final encontrada por Döblin desde a
publicação do livro até os dias de hoje tem sido questionada, criticada como demasiado
artificial, deslocada, forçada, pouco credível, e assim por diante. Com efeito, em poucas
páginas o protagonista morre, é ressuscitado, ganha um novo nome, arruma um emprego e,
não contente, põe-se a pensar por si mesmo, procura formar seu próprio juízo acerca do
que se passa à sua volta, dá um basta à atitude passiva que fora a sua até ali e se mete numa
manifestação comunista. Mas e se, justamente, ao contrário das leituras correntes, tal
solução abrupta, por assim dizer falha, mas por isso mesmo dissonante, for a mais
adequada, do ponto de vista formal, para, mediante a instauração de uma distância
apropriada em relação a tudo o que acontecera até aquele ponto, expor uma nova
temporalidade, vale dizer, não mais a arrastada, atrelada à finitude da vida quotidiana,
fragmentada, mutilada e pseudocíclica, dos altos e baixos que não levam a nada, eterno
retorno do mesmo, que coincide com a ordem do mito, mas antes uma temporalidade que
se manifesta como ruptura, como negação, assunção crítica e superação efetiva de tudo o
que precede?
O próprio autor, numa famosa carta de 1931, admite não ter conseguido fazer o que
pretendia, a saber, uma transição progressiva do estado passivo-receptivo da personagem
para um em que esta fosse mais proativa. À maneira do segundo Fausto, um Biberkopf
numa nova fase, ativo e resoluto, deveria ganhar uma segunda parte181. Nesse sentido, ainda
que o epílogo possa ser visto, segundo o próprio Döblin, como uma tentativa de estabelecer
uma ponte entre os dois estados, entre as duas partes inicialmente previstas – “der Schluß
ist sozusagen eine Überbrückung” –, poderia tal transição se dar sem uma ruptura radical?
O morrer para a vida que levara até então não constituiria justamente a possibilidade de
uma vida não mais assombrada pela morte? A coisa é dita explicitamente no livro: “Como
pode um homem crescer se não procura a morte? A morte verdadeira, a morte real. Assim
te preservaste a vida inteira, preservar, preservar, eis a receosa aspiração do homem e assim

180 Cf. Michel Vanoosthuyse, “Vingt ans après: Döblin, l‟exil et la „révolution allemande‟”, in Manfred Gangl &
Hélène Roussel (dir.), Les intellectuels et l‟État sous la République de Weimar, Rennes/Paris, Centre de recherche
Philia/La maison des sciences de l‟homme, 1993, pp. 205-24, aqui p. 209.
181 Cf. Alfred Döblin, carta a Julius Petersen, de 18 de setembro de 1931, in Mattias Prangel (Hrsg.), Materialen, op.

cit., pp. 41-42.


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permanece num mesmo ponto e assim não vai adiante.” 182 No caso de Franz Biberkopf, não
é a morte que é superada através duma assunção individual heróica da finitude do ser,
como então pregava o famigerado decisionismo existencialista, que deu onde se sabe; antes,
o que se supera é a mera vida, a vida banal, quotidiana, a vida que não vive, da humanidade
que se debate indefinidamente em estranhamento pois que presa aos grilhões da
autoconservação, que é cegueira, mito, enquanto que ao contrário “apenas aquilo que não
se conserva a si mesmo é que não se perde”183.

(agosto-setembro de 2010)

182 Cf. BA, 430/493: “Wie kann ein Mensch gedeihen, wenn er nicht den Tod aufsucht? Den wahren Tod, den
wirklichen Tod. Du hast dich dein ganzes Leben bewahrt. Bewahren, bewahren, so ist das furchtsame Verlangen
der Menschen, und so steht es auf einem Fleck, und so geht es nicht weiter.”
183 Theodor W. Adorno, Berg. Der Meister des kleinsten Übergangs, op. cit., p. 330, trad. cit., p. 40: “[…] nur das

nicht verloren sei, was nicht sich selbst behält.”


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A fratura da forma
Constituição e implicações da representação da metrópole
em Berlin Alexanderplatz

Gabriela Siqueira Bitencourt 1

Quem já frequentou as páginas de Paysan de Paris2, escrito por Louis Aragon entre
os anos de 1924 e 1925, pode ter percebido como a constituição da figura do narrador
determina, em larga medida, o efeito da representação da grande cidade que era a Paris da
década de 1920. Seu narrador-protagonista, flâneur herdeiro da poesia de Baudelaire,
habita as ruínas dos “locais mundanos, quando a moda começa a abandoná-los”3, afeito a
uma nostalgia em relação aos objetos cotidianos que se tornaram antiquados. Se um
fenômeno característico na vida das grandes cidades é o “embotamento frente à distinção
das coisas”4, o narrador do livro parece buscar algo que supere esta sua condição, certa
essência capaz de configurar uma “mitologia moderna” – tensionando os fios de sua
ambígua relação com a metrópole, que festeja a modernidade, procurando, entretanto, sua
superação5. O narrador de Aragon, como flâneur, é figura peculiar que se destaca na densa
multidão da metrópole (diferença marcada no próprio título: paysan, isto é, um
“camponês”), e é por essa singularidade que, ao atravessar as galerias decadentes, ele é
capaz de observar a significativa inclinação dos objetos, que assinalam na temporalidade do
novo, do mundo da mercadoria, um espaço carregado de esquecimento, “ces plages de
l‟inconnu”6.
Dois anos mais tarde, é outro o trajeto que Alfred Döblin traça nos canteiros de
obras de sua Berlim em descontínua reconstrução, desdobrando a perspectiva pela qual

1 Mestre pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Esse artigo
pretende expor resumidamente um dos argumentos desenvolvidos em minha dissertação de mestrado:
BITENCOURT, Gabriela Siqueira. “Fraturas da metrópole. Objetividade e crise do romance em Berlin
Alexanderplatz.” 2010. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, 2010.
2 Aqui não se pretende uma análise da obra de Louis Aragon, mas apenas uma aproximação, como procedimento

heurístico, para mostrar como há diferenças paradigmáticas na representação do espaço urbano em textos
historicamente tão próximos.
3 BENJAMIN, Walter. “Paris do Segundo Império” in: __. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.

São Paulo: Brasiliense, 1989, Vol. III, p. 25.


4 SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito”. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 5, out. 2005.
5 WALKER, Ian. City Gorged with Dreams: Surrealism and Documentary Photography in Interwar Paris.

Manchester: Manchester University Press, 2002. p. 114.


6 ARAGON, L. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 2007. p. 20.
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pretende transmitir as “situações elementares da existência do ser humano” 7 em dois


vértices ficcionais: uma instância narrativa complexa, que se reconfigura continuamente no
decorrer da história, ora na posição de um narrador convencional, onisciente e mais
próximo do leitor do que do mundo ficcional, ora orquestrando a polifonia dissonante da
cidade; e uma personagem elaborada como anti-herói8, um certo Franz Biberkopf. O
romance tem seu início quando, após cumprir uma pena de quatro anos pelo assassinato de
sua ex-namorada, a prostituta Ida, Franz deixa a prisão de Tegel e reencontra em Berlim
não a enigmática cidade do Paysan de Paris, mas a vertiginosa e ameaçadora configuração
coletiva e anônima que não comporta a contemplação visionária, esquecida de si mesma, do
flâneur de Aragon9.
Os dois livros possuem como “elementos centrais” – explicitados, aliás, em seus
próprios títulos – o nome de um espaço geográfico e a identificação de um indivíduo
(camponês – Paris e Berlin/Alexanderplatz – Franz Biberkopf). Já dissemos que os dois
romances configuram perspectivas bastante diversas, as quais determinam nas obras a
constituição objetiva tanto do espaço quanto das biografias que nucleiam a narrativa. Seus
títulos apresentam a relação entre esses dois elementos com sinais trocados, já que Paris é
um predicado do paysan, e em Berlin Alexanderplatz, os nomes da metrópole e de sua
praça dão o título ao romance, e à personagem – hipoteticamente, principal – é reservado
apenas o subtítulo. O flâneur se configura como quem, embora desejoso da entrega à
multidão, é uma individualidade que se opõe a ela (a multidão não é composta por
flâneurs10); o camponês de Paris representa justamente essa individualidade destacada que
ocupa o cerne do título do romance. Se Döblin “inverte” esses sinais no título, como se
constitui, no romance, tanto relação – carregada de tensão – entre a representação da
metrópole e o desenvolvimento individual da biografia da personagem? Nesta medida, qual
o papel dessa representação específica dos encontros casuais promovidos pela circulação no
espaço urbano – de pessoas, de mercadorias; o primeiro como equivalente do segundo –
para a estrutura convencional do romance?

7 DÖBLIN. Alfred. “A construção da obra épica” in: GREGORY, J. A. O romance o tigre azul como forma estética do
pensamento histórico de Alfred Döblin. 2003. Tese (Doutorado em Literatura Alemã) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003, p. 342. No original: DÖBLIN, Alfred.
Bau des epischen Werkes. . Aufsätze zur Literatur .Olten und Freiburg im Breisgau: Walter, 1963. p. 106.
8 “O modo anti-heróico [...] implica a presença negativa do modelo subvertido ou ausente” (BROMBERT, Victor H.

Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura européia, 1830-1980. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2001. p. 14).
9 De resto, Benjamin já apontara a dependência do pleno desenvolvimento da flânerie à história da urbanização

parisiense. (Ver BENJAMIN, Walter. “O Flâneur” in:__. Charles Baudelaire, op. cit., p. 34).
10 “No fundo, o indivíduo só pode flanar se, como tal, já se afasta da norma.” BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns

temas em Baudelaire” in:__. Charles Baudelaire, op. cit., p. 122.


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A discussão sobre efeitos do adensamento urbano foi marcada pelo ensaio "A
grande cidade e a vida do espírito"11, publicado em 1903 – à época em que Döblin já
começara a escrever seus primeiros textos de ficção. Nele, Georg Simmel discute a
correlação entre a transformação da temporalidade da vivência social no adensamento do
espaço metropolitano, tendo como exemplo maior justamente Berlim, e uma transformação
nas condições de percepção do aparato cognitivo individual, cuja consequência poderia ser
observada também na alteração das relações intersubjetivas. Seus argumentos assinalam o
caráter autônomo e anônimo da metrópole – opondo-a a uma cidade como fora Weimar em
seu período clássico, associada em definitivo à figura de Goethe. Segundo Simmel, se uma
das características da metrópole é a ausência de mediações subjetivas entre sua importância
simbólica e sua existência objetiva, circunstâncias individuais não devem agir sobre sua
constituição última. E é por insistir em “preservar a autonomia e a peculiaridade de sua
existência”12, no interior de um tal campo adverso ao desenvolvimento da individualidade, à
distinção qualitativa das coisas, que resultariam os “problemas mais profundos da vida
moderna”13. Esse ensaio sintetizou um tipo de reflexão sobre o advento da metrópole, que
se tornou paradigmática no início do século XX e que está indiretamente relacionada à
construção formal da metrópole no romance Berlin Alexanderplatz. A intenção deste artigo
é mostrar quais são e como são organizados os expedientes utilizados no romance de Döblin
para a representação literária da metrópole e como estes, por fim, atuam na constituição da
própria biografia individual de Biberkopf.

***

Analisada por Volker Klotz como indicativo da relação entre “indivíduo concreto” e
“coletivo concreto”14, retratada no romance, essa composição ambivalente do título
assinalaria a interdependência dos dois termos – Berlim/Alexanderplatz e Biberkopf,
coletivo e indivíduo, anonimato e pessoalidade. Ainda segundo o crítico, a importância do
livro reside justamente aí: em ser o primeiro e, até a publicação do estudo, único romance
alemão que fez da cidade seu assunto. E, para Klotz, ele o fez dando importância igual a
indivíduo e metrópole, sem que um se tornasse coadjuvante do outro.

11 SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito”, op. cit.


12 Idem, ibidem, p. 577.
13 Idem, ibidem, p. 578.
14 KLOTZ, Volker. Die erzählte Stadt: Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis Döblin.

München: Carl Hanser, 1969. p. 373.


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Ainda em relação ao título15, gostaria de destacar uma ressonância, sobretudo


formal, que o torna algo tão representativo. Trata-se de um paralelismo entre sua dupla
estrutura e o desdobramento da instância narrativa em, digamos, duas figuras 16. Uma das
figuras dessa instância narrativa, aludindo ao subtítulo, é responsável pelo
desenvolvimento de um relato biográfico, e é determinada pela estrutura sintaticamente
linear e, em relação ao gênero do romance, formalmente convencional, da “história de
Franz Biberkopf”. Ela é anunciada, no prólogo do livro, por um narrador que aparece como
o apresentador de um teatro de marionetes, tendo diante de si um pequeno palco de
cortinas fechadas, um mundo em miniatura sobre o qual se debruça, comentando aquilo
que ganhará vida com o movimento dos títeres atados a fios invisíveis. A personagem
principal da Moritat que este narrador irá cantar é Franz Biberkopf, ex-operário de
construção e transportador de móveis que levara uma “insensata vida” 17 e, sendo libertado
da prisão de Tegel, procurará “ter uma vida decente”18. Perseguido, entretanto, por uma
força abstrata que “vem de fora, algo imprevisível e que mais parece com um destino” 19,
Biberkopf terá de enfrentar três sérios golpes em seu plano de vida, terá de ser novamente
confinado (desta vez, em um manicômio) para, por fim, retornar a Berlim, se não como um
novo homem, ao menos com um novo nome.
Essa, a matéria “convencional” do romance. Ocorre que seu desenvolvimento é
interrompido a todo momento por uma estrutura formal que justapõe não apenas as vozes
daqueles que caminham por Berlim mas também diversos elementos (jornais, cartazes,
canções, manuais) que circulam como transeuntes pela metrópole e que serão apropriados
como componentes discursivos no interior da própria voz narrativa. E é o expediente
mobilizado para representar a simultaneidade da presença de todos esses elementos na
metrópole, presente in nuce no título do livro, que importa à discussão deste artigo.
Há na construção sintática do título Berlin Alexanderplatz um método de
composição que permeará toda a estrutura do romance, variando em vigor: a justaposição
de elementos, que podem ser tanto ficcionais como não ficcionais. De fato, o título do livro
justapõe dois nomes próprios, dois elementos não ficcionais: o da cidade de Berlim, tantas

15 A intenção original de Döblin era de que seu livro se chamasse apenas Berlin Alexanderplatz. Foi, entretanto, por
insistência de seu editor, Samuel Fischer, que não via grande chance de sucesso comercial para um livro em cujo
título não figurasse a sugestão de uma aventura romanesca, que o autor incluiu o subtítulo A história de Franz
Biberkopf (Die Geschichte Von Franz Biberkopf). Embora o título composto tenha sido imposto à publicação do
romance, o resultado da matemática entre intenção primeira do autor e imposição comercial do editor parece ser
significativo em relação à narrativa do livro.
16 Essa diferença é “sobretudo formal” porque tal distinção só pode ser encontrada nos elementos de composição do

próprio texto.
17 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 9 .
18 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 9.
19 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 9.
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vezes caracterizada como “a metrópole da Modernidade”20, e o de sua praça mais famosa,


Alexanderplatz, centro da região leste, reduto de pequenos comerciantes21. Não são
separados por vírgula ou travessão, tampouco há conectivo sintático que realize a passagem
de um termo ao seguinte: trata-se de uma simples agregação de elementos por
acumulação22. Da mesma forma como agrega elementos, criando uma estrutura pela
justaposição dos dois nomes próprios no título, durante todo o romance o autor trabalhará
recolhendo fragmentos do cotidiano (pequenas notícias de jornais, previsões do tempo,
discursos políticos, anúncios), que serão encadeados em uma organização paratática entre
si e em relação à própria fábula ficcional de Franz Biberkopf.
Essa estrutura de apreensão da realidade na forma é realizada pela utilização de um
expediente que aparecerá mais timidamente na história de Biberkopf (como veremos na
análise do Livro I) e com maior autonomia em certos trechos a partir do Livro II. O que
caracteriza esse novo expediente é a apropriação de elementos extraliterários e, muitas
vezes, não-ficcionais (notícias de jornais, fórmulas científicas, mas também trechos de
obras da tradição literária e religiosa, canções de cabaré e de guerra) para fazer com que a
realidade seja inserida como obra, no caso do romance, como narrativa, e não como
“realidade narrada”. Vejamos, portanto, alguns exemplos dessa configuração.
A narrativa propriamente dita do Livro I começa com a imagem de Biberkopf
deixando a prisão de Tegel, de onde acabava de ser libertado. O motivo central
desenvolvido nesta primeira seção do romance será sua tentativa de reintegração à ordem
da cidade, para a qual ele é obrigado a retornar. O primeiro parágrafo deste Livro nada
explica, apenas mostra:

Estava diante do portão da prisão de Tegel, livre. Ontem ainda passava o ancinho na hora de
batatas lá trás com os outros, com uniforme de presidiário; agora andava com um casaco
amarelo de verão, lá trás eles catavam batatas, ele estava livre23.

A narrativa, marcada por um caráter descritivo, não oferece explicações ao leitor.


Isso se explicita, por exemplo, pelo uso do pronome “ele”, pelo início da narrativa in media

20 “Groβstadt der Moderne” in: SCHERPE, Klaus. „Berlin als Ort der Moderne“, In: Pandemonium Germanica, nº7,
São Paulo: Humanitas, 2003, pág. 18. Ver também: BECKER, Sabina. „Berlins Entwicklung zur Metropole“.
Urbanität und Moderne: Studien zur Groβstadtwahrnehmung in der deutschen Literatur 1900-1930. St. Ingbert:
Röhrig, 1993. p. 27.
21 E não do proletariado, como observa Walter Benjamin: “não é um bairro industrial, e sim comercial, habitado

pela pequena-burguesia”. BENJAMIN, Walter. “Crise do Romance. Sobre Alexanderplatz, de Döblin” in:__.
Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 58.
22 O filme produzido sobre o enredo romance, em 1931, de Phil Jutzi, recupera, com o uso do travessão, a sintaxe

corrente (encontrada em mapas, guias turísticos etc.) que seria “Berlin – Alexanderplatz”.
23 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 13.
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res e pela construção curta das frases. Não há orações subordinadas, que estabeleçam
relações predicativas ou determinações causais (“estava parado diante do portão da prisão
de Tegel”, porque tinha sido libertado). Embora esse tipo de elaboração apresente alguma
dificuldade de compreensão (em um primeiro momento), já que carece de esclarecimentos
e recorre ao uso do discurso indireto livre, ainda é um modelo narrativo compreensível para
o leitor. Contudo, o parágrafo seguinte – parágrafo de uma única oração: “a pena começa” 24
– instaura uma ruptura na elaboração formal do discurso.
O terceiro parágrafo é aberto então por frases bastante curtas – brevidade sintática
que tem por objetivo figurar a velocidade do movimento de Franz ao subir no bonde e a
irregular sequência de imagens por ele observada quando já está dentro do veículo:

Estremeceu, engoliu em seco. Tropeçou no próprio pé. Então tomou impulso e sentou-se no
bonde elétrico. No meio das pessoas. Adiante. [...] O vagão fez uma curva, árvores, casas
intercalavam-se. Ruas animadas surgiam, a Seestraβe, pessoas subiam e desciam. Dentro
dele, o grito soava terrível: atenção, atenção vai começar. A ponta de seu nariz gelou, sua
bochecha vibrava. “Jornal vespertino do meio-dia”, “B. Z.”, “A mais nova revista”, “a
Funkstunde”, “subiu mais alguém”. Os policiais agora vestem uniformes azuis. Desceu do
vagão sem que ninguém percebesse, estava no meio das pessoas. E daí? Nada. Olhe a
postura, seu porco esfomeado, vai sentir o cheiro do meu punho no nariz. [...] Meu miolo
parece que não tem mais banha, deve ter secado por completo. O que era tudo isso? Lojas de
calçados, lojas de chapéus, lâmpadas, lojas de bebidas destiladas. 25

A partir desse momento, a cidade aparece como uma profusão caótica de sons e
imagens. As falas provenientes das mais diversas origens são colocadas entre aspas, mas
não são introduzidas por um enunciado como “disse o jornaleiro”, como seria característico
do discurso direto. Elas são simplesmente integradas à malha da narrativa, constituindo-a.
O corte abrupto entre cenas é um expediente importante, utilizado durante todo o romance
e introduzido logo no terceiro parágrafo, anteriormente citado.
Nessa breve cena, Biberkopf é levado pelo bonde para o a região central da cidade. A
brevidade das orações corresponde, portanto, à velocidade do bonde, mas também à
simultaneidade da percepção do próprio Biberkopf. O trecho destacado compõe a presença
imediata de imagens, de vozes, de pensamentos, e sua novidade resulta de um esforço de
reorganização formal que fosse capaz de plasmar a velocidade da percepção da personagem.
Esse esforço de reorganizar a estrutura do texto decorre do fato de que a linearidade
sintática, que denota um encadeamento temporal – e, no mais das vezes, causal –, e que é
convencionalmente constitutiva da forma narrativa, impõe um obstáculo à representação
das impressões simultâneas que o ritmo e a aglomeração da grande cidade implicam.

24 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 13.


25 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 13 - 14.
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A narrativa de Berlin Alexanderplatz precisou romper com a temporalidade


progressiva que a linearidade convencional da linguagem condiciona para representar a
simultaneidade das impressões de Biberkopf ao retornar a Berlim. A forma encontrada é a
descontinuidade de cenas ou mesmo de frases. A partir do corte abrupto, que rompe a
estrutura sintática, quebrando a expectativa de conclusão do leitor, surge uma nova
estrutura, ou nova cena, que também sofrerá um corte abrupto, e assim por diante. É a
partir dessa modulação da narrativa pela incompletude, pela ruptura, que é instaurado
formalmente o choque da integração de Biberkopf ao espaço da metrópole. Tendo em vista
que a narrativa segue colada à percepção de Biberkopf, a sensação de espanto é formalizada
e assim é produzida também no leitor. Ele partilha, na linguagem, a perplexidade da
personagem diante de uma ordem de fenômenos que é incapaz de compreender 26. Berlim
aparece, então, como profusão desordenada de estímulos, distorções elaboradas pela
projeção do desconcerto em que se encontra o próprio Biberkopf. É curioso que nos dois
primeiros capítulos, embora em ambos Biberkopf já esteja em Berlim, seus títulos, “No 41
até a cidade”27 e “Ainda sem chegar”28, pareçam ressaltar que estar no centro da cidade não
implica fazer parte dela e que a personagem principal ainda se move como se estivesse em
suspensão em relação ao espaço da cidade. Nestes dois capítulos do Livro I, Biberkopf toma
o bonde que o levará ao centro da cidade e vaga, perdido, até encontrar Nachum, um judeu
que o acolherá para lhe instruir moralmente por meio da parábola de Zannovich. Após o
encontro e a precária estabilização emocional de Biberkopf, a narrativa também muda. O
corte abruto de imagens visuais e representações sonoras cede lugar às vozes dos indivíduos
que Biberkopf vai encontrando conforme caminha pela cidade:

Olhe só, estão construindo o metrô, então deve ter trabalho em Berlim. Ainda havia um
cinema, entrada proibida para menores de 17 anos. [...] Um homem para a bilheteira:
“Senhorita, não é mais barato para um velho soldado sem barriga?”. “Nada, só para crianças
com menos de cinco meses, com chupeta.” “Feito. É a idade certa. Recém-nascidos a
prestação.” “Pois bem, cinquenta, vá entrando”. Atrás dele, esgueirava-se um jovem, esbelto,
de cachecol: “Senhorita, quero entrar, mas não pagar”. “E daí? Peça para sua mãezinha pôr
você no penico”.29

Neste trecho, a diferença é bastante clara. A narrativa acompanha a caminhada de


Biberkopf e sua consciência é reproduzida na voz narrativa pelo uso do discurso indireto
livre (“então deve ter trabalho em Berlim”). As falas que ele escuta enquanto está na fila do

26 “Depois que Biberkopf, no primeiro livro, amedrontado e inseguro, tateando pelas ruas lotadas, percebeu uma
Berlim subjetivamente desfigurada, a cidade como que se apresenta no princípio do segundo (Livro).” KLOTZ, V.
Die erzählte Stadt, op. cit., p. 375 (Tradução nossa).
27 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 13.
28 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 17.
29 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 32.
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cinema são todas reproduzidas entre aspas. A cidade, entretanto, aparece menos veloz
(“Um bonde passara lentamente”30) e um pouco mais compreensível para Biberkopf.
Há uma série de recursos que se combinam: o efeito de neutralidade, a agilidade da
linguagem (pelo uso de frases curtas), que gera a impressão de movimento, e a apropriação
dos fragmentos da realidade (vozes que conversam na frente do cinema, descrição de uma
cena em que pessoas comem no bar, observação sobre os policiais de uniforme azul). E são
todos compostos sem que se definam os limites entre os elementos apresentados. Quando a
narrativa rompe a completude da ordem sintática, ela torna também o objeto representado
descontínuo e, por meio dessa sobreposição, cria-se a impressão de caos.
Contudo, a realidade é caótica e incompreensível não em si mesma, mas para Franz,
cuja perspectiva é dominante. Dominante porque os fragmentos que aparecem recolhidos
da cidade e que figuram nestes trechos do Livro I, notadamente do primeiro capítulo,
surgem apenas na medida em que Franz ouve o anúncio dos jornaleiros (“Jornal vespertino
do meio dia”) ou vê, pela janela do bonde, os policiais (“Os policiais vestem uniformes
azuis”). A única consciência que age e é representada imediatamente, agora pelo discurso
indireto livre, é a dele. Do mesmo modo, se temos acesso aos pensamentos da prostituta
com a qual Biberkopf encontra, é por meio do discurso direto, ou seja, pela mediação do
narrador: “Ela pensava, a cabeça sobre o travesseiro: os sapatos amarelos bem que podem
ganhar meia sola”31. Em outras palavras, esse discurso “desordenado” corresponde ao
desajuste do próprio Franz. E isso mimetiza algo que tematicamente podemos descrever
como desajuste em relação ao espaço da metrópole: Biberkopf sente medo quando entra em
Berlim – medo explicitado pela vertigem que o abala, quando acha que os telhados das
casas vão desabar32, e pela fuga para o interior dos pátios das casas33.
Um pouco mais adiante, esse desajuste é manifestado pela impotência sexual de
Biberkopf. Entrando na cidade como quem entra em uma máquina de desejos (o anúncio
constante de produtos, a visibilidade dos bares, os filmes eróticos, a oferta das prostitutas
espalhadas pelas ruas), a inadequação de Franz é expressa como impotência sexual. É um
ato de violência que marca a inserção de Biberkopf: o estupro da irmã de Ida (antiga
namorada e prostituta, que ele explorava e que matou em uma briga) – relação sexual
forçada em um primeiro momento e, depois, relativamente concedida. No momento em que

30 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 32.


31 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 35.
32 “E sobre as casas havia telhados, que pairavam sobre elas, seus olhos vagueavam para cima: que os telhados não

escorreguem e desabem, mas as casas estavam firmes e retas”. DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 15.
33 “Assim o homem ficou parado no vestíbulo da casa, não ouvia o terrível barulho da rua, as casas malucas não

estavam lá.” DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 16.


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estupra Minna – como projeção de Ida – Franz finalmente supera a impotência sexual e
começa sua tentativa de “conquistar” também a cidade – explicitada nos títulos dos
capítulos: “Vitória em toda linha”34 e, mais adiante, “Terceira conquista de Berlim”35 –,
quando ele decide “tornar-se um homem decente”. A ruptura que, portanto, assinala o fim
desse primeiro momento de reencontro com a cidade e do Livro I, marca a reintegração de
Franz, e nessa medida, o Livro II trata dessa integração ao mundo, agora compreensível
para Franz, da região central de Berlim.
Essa ruptura se manifestará tanto no plano temático quanto no plano formal.
Tematicamente porque no Livro II, aberto pelo título “Franz Biberkopf entra em Berlim”36,
Franz volta a circular despreocupado, sentindo-se em seu elemento e determinado a
encontrar um trabalho novo e “decente”; formalmente porque ele deixa de ter a perspectiva
dominante. A partir do Livro II, a utilização dos fragmentos do cotidiano se intensifica e
radicaliza e, então, os próprios fragmentos discursivos da cidade se tornam a narrativa,
independentemente da consciência de Franz, como será mostrado mais adiante. Se a
consciência da prostituta, no Livro I, era acessada apenas pela mediação do narrador (“Ela
pensava, a cabeça sobre o travesseiro: os sapatos bem que podem ganhar meia sola”), a
partir do Livro II, as outras personagens passam a compor imediatamente a voz narrativa.
Essas outras personagens deixam de ser simples satélites, cujo movimento centrípeto
nomeia sempre a biografia de Franz, e acabam apropriadas como fragmentos constituintes
da narrativa, de forma que permanecem tematicamente alheias ao desenvolvimento da vida
do “antigo operário de construção”, relativizando sua centralidade. Por conta desse
deslocamento e da neutralidade, cria-se um efeito dramático, cênico. O meio pelo qual isso
ocorre é a alternância de pontos de referência, em uma elaboração em que se entremeiam
as descrições neutras do narrador observador e a perspectiva das personagens que ele
mobiliza no romance como “refletores”, ou seja, como pontos intercambiáveis das quais
depende a apreensão dos fatos. Utilizando, por meio da técnica da onisciência múltipla, o
fluxo de consciência de diferentes personagens, o narrador domina um aparato cognitivo
subjetivo múltiplo que apreende as cenas a partir de diferentes campos.
Por alternar entre o recurso a um narrador aparentemente neutro – cuja função seria
a de apenas criar uma apresentação panorâmica dos momentos nos quais se desenvolvem
os acontecimentos – e essa onisciência múltipla, a narrativa se torna complexa, e o leitor
leva tempo para se acostumar.

34 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p 38..


35 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 272.
36 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 51.
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Franz agora vende jornais nacionais-populistas. Não tem nada contra os judeus, mas é a
favor da ordem. Pois é preciso haver ordem no paraíso, isto qualquer um tem de reconhecer.
E o capacete-de-aço, ele bem que viu os rapazes e seus líderes também, é uma coisa e tanto.
Ele está na saída do metrô da Postdamer Platz, junto à passagem da Friedrichstrasse, sob a
estação da Alexanderplatz.37

Franz tem um olhar bem firme, fixa os olhos longamente no amolador, que gagueja e vira a
cabeça: “a história de Arras, é essa que quero saber. Ainda vamos apurar isso. Se você esteve
lá!”. “Você está delirando, Franz, retiro o que disse, você deve ter bebido além da conta.”
Franz aguarda, reflete, logo vou lhe pregar uma peça, esse aí faz de conta que não está
entendendo nada, dá uma de espertinho. “Pois, naturalmente, Orge, é evidente que tivemos
em Arras com Arthur Böse e Bluhm e o pequeno primeiro-sargento, como se chamava
mesmo, era um nome esquisito.” “Esqueci.” Deixe esse cara falar, ele bebeu além da conta,
os outros também percebem isso. “Espere aí, o nome dele é Bista ou Biskra, ou coisa que o
valha, o pequeno.” Deixe esse cara falar, não digo nada, logo ele vai se embaraçar, daí não vai
dizer mais nada.38

Nestes dois trechos, a narrativa mobiliza as estratégias anteriormente apontadas,


como o narrador onisciente (“Franz aguarda, reflete”), mas de perspectiva neutra, que neste
momento específico assume a posição de simples observador, cuja função é apresentar os
fatos; o discurso indireto livre (“é preciso haver ordem no paraíso, isto qualquer um tem de
reconhecer”) assim como o fluxo de consciência (“deixe esse cara falar, ele bebeu além da
conta, os outros também percebem isso”) para ampliar o efeito de objetividade da cena,
pela ausência de uma instância mediadora, pois tudo é transmitido diretamente ao leitor.
Por meio do discurso indireto livre, a voz das personagens torna-se parte do discurso do
narrador:

Eles aprovam como uma bênção tudo o que Franz faz. Eva, que ainda ama Franz, gostaria
sinceramente de ajudá-lo a arranjar uma garota. Ele resiste, conheço essa garota, não, essa
você não conhece, Herbert também não, como você pode conhecê-la, não, faz pouco tempo
que ela está em Berlim, é de Bernau, só vinha de vez em quando para cá até a estação
Stettin.39

Esse método de composição já presente no Livro I e que se baseia no corte de cenas e


frases e no emprego de diferentes estilos e recursos narrativos, assim como na apropriação
das vozes dos transeuntes e interlocutores de Biberkopf, será radicalizado a partir do Livro
II. Surge então uma estrutura que justapõe não apenas as vozes daqueles que circulam por
Berlim mas também de diversos elementos (jornais, cartazes, canções, manuais) que
circulam como transeuntes pela metrópole e que serão apropriados como elementos
discursivos no interior da própria voz narrativa. Finalmente aqui será trazido em sua força
o expediente que vemos sintetizado no título do livro.

37 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 89.


38 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 91.
39 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 292.
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A fim de investigar como se constitui a representação da metrópole em si e como esta


afeta a outra figura narrativa do romance, aquela que acompanha o percurso biográfico de
Biberkopf, podemos destacar a importante estrutura do primeiro capítulo do Livro V,
comparando alguns de seus recursos aos outros capítulos – comparação que ajudará a
comprovar que as particularidades de cada um desses trechos concorrem para engendrar o
mesmo efeito.
Tanto o Livro II quanto o Livro V mostram Biberkopf reintegrado, após ter superado
os obstáculos de sua recém-conquistada liberdade, no primeiro, e após se recuperar da
traição de Lüders, no segundo. Isso significa que, nesses dois Livros, Franz se torna parte
da ordem da metrópole e, nessa medida, sua história oscila como elemento intercambiável
entre outras histórias e elementos da organização urbana, sua própria biografia como
fragmento recolhido das ruas da cidade. Vale ressaltar que Biberkopf não se encontra
totalmente ausente destes trechos, e pode até ser citado, mas o foco não é sua história40.
Uma das relações que podemos estabelecer entre os dois capítulos diz respeito a seus
próprios títulos: “Reencontro na Alex” e “Franz Biberkopf entra em Berlim”, assinalando a
inclusão em um espaço geográfico determinado da cidade. Além disso, o uso do substantivo
“reencontro”, derivado do verbo “wiedersehen” (reencontrar), ao marcar certa
impessoalidade também alude a uma frase daquele primeiro capítulo – frase significativa
dentro do romance: “A Rosenthaler Platz se diverte”. O uso do verbo em sua forma
reflexiva, fazendo com que, na oração, Rosenthaler seja “agente”, acaba por sugerir uma
personificação do espaço, uma antropomorfização da própria cidade. Essa transformação
do espaço físico em agente da frase cria o efeito de uma autossuficiência e autonomia da
metrópole; afinal, quem se diverte é a própria praça, independentemente de quem esteja
passando por lá. No Livro V, o substantivo “Wiedersehen” (de evidente origem verbal),
além de significar essa autonomia, pode, por sua forma, referir-se tanto a Franz, que
finalmente deixa o quarto onde estava escondido para tentar, pela segunda vez,
“conquistar”41 Berlim, como também àquela miríade de anônimos que transita pela rede
verbal tecida no Livro IV (e que apresenta uma construção bastante semelhante à dos
Livros II e V), em cujo primeiro título lemos “Um punhado de gente em torno da Alex” 42.
O primeiro período deste primeiro capítulo do Livro V é breve:

40 Isso ocorre, por exemplo, no primeiro capítulo do Livro IV: “Sobre as lojas e atrás delas, no entanto, há moradias,
no fundo temos ainda pátios, edifícios transversais, anexos, casas de fundo, caramanchões. Linienstrasse, ali está
a casa onde Franz Biberkopf se refugiou após a confusão com Lüders.” DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p.
136.
41 Trata-se do já citado título do sexto livro é “Dritte Erorberung Berlins”, assinalando a relação para com a cidade e

enfatizando, de resto, o motivo bélico, que ganhará força no último capítulo.


42 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 115.
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Brumm, brumm, moureja o bate-estacas a vapor diante do Aschinger na Alex. Tem a altura
de um andar e crava as estacas no chão como se nada fossem.43

Característico desse primeiro trecho é o uso da onomatopeia, representando o som


emitido pelo bate-estacas a vapor e retomando, de certa forma, outro aspecto essencial do
Livro II: a utilização de signos iconográficos 44 que representam os serviços públicos da
cidade de Berlim45. O que ambos os elementos (os signos iconográficos e a onomatopeia)
guardam em comum é o ato, com consequências importantes para a forma do romance, de
tentar suspender o caráter descritivo e, portanto, mediador da linguagem. A linguagem do
romance deixa de realizar a mediação entre a realidade e o leitor, para se tornar a própria
coisa representada. Enquanto a onomatopeia faz uso de uma figura de linguagem que
procura abolir a arbitrariedade do signo por meio de uma associação (mais ou menos
objetiva) ao som emitido pelo objeto a ser representado – em nosso caso, o bate-estacas a
vapor –, o recurso das imagens logra a suspensão da descrição ao evitar por completo a
mediação linguística.
No Livro V, todo seu primeiro trecho46 parece aproveitar uma composição visual
afeita a uma técnica cinematográfica para elaborar até mesmo a articulação entre os
parágrafos. A título de ilustração, pode-se estabelecer uma analogia entre o deslocamento
do eixo (não do “foco narrativo”, que permanece sendo o da visada panorâmica) e o
deslocamento de uma câmera de cinema. Se a cena do primeiro parágrafo remete a um
close-up, que capta a imagem autônoma da máquina, ela é seguida por um extreme long
shot: uma tomada que se afasta do objeto centralizado, ampliando a imagem e
estabelecendo um quadro panorâmico, capturando o trânsito das pessoas que circulam pela
praça. O terceiro parágrafo retoma o movimento da máquina, mas ainda com uma
perspectiva panorâmica, de forma que ainda capta os transeuntes:

Ar gélido. Fevereiro. As pessoas passam de sobretudo. Quem tem usa peles, quem não tem
não usa. As mulheres usam meias finas e passam frio, mas é bonito. Os vagabundos
esconderam-se do frio. Quando esquentar, meterão os narizes de fora novamente. Enquanto
isso bebericam ração dupla de conhaque, mas que conhaque, nem mesmo um cadáver
gostaria de nadar nele.47

43 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 185.


44 NOMURA, Masa. Berlin Alexanderplatz, Linguagem funcional e literatura. Presença do cotidiano no texto
literário. São Paulo: Annablume, 1993. p. 116-139.
45 “Esse mapa de instituições, como se vê normalmente no gabinete do prefeito, é incluído aí sem qualquer

intermediação épica. É intermediado pelo narrador apenas por uma leve estilização”. KLOTZ, Volker. Die erzählte
Stadt, op. cit., p. 375 (Tradução nossa).
46 Reproduzidos nas notas 44, 48 e 50.
47 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 155.
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Há uma nebulosa interposição e sobreposição de enunciados de caráter bastante


diverso, mas cuja função não é explicitada pelo texto – ao menos não à primeira vista. Nos
fragmentos aqui destacados, apresenta-se uma voz narrativa informativa e aparentemente
neutra, captando e reproduzindo a realidade objetiva dos acontecimentos, como “Ar gélido.
Fevereiro”48. Ocorre que este enunciado é continuamente recortado, por exemplo, por
frases exclamativas (“nem mesmo um cadáver gostaria de nadar nele”), que sugerem a
apropriação das vozes das pessoas que circulam pela praça, as quais haviam sido
capturadas pelo olhar neutro do narrador no início deste trecho (“as pessoas andam de
sobretudo”).
O que torna tão singular essa voz é justamente esse estatuto híbrido, ou seja, sua
constituição amorfa, capaz de se reconfigurar continuamente para adaptar-se com maior
grau de objetividade aos diferentes fatos representados. A propósito dessa característica do
narrador, gostaria de avançar para o parágrafo seguinte, exemplo significativo da fatura
narrativa do romance.

Brumm, brumm, martela o bate-estacas a vapor na Alexanderplatz. Muitas pessoas têm


tempo e ficam olhando o bate-estacas martelar. Lá no alto, um homem puxa uma corrente,
então sai uma baforada de vapor em cima, e zás, a estaca leva um golpe na cabeça. Depois,
fica tão pequena quanto a pontinha de um dedo, leva mais um golpe, aí seja o que quiser. Ao
final, desaparece, caramba, serviço finamente realizado, como um produto em conserva,
seguem em diante satisfeitos.
Tudo está coberto de tábuas. A Berolina ficava diante do Tietz, uma mão estendida, era uma
mulher colossal, levaram-na dali. Talvez a derretam e façam medalhas com ela.49

A sintaxe desses longos trechos, compostos por materiais colados das mais diversas
origens, é constituída por vozes que se interpõem, sem qualquer elemento linguístico que
estabeleça a fronteira entre os enunciados da figura do narrador e das personagens
anônimas que compõe o romance, fazendo com que muita vez seja difícil (e, quem sabe,
ofício duvidoso) determinar quem enuncia esta ou aquela sentença. É esta uma das formas
que o autor possui de dar estatuto narrativo ao fenômeno da cidade, imprimindo-lhe, nesse
movimento, uma personificação: “Berlim não é descrita. Ela se impõe” 50. Nos trechos
seguintes, quando interpenetrada pela fala das figuras anônimas que transitam pela cidade,
a voz narrativa torna-se espaço de locução para todo o tipo de anúncio e propaganda que
compõe a praça, seja visual ou sonoramente:

Vrumm, Vrumm, os elétricos, bondes amarelos com vagões atrelados, rolam sobre a
Alexanderplatz coberta de tábuas, é perigoso saltar deles. A estação estende-se livre por

48 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 155.


49 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, 185.
50 SOUZA, Celeste H. M. R. Alfred Döblin, Berlim Alexanderplatz e o romance de montagem. 1995. (Trabalho

apresentado no Encontro nacional da Anpoll). In: Anais João Pessoa : ANPOLL, 1995. p. 522
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ampla superfície, via de mão única em direção à Königstrasse, passando pelo Wertheim.
Quem se dirige ao leste precisa desviar por trás à altura do comando da polícia, através da
Klosterstrasse. Os trens rumorejam da estação até a Jannowitzbrücke, a locomotiva solta
baforadas de vapor, está agora por cima do Prälat, Cervejaria Schlossbräu, entrada na
próxima esquina.
[...]
Demoliram Loeser e Wolff com a placa de mosaico, vinte metros adiante, ele se reergue outra
vez, do outro lado, diante da estação, já existe outro. Loeser e Wollf, Berlim-Elbing,
qualidade de primeira para todos os gostos: Brasil, Havana, México, Pequeno Consolo,
Liliput, Charuto n. 8, 25 pfennigs a unidade, Balada de Inverno, embalagem com 25
unidades, cigarrilhos n. 10, não selecionado, folha de Sumatra, um produto especial neste
preço, em caixas com cem unidades, dez pfennigs.51

A descrição do movimento dos bondes, a nomeação das ruas e de seus


estabelecimentos, tudo parece reforçar a espacialidade do texto. A interposição dessas
descrições, aliada à precisão das frases, cria o efeito de velocidade, caracterizando uma
temporalidade acelerada, dominante nesta narrativa. Uma das características mais
importantes deste trecho, de efeito claramente cênico, é prescindir de um ponto fixo de
enunciação. A ausência de um ponto fixo de referência faz com que haja a impressão de
independência em relação a uma subjetividade reguladora, alcançando um efeito de
objetividade neutra, de fato como se uma câmera percorresse o espaço da praça, detendo-se
ora em um objeto, ora em um transeunte.
Essa multiplicidade heterogênea de estilos e materiais é conduzida por uma voz
neutra, que dá breves indicações espaciais e temporais, sumários narrativos sem
intromissões ou comentários. A narrativa varia entre diferentes configurações:

a) o “diretor de cena”52 (Alexanderplatz, 1929, um frio do cão) aparece intercalado à


consciência das personagens (aqui a voz do jornaleiro se mistura ao sumário narrativo):

Ele se afasta, é melhor que mande engraxar as botas, deve passar a noite no abrigo Palme da
Fröbelstrasse, sobe no bonde. Este, por certo, viaja com o bilhete errado ou achou algum na
rua, ele que tente. Se o apanharem, terá perdido o bilhete certo. Sempre esses espertalhões e
mais dois agora. Qualquer hora mando fazer uma grade aqui na frente. Vou tomar o café da
manhã.

b) diálogos que variam entre discurso direto, discurso indireto e discurso indireto
livre (no primeiro exemplo, o discurso direto; no segundo, uma mistura dos três tipos
discursivos):

1) São dois homens de mais idade, operários de construção da Rosenthaler Strasse. O outro
desaprova o que aquele diz: “É um caso triste, se vir uma coisa dessas no teatro ou ler no

51 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 186.


52 FRIEDMAN, Norman. “Point of View in Fiction: The Development of a Critical Concept”. PMLA, v. 70, n. 5, p.
1.169-1.170, Dec. 1955. p. 1776.
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livro, então vai cair no choro”. “Você talvez. Olhe Max, será que alguém ia chorar por causa
de uma coisa dessas?53

2) Certa noite, lá está Reinhold a seu lado no metrô Alexanderplatz, em frente à Landsberger
Strasse, perguntando-lhe se tem programa para a noite. Ora, ora, o mês ainda nem acabou, o
que há, e, na verdade, Cilly está esperando por Franz – mas ir junto com Reinhold,
naturalmente, a todo prazer. E caminham devagar a pé – o que o senhor acha, para onde –
descem caminhando pela Alexanderstrasse em direção à Prinzenstrasse. Franz fica
insistindo até descobrir aonde Reinhold quer ir. “Vamos até o Walter Dançar?” Ele quer ir
até o Exército da Salvação na Dresdener Strasse! Quer ouvir o que dizem. Que coisa. Bem a
cara do Reinhold. Cada ideia que ele tem.54

c) canções:

E então vamos nós, vamos nós, olê, olê, olá, alegria, alegria, olê, olá. E assim vamos nós,
alegria, alegria, olê, olê, olá (...)
Movimentavam os braços no ritmo da música: “Beba, beba, irmãozinho, beba, deixa os
problemas para trás, beba, beba, irmãozinho, beba, deixa os problemas para trás, fuja da
dor, fuja da tristeza, daí a vida é uma beleza. 55

d) e notícias de jornais:

Franz lê enquanto Pums lida em sua escrivaninha, quer ver algumas coisas no jornal
Berliner Zeitung que está sobre a cadeira: 3.000 milhas marítimas numa casca de noz, de
Günther Plüschow, Férias e Roteiros, a Conjuntura de Lania, o palco de Piscator, no teatro
Lessing. O próprio Piscator assume a direção. O que é Piscator, o que é Lania? 56

No início do Livro V, surge um narrador que fala a partir de “frases simples,


declarativas”57, criando o cenário no qual o leitor irá mergulhar: o título do capítulo situa o
espaço: “Alex”; o ano: “1927”; e as condições climáticas: “um frio do cão”. A concentração
espacial e temporal da representação, dada pela descrição das ruas, dos bondes e o uso do
verbo no presente do indicativo, aliados ao recurso do discurso indireto livre, criam uma
apresentação essencialmente cênica dos objetos. Percebe-se que uma das principais
características dessa estrutura é não assumir uma configuração única, homogênea. Se
quiséssemos recorrer, por exemplo, à tipologia de Norman Friedman para caracterizar
esses trechos específicos em que a biografia de Franz é esquecida e a metrópole toma seu
espaço, poderíamos caracterizá-los em um primeiro momento a partir do que Friedman
nomeia como o “modo dramático”. Nele, o narrador possui um caráter simplesmente
informativo, descrevendo ações e reproduzindo falas, mas deixando que os estados de

53 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 287.


54 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 206.
55 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 85.
56 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 235.
57 DOLLENMAYER, David B. The Berlin novels of Alfred Döblin. Wadzek's Battle with the Steam Turbine, Berlin

Alexanderplatz, Men without Mercy and November, 1918. Berkeley: University of California Press, 1988. p. 73.
84
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ânimos dependam das personagens58. Contudo, o romance extrapola a tipologia, dada a


multiplicidade de registros de que se vale. Se por vezes a função narrativa é meramente
informativa, ele não utiliza apenas diálogos mas também se apropria dos pensamentos dos
transeuntes e personagens. Ademais, em certos momentos, como ocorre no primeiro
capítulo do Livro II, o narrador assume sua onisciência e apresenta para o leitor toda a
biografia do jovem Max Rüst, que aos catorze anos desce do bonde no ponto da rua
Lothringe. Ele o seleciona como uma personagem dentre muitas e desenreda, em meras
vinte linhas, sua situação atual e todo seu futuro, até seu “anúncio fúnebre” 59, e com a
brevidade da descrição e a eleição casual entre tantos outros, o narrador apenas enfatiza a
banalidade de sua história. Em uma narrativa (do primeiro capítulo do Livro II) que
transcorria balizada por um narrador de disposição largamente descritiva60, surge
repentinamente a figura do narrador onisciente que vê o transcorrer da história para além
do imediatismo dos fatos, ou seja, superior à percepção do leitor.
A velocidade com que os sumários narrativos que “descrevem” a cidade (“Ar gélido.
Fevereiro”, “a estação estende-se livre por ampla superfície”) são constituídos (com
interrupções abruptas que dão espaço a outros discursos, os quais, por sua vez, também
serão interrompidos, e assim por diante) impregna a narrativa pela qual se constitui a
imagem da metrópole de um tempo acelerado. Essa velocidade que arma e desarma as
cenas, em um movimento que varia de ritmo ao mesmo tempo em que varia de perspectiva,
fratura também a própria história de Biberkopf.
Nas divagações do flâneur de Aragon há uma dilatação do tempo e nesse ânimo
vagaroso a singularidade ganha forma. Se a projeção de seu compasso no tempo da
narrativa dá a medida da temporalidade da Paris da década de 1920, é o enrijecimento do
texto, a partir da composição formal, que determina o ritmo da metrópole döbliniana –
ritmo acelerado, marcado pela ausência de relação entre os heteróclitos, pelas frases curtas,
pela oscilação entre a perspectiva interna (discurso indireto livre e monólogo interior) e
perspectiva externa. A ausência de uma unidade conferida por uma subjetividade externa
ao mundo que é narrado (ou seja, de um narrador tradicional, comentador) marca a
petrificação dos estilhaços de realidade.

58 “Having eliminated the author, and then the narrator, we are now ready to dispose of mental states altogether.
The information available to the reader in the Dramatic Mode is limited largely to what the characters do and say;
their appearance and the setting may be supplied by the author as in stage directions; there is never, however, any
direct indication of what they perceive (a character may look out of the window-an objective act-but what he sees
is his own business), what they think, or how they feel.” FRIEDMAN, Norman. “Point of view in fiction”, op. cit.,
p. 1178.
59 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 56.
60 “Do lado sul, a Rosenthaler Strasse desemboca na praça. Do outro lado, a loja Aschinger serve comida e cerveja às

pessoas, oferece concertos e pães em geral.” DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz. p. 55.
85
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Algumas das primeiras resenhas escritas sobre o romance de Döblin já apontavam a


afinidade que existia entre esse seu modo de composição e o recurso da montagem 61 como
utilizado no meio cinematográfico62. Desde então, a maior parte da fortuna crítica do livro
parte da análise desse artifício formal para discutir a fatura do romance. Era a primeira vez
que, extraído das artes plásticas, da experiência dadaísta e expressionista 63, esse recurso
formal se tornava elemento de composição de um romance alemão 64. A centralidade da
análise formal nas interpretações do livro – que procurava compreender a “simultaneidade
de posição e justaposição funcional de fragmentos”65– deve-se ao fato de que, constituindo
a múltipla configuração da voz narrativa do livro, essa estrutura parece determinar a
imagem da metrópole que caracteriza este romance, ao lhe imprimir seu próprio ritmo.
Contudo, será que essa forma de composição se constitui apenas como pano de
fundo para o núcleo biográfico do romance ou o expediente “coletivo” da montagem
terminaria por abalar a voz onisciente do narrador da Moritat? No artigo, “An urban
montage and its significance in Döblin‟s „Berlin Alexanderplatz‟”, David Dollenmayer
afirma que a montagem não teria por efeito o enfraquecimento “do papel do narrador” 66.
Nesse artigo, o crítico pretende analisar de que forma o uso da montagem acarreta em uma
imagem da metrópole que, aliada ao retorno vitorioso e pacífico de Biberkopf a Berlim no
desfecho do romance, constrói-se positivamente. Para Dollenmayer, a presença do narrador
se explicita, por exemplo, na forma de organização dos elementos do capítulo – organização
que sugeriria uma visão na qual a cidade possui uma ordem. Para sustentar a afirmação de
que o narrador estaria sempre presente, Dollenmayer aproxima sua argumentação da já
citada resenha de Walter Benjamin. Segundo o crítico, “both Benjamin and Scheunemann
stress that the use of montage does not mean the elimination or even the weakening of the
narrator”67. O problema dessa afirmação decorre do fato de que o que Benjamin
compreendia sob a palavra “narrador” parece divergir do uso que Dollemayer faz dele.

61 Desenvolvi uma discussão sobre a utilização de montagem e colagem nos capítulos III e V da minha dissertação.
62 Ver as resenhas: E. Kurt Fischer: “Berlin Alexanderplatz” (p. 67-69); J – S: ist das unser “Alex”?. In: PRANGEL,
Matthias. Materialien zu Alfred Döblin “Berlin Alexanderplatz”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1975.
63 DÖBLIN, Alfred. Epilog, Das Lesebuch. Frankfurt am Main: Fischer, 2009. p. 646.
64 Já em 1925, John dos Passos publicara Manhattan Transfer e Ulisses (1922), de James Joyce, era uma referência

importante. Não se sabe se Döblin conhecia ou não Manhattan Transfer (provavelmente sim, já que foi indicado à
tradução pelo leitor da Editora Fischer, Oskar Loerke, amigo bastante próximo de Döblin) e há mesmo quem
discorde de que tanto o livro de Dos Passos quanto o de Joyce sejam semelhantes ao livro de Döblin: “em sentido
estrito Ulisses, (1922) de James Joyce, e Manhattan Transfer (1925), de John Dos Passos, não são romances-
montagem [...] O único romance-montagem dos anos 20 é, entretanto, Berlin Alexanderplatz”./ EMONS, Hans.
„Montage – Zitat – Collage in Film, Kunst, Literatur und Musik“. Montage-Collage-Musik. Berlin: Verlag für
Wissenschaftliche Literatur, 2009, p. 15 - 16.
65 CARONE, Modesto. A montagem. Metáfora e montagem. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 99-100.
66 DOLLENMAYER, David B. “An Urban Montage and Its Significance in Döblin's Berlin Alexanderplatz.” The

German Quarterly, v. 53, n. 3, p. 317-336, May 1980.


67 DOLLENMAYER, ibidem, p. 320.
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Em 1936, Walter Benjamin publicou o ensaio “O narrador. Considerações sobre a


obra de Nikolai Leskov”. Certamente um dos textos mais discutidos de Benjamin no Brasil,
“O narrador” procura articular o problema do declínio da narrativa, que encontra seu
primeiro indício no surgimento do romance, assim como uma reflexão sobre a própria
possibilidade de experiência à discussão do desenvolvimento das forças produtivas. Grosso
modo, a possibilidade social do narrador dependeria, para Benjamin, de uma malha
comunitária perpassada pelo fio condutor de uma temporalidade comum. Benjamin vê na
“evolução secular das forças produtivas”68 a trilha do processo de “definhamento” da arte
de narrar, o processo de extinção da “sabedoria – o lado épico da verdade” 69. O lado épico
da verdade, aqui, como o “sal épico”, que torna “mais duráveis as coisas às quais se
mescla”70, ou seja, aquilo que em sua consistência e permanência temporal pode ser
transmitido e assimilado pelo ouvinte.
O advento do romance na era moderna faria parte desse processo, portanto, como
seu primeiro indício, vinculado estritamente a um dado técnico: a invenção da imprensa. O
romance, cuja propagação depende exclusivamente de sua relação com o livro, não “precede
da tradição oral e nem a alimenta”71. Benjamin observava que “se a arte narrativa é hoje
rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por isso”; o fato noticiado pelo
jornal, impregnado de explicações, seria oposto ao traço épico, livre do “contexto
psicológico da ação” oferecendo ao leitor liberdade “para interpretar a história como
quiser”72. Para Benjamin, o isolamento do romancista reflete a e revela-se na forma, que,
curvada aos dados da vivência individual, traduz-se em uma segregação do romancista e do
próprio romance, em tudo oposta à experiência comum da verdadeira narração – embora
ambas compartilhem a mesma origem épica. Na indiferenciação original de Mnemosyne, a
deusa da recordação (Die Errinernde), já estariam reunidas tanto a musa da narração, a
memória, (Gedächtnis) quanto a musa do romance, a rememoração (Eingedenken).
As reflexões em que Benjamin investiga essa transformação da experiência social são
articuladas em mais de um texto, por exemplo, nos ensaios “Experiência e pobreza” 73 e “A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”74. Quando essa produção teórica que
gravita em torno dos mesmos dilemas é tomada em conjunto, vê-se que sua análise não se

68 BENJAMIN, Walter. “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” in:__. Obras Escolhidas.
Magia e técnica, arte e política . São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 201.
69 Idem, ibidem, p. 201.
70 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 59.
71 BENJAMIN, Walter. “O Narrador”, p. 201.
72 Idem, ibidem, p. 203.
73 BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza” in:__. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política, p. 114-119.
74 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.” in:__. Obras escolhidas. Magia e

técnica, arte e política, p. 165-196.


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afoga em uma nostalgia do irrecuperável, mas procura vislumbrar na constelação da


atualidade novas possibilidades, “sem, no entanto, assumir a forma obsoleta da narração
mítica universal”75. Com efeito, uma resenha de 1930, “Crise do romance. Sobre
Alexanderplatz, de Döblin.”, bastante anterior ao ensaio “O narrador”, também faz parte
desse conjunto de reflexões. Nela, Benjamin comenta a publicação de Berlin
Alexanderplatz e a conferência “A construção da obra épica”. Nessa resenha, o comentário
sobre a montagem ocupa o cerne da análise, porque seria a voz anônima dos fragmentos
recuperados pelo romance de Döblin que configura, para Benjamin, a presença do
“narrador nato”76 dentro da obra.
A argumentação da resenha tem início com a distinção entre narrativa tradicional e o
romance, estabelecendo ao mesmo tempo o vínculo compartilhado por ambos: sua origem
épica, refletida na imagem do mar. O autor ressalta, contudo, que existe uma diferença
entre a narrativa (a poesia épica) e o romance, definida em larga medida pela relação
estabelecida entre o autor e a existência – metaforicamente, o mar. Se o narrador, como
poeta épico, é aquele que observa o mar e recolhe o que sua água deita sobre a areia, o
romancista navega, solitário77. Essas diferentes atitudes, ou formas de relação entre o autor
e a “existência”, se traduzem nos vínculos sociais que articulam o poeta épico ou romancista
à obra e a seu receptor (ouvinte ou leitor). Não se trata, contudo, de um vínculo que
dependa apenas da intenção do autor, pois “a instauração de um narrador não é um
fenômeno exclusivamente literário, mas é também o produto da articulação entre literatura
e experiência histórica”78. Embora Benjamin aqui não se detenha, como o faz no ensaio “O
narrador”, sobre a discussão da origem comum das duas formas épicas (narrativa e
romance), e nem explique a distinção entre ambas segundo um processo histórico que teria
propiciado a predominância do romance sobre a narrativa, o vínculo histórico que
determinaria esse desenvolvimento era um tema comumente discutido na época e participa
da resenha como um pressuposto. Portanto, o espaço cada vez maior ocupado pela leitura
dos romances contribuiria para o declínio da narrativa – declínio que, atrelado ao ocaso da
experiência, Benjamin discutirá no ensaio sobre “O narrador”. Segundo sua perspectiva, a
narrativa, “o espírito épico em toda sua pureza 79”, estaria enfaticamente relacionada à

75 GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Não contar mais?” in :__. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 2007. p. 62.
76 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 54.
77 Idem, ibidem, p. 54.
78 GATTI, Luciano. “O foco da crítica: arte e verdade na „Correspondência‟ entre Adorno e Benjamin”, 2008, 292 f.

Tese (Doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
UNICAMP, Campinas, 2008. p. 112.
79 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 55.
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tradição oral. Posto que no romance a vida é o incomensurável levado “ao paroxismo”80 , ou
seja, é o que mal pode ser dito, sua presença cada vez mais homogênea em detrimento da
narrativa representava à comunicabilidade da épica uma “ameaça”, pois sua forma baseada
na solidão do indivíduo ajudava a emudecer o homem interior81.
Com efeito, no ensaio “O narrador”, Benjamin insiste no aspecto oral inscrito na
epicidade da narrativa. A oralidade, nesse caso, não parece coincidir exatamente com a
apropriação feita em Berlin Alexanderplatz dos fragmentos de discurso da cidade ou da
presença do dialeto berlinense, mas, sim, estar associada à possibilidade de transmissão
comunitária de uma experiência que relaciona presente e passado na vida do ouvinte.
Quando o tempo é participado pelos membros da comunidade por gerações, as narrativas
permanecem significativas e, por isso, são constantemente contadas e reelaboradas, de
forma que a fala dos antigos narradores continua presente, embora não seja imutável. O
que resultaria dessa reiteração oral das histórias, no ensaio “O narrador”, seria uma
“superposição de camadas finas e translúcidas”82. Já na resenha sobre o romance de
Döblin, a acentuada importância conferida ao aspecto da oralidade se transfigura no elogio
feito por Benjamin do uso da “montagem” como “princípio estilístico do livro”83. A presença
do “espírito do dialeto berlinense”84, diz o autor, inspira o próprio ritmo do texto,
assemelhando-se, portanto, ao tom familiar que o narrador épico adota diante dos ouvintes
ao transmitir seus conselhos. No entanto, as “histórias escandalosas”, canções, anúncios,
textos bíblicos e cantigas infantis são todos textos retirados da vivência compartilhada dos
indivíduos e cerzidos na malha do romance; esse conjunto representaria a vida cotidiana a
serviço da arte85. Correspondentes aos “versos estereotipados da antiga epopeia”86, esses
fragmentos representam, no interior do texto, o discurso comum e reconhecível da vivência
do habitante da metrópole. E poderíamos nos perguntar se a justaposição desses materiais
não seria capaz de conferir ao texto algo análogo àquela sobreposição de camadas de
histórias. Próximo à colocação de Benjamin, pensando a reestruturação do romance como
“obra épica”, Döblin anuncia em 1917: “no romance, trata-se de dispor em camadas, de

80 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 54.


81 “Nada contribui mais para a perigosa mudez do homem interior, nada mata mais radicalmente o espírito da
narrativa que o espaço cada vez maior e cada vez mais impudente que a leitura dos romances ocupa em nossa
existência.” Idem, ibidem, p. 55.
82 BENJAMIN, Walter. “O narrador”, op. cit., p. 206.
83 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 56.
84 Idem, ibidem, p. 57.
85 Idem, ibidem, p. 56.
86 Idem, ibidem, p. 56.
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amontoar, de revolver, de empurrar” 87. “Empilhando” diferentes histórias e materiais, essa


estrutura montada carregaria para dentro do romance Berlin Alexanderplatz os inúmeros
fios da malha cotidiana. E o que proporcionaria peso a esses materiais, ainda segundo o
autor, seria o fato de sua escolha não conter nada de arbitrário; afinal, “a verdadeira
montagem se baseia no documento”88, que confere “autoridade à ação épica”89.
Por mais claro que seja o tom elogioso no princípio da resenha de Benjamin, a crítica
ao romance é ambivalente e cifrada, distinguindo duas faturas, diversas por sua forma de
composição e seu efeito. Por um lado, o romance de Döblin seria capaz de recuperar a “voz
do narrador nato” na medida em que comunica algo que é realmente participado pelo
leitor90, mas também porque, por meio do uso da montagem, apropria-se do cotidiano e,
portanto, de materiais que pertencem à vida comum. É com essa inovação, principalmente
formal, destaca Benjamin91, que o livro de Döblin enfrentaria aquele problema
característico do romance: a ausência de transmissão de algo que reflita na vida do próprio
leitor. Revertendo o disperso – os materiais que não possuem relação aparente entre si –
em vivência coletiva, Döblin alcançaria o lado épico, foco das próprias reflexões
desenvolvidas desde o “Programa berlinense”, de 1913.
No entanto, se o entusiasmo de Benjamin com o uso dos materiais do cotidiano é
inegável, o comentário sobre a fábula de Franz Biberkopf é mais turvo. Carla Damião,
autora de Crise da narração, crise do romance, também destaca essa dupla visada presente
na resenha de Benjamin, mas acredita ver no comentário do autor sobre a “trajetória” de
Biberkopf uma translúcida crítica negativa92. Segundo Damião, a frase “a história de Döblin
é burguesa, limitadora muito mais pela própria origem do que tendência ou intenção”
estaria ligada ao comentário feito por Benjamin, alguns anos mais tarde, sobre a posição
política de Döblin93. Com efeito, na conferência “O autor como produtor”, Benjamin critica

87 DÖBLIN, Alfred. Observações sobre o romance. In: GREGORY, Alceu João. O romance O tigre azul como forma
estética do pensamento histórico de Alfred Döblin, p. 315. No original: DÖBLIN, Alfred, Bemerkungen zum
Roman. Aufsätze zur Literatur, p. 20.
88 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 56.
89 Idem, ibidem, p. 56.
90 “Ele [o romance] tem sua moral, que afeta mesmo os berlinenses”. Idem, ibidem, p. 57.
91 “A montagem faz explodir o “romance”, estrutural e estilisticamente, e abre novas possibilidades, de caráter épico.

Principalmente na forma”. Idem, ibidem, p. 56.


92 DAMIÃO, Carla Milani. “Crise da narração, crise do romance. O contexto histórico-filosófico da teoria narrativa

de Walter Benjamin”, 1995. Dissertação (Mestrado em Filosofia): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 1995, p. 149.
93 “Essa visão social e política que norteia os experimentos teatrais de Brecht e os radiofônicos de Benjamin, parece

faltar a Döblin embora [...] fosse “simpatizante” do socialismo. Parece ser esse aspecto ao qual Benjamin se
reporta quando diz que: „ a história de Döblin é burguesa, limitadora muito mais pela própria origem do que pela
tendência ou intenção”. DAMIÃO, ibidem, p. 148. Ver também: BONOMO, Daniel R. “Colocutores em trânsito: os
tontos movimentos dos romances „Grande Sertão: Veredas‟ e „Berlin Alexanderplatz‟”. 2007. Dissertação
(Mestrado em Literatura Alemã). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2007, p. 15-15; e KIESEL, Helmuth. Alfred Döblin: Montageroman, Geschichte der literarischen
Moderne. Sprach Ŕ Ästhetik Ŕ Dichtung Im zwanzigsten Jahrhundert. C. H. Beck, München, 2004, p. 216-317.
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o que observa como uma tendência política representada na “moda da reportagem” 94,
lançada pela Neue Sachlichkeit e, nomeadamente, censura Döblin por ter renunciado à
tomada pública de posição política ao lado do proletariado. Ocorre que, de todo modo, a
crítica de Benjamin contida nesse ensaio é posterior à publicação da resenha sobre Berlin
Alexanderplatz e está relacionada a um texto que Döblin publica em 1931, notadamente
“Wissen und verändern!”95. Parece que seu embate com Döblin nesse texto está
diretamente focado nas ideias difundidas no ensaio “Wissen...”, e não em relação à
composição formal do romance de Döblin no que diz respeito à montagem – artifício
artístico que Benjamin ainda elogia, mas agora citando apenas seu emprego pelo teatro
épico de Bertolt Brecht. Contudo, ao menos uma questão levantada no ensaio “O autor
produtor” pode lançar luz sobre a resenha que Benjamin escrevera sobre Berlin
Alexanderplatz. Essa questão está colocada nas divergências explicitadas pelo autor em
relação ao que este enxerga como “produto” da Neue Sachlichkeit: a transformação da “luta
contra a miséria”96 “em objeto de consumo”.
Retornando à resenha sobre o romance, quando Benjamin comenta especificamente
a fábula de Biberkopf, há uma série de elogios e críticas que se misturam, tornando difícil
apartar aquilo que seria positivo na fatura do livro dos problemas que este não resolve. Por
exemplo, quando comenta a história de Biberkopf, Benjamin reflete que “como verdadeiro
poeta épico”, o narrador (ou “autor”, segundo os termos da resenha) se ausenta, deixando
que a história corra lentamente – o que é fortalecido pelo ritmo compassado do dialeto
berlinense. A inscrição desse ritmo comum ao cidadão no desenvolvimento da própria obra
seria “uma das forças que se voltam contra o caráter fechado do velho romance. Pois este
livro nada tem de fechado. Ele tem sua moral” 97, conclui Benjamin. Na exposição mais
detalhada das características da narrativa épica desenvolvida em “O narrador”, vemos que
tanto o “texto aberto” quanto a “moral da história” são apresentados como elementos
constitutivos da narrativa épica98.
Se o uso do dialeto é explicitamente elogiado, a relação que o livro de Döblin
estabelece entre o mundo dos marginais e o mundo burguês dá ensejo a uma crítica

94 BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor” in:__. Magia e técnica, arte e política, p. 128.
95 DÖBLIN, Alfred. “Wissen und verändern!” In: Der deutsche Maskenball. Wissen und verändern. Olten und
Freiburg im Breisgau: Water Verlag, 1972. p. 127-266.
96 BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor”, op. cit., p. 130.
97 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 57.
98 “Com efeito, o „sentido da vida‟ é o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é

outra coisa que a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha na descrição dessa vida. Num caso, o
„sentido da vida‟, e no outro, „a moral da história‟ – essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e
a narrativa. (...) o romance chega a seu fim, e este é mais rigoroso do que em qualquer narrativa.”.BENJAMIN,
Walter. “O narrador”, op. cit., p. 213.
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ambivalente. Por um lado, isso implicaria, para Benjamin, algo importante 99 e, por outro,
um aspecto restritivo do romance de Döblin. Em seu aspecto positivo, a miséria retratada
no romance seria a miséria real, que precisava “se virar” e dar um jeito de “chegar ao fim do
mês” – e “um grande narrador era necessário para reafirmar essa verdade”100. Mostrando a
face real da miséria em que vive parte da população de Berlim, portanto, essa representação
da miséria não seria equivalente àquela retratada em na “subliteratura naturalista” ou no
que Kracauer designa como “romance-reportagem”101. Por outro lado, diz Benjamin:

Diz-se que Lenin só odiava uma coisa com ódio mais fanático que a miséria: compactuar com
a miséria. Essa atitude, com efeito, é de certo modo burguesa; não somente no sentido
mesquinho do desleixo, mas no sentido maior da sabedoria. Nesse sentido a história de
Döblin é burguesa numa acepção muito mais restritiva que se considerássemos apenas sua
tendência e sua intenção: ela é burguesa por sua origem. [...] O mundo desses marginais é
homólogo ao mundo burguês; a trajetória de Franz Biberkopf, de proxeneta a pequeno-
burguês, descreve apenas uma metamorfose heroica da consciência burguesa. 102

O que antes havia sido encarado como algo positivo (a representação da “miséria
real” em oposição à “miséria temida”) reverte-se em fraqueza da obra: o ato de compactuar
com a pobreza. O que significa dizer que não é por sua intenção que a obra é burguesa, mas
pela origem? Já vimos que Damião sustenta que a “origem” (no caso, Abkunft) designaria o
fato de o romance ter sido escrito por Döblin, de quem após alguns anos Benjamin
demonstrará divergir por razões políticas. Embora seja possível associar o termo “origem”
ao autor da obra, Döblin, parece-me mais interessante pensar em outra hipótese,
autorizada pela argumentação que se segue à frase ora discutida. Benjamin aprofunda seu
comentário aproximando o livro de Döblin à obra de Charles Dickens – a afinidade entre
ambas residiria na identificação entre o mundo dos marginais com o mundo burguês. O
parentesco que Benjamin forja entre, de um lado, Berlin Alexanderplatz, e, de outro,
Charles Dickens, A educação sentimental e o Bildunsgroman [romance de formação]
autoriza a associação do problema da “origem” à irrevogável condição do livro, qual seja, de
que se trata de um romance.
Seguindo essa hipótese, é possível explicar a crítica à representação da miséria em
Berlin Alexanderplatz a partir da reflexão de Benjamin sobre a própria forma do romance.
Em “O narrador”, o estudo realizado por Georg Lukács em A teoria do romance é elogiado

99 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 56.


100 Idem, ibidem, p. 58.
101 “O romance-reportagem falha tanto diante da representação dos fatos como das exigências expressivas do

romance enquanto forma. Movimenta-se impotente entre ciência e configuração épica, descoberta e
documentário”. KRACAUER, S. Apud: MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. “A Crítica de Siegfried Kracauer ao
„Romance-Reportagem‟”. In: XI Congresso Internacional da Abralic. Anais, p. 2.
102 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 59.
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por Benjamin, pois este teria revelado “com grande lucidez” a relação que a forma
romanesca estabelece com a transmissão do ensinamento e teria iluminado como se dá a
presença do tempo no interior da obra 103. Ao fim do romance, segundo Lukács, a luta contra
“o poder do tempo” seria sempre fracassada, mas à personagem estaria garantida a
reminiscência, as lembranças dos eventos transcorridos, quando enfim seria possível
“intuir” o sentido da vida, que permanece, contudo, inexprimível. Não seria outro o
percurso de Biberkopf104. Ao final do romance, Biberkopf retorna a Berlim, protegido em
seu cubículo de porteiro, sendo consolado pela lembrança de sua vida, que o torna “mais
esperto” que os outros. Permanecendo nessa linha de análise, embora essas lembranças o
tornem mais “esperto”, o sentido alcançado é inexprimível, e sua recém-adquirida esperteza
em nada pode ajudar ao leitor.
Esse possível percurso analítico talvez explique a referência feita por Benjamin à
sabedoria, ou seja, à necessidade de concluir o romance com uma articulação a partir da
qual a toda trajetória por ele exposta deveria ser iluminada. Residiria, portanto, justamente
na conclusão de Berlin Alexanderplatz o momento em que a obra compactua com a
pobreza. Se a pobreza e a marginalidade seriam apenas um estágio da vida burguesa, um
estágio superável, então a “luta contra a miséria” teria sido transformada em “objeto de
consumo”. Sem dúvida, Benjamin elogia “a arte inesquecível” com que Döblin narra o
“amadurecimento” de Franz, mas o elogio escancara seus ares críticos na aproximação ao
romance de formação e a Flaubert.
A educação sentimental, de Flaubert, seria para Benjamin um grande exemplo do
caráter fechado de uma obra literária, opondo-se à narrativa tradicional que, chegando ao
fim, sempre sugere uma continuação. Em A educação sentimental, descrito por Benjamin
como o modelo “mais recente” do romance 105, o desfecho do percurso biográfico impõe uma
conclusão irrevogável à história, convidando o leitor a buscar o sentido daquela vida.
Contudo, uma vez que o sentido não é atingido pela própria história, ele tampouco pode ser
expresso, de onde resulta que o romance seja “o incomensurável levado ao paroxismo”. A
Berlin Alexanderplatz e ao romance de Flaubert é associado também o romance de
formação [Bildungsroman] Wilhelm Meister. Embora na resenha de 1930 ele seja citado
apenas ao final da reflexão, no ensaio “O narrador” parece mais claro que o efeito dessa
aproximação está mais próximo da crítica do que do elogio. Benjamin vê no romance de

103 BENJAMIN, Walter. “O narrador”, op. cit., p. 212.


104 “Chegamos ao fim desta história. Tornou-se longa, mas precisava alongar-se e, alongar-se cada vez mais, até
atingir seu clímax, o ponto de inflexão, a partir do qual recai então a luz sobre o todo”. DÖBLIN, Alfred. Berlin
Alexanderplatz, p. 519.
105 BENJAMIN, Walter. “O narrador”, op. cit., p. 212.
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Goethe uma tentativa de inserir a transmissão do ensinamento em um tipo de forma


literária em sua essência “refratária ao conselho”106. Por isso, o problema do
Bildungsroman residiria no fato de que a integração da estrutura social na vida do
indivíduo resultaria em uma frágil justificação dessa mesma estrutura. Desse modo, dizer
que o romance de Döblin constituiria um “estágio” do romance de formação 107 significa que,
ao fazer da história do marginal Biberkopf apenas uma transformação “heroica da
consciência burguesa”, ou seja, o relato da adequação de um homem que é por fim capaz de
inserir-se no mercado de trabalho, o romance justificaria, ao fim e ao cabo, o processo
social apresentado durante todo o desenvolvimento de sua biografia.
Entre as várias reflexões apresentadas na resenha ensaística de Benjamin, o
desenvolvimento de duas, em especial, pode contribuir para a discussão do presente artigo.
O primeiro leva em conta o uso da montagem, e o segundo, o retorno de Biberkopf à cidade
de Berlim. A divisão entre esses dois níveis de texto, ou seja, por um lado, a montagem de
episódios heterogêneos e, por outro, a biografia individual de Biberkopf, poderia sugerir
uma estrutura cindida, na qual não houvesse qualquer relação entre as partes. Ou, como
disse David Dollenmayer em seu ensaio, que não atuasse sobre a constituição do narrador
onisciente. Se há uma relação entre as partes, esta não é determinação total, mas de
interpenetração semântica. A relação que se estabelece, por exemplo, entre cenas como a do
matadouro, ou a de Jó, e os eventos que marcam o percurso de Biberkopf é de implicação
mútua. Há na aproximação efetuada pela montagem um caráter análogo ao procedimento
alegórico justamente porque a relação que a montagem permite conferir às cenas não é
plenamente determinada. O conceito de alegoria aqui utilizado entende que ela
compreende dois aspectos, “l‟un qui est l‟aspect immédiat et littéral du texte; l‟autre qui en
est la signification morale, psychologique ou théologique”108. Partindo dessa leitura, pode-
se analisar, por exemplo, a cena do matadouro em relação à ignorância de Biberkopf, cuja
falta de ponderação traça seu caminho rumo à morte, mas seu sentido também pode ser
tomado da descrição do funcionário que apenas “cumpre a função que lhe compete”109. Aí
estaria expressa a realização do desejo de Franz por um mundo ordenado, evidenciado em
sentenças como: “não tem nada contra os judeus, mas é a favor da ordem. Pois é preciso
haver ordem no paraíso, isto qualquer um tem de reconhecer”110. O matadouro poderia ser

106 Idem, ibidem, p. 202.


107 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 60.
108 MORIER, Henri. Allégorie. Dictionnaire de poétique et de rhétorique. Paris: Presses Universitaires de France,

1998, p. 65.
109 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 154.
110 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 89.
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alegoricamente interpretado, portanto, como a imagem desse mundo organizado sonhado


por Franz (“é preciso haver ordem no paraíso”), em que o arbítrio individual seria delegado
à ordem estabelecida111: assim como o funcionário do matadouro não deve ser julgado, pois
só “cumpre a função que lhe compete”, também Franz não quer ser responsabilizado por
vender jornais nacionais-populistas, embora “nada tenha contra judeus”112. Isso significa
que, na medida em que a forma não impõe um significado unívoco da aproximação entre as
partes, tampouco o leitor pode determiná-lo. O que importa dessa “alegoria implícita” 113 é
que sua imagem em movimento apresentada no episódio do matadouro não se resume a
essa significação “moral” sempre latente, pois sua significação literal permanece, ainda que
novos significados possam ser a ela agregados. Essa interpretação converge com o conceito
de “visão figural” que Erich Auerbach utiliza para discutir o realismo medieval e da
Antiguidade tardia, conforme comentado em Mimesis:

Para a visão mencionada [figural], um acontecimento terreno significa, sem prejuízo da sua
força real, concreta, aqui e agora, não somente a si próprio, mas também outro
acontecimento, que repete prenunciadora ou confirmativamente; e a conexão entre os
acontecimentos não é vista preponderantemente como desenvolvimento temporal ou causal,
mas como unidade dentro do plano divino, cujos membros e reflexos são todos os
acontecimentos.114

Essa “visão figural”, portanto, possibilita que dois acontecimentos sem relação
temporal ou causal sejam reunidos em uma unidade de sentido. O que propiciava essa
unidade fechada, na leitura exegética da Bíblia, era o plano divino, que garantia a função
ocupada por cada uma das partes. Contudo, é esse plano transcendental que está ausente
em Berlin Alexanderplatz. Resulta daí que o desaparecimento dessa conjuntura, que
conferia um sentido unívoco à reunião das partes, expõe a ruptura que a unidade temática
tenta conformar.
A estrutura do romance de Döblin, cujo efeito remonta ao procedimento alegórico,
insere uma ruptura na trama. Ela rompe o desenvolvimento da biografia, causando uma
suspensão no desenvolvimento da história. O efeito que essa indeterminação do significado
produz pode ser descrito como uma sensação de “vertigem”: “não há mais ponto fixo, nem
no objeto nem no sujeito da interpretação alegórica, que garanta a verdade do
conhecimento”115. Essa indeterminação também ocorre em relação à justaposição dos

111 ROMANELLO, Janice de Fátima Belther. “A poética de Alfred Döblin e a manifestação do grotesco em Die
Ermördung einer Butterblume e em Berlin Alexanderplatz”. Tese (Doutorado em Literatura Alemã), Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. p. 75.
112 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 89.
113 MORIER, Henri. Allégorie. Dictionnaire de poétique et de rhétorique, p. 71.
114 AUERBACH, E. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.

500-501.
115 GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Alegoria, morte, modernidade” in: História e narração em Walter Benjamin, p. 40.
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trechos da metrópole. O expediente da montagem, interpondo à trama fragmentos que a ela


não se relacionam diretamente, ocasionam um deslocamento de atenção, fazendo com que
a história de Franz seja colocada em perspectiva, tornado-se apenas mais um elemento,
intercambiável entre outros elementos.
Klaus Scherpe, em seu texto, “Von der erzählten Stadt zur Stadterzählung. Der
Groβstadtdiskurs in Alfred Döblins „Berlin Alexanderplatz‟” 116 discute a importância que
possui a colagem dos fragmentos no romance. Scherpe insiste na necessidade de abandonar
a “erzählte Stadt”117, ou seja, a “cidade narrada” que caracterizaria a forma de representação
do espaço urbano na narrativa do século XIX, “demolindo o tradicional edifício narrativo,
para criar espaço para a construção moderna da obra épica” 118. A questão, portanto, seria
como elaborar uma Stadterzählung, um “discurso da cidade” que encontrasse os meios de
pensar literariamente a narrativa metropolitana. Scherpe vê na forma do Berlin
Alexanderplatz esse novo discurso da cidade. A Berlim reconfigurada por Döblin apareceria
então:

como “segunda” (será que „terceira‟?) natureza, construída segundo uma lógica, que
justamente por isso se tornaria efetiva; ela não se reduziria ao “núcleo” de um ou outro
discurso, e nem poderia ser facilmente determinada por um contexto que criasse
estabilidade. A cidade, como inter-relação comunicativa de todas as relações e negócios
(transações) humanos, perderia seus limites e seria pulverizada 119.

Em outros termos, a união dos textos recolhidos dos jornais, dos cacos de histórias
individuais, dos refrões musicais não estabeleceria uma conexão entre todos. Pelo
contrário, a metrópole deveria ser compreendida como um espaço engendrado por
diferentes discursos marcados pela perda de sua integridade. Construída a partir de
fragmentos, é a representação de uma realidade que reproduz a lógica de troca, a saber, da
equivalência de todos os elementos, e sua consequente substituição. Dessa forma, assim
como os anúncios escolhidos, as frases reproduzidas poderiam ser facilmente substituídas
por outras – o que também acontece com as pequenas histórias que o narrador coleciona
das ruas de Berlim. São fragmentos de identidades que se configuram e resolvem no
pequeno espaço que lhes é concedido, privados de um desenvolvimento integral que
denotasse sua singularidade e que conferisse necessidade específica à sua introdução.
Desprovidos desse desenvolvimento e necessidade, tornam-se elementos que podem ser

116 [Da cidade narrada à narrativa da cidade. O discurso da metrópole em Berlin Alexanderplatz de Alfred Döblin]
SCHERPE, Klaus R. „Von der erzählten Stadt zur Stadterzählung. Der Groβstadtdiskurs in Alfred Döblins ‚Berlin
Alexanderplatz„“ in: Fohrmann, Jürgen; Müller, Harro [Hrsg]. Diskurstheorien und Literaturwissenschaft.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p. 418-437.
117 Aqui, Scherper procura traçar uma oposição a Volker Klotz.
118 Idem, ibidem, p. 419 [Tradução nossa].
119 Idem, ibidem, p. 419.
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substituídos por qualquer outro. É dessa forma que a montagem, mais do que simples
figuração da realidade, torna-se denúncia da lógica do sistema à margem do qual se
movimenta a personagem.
Em seu livro Fisiognomia da metrópole moderna120, Willi Bolle avalia, comentando
Benjamin, que a vida do indivíduo da metrópole é marcada pelo choque. Seu cotidiano seria
estruturado a partir de “„vivências de choque‟ [Chockerlebnisse], impactos que ele [o
indivíduo] tem de aparar aguçando ao máximo sua consciência”, sendo-lhe exigido que viva
por reflexos, sem “tempo para formar sua experiência, um eidos de vida, uma imagem de
si”121. Benjamin fundamenta sua argumentação a partir de uma leitura de “Além do
princípio de prazer” [1921], de Sigmund Freud. O diagnóstico de Freud, segundo o qual o
que é transferido à consciência não se mantém como memória 122, é transposto por
Benjamin para o contexto da metrópole, em que o contato com as massas urbanas
estimularia uma reação constante e intensa por parte da consciência. Na poesia de
Baudelaire, Benjamin constata uma tentativa de transformar a própria vivência do choque
em estrutura literária123.
Como Scherpe aponta na obra de Döblin, a vivência do choque e a desagregação da
experiência são tornadas tema e forma do livro. Talvez possamos aproximar essa fatura do
que fez em sua obra o próprio Benjamin: Döblin mobiliza uma estrutura calcada na
justaposição de fragmentos para fazer o tema tornar-se forma, na medida em que a estética
do fragmento “representa a experiência da vida moderna não apenas tematicamente, mas
[…] como forma expressa o ritmo urbano”124. Se de fato a montagem do texto impõe uma
descontinuidade na representação do tempo, então poderia haver uma afinidade entre essa
estética de composição formal e algo da ordem de uma historiografia materialista
desenvolvida por Benjamin no texto “Sobre o conceito de história” 125. Nesse texto, tão
conhecido quanto nebuloso, Benjamin insiste na necessidade de inserir uma cesura naquilo
que, como observa Jeanne Marie Gagnebin, em “História e cesura”, seria caracterizado
como “uma narração que pretende traduzir na sucessão das palavras e das frases o
encadeamento do real”, que “acarreta uma narrativa falsamente „épica‟”, como se todos os
acontecimentos pudessem encadear-se uns aos outros no fluxo sem obstáculos da história

120 BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
121 Idem, ibidem, p. 345.
122 BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire”, op. cit., p. 108-111.
123 Idem, ibidem, p. 112.
124 BOLLE, Wille. Fisiognomia da metrópole moderna, op. cit., p. 158.
125 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História” in:__. Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 222-232.
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universal”126. Nesses termos, o recurso da montagem seria capaz de estabelecer a cesura no


interior da própria conformação da obra, rompendo a continuidade linear dos fatos, sem
possibilidade de estabelecer uma totalidade a partir de seus elementos heterogêneos, uma
vez que se realizaria como a elaboração formal possível de uma realidade que se deixa
representar apenas por meio de fragmentos. A obra, dessa forma, seria “denúncia crítica da
„falsa aparência de totalidade‟”.127

126 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “História e cesura” in:__. História e Narração em Walter Benjamin, op. cit., p. 98.
127 Idem, “Alegoria, morte, modernidade” in:__. História e Narração em Walter Benjamin, op. cit., p. 43.
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Louis-Ferdinand Céline
Voyage au bout de la nuit e a crise do realismo

Daniel Garroux*

O romance Voyage au bout de la nuit, publicado em 1932, tem sido classificado


pelos críticos como “picaresco”, “filosófico”, “de formação” etc. No que pese o valor dessas
caracterizações, acredito que seja mais proveitoso partir da análise cerrada da obra para
depois tentar situar Voyage... em um contexto mais amplo de questões. Para isso, tomo
como ponto de partida as relações entre a posição do narrador e o estilo, ancorando as
hipóteses interpretativas na objetividade do texto e adensando pouco a pouco o enigma que
a esfinge celineana nos propõe.
Ao colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo não-linear que emana de uma
consciência cindida por experiências traumáticas, a narrativa de Voyage... subverte alguns
dos pressupostos de que o gênero do romance havia se servido até então, como o
tratamento ilusionista de tempo e espaço, o predomínio da função referencial da linguagem
e a construção de personagens autônomas, dotadas de psicologia complexa. O romance
realista do século XIX, em larga medida, apoiava-se sobre uma “consciência central”
(geralmente oculta sob a forma de um narrador em terceira pessoa) que organizava o
material empírico antes de transmiti-lo ao leitor. Em Voyage... a certeza dessa consciência
central se encontra abalada, e o difícil processo de tentar recompor a experiência por meio
da linguagem é exposto ao leitor.
Embora algo da mesma ordem tenha ocorrido na obra dos grandes romancistas do
começo do século XX, como Joyce, Faulkner e Virginia Woolf, a narrativa de Voyage...
percorre via própria, e as eventuais semelhanças se originam menos de uma influência
direta daqueles autores sobre Céline do que do caráter comum das experiências históricas
sedimentadas nas obras, que, sob olhar panorâmico, condicionaram a crise do realismo e o
advento de um novo tipo de romance.
**

* Mestrando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP, bolsita do CNPq.


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Primeiros sintomas

La grande défaite, en tout, c‟est d‟oublier, et surtout ce qui vous a fait


crever, et de crever sans comprendre jamais jusqu‟à quel point les
hommes sont vaches. Quand on sera au bord du trou faudra pas faire
les malins nous autres, mais faudra pas oublier non plus, faudra
raconter tout sans changer un mot, de ce qu‟on a vu de plus vicieux
chez les hommes et puis poser sa chique et puis descendre. Ça suffit
comme boulot pour une vie tout entière.1

Ainda em 1932, pouco após sua publicação, o romance Voyage au bout de la nuit, de
Louis-Ferdinand Céline (até então um ilustre desconhecido no ambiente literário francês),
foi saudado por um artigo entusiasta de Léon Daudet, o que contribuiu muito em sua
divulgação. Além disso, o fato do romance ter sido rejeitado pelo júri do prêmio Goncourt
do mesmo ano levou muitos críticos a escreverem artigos nos quais – em meio à polêmica
sobre o livro que o júri se recusara a premiar2 – havia alguma reflexão acerca dos aspectos
propriamente literários do romance. Tamanha polêmica contribuiu tanto para a divulgação
de Voyage... quanto para a construção da imagem de obra maldita. Imagem cujo fundo de
verdade está em apontar a vertiginosa capacidade do romance em impactar os leitores. Em
contrapartida, essa vocação para o escândalo acabou fazendo com que os aspectos formais
da obra fossem obnubilados. A questão mais relevante e evidente só foi levantada em
fevereiro de 1933 por Jean Cabanel, nas páginas da revista Triptyque:

De onde vem afinal o encanto desse livro atroz e como explicar que os mesmos que o
chamam de criminoso e asfixiante não podem deixar de saudá-lo como uma obra-prima?3
Dentre as inovações que chamaram a atenção da crítica, destacava-se a linguagem
inventada pelo autor, na qual palavras e expressões oriundas do baixo registro da língua
francesa mesclavam-se a registros elevados – Jean Cabanel provavelmente se referia a isso
ao utilizar o par dissonante “encanto/atroz” para caracterizar o efeito inaudito produzido
pelo linguajar do livro. Embora, já em 1916, Henri Barbusse tenha colocado a linguagem

1 CÉLINE, Louis-Ferdinand. Voyage au bout de la nuit. Paris: Éditions Gallimard, Folio 60, 2006, p.31. “A grande
derrota, no fundo, é esquecer, e sobretudo aquilo que fez você morrer, e morrer sem nunca compreender até que
ponto os homens são cruéis. Quando estivermos com o pé na cova, nada de bancarmos os espertinhos, nós aqui,
mas também nada de esquecer, vamos ter de contar tudo sem mudar uma palavra do que vimos de mais celerado
entre os homens e depois calar o bico e depois descer. Isso aí é trabalho suficiente para uma vida inteira.” Viagem
ao fim da noite/ tradução Rosa Freire d‟Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 32.
2 Em artigos de grande circulação, Lucien Descaves e Léon Daudet atacaram os irmãos Rosny, integrantes do júri

que se recusaram a premiar Voyage... Maurice-Yvon Sicard, na revista Le Huron, acusou os Rosny de terem sido
comprados e o caso foi parar nos tribunais. Os ânimos só se acalmaram quando Voyage obteve o prêmio
Renaudot do mesmo ano. Para uma exposição mais detalhada da contenda: AJALBERT, Jean. Mémoirs à
rebours, t.I, Réglements de Compte/ Paris: Denöel & Steele, 1936, p.203 sq.
3 “D‟où vient donc le charme de ce livre atroce et comment expliquer que ceux-là mêmes qui le disent criminel et

asphyxiant ne peuvent s‟empêcher de le saluer du nom de chef-d‟œuvre ?”. CABANEL, Jean. Louis Ferdinand
Céline. In : DERVAL, André. Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Critiques 1932 Ŕ 1935. Para
tornar a argumentação mais acessível, optei por traduzir os trechos em francês que não possuem versão em língua
portuguesa. Adianto que se trata de uma tradução puramente instrumental, com fins didáticos. Quando os textos
em francês são excertos literários, mantenho a versão original no corpo do texto e transcrevo a tradução em nota.
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popular na boca de personagens de seu romance Le Feu, em Voyage... a própria instância


narrativa é contaminada por procedimentos típicos da língua oral. Gonzague Truc, no
artigo “Contre un roman de l‟abjection”, criticou a linguagem forjada por Céline nos
seguintes termos:

Notemos, ainda, o que há de desajeitado nessa afetação de um estilo de vagabundo,


enquanto o personagem que fala é médico. É pouco verossímil que um mesmo indivíduo
diga: „e aí ele me disse...‟ e, dez linhas depois, disserte sobre Marcel Proust de tal maneira...
Não... (...) nós continuamos a nos perguntar se devemos perdoar seu autor por tê-lo
escrito, e seus editores por terem-no publicado.4

Embora prescritivo, o diagnóstico de Gonzague Truc percebe a especificidade da


linguagem do narrador no romance. Não obstante, essa linguagem não é simples “afetação”
da fala de um “vagabundo”, mas elaboração estilística que mescla diversos registros,
inserindo-os em outro contexto e transformando seu significado original. Inventiva, irônica
e desabusada, a linguagem empregada pelo narrador imprime suas feições em todo o
universo ficcional do romance. Victor Margueritte, ainda em 1932, também investiu contra
o livro com argumentos muito próximos aos de Gonzague Truc:

O que significa essa narrativa que se diz autobiográfica em que um médico se expressa
como um mestiço de apache e camponês rocambolesco? Ou Louis-Ferdinand faz troça, ou
ele abusa do direito que o verdadeiro às vezes possui de não ser verossímil.5

Ao atacarem a obra, esses críticos acabaram detectando justamente os pontos


sensíveis de ruptura com a tradição anterior do gênero. Do desrespeito sistemático em
relação ao critério de verossimilhança levado a cabo em Voyage... é parte fundamental a
criação de uma personagem de feições híbridas como Bardamu (personagem que inclusive
se duplica em outras personagens), cujas ações já não podem ser entendidas como uma
resultante das motivações, de seu destino pregresso, de suas características físicas e
psicológicas e do meio em que está inserido – como acontece, por exemplo, com uma
criatura como Emma Bovary. Compreender as ações de Bardamu e de seu duplo, Robinson,
exige um salto especulativo que não exclui a atuação de forças motrizes inconscientes, algo
que, a certa altura, o próprio narrador de Voyage... confessa ao leitor:

4 “Notons, de plus, ce qu‟il y a de maladroit dans cette affectation d‟un style de voyou, alors que la personnage qui
parle est médecin. Il est peu vraisemblable qu‟un même individu dise : „qu‟il me dit...‟ et, dix lignes plus loin,
disserte sur Marcel Proust de pareille façon... Non.... (...) nous continuons à nous demander s‟il faut pardonner à
son auteur de l‟avoir écrit, à ses éditeurs de l‟avoir publié”. TRUC, Gonzague. “Contre un roman de l‟abjection”.
In : DERVAL, André. Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Critiques 1932 Ŕ 1935, p.28.
5 “Et qu‟est-ce que ce récit soi-disant autobiographique où un médecin s‟exprime comme un apache mâtiné de

paysan rocambolesque ? Ou Louis-Ferdinand Céline se moque, ou il abuse du droit qu‟a parfois le vrai de n‟être
pas vraisemblant”. MARGUERITTE, Victor. In : DERVAL, André. Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand
Céline. Critiques 1932 Ŕ 1935, p.35.
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“De nos jours, faire le « La Bruyère» c‟est pas commode. Tout l‟inconscient se débine devant
vous dès qu‟on s‟approche.” 6

Além da “oralização” da voz narrativa, que produzia um estilo híbrido, os detratores


da obra criticavam sua estrutura ambígua, criada pela adoção da primeira pessoa e a
concomitante criação de um narrador-protagonista cuja trajetória retoma, em linhas gerais,
a biografia do próprio autor (a guerra, as viagens à África e aos Estados Unidos e o exercício
da medicina na periferia de Paris, são os exemplos mais evidentes). Embora o crítico se
sinta tentado a deslindar, no romance, o liame entre ficção e autobiografia, separando
episódios que fazem referência à trajetória do autor daqueles inteiramente inventados
(como a viagem como escravo em uma galé ou o trabalho como catalogador de pulgas), o
fato é que, após terem sido integrados ao universo da obra, o fato de esses materiais
constituírem “transposições” ou invenções deixa de ser relevante. Importa o seu papel
interno, a função que exercem e sua relação com outros componentes “dentro” do universo
criado pela obra literária. Lucien Rebadet, que tanto se equivocou, parece ter acertado ao
referir-se à obra de Céline como uma “fantasmagoria biográfica”. Céline, em uma de suas
cartas a Milton Hindus, explicou a relação entre sua obra e a “vida objetiva” nos seguintes
termos:

“... a vida objetiva, real, é-me insuportável [...] Ela me parece atroz, então eu a transponho
sonhando, caminhando. Suponho que seja um pouco como essa doença geral do mundo
chamada poesia.” 7

A mescla de ficção e autobiografia, contudo, não era invenção de Céline, vale lembrar
que apenas cinco anos antes, em 1927, fora publicado postumamente Le temps retrouvé,
último volume de La recherche du temps perdu. Em seus romances, Marcel Proust, assim
como Céline em Voyage..., utilizava-se de material autobiográfico abundante que, após o
processo de elaboração ficcional, consubstanciava-se ao universo da obra. Além disso, o
narrador-protagonista Marcel também emprega um estilo elaborado poeticamente e
distante do uso corrente do francês, mesmo de grande parte de seus registros escritos.
Por que, então, quando Proust era já um autor consagrado, o romance de Céline
sofria ataques tão veementes por criar um herói inverossímil e engendrar um estilo
“antinatural”? Provavelmente porque Marcel, o protagonista da Recherche... precisa ser

6 CÉLINE, Voyage au bout de la nuit, op. cit., p. 397. Tradução: “Nos dias de hoje, fazer-se de La Bruyère não é
fácil. Todo o inconsciente foge de você assim que você se aproxima”, p. 418.
7 “... la vie objective, réelle, m‟est insupportable [...] Elle me semble atroce, alors je la transpose tout en rêvant, tout

en marchant. Je suppose que c‟est à peu près la maladie générale du monde appelée poésie. ”ROUX, Dominique
de: Cahiers de l‟Herne nº 5, Lettres à Milton Hindus, Édition de L‟Herne : Paris, 1965, p.84. Embora seja preciso
desconfiar das opiniões que Céline, em sua correspondência, emite sobre a própria obra, nesse caso, como se trata
de uma opinião sobre a motivação do escritor, não vi problemas em recorrer a essa carta.
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despido de sua roupagem aristocrática para que o conteúdo crítico de sua construção
(intencionalmente esgarçada) venha à tona, e principalmente porque o “encanto” da
linguagem entretecida por Proust, embora distante do francês convencional, nada tinha de
“atroz”.
Os longos períodos em que a “mémoire involontaire” do narrador da Recherche...
enreda seu leitor produzem uma sensação de infinita nostalgia, pois tudo o que é revelado
por esse narrador dotado de paciência infinita, cada nuance subjetiva de seus personagens,
cada detalhe arquitetônico de sua imensa catedral narrativa, está infinitamente distante do
presente da enunciação, em um passado absoluto, o que levou o crítico Erich Auerbach a
caracterizar La recherche... como a “epopéia da alma”8.
Nada mais distante dos cortes abruptos, das reticências e exclamações com que o
narrador de Voyage... expõe ao leitor suas hesitações, lapsos e imprecações. Tanto Proust
quanto Céline refutam as convenções realistas, mas o fazem por vias opostas: o estilo de
Proust encanta e envolve seu leitor em uma teia complexa, que o faz esquecer-se de si
mesmo, entre o sono e o despertar; o de Céline o açoita como uma descarga elétrica e lhe
impede a ordenação dos dados empíricos exigida pela reflexão.

Um narrador febril

Je leur raconterai plus rien à l'avenir! que je me disais, vexé. Je


voyais bien que c'était pas la peine de leur rien raconter à ces gens-là,
qu'un drame comme j'en avais vu un, c'était perdu tout simplement
pour des dégueulasses pareils 9

A constituição de seu narrador é um dos pontos de ruptura mais sensível entre


Voyage... e o modelo do romance realista que, segundo o crítico Erich Auerbach, teria
alcançado sua culminância nos grandes romancistas franceses do século XIX. Grande parte
do efeito verdadeiramente revolucionário produzido pelo romance de Céline só pode ser
compreendido se tivermos em mente a tradição imediatamente anterior do grande realismo
com a qual ele rompia, forjada, em larga medida, pela tríade: Stendhal, Balzac e Flaubert 10.

8 “Os acontecimentos passados já não detêm qualquer poder sobre ele Ŕ que jamais trata o passado remoto como
se não tivesse acontecido, nem o já consumado como se ainda estivesse em aberto. Por isso não há tensão,
nenhum clímax dramático, nenhuma conflagração ou intensificação seguidos de resolução e apaziguamento.
(...) Esta é a verdadeira epopéia da alma, na qual a própria verdade envolve o leitor num sonho longo e doce
(...)” AUERBACH, Erich. “Marcel Proust: o romance do tempo perdido” in:__. Ensaios de literatura ocidental:
filologia e crítica/Trad. Samuel Titan e Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades, Ed.34, 2007, p.340.
9 CÉLINE, Voyage au bout de la nuit, op. cit., p. 26. Trad.: "No futuro não vou contar mais nada para eles!",

pensava eu, humilhado. Percebia muito bem que não valia a pena contar nada para essa gente, que um drama
como o que eu havia presenciado pura e simplesmente não tinha o menor valor para uns sacanas daqueles!,
p.28.
10 “Se observarmos corretamente, a França teve durante todo o século XIX a mais importante participação no

surgimento e no desenvolvimento do moderno realismo.”, p.440, e também “Quando Stendhal e Balzac tomaram
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No corpus das obras desses três autores prevalece o ponto de vista narrativo em
terceira pessoa, que evita a exposição direta do artifício, de modo a favorecer a ilusão de
objetividade do material narrado. Entretanto, o fato de Voyage... ser narrado na primeira
pessoa não basta para explicar o quanto ele se opõe, no que tange à construção do ponto de
vista narrativo, ao modelo realista do século XIX. É preciso situar essa oposição em um
plano subjacente à simples escolha do ponto de vista, pois ela se assenta, em última
instância, nas transformações históricas que afetaram o gênero como um todo, embora o
ponto de vista bem possa ser tomado como ponto de partida para uma análise dessas
mudanças. Nesse sentido, pode-se observar que, mesmo nas exceções, ou seja, nos poucos
romances realistas do século XIX narrados em primeira pessoa, a função desse ponto de
vista narrativo era bastante diversa da que ele possuirá em Céline e outros autores do século
XX.
No prefácio da edição original de seu romance, Le Lys dans la Vallée, publicado em
1836, Balzac explica de modo sucinto por que, nesse livro, optou por um narrador em
primeira pessoa:

Em muitas passagens de sua obra, o autor criou um personagem que narra em seu nome.
Para chegar ao real, os escritores utilizam dentre os artifícios literários aquele que lhe
parece mais apropriado para vivificar suas figuras. Destarte, o desejo de animar suas
criações conduziu os homens mais ilustres do século passado à prolixidade do romance
epistolar, único sistema que poderia tornar verossímil uma história fictícia. O eu perscruta
o coração humano tão profundamente quanto o estilo epistolar, sem tantas mesuras. A
cada obra, sua forma. A arte do romancista consiste em uma boa materialização de suas
idéias Ŕ Clarisse Harlowe pedia sua vasta correspondência. Gil Blas pedia o eu.11

O narrador em primeira pessoa era, para Balzac, um modo de “vivificar” sua criação.
Certamente o pressuposto implicado nessas reflexões era um projeto realista que, no
entanto, já não partilhava do empirismo ingênuo de romancistas ingleses do século XVIII
como Richardson e Defoe12. Além disso, em Le Lys dans la Vallée, a experiência que se

personagens quaisquer da vida cotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e as transformaram


em objetos de representação séria, problemática e até trágica, quebraram a regra clássica da diferenciação dos
níveis (....) Completaram assim, uma evolução que vinha se preparando fazia tempo (desde o romance de
costumes e a comédie larmoyante do século XVIII e, mais nitidamente, desde o Sturm und Drang e o pré-
romantismo) – e abriram caminho para o realismo moderno, que se desenvolveu desde então em formas cada vez
mais ricas, correspondendo à realidade em constante mutação e ampliação da nossa vida.” AUERBACH, Erich.
Mímesis. São Paulo : Perspectiva, 2001, p. 500.
11 “Dans plusieurs fragments de son œuvre, l‟auteur a produit un personnage qui raconte en son nom. Pour

arriver au vrai, les écrivains emploient celui des artifices littéraires qui leur semble propre à prêter le plus de vie
à leurs figures. Ainsi, le désir d‟animer leurs créations a jeté les hommes les plus illustres du siècle dernier dans
la prolixité du roman par lettres, seul système qui puisse rendre vraisemblable une histoire fictive. Le je sonde le
cœur humain aussi profondément que le style épistolaire et n‟en a pas les longueurs. A chaque œuvre, sa forme.
L‟art du romancier consiste à bien matérialiser ses idées. Clarisse Harlowe voulait sa vaste correspondance, Gil
Blas voulait le moi. ” BALZAC, Honoré de. Le Lys dans la vallée. Paris: Gallimard, 2004, p. 365.
12 A expressão “naïve empiricism” foi encontrada em MCKEON, Michael. “Generic Transformation and Social

Change: Rethinking the Rise of the Nove”. Theory of the Novel: A Historical Approach. Edited by Michael
McKeon/ New Jersey: The Johns Hopkins, 2000, p.382-399.
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pretende “vivificar” é essencialmente privada, quase sempre entremeada por segredos de


camareira e intrigas de salão. Tal característica aproxima o procedimento de Balzac do
romance epistolar, que também procurava dar vivacidade ao relato pela expressão
despojada de ornamentos e pela proximidade com a intimidade das personagens que o
recurso permitia. Não por outro motivo esse romance de Balzac, um dos únicos da Comédie
humaine narrado em primeira pessoa, inicia-se por uma carta do protagonista Félix à
Natalie que serve de moldura narrativa ao longo relato subsequente, conferindo
verossimilhança à situação de enunciação. O narrador, por meio desse procedimento,
apresenta-se ao leitor: está sentado à mesa de seu aposento e retoma, por escrito, o fio de
sua vida, desde sua infância até a maturidade, passando pelo que mais deve ter atraído o
público de Balzac, suas experiências amorosas.
Ao contrário do narrador de Le Lys dans la Vallée, o narrador de Voyage... não se
apresenta ao leitor, tampouco cria a imagem de um interlocutor. Ele surge em pleno ato
narrativo, desde as primeiras linhas do romance: “Ça a débuté comme ça. Moi, j'avais
jamais rien dit. Rien.”13 Ex abrupto, ele introduz-nos em sua história. A reiteração do
pronome indefinido “ça” indica um desvio intencional do registro elevado e a primeira
criação do efeito de oralidade característico do estilo celineano. Mesmo situado a posteriori
em relação aos eventos narrados, o narrador de Voyage... não anuncia sua posição
ficcionalmente e, consequentemente, é como se sua voz emanasse de um não-lugar. A
primeira frase do romance, “Ça a débuté comme ça” anuncia um fluxo de enunciação
contínuo, que só se encerra com a frase final, “qu‟on n‟en parle plus”. Por detrás do “moi”
que identifica narrador e protagonista – separados funcionalmente14 – há uma diferença de
perspectiva temporal, que diz respeito à ação do tempo e dos acontecimentos sobre o
caráter do narrador. Contudo, não se sabe exatamente qual a situação desse narrador e nem
o que o motivou ao relato, pois seu rosto permanece oculto sob a máscara ficcional, em uma
região noturna da qual sua voz emana e para a qual, como o título anuncia, retornará.
Tudo indica que, durante esse longo fluxo enunciativo em que se constrói a história
do romance, a alternância de foco entre o tempo da história narrada e o tempo do ato de
narrar ocorra de acordo com a utilização de procedimentos literários específicos. Um desses

13 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.11. “Foi assim que isso começou. Eu nunca tinha dito
nada. Nada." CÉLINE, Louis- Ferdinand. Viagem ao fim da noite, p.17.
14 Ao revisitar a tipologia elaborada por Dolezel em seu estudo sobre os modos narrativos no romance tcheco, Jaap

Lintvelt faz a seguinte observação: “Como uma mesma personagem preenche tanto a função de representação
quanto a função da ação, Dolezel pondera que a oposição entre narrador e personagem se encontra neutralizada.
Se distinguirmos no interior da personagem entre a personagem-narrador (eu-narrador) assumindo a função da
representação, e a personagem-atuante (eu-narrado), preenchendo a função da ação, constatamos entretanto que
a dicotomia entre o narrador e agente da ação se mantém.” LINTVELT, Jaap. Essay de Typologie Narrative: le
„point de vue‟. Paris: José Corti, 1989, p.164.
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procedimentos é a mudança do tempo verbal do pretérito para o presente, tempo verbal que
cumpre, em Voyage..., duas funções: primeiramente, a de representar a ação narrativa
“enquanto” ela é praticada, em trechos como:

Mais tout de même, il a dû exister, je me dis aujourd‟hui, quand j‟y pense, ce Blanc barbu
que nous rencontrâmes un matin...15 (grifo meu).

Esse tipo de construção, que em Voyage... é sempre sucinta e pontual, transfere o


olhar do leitor para a situação do narrador “enquanto” enunciador. Nos romances
epistolares, essa mudança para o presente da enunciação era moeda corrente (“for just
now, as I was folding up this letter, in my lady‟s dressing room”16), e tinha como objetivo
inserir o leitor na intimidade do narrador, geralmente em seu quarto, onde leitor e
narrador-leitor partilhavam suas emoções. Entretanto, em Voyage... a utilização do
presente cumpre também, e predominantemente, a função de enunciar uma verdade
atemporal, como na sentença: “todo homem é mortal”. Trata-se de um procedimento que
fixa um ensinamento ou uma constatação fora do devir narrativo:

C‟est triste de gens qui se couchent, on voit bien qu‟ils se foutent que les choses aillent
comme elles veulent, on voit bien qu‟ils ne cherchent pas à comprendre eux, le pourquoi
qu‟on est là. Ça leur est bien égal. Ils dorment n‟importe comment, c‟est des gonflés, des
huîtres, des pas susceptibles, Américains ou non. Ils ont toujours la conscience tranquille.17

Esse tipo de construção gnômica, em que o uso do tempo presente está ligado a
comentários de caráter atemporal, tem presença massiva no romance. Não por acaso, tais
passagens lembram as máximas dos grandes moralistas franceses do século XVII, como La
Rochefoucauld18:

Peu de gens connaissent la mort. On ne la souffre pas ordinairement par résolution, mais
par stupidité et par coutume; et la plupart des hommes meurent parce qu'on ne peut
s'empêcher de mourir.19

15 CÉLINE, Voyage au bout de la nuit, p. 193. “Mas convenhamos, ele deve ter existido, digo hoje, quando penso
nisso, aquele branco barbudo que encontramos certa manhã” CÉLINE, Louis-Ferdinand Viagem ao fim da noite.
(p.193).
16 RICHARDSON, Samuel. Pamela. London: Penguin, 2003, p. 44.
17 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.214. “É triste as pessoas se deitando, a gente percebe

muito bem que não ligam a mínima se as coisas não andam como gostariam, a gente vê muito bem que não
tentam compreender o porquê de estarmos aqui. Para eles tanto faz como tanto fez. Dormem de qualquer jeito,
são umas descaradas, umas bestas quadradas, umas insensíveis, americanas ou não. Sempre têm a consciência
tranquila.” Viagem ao fim da noite, p.215.
18 “Se é verdade, tal como Gide uma vez observou, que as máximas de La Rochefoucauld são na realidade

potenciais romances em miniatura, então Céline existe para demonstrar quais estruturas particulares seriam
inventadas para provê-las de momentum de romance.” JAMESON, Fredric. “Céline and innocence”. Céline, USA,
v.93, n. 2. The South Atlantic Quartely, Spring 1994, p.318.
19 “Poucos conhecem a morte. Não a sofrem comumente por resolução, mas por estupidez e por hábito; e a maior

parte dos homens morre porque não pode evitar morrer”. LA ROCHEFOUCAULD, François le Duc. Oeuvres.
Édition établie par L. Martin-Chauffier. Paris : Bibliothèque de la Pléiade, 1964, p.406.
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Essa frase poderia figurar nas páginas de Voyage..., sem provocar estranheza, ao
lado de reflexões como: "Nous sommes, par nature, si futiles, que seules les distractions
peuvent nous empêcher vraiment de mourir"20. Entretanto, em Voyage..., as máximas
emitidas pelo narrador são colocadas ao lado do relato das desventuras do protagonista, o
que leva o leitor a indagar qual a relação que se estabelece ali entre os comentários de fundo
moral (presente eterno) e a representação (eterno devir) 21.
Os narradores de Balzac também pontuavam seus relatos com sentenças morais
generalizantes. Segundo afirma o crítico Erich Auerbach, Balzac por vezes enxergava a si
mesmo como um moralista clássico, sendo possível escutar em sua obra ressonâncias das
sentenças lapidares de um La Bruyère. Entretanto, o juízo proferido pelo crítico acerca
dessa tendência de Balzac ao “palavrório” moralizante é bastante negativo:

O mínimo que pode ser dito sobre tais sentenças é que não merecem, em sua maioria, a
generalização de que gozam. São as ocorrências surgidas da situação do instante, por
vezes muito oportunas, por vezes absurdas, nem sempre de bom gosto. 22

Embora o melhor de Balzac, cuja imaginação está sempre para situações específicas
do mundo material, não aflore em seus comentários de fundo moral, vale notar que, na
trajetória do gênero romance rumo ao realismo, trata-se de um procedimento residual,
futuramente exorcizado por Flaubert e que, um século antes de Balzac, já aparecia, de modo
muito mais intenso, nas ficções de um autor como Henry Fielding:

esse conhecimento da vida superior, embora muito necessário para evitarem-se equívocos,
não é de grande valia para um escritor cuja alçada é a comédia, nesse tipo de romances os
quais, como este que estou escrevendo, são de tipo cômico.23

Em Tom Jones, a presença massiva do autor – por meio de um sem-número de


digressões, antecipações, retornos e comentários – liga-se à tradição cômico-satírica
anterior ao surgimento do romance, daí a remissão à divisão aristotélica dos gêneros
(segundo a qual caberia ao cômico o que é “baixo”, tanto no registro, em prosa, quanto no

20 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.219. “Somos por natureza tão fúteis que só as distrações
podem de fato nos impedir de morrer.” Viagem ao fim da noite, p.220.
21 Segundo Jean Pouillon, para quem o romance é a descrição da consciência no tempo, o modelo de “romance

puro” pode ser definido nos seguintes termos: “Por romance „puro‟, compreendemos um romance que seja
apenas expressão, que não se pretenda nem explicação nem julgamento, que entregue esses últimos aos
cuidados de gêneros em que se explique e se julgue. Não se condena a análise em si mesma; o seu valor
romanesco é que é criticado (...) a análise deixa de ser empreendida por sua verdade própria, para o ser pelo
que exprime a respeito do herói que a ela procede; transforma-se em recurso para o fazer aparecer e não para o
julgar;” POUILLON, Jean. O tempo no romance. trad. de Heloysa de Lima Dantas/ São Paulo: Cultrix, 1974.
22 AUERBACH, Erich. Mimesis, op. cit., p. 428.
23 “this knowledge of upper life, though very necessary for preventing mistakes, is not very great resource to a

writer whose province is comedy, of that kind of novels which, like this I am writing, is of the comic class.”
FIELDING, Henry. The history of Tom Jones, a foundling. Harmondsworth: Penguin, 1966, p.400.
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caráter das personagens, quase sempre oriundas de camadas sociais inferiores)24 que será
quebrada pelo romance realista. Como alguns de seus contemporâneos, Céline retoma uma
série de procedimentos presentes nas primícias do romance, ou mesmo em gêneros
anteriores, como no romance picaresco. Contudo, apesar da semelhança entre os
procedimentos, seu significado foi historicamente modificado: o narrador de Tom Jones
goza da inatingibilidade autoral e de uma perspectiva olímpica 25, está suficientemente
distante da matéria narrada para não deixar-se contaminar com ela de modo traumático
(como parece ser o caso em Voyage...), sua cumplicidade pende para o lado do leitor, o qual
sabe que não deve tomar tão a sério aquilo que, no fundo, é apenas uma boa história:

Esse comentário, entretanto, somente pretende ter ou parece ter „validade geral‟. Seu
significado para a estrutura significativa do romance resulta menos de seu conteúdo do
que de seu efeito contrastante; o individual e o particular se contrapõem a ele. Sua
importância também resulta do fato de que serve principalmente para enfatizar a origem
autorial da narração. Desse modo, o comentário autorial pode desempenhar um papel
decisivo na tensão que se estabelece entre narrador e realidade ficcional. O leitor está
quase sempre consciente de que a pretensão de validade universal desse comentário é na
verdade uma ironia. 26

A “ironia” de Fielding, contudo, não era desprovida de caráter moral, apenas tinha
como pano de fundo um quadro de valores mais amplo em relação à mentalidade burguesa
ascendente em sua época, uma espécie de juste milieu aristocrático que o afastava do
puritanismo de seus contemporâneos Richardson e Defoe27. Por um viés mais formal, pode-

24 Os críticos que se dedicaram ao estudo do romance realista geralmente assinalam com algum pesar a tendência
satírico-moralizante de Fielding. Auerbach, por exemplo, afirma: “o engenhoso e importante Henry Fielding, que
toca tantos problemas morais, estéticos e sociais, mantém a representação sempre nos limites do tom satírico-
moralista...”, Mimesis, op. cit., p.430; posição semelhante à que Ian Watt assume, com mais matizes, em The Rise
of the Novel: “a técnica de Fielding era eclética demais para tornar-se um elemento permanente na tradição do
romance – Tom Jones é romance apenas em parte, contendo muitos elementos da novela picaresca, do teatro
cômico, do ensaio ocasional.” p.250, F. Stanzel assume uma posição mais formalista ao encaixar Tom Jones na
definição de “Romance Autoral”, com o que, ao mesmo tempo, ganha-se uma visão mais imparcial e perde-se o
caráter histórico do desenvolvimento do gênero, para o qual as formas não estavam todas disponíveis em todas as
épocas, como em uma dispensa.
25 A despeito do fato do narrador de Tom Jones afirmar, em determinado ponto da história, que perdeu de vista seu

protagonista, tal afirmação não cria a imagem de um narrador hesitante, pelo contrário, trata-se de mais uma
estratégia cômica que o enaltece pela habilidosa demonstração do manejo da técnica.
26 “This commentary, however, only claims or appear to be „generally valid‟. Its significance for the structure of

meaning of the novel result less from its content than from its effect as a foil; the individual and the particular
are set against it. Its importance also results from the fact that it serves especially to emphasize the authorial
source of the narration. In this way authorial commentary can play a decisive role in the tension between
narrator and fictional reality. The reader is almost always aware that the claim of universal validity of this
commentary is really an irony.” STANZEL, Franz. Narrative Situations in the Novel, op. cit., p.51.
27 Tal característica não passou despercebida ao crítico Ian Watt: “Fielding, portanto, procura ampliar nosso senso

moral mais do que intensificar as punições contra a licenciosidade. Ao mesmo tempo, contudo, sua função de
porta-voz da moralidade social tradicional indica que sua atitude com relação à ética sexual é inevitavelmente
normativa; (...) Muitas vezes o meio termo ideal de Aristóteles consegue, talvez, subverter em certa medida rígidos
princípios éticos; e é, talvez, como bom aristotélico que Fielding chega muito perto de sugerir que a castidade
demasiada de Bliffil é tão ruim quanto a escassa castidade de Tom”, op. cit., p.246.
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se relacionar o efeito relaxador da obra de Fielding ao ponto de vista narrativo panorâmico


em terceira pessoa e à figura ilustrada do narrador autoral28.
Sem o alicerce de um sistema de valores (nem mesmo de um sistema decadente
como o de Fielding), a narrativa de Voyage... encerra seu leitor na incerteza metonímica da
primeira pessoa narrativa, e mesmo a individualidade desse enunciador-personagem que se
interpõe entre o leitor e o mundo narrado se encontra abalada. Como sabemos, o nome
Bardamu designa tanto o narrador quanto o protagonista de Voyage... (pelo menos de boa
parte dela). O Bardamu-narrador, portanto, está (ou deveria estar, pois esse é um dos
aspectos que a estrutura de Voyage... problematiza) “existencialmente” colado ao
Bardamu-protagonista. Por conseguinte, a difícil relação entre a universalidade presumida
pelas máximas e a particularidade do ponto de vista pode ser definida como uma crescente
tensão, que coloca em risco tanto a validade das máximas quanto a singularidade das
experiências. Por um lado, um ensinamento moral exigiria uma universalidade que o ponto
de vista adotado pelo narrador tende a inviabilizar; por outro lado, uma vez que as máximas
do narrador possuem um fundamento moral universal, dado de antemão, o destino de
Bardamu tem seu caráter “individual” ameaçado. De todo modo, o hiato entre esses
comentários atemporais (no presente gnômico) e a narração das desventuras de Bardamu
(no pretérito épico) exige um leitor capaz de percebê-lo e de desconfiar tanto das reflexões
do narrador quanto da objetividade do mundo narrado 29. Tais características foram
duramente criticadas por Wayne Booth em “A retórica da ficção”. Segundo Booth, esse
hiato produziria uma ambiguidade moral.

Um narrador na primeira pessoa, um herói picaresco moderno, leva-o por uma seqüência
de aventuras sórdidas. Tudo é, claro, completamente “objectivo”: Céline nunca está
inegavelmente presente e aí é que está o problema. O leitor não pode deixar de se
perguntar se as lições de moral de Ferdinand, que são bem freqüentes, devem ou não ser
levadas a sério. Será esta a opinião de Céline? Deveria ser a minha, pelo menos
temporariamente, de modo a eu poder acompanhar com simpatia esse herói?30

Ou ainda:

28 “Intensificam o contraste entre Fielding e Richardson como moralistas os efeitos de seus pontos de vista
narrativos muito diferentes. Richardson concentra sua atenção no indivíduo e faz o vício ou a virtude parecer
muito grande e influir na ação. Fielding lida com demasiadas personagens e um enredo complicado demais para
dar a mesma importância às virtudes ou vícios de um único indivíduo.” WATT, Ian, ibidem, p.245.
29 Nesse ponto discordo de Henri Godard, que expressando uma opinião semelhante a de Jean Pouillon em relação

ao romance ideal, afirma que “a indubitável vontade de escrever acima de tudo um romance é contrabalanceada
em Voyage por uma necessidade de exprimir convicções sobre certo número de assuntos, o que é testemunhado
por todas as asserções, aforimos e julgamentos de valor ali presentes.” GODARD, Henri. Henri Godard commente
Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Éditions Gallimard : Paris, 1991, p.146. Minha crítica a esse
tipo de afirmação é a de que ela fixa de antemão um modelo de romance, sem levar em conta as metamorfoses
pelas quais o gênero passou e continua passando ao confrontar-se com a matéria histórica.
30 BOOTH, W. A Retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Portugal: Arcádia, 1980, p.396.
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Contudo, independentemente da quantidade de raciocínio que façamos a seu respeito,


fomos apanhados, durante a leitura deste livro. Apanhados na armadilha de um consciente
em sofrimento, somos levados a sucumbir, moral e visualmente. [...] Embora Céline tenha
experimentado a desculpa tradicional Ŕ não se esqueçam de que quem fala é o meu
personagem e não eu Ŕ não podemos desculpá-lo por ter escrito um livro que, se o leitor o
levar a sério, o corrompe.31

Penso ainda não ser possível decidir sobre a parcela de culpa que caberia a Céline por
ter escrito Voyage... Entretanto, diante da quantidade de obras moralmente ambíguas que
a modernidade nos legou, somos levados a pensar que essa ambiguidade também tem suas
raízes no desenvolvimento histórico do gênero. O diagnóstico de Wayne Booth acerta ao
entrever que o leitor reivindicado por esse romance não era mais o leitor do século XIX, que
aceitava a ilusão realista do narrador onisciente, e nem mesmo um leitor disposto a
penetrar na intimidade dos personagens e identificar-se com eles por meio do narrador em
primeira pessoa de filiação epistolar: o leitor de Voyage... seria um leitor disposto às
sensações vertiginosas provocadas pela frustração de suas expectativas e pelo
questionamento de suas certezas.

Delirium Tremens

Para o crítico Anatol Rosenfeld, as modificações que se operaram no romance no


século XX são análogas ao fenômeno de “desrealização” detectado nas obras de pintores
modernos32. Assim como o ponto de fuga, técnica de produção da ilusão de perspectiva,
fora abandonado pela pintura, algo análogo teria ocorrido no romance em relação à
sucessão temporal. Portanto, as mudanças que o século XX impôs ao gênero narrativo
predominante no século XIX não seriam apenas mudanças de assunto ou de
procedimentos, mas da própria possibilidade de uma representação objetiva da realidade.
Tal processo foi caracterizado por Rosenfeld como o “desmascaramento do mundo
epidérmico do senso comum”.
Em Voyage..., a narrativa se reveste de um tom febril que parece ser o resultado
tanto da tentativa de compreender experiências extremamente aflitivas e violentas quanto
do trauma provocado por essas experiências sobre a consciência do narrador. Não é por
outro motivo que a figuração da guerra dá início ao romance, pois ela atua ali como uma
espécie de rito iniciático para o protagonista.

31 BOOTH, ibid., p.399.


32 “O termo „desrealização‟ se refere ao fato de que a pintura deixou de ser mimética, recusando a função de
reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível.” ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance
moderno” in: Texto e contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1969, p.76.
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On est puceau de l‟Horreur comme on l‟est de la volupté. (…) Qui aurait pu prévoir avant
d‟entrer vraiment dans la guerre, tout ce que contenait la sale âme héroïque et fainéante
des hommes? À présent, j‟étais pris dans cette fuite en masse, vers le meurtre en commun,
vers le feu... Ça venait des profondeurs et c‟était arrivé.33

O narrador renuncia a uma representação objetiva convencional na medida em que


se aproxima da consciência do protagonista, a ponto de, em certos trechos, fundir-se com
ela. Como já foi dito, paradoxalmente, a função desse procedimento “desrealizante” advém
de uma “intenção” realista: a representação fiel de tais acontecimentos exige que eles sejam
retratados em sua dimensão inconsciente. A afinidade entre a linearidade da linguagem e o
pensamento racional precisa ser subvertida para dar conta de uma experiência cujo
significado se furta às razões do “mundo epidérmico do senso comum”. O ponto de vista
assumido por esse narrador, pela mesma via paradoxal, procura ser fiel ao conteúdo da
matéria narrada ao encerrar o leitor em uma consciência cindida por experiências
traumáticas. Sorrateiramente, Voyage... propõe ao leitor uma aporia: a crise nervosa
sofrida por Bardamu, bem com uma série de experiências acachapantes (a viagem à África,
a aquisição de paludismo, o trabalho excruciante na Ford) retiram-lhe a possibilidade de
engendrar um relato objetivo. Em contrapartida, o único lastro dessas experiências é esse
mesmo relato entrecortado e febril, por vezes delirante.
A verve de Céline é sem dúvida o traço que mais marcou o legado do autor. A
linguagem urdida em Voyage..., como foi dito, chocou porque estendeu o emprego do
registro popular à enunciação do narrador do romance, na qual se mescla com registros
elevados, produzindo um estilo híbrido, ao mesmo tempo estranho e familiar. Somente Zola
havia ousado algo semelhante, como atestam os últimos capítulos de L‟Assommoir, em que
o envilecimento da protagonista Gervaise chega a contaminar o narrador em terceira
pessoa. O discurso indireto livre surge, então, como um desdobramento quase natural dos
processos degenerativos que atuam sobre o caráter físico e mental da lavadeira. Em
Voyage..., a linguagem empregada pelo narrador em primeira pessoa parece ligar-se
estreitamente ao caos do mundo narrado e, por conseguinte, é plena de viradas abruptas, de
imprecações e sobreposições. Tome-se, à guisa de exemplo, o penúltimo parágrafo do
primeiro episódio de Voyage..., em que Bardamu segue o regimento festivo, caminhando
em direção à guerra:

Alors on a marché longtemps. Y en avait plus qu‟il en avait encore des rues, et puis dedans
des civils et leurs femmes qui nous poussaient des encouragements, et qui lançaient des
33 CÉLINE, Voyage au bout de la nuit, p.18. “Somos virgens de Horror como o somos de volúpia. (...) Quem
poderia prever antes de entrar realmente na guerra tudo o que continha a escabrosa alma heroica e vagabunda
dos homens? Agora, eu estava envolvido nessa fuga em massa rumo ao assassinato em comum, rumo ao fogo...
Isso vinha das profundezas e havia chegado.” Viagem ao fim da noite, p.21.
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fleurs, des terrasses, devant les gares, des pleines églises. Il en avait des patriotes ! Et puis
il s‟est mis à y en avoir moins des patriotes... La pluie est tombée, et puis encore de moins
en moins et puis plus du tout d‟encouragements, plus un seul, sur la route. 34

Parágrafos como esse parecem confirmar o que diz Céline quando este se refere a seu
estilo como sendo sua “petite musique”. Aqui tomamos pé do intenso trabalho estilístico
que produz a dicção singular desse narrador, dicção que recria no plano do significante a
profusão de sons e impressões do espaço ficcional que circunda o protagonista. Vale notar,
inicialmente, que não há léxico de baixo calão, embora algumas construções, como “Y en
avait” e “Il en avait”, atentem contra o registro culto da língua. Contudo, o que realmente
cria o efeito de oralidade é o trabalho com a sintaxe, a pontuação e a sonoridade das
palavras. A repetição de construções sintáticas, como no último período “et puis”, “et puis
encore”, “et puis plus du tout” remete a uma estrutura rítmica na qual o mesmo motivo é
retomado com pequenas variações. Estamos diante de uma verdadeira fanfarra de fonemas
que reproduz o entusiasmo do protagonista e o clima festivo do desfile militar. O grande
número de assonâncias e aliterações (“pluie”/ “plus”/ “puis”, e o menos evidente: “de moins
en moins”/ “encouragements”) é contrabalanceado pela grande variação de tom entre os
períodos encerrados, respectivamente, por ponto de exclamação e reticências, como se um
respondesse ao outro: “Il en avait des patriotes!”/ “Et puis il s‟est mis à y en avoir moins
des patriotes... ”. O contraste entre a alegria luminosa do desfile e o horror sombrio da
guerra é anunciado pela construção antitética, e os monossílabos que encerram o parágrafo
“de moins en moins et puis plus du tout [...] plus un seul, sur la [...]” indicam o
desaparecimento da festa e a transição para uma tonalidade fúnebre, anunciada pela chuva,
cujo som reproduzem. Finalmente, os “encouragements” são substituídos pela “route”,
retomada duas vezes no primeiro parágrafo do próximo capítulo na expressão “au millieu
de la route” – espaço do viajante e signo de desabrigo contra as intempéries do destino.
À fragmentação sintática dessa passagem corresponde uma dispersão temporal. A
cena imediatamente anterior a esse sumário reproduzia o diálogo entre Bardamu e seu
colega, interrompido pela chegada do desfile militar, de modo que a narração parecia até
então seguir os acontecimentos passo a passo. Quando se chega ao sumário, há uma
aceleração temporal e o relato se torna metafórico: o alistamento de Bardamu é descrito
como uma entrada numa arapuca – basta que, entusiasmado, siga o regimento até “os civis

34 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.14. “E então a gente marchou um tempão. Havia
carradas de ruas, e nelas civis e suas mulheres que nos estimulavam e que jogavam flores, das varandas, diante
das estações de trem, das igrejas repletas. Como havia patriotas! E depois começou a haver menos patriotas...
Caiu uma chuva, e depois cada vez menos e depois mais nenhum estímulo, nem um único, pelo caminho.”
CÉLINE, Louis-Ferdinand, Viagem ao fim da noite, p.17.
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fecharem suavemente as portas às suas costas”. O aceleramento temporal e o concomitante


obscurecimento dos detalhes exteriores preparam o salto temporal até o próximo episódio,
no qual somos lançados, “au millieu de la route”, em plena guerra.
O estilo forjado por Céline aproveita o potencial poético de procedimentos
disponíveis nos registros orais35. A utilização de estruturas típicas da linguagem oral, na
passagem comentada, auxilia na criação do efeito metonímico-festivo da passagem. Na
linguagem oral há sempre a possibilidade de retificar o que acabou de ser dito e aproximar-
se gradualmente do sentido que se pretende expressar. Na passagem transcrita essas
retificações ganham ainda outro significado, pois correspondem tanto à profusão de
impressões com que o desfile atinge a consciência do protagonista quanto às hesitações do
narrador ao tentar recompor sua história.
A expressão “Il en avait”, por exemplo, desencadeia a enumeração metonímica do
desfile que será reiterada em “Il en avait des patriotes”. Em uma simples conversa, o
substantivo “patriotes” serviria apenas para resumir e precisar o sentido do que foi dito
antes (“des rues, et puis dedans des civils (...) des pleines églises”), ao ser recriado no
romance, esse processo serve também a propósitos miméticos. Nota-se ainda que essa
sobreposição metonímica de elementos lembra o resultado de uma livre-associação. Um
indício disso é que, em diversos trechos do romance, ocorre uma aproximação entre
palavras e expressões que possuem semelhança fonética, como em “de moins en moins”/
“encouragements”. Em seu estudo sobre Voyage..., o crítico Henri Godard detecta, na
linguagem celineana, um fenômeno de recorrência fonética, que se inicia em Voyage:

A partir de Voyage..., Céline começa também a explorar outro modo de tomar distância em
relação ao sentido. Ele consiste em deixar o significante desempenhar seu próprio papel na
formação da cadeia verbal pela repetição exata ou aproximada de fonemas presentes no
contexto precedente. Nada é mais constante e nem mais natural à oralidade do que escutar
os fonemas se chamarem mutuamente. Mas, na escrita, o aprendizado da redação nos
habituou a privilegiar o sentido, a clareza e a precisão.36

A associação entre palavras de sonoridade semelhante, a ausência de hierarquia

35 Em um ensaio publicado em junho de 1935, Léo Spitzer postulou que o estilo criado por Céline teria se apropriado
de uma estrutura binária da frase típica da língua francesa falada, como a da frase: “Il a dormi le père”. Em
oposição ao início da frase (“Il a dormi”) uma espécie de exclamação espontânea, o segundo termo (no caso, o
substantivo “père”) representa um esclarecimento avaliativo, recurso que Céline explora também em suas
potencialidades irônicas. SPITZER, Léo. Une habitude de style : le rappel chez M. Céline. In: DERVAL, André.
Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Critiques 1932 Ŕ 1935.
36 “Dès Voyage, Céline commence aussi à explorer une autre manière de prendre de la distance par rapport au

sens. Elle consiste à laisser le signifiant jouer son rôle propre dans la formation de la chaîne verbale par la
répétition exacte ou approchée de phonèmes présents dans le contexte précédent. Rien n‟est plus constant ni plus
naturel à l‟oral que d‟entendre ainsi les phonèmes s‟appeler l‟un l‟autre. Mais, à l‟écrit, l‟apprentissage de la
rédaction nous a habitués à privilégier le sens, sa clarté et sa précision.‟‟ GODARD, Henri. Henri Godard
commente Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Éditions Gallimard : Paris, 1991, p. 135.
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sintática entre os elementos e a utilização de procedimentos típicos da linguagem oral


parecem encenar o próprio “brotar” da linguagem na consciência, como em um monólogo
interior, técnica narrativa que Édouard Dujardin definiu, talvez pela primeira vez, nos
seguintes termos:

O monólogo interior é, no plano da poesia, o discurso sem ouvinte e não pronunciado, pelo
qual uma personagem expressa seu pensamento mais íntimo, o mais próximo do
inconsciente, anteriormente a toda organização lógica, ou seja, em seu estado nascente,
por meio de frases diretas reduzidas ao mínimo sintaticamente, de modo a produzir a
impressão de “imediato”.37

Apesar de aproximar-se da definição de Dujardin, não sabemos se realmente a


narrativa de Voyage... se configura como um discurso “sem ouvinte e não pronunciado”. A
última frase do romance, “q‟on n‟en parle plus” aproxima Voyage... de uma narrativa oral.
Contudo, não há no romance qualquer elucidação sobre a situação presente do narrador ou
sobre a existência de um interlocutor. Trata-se, afinal, de um monólogo interior ou
“exterior”? Endereçado a si mesmo ou a outrem? Em seu livro sobre o tema, Dorrit Cohn
constatou essa ambiguidade entre discurso endereçado a si mesmo e a outrem em algumas
obras:

Quando um texto na primeira pessoa não manifesta nenhum traço de atividade escrita, ou
da entrada em cena de ouvintes fictícios, sem por isso renunciar à forma característica da
interpelação oral, é o estatuto próprio narrativo que é, para retomar a expressão de Michel
Butor, “deixado na sombra”.38

Tudo indica que Voyage... possa ser elencada entre as narrativas em que Dorrit Cohn
constatou um “status problemático”. Apesar dos indicadores de que se trata de uma fala
endereçada a um interlocutor, em alguns trechos do livro não podemos mais distinguir
entre a voz do narrador e o fluxo de pensamentos do protagonista. Ora, tal impossibilidade
indica que nesses trechos o narrador adere à consciência do protagonista ao reviver os

37 “Le monologue intérieur est, dans l‟ordre de la poésie, le discours sans auditeur et non prononcé, par lequel un
personnage exprime sa pensée la plus intime, la plus proche de l‟inconscient, antérieurement à toute
organisation logique, c‟est-à-dire en son état naissant, par le moyen de phrases directes réduites au minimum
syntaxial, de façon à donner l‟impression „tout-venant‟.‟‟ Édouard Dujardin empregou a técnica do „„monologue
intérieur‟‟ DUJARDIN, Édouard. Le monologue intérieur. Apud: CANNONE, Belinda. Narrations de la vie
intérieure/Paris : Presses Universitaires de France, 2001, p.32.
38 “Quand un texte à la première personne ne manifeste aucune trace d‟activité scripturale, ou de la présence en

scène d‟auditeurs fictifs, sans pour autant renoncer à la forme caractéristique de l‟adresse orale, c‟est le statut
narratif lui-même qui est, pour reprendre l‟expression de Michel Butor, „laissé dans l‟ombre‟ ‟‟. COHN, Dorrit. La
Transparence intérieure. Modes de représentation de la vie psychique dans le roman. Trad. do inglês por Alain
Bony. Paris: Éditions du Seuil, 1981, p.200.
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acontecimentos que narra39.


Entretanto, a ambiguidade entre oralidade e escrita presente em Voyage... não serve
apenas para representar os traumas de uma consciência cindida que tenta repuxar os fiapos
de uma memória em frangalhos, mas também para despertar seu leitor para a singularidade
linguística da narrativa do romance, na qual o material linguístico cotidiano banalizado, ao
ser observado por um novo ângulo, é “ressignificado”. Nesse sentido, o efeito artístico
produzido pelo uso que Céline faz de procedimentos oriundos da linguagem oral parece não
estar distante daquilo que Victor Chklovski, em seu ensaio sobre “A arte como
procedimento”, definiu como “estranhamento”, a saber, a sensação de não coincidência de
uma semelhança ou, simplesmente, um processo de “desautomatização” 40. O próprio autor
parecia ter consciência disso: “Eu sou um colorista de palavras, mas não como Mallarmé de
palavras de sentido extremamente raro – de palavras usuais, de palavras cotidianas.”41
Tal procedimento está relacionado à intenção, diversas vezes anunciada pelo autor,
de criar um “ritmo” próprio. A prosa cotidiana e a linguagem formal representam para o
autor um material inerte, ao qual é preciso dar vida através do trabalho estilístico. “Tente se
colocar no ritmo sempre dançante do texto”, escreve Céline a seu editor Jonh Marks, “Tudo
aquilo é dança e música”42. Cabe ao autor puxar os fios que movem as palavras. Caso o
estilista obtenha sucesso nessa empreitada “au bord de la mort”, essas marionetes
ganharão vida em suas mãos. Para isso, ele deve evitar tanto o risco de não conseguir livrar
as palavras do peso de sua significação convencional, puramente referencial, quanto o de
esvaziá-las de todo conteúdo de modo a que se alcem aos céus delirantes do puro jogo dos
significantes.
Em Voyage..., a soberania da função referencial da linguagem, uma das premissas do
realismo formal segundo Ian Watt, encontra-se assombrada pela função poética (daí a
quebra de verossimilhança, a metaforização do relato, as elipses e reiterações, a
enumeração metonímica e as associações sonoras). Paradoxalmente, é justamente essa
elaboração poética que resgata a função representativa do relato, por adequar-se à situação

39 Para Belinda Canonne o monólogo interior pode ser definido como uma narrativa sem narrador. Para o caso
específico de Voyage..., contudo, prefiro tratar de uma ocasional “fusão” entre narrador e protagonista. Como se
trata de um narrador que vivenciou experiências traumáticas, não podemos excluir a hipótese de que o impacto
reverberatório desses traumas sobre o narrador justifique o efeito de oralidade, a quebra da hierarquia sintática e
as associações sonoras.
40 CHKLÓVSKI, Vitor. Arte como procedimento. Teoria da literatura, formalistas russos. Porto Alegre: Globo,

1973, p39 a 56.


41 “Je suis un coloriste de mots, mais non comme Mallarmé de mots de sens extrêmement rare Ŕ des mots usuels,

des mots de tous les jours”. HINDUS, Milton. L.-F. “Céline tel que je l‟ai vu”. L‟Herne 3. Paris : Herne, 1999. Carta
de 15 de maio de 1947, p.138.
42 “Tâchez de vous porter dans le rythme toujours dansant du texte" , “Tout cela est danse et musique”. GODARD,

Henri. Henri Godard commente Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline, p.142.
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do narrador, voz monológica aprisionada em uma consciência traumatizada. Como


apontou Marcel Arland, esse enunciado pleno de fissuras e retomadas indica uma falta de
segurança por parte do narrador:

Pois a primeira coisa a que se apegam os homens perdidos é a essa língua, que lhes
permite, tremendo de medo e de solidão, de se tomarem a si próprios como ouvintes e de
narrar suas histórias, com exclamações, blasfêmias, com tais repetições e tais frases
sentenciosas em que um homem indeciso encontra sua única certeza. 43

O estilo de Voyage... parece ser a tábua de salvação do narrador após o naufrágio da


objetividade épica tão cara aos realistas do século XIX. Céline, por meio de seu intenso
trabalho estilístico, relativiza o éffet de réel em prol de um realismo que não faz abstração
do meio no qual se expressa, reintroduzindo no fluxo enunciativo desse narrador-
protagonista os processos de construção – tais como as hesitações, lapsos, associações
paralelas, intuições, afetos – eliminados em uma exposição convencional e linear.
Paradoxalmente, esse trabalho formal inovador pode ser compreendido como uma
exigência ditada pela premissa realista de criar uma representação fidedigna da vida
cotidiana44, embora nessa última tenha se introduzido uma ordem de experiências que não
cabe mais nos moldes convencionais de representação 45.

Nosografia da crise

Cabe então perguntar sobre o que, afinal de contas, perturba a forma dessa narrativa.
Para isso espero contar com a contribuição de alguns teóricos que diagnosticaram
mudanças radicais sofridas pelo romance durante o começo do século XX, muitas vezes
descritas como uma crise do próprio gênero ou uma mudança radical de pressupostos.

43"Car la première chose à laquelle se raccrochent ces hommes perdus, c‟est cette langue, qui leur permet,
tremblants de peur et de solitude, de se prendre pour auditeur et de raconter leur histoire, avec des
exclamations, des jurons, avec ces répétitions et ces phrases sentencieuses où un homme indécis trouve sa seule
assurance”. DERVAL, Andre. Critiques 1932-5, p.261.
44 AUERBACH, Erich. Mimesis, op. cit.
45 A idéia do romance como “espelho” da realidade cotidiana pôde ser contestada tomando como ponto de partida a

própria experiência cotidiana de cada indivíduo, na qual, a partir do desenvolvimento urbano industrial, esse
dificilmente consegue uma visão ordenada da situação em que está inserido. Tal contestação foi utilizada por
Virgínia Woolf em um artigo no qual defendia o seu estilo de representação – a técnica do stream of consciousnes
– atacando as convenções realistas: “[...] A vida é assim? Os romances devem ser assim? [...] olhe de perto e a
vida, parece, está muito longe de ser „assim‟. Examine por um momento uma mente comum em um dia comum.
A mente capta uma miríade de impressões [...] A vida não é uma sucessão de lanternas de carruagem dispostas
em simetria; a vida é um halo luminoso, um invólucro semi-transparente nos envolvendo dos primórdios da
consciência até o fim. Não é tarefa do romancista comunicar esta variedade, espírito desconhecido e ilimitado,
qualquer que seja sua aberração ou complexidade, com tão pequena mistura de estranheza e formalidade
quanto possível?”. WOOLF, Virginia. A ficção moderna. O leitor comum, Tradução de Luciana Viégas. Rio de
Janeiro: Graphia, 2007, p.75. Nesse sentido, pode-se bem compreender a empreitada do romance moderno como
um realismo ao pé da letra, pois ela teria surgido numa época em que a representação clara e ordenada dos fatos,
tal como a dos romances do século XIX, é que seria acusada de artificialidade.
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A primeira objeção a ser feita contra o diagnóstico da crise é a de que o romance,


desde seu nascimento, sempre esteve “em crise”. Em primeiro lugar, por tratar-se de um
gênero que surgiu sem a mesma dignidade de seus antepassados épicos. Além disso, o
romance, por natureza, é dotado de incomensurável força plástica, que lhe possibilita
renovar-se constantemente e incorporar as características de outros gêneros – para alguns
teóricos, como Bakhtin, ele é definido por essa propriedade de metamorfose aglutinadora46.
Frente à capacidade subversiva desse gênero “onívoro”, seria incorreto tentar fixá-lo
em um conjunto rígido de definições. O que se pode fazer é localizar tendências que o
acompanham durante seu desenvolvimento, em um processo que vincule as mudanças dos
procedimentos artísticos às transformações históricas que afetam o sistema literário no
qual o romance está inserido. Embora o processo por meio do qual ele se “adaptou” aos
diferentes materiais históricos não seja uniforme, o escopo das mudanças formais
encontradas nos grandes romances do começo do século XX aponta para um abalo sem
precedentes em alguns dos alicerces cambiantes de que o gênero havia se servido até então.
No ensaio antológico de Walter Benjamin sobre o narrador, há uma passagem que
discorre sobre a incomunicabilidade do que foi vivido nos campos de batalha por parte dos
soldados que dali retornavam:

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos dos campos de


batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu
dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma
experiência transmitida de boca em boca.47

Embora Céline tenha participado dos combates, só publicará seu livro vinte anos
depois, ou seja, uma geração após a “enxurrada de livros sobre a guerra” a que se refere
Benjamin. Entre os autores que retrataram a experiência do front, Henri Barbusse foi o que
mais influenciou Céline. Le Feu e Clarté, romances que tinham a guerra como tema, são
apontados como as principais influências na elaboração de Voyage...48 Para investigar como
Céline reelaborou o estilo de Barbusse, transcrevo a seguir um trecho de Le Feu:

- Dis donc, toi qui écris, tu écrirais plus tard sur les soldats, tu parleras de nous, pas?

46 “O romance parodia os outros gêneros (justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas formas
e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção particular, reinterpretando-os e
dando-lhes um outro tom”. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A Teoria do Romance.
Trad. Aurora F. Bernardini. São Paulo, Unesp/HUCITEC, 1993, p.399.
47 BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e

política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221, p.198.
48 Não parece ser unanimidade entre os críticos que Clarté tenha influenciado Céline tanto quanto Le Feu. Nesse

ponto, Marie-Christine Bellosta discorda de Henri Godard: “A opinião predominantemente aceita é a sustentada
por Henri Godard : somente Le Feu o teria influenciado [...] Essa interpretação da influência de Barbusse sobre
Céline me parece, entretanto, muito restritiva”. BELLOSTA, Marie-Christine. Céline ou l‟art de la contradiction :
Lecture de Voyage au bout de la nuit, p.7.
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- Mais oui, fils, je parlerais de toi, des copains, de notre existence...[...]


Il indique de la tête les papiers où j‟étais en train de prendre des notes. Le crayon en
suspens, je l‟observe et l‟écoute. Il a envie de me poser une question.
- Dis donc, sans t‟commander... [...] si tu fais parler des troufions dans ton livre, est-ce que
tu les f‟ras parler comme ils parlent, ou bien est-ce que tu arrangeras ça, en lousdoc ? C‟es
rapport aux gros mots qu‟on s‟engueule pour ça, tu n‟entendras jamais deux poilus l‟ouvrir
pendant une minute sans qu‟i‟s disent et qui‟s répètent des choses que les imprimeurs
n‟aiment pas besef imprimer.49

O narrador-protagonista está na trincheira, ao lado de seus companheiros poilus50, e


escreve em seu caderno. O diálogo entre o soldado Barque e o narrador assume significado
metalinguístico e se torna uma pequena defesa do estilo de representação empregado por
Barbusse. O modo dramático é predominante nos capítulos desse romance em forma de
crônica, o que lhe permitiu expor o cotidiano das trincheiras em toda sua crueza. No trecho
transcrito, a justificativa do narrador para colocar em seu livro a linguagem dos soldados
(“parce que c‟est la vérité”) nos lembra trechos de romances de Zola em que a pretensão de
objetividade científica se mescla ao tom de denúncia humanitária51. Tal característica fez
com que Le Feu se tornasse um verdadeiro libelo humanista contra os horrores da primeira
guerra.
Não se pode deixar de notar, em contrapartida, que esse sentimento de compaixão
faz com que aumente a distância entre o narrador-protagonista e seus companheiros,
distância marcada pela diferença de registro linguístico: o narrador-protagonista, tanto ao
descrever outros personagens e os espaços quanto ao dialogar com outros soldados, utiliza
um registro elevado. Inversamente, a fala de seus companheiros é marcada por gírias,
pronúncias típicas e aglutinações de palavras. A diferença também se dá pelo pronome de
tratamento (“fils”\“mon petit frère”), que indica não só diferença de idade, mas também de
nível cultural e socioeconômico, do narrador em relação a seu interlocutor. Por intermédio
dessa consciência central, que nos garante a estabilidade das categorias de tempo e de

49 O trecho apresenta características estilísticas muito específicas. Procurei, na tradução abaixo, apenas dar uma
idéia aproximada do efeito produzido pelo original: “- Diz aí, cê que escreve, cê vai escrever depois sobre os
soldados, cê vai falar da gente, hein?/ - Certamente, filho, falarei de você, dos companheiros, de nossa
existência... [...]/ Ele indica com a cabeça os papéis em que eu tomava minhas notas. O lápis em suspenso, eu o
observo e o escuto. Ele deseja me perguntar algo./ - Diz aí, faz favor... [...] si cê faz o pessoal falar em seu livro,
cê vai fazer eles falar como eles fala, ou cê vai dar uma ajeitada, pôr no bom português? É por causa dos
palavrões que a gente aqui solta a torto e a direito, cê nunca vai escutar dois soldados abrir a boca um minuto
sequer sem que eles digam coisas que os editores não vão gostar nem um pouco de publicar.” BARBUSSE, Henri.
Le Feu. In: Les grands romans de 14-18. Paris: Omnibus, 2006, p.126.
50 Os soldados franceses que participaram da primeira guerra eram chamados poilus (“peludos”) por seu aspecto

nas trincheiras, onde não havia a possibilidade de cuidar da higiene pessoal. A palavra, no entanto, não possui
conotação pejorativa.
51 Um exemplo claro é L‟Assommoir, em cujo prefácio lemos: “É a moral em ação, simplesmente. L‟Assommoir é

cerrtamente o mais casto de meus livros. [...] Meu crime foi ter tido a curiosidade literária de recolher e colar em
um molde bem trabalhado a língua do povo.[...] Eu não me defendo, aliás. Minha obra medefenderá. É uma
obra de verdade, o primeiro romance sobre o povo, que não mente e que tem o odor do povo.” ZOLA, Emile.
L‟Assommoir. Paris : Gallimard, 1978, p.25.
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espaço, o leitor toma conhecimento da guerra e se “conscientiza” do seu significado


“verdadeiro”.
Assim como no romance de Barbusse, em Voyage au bout de la nuit nos deparamos
com um narrador em primeira pessoa que apresenta ao leitor as experiências de um
soldado de infantaria durante a guerra de trincheiras. Contudo, a narrativa aqui, como já foi
dito, é um fluxo de enunciação contínuo. Ao contrário do que acontece em Le Feu, o modo
dramático não predomina em Voyage au bout de la nuit, sendo quase sempre substituído
pelo ponto de vista fixo do narrador-protagonista. O tom febril da narrativa desfaz a
objetividade do mundo narrado e cria um amálgama entre os acontecimentos pregressos e
as impressões do narrador no decorrer da enunciação. Tais fatores concorrem para tornar
vulnerável a confiabilidade da consciência central: tanto no momento em que vivenciou os
acontecimentos quanto no de transmiti-los, as categorias de tempo e espaço se encontram
abaladas aqui, e “desrealizam” o mundo narrado.
Os dois trechos que transcrevo a seguir devem permitir um adensamento das
reflexões que acabo de expor. O primeiro pertence a Le Feu, romance em que pululam
batalhas grandiloquentes e o segundo, de Voyage, é a única cena de combate em todo o
romance:
Trecho de Le Feu:

– Tout à coup, une explosion formidable tombe sur nous. Je tremble jusqu‟au crâne, une
résonance métallique m‟emplit la tête, une odeur brûlante de soufre me pénètre les narines
et me suffoque. La terre s‟est ouverte devant moi. Je me sens soulevé et jeté de côté, plié,
étouffé et aveuglé à demi dans cet éclair et ce tonnerre... Je me souviens bien pourtant :
pendant cette seconde où, instinctivement, je cherchais, éperdu, hagard, mon frère d‟armes,
j‟ai vu son corps monter, debout, noir, les deux bras étendus de toute leur envergure, et une
flamme à la place de la tête ! 52

Trecho de Voyage:

Ce fut la fin de ce dialogue parce que je me souviens bien qu‟il a eu le temps de dire
tout juste : „Et le pain ?‟ Et puis ce fut tout. Après ça, rien que du feu et puis du bruit avec.
Mais alors un de ces bruits comme on ne croirait jamais qu‟il en existe. On en a eu tellement
plein les yeux, les oreilles, le nez, la bouche, tout de suite, du bruit, que je croyais bien que
c‟était fini, que j‟étais devenu du feu et du bruit moi-même.
Et puis non, le feu est parti, le bruit est resté longtemps dans ma tête, et puis les bras
et les jambes qui tremblaient comme si quelqu‟un vous les secouait par derrière. Ils avaient
l‟air de me quitter et puis ils me sont restés quand même mes membres. Dans la fumée qui
piqua les yeux encore longtemps, l‟odeur pointue de la poudre et du soufre nous restait
comme pour tuer les punaises et les puces de la terre entière. [...]
52 BARBUSSE, Henri. Le Feu. op. cit., p.126. “De repente, uma explosão gigantesca despenca sobre nós. Tremo até a
medula, uma ressonância metálica preenche minha cabeça, um odor cáustico de enxofre penetra minhas narinas e
me sufoca. A terra se abre diante de mim. Eu me sinto ser levantado e jogado de lado, dobrado, sufocado e quase
cego por essas centelhas e essa tempestade... eu procurava, consternado, abatido, meu companheiro de combate,
eu vi seu corpo se erguer, em pé, negro, os dois braços estendidos em toda sua envergadura, e uma chama no lugar
da cabeça!”.
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Ils s‟embrassaient tous les deux pour le moment et pour toujours mais le cavalier
n‟avait plus sa tête, rien qu‟une ouverture au-dessus du cou, avec du sang dedans qui
mijotait en glouglous comme la confiture dans la marmite.53

Quando se colocam os trechos lado a lado, fica difícil acreditar que Céline não tenha
tido diante de si a passagem do livro de Barbusse ao sentar-se para escrever essa cena de
seu romance, que parece retomar e parodiar, ponto por ponto, a cena criada por Barbusse.
A locução adverbial “tout à coup”, que inicia o trecho de Le Feu, anuncia a mudança
do tempo verbal para o presente. Em seguida, uma explosão terrível “tombe” sobre o
narrador e seu companheiro Poterloo, prenunciando o clímax do trágico capítulo Le
Portique. Em Voyage, a expressão “Et puis ce fut tout” tem função semelhante à locução
adverbial de Barbusse, com a diferença de que o tempo verbal não se modifica e as
impressões do protagonista, ao serem relembradas, mesclam-se ao próprio ato de
enunciação, interferindo na organização do material linguístico: o período seguinte parece
reforçar ainda mais o efeito de espontaneidade pela construção truncada “Après ça, rien
que du feu et puis du bruit avec”. A explosão não é nomeada como em Barbusse, mas
apresentada em uma metonímia de impressões que se sobrepõem por meio de um
intrincado jogo sintático. Enquanto em Barbusse as três orações do período que narra os
efeitos da explosão sobre o protagonista estão sintaticamente completas ( 1.“je tremble
jusqu‟au crâne”, 2. “une résonance métallique m‟emplit la tête”, 3. “une odeur brûlante de
soufre me pénètre les narines et me suffoque”), em Céline, elas estão imbricadas (“les yeux,
les oreilles, le nez, la bouche, tout de suite, du bruit”). Além disso, à quebra da hierarquia
sintática da frase corresponde um abalo momentâneo da separação entre consciência e
mundo objetivo (“j‟étais devenu du feu et du bruit moi-même”).
Nota-se ainda que no trecho de Le Feu o narrador utiliza o presente do indicativo, o
que gera uma espécie de imobilidade e contribui para uma das características fundamentais
desse romance: a de produzir, com tons simples e sinceros, uma série de imagens, de
quadros exemplares. Justamente por isso, no momento de maior proximidade com a
consciência interior do protagonista, a sequência dos verbos no particípio passado

53 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.22. “Foi o final do diálogo, porque me lembro que ele só
teve tempo de dizer: „E o pão?‟. E pronto. Depois, nada a não ser fogo e barulho juntos.Mas um desses barulhos
como jamais pensaríamos que existisse. E que nos atacou de tal forma, bem direto nos olhos, nos ouvidos, no
nariz, na boca, imediatamente, esse barulho, que pensei que era o fim, que eu mesmo tinha virado barulho e fogo.
E depois, não, o fogo foi embora, o barulho ficou muito tempo na minha cabeça, e depois nos braços e nas pernas
que tremiam como se alguém os sacudisse por trás. Pareciam me abandonar, e depois finalmente ficaram comigo,
meus membros. Na fumaça que pinicou os olhos ainda durante um tempo, o cheiro forte da pólvora e do enxofre
ficava como que para matar os percevejos e as pulgas da terra inteira. [...]
Os dois se beijavam, naquele momento e para sempre, mas o cavaleiro não tinha mais cabeça, só uma abertura
em cima do pescoço, com sangue dentro que cozinhava em fogo brando fazendo gluglu como geléia no tacho.”
CÉLINE, Louis-Ferdinand, Viagem ao fim da noite, p.24.
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(soulevé/ jeté/ plié/ étouffé/ aveuglé) sugere uma sucessão temporal absolutamente
previsível, clara e ordenada. A sequência de verbos subsequente corresponde exatamente,
de modo verossímil, ao que ocorreria a um soldado atingido pelo choque de uma explosão:
ele seria levantado do chão pela onda de choque e jogado de lado, dobrado sobre seu ventre.
Em seguida, a fumaça lhe sufocaria e cegaria temporariamente como, afinal, “deve” ocorrer
com aqueles que são atingidos por explosões desse tipo. Contudo, nesse momento, nós não
estamos mais verossimilmente “dentro” da consciência do protagonista, que dificilmente
teria uma percepção tão clara de tais acontecimentos. Trata-se de um aspecto problemático
da obra de Barbusse, se levar-se em conta o fato de que ela pretendia trazer à tona a
experiência da guerra, em toda sua crueza, pelo testemunho de quem realmente a
vivenciou. É justamente aqui que a premissa de ser realista – o que Barbusse, em larga
medida, acreditou ser possível fazer nos moldes clássicos – torna-se paradoxal: tais
experiências, para serem representadas desse ponto de vista, de modo realista, exigem uma
alteração nas coordenadas de tempo e espaço, as duas categorias fundamentais da
percepção. O critério de verossimilhança se torna uma aporia aqui, uma vez que o caráter
disforme de uma experiência traumática não se adapta a uma sucessão temporal regular e a
uma concomitante linearidade sintática. O final grandiloquente desse trecho tampouco
escapa de rasgos idealizantes: o narrador, após a explosão, busca “instinctivement” seu
“frère d‟armes”, afirmação que nosso olhar contemporâneo não acolhe sem ironia.
Finalmente, a aparição do corpo decapitado, no particípio passado, é intensificada pelo
ponto de exclamação: torna-se um exemplo do desespero tanto do narrador quanto do
protagonista, que se unem patologicamente nesse ponto culminante do testemunho.
Algo bem diverso ocorre no trecho de Voyage, em que o protagonista, após tornar-se
fogo e estrondo, aos poucos, quase que literalmente, recompõe-se diante do leitor, como um
boneco de marionetes que reatasse seus fios, ao que corresponde o gradual
restabelecimento de uma hierarquia sintática. Os membros do corpo do protagonista, assim
como os elementos da oração, voltam gradualmente a seus lugares, após terem sido
“chacoalhados” por uma força alheia, e submetem-se novamente a sua vontade.
Curiosamente, assim como o protagonista de Le Feu, Bardamu também se depara com a
imagem dos corpos de outros soldados que acabaram de morrer. Entretanto, os termos que
emprega na descrição da cena parecem opostos aos que utilizara o narrador de Le Feu, pois
neles a grandiloquência é substituída por um símile culinário (“la confiture dans la
marmite”).
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O pathos exalado pela descrição do companheiro morto em Le Feu é substituído em


Voyage por um olhar analítico, de tonalidade cômica. Tampouco se trata de um traço
secundário, mas central, que descrições escatológicas do corpo e de suas funções biológicas
sejam presença massiva em Voyage. No trecho comentado, essa dimensão corporal se opõe
à pretensão de autonomia da consciência central, entidade abstrata, tensão que se
materializa na experiência traumática. Em uma construção como “pour le moment et pour
toujours” comicamente redundante, a inclusão do segundo termo (“et pour toujours”)
parece corresponder a uma constatação imediata do narrador, reiteração típica de
enunciados orais, que introduz uma cesura no tecido narrativo.
De todo modo, a análise mostra que a regularidade sintática do trecho de Le Feu
sinaliza a presença de uma consciência central organizadora cuja credibilidade é assim
reforçada. A asseveração desse narrador, premissa do testemunho, garante sua capacidade
de comover a si mesmo e ao leitor, por identificação, com aquilo que relembra. Já no trecho
de Voyage, os elementos se sobrepõem uns aos outros em diversos níveis e,
consequentemente, todo o universo representado se desfaz num feixe de impressões
desconexas. O aspecto traumático da experiência é reconstruído estilisticamente e o leitor já
não pode assumir a distância necessária para se comover, o que insere Céline no rol dos
escritores cujas obras buscam justamente desestabilizar o leitor comum, subvertendo suas
expectativas. No final de Le Feu, o narrador profere um longo discurso endereçado aos
soldados, agora identificados como os trabalhadores (“Ah! vous avez raison, pauvres
ouvriers innombrables de battailles”), para que se unam em torno do ideal de igualdade
(“Il y a surtout l‟égalité!”). O efeito desse longo discurso sobre o leitor é consolador (“la
preuve que le soleil existe”), mas de uma consolação conquistada à custa da pluralidade
semântica da ficção. Não por outro motivo, a desolação que sentimos ao percorrermos as
páginas de Voyage... é o melhor indício de que Céline levou às últimas consequências seu
ofício de romancista.
Em seu ensaio “A posição do narrador no romance contemporâneo”, Adorno
compara alguns dos romances contemporâneos a epopéias negativas, por eles
representarem um processo de reificação avançado a ponto de tornar impossível a
emergência de uma consciência individual. Consequentemente, nesses romances se
tornaria praticamente impossível definir qual a “tomada de posição” por parte do autor54.
Wayne Booth criticou a “ambiguidade moral” do ponto de vista adotado por Céline e, de um

54 “Nenhuma obra de arte moderna que valha alguma coisa deixa de encontrar prazer na dissonância e no
abandono”. ADORNO, Theodor W. A posição do narrador no romance contemporâneo. Notas de Literatura I.
Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003, p.62.
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modo geral, o relativismo na arte moderna. Entretanto, tudo indica que Voyage au bout de
la nuit, ao furtar-se a uma representação objetiva, atenha-se justamente à premissa realista
de dizer “como as coisas realmente são” de que fala Adorno em seu ensaio.
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Da Centralidade de Canudos

César Takemoto1

“Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar pra abranger de um lance o conjunto da
terra. E nada mais divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese
do que vira. Ali estavam os mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob
o indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas... Mas a reunião de tantos traços
incorretos e duros – arregoados divagantes de algares, sulcos de despenhadeiros, sovacas de
bocainas, criava-lhe perspectiva inteiramente nova. E quase compreendia que os matutos
crendeiros, de imaginativa ingênua, acreditassem que „ali era o céu...‟
... Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d‟água, divagando,
serpenteantes...
... Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa
dessas voltas via-se uma depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a
toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme de casebres...” 2

É bem provável que nem mesmo Euclides da Cunha pudesse prever a quantidade de
ressonâncias históricas que estariam contidas nesse fragmento d‟A Terra. Nós leitores,
contudo, não devemos de forma alguma deixá-las passar sem alguma reverberação. Nessa
tomada decisiva o narrador nos dá, ao assumir uma posição nas alturas – propriamente
divinas –, para contemplar a Terra, uma (auto) imagem perfeita do seu ponto de vista
narrativo: a perspectiva euclidiana é aquela que no distanciamento máximo encontra o
princípio de estetização do que ele chama de “reunião de tantos traços incorretos e duros”,
do mundo do sertão, enfim. Sua distância superior é o que permite uma suavização da
aspereza própria ao seu objeto, assim como uma respectiva correção – julgadora – deste. A
imagem dos “pequenos cursos d‟água” que “mal se lobrigavam” nos faz ver a terra como um
grande organismo doente, abandonado a si, mas que no entanto se deixa ver em sua linha
mestra, o distinto “Vaza-Barris”, aquele que organiza, por assim dizer, o caos da “planície
rugosa”. Uma imagem que talvez nos faça lembrar as tão cotidianas tomadas
cinematográficas, ou mesmo televisivas – feitas do alto de um helicóptero – de alguma das
favelas de uma grande cidade brasileira, planos de câmera que enquadram encarnando o
horror do urbanismo caótico e catastrófico a que nos levou nossa modernização, ou mesmo
que rastreiam vertiginosamente em suas vielas algo que lhes conduza para fora da vertigem

1 Mestrando do Departamento de Teoria Literária da Universidade de São Paulo. Email: cesartakem@hotmail.com


2 Euclides da Cunha, Os sertões (A Terra), São Paulo: s/d., p. 40-44.
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do presente (explica-se: esse “algo” como um corpo criminoso qualquer, o do momento).


Pois é da modernização, de uma visão da modernização, de que se trata. Na certa não
seremos os primeiros a notar que a vitória sobre Canudos pôde se dar principalmente por
estratégicas logísticas – e não militares stricto senso – como a abertura de estradas para o
interior da área visada pelas expedições, permitindo assim que uma pioneira dinâmica de
circulação pudesse se normalizar. Ora, não estaria cifrada aqui, de maneira quase alegórica,
a própria lógica da modernização espacial brasileira em seu estéril investimento em
sistemas viários? (Lembremos que a linha do trem vai apenas até certa etapa, Queimadas...)
Olhando do topo da modernização, do ápice – já há muito tempo declinante – do progresso
à brasileira, que visão é essa que permanece e insiste para além d‟ “os matutos” que crem
estar no céu? Aliás, que espécie de matutos somos nós a olhar para essa imagem?
O olhar distanciado, superior e cuja perspectiva se pretende neutra, em Euclides
assume ares de tribunal da História. Este, um dos inúmeros achados catalogados e
ressistematizados pelo generosíssimo livro de Willi Bolle, grandesertão.br3. Se temos em
mente que o fragmento acima está contido numa obra formalmente épica – bélica, coletiva,
grandiosa –, a imagem que dali se desprende passa a funcionar em certa medida como o
nível zero para certa compreensão do conflito em questão, a saber: o embate entre o poder
central e as forças sertanejas. Embate, entretanto, que se submete a um paradoxo muito
específico: o “poder central” tem sua sede não no interior do território sobre o qual pensa
ter validade e legitimidade, mas na sua costa periférica mesma, massacrando com
exacerbada violência aquilo que Euclides chamou de “o cerne vigoroso da nossa
nacionalidade”4 – porque gestado em isolamento quase ideal por séculos, o contrário
mesmo da vida “internacional” litorânea. A república brasileira, recém-nascida e
corporificada pelo seu exército, transparece toda a sua fragilidade na ignorância sobre o seu
país, dialeticamente expressa pela obsessão descritiva sistemática da primeira parte do
livro. Sintomaticamente a ignorância é transferida para o lado dos pobres rebelados que
seguiriam um líder místico e pré-histórico, responsável por distraí-los “de suas
obrigações”5. No entanto, é a própria narrativa euclidiana que descreverá o momento
decisivo no qual o primeiro passo da desordem – para retomar aqui os termos cruciais da
dialética da malandragem6 - é dado, pra variar, pelo latifundiário, que se recusa a pagar sua

3 Willi Bolle, grandesertão.br, São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2004. A generosidade em questão diz respeito à
abrangência da bibliografia estudada e da incorporação não preconceituosa – mas crítica – de seus predecessores,
a quem não nega o debate.
4 Euclides da Cunha, op.cit., p. 213.
5 Euclides da Cunha, op. cit., p. 295.
6 Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in: __. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998.
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parte numa transação comercial feita com o Conselheiro7. (De resto, o pecado original da
burguesia brasileira, que não se pauta nem pela igualdade formal pressuposta pela ordem
econômica da qual é tributária – e subordinada – direta).
Ora, uma comunidade messiânica seguindo seu líder pelo deserto e em busca da
Terra Santa não deve nos cegar – ou, melhor dizendo, ensurdecer – às ressonâncias
políticas profundas dos textos do Gênesis bíblico reconfigurados na grande narrativa
euclidiana, como já nos indicou Walnice Nogueira Galvão 8. Um dos méritos de Euclides foi
justamente – mesmo que de forma injusta – ter apontado para o caráter messiânico da
comunidade de Canudos, se não me engano a única tentativa de cisão radical – ou melhor,
de política subtrativa9 –, no Brasil, total e internamente conduzida pelos pobres. Se seu
cientificismo é a marca de classe de seu narrador – determinando sua posição de intelectual
europeizado, apesar de apenas semiatualizado10 – a visão euclidiana não pode se reduzir a
ele, e de fato não o faz: o índice formal disso é a sua tragicidade. Para Antonio Candido, é
esse sentimento trágico que permite a Euclides escapar ao mecanicismo cientificista e
mesmo às determinações da sociologia para ganhar contornos sobrenaturais, quase
míticos11.
Canudos nos acena como uma tentativa histórica que nos cabe compreender e
reformular. Foi um lacaniano heterodoxo que, sem ter estudado ou mesmo conhecer o
Brasil em profundidade12, enxergou Canudos como o momento em que a liberdade tornou-
se efetiva: a brutalidade com que até as mulheres e crianças foram massacradas pelos
soldados da Nova República – que já nascia esclerosada – prova dialeticamente que a
utopia de fato existiu lá, daí a necessidade – e ao mesmo tempo a impossibilidade – de

7 “Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhes as
caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade.
Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não
lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado.” in: Os sertões,
Vol. II, A luta, p. 18.
8 Walnice Nogueira Galvão, “Euclides da Cunha”, in: Pizarro, Ana (org.), América Latina: Palavra, Literatura e

Cultura. Vol. II: Emancipação do Discurso, pp. 628- 633, citado in: Willi Bolle, op. cit., p.75.
9 O termo politique soustractive foi cunhado por Alain Badiou no atual contexto de esgotamento da política

negativa, política cujo horizonte último e radical é a revolução social. Esgotamento não no sentido da revolução
não ser mais necessária – uma vez que ela é mais necessária do que nunca – mas em estarmos impossibilitados
realizá-la no atual estado de coisas de maneira, digamos, programática. Seria então necessário concentrar-se
numa figura propriamente subtrativa de política, na tentativa de prendre congé de, de se subtrair à agenda e à
lógica da política parlamentar-democrática oficial para criar condições de possibilidade para a volta da política
negativa propriamente dita. Cf. Logique des mondes, Paris: Seuil, 2006.
10 Cf. “Euclides da Cunha, sociólogo” in: Antonio Candido, Textos de intervenção, São Paulo: Duas Cidades /34,

2002, p. 180.
11 Idem, p. 182.
12 Sua referência é antes La guerra del fin del mundo de Mario Varga Llosa, uma das reescrituras d‟Os Sertões,

como trataremos adiante. Sem entrar no debate do romance do escritor peruano, como não deixar de notar que o
evento de Canudos, raramente estudado a sério no Brasil, parece ser mais discutido fora do que dentro do país? A
grande exceção honrosa, aqui, talvez não deixe de ser a própria Walnice Nogueira Galvão em Vida e Morte em
Belo Monte.
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apagar todo e qualquer vestígio dela13. Nessa extraordinária rejeição do espaço estatal, é
como se “o outro lado benjaminiano do progresso histórico, o dos derrotados, adquirisse
seu próprio espaço”14. Talvez aqui seja o lugar onde possamos melhor identificar a razão da
utilização da perspectiva trágica por Euclides. Não seria então o caso de inverter a
conclusão de Antonio Candido e dizer que essa perspectiva em última instância não escapa
ao cientificismo e nem à sociologia, mas pelo contrário, lhes reforça – até ao paroxismo – a
fatalidade própria? A fatalidade científica transfigurada em tragédia poderia então ser
compreendida como a maneira de Euclides da Cunha se desvencilhar da culpa de haver ele
mesmo defendido a intervenção militar no sertão baiano, uma vez que a lei trágica é, uma
vez enunciada, inexorável. O traço patético dessa tragicidade – entendida com uma nobre
elevação do destino fúnebre daqueles sertanejos – é o índice de culpa da intelectualidade e
da classe governamental brasileira que apoiou em bloco – com honrosas exceções – a
campanha em suas sucessivas expedições. O trágico euclidiano é a marca formal do mea-
culpa socialmente objetivo ante a barbárie. A República brasileira nasce sob o signo de
Canudos.
É a partir dessas considerações que podemos redefinir a altiva perspectiva euclidiana
como antiutópica, uma vez que para ela não há lugar algum fora do espaço total abarcado
por sua descrição aspirante ao controle. Daí a linearidade de sua narrativa que não faz mais
do que acompanhar – de modo mesmo extenuante – a linearidade das expedições militares
mesmas15. Ao decretado massacre republicano de Canudos corresponde a estilização
pseudotrágica da visão antiutópica euclidiana. Ora, na literatura brasileira há pelo menos
um texto que se antecipa a essa formalização a posteriori euclidiana, em sentido
incisivamente diverso ou mesmo contrário: uma breve crônica de ninguém menos que
Machado de Assis16 – intitulada “Canção de piratas” e publicada pela primeira vez na
Gazeta de Notícias em julho de 189417 – apresenta-se como um espécie de libelo romântico
em defesa do Conselheiro e seus 2000 seguidores18, tal qual se deduzia na época19. O
enquadramento geral dos fatos que chegam ao Rio de Janeiro – não só sobre Canudos, mas
também sobre um outro grupo denominado os “clavinoteiros de Belmonte” – é estético, no

13 Ver a “Introdução à edição brasileira” de Slavoj Zizek, Às portas da revolução, São Paulo: Boitempo, 2005.
14 Idem, p. 16.
15 Zé Celso transpôs esse traço formal para a cena teatral como um grandioso estupro coletivo.
16 A narrativa euclidiana é a posteriori porque se propõe contar a história da tragédia de Canudos depois não só de a

ter ajudado, mas de a terem levado a cabo. Ela se opõe frontalmente à crônica machadiana que, em seu estupendo
apriorismo, abre uma perspectiva utópica quase insuspeitada em sua obra.
17 E portanto já um bom tempo após a famosa virada inauguradora de sua segunda fase – a elaboração e a

publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Cf. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo,
São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000.
18 Machado de Assis, “Canção de piratas” in:__. Páginas Recolhidas, Rio de Janeiro: Globo, 1997.
19 Walnice Nogueira Galvão, No calor da hora, São Paulo: Ática, 1994.
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sentido de que Machado os defende primordialmente como matéria soberba a inspirar e


mesmo fazer renascer os artistas e poetas de seu tempo, tal qual a figura dos “piratas”
inspiraram Victor Hugo e os poetas de 1830. Tal perspectiva estetizante, veremos, é uma
estratégia de reconstrução, em âmbito brasileiro, de um espaço propriamente utópico, uma
dimensão que muitos jamais ousariam admitir em nosso autor maior. Machado, aqui, não
se propõe a ir além das informações dadas pelo telegrama recém chegado da Bahia,
preferindo ater-se à suas poucas palavras e desentranhar delas algo como uma particular
explosão imaginativa. Em seu gesto retórico que visa resguardar da figura do conselheiro a
sua aura – pois sim, trata-se de manter uma distância soberanamente poética do real de
Canudos – misteriosa e poética, temos já uma consciência que está nos antípodas do
espírito científico que abriu o crânio do messiânico líder para ali enxergar as
“circunvoluções expressivas” que resumiam o espírito “do crime e da loucura” daquela “
„rede inextricável dos becos tortuosos” da Jerusalém de taipa‟ ”20. Aos invés de exorcizar a
organização legionária, Machado vai lhe dar um estatuto propriamente eventivo
(événementielle)21: em fidelidade aos seus antecessores românticos, ele vai saudar no seu
presente um sujeito social capaz de – mesmo que virtualmente – suspender ou tornar
irrelevante a ordem social vigente:

Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com os seus dois mil homens, não é o
que dizem telegramas e papéis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes,
sem ofício nem benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências,
tudo o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos desta vida social e pacata, os mesmos
dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas virtudes. Não
podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de
entrada e de saída, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por lei; os consórcios
celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com a
etiqueta dos carros e casacas, palavras simbólicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa à
regulamentação universal; o finado há de ter velas e responsos, um caixão fechado, um carro que
o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu... Não, por Satanás! Os partidários do
Conselheiro lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta da civilização e
saíram à vida livre. 22

Como essa crônica faz parte do exórdio da história escrita sobre Canudos (pouco
restou da, ou jamais houve, história escrita por Canudos), Machado a constrói com dados
imaginários/literários que se negam à investigação catalogadora e sábia de um Euclides, de
um lado, e não se arriscam a enunciar previamente o seu teor de verdade, de outro. A ironia

20 As citações entre aspas são de diversos trechos d‟Os Sertões e foram colhidas no capítulo “O sertão como forma de
pensamento” da obra de Bolle acima citada, p. 79.
21 Para o desenvolvimento completo da noção de événement, articulado a uma reabilitação das categorias da

verdade e do sujeito – e portanto em espírito absolutamente contrário ao banimento sumário destas na filosofia
contemporânea – remeto a obra magistral de Alain Badiou, L‟être et l‟événement, Paris: Seuil, 1988.
22 Machado de Assis, op. cit, p. 147.
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do escritor, para aqueles que dela sentiram falta, está na brutal diferença de entusiasmo
entre o objeto de sua crônica e a sociedade da República brasileira recém-proclamada... Ao
final do texto, ele propõe aos poetas uma composição que seja à altura de seu tempo, de
uma modernidade demograficamente crescente: “fora com as cantigas de pouco fôlego.
Vamos fazê-las de mil estrofes, com estribilho de cinqüenta versos, e versos compridos, dois
decassílabos atados por um alexandrino e uma redondilha”. À tarefa hiperbolizada lançada
pelo escritor fluminense, a literatura brasileira respondeu à altura – e largura, talvez até
literalmente demais: nem 10 anos depois Euclides publicava Os seus Sertões. Enterrou,
porém, com essa publicação, aquilo que Machado havia esboçado nessas páginas – agora,
retrospectivamente, visionárias. À distância machadiana que abria por assim dizer, no
plano da literatura, um espaço utópico, Euclides da Cunha interpôs um distanciamento
“cartográfico”, “um esprit de géometrie planejador” 23, propriamente estratégico-militar. A
formalização literária euclidiana, entretanto, – para parafrasear livremente algumas
considerações de Bolle24 – é tudo menos de ordem contingente, uma vez que capta em sua
fisionomia mais contraditória a razão instrumental à brasileira. Esta, por sua vez, encontra
a sua mais elevada manifestação urbano-arquitetônica no plano-piloto de Brasília, cuja
realização se dá nessa imensa construção no coração d‟ “O planalto Central do Brasil” 25. A
expressiva forma da capital brasileira – vista de cima – não faz muito mais do que refletir a
própria sombra do veículo chave dessa perspectiva: o avião26. Reflexo a bem dizer sombrio,
se lembrarmos que tal perspectiva está na origem formalizada por sobre a tragédia de
Canudos – e consequentemente implicada nela.

Como se contrapor ao estratagema da construção euclidiana dos sertões? Na literatura


brasileira27, estou convencido de que o romance que levou isso a cabo de maneira mais
consequente e sistemática foi o Grande Sertão: Veredas. Willi Bolle faz a demonstração
ponto por ponto desse diálogo (crítico) literário – uma reescrita propriamente dita – entre
os dois gigantes28 a partir da intuição crítica pioneira de Antonio Candido, que leu e
escreveu sobre a obra-prima de Guimarães sob o prisma das três grandes categorias
euclidianas: a terra, o homem e a luta29. Acrescentaria de minha parte que o próprio título

23 Bolle, op. cit., p. 76.


24 Idem.
25 Essas são, está claro, as palavras iniciais d‟Os Sertões, op. cit.
26 Não sem razão não cansamos de defender o pioneirismo técnico de Alberto Santos Dumont – um quase

contemporâneo da geração de Euclides – na aviação mundial.


27 E portanto sem contar com uma tentativa maior de reescritura, como o já mencionado La guerra del fin del

mundo, de Vargas Llosa.


28 Bolle, op. cit.
29 O texto original é de 1957 e chama-se “O sertão e o mundo”, republicado e refeito com o título “O homem dos

avessos”, in: __. Tese e antítese, São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.


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das obras brinca com esse espelhamento: Os Sertões, apesar de estar no plural, é uma obra
cujo horizonte é singular, visando um sertão progressivamente mais específico, numa
concentração espacial propriamente messiânica: “O sertão de Canudos é um índice
sumariando a fisiografia dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus aspectos
predominantes numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum”30.
Grande Sertão: Veredas está no singular, mas constitui-se num labiríntico vai e vem por
uma pluralidade, uma proliferação quase infinita de veredas e nomes sertanejos. O seu “–
Nonada” inicial se opõe negando frontalmente a descrição euclidiana no grandioso primeiro
parágrafo de sua obra, cujo centro é o planalto central do Brasil. O travessão, que
expressaria em algumas leituras um complexo dialogismo formal entre o sertanejo e o
homem culto31, pode ser lido também como um sinal de subtração, enfatizando o sentido
negativo da palavra inaugural do universo do romance e, ao mesmo tempo, determinando o
núcleo positivo basilar (básica regra de equação: menos com menos dá mais...) desse
catatau. Nonada é a versão sertaneja da Utopia – esta por definição um não lugar. O
romance rosiano tenta reabrir a brecha utópica que Machado articulou em sua crônica, não
recriando o distanciamento de tipo aurático, mas abolindo todo distanciamento a
aferrando-se a uma (re)criação radicalmente imanente. Programaticamente ou não, o
grande romance rosiano parece seguir as linhas gerais dessa romântica crônica
machadiana:

1- Coloca os “criminosos” no centro da narrativa, pintando-os em certa medida


também como “galantes e audazes”32 aventureiros que se libertaram da vida social
sedentária e suas instituições civilizadas pautadas pelo modelo sulista (fluminense);

2- Produz uma espécie de renascimento literário através de uma radical invenção da


linguagem, implodindo a “prosa dura” do naturalismo (porém sem abrir mão da pesquisa
documental) numa narrativa de fôlego, cujas virtualidades imaginativas são quase infinitas
(apesar de serem pautadas por uma forma rigorosa).

3- Mesmo a maneira machadiana de imaginar essas figuras da realidade sertaneja –


através de figuras da poesia européia – é de certa maneira reproduzida pelo recurso rosiano

30 E. da Cunha, op.cit, p. 53. O caráter messiânico é tradicionalmente dado em medida temporal: o tempo
messiânico é o tempo abreviado, da recapitulação. Cf. Giorgio Agamben, “Quatrième Journée” in: Le temps qui
reste, Paris: Rivages, 2004. O caráter messiânico de Canudos, entretanto, aparece em Euclides pela categoria do
espaço, pois a narrativa é retrospectiva e aquele tempo é uma recapitulação fatalista dos vencedores.
31 Principalmente Ana Paula Pacheco, “Jagunços e homens livres pobres”. Revista Novos Estudos CEBRAP nº81,

Julho de 2008.
32 Machado de Assis, op. cit.
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às narrativas de cavalaria em busca de modelos de conduta para pautar as ações dos


personagens33.

Nesse cruzamento, “o sertão virou mar” – ao ter seu mundo fecundado pela tradição
européia e pelos artistas brasileiros a ela vinculados. Mas também o “mar virou sertão”,
uma vez que a vida na capital brasileira – no litoral e voltada para o Atlântico34 – tornara-se
um deserto social... Foi José Antônio Pasta Jr. que identificou o princípio de hibridização
que determina a estruturação formal do romance35 como sendo a “vigência simultânea de
dois regimes da relação sujeito-objeto”, um que assume a distinção entre os dois e outro
que a abole. No limite dessa lógica encontra-se a própria relação obra-leitor, o que o crítico
expressa como uma luta de morte: ou o leitor é absorvido pelo universo da obra como que
por um “ato mágico”, ou o leitor a suprime enquanto uma rede singular de significações.
Ora, não teria o crítico encontrado aqui uma lógica supressiva que mimetiza infielmente, ou
seja, invertendo o sentido do evento de Canudos? Não é então verdade que todo momento
palpável de emancipação social pode ser comparado a um momento mágico onde as
relações sociais naturalizadas até então vigentes saem do eixo e se abrem a potencialidades
antes inimaginadas? E não é também verdade que o Estado brasileiro em sua desesperada
tentativa de supressão deixou entrever o seu inalienável excesso? Ora, visto por esse ângulo,
o romance rosiano mostra como soube se aproveitar, em âmbito literário, da dinâmica de
Canudos – que jamais se impõe inteiramente – e do seu simultâneo recalque próprio ao
contra-ato fundador da modernização brasileira. Está aí um outro lado da “ambiguidade
como princípio organizador” de Walnice Nogueira Galvão 36: “uma absoluta confiança na
liberdade de inventar”37 – própria da condição de classe de um narrador latifundiário – que
não entra em contradição com uma inconstância subjetiva permanente – pesada herança de
nossa não realização histórica.

33 Cf. Antônio Candido, op. cit., p. 130-31.


34 Como um dos vértices do triângulo comercial Portugal - África - Brasil, explorado de maneira concisa e em suas
consequências históricas por Luis Felipe de Alencastro no “Fardo dos Bacharéis”. Revista Novos Estudos CEBRAP
nº19, Dezembro de 1987, p. 69. Quando o fardo dos bacharéis em questão deixou de ser necessário – e se
estivermos corretos isso se deu em Canudos – ele foi prontamente substituído por um fardo militar.
35 No seminal artigo de José Antonio Pasta, “O Romance de Rosa – Temas do Grande Sertão e do Brasil”. Revista

Novos Estudos CEBRAP n° 55, Novembro de 1999, p. 62.


36 Ver a “Introdução” in:__. As formas do falso, São Paulo: Perpectiva, 1986, p. 13.
37 Antônio Candido, op. cit., p. 121.
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João Ternura
Um livro à revelia do próprio autor

Helena Weisz

Este trabalho pretende analisar o romance João Ternura, de Aníbal Machado, do


ponto de vista das contradições entre os projetos ideológicos do primeiro Modernismo e os
problemas trazidos pelo processo histórico nacional.
No momento em que inicia a escrita de seu único romance, em 1926, Aníbal
Machado partilha dos objetivos libertários e dos pressupostos ideológicos que animavam a
vanguarda artística brasileira. Como, no entanto, o romance continua a ser escrito até 1964,
é possível ver no movimento de sua forma um embate entre matéria narrativa e dinâmica
histórica da nação. Tal conflito acaba por fazer com que protagonista e obra entrem em um
processo de dissolução que os condena a subsistirem parcialmente inconclusos. A análise de
João Ternura traz à tona uma reflexão sobre as possibilidades de constituição do Brasil
como nação autônoma e independente.

**
Um só depoimento de Aníbal Machado, de 1941, a respeito de um encontro com
Carlos Drummond de Andrade, seria suficiente para demonstrar o alcance de sua fé no
futuro:

Depois de ter privado muito tempo com o poeta, só vim a conhecê-lo mais tarde
quando, indo visitá-lo certa manhã na Floresta, bairro de Belo Horizonte, o surpreendi no
pequeno escritório de sua casa a dar audiência às imagens de seu sonho. (...) Olhamos para a
estante e falamos sobre alguns escritores da nossa preferência, sobre a poesia que nos
aproximava mutuamente. Falamos depois sobre as coisas que nos revoltavam a ambos. E
sentimo-nos mais irmãos na revolta. Carlos deixou transparecer aqui a sua amargura irônica,
com vestígios de desânimo. Eu lhe confessei a minha fé na vida, na inevitável transformação
para melhor, do homem. Receei haver melindrado seus sentimentos com o meu otimismo.
Diante de um espírito tão sensível e lúcido, a minha confiança na vida parecia
grosseiramente inspirada em forças irracionais. Senti nos olhos do poeta um reflexo de
angústia. Percebi na sua figura a expressão, mais acentuada agora, de quem é agitado com
frequência pelas lutas do espírito.1

1 Aníbal Machado, “Aparição de Maria Julieta”, in:__. A arte de viver e outras artes. Rio de Janeiro: Graphia
Editorial, 1994, pp. 221-222.
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De fato, Aníbal Machado era de um otimismo desconcertante, o que pode ser


facilmente comprovado em sua crítica dispersa, ensaios, auto-retratos e nos depoimentos
de seus contemporâneos2. Não seria difícil compilar aqui inúmeras passagens onde tal
otimismo se manifesta. Para não cansar o leitor, fiquemos apenas com um exemplo, um
ensaio de 1939 por ocasião do centenário de nascimento de Machado de Assis3. Nele, Aníbal
se mostra inconformado com o pessimismo do autor, que especula ser tributário de um
excesso de civilização ou “ausência de instinto poético forte”; de um afastamento “das
forças e sugestões da terra” ou até mesmo de “qualquer trauma, alguma deficiência vital ou
complexo de inferioridade”.
Levando em conta que era próprio da crítica literária do decênio de 30 procurar
“estabelecer uma corrente recíproca de compreensão entre a vida e a obra, focalizando-as
de acordo com as disciplinas em moda, sobretudo a psicanálise, a somatologia, a
neurologia”4, a crítica de Aníbal se mostra afinada com certo espírito da época e toma a
obra pelo autor, buscando razões psíquicas que fundamentem niilismo tão insuportável
para um otimista de carteirinha.
Já se tem dito que Machado “aconteceu” no Brasil como um fenômeno isolado e
quase inexplicável. Tudo indica que continuará assim, sem correspondência íntima com o
nosso psiquismo profundo. Na desproporção entre o seu espírito e o do meio em que viveu
pode-se descobrir uma das condições de seu drama. Machado fez-se grande quase
clandestinamente.
Civilizando-se demais, caminhando muito adiante do nosso caos, no qual não chegou
a integrar-se por ausência de instinto poético forte, Machado foi antes de tudo uma
consciência viril, fria e implacável. O dom da lucidez ajudou-o a destruir o da simpatia
humana... (...)
Distanciado da vida, a regular e cerimoniosa distância dos amigos, afastado das
forças e sugestões da terra – Machado perdeu muito desses imponderáveis que enriquecem o
subconsciente do artista, mas ganhou em imparcialidade, em análise miúda e sarcástica. A
realidade não foi para ele esse mundo ardente e perpetuamente em fusão em que os grandes
romancistas ingleses e russos parecem mergulhar e nadar; serviu-se dela como se entrasse
num depósito de material a fim de retirar dali unicamente os elementos de que necessitava
para justificar uma atitude do espírito e uma concepção da vida: a sua atitude pessimista, a
sua concepção de cético e negador implacável. Encontrava então em si mais forças para
permanecer longe e acima de tudo como um desertor assustado, do que embaixo vociferando
ou cantando. Da vida só interessava ao escritor aquilo que servisse para instruir a sua
concepção previamente desencantada da vida. À terra também nada ficou devendo: voltou-
se para o homem em si, na sua solidão ou no seu ridículo de figurante da comédia humana.
Essas influências eletivas – mais para o homem moral, menos para o ser vivo e para a terra –
naturalmente influenciaram o seu estilo desnudo, gracioso, maravilhosamente límpido. Já
tem sido notado que qualquer trauma, alguma deficiência vital ou complexo de inferioridade

2 Ver as coletâneas de crítica dispersa e ensaios A arte de viver e outras artes, cit. e Parque de Diversões. Org. Raúl
Antelo, Belo Horizonte / Florianópolis: Ed. UFMG / Ed. UFSC, 1994.
3 A. Machado, “Machado de Assis”, in:__. A arte de viver e outras artes, cit., pp. 140 a 145.
4 Cf. A. Candido, “Esquema de Machado de Assis”, in: Vários escritos, São Paulo: Duas cidades, 1995, pp. 17 a 39.

Também não devemos deixar de observar que a entrada da psicanálise na crítica literária leva, no caso de Aníbal,
muita água para o moinho de uma confusão entre público e privado (ou entre esfera autoral e elaboração artística,
entre vida e arte sem mediações formais) que podemos verificar na íntegra do texto anterior e neste mesmo, sobre
Machado de Assis.
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(o da origem humilde e o da cor, numa sociedade preconceituosa) teriam marcado para


sempre o destino de Machado. Tudo isso o tornara vigilante consigo mesmo, orgulhoso e
sensitivo. E nessa preocupação de recato, de boas maneiras, nesse amor-próprio protegendo-
se contra ferimentos possíveis, perdeu o homem os estados de distração, de abandono e
consentimento; perdeu a humildade, a espontaneidade; perdeu o melhor de si mesmo. O seu
pessimismo desanimado privou-o de atingir o “lado solar da vida”, na expressão do Sr.
Tristão da Cunha. A vida é que é má e absurda ou era a Machado que faltava, além da
vontade da luta, os elementos de fundo poético-irracional e as condições objetivas que
deveriam fazê-lo reconciliar-se com ela? O autor de Dom Casmurro escolheu o lado das
coisas que lhe dava razão para apoiar o seu niilismo fundamental. Nenhuma personagem
generosa em sua galeria; nenhum episódio heroico. E quando a vida, à revelia do artista,
começa a se compor em sua obra com certa frescura e inocência, ei-lo que aparece – o autor
– com seu olhar sorridente e mordaz, para avisar que tudo é ilusão passageira. Instinto,
alegria, progresso, ambição, amor – tudo vai desembocar no Nada.

A aversão de Aníbal Machado pelo que se considerava o desencanto machadiano não


é um caso isolado. Ao contrário, os modernistas em geral incomodavam-se com o
pessimismo do autor de Dom Casmurro, que entrava em choque com uma visão positiva da
modernização que caracterizava o movimento. Tal desconforto, que incluía até mesmo
escritores de consciência crítica aguda como Mário de Andrade, correspondia à “ideia de
que a elite brasileira, com sinceridade, com boa vontade e com abertura para o povo, que
era como que a sua família, iria arrumar esse país. Era um pouco a maneira com que Mário
e o Modernismo se viam a si mesmos.”5 Para Aníbal, o espírito sombrio de Machado de
Assis não corresponderia ao “nosso psiquismo profundo” que seria, portanto, solar. O
excesso de civilização e a “consciência implacável” do autor teriam-no impedido de
abandonar-se a esse “caos” ardente e “perpetuamente em fusão” que seria a realidade
brasileira e enxergar “certa frescura e inocência” em um terreno social problemático, sim,
mas pronto para ser transformado. Vê-se daí que, ainda que parecendo “grosseiramente
inspirada em forças irracionais”, a confiança de Aníbal Machado no processo histórico seria
algo difícil de demover.
Alinhados com a produção crítica do escritor, alguns estudos recentes sobre a obra
de Aníbal Machado tendem a ver nos contos e em João Ternura o otimismo que
impregnava seus artigos de jornal.6 No entanto, em outro enfoque de leitura, é possível

5 Cf. Roberto Schwarz, “Conversa sobre „Duas Meninas‟”, in:__. Sequências Brasileiras, São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p.234.
6 A esse respeito, ver entre outros: Maria Angélica Guimarães Lopes, “Aníbal Machado e o sonho” e “Nas asas do

boato: a contística de Aníbal Machado”, in: A coreografia do desejo: cem anos de ficção brasileira, São Paulo:
Ateliê Editorial, 2001, p. 115 a 126 e 127 a 138; M. Cavalcanti Proença, “Os balões cativos”, in: A. Machado, A
morte da porta estandarte e Tati, a garota e outras histórias, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1978, pp. xi a xxx;
Antonio Dimas, “Magia e Ternura”, in: Os melhores contos de Aníbal Machado. São Paulo: Global, 1986, pp. 5 a
12; e Maria Augusta Bernardes da Fonseca, “Vento, gesto, movimento: a poética de Aníbal Machado”, Tese de
Doutoramento em Teoria Literária. Departamento de Linguística e Línguas Orientais. FFLCH/USP. Orientador:
Prof. Dr. Boris Schnaiderman, 1984.
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perceber as marcas dos abalos nessa confiança na “inevitável transformação para melhor do
homem” ao longo de seu único romance.
João Ternura tem uma história singular: iniciado ainda na década de 207, o livro foi
concluído a custo em 1964, ano da morte do autor, e publicado apenas postumamente, em
1965, por iniciativa do amigo Carlos Drummond de Andrade. Otto Maria Carpeaux resume
bem a expectativa em torno da obra:

Quando conheci Aníbal – parece-me que foi em 1941 – me diziam os amigos: os


contos são ótimos, muita outra coisa ótima está escondida nas gavetas, mas Aníbal ainda não
tem dado toda a medida do seu talento; espere o João Ternura. Eles próprios já esperavam,
então, há anos, esse João Ternura que já estaria escrito mas ainda não definitivamente
redigido, ou então estaria mentalmente pronto no espírito de seu criador mas ainda não
escrito, ou então teria ficado fragmento e ficaria fragmento para sempre. Enfim, João
Ternura virou uma grande lenda da literatura brasileira: meio boato e meio símbolo.8

Aníbal reunia todo tipo de artista e intelectual aos domingos em sua casa na Rua
Visconde de Pirajá. Sempre pronto a discutir os trabalhos de autores novos ou antigos e
com uma disposição conciliatória e universalista no trato das questões nacionais, exerceu
forte influência em muita discussão artística e ensaística do Modernismo da segunda fase.
“Com ele apareceram no Brasil o surrealismo e o realismo socialista – e, em geral, a
literatura de inspiração social –, o cubismo e a arte abstrata”.9 Também em função disso,
João Ternura foi o livro mais esperado do Modernismo brasileiro: até mesmo Oswald de
Andrade trombeteava por aí que seria um dos pontos altos do romance nacional10, e os
amigos por décadas aguardaram ansiosos sua conclusão. Pode-se dizer que, se havia
expectativa entre os amigos de Aníbal, a expectativa era de todo artista, intelectual ou
curioso do meio que passasse pelo Rio de Janeiro.

Todo mundo era amigo de Aníbal Machado: os poetas todos: os anteriores a 22, os
integrantes da Semana de Arte Moderna, a geração de 45, os concretistas, os indefinidos, que
mal tinham metido o bico para fora da casca; os romancistas todos; regionalistas,
subjetivistas; os plásticos todos: figurativistas, abstracionistas, tachistas, escultores,
gravadores, desenhistas, arquitetos; os músicos: eruditos e populares, compositores ou
executantes; as escolas de samba gostavam de Aníbal e a bossa nova também gostava de
Aníbal; (...) quem clamasse por um prefaciador inteligente, quem andasse à cata de um leitor

7 Mais precisamente em 1926, segundo Renard Perez em “Aníbal Machado: vida e obra”, in: A. Machado, João
Ternura, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1965, p.xxiii.
8 Otto Maria Carpeaux, “Presença de Aníbal”, in: A. Machado, João Ternura, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1976,

pp. xiii a xxii.


9 O. M. Carpeaux, cit., p. xvi.
10 Apud Renard Perez, Escritores brasileiros contemporâneos, 1a série, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970,

p. 23.
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para seus originais, (...) quem chegasse de longe ou partisse: todos procuravam Aníbal
Machado. 11

No entanto, a elaboração da obra foi lenta, caótica e muitas vezes interrompida. O


testemunho de Renard Perez, publicado apenas na primeira edição do livro, dá uma medida
mais exata de seus períodos de escrita e suspensão:

Numa manhã de janeiro de 1956, fomos entrevistar Aníbal Machado, para a série de
reportagens biográficas que então fazíamos, semanalmente, no suplemento literário do
Correio da Manhã. Àquela altura, já tínhamos começado a frequentar as famosas noites de
domingo, e apesar do conhecimento ainda recente, acredito que logo nos ligasse uma afeição
muito particular. Afeição antecipada, de minha parte, e motivada na grande admiração pela
sua obra, pela aura em torno de sua figura – e que me levou a querer conhecê-lo; e que logo
teve correspondência numa enorme prova de consideração – uma das maiores provas de
consideração que um homem como Aníbal poderia dar: concedeu em ler trechos de seu João
Ternura, então já “definitivamente” engavetado, e em torno do qual fizera cair,
voluntariamente, uma zona de silêncio. Mas a prova não se deteve aí; diante do entusiasmo
pelos trechos ouvidos, e a pedido nosso, confiou-nos aqueles originais amarelecidos – parte
batidos a máquina por Eneida, vinte anos antes, parte talvez maior em manuscrito – folhas
esparsas, recibos de farmácia, pedaços de envelopes, enchidos a lápis pela letrinha miúda.
Levamos os originais para casa, rebatemos os capítulos iniciais, deciframos carinhosamente
a parte manuscrita, já meio apagada pelo tempo. E creio poder dizer que foi da nova leitura
daquele caos recomposto, e da vida que sentiu pulsar ainda ali, que voltaria a Aníbal o
entusiasmo que o faria retomar para prosseguir – quase trinta anos depois – o famoso
romance abandonado.12

Sabemos então que Aníbal deu vida a seu personagem João Ternura até
aproximadamente 193013, engavetando-o depois por mais de vinte anos para retomá-lo em
1956 e arrastá-lo consigo por mais oito anos – até sua morte, em 19 de janeiro de 1964,
poucos meses antes do acontecimento que representou o fim das ilusões de conciliação
entre movimentos de esquerda, trabalhadores e burguesia nacional.14 Ainda assim, a versão
final do livro, reunida e levada a público por Carlos Drummond de Andrade, revela uma
obra cuja finalização não resolve os impasses que estão na raiz de seu projeto – impasses
que, antes, ajudam a compreender o assombroso adiamento de sua produção.
Faz todo o sentido que a publicidade involuntária que João Ternura recebeu antes
de concluído tenha atemorizado o autor, e é isso que nos conta o próprio Aníbal na
introdução ao livro.15 Mas a leitura a que este trabalho se propõe, com vistas ao exame das
relações entre a obra literária e sua matéria histórica, independentemente das intenções do

11 “Aníbal e o partido da vida”. Depoimento de Paulo Mendes Campos, por ocasião da morte de Aníbal em 1964, in:
A arte de viver e outras artes, cit., pp. xii-xiii.
12 “Aníbal Machado: vida e obra”, in: João Ternura, cit., p. xv.
13 “Em 1935, Ternura já se encontra inteiramente banido das cogitações do escritor.” Renard Perez, cit., p. xxvi.
14 A esse respeito ver: R. Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, in:__. O pai de família e outros estudos, São

Paulo: Paz e Terra, 1992, pp. 61 a 92 e “Fim de século”, in: __. Sequências brasileiras, cit., pp. 155 a 162.
15 A. Machado, João Ternura, cit., p. 3.
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escritor, nos leva a uma outra hipótese para o adiamento: o protagonista João Ternura
parecia querer configurar-se como símbolo do brasileiro e das possibilidades da nação
(conforme ao ideário e às aspirações modernistas em seu primeiro tempo) mas, em função
da dissociação entre seus anseios e seus atos, que o levam ao imobilismo, acaba por
desenvolver-se em boa medida dentro do esquadro das personagens fracassadas próprio de
muitos dos romances nacionais ao longo da década de 30.
O fracassado é o “protagonista sintomático” do qual se queixa Mário de Andrade em
“A elegia de abril” de 1941:

De uns dez anos pra cá, sem a menor intenção de escola, de moda literária ou
imitação, numerosos escritores nacionais se puseram cantando (é bem o termo!...) o tipo do
fracassado. (...) Mas em nossa literatura de ficção, romance ou conto, o que está aparecendo
com abundância não é este fracasso derivado de duas forças em luta, mas a descrição do ser
sem força nenhuma, do indivíduo desfibrado, incompetente para viver, e que não consegue
opor elemento pessoal nenhum, nenhum traço de caráter, nenhum músculo como nenhum
ideal, contra a vida ambiente. Antes, se entrega à sua conformista insolubilidade. (...)
Não é possível aceitar esta frequência de um tipo moral em nossa ficção viva, sem lhe
conhecer a causa. (...) ...existe em nossa intelectualidade contemporânea a pré-consciência, a
intuição insuspeita de algum crime, de alguma falha enorme, pois que tanto assim ela se
agrada de um herói que só tem como elemento de atração, a total fragilidade, e frouxo
conformismo. ...que se anula numa conformista desistência e vai-se embora. Vai-se embora
pra Pasárgada?... 16

Em João Ternura, o protagonista vocacionado para ser o símbolo da nação que se


constitui, acaba paralisado entre a nostalgia de um universo rural amesquinhado e em
decadência, para onde não deseja voltar, e com vistas a uma totalidade imaginária que não
se concretiza com a mudança para a cidade grande. De um modo geral, suas vivências no
Rio de Janeiro o afastam do passado mas não o recolocam no presente – as poucas
situações significativas para ele são as que se constituem como aproximações a esse mundo
total e o remetem psicologicamente ao ambiente da primeira infância. Diante disso, sua
vida adulta parece o desenrolar de um grande vazio: aparentemente, nenhuma
aprendizagem, nenhuma adaptação e nenhum embate com a realidade. “Instinto, alegria,
progresso, ambição, amor – tudo vai desembocar no Nada” nesse livro que carregava o
projeto ambicioso de ser “...uma longa, longa conversa: com o Brasil de seu tempo e com o
Brasil de sempre”17 e acaba, em sua negatividade provavelmente um tanto à revelia de
Aníbal, aproximando-se dos romances maduros de Machado de Assis.
João Ternura apresenta-se internamente dividido em seis partes, chamadas “livros”.
Segundo Aníbal Machado, o Livro I era o único que estava mais ou menos pronto antes de o

16 Mário de Andrade, “A elegia de abril”, in: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo; Martins, 1974, p. 190, 191.
17 Cf. O. M. Carpeaux, cit., p. xxxvii.
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romance ser engavetado 18. A grande aposta do narrador no potencial de lirismo da infância,
bem como a aproximação lírico-fusional entre narrador e protagonista, aliadas a um
material temático em que se justapõem formas arcaicas e modernas, parecem ratificar essa
afirmação na medida em que nos revelam uma escrita ainda sob o impacto da euforia e das
inovações do Modernismo “heróico”. Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, cada um a seu
modo, se afiguram como influência principal.
A aposta na visada primitiva, que se confunde com o olhar infantil, está na pauta do
“Manifesto da Poesia Pau-Brasil” de 192419, dentro de um “programa de reeducação da
sensibilidade e uma teoria da cultura brasileira” 20.

A perspectiva definida pelo Manifesto – sentimental, intelectual, irônica e ingênua ao


mesmo tempo – é um modo de sentir e conceber a realidade, depurando e simplificando os
fatos da cultura brasileira sobre que incide. (...) A inocência construtiva da forma com que
essa poesia sintetiza os materiais da cultura brasileira equivale a uma educação da
sensibilidade, que ensina o artista a ver com olhos livres os fatos que circunscrevem sua
realidade cultural, e a valorizá-los poeticamente...
Esse processo (...) originou-se na nova escala de experiência condicionada pela
máquina e pela tecnologia, por todo esse conjunto dos meios de produção, comunicação e
informação da época moderna, que transformaram a natureza circundante, criando a
sobrenatureza do meio ambiente técnico da civilização industrial e urbana, a escala não
livresca, mas espetacular de um mundo surpreendente e mágico, de coisas mutáveis, de
objetos que se deslocam no espaço e no tempo, – de um mundo em que a própria ciência
funciona como varinha de condão.21

A construção de um ponto de vista “ingênuo” está, na obra de Oswald de Andrade,


englobada em um projeto de cultura brasileira mais amplo, para o qual a valorização da
primitividade nos libertaria de nosso sentimento de inferioridade cultural. Dentro dessa
visada, “o Brasil pré-burguês, quase virgem de puritanismo e cálculo econômico, assimila
de forma sábia e poética as vantagens do progresso, prefigurando a humanidade pós-
burguesa, desrecalcada e fraterna; além do que oferece uma plataforma positiva de onde
objetar à sociedade contemporânea. Um ufanismo crítico, se é possível dizer assim.”22
Se em Oswald o olhar infantil se mistura à perspectiva primitiva dentro de um
programa de educação da sensibilidade para uma nova escala de experiência determinada

18 “Assim, com acréscimos, supressões e pequenas modificações no já feito, além da elaboração quase total da 2 a
parte em diante, procurei dar-lhe arranjo adequado à vida de seu morador...”, in: op. cit., p. 4.
19 Em Obras Completas de Oswald de Andrade: do pau-brasil à antropofagia e às utopias, Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1978.


20 Cf. Benedito Nunes, in: “Antropofagia ao alcance de todos”, prefácio à edição supracitada, p. xx.
21 Idem, ibidem, pp. xx-xxi-xxii.
22 Cf. R. Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, in:__. Que horas são?, São Paulo: Companhia das

Letras, 1997, p. 13.


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pelo desenvolvimento tecnológico, em Bandeira o infantil tem outras razões de ser 23. A
infância aparece em sua poética como certa capacidade de brincar frente a um mundo
ruinoso, como um poder de dotação de sentido no vazio, como uma “inclinação essencial
pelos frágeis da cultura”, parte de uma pesquisa mais ampla do que “funda o humano no
estado conceitual do desamparo”, uma vontade de encontrar o que é do homem em seu
processo de instauração, uma “utopia de uma outra relação de sentido com as coisas
humanas”, “em nítida oposição ao andamento geral da história e da vida”.
Ocorre que, tanto o progresso positivado que resolveria os problemas do mundo em
um passe de mágica, de Oswald de Andrade, quanto a instauração do humano por via do
universo infantil, de Manuel Bandeira, acabaram questionados em João Ternura, ainda que
de modo ambivalente – principalmente a partir do Livro III. O desenrolar dos
acontecimentos históricos posteriores a 1930 foram revelando aos poucos o caráter
ideológico das crenças do primeiro Modernismo e talvez tenham minado o projeto original
do livro e vincado o desenvolvimento da obra, contrariando em boa medida as intenções
iniciais do autor.
Já no Livro I, que conta a história do nascimento do protagonista em uma chácara no
interior e as peripécias de sua infância, há indícios de que “os valores mágicos e alógicos da
imaginação primitiva”24 não entrarão em acordo com a moderna ciência e técnica, como
queriam Oswald e os primeiros modernistas. A chácara é apresentada de maneira ambígua,
ora como uma propriedade rural de maior vulto, com muitos ex-escravos e um bom número
de colonos italianos, ora como uma pequena propriedade de um almirante aposentado (o
avô materno de Ternura) sustentada em grande parte pelo negócio de transporte fluvial de
seu genro, Antônio, pai do menino. A mistura de “crias”, colonos, comércio e da sombra da
industrialização (com a ferrovia que está sendo construída na cidade vizinha) indica que a
estrutura patriarcal já não existe ali como organização econômica dominante na sociedade
local, muito embora ela se mantenha em grande parte nos modos de pensar e agir de seus
habitantes. No início desse Livro I, a chácara é ainda uma espécie de universo mítico, um
mundo autônomo no qual as relações sociais encontram-se naturalizadas. Quando a criança
cresce um pouco, a perspectiva do narrador funde-se à ótica do protagonista e o narrador se
mostra tão encantado com o menino que todos os conflitos que o cercam, mostrados a
partir da visada infantil, e dada a ampla utilização do discurso indireto-livre, tornam-se

23 Para todas essas observações sobre a poética de Manuel Bandeira me valho do estudo de Tales A. M. Ab‟Saber,
“Mimese do humano, crítica da desumanização: uma leitura de Manuel Bandeira”, in: Modernization et literature
au Brésil, Paris: Ed. Presses Universitaire de la Sorbonne, 2001.
24 “Antropofagia ao alcance de todos”, cit., p. xxiii.
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dúbios: surgem ora como enfrentamentos reais, ora como atos “naturais”.
As vivências do menino pequeno vão se constituindo, nesse primeiro Livro, como um
modo de ser em que tudo se submete à sua onipotência. João Ternura anseia por atravessar
os limites amesquinhados da chácara mas, quando o mundo “de fora” não corresponde às
suas expectativas, opta pela manutenção da fantasia original e abdica da realidade. Nesse
passo, o Livro I termina com a recusa da criança à disciplina do colégio, de onde
rapidamente é expulso iniciando uma série de negações da realidade que o vão aproximar
da “conformista insolubilidade” do “indivíduo desfibrado” que tanto inquietava Mário de
Andrade.
No Livro II o progresso chega à chácara e desestrutura o universo econômico da
família, deixando no lugar um mundo residual sem possibilidade de transformação. Com a
chegada da ferrovia à cidade vizinha, o negócio do pai de Ternura vai à falência e o menino
perde seu lugar de classe, anunciando o avesso da conciliação entre o desenvolvimento
técnico recente (“as novas formas da indústria, da viação, da aviação” 25) e os resquícios de
nossa estrutura rural arcaica. Mandado agora para um colégio de padres, foge a nado pelo
rio, o que novamente prenuncia a negação do acordo entre “a floresta e a escola” 26 esperado
pelo projeto Pau-Brasil. A fuga lhe proporciona uma espécie de imersão fusional nas águas
do rio de sua infância que o leva, literal e afetivamente, de volta à chácara. Nesse contato
com a natureza, extremamente prazeroso pela sensação de perda no infinito das águas e de
retorno ao estágio de indiferenciação entre sujeito e mundo, se configura uma espécie de
anseio por essa fusão impossível que orientará a trajetória da personagem.
O Livro II, de tamanho muito reduzido, parece funcionar na composição geral mais
como um entreato que prepara a segunda fase do romance, onde haverá sensível mudança
de tom. São as expectativas do próprio protagonista por um “mundo surpreendente e
mágico” que se frustram a partir do Livro III, quando ele se muda para a cidade grande.
A única possibilidade de não sucumbir junto com o seu mundo rural seria prolongá-
lo na cidade, arrumando um emprego público na base de antigos privilégios. Munido de
cartas de recomendação e sem saber por onde começar, o protagonista procura seu “primo
importante” que, em uma única conversa, lhe tira as ilusões de ascensão social. Ternura
também não deixa de recusar por si mesmo este mundo dos “importantes”, mas apenas por
se adivinhar incompetente demais para executar a mise-en-scène dos medalhões: ele é
pequeno demais, não tem “modos” e sua maneira infantil de existir acaba por se chocar com
os horizontes objetivos de uma sociedade que reproduz antigos arcaísmos.

25 Manifesto da Poesia Pau-Brasil, cit., p. 8.


26 Idem, p. 9.
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A demanda de absoluto da personagem toma a forma de uma espera por uma


“grande revelação” de conteúdo inespecífico, que vai se tornando uma espécie de
monomania. Ternura passará o resto de sua vida – que dá a matéria ostensiva do enredo –
aguardando algum importante acontecimento que nunca chega e o mantém em estado de
imobilidade.
O Livro IV traz alguma perda da esperança mágica nos acontecimentos, e a ênfase
recai sobre o tempo vazio de experiência vivido por Ternura no Rio de Janeiro. Há
pouquíssimos acontecimentos a serem narrados, e o olhar infantil vai ganhando contornos
de loucura. No lugar dos episódios de quebra da ordem na cidade, mais comuns no Livro III
(como a Revolução e a grande enxurrada que o leva à Rita), há inúmeros momentos de
regressão fusional. Ternura procura meios de se transformar em árvores ou pedras e
desaparece por várias vezes da vista dos amigos, muitos dos quais também se encontram
enlouquecidos. Cada vez mais melancólico e inerte, escuta e sente com frequência as vozes
de sua infância ao mesmo tempo em que ficamos sabendo que lhe morreram os pais e a
chácara foi vendida. Meio lunático e já envelhecido, o protagonista permanece apenas
vagando em busca do seu “encontro”.
No Livro V, Ternura apresenta uma súbita solidariedade com os oprimidos seguida
de um impulso quixotesco de consertar o mundo, mas logo desiste e volta à monomania da
“grande revelação”. Também intui que o mundo de sua infância virou pura ruína e que ele
não poderia continuar agindo como se lá estivesse. Tal tomada de consciência, porém,
apenas desponta no horizonte para se retrair em seguida. A utilização do discurso indireto-
livre, que dominava os Livros I e II e já escasseava nos Livros III e IV, quase desaparece
aqui; indicando um desgaste do ponto de vista ingênuo e a derrocada do anseio fusional
entre narrador e personagem. O final desse Livro V é mais um entreato: o protagonista sai
de cena e entram vozes do morro para fomentar a expectativa do carnaval. Fica sugerido
um potencial libertário na alegria popular.
A explosão do carnaval no Livro VI será a grande tomada de semiconsciência de João
Ternura. A verdadeira vida, tão aguardada, parece revelar-se na festa, enquanto o livro
entra em “clima de liquidação”: vários discursos e manifestos irrompem de todos os lados
alterando o ritmo da narrativa e o estilo da composição. Narrador e protagonista
praticamente saem de cena para dar lugar a um desfile alucinado de ideias diferentes sem
nenhuma aparente hierarquia. Todas se igualam em uma ironia indecidível e tudo se
dissolve na algazarra da turba. Em meio ao tumulto, o protagonista, num momento de
lucidez, percebe que esse estouro residual tem dia e hora para começar e acabar.
141
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Após as comemorações, segue inconformado com o retorno aos dias de sempre.


Ternura olha para trás e todo seu passado se funde em espectro. A cidade moderniza-se, as
pessoas envelhecem, enquanto ele apenas observa. Achando a vida cada vez mais absurda e
apegado a um passado idílico, Ternura vira um “olho espiando” para em seguida sumir no
nada, “como se nunca tivesse existido” [p. 224].

***

Quando João Ternura é engavetado (por volta de 1930), as inovações técnico-


formais e temáticas do primeiro Modernismo encontravam-se já devidamente
incorporadas, tornando o anticonvencionalismo “um direito, não uma transgressão” 27. A
ficção regionalista da época, principalmente na figura de Graciliano Ramos, “abandona (...)
a amenidade e a curiosidade, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no
encanto pitoresco, ou no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem
rústico.”28 À medida que o desenvolvimento histórico frustrava os objetivos libertários e os
pressupostos ideológicos que animavam a vanguarda artística, obrigando os escritores a
reconsiderarem o que se construíra como interpretação brasileira, o ponto de vista
predominante no Livro I de João Ternura – o “padrão de visão com olhos livres”, em
moldes daquela infantil – se revelava à nova geração modernista como certa “opção por não
enxergar”; um possível apagamento dos antagonismos presentes na coexistência do arcaico
e do moderno nacionais29. Não parece arbitrário supor que tais alterações tenham
paralisado o autor de João Ternura, que possivelmente já fosse capaz de intuir uma
necessária mudança de rumos em seu tão aguardado romance.
O problema é que a aposta da primeira geração modernista em um salto mágico por
cima dos atritos nacionais era muito alta – como se vê, no caso específico do autor de João
Ternura, na continuação de seu artigo sobre Machado de Assis e na sequência do
depoimento de 1941, sobre o encontro com Carlos Drummond de Andrade. No primeiro,
Aníbal tenta delinear o “psiquismo brasileiro”, do qual Machado não estaria imbuído:

Será brasileira a obra de Machado pelo simples fato de o escritor haver tomado os
seus tipos à sociedade carioca numa das etapas de sua evolução? Mas os motivos eram, como
dissemos acima, simples pretexto para que ele pudesse afirmar uma tendência do espírito e
uma atitude humana em que me parece entrar muito pouco do psiquismo brasileiro.

27 Cf. A. Candido, “A revolução de 1930 e a cultura”, in:__. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:
Editora Ática, 2000, p. 189.
28 Cf. A. Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, in:__. A educação pela noite e outros ensaios, cit., p. 142.
29 Cf. R. Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, in:__. Que horas são?, cit., p. 27.
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Isso obriga a uma aventura perigosa, que é definir esse psiquismo. ...Certamente
nesse terreno obscuro só nos poderá guiar um instinto secreto menos inseguro por enquanto
do que o conhecimento lógico. Só assim poderemos falar em espírito brasileiro antes de
defini-lo claramente. Essa desordem lírica, essa instabilidade e avidez, esse frêmito
superficial diante da vida, essas incoerências miúdas, esses heroísmos instantâneos
e entusiasmos sem prosseguimento, essa preguiça e essa doçura de um lado; do outro
lado o sopro da terra, o drama das populações rurais, a interferência da paisagem na vida
poética do homem, todas essas forças, formas e densidades só pelo lirismo podem ser
traduzidas. (...)
A tendência geral da comunhão brasileira é essa marcha apressada e um tanto
desordenada para a vida – marcha que se for presidida por um ideal superior e assegurada
por melhores condições materiais e culturais irá fatalmente levar o povo à conquista da
alegria, com a qual não se coaduna a melancolia sem remédio de Machado. No fundo de
nossa vontade de viver existe mais sofreguidão do que inquietação de raízes filosóficas. Entre
tantas indeterminações e movimentos incoerentes do nosso psiquismo descobre-se uma
permanente predisposição feliz para a vida 30 (grifos meus).

No segundo, a tendência ao aplainamento de conflitos (como em Oswald de


Andrade), associada a uma forte crença no potencial humanizador da primeira infância
(como em Manuel Bandeira) reafirmam-se:

Parecia-me haver tocado imprudentemente um dos fios de invisível trama de sua [de
Drummond] alma. Calei-me. Um ventinho de pequeno percurso agitava fracamente a
vegetação. Tudo parecia sombrio. De repente, uma transformação. Uma flama
dourada, um ser vivo e feliz atravessou o nosso silêncio. Não era um raio de sol que naquela
hora matinal esplendia no céu de Belo Horizonte. Era Maria Julieta, filha de Carlos.
Ninguém a vira entrar. Apareceu. Apareceu numa confusão de bonecas e outros brinquedos.
O mesmo rosto fino do pai, os cabelos louros, a expressão ao mesmo tempo infantil e
cheia de experiência humana. Mergulhei o olhar nos seus olhos que possuem um azul
de substância vegetal e celeste. Em espírito interroguei o amigo: – “E agora, Carlos? Que
valem os nossos pensamentos diante do que essa criança maravilhosa nos traz de
inocência, de alegria descuidada? A poesia tem mil maneiras de se encarar...”.
A criança impôs um rumo novo à nossa conversa. Desapareceu a angústia...
Pelo menos provisoriamente. Sorrimos todos. (...) 31 (grifos meus).

Paradoxalmente, em João Ternura, que continua a ser escrito em recibos de


farmácia ou apenas na mente de seu autor, a impossibilidade do protagonista constituir-se
segundo os parâmetros (ideais) da individuação burguesa traz a contrapartida do anseio de
fusão com o outro (via ternura e lirismo) e vai tomando conta de sua trajetória. Enquanto
isso, Aníbal reafirma o compromisso ideológico do qual estava inicialmente investido em
diversos escritos. Em janeiro de 1945, tomado ainda pelos impactos da 2 a Guerra e em ato
que assinala a derrocada do Estado Novo, o autor pronuncia, na abertura do Primeiro
Congresso Brasileiro de Escritores, uma declaração de princípios, onde professa sua fé no

30 A. Machado in: __. A arte de viver e outras artes, cit., pp. 144-145.
31 A. Machado, “Aparição de Maria Julieta”, in: A arte de viver e outras artes, cit., pp. 221-222.
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progresso, na industrialização e na democracia. O Brasil, “país do futuro”, dependeria


apenas de alguns ajustes para ladear as grandes potências no concerto das nações. E,
reeditando as convicções do primeiro Modernismo, nas condições brasileiras a sociedade
moderna seria mais “cordial” e menos tecnicista que noutras partes:

O homem do futuro, cuja imagem já se esboça na América Latina, ...há de ser livre e
cordial, sábio e espontâneo dentro do regime da justiça social que ele criar para todos. Nem a
rigidez racionalista que nada pode contra o calor do sentimento, nem esse cósmico
tumultuário com que se pretende desanimá-lo de seu assalto consciente à natureza. 32

A julgar por tais crenças, o escritor teria bons motivos para não conseguir dar vida a
seu personagem que, no entanto, insistia em prosseguir em sua derrocada. Pode ser que a
retomada de João Ternura tenha se dado pelo esforço e dedicação de Renard Perez em
organizar os originais esparsos, porém não parece casual para nossa leitura o fato de Aníbal
desenterrar novamente o seu personagem em 1956, quando o milagre desenvolvimentista ia
de vento em popa. E é pelo embate honesto do intelectual com a matéria histórica de que
tenta dar conta em seu livro que João Ternura toma os rumos que toma, mesmo à revelia
dos projetos iniciais de seu autor. Se levada em consideração essa “queda-de-braço” entre o
livro que se tencionava escrever e o que a matéria histórica acaba trazendo de “desvio”,
talvez não seja mera coincidência o fato de Aníbal ter decidido resgatar o seu romance justo
nos anos JK, marcados por uma retomada da confiança no desenvolvimento nacional em
função de um novo surto industrial. Juscelino representou bem os anseios de modernização
existentes em diversos grupos, da esquerda à direita, desejosos de superar o atraso
brasileiro:

Se alguma coisa, aliás, nos falta, é termos consciência exata de que somos
irremediavelmente um grande País. Não podemos convencer os outros dessa realidade
quando não estamos dela convencidos. (...) Temos o dever de não consentir que o encontro
com o grande destino do Brasil seja eternamente postergado. Temos o dever de não
consentir que a distância que medeia entre nosso estágio de desenvolvimento e o dos países
industrializados e poderosos aumente de maneira perigosa para o nosso futuro. 33 (grifos
meus).

“Era o „destino‟ do Brasil tomar o „caminho do desenvolvimento‟. A solução para o


subdesenvolvimento nacional, com todas as suas injustiças sociais e tensões políticas, devia
ser a industrialização urgente. (...) Muitos intelectuais de ideias nacionalistas foram

32 A. Machado, “Aos escritores”, in: __. A arte de viver e outras artes, cit., p. 174.
33 Discurso de JK citado em Evaldo Vieira, Estado e miséria social no Brasil de Getúlio a Geisel, São Paulo: Cortez
Editora, 1983, p. 115.
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atraídos pela entusiástica fé do presidente no futuro do Brasil e sua boa vontade no sentido
de tentar acelerar o processo de mudanças econômicas. (...) Os intelectuais da esquerda
radical, por outro lado, eram antipáticos em princípio a Kubitschek; porém a sua posição foi
anulada, pelo menos nos três primeiros anos de sua presidência, pelo sucesso evidente de
sua política.” 34
Em diálogo com o citado “Literatura e subdesenvolvimento” de Antonio Candido,
Paulo Arantes analisa esta ideia de potência nacional prospectiva que orientou o debate
intelectual brasileiro desde a Independência:

Um dos mitos fundadores de uma nacionalidade periférica como o Brasil é o do


encontro marcado com o futuro. Tudo se passa como se desde sempre a história corresse a
nosso favor – um país, por assim dizer, condenado a dar certo. Estudando certa vez as
manifestações literárias deste velho sentimento brasileiro do mundo, Antonio Candido falou
em consciência amena do atraso, correspondente à ideologia de país novo, na qual se destaca
a pujança virtual, a grandeza ainda por realizar. Esse estado de espírito euforizante estaria
de tal modo arraigado a ponto de sobreviver até mesmo à revelação dramática do
subdesenvolvimento, tal a confiança numa explosão de progresso que adviria, por exemplo,
da simples remoção do imperialismo. E mais, o futuro não só viria fatalmente ao nosso
encontro, mas com passos de gigante, queimando etapas, pois entre nós até o atraso seria
uma vantagem. Fantasia encobridora reforçada inclusive pelo viajante estrangeiro ofuscado
pela exuberância nacional, como foi o caso de um Stefan Zweig, autor do mais celebrado
clichê dessa mitologia compensatória: Brasil, País do Futuro.
Ocorre que não faltou apoio na experiência nacional para a cristalização dessa
miragem consoladora. A tal ponto, que Sérgio Buarque de Holanda se referiu certa vez à
nossa história econômica como uma verdadeira “procissão de milagres”.* Primeiro, o milagre
do ouro no século XVIII, a tempo de nos salvar na hora crítica em que a economia açucareira
arrefecia seu ímpeto; depois, o milagre do café, caindo do céu quando o esgotamento das
minas anunciava uma desagregação econômica ameaçadora. Pois bem: depois de ressuscitar
essa visão irônica de uma atividade econômica, movida a arranques mais ou menos
fabulosos, João Manoel e Fernando Novais acabam concluindo que, tudo bem pesado,
“nossa industrialização não deixou de ser também um desses milagres: resultou antes de
circunstâncias favoráveis, para as quais pouco concorremos, do que da ação deliberada de
uma vontade coletiva”. 35

A contrapartida dessa procissão de milagres seria um cortejo de desilusões,


configurando na história nacional o que o Paulo Arantes chamou uma “sintaxe da
frustração”. Costuraria a nossa história algo como a sensação constante de “a hora é agora”,
seguida de sucessivos malogros. O futuro “teima em não comparecer ao encontro
marcado”36 e o país imperfeito, mas de grande potencial e sempre prestes a uma realização

34 Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castelo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 207 a 211.
* Passagem de Visão do Paraíso recentemente relembrada por João Manoel Cardoso de Mello e Fernando Novais
em “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, in: Lilia Moritz Schwarcz, História da vida privada no Brasil,
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol. 4, p. 644-645.
35 Paulo Arantes, “A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização”, in: Zero à

esquerda, São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004, pp. 25 a 77.


36 Idem, ibidem, p. 28.
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impressionante, não vinga sucessivamente. E a soma das numerosas oportunidades de


virada é zero.
Em 1983, Roberto Schwarz fará uma análise precisa da derrocada dessas ilusões
históricas e da transformação do ideário modernista em ideologia:

Corrido o tempo, não parece que o âmbito da cultura se tenha desanuviado, nem aliás
o do poder, apesar dos dois mudarem muito. Até segunda ordem, o processo histórico não
caminhou na direção dos objetivos libertários que animavam as vanguardas políticas e
artísticas. Assim, aliados à energia que despertaram, estes objetivos acabaram funcionando
como ingredientes dinâmicos de uma tendência outra, e hoje podem ser entendidos como
ideologia, de significado a rediscutir. Nem por isso são ilusão pura, se considerarmos, com
Adorno, que a ideologia não mente pela aspiração que expressa, mas pela afirmação de que
esta se haja realizado. Algo semelhante aconteceu no Modernismo brasileiro, que tampouco
saiu incólume, e cujo triunfo atual, na larga escala da mídia, tem a ver com a sua integração
no discurso da modernização conservadora. Em parte a despeito seu, em parte como
desdobramento de disposições internas.37

A adesão entusiástica à ideia de “país do futuro”, por parte de Aníbal, contrasta com
o que se encontra figurado em João Ternura. Em função do embate entre matéria narrativa
e dinâmica histórica nacional, o que resulta é uma esperança capenga, que flutua entre uma
sucessão de não realizações e outra. Personagem e obra entram em um processo de
dissolução que as condena a subsistirem inconclusas. Talvez o que esteja em jogo nesse
pequeno livro falhado, mas desde sempre emblemático, seja o destino do que realmente
importou ao século XX brasileiro e que, como esse “livro que não é romance” 38, já não
importa mais: as possibilidades de constituição do Brasil como nação autônoma e
independente.

37 R. Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, cit., p. 21. Ver também “Fim de século”, cit.
38 Nos termos do próprio autor, na introdução a João Ternura, cit. p. 5.
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Otimismo e sebastianismo
na história recente da Tropicália

Carlos Pires

“Que vem a ser o otimismo?” perguntou Cacambo.


“Ah! Respondeu Cândido, é a fúria de sustentar que tudo
está bem quando está mal.”
E derramava lágrimas, contemplando o preto.
(Voltaire, Cândido ou o otimismo)

Em uma coletânea de textos escritos por Caetano Veloso ao longo de sua vida, O
mundo não é chato1, foi publicada na íntegra pela primeira vez uma conferência que o
cantor e compositor proferiu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1993. O
título Diferentemente dos americanos do norte é tirado do começo dessa conferência que
cita – sem dar de imediato a referência com o intuito, talvez, de apresentá-la como reflexão
de um brasileiro – palavras de Jorge Luis Borges a propósito do caráter argentino:

nosso povo, diferentemente dos americanos do norte e de quase todos os europeus, não se
identifica com o Estado (...) O Estado é impessoal: nós só concebemos relações pessoais...2

Desse ponto o palestrante vai desvelando as intenções daquela apresentação:

“Saber em que medida podemos, sem nos iludir, fazer planos para o futuro Ŕ e mesmo
sonhar Ŕ a partir de um aproveitamento da originalidade de nossa condição tomada em
sua complexidade desafiadora.”3.

Ou, trocando em miúdos, como reeditar algum projeto nacional no começo dos anos
90. Esse momento de abertura dos mercados, de transformação da experiência material
urbana, reedita certos mitos ligados às modernizações do passado. A auto-imagem que o
Tropicalismo construiu, na linha do primeiro modernismo em versão estilizada, mescla um
aproveitamento da originalidade nacional com as potencialidades técnicas e estéticas dos

1 VELOSO, Caetano. O mundo não é chato. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
2 Idem. Ibidem. p. 42.
3 Idem. Ibidem. p. 43.
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países desenvolvidos. Essa seria, novamente, a base para alavancar a nação no começo da
década de 1990, momento em que a própria tecnologia – que traria “nossa redenção”, como
diz ironicamente a letra de Parque industrial de Tom Zé presente no LP coletivo de 1968 –
é um elemento chave na “nova” vinculação do país aos ritmos dos capitais globalizados. Os
acordos internacionais desse momento para frente, apoiados nessa nova configuração de
funcionamento do mundo possibilitada em boa medida pelas transformações tecnológicas
recentes, apontam para um deslocamento das instâncias das decisões econômicas e
políticas para fora do país a ponto de se criar uma situação em que “tudo passa a ser
problema do capitalismo, e não do Brasil”4. Dessa recuperação da originalidade nacional,
remontada pelo autor desde a tradição ibérica e ao começo da era moderna com Cervantes,
Veloso acredita ser possível justificar “um programa de transformação do mundo nas bases
de uma sensibilidade peculiar aos países do Mercosul”5. Isso se daria acentuando a
diferença com os países onde o capitalismo, na sua versão fria, floresceu, ou, para usar o
paradoxo do autor, o capitalismo dos Prometeus do fogo gelado6. O pecado talvez
fornecesse nesse contexto em que a palestra foi proferida, segundo Veloso, um conceito
mais elástico que o de crime, “menos mensurável, qualitativo, e não quantitativo, e,
sobretudo, mais aberto ao perdão”7. A abertura de cunho político da palestra, a crítica a
uma forma de racionalidade que se perverteu, se dá para chegar à intenção maior do autor:
falar em tom de PROFECIA UTÓPICA [em caixa alta no texto original] 8.

O tom da palestra muda significativamente nesse momento e o seu tema em certa


medida também. Veloso parte para um balanço do tropicalismo buscando uma espécie de
perdão – talvez dentro do campo mais elástico que o pecado estabelece – em relação ao fato
de ter contribuído na criação do sentimento de desencanto nacional. Compara o movimento
que ajudou a forjar a uma descida aos infernos, a um ritual de passagem que levou à
iniciação ao grande e verdadeiro otimismo da bossa nova: um otimismo trágico que
significava “violência, rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza,
sentir com intensidade, querer com decisão”9. Esse otimismo é contraposto ao otimismo
tolo dos que acreditavam

na força dos ideais de justiça social transformados em slogans nas letras das músicas e em
motivação de programas de atuação. Os tropicalistas em que nos tornamos são da

4 FIORI, José L. Brasil no espaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 17.


5 VELOSO, Caetano. O mundo não é chato, op. cit., p. 44.
6 Idem. Ibidem. p. 58.
7 Idem. Ibidem. p. 44.
8 Idem. Ibidem. p. 46.
9 Idem. Ibidem. p. 47.
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linhagem daqueles que consideram tolo o otimismo dos que pensam poder encomendar à
História salvações do mundo 10

Toda a argumentação daqui para frente, turvada por tonalidades místicas, tenta
expiar a negatividade e o pessimismo do tropicalismo com o intuito de fornecer uma
explicação que justifique a passagem àquele otimismo da bossa nova

que parece inocente de tão sábio: nele estão Ŕ resolvidos provisória, mas satisfatoriamente
Ŕ todos os males do mundo.11

A bossa nova de João Gilberto funciona como padrão de medida em relação a como
se deve encarar o país e sua cultura, ou como Veloso gosta de repetir e repete na palestra: “o
Brasil precisa chegar a merecer a bossa nova” 12. A especificação histórica que o autor em
alguma medida faz para justificar – e expiar – a negatividade tropicalista não acontece
quando a bossa nova entra em questão, essa flutua como um valor abstrato na cultura
nacional, quase como um ideal mítico. A delimitação mínima do contexto histórico do final
dos anos 50 – o adensamento da cultura nacional e popular ao longo desses anos, o ideal da
revolução, ou ao menos de transformações sociais, em alguma medida no horizonte – não
aparece em momento algum já que João Gilberto é um gênio que está fora de qualquer
questão mundana. João Gilberto é um músico que conseguiu dar forma estética às
contradições em que vivia e essa, ao que parece, é a sua genialidade. O problema é que na
opinião corrente a bossa nova é o momento em que o país ofereceu para o exterior um
produto de exportação de qualidade sem que se entre, na maior parte das vezes, no mérito
dessa qualidade pouco percebida dentro do contexto da indústria cultural americana
expandida para o mundo, que a entende em quase sua totalidade como música de fundo
para tocar em aeroportos ou elevadores. A forma quase doentia de João Gilberto colocar a
letra em pé de igualdade com a música sem que uma violente a outra, mantendo a
integridade das duas nesse conflito específico, é compreendida, já que, entre outros
motivos, não se entende o português na maioria dos casos, como fundo sobre fundo, como
texturas, superfícies sobre as quais a vida imediata, cotidiana, pode acontecer. A tensão
específica da canção – a relação entre a voz e o fundo musical, que não é bem fundo, pois
não está atrás dela – é compreendida e valorizada, como produto de exportação, por algo

10 Idem. Ibidem. p. 48.


11 Idem. Ibidem. p. 50.
12 Idem. Ibidem. p. 51.
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que é quase o seu contrário, por ser uma forma praticamente sem tensão, sem conflito, que
pode ficar ao fundo e às vezes se pode parar e ouvir. Esse olhar do estrangeiro reposiciona e
valoriza a bossa nova no contexto nacional como algo que resolve todos os males do mundo
e esteriliza-a dos aspectos “violentos” que Veloso destaca com alguma razão. A bossa nova
parece fornecer à indústria cultural algo que cumpre – ou cumpriu – as difíceis exigências
do seu idioma de naturalidade, para usar a expressão de Adorno e Horkheimer.

Continuando o argumento sobre a iniciação ao grande otimismo, Veloso chega ao


tema que considera fundamental nessa descida aos infernos que começou em 67 – “fase
ainda não superada” – com a canção Alegria, alegria, considerada “um começar a mexer no
lixo”13: “uma visão autodepreciativa da nossa vida cotidiana e do seu quase nenhum valor
no mundo”14 – tema que perpassa direta ou indiretamente grande parte dos estudos
clássicos sobre o Brasil. E lembra, continuando a reflexão, a forma como Zé Celso
costumava falar no caráter masoquista da estética tropicalista com sua “reprodução
paródica do olhar estrangeiro sobre o Brasil e sua eleição de tudo o que nos parecesse a
princípio insuportável”15. Tudo que pareça pessimismo e negatividade ou, quase tudo, é
elencado nos menores detalhes das composições e relacionado a outras manifestações do
final da década de 1960 como o filme de Glauber Rocha, Terra em transe, onde acontece “a
ostentação barroquizante de nossas falências, de nossas torpezas e de nossos ridículos” 16.
Isso para novamente desembocar no otimismo e na necessidade de afirmá-lo no presente
da palestra:

É de volta [ou quase de volta já que essa fase ainda não acabou, como ele insinuou acima –
fase ainda não superada - em relação ao mexer no lixo com Alegria, alegria] de tais
infernos que pretendo trazer visões utópicas”17.

O recurso estético de recompor o olhar do exterior sobre a realidade do país que traz
à tona os complexos de inferioridade nacionais parece paradoxalmente quase não fornecer
autoconsciência para se pensar a bossa nova vista pelos olhos estrangeiros, ou pelos olhos
internalizados dos padrões de medida da indústria cultural.

A agressividade masoquista com que alguns tropicalistas tentaram explicitar o quase


valor nenhum da vida cotidiana do país no mundo, recuperando aproximadamente as
palavras do autor, que parece ter algum rendimento crítico e estético naquele momento,

13 Idem. Ibidem. p. 51.


14 Idem. Ibidem.
15 Idem. Ibidem.
16 Idem. Ibidem. p. 52.
17 Idem. Ibidem.
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revela, para bem e para mal, a posição heterônoma da nação em relação a um “mundo”
abstrato, sem especificação. O passo, não muito otimista, da constatação do valor nenhum
da vida no mundo das mercadorias, sem cair em um reencantamento da vida cotidiana,
parece fora de pauta na maneira como os problemas são armados. A crítica e negatividade
parecem funcionar em uma chave descrita por Jean-Claude Bernardet quando tenta
caracterizar o clima em relação à indústria cultural naqueles anos:

“Havia uma certa ambiguidade no meio artístico da época, inclusive no meio artístico de
esquerda. De um lado manter uma postura crítica em relação não só à ditadura, mas ao
próprio capitalismo. De outro, buscar inserção na indústria cultural que então se
consolidava no Brasil.
A percepção crítica de uma indústria cultural foi ignorada pelo meio culto cinematográfico
desde os anos 50 e, depois, pelo pessoal do Cinema Novo.”18

Essa busca de inserção se atrela a um desejo de modernidade, a uma antecipação em


chave quase mítica dos desenvolvimentos técnicos. O tropicalismo pareceu dar forma
crítica a esse problema muitas vezes transformando os elementos teoricamente avançados
do “mundo” em fetiches, configurando dinâmicas de elevação quase religiosas enquanto
tematizavam aspectos urbanos cotidianos, ou da constituição nacional. O que parece
problemático, no entanto, é que esse teor crítico parece se perspectivar de um lugar não
muito diferente daquele que é objeto dessa intenção crítica: modernizar a nação em chave
não muito distinta da modernização que se operava quase naturalmente por meio da
indústria cultural. O que gera esse delírio específico parece, no fundo, um
desenvolvimentismo com 40ºC de febre. A possibilidade mesma de um “pensamento
avançado”, crítico – ou que tenha essa aparência – é dada pela falta de efetividade de
qualquer debate, de qualquer coisa poder ser dita – até algo verdadeiramente crítico – sem
que isso tenha quase nenhuma reverberação na experiência social. É como se já
estivéssemos funcionando desde sempre no ritmo da “mentira manifesta”, ou do grau zero
de ideologia, como queria Adorno. A crítica contrastada, agressiva, que muitos tropicalistas
realizavam, acaba tendo um funcionamento bastante particular no país. Se a indústria
cultural promove um tipo de “rebeldia realista” que “torna-se a marca registrada de quem
tem uma nova idéia a trazer à atividade industrial” 19, isso, atrelado ao atraso nacional, joga
a possibilidade crítica para um terreno bastante complicado e difícil de trilhar. Uma espécie
de encenação racional, ou de um funcionamento ideológico particular que Machado de

18 BERNARDET, Jean-Claude. “Entrevista”. Revista Margem Esquerda 3 . São Paulo: Boitempo, 2004, p. 24.
19 ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 123.
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Assis já trazia ao centro da sua composição no século XIX, parece ganhar algum tipo de
validação, ou de fôlego extra, quando se cruza com o funcionamento da Indústria cultural.
A base de constituição desses processos que se cruzam são de ordens distintas – a nossa
dinâmica do favor, por um lado, e seu funcionamento ideológico de segundo grau que se
prolonga em alguma medida para o século XX – e por outro o Capital com sua feição
monopolística na indústria cultural americana na primeira metade do século XX, antes de
se espalhar pelo mundo, no seu funcionamento ideológico de grau zero, como formularam
Adorno e Horkheimer. Mas parece que isso aponta para rearranjos interessantes entre a
má-formação nacional e a pseudoformação como Adorno a pensou em relação à cultura no
século XX.

A negatividade e o pessimismo parecem só poder comparecer na palestra de Veloso


na medida em que conduzam a um otimismo que os purifique. Depois do balanço da
negatividade tropicalista, com a volta dos “tais infernos”, Veloso começa a exposição das
suas “visões utópicas”20. O ponto inicial dessa dá-se quando, rumo ao exílio em 1969, após
sua prisão, passa por Sesimbra, em Portugal para conversar com um alquimista e
sebastianista e comunica-lhe na íntegra a letra da canção Tropicália. Para a sua surpresa o
alquimista não percebeu nenhuma ironia, nem pessimismo, “nenhum desejo da denúncia
do horror que vivíamos até então”21. Tudo foi interpretado na chave de um destino
grandioso para o Brasil que aos poucos foi fascinando o autor:

Mas que aquele homem não quisesse levar em consideração que na minha canção eu
descrevia um monstro e que esse monstro confirmara sua monstruosidade agredindo-me a
mim era algo que à medida que ia acontecendo ia-se-me tornando mais fascinante do que
irritante.22

A canção Tropicália parece o centro em relação ao qual emana uma negatividade


difícil de se adequar à “esperança” modernizante que se abria ao Brasil no começo dos anos
90. É curiosa, na afirmação do autor, a falta de distância que Veloso estabelece em relação à
voz que diz eu na canção. A voz é ele, ou torna-se ele, sem nenhum tipo de mediação. Essa
canção23, bastante interessante, tem a composição organizada por dois momentos musicais

20 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 52.


21 Idem. Ibidem. p. 53.
22 Idem. Ibidem.
23 Uma análise musical mais cuidadosa dessa canção e das outras dos LPs tropicalistas de 1968 – Caetano Veloso

(1968), Gilberto Gil (1968) e Grande liquidação de Tom Zé (1968) – foi realizada pelo autor na dissertação
“Canção popular e processo social no tropicalismo” (Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da
Universidade de São Paulo, 2008).
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bem marcados e contrastantes: o primeiro com uma tensão maior construída


principalmente pelo arrastar grave dos instrumentos de sopro enquanto se canta a letra; e o
refrão, em um segundo, que dilui esse primeiro momento com uma percussão sincopada.
Essa alternância se mantém, com pequenas transformações, relativamente fixa até certo
trecho em que a primeira parte musical, onde a letra é cantada, desaparece e tudo vira uma
tensa distensão sincopada. Isso se dá quando o monstro que Veloso cita na palestra – ou o
monumento-monstro que se autonomizou – coloca “os olhos grandes” sobre aquele que
canta. O indivíduo que rumava em direção a Brasília24, aquele que antes na canção
organizava, orientava e inaugurava, vai para uma situação bem diferente: ele passa para a
condição de observado por um outro de “olhos grandes” dando uma satisfação aos ouvintes
– da canção e dos “cinco mil alto-falantes” – da posição de objeto de um olhar que o acua de
forma quase paranóica. O eu lírico aparece ainda uma segunda vez, depois de sua estreia
potente no começo da canção, dentro da mítica da moda 25. No momento máximo de
elevação da música, História, sujeito, nação etc. perdem o contorno ou a resistência e se
convertem em elementos justapostos, esvaziados, no cotidiano organizado, principalmente,
pela televisão. A canção seria – é, se ignorarmos o que seu autor diz dela – um achado
estético e crítico se tivesse a distância irônica que o arranjo parece conferir à letra. Mas,
segundo a perspectiva de Veloso, que assume a voz sem qualquer mediação, é pura
negatividade que conduz a constatação fatalista da impotência nacional, de que o “mundo”
é isso e temos que nos adaptar a ele, ou, nos versos do próprio autor no mesmo LP de
Tropicália só que limpos de qualquer ambiguidade: “e não há segredo, a vida é assim
mesmo”.

O que parece a primeira vista senso crítico se revela, novamente, como a quase
nenhuma reverberação de uma posição crítica na experiência social do país. A falta de
distância que Veloso tem dos materiais que em alguma medida quer, ou quis, como ele
próprio diz, expor em chave de denúncia é reveladora desses limites da circulação das idéias
nas esferas públicas nacionais. Continuando a palestra ele comenta:

De modo que, em Sesimbra, eu passei gradativamente do espanto de ver a minha canção


“Tropicália” resgatada por uma visão que anulava sua contundência crítica à relativa
adesão à perspectiva dessa visão: comecei a ver “Tropicália” Ŕ e a pensar o tropicalismo Ŕ
também à luz do sebastianismo, ou melhor, da minha versão do sebastianismo.26

24 Sobre a cabeça os aviões / Sob os meus pés os caminhões / Aponta contra os chapadões / Meu nariz / Eu
organizo o movimento / Eu oriento o carnaval / Eu inauguro o monumento / No Planalto Central do país.
25 O monumento é bem moderno / Não disse nada do modelo do meu terno.
26 VELOSO, Caetano. O mundo não é chato, op. cit., p. 56.
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É curiosa a forma como a modernização que Veloso empreende na canção buscando


um lugar urbano nacional particularizado para perspectivá-la a partir de Alegria, alegria –
lugar esse que ganha força, é bem verdade, por se contrapor em alguma medida ao universo
rural tão valorizado pelas canções da MMPB dos anos 60 – acabe por reeditar aspectos
místicos e religiosos da cultura rural. O que parece avançado e crítico nas composições
tropicalistas de Veloso acaba se convertendo, segundo ele e para ele, na necessidade de se
afirmar um novo encantamento do mundo nos moldes religiosos rurais, ou algo nessa
direção. E é daí que se dará o “aproveitamento da originalidade de nossa condição tomada
em sua complexidade desafiadora”27 ou a sua profecia.

Nesse momento da palestra Veloso passa a uma leitura dos descaminhos das
civilizações mediterrâneas para justificar, dentro da nossa origem portuguesa, a sua frase
de que “Nunca chegamos a ser um país bom”28. Disso recompõe em ritmo de almanaque a
forma como o capitalismo se constituiu nos países frios e a vantagem que o Brasil teve em
escapar de uma escravidão maior que poderia ter se dado caso o país estivesse mais
próximo ao desenvolvimento da racionalidade dos países do centro:

Considerar vantajosas até mesmo as condições adversas que a História nos presenteou. 29

Essas vantagens estão confinadas, como a figuração do país como um artista superior
deixa entrever, apenas à dimensão cultural – que internamente ganhou um estatuto
relativamente autônomo no final dos anos 60, no contexto do tropicalismo, dentro da
profissionalização do meio cultural no país. E, externamente, as vantagens estão associadas
ao cultural turn operado com a mão de obra dos desmobilizados de Maio de 68.30

Só na perspectiva do país artista superior que nós temos o dever de perceber que a História
nos sugere que sejamos é que podemos revalorar aspectos do nosso atraso como sinais de
que casualmente escapamos de uma escravidão maior no misterioso desvelar do nosso
destino.31

Veloso continua fazendo uma contraposição da canção “Tropicália” com a “País


tropical” de Jorge Ben – sempre na chave de tentar redimir o pessimismo e a negatividade

27 Idem. Ibidem, p. 43.


28 Idem. Ibidem, p. 57.
29 Idem. Ibidem, p. 59.
30 ARANTES, Paulo. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004. p. 210.
31 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 60.
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da própria canção e do movimento que ajudou a fundar – enquanto qualifica seu “herói
estético e psicológico”32, o próprio Jorge Ben, como o homem que habita o país utópico
trans-histórico. Essa comparação surge como forma de abrir espaço para abordar esse
mesmo país utópico, ou para que possa especificar a forma como concebe o país “hoje” –
começo dos anos 90. O centro da sua visão encontra na filosofia de Antonio Cicero dados
que a confirmam. A tensão entre entropia e caos, que o filósofo usa como um dos centros
para desdobrar sua reflexão, encontra certa semelhança com a tensão que perpassa as
composições do autor da palestra, segundo o próprio. Veloso, não como mero escravo das
canções, como diz, acredita que os aspectos entrópicos devam ser superados, e que

O colorido do caos (...) é absolutamente indispensável à composição da nação sonhada, a


estamparia das vestes do povo desse país do futuro.33

Muitas músicas tropicalistas apontam para o problema que existe em resolver as


contradições do presente em um futuro redentor, tema que se encontra em outros
compositores em um período anterior e concomitante ao tropicalismo. Em um artigo de
1968, Walnice Nogueira Galvão expõe e analisa essa questão mostrando que as saídas de
Veloso para escapar desse encontro marcado com o futuro possuem um aspecto
desmistificador daquela realidade:

O essencial Ŕ o caráter consolador dela [MMPB] Ŕ nunca é mencionado. Mas, na


nebulosidade da MMPB, surge uma única vez, quase subliminarmente, uma fulguração de
lucidez: “...e uma canção me consola...” . Tiremos o chapéu a Caetano Veloso: dentre nós
todos, só ele ousou confessá-lo.34

Veloso parecia ter consciência desse problema a ponto de transformá-lo em matéria


de suas composições: no verso de “Tropicália” – meu coração balança um samba de
tamborim – está condensada a crítica do autor ao samba como a solução mágica das
contradições políticas do país assim como, em chave semelhante, o trecho de “Alegria,
alegria” apontado pela autora. Eles, música que termina seu LP de 1968, apresenta a crítica
ao dia de amanhã e ao maniqueísmo de alguns grupos de esquerda de forma muito mais
explícita. O futuro é tão certo nessa construção que a música apresenta – Eles desde já

32 Idem. Ibidem. p. 60.


33 Idem. Ibidem. p. 62.
34 GALVÃO, Walnice N. “MMPB: uma análise ideológica” in:__. Saco de gatos. São Paulo: Duas Cidades, 1976, p.

112.
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querem ter guardado / Todo o seu passado / no dia de amanhã Ŕ que se presentifica de
forma perversa imobilizando, inclusive, as próprias perspectivas de transformação que as
canções de protesto acalentavam. Walter Benjamin, em outro contexto histórico, alertou
para um problema de base semelhante em relação à ação, ou à falta dela, que a social-
democracia alemã propunha no contexto posterior à Revolução Russa:

Uma vez definida a sociedade sem classes como tarefa infinita, o tempo homogêneo e vazio
transformava-se, por assim dizer, em uma ante-sala, em que podia se esperar com mais ou
menos serenidade a chegada de uma situação revolucionária. Na realidade não há um só
instante que não carregue consigo a sua chance revolucionária Ŕ ela precisa apenas ser
definida como uma chance específica, ou seja, como chance de uma solução inteiramente
nova.35

Existe, forçando a mão e desconsiderando as determinações históricas, certa


afinidade em relação a essa posição e a perspectiva crítica que Veloso tem da organização
do tempo em muitas canções de protesto, pelo que se depreende do tipo de denúncia que
faz em Eles. Só que o limite dessa crítica a um tempo sem presente parece ter como solução
a instauração da temporalidade mítica da moda, também sem presente – ou com um
presente sem determinações históricas, afinado com muitas tendências pós-modernas. O
que parece ironia, ou uma perspectiva crítica, no final da canção Tropicália – ela termina
afirmando uma temporalidade circular ligada à esfera da televisão e da moda depois de
“resolvida” a tensão entre os dois momentos do arranjo –, é, pelo que a palestra parece
indicar, a verdade de fundo do compositor, sua verdade tropical – construída
posteriormente. Veloso foi bastante perspicaz ao perceber e expor criticamente em suas
canções, depoimentos e atitudes como as ideias de povo, nação e, até, revolução estavam se
convertendo naquele momento em acessórios para aumentar as cifras de lucro dos
programas de televisão e da indústria fonográfica. Mas parece que o limite crítico dessa
construção – que teve, ao que parece, um papel desmistificador no final dos anos 60 – se
dava do próprio lugar de onde se perspectivava, a esfera da moda. Walter Benjamin
salientando o aspecto contraditório dessa esfera ainda nas suas teses sobre o conceito de
história salienta que

A moda tem faro para o atual, onde quer que este se mova no emaranhado do outrora. Ela
é o salto do tigre em direção ao passado. Só que ele ocorre numa arena em que a classe
dominante comanda. O mesmo salto sob o céu livre da história é o salto dialético, que Marx
compreendeu como sendo a revolução.36

35 LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 134.
36 Idem. Ibidem. p. 119.
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Parece que o sebastianismo de Veloso – diferente do messianismo cruzado com a


idéia de revolução evocado por Benjamin em suas teses – se alimenta dessa “absurda
superstição do novo”37, ou, como dito antes, de um desenvolvimentismo com 40 graus de
febre. Funciona, talvez, dentro da mesma organização temporal que denuncia. A dimensão
da moda e a esfera do consumo são, como o tempo mostrou e o próprio autor afirma em
diversos momentos da palestra, a sua perspectiva modernizante.
A palestra continua citando um trecho de Cacá Diegues que diz que o paradoxo do
Brasil está

em, sendo capaz de oferecer prefigurações da solução de alguns problemas que poucos
países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar
alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente38.

Pondera que talvez isso tenha aparência de fantasia compensatória de um povo


frustrado, mas começa a abrir na imaginação as grandes possibilidades futuras para o país
– seu sebastianismo – até concluir: “Nesse estágio está a minha loucura”39.

Abre, em seguida, um único parágrafo para sua sensatez: “Naturalmente, tenho


capacidade para a sensatez”40. Essa, em linhas gerais, aponta para a necessidade de
defender as conquistas da constituição de 88 com unhas e dentes. Mas Veloso não se “sente
inclinado a participar do horror ao capital estrangeiro ou da defesa das estatais” 41. Fiori
apresenta uma leitura da conexão entre esses temas centrais para a história recente do país:

Foi essa crítica liberal [de que a crise dos anos oitenta tinha acontecido em função do
“populismo macroeconômico” dos militares] que legitimou o descumprimento por parte
dos conservadores, dos compromissos sociais e federativos que haviam assinado junto com
a Constituição de 1988. E foi esse diagnóstico - quase ridículo - da crise que orientou o
desmonte e depois a destruição, na década de 90, do Estado brasileiro e dos seus
instrumentos de intervenção, de uma parte expressiva de suas cadeias industriais e
também de boa parte da infra-estrutura construída nos trinta anos desenvolvimentistas.42

A sensatez de Veloso corresponde ao conservadorismo que, com a fachada da


“constituição cidadã” de 88, operou a transferência – e a internacionalização – das

37 Idem. Ibidem. p. 120.


38 Idem. Ibidem.
39 Idem. Ibidem. p. 65.
40 Idem. Ibidem.
41 Idem. Ibidem.
42 FIORI, Brasil no espaço, op. cit. p. 32.
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instâncias das decisões políticas e econômicas nacionais aos ritmos do capital estrangeiro.
O cantor e compositor diz, dando prosseguimento a sua sensatez, que “me interessa saber o
que o Brasil diria ao mundo se ele pudesse se fortalecer; o modelo econômico para chegar a
esse fortalecimento sendo de importância secundária”43. E termina, dando acabamento ao
seu conservadorismo, afirmando que qualquer experiência socialista em um país como o
nosso significaria uma hecatombe política mundial e só “somaríamos ao sombrio mundo
comunista mais um gigante com cãibras burocráticas e boçalidade policial”44.

Volta no parágrafo seguinte a sua insensatez – como ele mesmo a denomina. Lembra
– a partir da expressão “Portugal já civilizou Ásia, África e América – falta civilizar a
Europa”45 de Agostinho da Silva – das dificuldades políticas, religiosas, econômicas etc. que
a Irlanda passou, mas conclui dizendo que o que se pensa quando esse país vem à cabeça
não é uma simples situação de fracasso, vem não só “Joyce, Wilde, U2, Sinead O‟Connor,
Yeats ou Neil Jordan, que marcaram o mundo usando a língua do opressor – pensa-se no
fogo irlandês, na teimosia, nos cabelos de Maureen O‟Hara e no álcool”46. Os aspectos
culturais vinculados à nacionalidade mais imediata até com certo toque pitoresco são o que
importam, segundo o autor que, ao que parece, confina o seu nacionalismo a uma dimensão
estritamente cultural. Já outras esferas da nação podem ser internacionalizadas e ficar à
mercê dos capitais estrangeiros. No final das contas, já que as decisões econômicas e
políticas são tomadas em grande medida fora do país, seu nacionalismo é desprovido de
nação – ou é algo só cultural, no sentido rebaixado que cultura adquiriu em sua quase total
indiferenciação em relação à economia. Veloso expõe, em seguida, uma possível aliança
entre os países que ficaram à margem do capitalismo e acredita que eles “podem e devem
tomar nas mãos as rédeas do mundo, fazendo-o transcender o estágio nórdico e sua ênfase
bárbara na tecnologia”47.

Na reta final da sua conferência parte para um balanço das suas – e do país –
conquistas relevantes desde o final dos anos 60:

Pensei em como, nos anos 60, lutamos contra as hierarquias e superindividualizamos a


moda. Depois, dos anos 70 em diante, sofri ao ver a vulgaridade dos trajes
anarquicamente usados em toda parte: senhoras em bermudas apertadas e camisetas com
a cara do Mickey entrando em bancos; aeroportos cheios de pernas peludas sustentando
verdadeiros cartazes com palavras em inglês (...) imaginei então o Brasil encontrando e
inventando naturalmente novas formas de vestir 48.

43 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 65.


44 Idem. Ibidem. p. 66.
45 Idem. Ibidem.
46 Idem. Ibidem. p. 67.
47 Idem. Ibidem.
48 Idem. Ibidem. p. 68.
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(...)
Mas o que eu espero para o Brasil é uma revolução na história do traje, pontuada por
algumas personalidades, mas de força coletiva.49

Continua – depois de afirmar novamente a esfera da moda como campo de atuação


privilegiado para o país – justificando o papel que ocupa na indústria cultural dizendo que
se mantém ali para assegurar, ou tentar, um equilíbrio na média das canções, ou para
assegurar um determinado padrão de produção em detrimento de um trabalho
experimental. Mantém-se ali por humildade, por não querer estar “demasiado à frente, ou
acima, ou à margem”50 – quer dirigir sua ambição para a cultura popular de massa. Essa
sofreu importantes transformações no final dos anos 60, no curto período de duração do
tropicalismo, que precisam de alguma especificação. Com a profissionalização de diversos
setores culturais e a transformação nos meios urbanos, acreditou-se que o país estava se
transformando, o que em certo sentido acontecia. Essa modernização em grande medida
suspendeu certa contradição que se armava na realidade brasileira com os desdobramentos
do golpe de 1964, suspensão que teve uma solução positiva dada ao final dessa mesma
década pelo Estado autoritário com o Ato Institucional Número 5 e a televisão funcionando
em rede nacional. Até esse momento, o governo militar tinha conferido certa liberdade de
ação aos intelectuais de esquerda dentro das áreas culturais51, o que funcionou, de certa
forma, como uma colocação externa dos contornos entre as esferas – política e cultural –
que não tinham se formado com consistência até aquele momento, pelo menos não com a
consistência dos países do centro do capitalismo. Esses contornos ajudaram a promover na
prática o isolamento das esferas culturais e políticas que em alguma medida se
potencializaram no final dos anos 50 e em boa parte dos 60. Com esse auxílio do governo
militar, no final da década de 60 o país deu um importante passo rumo à modernização –

49 Idem. Ibidem. p. 69.


50 Idem. Ibidem.
51 Em relação à situação da esquerda após o golpe militar de 1964, Schwarz, em seu famoso artigo, comenta:

“Entretanto para a surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais,
de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante.
Apesar da ditadura de direita há relativa hegemonia de esquerda no país”, e, mais para frente: “Os intelectuais
são de esquerda, e as matérias que de um lado para as comissões do governo ou do grande capital, e do outro
para as rádios, televisões e os jornais do país, não são. É de esquerda somente a matéria que o grupo Ŕ
numeroso a ponto de formar um bom mercado Ŕ produz para consumo próprio. Esta situação cristalizou-se em
64 quando grosso modo a intelectualidade socialista, já pronta para prisão, desemprego e exílio, foi poupada.
Torturados e longamente presos foram somente aqueles que haviam organizado o contato com operários,
camponeses, marinheiros e soldados. Cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento cultural e as
massas, o governo Castelo Branco não impediu a circulação teórica ou artística do ideário de esquerda”
(SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969” in:__. O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978, p. 65).
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conservadora – nos moldes da indústria cultural. A profissionalização dos meios culturais 52


nessas condições e com o auxílio do filtro militar possibilitou a incorporação em seus
produtos de elementos como transformação política e social – e/ou qualquer outro material
em ritmo de acessório para valorizá-lo no mercado – em um grau que aponte, talvez, para
uma transformação qualitativa do funcionamento cultural. A denúncia dessa situação,
como dito, estava no horizonte dos tropicalistas. É verdade que a censura intensificou sua
ação com o AI-5, mas ela, em diversos momentos, tinha sido incorporada internamente aos
produtos culturais a ponto de virar uma espécie de interlocutora 53 privilegiada nas
construções narrativas – às vezes criticamente, às vezes, também, como acessório externo
para valorização. Por outro lado, quando o objeto apresentava arestas excessivas, a censura
proibia-o ajudando no processo de uniformização da cultura até essa afirmar seu próprio
ritmo54. A própria idéia de nação muda de significado em relação aos projetos nacionais
anteriores – isso ao mesmo tempo em que de certa forma o país se integra por meio da rede
nacional de televisão. Nacional e popular deslocam nesse momento sua significação para,
respectivamente, algo próximo a rótulo de exportação – mais do que já era, pois em ritmo
de mentira manifesta intensificada pela violência militar – e massa consumidora, caso se
tenha algum poder de compra. Isso a ponto de mais de 20 anos depois Veloso poder
afirmar, em uma nova onda de otimismo modernizante – ancorado em última instância na
mesma ênfase bárbara na tecnologia que critica – que a contribuição nacional será nos
trajes para mostrar no “mundo” – ou, trocando em miúdos, para exportação. E nessa
direção continua seu balanço:

a versão tropicalista [da antropofagia de Oswald de Andrade] levou (...) à regeneração do


mercado de música popular no Brasil, à elevação do nível intelectual de sua produção e sua
crítica, a outro tipo de diálogo com o estrangeiro.55

O caminho que a canção Tropicália faz, com certa consequência crítica ainda que
problemática, como se tentou mostrar, é refeito pela palestra de Veloso que parte de uma
intuição, complicada é verdade, de uma forma de subjetividade com maior capacidade de
decisão forjada no final dos anos 50 – onde a bossa nova de João Gilberto fornece o modelo

52 Sobre o assunto ver: MELLO, Zuza Homem M. A era dos festivais. São Paulo: Ed. 34, 2003. E ORTIZ, Renato. A
Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987.
53 Flora Sussekind comenta a relação particular das produções estéticas com a censura: SUSSEKIND, F. Literatura

e vida literária. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.


54 “A obrigatoriedade universal dessa estilização [a obrigatoriedade de se falar o idioma da indústria cultural]

pode superar a dos preceitos e proibições oficiais.” ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, op.
cit. p. 121.
55 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 70.
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– até uma situação em que a indústria cultural – e a moda – se coloca como natural, como a
verdade possível – sua verdade tropical – que mantém o país preso – vigiado pelos “olhos
grandes” – à heteronomia do “bom gosto” técnico decidido também, em última instância,
no exterior:

O monumento é bem moderno


Não disse nada do modelo do meu terno

O monumento-nação construído em Tropicália termina por afirmar olhos estranhos


que deixam quem fala na letra em uma atitude apenas reativa e de adequação a certos
padrões que se colocam de fora. Essa parece a verdade negativa da canção, a revelação de
que o país entrou em outro ritmo de funcionamento que roubou a frágil margem que
existia, ou pareceu existir, de possibilidade de constituição autônoma – o que em alguma
medida aconteceu no final dos anos 60.

Veloso continua afirmando que devemos em relação à nação – na nova consistência


que esse termo adquiriu – fazer projetos para o futuro e sonhar. Em primeiro lugar
distribuir renda, amadurecer a noção de cidadania e elevar nosso nível de competência. E
sonhar com libérrima originalidade no ritmo do capitalismo estetizado para nos sentirmos
não em um universo, mas em um “pluriverso polimorfo”56. O autor comenta, ainda, o
amadorismo imperdoável dos discos tropicalistas. O amadorismo e a falta de acabamento
dos produtos – que têm como padrão de medida a indústria cultural norte-americana e a
bossa nova de João Gilberto – da cultura nacional parecem uma obsessão do autor em seu
livro Verdade Tropical. Os olhos grandes postos sobre ele dão no final das contas a régua e
compasso que em boa medida validam, ou não, sua verdade tropical. No fim do balanço
parece que a ala vitoriosa da Tropicália se orgulha da preparação – até psíquica – do sujeito
para as novas formas de dominação de um mundo, como se diria hoje, globalizado. O que
não deixa de ser irônico é que esses músicos se colocam como agentes dessa nova realidade
que ao mesmo tempo não comporta mais formas contraditórias no grau que foram as
composições tropicalistas ou os filmes do cinema novo e outras manifestações da década de
60. Os agentes desse processo rebaixaram muito as próprias pretensões, o que gerou
canções que vendem mais – quando são trilha de novela – mas não possuem a espessura e a
complexidade dos primeiros mal acabados LPs. Seus autores tiveram que uniformizar os
aspectos contraditórios das canções e da história recente – como a purificação da

56 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 72.


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negatividade da conferência parece indicar – para se adequarem às mesmas exigências


rebaixadas das quais se acreditam, e foram em certa medida, profetas.
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O dia-a-dia colonizado
Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos

Nils Göran Skare

Este ensaio introduz a teoria lacaniana do discurso em suas quatro modalidades


fundamentais: a do mestre, a do universitário, a da histérica, a do analista e, por fim o
“dialeto” do capitalista. Valendo-nos da noção de cotidiano de Henri Lefebvre,
relacionamos cada um desses discursos com sua manifestação no dia-a-dia. Defendemos
que o cotidiano é eventual. Contudo percebemos que o capitalismo evacua o eventual do
cotidiano, tornando-se um dia-a-dia sem mudanças (discursivas).
**

“ ...a tarefa é construir uma forma de organização a partir de um corpo


de produtores colaboradores livres, controlando mental e efetivamente
a ação produtiva comum, regulando-a à sua própria vontade...”
- Anton Pannekoek (Conselhos de Trabalhadores)

Introdução

Adorno alerta que a lei mais íntima do ensaio é a “heresia” 1. A palavra deveria figurar
como um neon brilhante em cima de cada um de tais textos, alertando o leitor de que está
entrando em uma parte da cidade onde mora o heterodoxo. Nossa proposta aqui –
combinar a teoria do discurso lacaniana à noção de cotidiano em Lefebvre – poderia
esbarrar numa certa distância epistemológica entre os dois autores em questão, ou pelo
menos em alguma estranheza. Henri Lefebvre foi um crítico atento e inteligente do
estruturalismo, que soube analisar com sutileza mas sem repudiar in toto. O importante,
como sempre, é manter essa possível contradição no plano da consciência.

“A contradição dialética não é o absurdo lógico. (...) se o pensamento dialético


se baseia (...) naquilo que o lógico declara absurdo, até mesmo impossível, o
dialético não concebe esse absurdo ou essa impossibilidade como tais; ao
contrário, vê neles um ponto de partida e a inserção numa inteligibilidade que
ele declara concreta.”2

1 ADORNO, Theodor W. The Adorno Reader. Nova York: Wiley-Blackwell. 2000. p. 110.
2 LEFEBVRE, Henri. Lógica Formal/Lógica Dialética. São Paulo: Civilização Brasileira. 1995. p. 19. (grifos meus)
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Inteligível e concreta é a colonização da vida pelo capital. Qualquer teoria que possa
informar o projeto que seja crítico da mercadoria pode se beneficiar de uma compreensão
dos diversos discursos na vida cotidiana.

Elementos da teoria lacaniana do discurso

O interesse nas últimas décadas pela teoria da comunicação, em campos que vão da
informática à genética, encontra-se voltado sobretudo para uma comunicação livre de
“ruído”, pelo ideal de uma comunicação perfeita. Esse primeiro paradigma está enraizado
numa certa teoria da informação que se ocupa da entropia dos sistemas e está construída
sobre modelos físico-matemáticos.
Em segundo lugar há o que se convencionou chamar de “análise do discurso”
propriamente dito, um paradigma cujo expoente mais notório é certamente Michel
Foucault. Aqui a ênfase é nas relações entre discurso e poder, e como as rugas de um
discurso passam de cá para lá. Como lembra a título de exemplo Paul Verhaeghe, a Guerra
do Iraque era acompanhada do discurso onipresente dos ataques “cirúrgicos” das smart
bombs. Trata-se aí de uma metáfora de poder do discurso médico presente no discurso da
guerra, com todas as implicações possíveis.
Mas a teoria dos discursos de Lacan difere desses dois projetos. A ênfase em Lacan
não é no conteúdo do discurso, mas em sua formalização. É, antes de mais nada, uma
teoria que entende a linguagem como fundamentalmente incompleta, e portanto sempre
imperfeita. Se nos entendessemos perfeitamente, nada diríamos; porém a partir dessa
impossibilidade de ter a verdade por inteiro na boca surge o impulso para a comunicação.
Então essa é uma teoria que envolve a “imperfeição” da linguagem.
Ao mesmo tempo, ela abarca uma classificação, uma tipologia dos discursos; no
paradigma do poder/discurso, “cada discurso é um discurso”, o que se traduz numa
multiplicidade de agentes. Já a teoria lacaniana envolve um número “n” de discursos, de
formas/discurso e, portanto, uma taxonomia.
Essa teoria do discurso lacaniana envolve posições e elementos.
Quanto às posições: inicialmente há duas posições a serem levadas em conta, a de
que existe um agente do discurso e a de que há um outro a quem essa comunicação se
dirige, ou que sofre a ação desse discurso, o que é evidente.

Agente → Outro
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Esse outro da comunicação sempre resultará em alguma coisa, sempre haverá algo
“feito” a partir dessa situação comunicacional. É o produto da comunicação.

Agente → Outro → Produto

A quarta posição, que na verdade é a primeira, apresenta a posição propriamente


psicanalítica dessa teoria: é a verdade. É a posição da verdade que age como o motor
(inconsciente) de que o agente é o móbil. Não tanto falamos quanto somos falados por essa
verdade que está sempre velada em todo discurso.

“Em cada discurso um agente (indivíduo, grupo, instituição) age ou se


dirige para outro (indivíduo, grupo ou instituição). Lacan alega que a
posição do agente é uma posição de semblante, já que todo agente é no fim
governado ou forçado a agir pelo inconsciente ou o que Lacan chama de
„verdade‟ do discurso. A posição da verdade é portanto o agente real do
discurso. É simultaneamente o que o discurso tem que velar ou esconder, o
que o discurso tem que excluir para funcionar, para ao mesmo tempo ser o
que leva adiante o discurso ou que funciona como o „motor‟ do discurso.”3

A situação poderia ser representada assim:

Verdade → Agente → Outro → Produto

Contudo, Lacan representa desta forma, como se fossem frações:

Além disso, entre o agente e o outro há uma impossibilidade. E entre o produto e a


verdade há uma incapacidade ou impotência. Deve-se entender desta forma: o agente
(“ilusório”, ou “faz-de-conta” na medida em que é um semblante) é levado a agir/comunicar
o que sua verdade o impele, e como essa verdade não pode ser completamente verbalizada,
uma comunicação perfeita com palavras é logicamente impossível. Ao mesmo tempo, se
fosse possível ao agente verbalizar perfeitamente seu desejo ao outro, o produto seria
apropriado; como isso não é possível, o produto da comunicação jamais se enquadra na sua
verdade.
Quanto aos elementos: são quatro os elementos na formalização dessa teoria. Eles
são representados desta forma: $, S1, S2 e a. Respectivamente: o sujeito, o significante-
mestre, a cadeia-significante e o objet-petit a, ou objeto pequeno a.

3 BRYANT, Levi R. “Žižek‟s New Universe of Discourse: Politics and the Discourse of the Capitalist”. In: Internation
Journal of Žižek Studies, vol. 2, no 4, 2008. p. 41.
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Passa pelo sujeito o que se chama de Spaltung; isto é, há uma divisão no sujeito
entre consciente e inconsciente. O sujeito é sempre dividido pela linguagem. E ele não pode
ser estudado “em termos objetivos”, reificado; ele é também uma unicidade, uma
singularidade. Ao mesmo tempo, Lacan identifica seu sujeito como o sujeito cartesiano da
ciência moderna, o sujeito do cogito. Ele é também “sujeito”, no sentido de assujeitado
(ambiguidade igualmente produtiva em Althusser), o sujeito só existe pela mediação do
Outro, da ordem simbólica. Ser um sujeito é reconhecer-se um sujeito entre sujeitos, no
registro da linguagem e da Lei.
Em toda ordem socio-simbólica existe um significante sem significado, isso a que
Lacan denomina significante-mestre. O Outro é castrado, jamais completo. E sem essa falta
no Outro o próprio desejo não poderia existir, é o que permite a não-alienação do sujeito –
dá-lhe um “espaço para respirar”. Na falta do Outro o sujeito identifica sua própria falta.
Esse significante-mestre é um significante “puro” que Lacan representa pelo símbolo
algébrico S(A) e é grafado aqui na teoria dos discursos como S1. É um pequeno pedaço de
nonsense materializado. Nessa medida a identificação do sujeito com esse “pedacinho do
Real”4, dá segurança ao indivíduo entre as desrazões da existência. Assim, não importa
quantos significantes sejam reunidos numa cadeia significante, é sempre e somente a falta,
“materializada” no significante-mestre, que a completa. A rigor, todo significante – isso que
é passível do jogo das metáforas e metonímias – pode ser substituído por qualquer outro
significante. O significante-mestre, nesse sentido, é essa unidade mínima dos sintagmas e
paradigmas pelo qual o sujeito se esforça para ser representado no simbólico, o registro da
linguagem e da Lei. Isso é o que sustenta a compreensibilidade de um discurso. Como point
de capiton, o significante-mestre amarra diversas narrativas num ponto, permitindo
alguma estabilidade de self para a pessoa em meio à caótica e por vezes perigosa rede de
saberes da sociedade. Em cada conjunto de significantes há pelo menos um que é o
significante da própria falta do significante, e que dessa forma evita o deslizamento que
ocorre na ordem simbólica, produzindo um significado estável. Para fazermos uma
analogia, o significante-mestre é como uma moeda estrangeira, uma coisa sem valor
econômico, “inútil”, mas que recorda a seu dono de um modo especial uma viagem feita a
um país no exterior – ele “tampa” a ordem simbólica dos significantes referentes àquela
viagem.

4 ŽIŽEK, Slavoj. Looking Awry: an introduction to Jacques Lacan through Popular Culture. Cambridge: MIT
Press, 1992. p. 30.
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O terceiro elemento é a cadeia-significante, S2. Ele representa o resto da cadeia de


significantes de uma determinada ordem simbólica, e com isso simboliza também o saber.
Por fim, o sempre elusivo objet-petit a, representada pela letra a. Ele é ao mesmo
tempo o objeto e a causa do desejo, uma negatividade radical (desejar é faltar) tornada
“positiva” num “objeto”.

“O objet petit a funciona como o objeto causa do desejo. Porque o sujeito


é dividido, ele deseja. Ele deseja não ser dividido, mas ser inteiro. De fato, a
divisão de sua subjetividade pode ser pensada como não sendo nada mais do
que esse desejo. Porque o sujeito deseja ser um todo, ele não quer
reconhecer que sua divisão é constituinte de sua subjetividade. Ele quer ser
uma sujeito „indiviso‟. Ele quer acreditar que há alguma coisa externa que
explicaria essa divisão.” 5

Embora pareça (e seja) uma articulação bastante complexa, os discursos propostos


por Lacan são formados com simplicidade colocando esses elementos nas diferentes
posições, gerando assim uma estrutura discursiva própria.

Mestre, Universitário, Histérica, Analista e Capitalista

O primeiro discurso a que Lacan se refere, e que serve de base para todos os outros, é
o discurso do mestre. Ele é representado desta forma:

Discurso do Mestre

A arbitrariedade do poder é a marca do discurso do mestre, arbitrariedade igual à do


significante a que estamos todos constrangidos. O agente é ocupado por esse pedaço de
nonsense que é o significante-mestre, assim o discurso do mestre é um discurso a ser
obedecido “porque sim”. O discurso amparado pelo mestre é um discurso que esconde a
castração, que ilusoriamente se acredita indiviso. Dessa forma ele tenta se escorar num
conhecimento que seria natural, “dado”: inquestionavelmente natural e naturalmente
inquestionável. Na expressão de Jacques-Alain Miller, o mestre é um “mestre cego”, que
governa para não ver – seu ser incompleto, cindido pela linguagem, pela rede de
significantes incapaz de uma totalidade final.
Repetidas vezes em seu Seminário XVII Ŕ O avesso da psicanálise Jacques Lacan
nos chama a atenção para a situação do escravo na Antiguidade, de que o exemplo

5 SCHROEDER, Jeanne Lorraine. The Four Lacanian Discourses: Or Turning Law Inside Out. Abingdon: Taylor &
Francis, 2008. p. 18.
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paradigmático é provavelmente o Mênon6: o escravo obedece ao senhor gerando um a-


mais, o gozo de que o mestre tenta se apropriar. A formatação do discurso do mestre pode
se prestar também à narrativa edipiana, agora a criança forçada a obedecer o “porque sim”;
ou no machismo, onde a mulher é o outro sujeitado; em suma, em relações
comunicacionais marcadas por uma univocidade, por crer-se unívoco ao mascarar a divisão
do sujeito. Para Lacan:

“O sujeito participa do real, justamente, por ser aparentemente


impossível. Ou, melhor dizendo, (...) diria que ocorre com ele o que ocorre
com o elétron, no ponto em que este se propõe a nós na junção da teoria
ondulatória com a teoria corpuscular. Somos forçados a admitir que é
precisamente como sendo o mesmo que esse elétron passa ao mesmo tempo
por dois buracos distantes.”7

O elétron que é partícula/onda é o sujeito em sua (in)divisão, velada e evidente, sua verdade.
O sujeito “é” completo, unitário; e “é” dividido pela linguagem. Žižek chama a atenção, ainda no
campo da física subatômica, para o efeito Einstein-Podolsky-Rosen, em que uma partícula cujo spin
é ligado ao de outra partícula muda seu spin coerentemente “antes” da outra partícula fazê-lo. O
filósofo esloveno formula assim que nem a mais “pura” física subatômica consegue escapar do
impasse fundamental da simbolização:

“(...) nosso conhecimento do universo, a maneira como simbolizamos o


real, é no fim sempre ligada e determinada pelos paradoxos próprios à
linguagem; a divisão entre “masculino” e “feminino”, isto é, a
impossibilidade de uma linguagem “neutra”, não marcada pelas diferenças,
impõe-se porque a simbolização como tal é por definição estruturada ao
redor de uma certa impossibilidade central, um beco sem saída que não é
nada além da estruturação dessa impossibilidade.” 8

No discurso do mestre o sujeito sonha com sua completude, e se julga portador de


uma linguagem indivisa. Esse sonho é, naturalmente, sempre confrontado com a realidade
de que as palavras não são idênticas a si mesmas. Forma discursiva que coloca o Outro na
posição de escravo, busca tirar desse servo um saber de mestre que aproxima-se da ciência
– embora Lacan identifique esta propriamente ao discurso da histérica – excluindo o mito.
“Por isso, a episteme resultante desse discurso se reduz a um saber teórico.” 9 Contemplação
que busca o sistema, o saber do mestre é um saber expropriador.
O próximo discurso é chamado de discurso do universitário:

6 Ver PLATÃO. Mênon. Editora PUC Rio/Edições Loyola, 2001. p. 53 em diante.


7 LACAN, Jacques. O Seminário Livro XVII Ŕ O avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editor, 1992. p. 109.
8 ŽIŽEK, Slavoj. Looking Awry. p. 47.
9 BUENO, Cleuza Maria de Oliveira. Entre-vista: espaço de construção subjetiva. Ed. PUC-RS, 2002. p. 99.
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Discurso do Universitário

A posição do agente, a posição dominante é ocupada pelo saber. “Esse discurso é o


lugar onde todas as formas de complexidade e ambigüidades são mapeadas no domínio do
conhecimento.”10 É o discurso da burocracia, daquele que quer fazer do Outro “um sujeito”,
ou, como se dizer, “formar” um aluno.
Não há nada pequeno demais ou grande demais para o discurso do universitário. Ele
estrutura a ciência, a burocracia, o capitalismo de estado, toda a aparelhagem de
reprodução do capital: o capitalismo é o irmão-gêmeo da universidade.
O objeto do discurso do universitário é uma preocupação com o Outro – que
compreende como todo-poderoso e ao mesmo tempo frágil, que deve ser preservado a todo
custo – de modo que não é de estranhar que, se por um lado pensadores como Žižek
identificarão o fascismo como uma reação do discurso do mestre ao liberalismo moderno,
por outro lado o estalinismo será visto como a chegada ao poder do discurso do
universitário11. O universitário é o novo mestre no sentido de um mestre “sem
arbitrariedades”; o universitário se coloca como servo do povo para quem, sacerdote do
conhecimento último, revela as inescapáveis leis da ciência, da sociedade, do progresso. Se
o discurso do mestre era o discurso “sem razão” da dominação, para o discurso do
universitário tudo tem uma razão. É o próprio discurso da tecnocracia, da racionalização,
da racionalidade como instrumentação do discurso do mestre; ele está a favor do
significante-mestre e armado com praticamente qualquer argumento, sob a forma da razão.
O discurso da universidade se coloca contra qualquer instância engajada, a que acusa
de “dogmática” e “sectária”. “Ele não pode aceitar a escolha de apenas um único significante
para monopolizar a posição de comando do sujeito do enunciado. Ao julgar que essa
posição deve ser democraticamente partilhada pela sabedoria de todos os significantes, o
discurso da universidade se revolta contra a apropriação autocrática de apenas um
significante.”12 O discurso da universidade renega (Verleugnung) sua ação, observa Žižek
em algum lugar, como se sua decisão política fosse completamente fruto de um
conhecimento técnico-científico. Na perversão o sujeito foge da realidade do trauma

10 LIU, Catherine. “Lacan‟s Afterlife: Jacques Lacan meets Andy Warhol” In: RABATÉ, Jean-Michel. The Cambridge
Companion to Lacan. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 254.
11 SHARPE, Matthew; BOUCHER, Geoff. Zizek and Politics: a Critical Introduction. Edimburgo: Edinburgh

University Press, 2010. p. 94.


12 CUELLAR, David P. From the Conscious Interior to an Exterior Unconscious: Lacan, Discourse Analysis and

Social Psychology. Londres: Karnac Books, 2010. p. 265.


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recusando-o e admitindo-o ao mesmo tempo, de forma que não se percebe a ausência


como constitutiva do desejo, acreditando-se que o desejo é causado por uma presença (o
fetiche)13. Assim, o professor educa a criança para “o Brasil do futuro”, ou para “uma nova
sociedade”, sempre para o grande Outro. Unidirecional, esse discurso é para Lacan a atual
forma do discurso do mestre.
O discurso seguinte é o discurso da histérica.

Discurso da Histérica

Este não é apenas um discurso proferido “patologicamente” por uma histérica, mas é
aquele liame social onde um sujeito está inscrito como agente. Isto é, o agente é o sujeito
cindido, é o sintoma. Ele se dirige ao mestre, ao significante-mestre para produzir
conhecimento. Sua verdade é seu desejo. O analista, durante a psicoterapia, precisa
“histericizar” o discurso de seu paciente, justamente para que o sintoma se manifeste.
A histeria é:

“o fato da linguagem se admitirmos que quem quer que fale seja


histérico. Podemos ir além e dizer que o sujeito que pede para ser
reconhecido é um fato da linguagem (...). A histérica não apenas solicita que
a linguagem seja usada como um meio para explicá-la; ela também insiste
em ser reconhecida como um ser da fala”14.

A histérica sabe a verdade sobre o desejo que existe no discurso do mestre. Se no


discurso do mestre a jouissance é colocada no lugar do reprimido, no discurso da histérica
ela é colocada no lugar da verdade. Porém o discurso da histérica ainda se encontra
amarrado aos significantes-mestres da sociedade. A pessoa desse discurso ainda exige seus
significantes do Outro, ao invés de produzi-los ela mesma15.
Por fim, o último dos quatro discursos propostos por Lacan é:
Discurso do Analista

Este é o chamado discurso do analista. Aqui podemos notar que o objeto-causa do


desejo, o objet-petit a, está na posição do agente. Em outras palavras, o sujeito se coloca

13 Ver FREUD, Sigmund. “Fetichismo” In: FREUD, S. Escritos sobre a psicologia do inconsciente, volume III. Rio
de Janeiro: Imago, 2007. (pp. 161-166).
14 ŽIŽEK, Slavoj. Jacques Lacan. Londres: Routledge, 2003. p. 88.
15CHAITIN, Gilbert D. Rhetoric and culture in Lacan. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 251.
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como causa do desejo do outro, esse outro dividido e castrado. O discurso do analista está
sempre gerando nonsense, já que S1 ocupa o espaço do produto, do resíduo da comunicação.
E para testemunhar o bom resultado da análise, o analista precisa estar perante uma fala
completa e coerente; livre dos lugares-comuns e clichês do Outro, e ao mesmo tempo
articuladamente, o sujeito dividido pela linguagem precisa lidar com sua própria castração
na fala. Ele produz uma verdade (S1) subjetiva, ele permite um significante-mestre na vida
do analisando capaz de gerar novos significantes-mestres para sua vida; ao mesmo tempo, o
analista é tido como o sujeito-suposto-saber (S2). O discurso do analista subverte o discurso
do mestre.

“Enquanto o analista lacaniano usa o simbólico para trabalhar no


real da jouissance do analisando, o discurso do mestre nega o real de um
obstáculo, fazendo piada, dizendo que não é assim (...). Porém obstáculos
concretos foram colocados tijolo por tijolo. Constituem as trilhas do
conhecimento inconsciente que cortam a continuidade. E porque deslindam
o ego, produzindo ansiedade, as pessoas fazem tudo para negar o real, para
negá-lo a todo custo.”16

A comunicação do analista pode ser simplesmente o silêncio. É a descoberta de


Freud a respeito da histeria: deixar o sintoma falar. Com isso, Freud descobriu o discurso
do analista.
Tratamos portanto dos quatro discursos para Lacan: do mestre, do universitário, da
histérica e do analista. Contudo, há ainda um quinto discurso, que bem pode ser
compreendido como um “dialeto” do discurso do mestre, como propõe Levi Bryant, e que é
apresentado por Lacan em seu discurso em Milão como um discurso típico da sociedade
dita “pós-moderna”: é o discurso do capitalista.
Discurso do Capitalista

A formalização lacaniana do discurso do capitalista deve ser entendida em dois


sentidos: no paradigma da produção e no paradigma do consumo.
Na produção o trabalhador ($) se dirige aos meios de produção (S 2) e com eles
produz mercadorias (a), que nunca são suficientes. Elas são apropriadas pelos donos da
empresa ou pelos acionistas (S1) e usadas para acumular mais e mais capital. Esse a-mais,
contudo, precisa ser reempregado para aumentar a eficiência da produção e vencer a

16 APOLLON, Willy; FELDSTEIN, Richard. Lacan, politics, aesthetics. Nova York: Suny Press, 1996. p. 139.
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competição. É um círculo vicioso.


No consumo agora o agente é o consumidor, ele é posto para desejar os bens infinitos
do sistema capitalista de produção. Contudo, ao identificar um desejo a uma mercadoria, o
consumidor só pode necessariamente produzir um resíduo de insatisfação, algo elusivo que
sempre lhe escapa. Nenhuma mercadoria pode satisfazer um desejo. Mas assim ludibriado
o consumidor é levado a querer satisfazer algo em sua posição de verdade (S 1) que deve ser
entendido como o super-ego. O super-ego é uma instância psíquica que não tanto proibe e
impede, como faz crer o senso comum, mas ao contrário obriga o sujeito a gozar. Levado
pela propaganda o consumidor deseja o produto “x”, que no entanto sempre decepciona e
frustra; mas o super-ego comanda o sujeito a gozar isso. Claramente, ao se obedecer a
injunção do super-ego, gera-se mais um círculo vicioso. Esse é o humanismo da
mercadoria, na justa expressão de Guy Debord, que subitamente trataria o trabalhador
“como adulto”17 no papel de consumidor. Porém aquilo que não pode ser criado na
atividade não pode ser desfrutado na passividade.

Cotidiano e Discurso

O cotidiano não envolve senão o vivido, e mesmo o teórico como vivido. Espaço da
rotina, do irrepetível, do rotineiramente irrepetível, o cotidiano seria um conceito,
delimitável e passível de recorte por uma ciência especializada? Seria o espaço da ação
política, do homem na polis, agora tragada pelo sorvedouro de shopping-centers e
condomínios fechados? Ou antes, como isso que não se destaca da vida, não seria tarefa de
uma filosofia? Pois a filosofia é um saber da vida e não competiria à filosofia uma inserção
compreendida e compreensiva do indivíduo no espaço cotidiano? Mas a filosofia tem um
julgamento bastante severo sobre o cotidiano: não fala Heidegger da dispersão do Dasein
em sua cotidianidade? O mundo como representação mais ou menos ilusória em
Schopenhauer? Mesmo se a filosofia clássica estiver inserida solidariamente na cidade
antiga e sua política, ela não pensará o vivido como simulacro em uma caverna platônica?
Ora, se não há pensamento vivendo no/do cotidiano, então as conseqüências práticas são
duras para “as pessoas”.

“Sabem o que querem? Sim, mais e mais claramente, são menos e


menos enganados. Conhecem claramente sua situação, suas relações sociais?
Não. Um caso: quanto mais o espaço e os lugares são importantes, mais a
massa das pessoas desconhece o espaço, pois tudo contribui a destacá-los
dele: as mídias, as imagens, os transportes, a abstração geral. Não

17 DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. Rebel Press: 1983. p. 22.
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compreendem socialmente senão o escalão inferior e imediatamente


superior a eles na hierarquia.”18

O cotidiano é assim um espaço duplo de revelação e ocultamento, de poder e de


alienação. Um saber que questione o cotidiano não pode naturalmente se colocar como
dono de um saber que o formaria: a isso se pode bem dar o nome de colonização desse
cotidiano. Ele de fato existe, mas não como conhecimento crítico-prático, de uma filosofia a
ser realizada na acepção marxista (talvez aí uma “metafilosofia” diria Lefebvre); antes, os
conhecimentos parcelados e fragmentários orientam a invasão tecno-mercadológica de
elementos desejados pelo discurso capitalista, ao mesmo tempo que esses organizam e
distribuem práticas que enredam o sujeito entre “o andar de cima e o de baixo”. Estamos
falando naturalmente do que conceituamos como o discurso do universitário, que invade o
cotidiano. Mas é preciso aguardar para desenvolvermos este ponto.
Pensar o cotidiano é então perguntar pelo tempo e pelo espaço do vivido, mas em
suas determinações concretas, como espaço de vivência qualitativa do indivíduo. Ou antes,
diremos que um pensamento não é ainda uma teoria, uma crítica; mas como crítica,
portanto, não pode tratar o cotidiano como resíduo, como “produto”. Contudo também essa
formulação se reconfigura, já que há um “resíduo” (agora no sentido oposto) da praxis
hegemônica sobre o cotidiano, ou melhor dizendo, com Lefebvre, há um “espaço
diferencial”19.
De fato, mesmo a noção comum do cotidiano pede por um espaço de rotina, por
topoi sobre os quais decalcar atos, atividades, e em última instância afetos e gestos. Se a
vida cotidiana se esvai sem consciência e sem deixar memória, então só pode ser a vitória
do espaço sobre o tempo. Nas palavras de Cláudio R. Duarte:

“No nível mais imediato, a hegemonia do tempo de trabalho acarreta


a degradação da experiência: o tempo (...) aparentemente evacua-se quando
deixa apenas traços apagados e dissimulados no espaço existente. Apaga-se
então como realidade „percebida‟ pela consciência social e „vivida‟ pelos
sujeitos (o tempo como durée), tendendo para a fragmentação e o
esquecimento.”20

No discurso capitalista o sujeito agente se dirige aos meios de produção gerando


como produto as mercadorias em excedente apropriado pelo capital, em círculo vicioso. Se
traduzimos este paradigma para a vida cotidiana, o discurso capitalista “consome

18 LEFEBVRE, Henri. Critique de la Vie Quotidienne III Ŕ De la modernité au modernise (Pour une
métaphilosophie du quotidien). Paris: L‟Arche Editeur. 1981. p, 26.
19 Ver LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford: Blackwell Publishing. 1991. pp. 352-400.
20 DUARTE, Cláudio R. “Espaço Social e sobrevivência do capitalismo: a teoria da reprodução social de Henri

Lefebvre”. Sinal de Menos. Ano 2, no 5, 2010.


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produtivamente” o cotidiano produzindo alienação. Debord liga isso ao espetáculo: “A


função social do espetáculo é a fabricação concreta da alienação.” 21 O espetáculo portanto
nada mais é que a verdade do cotidiano do capitalista contemporâneo.
O discurso do capitalista também pode ser compreendido no paradigma do
consumo. Agora o cotidiano é consumido como mercadoria: as festas sem alegria genuína, o
entretenimento e a indústria cultural, a vida noturna e seus “estilos de vida”, os
relacionamentos transformados em networking, o hedonismo e as drogas; o que seria
cotidiano não consegue prover a Erfahrung que foi desperdiçada quando da produção:
consumir o espaço não recupera o tempo perdido. O que se produz é a angústia.
A angústia se relaciona ao medo de fragmentação que a criança sente no estádio do
espelho perante o (des)conhecimento (méconnaissance) de sua imagem especular22.
Debord novamente, ligando o espetáculo a uma imagem especular que reflete a política da
mercadoria, afirma: “Aqui se põe em cena a falsa saída num autismo generalizado.” 23 O
cotidiano capitalista é, nesse sentido, esquizofrênico.
Havíamos mencionado o discurso universitário como colonizador do cotidiano. O
colonizador, de fato, incorpora diferentes figuras universitárias. O colonizador é aquele que
domina, mas domina em nome de; em nome do progresso, em nome do cristianismo, em
nome do white men‟s burden. Essa última expressão é particularmente feliz, já que há
sempre um tom de sacrifício, de “altruísmo” temperado com certa auto-comiseração no
discurso do universitário/colonizador. Como dissemos, o agente desse discurso sempre se
comunica/age “pelo bem” do Outro, que é infantilizado/glorificado/fetichizado.
O discurso do universitário com relação ao cotidiano é de domínio. Tudo existe para
ser “colocado em seu lugar”, “formatado”, “organizado”. É também o paradigma do bio-
poder, se entendemos aqui uma situação para controlar e fazer funcionar diversas
instâncias disciplinantes, da informatização dos presídios às carteirinhas de identificação
em escolas e hospitais. É a colonização do cotidiano pelo discurso universitário que nos faz
ouvir que: “no Brasil faltam leis mais duras”, ou “os alemães no sul do Brasil evoluíram
porque são mais esforçados”. É também o discurso da nova classe média ligada à produção
de “bens imateriais”, e portanto ciosa do know-how que lhe confere um degrau nas
escadarias tecnocráticas. Ao mesmo tempo, perante o cotidiano, esse discurso produz um
resíduo: a ignorância.

21 DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. p. 16.


22 Ver LACAN, Jacques. “O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu” In: ZIZEK, Slavoj (Org.) Um
Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto. 1999. pp. 97-103.
23 DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. p. 118.
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Na medida em que esse discurso colonizador tem sempre-já uma “resposta para
tudo”, um conhecimento do qual ele parte de antemão, o cotidiano é “recortado” de modo a
deixar escapar exatamente esse aspecto teórico-crítico, esse saber obscenamente dialético,
em última instância sua própria humanidade. Lefebvre cunha o termo cibernântropo para
tratar dessa situação de um discurso de um autômato que é a realização no “máximo grau
tecnocrático” do universitário.

“Sejamos precisos. O cibernântropo não é o autômato. É o homem que


recebe uma promoção: ele se compreende graças ao autômato. Vive em
simbiose com a máquina. Encontrou nela seu duplo real.”24

Que a sociedade se reproduza sem obstrução é o anseio maior desse cibernântropo,


articulado por Lefebvre ao autômato como “duplo”. Notamos que a presença do autômato
ligado à repetição, para Lacan, diz respeito à pulsão. Lacan, a partir da década de 60:

“(...) focaliza a atenção mais e mais na pulsão como um tipo de


conhecimento „acefálico‟ que traz satisfação. Esse conhecimento não envolve
nenhuma relação inerente com a verdade, nenhuma posição subjetiva de
enunciação – não porque dissimula a posição subjetiva da enunciação, mas
porque é em si não-subjetivada, ou ontologicamente prévia à própria
dimensão da verdade (...) Verdade e conhecimento estão assim relacionados
como desejo e pulsão (...)” 25

Cabe então ao cibernântropo em última medida abrir mão de sua “humanidade”, ao


se tornar um conhecimento “acéfalo”, uma “máquina de repetição”. E justamente aí está a
verdade do discurso colonizador do cotidiano. O cibernântropo tem um cotidiano de
máquina. E a máquina aqui tem o sentido do gadget, esse aparelhinho “mais engenhoso do
que útil”26, engenhoca que se perpetua pela esquizofrenia capitalista; mas também o
sentido do garrote, instrumento de suplício imposto para sufocar um discurso antes que ele
“diga a verdade” ao Outro.
Qual o discurso da histérica perante o cotidiano? Justamente a de questioná-lo, de
interrogá-lo em busca de seu desejo. O que é isso que há no cotidiano que poder ser a
verdade a ser interrogada? As instituições tradicionais fornecem alguma base – ora em
descrédito, ora ressurgentes – para o discurso da histérica. A família, a igreja, as tradições
aí no cotidiano são interpeladas histericamente e produzem como resultado ritos. Toda
relação histérica com o cotidiano produz ritos27, produz uma repetição, porém diferente da

24 LEFEBVRE, Henri. Posição: Contra os Tecnocratas. São Paulo: Editora Documentos. 1969, p. 186.
25 ŽIŽEK, Slavoj. Desire: Drive = Truth: Knowledge. (http://www.lacan.com/zizek-desire.htm, grifos meus.
Acessado em 15 de julho de 2010).
26 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva. 2002.

Versão 1.0.5 – CD-ROM: verbete “Gadget”.


27 Sem os problematizarmos antropologicamente a fundo, nós os definiremos apenas como processos simbólicos.
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do cibernântropo. A histérica de fato não perdeu completamente a noção do tempo como


durée, ela apenas busca os elementos dessa “vivência” no cotidiano imediato; e pode-se
dizer que ela não o encontra? Esse discurso pode se manifestar desde a rotina da igreja no
domingo à tarde, até lavar obsessivamente as mãos. Mas para além de uma psicopatologia
do cotidiano, o discurso da histérica procura no cotidiano uma classificação, porém
igualmente distinta da ordem do cibernântropo. Buscam:

“uma classificação das coisas, reais ou ideais, que representam os


homens, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados igualmente
por dois termos distintos que traduzem as palavras profano e sagrado.”28

Aqui é preciso pisarmos com cautela. O histérico, por exemplo, mesmo num ato
semelhante ao do capitalista (ou do universitário para todos os efeitos), age e sente
diferente. Assim a aquisição de um automóvel novo no discurso capitalista estará
indissociavelmente ligado à esquizofrenia imposta por essa situação de consumo cotidiano.
Ao mesmo tempo, o discurso histérico envolveria a atribuição ao carro, senão de um caráter
sagrado, ao menos à ação de um princípio superior ao profano. Diversos fenômenos na vida
cotidiana estão aí na histeria: o artista ou esteta em sua fruição artística, alguns idealismos
na política, ou simplesmente a permanência de um sonho durante o dia traduzem um
mesmo aspecto histérico em relação ao cotidiano. A juventude é histérica, se não é
cooptada29.
Os ritos diários são essas cristalizações histéricas do cotidiano. São elas que dizem
que isso está “acima das outras coisas”. O cotidiano histérico na verdade é sagrado,
constrói-se sobre o sagrado. O que certamente não exclui os sacrifícios, as crucificações, os
flagelamentos. Hegel (o “mais sublime dos histéricos” nas palavras de Žižek) já chamava a
atenção para o caráter libertador da rotina para o espírito, permitindo que esse
incorporasse aos poucos um conjunto de saberes até dominá-los perfeitamente.
Podemos recorrer a alguns lugares-comuns da cultura popular para ilustrar certas
diferenças, como os personagens recorrentes nas histórias de terror: o zumbi, o vampiro e o
alienígena.
O zumbi é justamente o ser da repetição, e o frisson desse tipo de filme é ver o bom e
velho amigo do protagonista enfim transformado num zumbi desmiolado, condenado a se
arrastar sem parecer ou agir como um humano. Zumbis são seres da pulsão, como o
cibernântropo. Já os vampiros levam uma vida de dia, escondidos do sol, e outra de noite.

28 DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Presses Universitaires de France. 1968.
p. 50.
29 Ver LEFEBVRE, Henri. Introdução à Modernidade: Prelúdios. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1969. pp. 185-196.
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Como no discurso do capitalista (é metáfora recorrente associar os dois), são “eternamente


jovens”, já que o tempo não lhes altera, a vida é simplesmente uma sucessão monótona e
parasita de um tempo homogêneo. Já o discurso da histérica se assemelha ao alienígena: o
ser extra-terrestre toma conta do corpo de um terráqueo e parece e age como ele, mas não
é. Como a histérica, sua verdade “não é deste planeta”, ela está além das cercanias
imediatas, ela obedece a uma “ordem cósmica” sobrepujante.
Ao dominar o cotidiano, o mestre se orienta pelo aspecto propriamente simbólico
deste. Falar no simbólico é falar do lugar de reconhecimento entre os indivíduos. “A
consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer
dizer, só é como algo reconhecido.”30 As eleições da política dita democrática, o “fluxo” de
imagens da mídia, o aparelho repressivo; em cada símbolo se esconde a possibilidade de
assujeitar.
Esta situação remete imediatamente à crítica da ideologia feita por Althusser que,
como já mencionamos previamente, trabalha com a ambiguidade do sujeito. O cerne da
teoria althusseriana (que logo submeteremos à crítica) diz respeito à noção de interpelação:

“Observa-se que a estrutura de qualquer ideologia, ao interpelar os


indivíduos como sujeitos em nome de um Sujeito Único e Absoluto, é
especular, ou seja, é uma estrutura em espelho, e duplamente especular:
essa duplicação em espelho é constitutiva da ideologia e garante seu
funcionamento. O que equivale a dizer que toda ideologia é centrada, que o
Sujeito Absoluto ocupa o lugar singular do Centro e interpela a seu redor a
infinidade de indivíduos a se tornarem sujeitos, numa dupla relação
especular, de tal ordem que sujeita os sujeitos ao Sujeito, ao mesmo tempo
que lhes dá, no Sujeito em que cada sujeito pode contemplar sua própria
imagem (presente e futura), a garantia de que isso realmente concerne a
eles e a Ele (...)”31

Notamos que a teoria althusseriana, não mais do que esboçada aqui, contém um
defeito fundamental: a saber, que se trata de uma teoria ainda imaginária da ideologia.
Tal qual no estádio do espelho em que se processa a alienação do ego e
posteriormente o ocultamento dessa mesma alienação, o (des)conhecimento
(méconnaissance) atua também no momento da interpelação ideológica em que o indivíduo
vê o Mim que conhece (mé-connaissance) no limiar de transformá-lo em sujeito ao Sujeito.
Contudo o indivíduo também é simbólico e como tal à mercê do enigmático Outro cuja
trama de significantes, cujo (en)jeu-des-mots desloca suas certezas ao mesmo tempo que
permite a existência do desejo.

30 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, parte I. Petrópolis: Editora Vozes, 6 ed. 2001. p. 126.
31 ALTHUSSER, Louis. “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (Notas para uma Investigação)” In: ZIZEK,
Slavoj (Org.) – Um Mapa da Ideologia, Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. p. 137.
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Dessa forma, gostaríamos de sugerir o neologismo contraduzir, para propor a


relação do indivíduo com as diversas interpelações ideológicas com as quais se depara sem
necessariamente ser reduzido à sua dimensão unicamente imaginária: o indivíduo tem atos
e atividades que traduz com a interpelação que lhe é dirigida, e também contra aduz ao
Sujeito suas razões. Nessa crítica estamos com Lefebvre 32, que ao introduzir a noção de
nível e dimensão propôs uma crítica coerente, pro et contra, do estruturalismo,
especialmente no caso de Althusser.
O produto do discurso do mestre é justamente, então, a ideologia. Em seu cotidiano
o mestre gera ideologemas e não é de estranhar que o “fim das ideologias” e o declínio do
mestre sejam concomitantes. Na medida em que o mestre contraduz de Deus Suas
verdades, o mestre é um “santo” cujo significante-mestre é notoriamente conhecido de
todos, de toda a “congregação”.
Falando da decadência do mestre, no cotidiano mesmo a política representativa já
não é terreno dele; a figura do político não defende um significante-mestre claro. O
professor e as lideranças religiosas tampouco se reúnem atrás de uma bandeira que
contraduza seus sujeitos na verdade de seu Estado. Sob o discurso cotidiano do mestre, o
aparelho estatal sempre prestes a reproduzir as condições de produção do cotidiano e
ampliá-lo, no sentido da “sobrevivência ampliada” debordiana.
Não, talvez antes de falarmos da decadência do discurso do mestre, devemos falar de
sua transformação, da emergência do Estado “carcerário” ou “penal” que, como nota
Duarte, externaliza seus custos na busca de uma eficiência “empresarial”33. O mestre, como
nos livros de auto-ajuda para executivos, segue princípios de “sucesso”; a ideologia que
resta a ser produzida é essa, a do sucesso que pode ser obtido sabendo-se de alguns
segredos (palavra onipresente na lista dos livros mais vendidos). O Estado secreto de
dominação e a dominação de um Estado secreto: os “dossiês” em época de eleição e as
sessões a portas fechadas – ali onde o discurso do mestre contraduz ao Sucesso, ele só pode
existir, em última análise, na cabeça dos outros. É um pensamento de fora, uma para-noia.
Já o discurso do analista aborda o cotidiano como exceção, como algo que só pode
ser “diagnosticado individualmente”, sem nosologias, sem a classificação do conhecimento.
Análise, portanto, justamente do concreto, do sólido em cada situação cotidiana. A
capacidade poética desse discurso reside, então, na possibilidade de elevar o cotidiano à
“dignididade de uma escuta”, como poderia dizer Heidegger, se este não se colocasse no

32 Ver LEFEBVRE, Henri. Posição: Contra os Tecnocratas. Parte 2.


33 DUARTE, Cláudio R. “Espaço social e sobrevivência do capitalismo: a teoria da reprodução social de Henri
Lefebvre”, op. cit., p. 97.
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desprezo da cotidianidade. Se a histérica possui uma rotina, ou antes, ritos impulsionados


pelo sagrado de sua verdade, o analista trata o cotidiano em singularidade; mesmo o termo
na cosmologia, indicando a “região do espaço-tempo na qual as conhecidas leis da física
cessam de viger e a curvatura do espaço se torna infinita”34 é apropriado, na medida em que
seja possível nesse discurso chegar ao limiar do cotidiano, àquele ponto onde o tempo se
torna história. Nesse sentido o discurso do analista é aparentado da burguesia, como
primeira classe histórica, mas ao contrário desta ele não nega o uso desse tempo. Vem do
analista, portanto, uma poiesis mais do que uma praxis exatamente. Assim como os
junguianos falam em “alquimia” analítica, remetendo a práticas de “análise” simbólicas,
assim também é possível dizer de uma “ascese”, de uma “depuração” do sujeito a partir da
consciência que adquire.
Criar consciência é o processo político/psicanalítico por excelência, e onde há
consciência o cotidiano, mesmo rotineiro, “tem seu encanto”, como nos filmes de Yasujiro
Ozu. A consciência do cotidiano, portanto, no sentido em que perguntávamos por uma
ciência ou saber que lhe compreendesse, fala do discurso do analista. Este pode se colocar
como objeto-causa do cotidiano e, ao se dirigir a ele, criar consciência. Os encontros sociais
entre iguais e longes da massificação da multidão, a arte não-espetacular, as frestas de fato
nas muralhas da dominação cotidiana, são momentos em que o discurso do analista pode
existir. Ele envolve naturalmente um projeto comunitário, pois em sua verdade transfere
necessariamente de um ser humano para outro, num ato de amor (agapé, caritas). Nesse
sentido, a verdade do discurso cotidiano do analista é um amor compassivo; este não se liga
a uma “pureza” – “o desejo do analista não é um desejo puro” (Lacan) – mas a uma ética
que se constrói no próprio ato de se fazer ética de um discurso. No cotidiano resta o
encontro com os amigos ou mesmo instâncias onde o erótico não tenha sido colonizado. O
cibernântropo, contrariamente, só é dotado de pulsão, não de desejo; em grau máximo, o
discurso do analista envolveria um desejo inescapável e irrealizável, transformando todas as
pequenas tribulações do dia-a-dia em instâncias menores.
Podemos agora formular a tese central deste texto: o cotidiano é eventual.

Conclusão

É preciso recordamos que o discurso é um elo social. Assim, o sujeito pode passar de
um discurso a outro. Cada uma dessas passagens é um evento (cotidiano). Para recorrermos

34 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva. 2002.
Versão 1.0.5 – CD-ROM: verbete “singularidade”.
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novamente às definições cosmológicas, diremos que um evento é um “ponto no espaço-


tempo provido de quatro dimensões”35, ou uma “virada” discursiva, o trilhar de um novo
dis-curso.
A micro-história do cotidiano é palmilhada desses eventos e eventualidades. É claro
que o fato de um “evento” já ser objeto de administradores, promoters, designers e
especialistas em espetáculos apenas atesta para a colonização esquizofrênica do
tempo/espaço, ou, desprovida de qualquer mudança real, a mudança é institucionalizada
como uma infinidade de pseudo-eventos, de banalidades eventuais. Todo evento do
cotidiano capitalista é medíocre na medida em que não faz a “roda do discurso” girar, em
que é inexpressivo justamente porque só exprime seu círculo patológico de acúmulo.
Se a família subjugada pelo capitalismo só pode conversar sobre os “eventos” da
novela à noite, se o papo no ponto de ônibus se restringe ao futebol em sua “montagem
perversa”36, se mesmo as discussões ditas “políticas” se restringem à citação deste ou
daquele “escândalo” neste ou naquele jornal, então nos resta constatar que em termos
discursivos, o capitalismo é um sistema rígido, provido de uma ossatura que atrai o
sujeito rumo à não-eventualidade de seu cotidiano.
Não estamos, naturalmente, propondo “transgressões” românticas em busca de uma
jouissance perdida, soluções “contraventoras” que recaem em novos tribalismos e uma
marginalização impotente. Atentamos apenas para um fato. Qual? Que uma força
gravitacional atrai o discurso capitalista para um verdadeiro buraco-negro: o discurso do
capitalista é o menos eventual de todos, é o menos capaz de mudar. Uma compreensão nos
presentes termos do discurso capitalista precisaria conseguir informar o evento que
poderia, como na análise, histericizar seu discurso. Mas os ritos não se sustentam no
cotidiano capitalista. Como canta Villon:
Prince, n‟enquerrez de semaine
Où elles sont, ni de cet an,
Qu‟à ce refrain ne vous remaine:
Mais où sont les neiges d‟antan?

[Príncipe, nem esta semana


Buscai sabê-lo, nem agora,
Pois o refrão vos desengana:
Mas onde estais, neves d‟outrora?]37

35 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva. 2002.
Versão 1.0.5 – CD-ROM: verbete “evento”.
36 Ver DUARTE, Cláudio R. “Futebol, Capital, Sadomasoquismo: o espetáculo como pseudo-jogo e montagem

perversa”. Sinal de Menos. Ano 2, no 5, 2010.


37 François Villon. Ballade des Dames du Temps Jadis [Balada das Damas Doutros Tempos]. In: VEIGA, Cláudio

(Organização e Tradução) Antologia da Poesia Francesa (do século IX ao século XX). Rio de Janeiro: Record,
1991. p. 64-67.
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Os ritos são substituídos, viram rotinas, hábitos, modas, por fim gestos imitados ao
espetáculo; perdidos no mar se afogam mutuamente, debatendo-se sem ponto fixo. O
cotidiano capitalista é eventual na sua falta de eventos. A colonização do cotidiano sob o
capitalismo é o esvaziamento de sua eventualidade. É o Estado carcerário no cotidiano do
discurso. O que explica também, sob a ótica que já lançávamos, o gosto pela “transgressão”,
naturalmente recuperado/mercantilizado.
Talvez Lacan tenha de fato razão em propor o declínio do discurso do mestre. O
vampiro é um ser mais poderoso, imortal talvez; porém em sua existência tediosa, a-
eventual, o outro existe sempre para ele como objeto a ser mordido, violentado, parasitado.
E se porventura o amor surgir, ele está condenado à farsa da perpetuação da a-
eventualidade.
Embora a histericização do capitalista possa parecer à primeira vista impossível, é
uma tática cotidiana numa estratégia razoável. Não temos como dizer a natureza desse
evento, mas ele pede que a consciência se faça dialética, e portanto é prático.
O cotidiano liberado só pode existir numa formação consciente de seus eventos. Mas
esse não é um projeto utópico, é uma proposta que existe no seio da contradição capitalista
como projeto mútuo de existência compartilhada. Na medida em que os indivíduos mantêm
a consciência de seus atos, sem se atomizarem, e se articulam coletivamente, sem serem
manipulados como multidão, podem reencontrar um cotidiano eventivo posto que
inventivo. Aí, e somente aí, podem criar um mundo e a si mesmos, reconhecendo-se como
iguais perante um destino.
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Variante da abertura de O Castelo

Franz Kafka

O estalajadeiro saudou o hóspede. Um quarto estava preparado no primeiro andar.


– “O quarto para príncipes” – disse o estalajadeiro.
Era um quarto grande com duas janelas e uma porta de vidro entre elas,
atormentadoramente grande em sua nudez. Os poucos móveis por ali espalhados tinham
pés estranhamente delgados; ter-se-ia podido crer que eram de ferro, mas eram de madeira.
– Por favor, não entre na varanda – disse o estalajadeiro ao ver que o hóspede,
depois de ter olhado a noite pela janela, aproximava-se da porta de vidro.
– A viga está um pouco frágil.
Entrou a criada e enquanto mexia no lavatório perguntou se o quarto estava quente o
suficiente. O hóspede fez que sim com a cabeça. Mas, embora não tivesse até o momento
feito nenhuma crítica, continuava completamente fechado no sobretudo e conservando na
mão o chapéu e o cajado, andando de lá para cá, como se não estivesse certo ainda se iria
ficar. O estalajadeiro estava junto à camareira; de súbito, o hóspede caminhou para trás dos
dois e exclamou:
– Por que estão sussurrando?
O estalajadeiro disse assustado:
– Eu apenas estava dando à moça instruções em relação à roupa de cama. O quarto,
infelizmente só agora eu o vejo, não está tão cuidadosamente preparado como eu teria
desejado. Mas tudo será arrumado em seguida.
– Não é essa a questão – disse o hóspede. – Eu não esperava outra coisa senão um
buraco sujo e uma cama repugnante. Não tente me distrair. Eu só quero saber uma coisa:
quem lhes anunciou a minha chegada?
– Ninguém, senhor – disse o estalajadeiro.
– Você me esperava.
– Eu sou um estalajadeiro e espero hóspedes.
– O quarto estava preparado.
– Como sempre.
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– Muito bem, você não sabia de nada, mas eu não fico aqui. E abriu com força uma
janela e gritou para fora. – Não desatrelem, seguimos viagem! Mas, quando correu para a
porta, a camareira entrou no caminho, uma moça franzina, delicada, ainda muito jovem, e
disse de cabeça baixa:
– Não vá embora. Sim, nós estávamos à sua espera; só não respondemos porque
somos inábeis para responder e porque não sabemos com certeza quais são os seus desejos.
A aparência da moça comoveu o hóspede, suas palavras eram-lhe suspeitas.
– Deixe-me a sós com a moça – ele disse ao estalajadeiro.
O estalajadeiro hesitou, depois se foi.
– Vem – disse o hóspede à moça, e sentaram-se à mesa.
– Qual é o seu nome? – perguntou o hóspede, e por cima da mesa pegou a mão da
moça.
– Elizabeth – disse ela.
– Elizabeth – disse ele. Ouça-me bem. Eu tenho diante de mim uma difícil tarefa à
qual dediquei toda a minha vida. Eu faço isso alegremente, não peço compaixão a ninguém.
Mas porque isso é tudo o que eu tenho – ou seja, esta tarefa – reprimo, sem consideração
alguma, tudo o que pudesse perturbar sua execução. Nesta falta de consideração posso
chegar até a loucura.
Ele apertou sua mão, ela o olhou e anuiu com a cabeça.
– Você então entendeu – disse ele. – E agora me explique como souberam de minha
chegada. É só isso o que eu quero saber; não pergunto sobre as suas intenções. Estou aqui
para lutar, mas não quero ser atacado antes de minha chegada. Então, o que se passou
antes que eu chegasse?
– Toda a aldeia sabe de sua chegada, eu não posso explicar como; já desde semanas
atrás todo mundo o sabe, deve ter vindo do castelo, mais que isso eu não sei.
– Esteve aqui alguém do castelo e me anunciou?
– Não, ninguém esteve aqui, os senhores do castelo não tratam conosco; mas talvez a
criadagem lá de cima tenha falado sobre isso e pode ser que as pessoas da aldeia o tenham
escutado e desse modo isso tenha se espalhado. Tão poucos forasteiros chegam a este lugar,
fala-se muito de um forasteiro.
– Poucos forasteiros? – perguntou o hóspede.
– Ah! – disse a moça sorrindo, com um ar ao mesmo tempo familiar e estranho –
não vem ninguém, é como se o mundo nos tivesse esquecido.
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– E por que haveriam de vir aqui – disse o hóspede – há alguma coisa para se ver
aqui?
A moça retirou lentamente sua mão das dele e disse:
– Você ainda não tem confiança em mim.
– Com muita razão – disse o hóspede erguendo-se. – Vocês todos são da mesma laia,
porém você é mais perigosa ainda que o estalajadeiro. Você foi enviada especialmente pelo
castelo para me servir.
– Enviaram-me do castelo? – disse a moça. – Quão pouco você conhece as nossas
condições! E, devido à desconfiança, agora irá embora, pois agora provavelmente está de
partida.
– Não – disse o hóspede, arrancando de si o sobretudo e atirando-o sobre uma
poltrona – não parto, nem mesmo isto, nem mesmo me expulsar daqui vocês conseguiram.
Subitamente, entretanto, ele cambaleou, ainda se sustentou alguns passos e então
caiu sobre a cama. A moça correu para ele:
– O que você tem? – sussurrou ela, e já correu para o lavatório, e trouxe água e
ajoelhou-se junto a ele e lavou o seu rosto.
– Por que vocês me atormentam assim? – disse ele com dificuldade.
– Mas nós não te atormentamos – disse a moça. Você quer algo de nós e nós não
sabemos o que seja. Fale abertamente comigo e eu lhe responderei abertamente.
**
(Tradução: Cláudio R. Duarte.
Texto-base: KAFKA, Franz. Das Schloss. Apparatband. Frankfurt am Maim: S. Fischer,
2002, pp. 115-7).
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A bailarina e o corpo

Alfred Döblin

Aos onze anos ela foi destinada à dança. Por sua habilidade em deslocar seus
membros, fazer caras e bocas e por seu temperamento peculiar, ela parecia perfeita para
essa profissão. Até então esquisita em seu modo de caminhar, ela aprendeu a forçar seus
ligamentos flexíveis e suas articulações suaves; ela se insinuava cuidadosa e pacientemente
em seus dedos, tornozelos, joelhos, cada vez mais, ela dominava avidamente os ombros
estreitos e a flexão dos braços esguios, espreitava atenta o movimento do corpo rígido. Ela
conseguia, sobre a dança mais voluptuosa, aspergir frieza.
Aos dezoito anos, ela tinha uma figura pequena e suave, enormes olhos negros. Seu
rosto alongado, quase como de menino, com traços fortes. A voz talhada claramente, sem
sedução ou música; um passo veloz e impaciente. Ela era desprovida de afeto, via com
clareza suas colegas inábeis e se entediava com suas reclamações.
Aos dezenove anos, apossou-se dela uma enfermidade pálida, de forma que seu rosto
cintilava insolitamente anêmico contra o coque preto-azulado. Seus membros se tornaram
pesados, mas ela continuava dançando. Quando estava sozinha, batia com força os pés no
chão, ameaçava seu corpo e lutava contra ele. A ninguém ela falava de sua fraqueza. Ela
rangia os dentes de raiva do ser lerdo e infantil que ela tinha aprendido a dominar.
Quando Ella mordia os lábios de dor, a mãe se jogava sobre o sofá e chorava horas a
fio. Depois de uma semana, a velha mulher tomou uma decisão e disse à sua filha, olhando
para o chão, que aquilo deveria acabar e ela deveria ir ao hospital. A isso Ella não respondeu
uma palavra, apenas lançou um olhar rancoroso àquele rosto enrugado e desesperançado.
Logo no dia seguinte ela foi ao hospital. No carro, ela chorava de raiva debaixo do seu
cobertor. Ela queria cuspir no seu corpo doente, com amargura zombava dele; tinha nojo da
carne apodrecida, à qual estava associada. Com medo silencioso, ela abriu os olhos,
enquanto tocava os membros que lhe escapavam. Como ela era impotente, ah, como ela era
impotente. Elas chacoalharam pelo pavimento do pátio. Os portões do hospital se fecharam
às suas costas. A bailarina olhava com aversão médicos e doentes. As enfermeiras a
colocaram cuidadosamente na cama.
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Então, a bailarina desaprendeu a falar. Ela não escutava mais o tom autoritário de
sua voz. Tudo acontecia a despeito de sua vontade. Mas todas as manifestações de seu corpo
eram observadas, tratavam-no com uma excessiva seriedade. Todos os dias, quase todas as
horas, perguntavam à bailarina sobre os problemas dele, escreviam com cuidado nos
prontuários, o que, no começo, deixava-a indignada, depois, cada vez mais magoada. Ela
logo entrou em um estado de profundo medo e inconstância; foi tomada por horror a esse
corpo. Ela não ousava tocar nele, limpá-lo, fitava seus braços, seus seios, e estremecia
quando se examinava longamente no espelho. Sua boca engolia os remédios que ela lhe
dava de beber; ela acompanhava as gotas amargas, como escorriam, e se perguntava o que
ele fazia delas, ele, o corpo, o infantil, ah, o imperioso, o tenebroso. Ela ficou pequena como
uma mosca; e, à noite, o pavor ficava atrás da sua cama. Seus olhos, que fitavam o
desconhecido1, tornaram-se rígidos. A garota sarcástica com o rosto de menino se tornara
piedosa e orava antes do irromper da noite com as enfermeiras. A mãe se assustou quando a
visitou. Sua filha nunca estivera tão abatida e carente. “Nós estamos todos nas mãos de
Deus”, dizia a mãe para consolar a agonizante, que se agarrava a ela. “Sim”, murmurava a
bailarina, “nós estamos todos nas mãos de Deus”.
A movimentação regular à sua volta a tranquilizou novamente, o pavor desapareceu
rapidamente, assim como havia surgido. Sua aversão aos doentes da ala se intensificou. E a
indignação persistia ainda mais intensa, porque dedicavam tanto respeito ao podre e
apodrecido, e evitavam olhá-la, como se estivesse morta. Isso ofendia a imperiosa. Ela
aprisionava o corpo, o atava a correntes. Era sim o seu corpo, sua propriedade, da qual ela
podia dispor. Ela morava nessa casa; deviam deixar sua casa em paz. Todos os dias batiam
com martelos em seu seio e escutavam o que dizia seu coração. Eles desenhavam seu
coração sobre o seio, para que todos pudessem vê-lo. Arrancavam a luz que havia se
escondido lá dentro. Ah, ela era roubada. A cada pergunta, arrancavam um pedaço dela. Ela
era infiltrada com venenos mais finos do que agulhas e sondas. Tendo desvendado dela os
segredos, repeliam-na completamente para sua toca. Tiravam tudo dela, aqueles ladrões, e
por isso ela não se admirava que a cada dia jazesse mais fraca e pálida. Então, ela ficou
amargurada e se defendeu. Ela mentia aos médicos, não respondia a suas perguntas, ela
dissimulava sua dor. E quando queriam fazer mais perguntas, ela enrijecia seu corpo sobre
a cama, repelia as enfermeiras, até mesmo ria, em um acesso de raiva fulgurante, na cara
dos médicos, daqueles que meneavam a cabeça, e lançava-lhes uma careta sarcástica.

1 Unheimliches (N.d.T.).
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Mas ela não podia sustentar por muito tempo essa postura convulsivamente
corajosa. Todos os dias passavam sem descanso os casacos brancos pelas salas, batiam
levemente nos pacientes, anotavam tudo. Todos os dias e todas as horas vinham as
enfermeiras, traziam sua comida e medicamentos: isso enfraquecia a bailarina. Ela entrou
no jogo novamente; com um desdém apático, deixava que fizessem o que quisessem. Não
lhe dizia respeito, aquilo que acontecia. Jazia lá um ser infantil, que a deixava infeliz; por
que ela deveria lutar por ele, por que invejaria sua dignidade? Débil, ela repousava em sua
cama. O corpo continuava estendido, um pedaço de carcaça, embaixo dela; ela não se
preocupava com suas dores. Quando, à noite, ele a feria e atormentava, ela lhe dizia: “Fique
calmo até a hora da visita amanhã; fale para os médicos, para seus médicos, deixe-me em
paz”. Eles cuidavam de assuntos diversos; o corpo sabia como lidar com os médicos. “Isso
logo será registrado.” Com isso ela cortava da importunação a palavra.
Muitas vezes ela sentia uma compaixão risonha por essa criança estúpida e doente,
que jazia em sua cama. Ela comunicava com calma e cuidado o que o afligia. Com
indiferença e leve ironia, observava os médicos e constatava, irônica, o fracasso de seus
esforços. Uma ansiedade e hilaridade se apoderaram dela novamente; sentia uma alegria
sádica, selvagem e inquieta com os infortúnios dos médicos e o apodrecimento do corpo. Se
ela apertava, em um acesso de risos, sua boca contra o travesseiro, retomava seu antigo
ímpeto de escárnio e sua frieza.
Quando, ao meio-dia, soldados passaram pelo hospital com uma sonora marcha
militar, a bailarina se sentou de repente na cama, com olhos brilhantes, os lábios cerrados,
totalmente curvada sobre si mesma. Depois de um tempo, uma voz penetrante, ainda que
baixa, chamou a enfermeira à cama. A bailarina queria bordar e pediu seda e linho. Com um
lápis, lançou sobre o pano branco um desenho extraordinário. Havia três figuras: um torso
redondo e disforme sobre duas pernas, sem braços ou cabeça, nada além de uma esfera
gorda e bípede. Ao seu lado erguia-se um homem dócil e alto, com óculos enormes, que
tocava o corpo com um termômetro. Mas enquanto ele se ocupava atentamente do corpo,
do outro lado, uma pequena garota, que saltava de pés descalços, fazia-lhe um gesto de
escárnio com a mão esquerda e, com a direita, cravava uma tesoura pontuda, de cima para
baixo, no corpo, de forma que o corpo exauria-se, como um barril, em um jato espesso.
Com linhas vermelhas, a bailarina bordava grosseiramente o quadro e ria com
vontade, para si mesma, de quando em quando.
Ela queria novamente dançar, dançar.
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Como outrora – quando ela aspergia frieza sobre qualquer voluptuosidade da dança,
quando seu corpo rígido ondulava como uma chama –, ela queria sentir sua vontade
novamente. Ela queria uma valsa muito suave dançar com aquele que tinha se tornado seu
senhor, com o corpo. Com um gesto de sua vontade, ela conseguiu agarrá-lo mais uma vez
com as mãos, o corpo, o animal inerte, jogá-lo, rodopiá-lo, e ele não era mais o dono dela.
Um ódio triunfante a agitou desde seu íntimo; ele não mais ia para a direita e ela para a
esquerda, mas eles – eles saltavam juntos. Ela queria rolá-lo pelo chão, o barril, o
homenzinho claudicante, rodá-lo repentinamente, encher de areia sua boca.
Ela chamou, com uma voz que de repente ficara gutural, o doutor. Inclinada sobre si
mesma, ela fitou de baixo o rosto dele, viu como ele observava espantado o bordado, e lhe
disse em uma voz calma: “Você... seu idiota... seu idiota, seu frouxo.” E cravou, atirando de
lado o cobertor, a tesoura de costura no seio esquerdo. Um grito agudo se fixou em algum
lugar no canto da sala. Mesmo na morte a bailarina mantinha na boca a expressão fria e
desdenhosa.
**

(Tradução: Gabriela Siqueira Bitencourt


Texto-base: DÖBLIN, Alfred. „Die Tänzerin und der Leib“ (Março, 1910). Die Ermordung
einer Butterblume. Ausgewählte Erzählungen. 1910-1950. Olten und Freiburg im Breisgau:
Walter-Verlag, 1962, p. 17-21.)
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SINAL de MENOS

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Daniel Cunha (Delft)

Felipe Drago (Porto Alegre)

Joelton Nascimento (Cuiabá)

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E-mail: revista@sinaldemenos.org

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