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INCRÍVEIS

HISTÓRIAS
MEDÍOCRES
DE MONTANHA
Uma seleção de casos ordinários

ARTHUR [TUCO] EGG


INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 1
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 2

Incríveis histórias
medíocres de montanha
Uma seleção de casos ordinários
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 3

Agradecimento especial ao Ivan, mentor


de montanha e figura fora de série, e ao
Moisés, exemplo de dedicação e vida
abnegada. Os dois juntos motivaram a
formação da Associação Montanhistas de
Cristo, entidade que, através das muitas
gentes, reuniões, palestras, cursos,
eventos, viagens, passeios, aventuras,
loucuras e seriedade me salvou de
roubadas maiores na vida - em todos os
sentidos - e acompanhou e influenciou
profundamente minha formação na
sensível passagem da adolescência para a
vida adulta.

E, obviamente, a todos os amigos de


montanha, que participaram dessas e de
muitas outras histórias, marcando
definitivamente minha história.

Arthur [Tuco] Egg.


Blumenau, 14/08/2007.
www.atrilha.blogspot.com
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 4

PREFÁCIO
Temos uma queda pelo grandioso. Sonhamos alto,
buscamos a glória. Nossos heróis são gente de feitos
homéricos (ainda que nem saibamos quem foi Homero).
Ansiamos por alcançar os grandes cumes, subjugar as
grandes paredes, estraçalhar as altas graduações,
galgar as mais assustadoras travessias, transpor as
gretas mais profundas.

Mas a dura realidade é que a imensa maioria de nós


jamais fez nem fará nada de extraordinário. Gastamos
nossos finais de semana e nosso dinheiro em aventuras
medíocres. Vemos filmes, clipes e documentários,
lemos livros, revistas e blogues, ouvimos e (a glória)
damos palestras, sempre sedentos pelas grandes
aventuras que jamais teremos.

Esse volume é dedicado à todos aqueles que, como eu,


sonham em voar alto, mal tiram os pés do chão, mas
sentem-se realizados. Sim! Conseguimos enxergar,
ainda que com certa dor de cotovelo, a beleza do
medíocre. Existe aventura e emoção intensa no
ordinário. Aqui mesmo, nos barrancos do quintal da
minha casa, senti os mesmo horrores e a mesma glória
que Messner, Gulich, Tartari e Niclevicz. Alguém
precisa saber disso.

As páginas que se seguem narram as mais inacreditáveis


aventuras que um zero à esquerda foi capaz de
enfrentar. Todas elas baseadas em fatos reais,
possivelmente alterados pela ação do tempo.
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SUMÁRIO

01. O menino de asas 06

02. Queda livre 10

03. Às vezes falha 17

04. O raio que o parta 20

05. Sopão 24

06. Cadê o caroço 27

07. Tudo, do piso ao teto 30

08. A chave da terra de Malboro 33

09. Meia lua inteira 38

10. Gênesis 41

11. Macacos me mordam 46

12. O Eterno 50

13. Resgates compulsórios 53

14. Lição de planejamento 59


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CAPÍTULO 1
O MENINO DE ASAS
Saímos cedo em direção à serra. Na moto ia o piloto
com uma mochila de ataque na frente e eu, o carona,
com uma cargueira abarrotada nas costas. Além de todo
o equipamento de escalada, levávamos conosco dois
parapentes, e a ansiedade de poder subir uma
montanha, alcançar o cume por uma parede de granito
e descer lançando o corpo no abismo, contrariando a
intolerante gravidade, voando feito um urubú. O
parapente não pesa muito mas ocupa um volume
desgraçado. O excesso de bagagens tornava difícil a
condução da moto. Em cada curva fechada a buzina era
acionada involuntariamente. Mas chegamos na base da
montanha à salvo. O peso foi distribuído da melhor
forma possível nas duas mochilas e iniciamos a
caminhada até a parede escolhida.

-----

Lembro claramente a primeira vez que estivemos lá.


Não conhecíamos nada sobre trilhas, montanhas,
escaladas, vôos, serras e coisas afins. Havíamos feito
um rapel aqui e ali, em barrancos e pedreiras, e
imaginávamos como seria subir uma montanha de
verdade. A única informação que tínhamos era onde
pegar o ônibus e onde descer. A caminhada, dali pra
frente, seria repleta do mais profundo mistério.

O tempo estava fechado e a densa neblina havia nos


roubado toda a serra. Tudo que se via a partir de uns 20
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metros à frente do nariz, era um lençol cinza e úmido


do tamanho do mundo. Tomamos o cuidado de seguir, a
uma distância segura, um grupo com mochilas e roupas
de gente que parecia saber o que estava fazendo. Eles
certamente tinham o mesmo destino que nós. Bastaria
segui-los, mas os miseráveis andavam rápido demais e
perdemos contato antes mesmo da primeira bica
d´água. De qualquer forma, depois de muito
sofrimento, sabe-se lá como, alcançamos o afamado
cume.

Não vimos nada no trajeto todo. Nem uma minúscula e


rápida janela se abriu. O lençol cinza permaneceu
inclemente ao nosso redor e a umidade deixou-nos
molhados e gelados. Mesmo assim, de forma
absolutamente inexplicável, amamos aquele lugar. O
cheiro, o vento, o frio, o cansaço, as pedras, paredes e
mato. Todos os detalhes de tudo que conseguimos ver e
tocar nos cativou para sempre. Voltamos lá mais de
uma centena de vezes. E em muitas outras montanhas,
vales e serras por aí.

-----

Espalhamos toda parafernália na base da parede -


cadeirinhas, corda, costuras, paradas, freios e tudo
mais. O clipe dos mosquetões rompia o silêncio
enquanto a umidade da respiração condensava a cada
expirar. A rocha lançava-se espetacularmente em
direção ao céu. Avançamos lenta e delicadamente pela
parede. O som das ferragens balançando, penduradas
ao corpo sustentado apenas pela ponta dos dedos, e a
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brisa suave vinda do mais distante horizonte, tornavam


o ambiente indescritivelmente assombroso. Nesses
lugares, os sentimentos podem saltar em um segundo
do mais puro êxtase ao mais angustiante horror.
Levamos bem mais tempo do que o planejado para
alcançar as rampas de pedra que dão acesso ao cume,
por conta do volume de coisas que trazíamos.

Lá no alto, novamente apoiados em chão de verdade,


começamos mais uma vez o complexo ritual de
manuseio dos equipamentos. Cordas e ferros deram
lugar a uma ampla vela de nylon que haveria de nos
servir de asa dentro de poucos minutos. O vento batia
de frente no rosto, e o campo onde pousariamos estava
trezentos metros abaixo de nós e talvez cerca de 2km à
frente.

Passamos ainda alguns minutos contemplando a


paisagem e ouvindo o vento enquanto saboreamos um
pãozinho com queijo e algumas frutas. De onde
estávamos, podiamos observar serras, cidades,
rodovias, represas e a curvatura da terra na linha do
horizonte.

Bastou um puxão firme nos tirantes que nos prendiam à


vela. O próprio vento se incumbiu de inflar o tecido e
trazê-lo sobre nossas cabeças. Três ou quatro passos à
frente na direção do abismo que acabáramos de escalar
foram suficientes. Nossos pés foram arrancados do chão
e fomos conduzidos aos céus. As linhas cortam o vento
que assobia seco e agudo. Os urubus passam ao lado
observando curiosos. A trilha, o mato e a moto tornam-
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se grãos de areia. Todos pesam toneladas. Todos têm


raízes profundas. Correntes e bolas de ferro os prendem
ao solo. Mas não nós. Não naquele dia. Não naquele
instante. Rompemos os grilhões, as cadeias. Nos
tornamos leves como pluma e, inacreditavelmente,
ganhamos asas.
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CAPÍTULO 2
QUEDA LIVRE
O tempo estava perfeito. Céu azul, vento fresco,
intensidade média, soprando continuamente do litoral.
Ao meio-dia teria um almoço gostoso na casa de quem,
um ano depois, viria a se tornar meu sogro. Tínhamos
que sair cedo e voltar rapidamente. O tempo estava tão
perfeito que dispensamos tudo que o bom senso exige.
Rumamos ao descampado da decolagem de sandálias,
bermuda e camiseta, abandonamos o rádio comunicador
em casa e, pra fechar com chave de ouro, voávamos
sem o pára-quedas reserva, que, aliás, nunca tivemos.
Afinal, o que poderia dar errado?

Vôo livre no litoral costuma ser coisa tranqüila. O vento


que vem do mar sopra lisinho, sem as turbulências do
relevo e variação de temperatura do interior, onde
bolhas invisíveis de ar quente se desprendem do solo
fazendo a festa dos urubus e parapentes. Qualquer
morro com um desnível razoável voltado para o mar faz
o vento subir, acompanhando o relevo e mantendo os
voadores por longas horas no ar.

Nessas condições, era importantíssimo manter viva na


cabeça a idéia do almoço ao meio-dia, para não
cometer a infração do atraso, falta gravíssima na
família da mulher com quem eu pretendia me casar.

Abrimos as velas na encosta, nos conectamos a elas e


corremos, numa espécie de ameaça de suicídio, em
direção às ondas que rebentavam nas rochas. Foram
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necessários poucos passos antes do corpo ser arrancado


do chão e lançado aos céus. O vento era suficiente para
nos manter no ar, mas não tinha forças para nos levar
além da crista da pequena serra litorânea. Vagamos
num vai e vem celestial por alguns minutos, quando
resolvi aproximar-me da encosta para ampliar meus
horizontes. Guloso, insatisfeito com tudo que já tinha,
queria ir além e vislumbrar as praias que se escondiam
ao norte, atrás daquele morro.

Aqui é preciso um rápido esclarecimento para quem não


sabe como funcionam os inquietos ventos na superfície
do planeta. O deslocamento de ar que avança sobre um
relevo o acompanha, como não é difícil de imaginar. O
vento que bate na face de um morro, sobe esse morro
e, por estar subindo, mantém parapentes, urubus e
folhas secas no ar. É o que chamamos tecnicamente de
lift. O interessante aqui, e que merece todo destaque
nessa história, é o que acontece com esse vento logo
atrás do morro. Como ele passa em velocidade pelo
ponto culminante do relevo, logo atrás deste cria-se
uma espécie de vácuo que suga o próprio vento para
baixo. O ar então se choca novamente contra o relevo e
sobe outra vez, mas no sentido contrário. Isso é
tecnicamente chamado de rotor. Dá pra imaginar que
nem urubus e muito menos parapentes - que não podem
bater asas pra se safar - gostariam de entrar em uma
região de rotor. Esclarecido isso, podemos continuar.

Como o vento não tinha, naquele momento, intensidade


suficiente para me levar acima do cume à uma distância
segura dele, aproximei-me para forçar essa altura.
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Manobra de sucesso. Observei todo faceiro as praias do


norte, considerando-me um espertalhão. Foi quando
meu aguçado senso de responsabilidade lembrou-me
que o almoço no sogro já deveria estar quase sendo
servido. Aprumei o parapente na direção do pouso e...
nada. Não saí do lugar. Misteriosamente, bem na linha
do cume, a poucos e ameaçadores metros da região de
rotor, exatamente naquele infeliz momento, o vento
aumentou de intensidade. Um parapente não pode voar
contra o vento se a intensidade dele for maior que a
velocidade da vela. Pois foi justamente o que
aconteceu. O vento começou a levar-me para trás, em
direção ao rotor, enquanto meu olhos arregalavam-se.

Daí em diante, iniciou-se um devastador processo de


afloramento do mais puro desespero. Cerca de cem
metros à frente e alguns abaixo de mim, estava meu
parceiro de vôo. Tomado de incontrolável pavor, iniciei
com ele um profundo diálogo, aos berros:

- Tô indo pro rotor!


- Acelera!
- Tô acelerando!
- Acelera com tudo!
- *@#&!
- Vira!
- Já virei! Tô entrando no rotor!
- Acelera!!!
- *@#&!!!!! Rotor! Rotor!

Com um leve solavanco, iniciou-se a fase 1 da máquina


de lavar roupa, quando o motor aos poucos vence a
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inércia e começa a chacoalhar aquele monte de tecido.


A partir daí, a roupa sabe que não há como escapar.
Depois de longos segundos de chacoalhões e solavancos,
a vela, que antes me sustentava graciosamente,
transformou-se em um horrível pano de chão, que batia
ao vento como a bandeirinha que penduramos na
antena do carro em época de copa do mundo. Abaixo de
mim cresciam loucamente as árvores, com suas bocas
escancaradas e dentes a mostra, salivando, prontas pra
me devorar.

Eu devia estar a pouco mais de cem metros de altura no


momento em que a vela fechou e comecei a despencar
como aquela maçã que caiu na cabeça de Isaac Newton.
Quando, de olhos espremidos e com todos os músculos
tensionados, estava pronto para libertar meu espírito
do corpo espatifado, milagrosamente a mão de um anjo
puxou a ponta da vela pra fora do emaranhado de
linhas. Senti inesperada e redentora pressão no corpo e,
ao invés de cair como uma pedra, fui lançado à frente,
atravessando algumas copas de árvores, rompendo
galhos, rasgando a pele, comendo folhas, até encontrar
de frente o suave tronco de uma palmeira.

Os segundo que se seguiram foram inundados de


profunda paz, até que a pele, os nervos e
especialmente o joelho, que foi a primeira parte do
corpo a encontrar-se com o tronco da palmeira,
começaram a gritar.

Era perto do meio-dia. Meus pais em uma casa e meus


sogros e minha noiva em outra, com o almoço quase
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pronto, observavam de longe a dança dos parapentes no


céu, quando um deles, estranhamente, desapareceu. O
almoço, definitivamente, iria atrasar.

Esperei cerca de meia hora até que o corpo tivesse


novamente condições de responder às ordens do
cérebro sem vibrar como uma taquara verde. A vela
havia enroscado na copa das árvores e eu estava
pendente, há 3 metros do chão. Imaginei
absolutamente improvável que me encontrassem ali.
Apesar da dor, cri que a melhor saída seria tentar
chegar à praia por conta própria. Caminhei por 6 horas,
chegando bem próximo do desespero quando a noite
caía. Tive que atravessar imensas ilhas de ‘capim
navalha’. Estava tão cortado que lembraria de longe a
figura do Cristo do Mel Gibson. O sangue coagulado na
pele, misturado com mato, poeira, lama e suor, me
dava o aspecto de algum personagem de filme de terror
trash.

Quando eu já não suportava mais o cansaço e os últimos


lampejos de claridade eram vencidos pela noite, dei de
cara com uma enorme pedra cercada de bromélias
espinhentas bloqueando completamente o caminho.
Teria que fazer uma grande volta para desviar essa
parede de rocha e espinhos. Procurei, completamente
desanimado, por alguma outra alternativa, e percebi
um pequeno buraco na base da rocha. Olhando de
perto, pude ver um fiapo de claridade do outro lado,
alguns metros abaixo de onde eu estava. Sem forças
para refletir, me joguei buraco adentro e deslizei até a
luz do outro lado. Parei numa espécie de gruta e já
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pensava seriamente em só levantar dali no dia seguinte


quando, com o canto do olho, encontrei a salvação.

Uma boa dose de novo ânimo me encheu de forças. Um


cano de captação de água saía debaixo da grande rocha
e descia a encosta do morro absolutamente à mostra.
Segui o caninho por uns 20 minutos até uma caixa
d´água, que dava no quintal de uma casa. Alguns
homens que tomavam chimarrão no quintal, jogando
conversa fora, me viram descer rolando o barranco e
atravessar seu quintal cambaleante. Me acompanharam
com os olhos arregalados e ainda me permitiram beber
uns goles de água na torneira do jardim. Eu sabia
exatamente onde estava agora. Há 200 metros dali
estava meu carro, e a chave permanecia heroicamente
no bolso da bermuda.

-----

O sol já havia desaparecido no poente, e o denso azul


petróleo subia do mar começando a descortinar as
primeiras estrelas. Desci do carro e caminhei pela praia
até a pousada onde meus pais estavam hospedados.
Passava das 19 horas. Vi meu pai em pé, com a água do
mar lambendo seus pés e o olhar perdido no horizonte.
Meu sobrinho estava em seu colo. Cheguei mancando
mansamente até ele e toquei suas costas, sem dizer
uma palavra. Estava cansado demais para falar. Meu
pobre, sensível e pessimista pai, que a essas alturas já
imaginava como seria a vida dali para frente sem o filho
caçula, não resistiu àquela estranha visão. O corpo
disforme, sujo, ensangüentado e descabelado, na
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penumbra do poente, deve ter-lhe parecido com


alguma aparição bizarra. Despencou no chão levando
junto meu sobrinho. Mas no instante seguinte já estava
em pé, me deixando na praia com a criança enquanto
corria para avisar os outros sobre a novidade.

Em seguida tomei o mais dolorido banho de mar da


minha vida, e um terrível banho de água oxigenada para
purificar.

No dia seguinte, com as calças e meias grudando nas


feridas das pernas e pés, ainda fui com meu parceiro
fiel buscar os restos mortais do parapente.

Nunca mais voei de sandálias.


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CAPÍTULO 3
ÀS VEZES FALHA
Chegamos na estrada no meio da tarde. Era um corte
estreito na densa floresta, que ligava a restinga
litorânea à uma pequena cidade na beira da BR. Do
ponto em que chegamos até a cidadezinha, teríamos
ainda que percorrer cerca de 50 km.

Desde que saímos de casa, dois dias antes, o tempo


permaneceu insistentemente chuvoso. A lama e água
acumuladas nas botas sovaram os pés até a carne. Era
inverno e o frio úmido castigava os ossos. Não tínhamos
força nem disposição para percorrer esse trecho final.
No dia seguinte, todos tínhamos que estar trabalhando.

Nos sentamos ofegantes na beira da estrada, sem ânimo


para prosseguir e sem saber ao certo o que fazer. Foi
quando surgiu no horizonte uma pequena mancha que
acompanhava o desenho da estrada. Segundos depois
ouvimos o ronco do motor de um caminhão. Não
poderíamos de forma alguma deixar a chance escapar.
Atravessamos as mochilas na rua e nos ajoelhamos
sobre elas, com as mãos juntas em clamor. Sem outra
alternativa, o motorista parou. Ficamos eufóricos
quando o bom homem nos permitiu subir na caçamba,
oferecendo-nos carona até quase a divisa com o Paraná.
Rodamos 80 km na chuva, em uma gelada noite de
inverno, do lado de fora do caminhão. Só quando
paramos na frente de um hotelzinho, numa pequena
cidade de beira de estrada, é que percebemos que um
de nós estava desmaiado, com um princípio de
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hipotermia. O hotel era terrível, mas veio em excelente


hora. Dormimos como anjos em três beliches socados
em um quarto minúsculo, depois de um banho gelado no
banheiro coletivo que ficava no fim do corredor.

Ainda de madrugada embarcamos rumo à correria de


nossas vidas urbanas e todas as suas urgências e
preocupações. Afinal de contas, estamos mesmo presos
à roda-viva da produtividade, salvos apenas em alguns
instantes, por saborosas escapadas.

Existe, no entanto, uma espécie de ser humano cada


vez mais raro, que vive completamente alienado das
urgências maiores que assolam a humanidade. Eles
simplesmente ignoram os conflitos do oriente médio, a
corrupção do senado, as loucuras do Bush, a incoerência
do Lula, as oscilações da bolsa e, pasmem, até mesmo
os resultados da última rodada do campeonato
brasileiro. Vivem alheios às urgências que aprisionam a
todos nós, civilizados, estudados, comprometidos com o
futuro e responsáveis por ele. Esses estranhos homens
vivem, simplesmente, um dia depois do outro. Sem nem
darem-se conta disso, seguem o conselho de um judeu
louco que andou por aí 2 mil anos atrás. Olham para a
natureza e aprendem com ela a não se preocupar com o
dia de amanhã. Conversar com esse tipo raro de gente é
uma dádiva. Havíamos encontrado alguns desses
sujeitos dois dias antes, no início da travessia. Com um
deles, travamos um curto mas prodigioso diálogo.

Tínhamos previsto 3 dias para completar o trajeto. Hora


para sair, hora para chegar, compromissos antes e
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depois. Os passos teriam que ser contados


cuidadosamente, para completar cada etapa a tempo
de encarar os compromissos posteriores. No final do
primeiro dia, planejando o dia seguinte, cientes do que
teríamos pela frente, fomos buscar informações com
um dos moradores daquela minúscula vila ilhada por
densa floresta. Sabíamos que, no dia seguinte, depois
de caminhar longas horas, chegaríamos naquela
pequena estrada de terra e que daquele ponto até a
cidade mais próxima, teríamos terríveis 50 km para
percorrer. O homem estava sentado sobre os
calcanhares, na porta de sua casa, afiando sem o menor
compromisso alguma coisa com um facão e baforando
um palheiro. Puxamos um dedo de prosa, obviamente
mais interessados na informação do que no papo.
Precisávamos saber se naquela estradinha, já no estado
de São Paulo, passava algum ônibus ou outra espécie de
condução coletiva.

– Passa sim – respondeu o homem, com toda


naturalidade. Enquanto esboçávamos um sorriso de
satisfação, o matuto completou:

– Toda terça.

Era uma sexta. E no meio do desespero geral, ainda deu


a punhalada final:

– Mas ‘as veiz fáia’.


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CAPÍTULO 4
O RAIO QUE O PARTA
Saímos em 12 pessoas abarrotadas dentro de uma Topic
alugada. Passaríamos os próximos 5 dias juntos, num pé
de serra, encurralados por grandes paredes verticais e
dezenas de possibilidades de rotas para alcançar os
benditos cumes. Não era a primeira vez que iríamos
para lá, mas esperávamos ser a primeira vez que
ninguém nos passaria a perna no local. Em outras visitas
havíamos sido enganados por taxistas de Kombi
abandonando-nos na beira da estrada, jurando de pé
junto que a trilha começava ‘logo ali’; restaurantes
fantasmas nos serviram, entre outras bizarrices,
bistecas no osso, que já vinham mordidas da cozinha; e
padarias com produtos superfaturados, especialmente
para turistas trouxas. Dessa vez seria diferente. E
como.

A expectativa era enorme. Naquela época os croquis de


vias e trilhas eram raridades que valiam ouro. Tudo que
tínhamos eram dicas sombrias e distorcidas que exigiam
grande exercício de imaginação. O trato com a empresa
que alugou a Van era pagar a estadia e alimentação do
motorista. Dividimos uma barraca e nossos miojos com
ele que, graças a Deus, achou a experiência
extraordinária.

Chegamos na base das paredes de granito no fim da


tarde. Tempo suficiente para nos lançarmos à primeira
via. Parte do grupo ficou na base, organizando as
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barracas e o jantar enquanto o restante se espalhou


pelas paredes.

Optamos por uma via fácil, para ser escalada junto com
as esposas, só curtindo o visual. As informações
coletadas com antecedência definiam a dificuldade da
rota como 3º grau. Iniciamos a escaladinha na maior
tranqüilidade. Com o passar dos metros, a coisa
começou a complicar, não pela dificuldade técnica, mas
pela total ausência de proteções na parede. Finalizamos
o primeiro esticão diretamente na parada, 25 metros
acima do solo, sem nenhum ponto de proteção
intermediário. A situação se repetiu no segundo esticão,
mas com um agravante. Alguns metros antes da parada
surgiu repentinamente por trás da parede um toró de
lavar até a alma. Descemos os dois lances de rapel
debaixo de muita água e assustadores raios estourando
muito próximos de nós. Já na frágil segurança da
barraca úmida, encharcados mas felizes, dormimos
sonhando com o dia seguinte.

Nos 3 dias que se seguiram, apreciamos um raro


espetáculo da natureza. Foram 72 horas de chuva
ininterrupta. Às vezes ela nos dava um fiapo de
esperança reduzindo-se a uma finíssima garoa. Nesses
breves momentos, quase todos saíam das barracas para
alternar a umidade de dentro com a de fora. Quase
todos. Um de nós conseguiu a proeza de passar todo
esse tempo sem nem botar a cabeça para fora.
Certamente se algum fiscal do Guinnes estivesse por
ali, dava pra enquadrar o cara em algum tipo de
recorde mundial.
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O que tornou a viagem menos traumática foi a noite


que passamos conversando com um morador do local,
na boca do fogão à lenha da sua simpática casinha de
madeira. Nós, habitantes da urbis, falávamos e
gesticulávamos contando histórias, ora exagerando um
pouco, ora mentindo descaradamente, possivelmente
compensando as longas horas de imobilidade na
barraca. O dono da casa nos observava com a
curiosidade de quem observa pela primeira vez
chipanzés correndo em uma jaula. No ritmo
deliciosamente lento de quem mora no interior,
alimentava o fogo que nos aquecia, sentado sobre os
calcanhares como se estivesse em uma confortável
cadeira na sala de estar.

Motivados pelo tempo chuvoso, nossas histórias


rodavam o assunto das tempestades e raios nos cumes
da montanha, dos cabelos erguidos pela estática, dos
leves choques sentidos quando a mão tocava o solo
úmido e dos horrores dessas sensações. Foi quando
alguém olhou diretamente nos olhos daquele senhor,
perguntando-lhe se ele mesmo não havia vivido alguma
experiência interessante com tempestades e
relâmpagos. Com movimentos lentos e o semblante
inabalável de quem não entende em absoluto a nossa
empolgação, aquele senhor finalmente abriu a boca:

- Uns anos atrás eu e meu irmão ‘tava roçano’ o mato


ali atrás. Quando ele levantou a enxada, um raio pegou
ele e matou.
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O homem, com aquele típico olhar triste do interior,


colocou mais um pedaço de madeira no fogo enquanto
mantínhamos um profundo e constrangido silêncio.

-----

No último dia o sol brilhou a tempo de secar


parcialmente as barracas. Nos despedimos do morro
tomando uma garapa espremida à manivela na casa
daquele senhor e conhecendo a espetacular coleção de
plantas extraordinárias de sua simpaticíssima esposa.
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CAPÍTULO 5
SOPÃO
A chuva, apesar da terrível decepção e sofrimento
potencial que trás a qualquer caminhante, é também,
potencialmente, uma grande aliada à um contador de
histórias. A maioria dos casos que ficam gravados na
memória de um excursionista e, consequentemente,
transformam-se em causos dignos de serem contados
em rodas de amigos, seja em um boteco, ponto de
ônibus, barraca ou cume de montanha, envolvem os
desprazeres causados por essa dádiva de Deus,
despejada graciosamente sobre justos e injustos.

Em uma de minhas primeiras visitas ao Pico Paraná,


ponto culminante da impressionante Serra do
Ibitiraquire, permitimos que um grupo inexperiente de
aventureiros de sessão da tarde nos usasse como guias e
tirasse proveito do nosso cavalheirismo, nobreza, boa-
vontade e conhecimento em andanças montanhesas.

A coisa toda foi bizarra.

Começou na estrada de terra. Nós à pé, e os convidados


de carro. Carona? Nem pensar. Iria sujar os tapetes do
carrão. Como os motoristas não sabiam o caminho, nos
acompanharam em todo trajeto. Patético.

No início da trilha, mais uma novela. As mocinhas que


vieram ‘conhecer a natureza’, tinham trazido seus
pertences espalhados no porta-malas, porque não
cabiam em suas bolsinhas minúsculas. Mas isso não era
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problema. Nós, os experientes e educados pseudo-


guias, estávamos equipados com modernas mochilas
telescópicas. Confabulamos sobre o número de pessoas
e as barracas necessárias, na esperança de poder
abandonar algum peso e volume no carro, mas
concluímos que seria imprudente. Nossos
acompanhantes abelhudos, no entanto, ouviram a
conversa e tiraram suas próprias conclusões.
Sorrateiramente livraram-se de sua própria barraca,
certos de que pessoas tão bondosas como nós cederiam
um local seco e seguro para eles. Com um certo esforço
coube tudo em nossas costas e iniciamos a caminhada.

O céu estava nublado, cinza chumbo, pesado,


prometendo um dia daqueles. Tocamos montanha acima
carregando peso para burro, enquanto os visitantes
reclamavam da lama, da garoa, do cansaço, do mato,
dos mosquitos, da fome, da sede e tudo mais que se
possa imaginar. Chegamos ao campo 2 sem visibilidade
alguma no horizonte. A garoa engrossou e armamos
nossas barracas rapidamente. Ao final da labuta,
percebemos que nossos acompanhantes permaneciam
imóveis. Soubemos, naquele instante, de sua elegante
decisão de deixar a barraca no carro para aliviar o peso,
enquanto nós carregávamos suas tranqueiras.
Graciosamente, como era de se esperar, cedemos uma
de nossas barracas aos folgados e nos apertamos nas
que sobraram.

Foi nessa noite, com outros quatro infelizes amontoados


em uma barraca de três lugares, que tive meu primeiro
contato com um tipo de impermeabilização muitíssimo
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 26

interessante. A água entrava na barraca sem a menor


cerimônia, mas, uma vez lá dentro, não conseguia mais
sair. Nossas mochilas tornaram-se ilhas onde cada
náufrago permanecia acocorado, tentando manter-se
seco. Para aquecer o corpo gelado, arrumamos uma
ilhazinha para o fogareiro e colocamos o miojão na
panela, na esperança de que, engolindo algo quente, o
frio terrível que nos doía nos ossos desse uma trégua.
Mas como desgraça pouca é bobagem, minha ilha
cedeu, jogando-me na água empoçada. O corpo reagiu
de imediato, num movimento descontrolado, atingindo
em cheio a panela e o fogareiro. O miojo quentinho
virou um sopão gelado, diluído por toda a água da
barraca. O jantar foi uma espécie de pescaria nojenta.
O macarrão, catado com a mão naquela água gelada e
suja, era despejado na boca como uma gosma pegajosa,
lembrando aquelas cenas clichês de filme de terror, e
descia gelado pela garganta.

A situação tornou-se inaceitável. Saímos todos daquela


barraca miserável, implorando por vagas na vizinhança.
Graças ao bom Deus meu irmão estava por ali com sua
esposa e me cedeu um cantinho apertado, mas seco,
em sua barraca minúscula. Os visitantes,
tranquilamente acomodados em uma barraca
emprestada, que nós carregamos e montamos, barraram
os outros dois náufragos. Acharam desagradável demais
permitir a entrada daquela gentalha molhada e suja
naquela barraca sequinha.

Eu consegui dormir seco. Meus companheiros, sentados


em suas ilhas, passaram a noite literalmente ensopados.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 27

CAPÍTULO 6
CADÊ O CAROÇO
O suprassumo da escalada na época, pelo menos para
um piazito como eu, era ter a coragem de enfrentar as
enormes, imponentes, assustadoras, desafiadoras,
terríveis e temerosas paredes de granito do Marumbi. Já
tinha escalado uma e outra viazinha no Lineu e no
Paredão Preto, mas chegava a sonhar com as paredes
realmente comprometedoras do local. Pescando as
informações secretas que vazavam abafadas dos
montanhistas de verdade, chegamos ao nome daquele
que haveria de ser nosso primeiro grande desafio
naquele conjunto de montanhas. O Caroço da Esfinge.

Fomos agraciados com um belíssimo croqui, feito de


cabeça num naco de papel arrancado às pressas de
algum lugar, pelo próprio autor da via (um deles).

Os preparativos para a nobre empreitada


assemelhavam-se à um complexo ritual religioso de
iniciação. Tudo organizado e planejado com o respeito
de alguém prestes a pisar em solo santo.

O roteiro era simples. Acordar de madrugada, pegar o


trem, descer na estação do Marumbi, seguir pela
Noroeste montanha acima, até o local chamado ‘praça
XV’, que deveria ser intuído no meio daquele matagal,
um pouco antes da primeira janela. Na praça, a
Noroeste ficaria para trás e desceríamos a encosta até
cruzar um rio seco no fundo do vale e, voilá, a base do
Caroço. Segundo o croqui, os primeiros grampos
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 28

estariam bem acima na parede e teríamos que iniciar a


escalada às cegas, seguindo por uma pequena fissura na
rocha.

Foi exatamente o que fizemos. Depois de cumprir à


risca todo trajeto, localizamos a fissura na base da
parede. Segui por ela, na ponta da corda, por uns 20
metros e nada de grampo ou da bendita corrente que
teria estar por ali. Armei uma parada improvisada em
um pequeno platô, utilizando um arbusto relativamente
firme. Acocorado no platô minúsculo, seguia meu ritual
mecânico e silencioso de esticar a corda para meu
companheiro quando avistei um ponto negro minúsculo
contrastando com o azul profundo do céu, surgindo por
trás do Abrolhos, cruzando a Ponta do Tigre e lançando-
se vertiginosamente pelo vale, observando tudo ao seu
redor. A penugem parda e escura destacava o bico
quase dourado, com a ponta curvada afiada como uma
navalha. Naquele momento, tinha-se a nítida impressão
de que absolutamente nada lhe escapava da visão. As
pontas das asas e do rabo tremiam pelo movimento do
vento enquanto a águia cortava o ar sem piedade. A
certa altura, inclinou seu corpo para cima, mudando
suavemente o plano de vôo, desenhando uma onda no
céu, subindo levemente e reduzindo a velocidade como
um gato que se prepara para o bote fatal. A cabeça e os
olhos permaneciam fixos em algum ponto adiante de
mim, mas um pouco abaixo. Encolheu as asas
reduzindo-as à metade de sua envergadura e lançou-se
em um bote definitivo rumo à vítima inocente que lhe
serviria de alimento. Quando estava a ponto de cruzar a
minha frente - e eu já podia ouvir o grito do vento
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 29

sendo rasgado - desenhou, dessa vez muito mais


abruptamente, uma nova onda no ar, batendo as asas
abobalhadamente como o albatroz de Bernardo e
Bianca. Foi nesse instante, quase parada no ar, que a
ave virou a cabeça na minha direção, abriu as asas
recuperando a compostura e, inclinando o corpo,
planou suavemente até o platô onde eu estava. Pousou
2 metros ao lado, sem tirar os olhos de mim. Observou
curiosamente cada suave puxada na corda, analisou os
movimentos, a roupa e o equipamento. Nossos olhares
se cruzaram algumas vezes naquele segundo. Ela
curiosa, eu maravilhado. Num movimento rápido,
acompanhado pelo guincho espetacular das aves de
rapina, voltou os olhos para o vale e precipitou-se
novamente no vazio, possivelmente imaginando que
tipo de figura patética eu era.

Daquele platô ainda tentamos subir mais alguns metros,


mas a ausência de proteções começou a deixar a
situação delicada demais e decidimos descer dali.
Concluímos com muita propriedade que alguém deveria
ter mudado a via de lugar e reservamos o restante do
dia para conhecer toda a base da Esfinge.

Passamos ainda muitas outras noites sonhando com


aquelas paredes.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 30

CAPÍTULO 7
TUDO, DO PISO AO TETO.
Era um projeto ousado. Poucos percorreram toda
aquela parede de uma só vez. Se quiséssemos ter a
esperança de concluir todo trajeto em um dia, teríamos
que correr. Saímos de Curitiba às 5 horas da manhã,
abandonamos o carro no pé da serra e percorremos,
apressados, o longo trecho que nos levaria à base do
impressionante contraforte.

Era um daqueles dias perfeitos de inverno. O céu


descortinava, à medida que os vapores da noite subiam
e sumiam engolidos pelo sol, um degradê de azuis
impossíveis, e a brisa gelada prometia um dia perfeito.

Às 7 horas estávamos na base da parede, preparando-


nos para um longo e intenso dia vertical, alternando
rocha e mato numa correria para chegar ao cume antes
do anoitecer. As primeiras cordadas foram feitas em
tempo recorde. Aproveitamos a parte já conhecida da
rocha para adiantar o cronograma. Para fazer a parede
inteira, do piso ao teto, emendaríamos cinco vias
diferentes. Essas emendas eram os trechos mais
delicados, desprovidos de qualquer possibilidade de
proteção. Além disso, a rocha era bastante suja nessas
partes, com cristais soltos, terra, musgos e água
escorrendo. Algumas costuras eram feitas em instáveis
tufos de taquaras e em certos trechos os esticões eram
apavorantes. Tecnicamente não havia nada que
qualquer guri com um mês de academia não pudesse
facilmente deixar para trás. Mas os nervos floresciam ao
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 31

sol, encharcados pelo suor tenso e compenetrado. No


manejo da corda em uma das paradas, um freio oito
decidiu percorrer sozinho o caminho de volta, parede
abaixo.

Chegamos ao grande platô, onde ficam as vias mais


freqüentadas daquela famosa montanha, no meio da
tarde, completamente exaustos. Já tínhamos suportado
8 horas de parede, com breves intervalos para algumas
barras de cereais, água e chocolate. Isso sem contar
uma hora de caminhada e uma hora de carro desde
Curitiba. A alvorada, ainda no conforto da minha casa,
tinha sido às 4 horas da manhã.

No grande platô fizemos um lanche mais reforçado,


preparamos e bebemos suco instantâneo e nos
permitimos alguns minutos de descanso, principalmente
aos pés, oprimidos e castigados pelos apertadíssimos
calçados próprios para escalada em rocha. Dali para
frente seria somente pedra, granito puro, vertical, até
o cume daquela montanha.

Se arrependimento matasse, teria caído morto no dia


seguinte. Pois não aconteceu que, num momento da
mais absurda estupidez, 50 metros acima do platô, a
míseros 200 metros do objetivo final, fui tomado por
uma mistura de desânimo infantil e medo maricas? De
forma absolutamente irracional, tomei, naquele
instante, sem pestanejar, a decisão mais infame da
minha carreira montanhística. Abortei a missão. Meu
companheiro, cabra macho de verdade e um tanto
quanto obcecado, conseguiu a adesão de um amigo que
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 32

havíamos encontrado por acaso no platô, e tocou o


projeto até o final. Nos encontramos 3 horas depois, na
trilha, por volta das 8 da noite e tocamos morro abaixo
à luz das lanternas.

Os momentos mais perigosos que passamos naquele dia,


porém, muito mais terríveis que as costuras em
taquaras minúsculas, com 10, 15 metros entre uma e
outra, ou os trechos escalando à francesa, foi o
inconseqüente retorno na estrada até Curitiba.
Acordados desde as 4 da madrugada e depois de quase
12 horas na parede e pelo menos umas 4 horas na
trilha, pegar a estrada foi uma temeridade. Com
dezenas de cochilos periódicos, interrompidos pelos
solavancos do carro no acostamento, chegamos em casa
um pouco depois das 11 da noite. Ao que me consta,
baseado em dados não oficiais, o que mais mata
escaladores, estatisticamente, são as viagens de carro.
Os mais notáveis nomes internacionais e pessoas
queridas e bem próximas de nós são contabilizados
nesses números funestos.

Depois de um dia desses o lar é o paraíso na terra. O


chuveiro e a cama berravam meu nome, a cama muito
mais alto mas, pelo bem do casamento, ouvi primeiro os
apelos do chuveiro.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 33

CAPÍTULO 8
A CHAVE DA TERRA DE MALBORO
O pessoal tinha vindo de Foz do Iguaçu para, enfim,
escalar em uma montanha de verdade. Lá no terceiro
planalto, tudo que tinham eram as falésias do rio
Paraná, dentro do Parque Nacional do Iguaçu, e o
‘Monumento das Três Fronteiras’, construído com
blocos de rocha, onde dava para brincar um pouquinho.
É verdade que escalar no leito do rio, com as Cataratas
ao fundo, é uma experiência muito interessante. Sem
falar que, na época, o acesso ao parque era gratuito
para o pessoal da associação de montanhismo. Já
existiam dezenas de vias lá, de vários graus e estilos.
Entre uma e outra escalada, ainda dava pra ver os
turistas subindo o rio nos botes infláveis do Macuco, em
direção às quedas d´água espetaculares que, de alguns
pontos, podíamos ver escalando. Mas montanha mesmo
não havia nenhuma por lá.

Enchemos meu fusca branco, o carro mais valente que


já tive, e descemos a serra com um objetivo claro. A
Última Terra de Malboro, na Esfinge, era um sonho para
todos nós. Cinco adultos e todas as mochilas, com todos
os equipamentos necessários, não eram pouca coisa
para meu possante veículo, mas ele agüentou firme.
Íamos em duas duplas bem integradas para a parede, e
o quinto elemento do grupo seguiria caminhando pela
Noroeste. Nos encontraríamos novamente na estação,
no fim do dia.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 34

Para manter o protocolo, segui à risca as dicas até a


base da via, mas acabei na via errada. Gastamos as
pontas dos dedos e um bom tempo tentando vencer os
movimentos improváveis da complicada Ilusionistas. Eu
quebrava a cabeça tentando encaixar aquilo na
descrição que tinha da Terra de Malboro. Só depois de
muito esforço em vão é que a ficha caiu. Mais alguns
minutos perambulando pela base da Esfinge e, enfim,
chegamos ao local correto.

Havíamos perdido boa parte da manhã, e a


possibilidade de concluir a via era mínima,
principalmente porque ninguém da equipe a conhecia e,
coisa terrível, o mais ‘experiente’ ali era eu mesmo.
Nos jogamos parece acima, na infame tentativa de
ganhar tempo. Devo confessar que não lembro
praticamente nada daquela escalada. Acredito que o
trauma posterior bloqueou aquelas lembranças. Não sei
quantas cordadas escalamos. Creio que não fomos
muito além do meio da parede. Talvez 4 ou cinco
esticões, nada mais. Sei que foi tudo tranqüilo, sem
estresse, mas estávamos lentos demais. A certa altura,
com o sol já bem escondido atrás do horizonte,
abandonamos a parede. Na base já estava bem escuro e
os equipamentos espalhados, ocupando uma grande
área, foram organizados na penumbra, à luz de
lanternas. Corda para cá, ferragens para lá, casaco,
botas, mochila nas costas e pronto.

O próximo passo era encontrar o quinto elemento na


estação e descer até o antigo posto do IAP, lá em baixo,
na beira do Nhundiaquara, onde tínhamos deixado o
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 35

carro. O sujeito era um caso à parte. Muito boa gente,


mas completamente destoante em relação ao resto da
equipe. Nós, esfarrapados e mulambentos,
relativamente abobalhados, falando besteira e curtindo
o tempo. Ele, impecável, vestindo as mais caras grifes
de montanha, engenheiro de respeito, sério, encarando
cada passo como um desafio, um preparo físico e
psicológico para alguma excursão ainda maior, nos
Andes ou na Europa, sei lá. Chegamos na estação bem
depois do horário programado, e ele já não parecia
muito feliz. Descemos a estradinha estafados e, como
todo bom montanhista pé-de-chinelo sabe, o cansaço é
o pai do besteirol. O quinto elemento nos acompanhou
calado, possivelmente pensando que tipo de gente
chinfrim éramos nós. Com o passar do tempo, e dos
metros, a bobajada foi lentamente sendo superada pela
lombeira. Aos poucos o silêncio venceu o riso e o
cansaço tomou definitivamente seu lugar, fazendo
pesar os olhos, o corpo, a boca e a cabeça. O fim desse
processo é um estranho sentimento de tristeza. Aquela
mesma tristeza que dá depois de uma grande feijoada,
quando o silêncio toma conta da mesa e já não se tem
ânimo nem mais para sair do lugar. Quando esticamos
as pernas e deixamos o corpo escorregar na cadeira,
olhando para algum ponto no infinito, na expectativa de
que o estômago consiga de alguma forma mágica
acomodar tudo aquilo que engolimos. Ao menos nesse
instante o quinto homem deve ter se sentido em paz.

Chegamos ao carro, arrastando as botas, depois das 10


da noite. Todos felizes, com o sorriso bobo de quem
está chegando ao fim de um sofrimento. Alguns metros
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 36

antes já me bateu o susto costumeiro – onde é que


deixei a chave? - As mãos correram apressadas entre os
bolsos enquanto a consciência já mandava mensagens
de paz – está no bolso do anorak, lembra? – É mesmo.
Como poderia ter esquecido. Ainda antes da primeira
tentativa na Ilusionistas eu avia acondicionado as
chaves no bolso da jaqueta impermeável e fechado com
segurança o zíper. Lancei a mochila no chão, ao lado do
fusca, absolutamente seguro de mim, com um sorriso
de vencedor, de quem passou a perna na própria cabeça
oca. Abri confiante a mochila e enfiei a mão lá dentro à
busca do anorak. Deslizei o braço de um lado para o
outro, cavocando no meio daquela confusão, quando
uma leve sensação de pavor tomou meu coração.
Comecei a esvaziar rapidamente a mochila, espalhando
tudo pelo chão, enquanto todos me rodeavam, olhares
fixos em mim. Os sorrisos da chegada congelaram,
desconfiados. Esperavam, ansiosos, o momento em que
revelaria estar brincando. Depois de espalhar tudo no
chão e conferir cada canto da mochila umas três vezes,
fui tomado por imenso desespero. Creio que o
semblante transmitiu a mensagem claramente. Os olhos
arregalados de todos cruzaram-se em silêncio. Depois
de alguns minutos de angustiante luto, conseguimos, sei
lá porque cargas d´água, achar graça naquilo.
Obviamente não o quinto homem. Ele parecia ter
entrado em alguma espécie de transe raivoso. Não
exprimiu um único som, mas seus olhos berravam
infâmias de condenação.

Conseguimos contato pelo rádio com alguns


companheiros que estavam no pé do morro e
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 37

solicitamos o resgate do anorak que havia ficado em


algum canto da base da via, possivelmente encoberto
pelas sombras. Eles, graças à Deus, dispuseram-se a
iniciar as buscas no dia seguinte. Caminhei ainda uma
meia hora até o primeiro orelhão já perto da ponte do
rio. Pedi então resgate para nossa equipe, a partir de
Curitiba. Me irmão, e meu herói, chegou lá umas 2
horas depois, levando a chave reserva do carro.

Dali para frente deu tudo certo. Recebi de volta o


anorak e a chave realmente estava naquele bolso. Mas
nunca mais vi o quinto elemento.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 38

CAPÍTULO 9
MEIA LUA INTEIRA
O bloco de granito subia vertical em direção aos céus.
Não era um bloco muito grande. Cerca de 20 metros
acima do solo, o sol refletia no tom ocre da rocha,
deixando-a dourada. À sombra, o vento deixava o
ambiente gelado. Os dois companheiros de inúmeras
escaladas, caminhadas e roubadas, observavam a
fissura que o diedro formava no encontro perpendicular
dos planos. Iniciava vertical, larga e rasa, com poucas
chances de entalamento das peças novinhas que
brilhavam em suas mãos. Subia convicta, afunilando,
tornando-se mais profunda e angular. Oito metros
acima, dobrava à esquerda em uma curva perfeita
lembrando uma meia-lua e, depois de alguns metros
seguindo paralela ao solo, subia vertical novamente. Na
saída dessa última curva fechada, a fissura abria-se
generosa e profunda, pronta para o entalamento
perfeito de uma peça robusta. Até lá, somente
pequenas peças encaixadas com certa precariedade
evitariam que o corpo estalasse no chão duro no caso
de uma queda.

O mais novo deles, e mais afoito, e mais desmiolado,


elegeu-se para a ponta da corda. Nuts variados e alguns
friends alojaram-se na bandoleira. O equipamento novo
revelava a inexperiência do rapaz nesse tipo de
escalada. De qualquer forma, sentia-se confiante.
Entrou na via dando um passo largo sobre o buraco que
ficava logo abaixo da fissura. A queda ficava muito mais
indesejável com a presença daquela cavidade infeliz.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 39

Era difícil manusear as peças com as mãos tremendo,


mas o rapaz prosseguia confiante, enfrentando
corajosamente as incontroláveis descargas da ácido
lático e adrenalina no corpo. Na entrada da meia lua a
fissura praticamente desaparecia. Os poucos metros de
deslocamento horizontal eram o momento mais
sensível. As pernas começavam a vibrar descontroladas
enquanto a mente o acusava de imbecil por estar ali,
naquela situação ridícula. Em um movimento mais
brusco, na esperança de recobrar o equilíbrio e controle
do corpo, aconteceu o impensável. O som dos
mosquetões deslizando pela corda, os estalos leves e
agudos dos choques entre metais e os olhos arregalados
do companheiro que dava segurança, anunciaram que a
situação estava bem pior do que se podia imaginar. As
quatro pequenas peças que haviam sido instaladas
fissura abaixo, e que seriam as responsáveis por evitar o
desagradável contato abrupto do corpo com o solo,
encontravam-se, agora, todas elas, amontoadas na mão
do segurança, que olhava atônito para seu
companheiro.

- Muita calma nessa hora! – sussurrava-lhe a mente. As


pernas e braços não correspondiam aos apelos da
consciência e vibravam cada vez mais. Os olhos
fixaram-se desesperados naquela abertura abençoada e
salvadora da fissura na última curva. Todos os músculos
tensionaram. Durante breves segundos, corpo e mente
travaram uma batalha colossal, ambos conscientes de
que a salvação encontrava-se dois ou três passos ao
lado, naquela bendita curva. Os olhos vasculharam cada
detalhe da rocha vertical e a mente visualizou cada um
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 40

dos próximos movimentos detalhadamente. De longe o


rapaz intuiu cuidadosamente a abertura da fissura, e
previu exatamente que peça seria colocada ali, caso
conseguisse alcança-la. Moveu-se lento e convicto em
direção à salvação. Nada seria capaz de desviar-lhe a
atenção. Um, dois, três... pronto! Mão cheia na agarra,
pés chapados na rocha, corpo lançado firmemente para
trás, procurava agora, atabalhoado, a peça previamente
calculada para aquela abertura. Apesar da sensação de
alívio, o corpo inteiro vibrava como bambu verde por
conseqüência da superdosagem de elementos químicos
que o inundaram naqueles segundos. Proteção fixada,
corda passada. Os mais longos segundos da vida do
moço encerraram naquele instante. Ainda houve sangue
de barata suficiente para seguir fissura acima, até a
parada.

Naquele dia, aquela fissura mixuruca transformou-se,


para aquele rapaz, na mais incrível parede de granito
do planeta.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 41

CAPÍTULO 10
GÊNESIS
No princípio criou Deus as montanhas, os vales e as
falésias. E neles plantou os pequenos afloramentos
rochosos, as paredes colossais, as fendas, fissuras,
chaminés e tetos, e as espantosas plantas rupestres
endêmicas. E cercou-os com o vôo provocante dos
urubus, os mares de nuvens e o efeito alucinante
provocado pela refração dos raios de sol na densa
neblina que envolve os corpos dos montanhistas
solitários, cercando-os de uma aura multicolorida, em
eventos tão físicos quanto espirituais. E criou também
os mocós, as tempestades, as nuvens galopantes
abraçando carinhosamente o contorno do relevo, o
vento gelado, os platôs improváveis e abençoados, as
agarras exatas nos lugares exatos e aquele pequeno
arbusto impossível, isolado em centenas de metros de
rocha vertical, agarrado à parede com milhares de
raízes, como fios de cabelo, presas em saliências
minúsculas. E viu Deus que isso era bom. Ah, e como
era bom.

Depois fez o homem e a mulher, e colocou-os em um


jardim, no vale entre dois grandes rios, mas os fez olhar
para os montes e disse-lhes: “Andem por todos os vales
e bebam de todos os rios, mas saibam que somente no
cume desses montes encontrarão a parte que lhes falta.
Pois quando os fiz, retirei parte de vocês, e plantei em
algum ponto de alguma dessas montanhas.” E foi nesse
dia que nasceu no homem o desejo de conhecer todos
os cumes e faces e paredes de todas as montanhas.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 42

Jamais, em qualquer das aventuras, travessias e


escaladas que o homem empreendeu desde sua criação,
pretendeu ele algo mais do que encontrar-se a si
mesmo.

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Eu abri os olhos para esse desejo latente quando


observava, em uma pedreira abandonada, alguns
cabeludos com calças de lycra ridículas, presos à cordas
coloridas, pendurados pela ponta das mãos e dos pés,
movendo-se com precisão felina pelas paredes de
granito cinza. Depois daquele dia, uma sucessão de
fatos coincidentes conduziram-me definitivamente à
prática desse esporte não-esporte.

Naqueles tempos remotos, não tínhamos acesso a


informação alguma. Equipamentos custavam tanto
quanto nosso próprio fígado. Não sabíamos nada sobre
cursos e não havia internet, nem google (santo Deus,
como sobrevivíamos?). As informações estavam
devidamente escondidas em locais secretos e
inacessíveis. Cavocávamos onde podíamos para
encontrar algo que nos conduzisse com segurança, nos
tortuosos e confusos caminhos que trilhávamos, mas
dependíamos muito mais da nossa imaginação. Em
muitos casos, nossas criações eram absolutamente
absurdas. Vou lhes contar, em segredo, algumas delas.

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INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 43

Nossa primeira escalada foi na mesma pedreira onde


encontramos aqueles alienígenas cabeludos. Amarramos
a corda, em cima do bloco rochoso, em vários pontos de
concreto que estavam abandonados por lá. Tínhamos
adquirido, à muito custo, um único mosquetão mimado
por todos, e uma única cadeirinha. Amarramos uma
vítima na ponta da corda, que passava pelo mosquetão,
lá em cima, e descia até a tampa de um bueiro. Passava
por lá e seguia até nosso grupo. Amarramos a corda na
cintura do mais pesado de nós e o restante segurou
firmemente. Enquanto a vítima tentava escalar alguma
coisa, a turma agarrada na corda em fila indiana
caminhava para mantê-la tensionada. Em várias
situações, içávamos a vítima que não conseguia vencer
determinados pontos da parede. Feche os olhos e tente
imaginar a cena, sem rir, nem chorar.

Depois dessa lamentável experiência, começamos a


evoluir rapidamente. Eu e meu parceiro fiel (irmão
camarada) compramos um único par de tênis de
escalada. Íamos para montanha com nossos três
mosquetões e encarávamos as vias que nos pareciam
mais fáceis. Tínhamos também um freio oito e um
maione feito em casa (que hoje em dia ninguém sabe
mais o que é). Um mosquetão ficava com o segurança e
o guia escalava com os outros dois. A cada duas
costuras, o infeliz tinha que buscar o mosquetão de
baixo. Chegando na parada, quando a via era mais
difícil, o tênis era lançado para o segundo. Num desses
lançamentos, o par caiu dentro de uma fenda estreita,
uns dois metros rocha adentro, entalado entre as
paredes, à dois metros do chão. Filho único de pai
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 44

solteiro, aquele par de calçados tinha valor inestimável.


Acreditei que seria possível resgatá-lo e entrei de
cabeça na fenda. O peito e as costas roçavam na pedra
áspera enquanto puxava o meu próprio corpo em
direção àquele funil, sem parar para pensar no retorno.
E sucedeu conforme o previsível. Alcancei o calçado,
mas entalei.

Com o tronco travado firmemente entre as duas


paredes de rocha, praticamente perdi a capacidade de
dilatar o peito e encher o pulmão de ar. Clamei por
socorro com desespero suficiente para fazer meu irmão
rapelar com certa urgência para o resgate da sardinha
enlatada. Com goles pequenos e rápidos de ar, como a
gestante aprende a fazer no curso ‘parto sem medo’,
mantive a mente oxigenada enquanto desenvolvíamos
em conjunto alguma engenharia capaz de me sacar
daquela situação humilhante. Acabei, depois de muito
esforço, e sem soltar o par de tênis da mão,
conseguindo a liberdade. Apesar da estupidez da
situação, minha vida, ali, esteve por um fio.

O próximo passo na nossa vertiginosa ascensão no


mundo das escaladas era natural. Encontramos aquela
parede virgem cercada por um pântano fétido e
ouvimos o clamor da rocha, ansiando ser escalada.
Lançamo-nos em detalhada investigação sobre os
mistérios da conquista. Clifs, rurps, nuts, estribos e
uma série de novos termos passaram a enriquecer nosso
vocabulário. Obviamente tínhamos acesso somente às
palavras. Para a primeira via que abrimos, tivemos que
usar nossa criatividade e inconseqüência. Entortamos
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 45

algumas chapas de metal e fizemos nossos próprios


clifs. Muito bons, por sinal. Compramos brocas com
ponta de vídea e uma bela marreta... de 3 kg. Além
disso, selecionamos algumas chaves de boca bem
robustas da nossa caixa de ferramentas, que usamos
como proteção em algumas fissuras. Os primeiros furos
foram feitos assim mesmo. Clifs caseiros, chaves de
boca, estribos feitos com corda de varal e uma marreta
de 3kg batendo diretamente sobre as brocas, sem
mandril. Além de terminarmos o dia com o braço
latejando pelo peso da marreta, quebramos todas as
brocas. Nas semanas seguintes descobrimos que uma
marretinha de 300g seria suficiente, e conseguimos um
belo mandril emprestado. Com esse arsenal abrimos
três vias de 15 a 20 metros onde hoje se encontra um
famoso teatro. O pântano virou um lago repleto de
peixes e patos, e tem até uma cachoeirinha. Mas o
acesso às vias foi proibido.

O engraçado foi ver, semanas depois da proibição, uma


campanha publicitária convidando o Brasil inteiro para
fazer turismo em Curitiba. Uma das cenas de destaque
era o recém inaugurado teatro, com a bela parede de
granito ao fundo. Então a câmera viajava em direção à
uma dupla de escaladores na via que abrimos com nosso
suor e sangue, mostrando, em um momento mágico, a
fusão de cultura, esporte, lazer e meio-ambiente.
Politicagem miserável. Propaganda enganosa. Ninguém
nunca mais pode escalar ali.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 46

CAPÍTULO 11
MACACOS ME MORDAM
Estávamos em Vassouras quando o policial nos parou, há
600 quilômetros da partida e 600 do destino. Eu no
volante, com minha carteira de motorista em dia, mas os
documentos do carro vagando no limbo, em algum ponto
entre a origem e o destino. Cem quilômetros antes,
quando chegávamos ao Parque Nacional do Itatiaia, nos
demos conta de que os documentos ficaram em Curitiba,
junto com a carteira do meu irmão, que vinha dirigindo
até ali. Desfrutamos de dois belos dias de caminhada no
parque, com algumas escaladinhas simples aqui e ali.
Antes de pegarmos novamente a estrada, conseguimos
pedir, por telefone, que meus pais enviassem pelo correio
a carteira e os documentos para Governador Valadares.
Dali para frente, assumi o comando do carro. O posto da
polícia rodoviária estava sem energia elétrica e o policial
nos abordou com uma lanterna na mão.

– Documentos, por favor.

Mostrei-lhe meus documentos e aguardei a reação.

– Documentos do carro.

Nosso roteiro incluía, além do Itatiaia, o morro do


Ibituruna, em Governador Valadares – onde
assistiríamos o casamento de um primo e voaríamos de
parapente – a Serra da Caraça, Serra do Cipó e Serra da
Moeda, em Minas, mais a Serra da Bocaina e Serra dos
Órgãos, no Rio de Janeiro. Viajávamos no Fiesta ‘mil’ do
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 47

meu pai. Eu, meu irmão e nossas esposas, além de todo


equipamento para camping, escalada e dois parapentes.

– Não estão comigo, senhor policial. Devem, agora, estar


viajando pelo correio até Valadares, nosso destino final, à
600 quilômetros daqui.

O homem me chamou para uma conversa particular.


Acompanhei-o na escuridão até a guarita na beira da
estrada. Apontou-me um placa em um canto escuro,
indicando exatamente qual seria o valor da multa que eu
teria que pagar, caso não encontrássemos outra solução.
Minha consciência teimosa não me permitia ‘molhar’ a
mão do ilustre policial. Apelei para a ignorância:

– Desculpe, senhor, mas minha religião não permite


nenhuma solução alternativa à lei.

Com um misto de incredulidade, espanto e desdém, o


policial me encaminhou até o seu superior, que ouviu a
mesma ladainha religiosa. Deu certo.

– Se manda da minha frente, rapaz, antes que eu mude


de idéia!

O pacote, no correio de Valadares, estava em nome do


meu irmão. Para retirá-lo, ele precisaria apresentar um
documento, mas seus documentos estavam justamente
dentro daquele pacote. Mais uma novela. No Ibituruna,
belo e famoso morro da região, onde pretendíamos voar
de parapente, fomos barrados pela fiscalização. Nunca
tivemos a documentação exigida pelo extinto
Departamento de Aviação Comercial – DAC – que
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 48

regulamentava e fiscalizava o vôo-livre na época. Fomos


sempre voadores clandestinos.

Na serra da Caraça, paisagem de tirar o fôlego. Na serra


do Cipó, roubaram nosso fogareiro, mas escalamos um
bocado. Na serra da Moeda, um belo vôo. Na serra da
Bocaina, um mergulho no mar dos ricos, em Angra dos
Reis, e o ataque de um cachorro feroz. O ‘grand finale’
merece uma descrição mais detalhada.

Tínhamos informações superficiais sobre a trilha e a


parede, mas o desejo de alcançar o cume era enorme. Um
dos integrantes do grupo abandonou a empreitada pouco
antes de chegarmos à base da parede, por conta de um
fortíssimo desarranjo intestinal. Ao menos teve tempo de
presenciar a cena improvável que se descortinou diante
de nós.

Eles surgiram não se sabe de onde, movendo-se


lentamente, em passadas largas, pelas copas das árvores.
Vários filhotes viajavam confortavelmente agarrados às
costas de suas mães. Os Monocarvoeiros (1) são os
maiores primatas das américas. Vivem em grupos de seis
a doze indivíduos e estão ameaçados de extinção. O
grupo passou a menos de 10 metros de nossas bocas
abertas. O maior deles postou-se de frente para nós, nos
encarando nos olhos, enquanto os demais passavam
desconfiados mais atrás. Somente quando o último se
afastou em segurança é que o líder que nos fitava seguiu
lentamente seu caminho, mas sem nos tirar do seu
campo de visão desconfiado. Lentamente, sumiram todos
entre a vegetação.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 49

Calcula-se que restem entre 200 e 1200 indivíduos desta


espécie no planeta.

Nos perdemos na trilha e chegamos à parede não


exatamente no ponto que pretendíamos. Encaramos a
primeira via que apareceu e, até hoje, não sabemos o
nome da maldita. Alcançamos o cume do dedo depois de
quatro cordadas fáceis. Erramos também a descida.
Nossa corda não chegava na parada e optamos por descer
pela via que subimos, apesar das transversais que
tiveram que ser desescaladas.

Férias como essas, nunca mais.

_____

(1) Para ver Monocarvoeiros movimentando-se em ambiente natural, acesse:


http://videosai.com/603515/Monocarvoeiro-%22Muriqui%22-no-Itatiaia.html
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 50

CAPÍTULO 12
O ETERNO
Creio que fomos feitos para voar. Não nossos corpos,
mas a mente, o espírito, o interior, aquilo que
realmente somos, aquilo que permanecerá no dia em
que rompermos o lacre que nos separa do eterno. Ah,
sim. Nesse dia voaremos como anjos, libertos das duras
leis da física. Quando pousarmos, será puramente por
prazer, jamais por cansaço ou necessidade. Se esse dia
nos alcançar com a glória da presença daquele que nos
criou, então, como definiu C. S. Lewis, toda a alegria
daquele instante eterno será retroativa, e inundará de
alegria todos os instantes passados. Toda dor, angústia,
morte, perda, solidão, miséria e desgraça serão
inundadas pela consciência da alegria eterna que se
mostrará diante de nós. Mas esse dia não é hoje. Hoje
estamos presos ao solo, acorrentados ao peso
assombroso da gravidade. Graças à Deus, nem sempre.

Subimos o morro no meio da tarde, sob céu encoberto,


com pequenos buracos de azul esbranquiçado tentando
romper aquele teto cinza. O carro parou a poucos
metros da suave rampa de grama que nos levaria a
mergulhar no infinito. Com a mochila nas costas,
caminhamos até o ponto ideal para o início do ritual.

O barulho do nylon sendo aberto, o estalar dos metais,


o desenrolar das linhas e o cheiro peculiar que se
desprende de todo o equipamento tornam o momento
mágico. O cinza das nuvens havia engolido o mundo
todo. Há nossa frente, dez metros além do nariz,
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 51

somente os mistérios do infinito, do intangível, da


ausência, do nada.

A brisa suave batia de frente em nossos rostos úmidos e


gelados. Ouvíamos tão somente o vento, e nossa própria
respiração. Havia espaço suficiente para as duas velas e
estávamos dispostos em fila, já presos às linhas que
sustentariam nossos corpos e soltariam longos e sutis
assobios estridentes quando cortassem o ar.

No preciso instante em que o corpo projeta-se para


frente, as mãos conduzindo firmes os tirantes à sua
posição ideal, aquele tecido inerte que jazia sobre a
relva ganha vida, infla-se, ousado, lançando-se
corajosamente adiante, retesando confiante as linhas,
os tirantes, posicionando-se alinhado sobre nossas
cabeças e, finalmente, arrancando do solo essa casca
que nos aprisiona. No instante seguinte, rimo-nos por
termos alcançado uma metáfora alada do eterno. Já
libertos do solo, somos impiedosamente engolidos pelo
cinza infinito e úmido que nos cercava. Desaparecemos
do campo de visão de todos. Atrás de nós, desaparece a
origem. Adiante, mantém-se em segredo o destino.
Vemos apenas um ao outro, às vezes nem isso.
Mantemo-nos próximos apenas pela voz, pela troca de
palavras eufóricas e solenes. O cinza nos engole e nos
revela, enquanto prosseguimos firmes adiante,
afastando-nos dos perigos da encosta invisível. E
navegamos por longos minutos no infinito, até que,
sutilmente, algumas cores começam a somar-se ao
cinza.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 52

Aos poucos, formas tornam-se reconhecíveis por rápidos


momentos, antes de serem novamente engolidas pelo
vazio. Então, atravessando os últimos vapores de
neblina, nosso destino revela-se por inteiro diante de
nós. Fazemos novamente parte do tempo e do espaço.
Minutos depois estamos novamente presos ao solo,
como todos os mortais.

Até o próximo vôo.


INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 53

CAPÍTULO 13
RESGATES COMPULSÓRIOS
Se você é um freqüentador assíduo de montanhas,
fatalmente, mas cedo ou mais tarde, vai encontrar
alguém precisando de ajuda. Perdidos, machucados,
bêbados, drogados, apavorados, receosos, inseguros,
neuróticos, acrofóbicos, frescos ou carentes, não
importa, alguém, em algum momento, ou em vários,
estará à deriva entre vales e cristas, sem saber para
onde ir, como ir ou sem condições de ir. Encontrei, em
minhas caminhadas por aí, todos os tipos acima em
situações cômicas, trágicas ou tragicômicas. Os dias de
procissão foram, de longe, os grandes campeões.
Centenas de pessoas subiam o morro. Algumas dúzias
para a missa lá em cima. O restante para bagunçar
mesmo. Descíamos vários corpos em coma alcoólico, e
alguns outros completamente alienados por um
entorpecente qualquer. Os sãos também davam
trabalho torcendo o tornozelo, despencando nas rampas
de rocha próximas do cume, tendo crises de asma,
pressão baixa ou canseira aguda. E nós lá,
voluntariamente, graciosamente, encarnando algum
tipo de santo montanhês altruísta, carregávamos essa
gente morro abaixo.

Mas nem só de procissão vivem os acidentes.


INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 54

SACO PRETO

Nos primeiros e empolgados anos de montanhismo,


passava boa parte do meu tempo nos fundos de uma
loja do ramo, onde havia um pequeno muro de
escalada. Matei muita aula para brincar ali. Aparecia
sempre atrasado nas aulas de desenho mecânico, com
os dedos encardidos de magnésio e hipersensibilizados
pelas agarras altamente abrasivas que se usava
antigamente. Segurava a lapiseira com a mão tremendo
e exalava aquele cheiro típico de magnésio, poeira,
suor e nylon. Numa dessas noites, enquanto matava
aula com a nobre intenção de me tornar um exímio
escalador, encontrei uma espécie inédita de saco de
dormir gigante no meio da habitual bagunça de agarras,
tecidos, nylons, lã sintética, pedaços de cordas e
equipamentos velhos. Não tinha buraco para cabeça.
Fechava inteiro, de um lado a outro, e possuía
estranhas alças nas laterais. Sem titubear, resolvi
experimentar a novidade. Estava lá dentro, com o zíper
fechado, quando ouvi aquela voz fúnebre:

- Onde é que está aquele saco onde carregamos o morto


ontem?

Um rapaz havia despencado de duzentos metros em um


acidente besta no Marumbi. Seu corpo foi carregado, no
dia anterior, no saco onde eu me encontrava. Foi meu
primeiro contato com a tragédia montana.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 55

O GIGANTE

Certo dia, enquanto usufruíamos daquela rocha


maravilhosa, desgastando as pontas dos dedos,
deliciados pela dor provocada pelos cristais rasgando a
pele, fomos solicitados para um socorro. As gurias
estavam nervosas indicando seu amigo, que fora
também o guia daquela aventura, e vinha morro abaixo
pulando em um pé só. Nos dispusemos de pronto a
acompanhar o rapaz. Mas macho que é macho, herói
que é herói, guia que é guia, não pede água. O rapaz
era gigante. Perto de dois metros, cada coxa devia ser
maior que a minha cintura. Saiu saltitando, obstinado,
feito um saci, suave como um mastodonte. Tentamos
alertar-lhe sobre a pressão no joelho, os riscos de
torções e tropeções, mas ele seguiu pulando, confiante
no seu taco. As meninas o acompanharam angustiadas e
nós voltamos à carga.

Enquanto nos preparávamos para voltar às rochas, as


moças retornaram, ofegantes, com a notícia inevitável.
Descemos até o rapaz com mala e cuia. Não teríamos
mais tempo para escalar mesmo. Empacotamos todo o
equipamento e fomos ao encontro do herói, que estava
desabado num canto da trilha, gemendo como bambu
no vento. Devia pesar uns 150 quilos, o infeliz. Foi
apoiado em nossos ombros até o ponto de ônibus. Dias
depois, recebemos a notícia de que havia quebrado os
dois tornozelos. Dizem por aí, com muita propriedade e
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 56

pouca educação, que a inveja é uma merda. O orgulho


também é.

PERDIDOS E SEM EDUCAÇÃO

A noite havia caído um pouco precocemente,


empurrada pela chuva. Descíamos a trilha encharcados
e à luz de lanternas. Não era nada tão complicado para
quem já havia passado por ali centenas de vezes. Difícil
mesmo era estar ali, naquela situação, sem lanterna, e
sem conhecer o caminho. Pois foi exatamente nessa
condição que encontramos os dois casais na trilha.
Caminhavam na escuridão total, tateando o mato, um
pé depois do outro, quase sem sair do lugar. Ainda
tinham um longo percurso até chegar ao destino.

Solícitos como sempre, nos oferecemos, conforme


havíamos aprendido na escola dominical, para ser
lâmpadas para os pés, e luz para o caminho. As
mulheres, infinitamente mais sábias e humildes que
qualquer marmanjo, aceitaram na hora. Os homems,
primatas pouco evoluídos e carentes de mostrar sua
virilidade diante de seus pares, tentaram desconversar
e seguir adiante na escuridão, mas não foram longe.
Depois de sair da trilha algumas vezes, e depois de
alguns tombos hilários, cederam e aceitaram nossa
luminosa companhia.

Acompanhamos lentamente os casais, apoiando,


escorando, iluminando, esperando, incentivando,
motivando, até chegarmos à estrada de terra. Íamos
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 57

seguindo pela estrada, percorrer o longo trecho até o


ponto de ônibus e encarar a longa espera e a longa
viagem até o centro, que precederia a longa caminhada
até em casa, quando percebemos que nossos
companheiros dirigiram-se sorrateiros para a beira do
caminho em direção à dois belos carros estacionados.
Que alegria, carros! Veículos quentinhos e rápidos.
Iluminamos o caminho até eles. Iluminamos as
fechaduras para facilitar a introdução da chave.
Iluminamos as mochilas, o porta-malas. Iluminamos as
portas batendo, os acenos com as mãos, a partida, o
adeus. Iluminamos a estrada vazia e o longo percurso
até o ponto de ônibus. De lá, seguimos encharcados e
gelados para casa.

MALTRAPILHO

No princípio, parecia bêbado. Andava cambaleante,


trôpego, com os braços soltos, balançando loucamente
conforme o corpo se deslocava aos trancos pela trilha
íngreme. Conforme nos aproximávamos, pude perceber
manchas de sangue na camisa. Olhei desconfiado. O
rapaz caminhava convicto, sem considerar nossa
presença. Não levava nada consigo. Mochila, bolsa,
sacola, pochete; nada. Seguia de mãos vazias, sem
olhar para trás. Perguntei gentilmente se estava tudo
bem, se precisava de alguma ajuda, e ele parou. Virou
lentamente, fora do prumo, com o tronco arqueado
para esquerda. Quando me olhou de frente, vi o buraco
pouco acima da testa, e o sangue escorrido pelo rosto e
pela camisa. Me olhou com um olhar de peixe,
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 58

absolutamente indiferente, assustadoramente


inexpressivo, e respondeu calmamente:

- Está tudo bem.

- Rapaz. Você não está bem não. Está sangrando. Tem


uma baita machucado na cabeça!

Ele olhou para si mesmo com espanto, tateou a cabeça


desconfiado, sentiu a ferida, olhou o sangue na mão,
franziu a testa pensativo e focalizou o infinito com os
olhos por alguns segundos. Depois, virou-se calmamente
para frente e seguiu caminhando cambaleante. Desci ao
lado dele o tempo todo, conversando e apoiando seu
corpo trôpego. Aos poucos foi colocando a cabeça em
ordem. Lembrou do tombo e reconheceu assustado que
estava machucado e precisava de ajuda. Acompanhei o
rapaz até sua casa, no Bairro Alto. Prometeu que dali
seguiria para o pronto socorro com seu pai. Despediu-se
agradecido e nunca mais o vi.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 59

CAPÍTULO 14
LIÇÃO DE PLANEJAMENTO
Todo mundo sabe que um bom aventureiro é,
inevitavelmente, um bom estrategista e um bom
planejador. Uma grande excursão por lugares ermos
exige muito preparo físico, psicológico e logístico. Por
conta dessa característica é que grandes aventureiros
como Klink e Niclewicz, entre um e outro projeto
grandioso, sustentam-se dando palestras para
empresários de grandes corporações. VP disso, CEO
daquilo, managers e tudo mais. Aquela gente toda que
aparece nas excitantes reportagens de revistas como
Você S/A.

Eugênio sabia muito bem disso. Já havia passado alguns


meses desde que ele e Avelino propuseram o desafio. A
parede de granito que pretendiam galgar era
monumental. Passaram várias horas das últimas
semanas planejando os detalhes da escalada.
Equipamento, alimentação, roupas, horários,
transporte. Tudo acertado. Sexta-feira deixariam suas
casas na direção do litoral.

----

A trilha de acesso à parede era longa e cansativa.


Depois do rio e daquela árvore caída, tornava-se
exageradamente íngreme. Abasteceram os cantis antes
de encarar a subida final. Os veios de granito apareciam
esporadicamente entre as copas da árvore da densa
floresta atlântica. Aos poucos, conforme subiam, a
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 60

vegetação tornava-se mais rala. A parede mostrava-se


cada vez mais imponente. Quando chegaram à base do
grande afloramento de rocha, o sol já estava alto.
Retiraram o equipamento das mochilas e trataram de
arrumar tudo com muito cuidado. Dali para frente a
situação seria mais delicada.

----

Partiram de ônibus para o leste em direção à grande


serra litorânea. Na rodoviária, pouco antes de
embarcar, Eugênio lembrou que nenhum dos dois tinha
relógio e comprou um prestobarba na farmácia da
rodoviária, que vinha com um relógio de brinde.

Desceram do ônibus tarde na noite. Teriam que passar a


noite na pequena cidade litorânea e pegar o primeiro
ônibus em direção à serra no dia seguinte. Os planos
eram dormir na rodoviária mesmo, mas a polícia não
permitiu. Vagaram à esmo pelas ruelas vazias da
cidadezinha, procurando algum lugar onde pudessem
dormir. Perceberam um grande movimento em uma
praça no centro, e descobriram por acaso que estava
acontecendo ali, justamente naquele fim de semana, o
Festival Universitário da Canção. Aproveitaram um
pouco do som ao vivo na praça antes de seguirem
caminhando. Encontraram um albergue da prefeitura
abarrotado de gente. Todos os beliches ocupados e
muita gente dormindo pelo chão. Conversando com o
porteiro, descobriram que o ônibus que pegariam no dia
seguinte passava de fronte ao albergue. Dormiram ali
mesmo, no único fiapo de chão que encontraram, na
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 61

frente da porta do banheiro. A noite não foi das


melhores. Muitos colegas de albergue tiveram que
entrar às pressas no banheiro por conta dos efeitos do
excesso de cachaça. Levaram alguns pisões e
demoraram um certo tempo até se acostumarem com o
cheiro.

----

A escalada não era tecnicamente difícil, é verdade. Era


fácil até. Mas as dicas que tinham sobre a parede não
eram muito precisas e estavam cerca de 4 horas
atrasados, por conta do incidente daquela manhã.
Tentaram ser rápidos e recuperar o tempo perdido, mas
de maneira absolutamente contraproducente. Levados
pela insegurança e os arrepios descontrolados na
espinha que aquela parede lhes causava por conta de
sua inexperiência, optaram por uma escalada tola. O
guia subia sem mochila até a parada, aIçava sua
mochila em seguida e dava segurança para o segundo.
Por mais que corressem, não conseguiam remir o
tempo. E por conta da pressa, deslocaram-se da linha
natural da via, passando por veios de rocha, caraguatás
e taquaras à esquerda e perdendo de vista as proteções
fixas pelas quais deveriam passar. Tinham que
encontrar o platô onde passariam a noite, mas não
conseguiram. A noite veio e os pegou desprotegidos no
meio da grande parede. Inseguros, preocupados e
receosos, resolveram dormir por ali mesmo, aguardando
a alvorada, quando poderiam reencontrar a via com
mais facilidade. Acomodaram-se como puderam entre
os tufos de taquaras na parede vertical. Amarraram-se
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 62

à elas e tentaram dormir pendentes ao vento, a


algumas centenas de metros do chão. Eugênio ainda
lembrou-se de programar o relógio/prestobarba para
despertar bem cedo. Teriam que correr muito parede
acima se quisessem sair de lá a tempo de pegar o
ônibus na BR, no dia seguinte.

Antes de adormecer, ainda conseguiram contato com as


lanternas com algum ser humano que dormia em um
cume próximo daquela mesma serra. O céu acima deles
estava estrelado mas a densa neblina da noite úmida
subia da floresta e passava por eles em rajadas de
vento gelado. Comeram suas barras de cereais e
chocolates, e caíram no sono, embalados pelo cansaço
do longo dia.

----

Apesar do cheiro, do chão úmido e do movimento


constante da madrugada, dormiram bem. Tão bem que
acordaram somente com o barulho do ônibus pegando
alguns passageiros em frente ao albergue. Levantaram
assustados, recolhendo seus pertences e correndo em
vão até o ponto. Já tinham sido deixados para trás.
Houve, ao menos, tempo para o café da manhã.
Esperaram 4 horas até o ônibus seguinte que os levou
até o ponto final, no pé da serra. Dali em diante, mais 3
horas de caminhada em ritmo forte. Passariam pelo
mais belo rio da região, com suas muitas quedas e
piscinas naturais de água espantosamente transparente
que, refletindo as copas das árvores, ganhava incríveis
tons de esmeralda. Depois do rio, e da árvore
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 63

gigantesca caída, seguiriam pela trilha íngreme em


direção ao afloramento rochoso.

----

O relógio foi barato, mas teve seu preço. Talvez a


umidade da noite gelada ao relento, talvez o vento
cortante que balançava as taquaras e os corpos nela
apoiados, ou talvez um defeito qualquer de fabricação
absolutamente aceitável em um relógio daqueles, fez
com que a contagem do tempo parasse. O sol, porém,
seguiu seu curso indiferente ao pequeno relógio de
pulso e aos dois minúsculos grãos de areia que pendiam
em sono profundo em uma parede daquela cordilheira
banhado por um vasto oceano daquele planetinha azul.
Quando libertaram-se finalmente dos fortes braços de
Morfeu, o sol já encontrava-se a meio caminho do pino.
Uma breve reunião se fez necessária. Ambos discutiram
o que fazer naquela situação. Se quisessem, conforme o
programado, sair por cima da parede e alcançar a BR no
alto da serra a tempo de pegar o ônibus, teriam que ter
acordado antes mesmo de o sol despontar no horizonte.
Concordaram que o mais sensato seria abandonar o
plano original e voltar por onde vieram.

Deram-se ainda ao trabalho de reencontrar a linha da


via e alcançar o platô onde deveriam ter dormido.
Desceram dali até o rio, onde passaram algumas horas
mergulhando e descansando. Retornaram pelo mesmo
caminho, diretamente até o planalto.
INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 64

Do começo ao fim, como de costume sempre que


Eugênio e Avelino faziam algo juntos, pouca coisa saiu
conforme o programado. Nada, no entanto, pareceu-
lhes ter dado errado. Eram, no final das contas,
histórias incríveis as que tinham para contar. E incríveis
os momentos que desfrutavam juntos. O sucesso não
estava em cumprir à risca o planejado, nem tão pouco
em alcançar o objetivo proposto. O sucesso estava no
improviso, na assimilação, no convívio, no silêncio, no
medo, no arrependimento, nos novos horizontes, nos
mares de nuvens, na lua refletindo sobre eles, no vento
cortante, na conversa furada, sem pé nem cabeça, na
fome, na dor, no frio.

Eram medíocres as aventuras, mas incríveis as histórias.


INCRÍVEIS HISTÓRIAS MEDÍOCRES DE MONTANHA 65

Encostei-me a ti, sabendo bem


que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem,
depus a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso,


e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar,
quando caí.

Cecília Meirelles, descrevendo com absoluta


precisão a sensação que dá um minúsculos hurp,
coperhead ou clif, sustentando nossos frágeis
corpos a centenas de metros no chão.

Este livreto está sob licença Creative Commons.


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