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Universidade Federal do Rio de Janeiro

“À direita de Deus, à esquerda do povo”:


Protestantismos, esquerdas e minorias em tempos de ditadura e democracia
(1974-1994).

Zózimo Antônio Passos Trabuco

Rio de Janeiro – RJ
Junho 2015
2

“À direita de Deus, à esquerda do povo”:


Protestantismos, esquerdas e minorias em tempos de ditadura e democracia
(1974-1994).

Zózimo Antônio Passos Trabuco

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutor em História Social.

Orientadora: Jessie Jane Vieira de Souza.

Rio de Janeiro – RJ
Junho 2015
3

FOLHA DE APROVAÇÃO

Tese de doutoramento apresentada ao Curso


de Doutorado do Programa de Pós-
graduação em História Social do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em História Social.

Aprovada por:
____________________________________________________________
Presidente, Profa. Dra. Jessie Jane Vieira de Sousa (UFRJ)

____________________________________________________________
Prof. Dr. Arnaldo Érico Huff Júnior (UFJF)

____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Aparecida Rezende Mota (UFRJ)

____________________________________________________________
Prof. Dr. Muniz Ferreira (UFRRJ)
____________________________________________________________
Prof. Dr. Renato Luís do Couto Neto e Lemos (UFRJ)
4

CIP – Catalogação na Publicação

T758 TRABUCO, Zózimo.


―À direita de Deus, à esquerda do povo‖: Protestantismos,
esquerdas e minorias em tempos de ditadura e democracia (1974-
1994) / Zózimo Trabuco. Rio de Janeiro, 2015.
418 f.l

Orientadora: Jessie Jane Vieira de Souza.


Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio
de JaneiroPrograma de Pós-Graduação em História Social,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2015.

1. Protestantismo Ecumênico. 2. Missão Integral. 3. Ditadura.


4 Esquerdas. 5. Minorias. I. Souza, Jessie Jane Vieira de. orient.
II título.
5

RESUMO

Este trabalho investiga a relação de setores do protestantismo com agendas,


partidos e movimentos das esquerdas e minorias durante o processo de distensão
da Ditadura Militar, abertura política e transição democrática (1974-1994).
Pretende compreender as mudanças no campo religioso e no campo político que
possibilitaram essa aproximação, bem como as elaborações intelectuais e ações
institucionais que mediaram o processo. Iniciei a análise discutindo o significado
de ser protestante na América Latina, pois foi das tentativas de contextualizar o
protestantismo no continente que nasceram as teologias e redes institucionais que
pensavam a dimensão política da ―missão da igreja‖. Nasceram assim a Teologia
da Libertação (1968), acolhida pelo Protestantismo Ecumênico, e a Teologia da
Missão Integral (1970), acolhida por setores do Protestantismo Evangelical.
Ambos apresentaram respostas cristãs ao marxismo, que contribuíram para as
expressões brasileiras do Socialismo Cristão. Analiso a influência dessas vertentes
do Socialismo Cristão dentro do campo protestante. Em outras palavras, como
elas interferiam no modo de ser igreja, ler a Bíblia, desempenhar a evangelização,
produzir teologia. Em seguida, analiso como os protestantes, vivenciando
mudanças internas, interagiram com as transformações que aconteciam na
sociedade brasileira durante o processo de distensão, abertura política e transição
democrática. Como se posicionaram em relação às alterações do campo político?
Que atitudes tomaram diante dos movimentos feminista, negro e gay? Como
interagiram com as greves do ABC (1978-1980), a Anistia (1979), o
pluripartidarismo (1980), as DiretasJá (1984), o Colégio Eleitoral (1985), a
Constituinte (1987) e as Eleições de 1989 e de 1994? Ao final deste período, é
possível identificar uma esquerda evangélica? Tal possibilidade de existência e
seu significado fazem parte de uma longa trajetória de relações entre
protestantismo e esquerda aqui investigadas.

Palavras-chave: Protestantismos, Esquerdas, Minorias, Ecumenismo, Missão


Integral, Ditadura, Democracia.
6

ABSTRACT

This work investigates theconnections betweenProtestant sectors and left wingand


minorities agenda, parties and movementsin the process of relaxation of Brazilian
military dictatorship, political openness and democratic transition (1974-1994). It
aims to understand the changes in the religious field and in the political field that
enabled this approach and also the intellectual elaboration and institutional actions
that mediated this process. I started the analysis discussing the meaning of being
Protestant in Latin America because it wasfromthe attempt to contextualize
Protestantism in Latin America that were created theologies and institutional
networks that thought the political dimension of the ―church‘s mission". Thus
were born the Theology of Liberation (1968), hosted by the Ecumenical
Protestantism and the Theology of Integral Mission (1970), hosted by the
Evangelical Protestantism sectors. Both presented Christian responses to
Marxism, whichcontributed to the Brazilian expressions of Christian socialism. I
analyze the influence of these aspects of Christian socialism within the
Protestantism, in other words, how they interfered in the way of beingof those
religious communities: how theyread the Bible, performed evangelization and
produced theology. Then I analyze how the Protestants, experiencing internal
changes, interacted with the transformations taking place in Brazilian society
during the process of relaxation of Brazilian military dictatorship, political
openness and democratic transition. How did they position themselves in relation
to changes in the political field? What were the attitude in face of minorities‘
movements (feminist, black and gay movements)? How they interacted with the
strikes of ABC (1978-1980), Amnesty (1979), the multiparty system (1980), the
movements for Direct Election for President (1984), the Electoral College (1985),
the Constituent Assembly (1987) and1989‘s and 1994‘s Elections? Is it possible
to identify an evangelical left at the end of this period? Moreover, what would
have been the meaningof an evangelical left? Those questions are part of a long
history of relations between Protestantism and leftwing ideologieshere
investigated.

Keywords: Protestantism, lefts, Minorities, Ecumenism, Integral Mission,


Dictatorship, Democracy
7

Este trabalho é dedicado à minha mãe, Maria Amélia;aos amigos Djalma


Torres, Marcos Monteiro, Jorge Nery e Aletuza Leite; ao meu pai, Roque
Trabuco –saudades eternas;e à memória do Rev. João Dias de Araújo,
inspirações da minha caminhada.
8

AGRADECIMENTOS

Não foi fácil cursar o doutorado e, ao mesmo tempo, estar em sala de aula
na primeira experiência como professor. Ainda mais com as inseguranças da
condição de substituto, esse eufemismo para a terceirização docente. Por isso
mesmo, os agradecimentos não poderiam deixar de mencionar as pessoas que
fizeram parte desses dois universos paralelos, o doutorado na UFRJ e a docência
na UEFS.
No doutorado, o meu primeiro agradecimentoé para minha orientadora,
Jessie Jane. O desafio da ―orientação EAD‖ de um aluno tão ruim em cumprir
prazos e arrumar o texto, com a exigência que o trabalho acadêmico requer, foi
realizado com generosidade e rigor intelectual. Aprendi muito com você, não
apenas no processo de orientação, mas nas conversas informais, na sua genuína
preocupação com meu bem-estar pessoal e profissional. Sua história de vida e seu
modo de viver são inspiradores para mim e fazem o sentimento de gratidão andar
acompanhado do respeito e da admiração.
Ao professor Arnaldo Huff e à professora Maria Aparecida, pela
contribuição fundamental no exame de qualificação. Tentei qualificar ao máximo
o trabalho final a partir das críticas e sugestões feitas e espero qualificá-lo ainda
mais a partir da banca de defesa, pela qual agradeço a ambos desde já pela
disposição em participar. Aos professores Muniz Ferreira e Renato Lemos, que
também aceitaram o convite para a banca de defesa, agradeço pela disposição e
pela leitura crítica que certamente virá. Àqueles que contribuíram diretamente
com a pesquisa, seja doando documentos do acervo pessoal ou concedendo
entrevistas: Djalma Torres, Marcos Monteiro, Zwinglio Mota Dias, Anivaldo
Padilha, Jorge Pinheiro e Mozart Noronha.
Agradeço a todas as pessoas ligadas ao PPGHIS, tanto à coordenação
quanto ao corpo de funcionários. À turma que entrou comigo em 2011, em
especial o mídia-historiador Bruno Leal, a guatemaltecaAna Carolina, a chilena
Nashla Dahas, aargentina Isabel Leite, a mexicana Larissa Riberti, a historiadora
do ME Gislene Lacerda e o vice pra sempre Abner Sóstenos. Boas conversas,
viagens, companhias, cervejas, apuros. Uma variedade de temas, abordagens e
interesses compartilhados: América Latina, ditaduras, guerrilhas, massacres,
crimes, verdade, traumas, religião, política, movimentos sociais, futebol, ―aspas‖ e
9

etceteras. Todos os que fizemos muitos planos para ―depois da tese‖. A Grimaldo
Zachariadhes, o historiador da ditadura na Bahia, refugiado baiano em terras
fluminenses, meu muito obrigado pela hospedagem em Niterói.
Aterrissando em terras feirenses, a segunda parte dos agradecimentos,
ligados à docência, começam com a instituição que me recebeu de volta, agora
como professor. Ter sido estudante da casa e agora compor o corpo docente, ainda
que provisoriamente, me faz ser ainda mais identificado com a UEFS. Eu não
poderia começar em outra universidade e a minha primeira greve não poderia ser
em outro sindicato que não a ADUFS. Agradeço aos meus colegas Eurelino
Coelho, Rodrigo Osório, Larissa Penelu, André Uzeda, Diego Corrêa, Valter
Guimarães e Ana Maria pelo exemplo, força e incentivo. A todas as pessoas do
Centro de Pesquisas da Religião (CPR), especialmente a coordenadora Elizete da
Silva, minha orientadora na graduação e no mestrado, maior incentivadora da
minha trajetória acadêmica e maior exemplo de compromisso com a formação
d@s estudantes. À Maria do Carmo, que digitalizou meus fichamentos de livros,
teses, dissertações e fontes, transcreveu entrevistas e esteve sempre em alerta para
qualquer urgência, o meu muito obrigado. Agradeço às turmas que passaram pelas
disciplinas que ministrei até aqui, com as quais aprendi a ser professor no
cotidiano da sala de aula, das reuniões acadêmicas, administrativas e políticas.
Um agradecimento especial a alunos e alunas que me influenciaram com suas
ideias, lutas e descobertas: Rafaela Souza, Mabel Freitas, Luan Lima, Beatriz
Café, Maria Alice e também àqueles/aquelas de quem acompanhei ou acompanho
a pesquisa como orientador (Alex, Hilana, Simone, Vicência), professor de TCC
ou convidado na banca de defesa na monografia.
A todas as pessoas da Comunidade de Jesus, especialmente a meus amigos
de todas as horas, Aletuza e Jorge, companheiros de luta e inspiração. Alessandra
Lima, por trazer alegria e espontaneidade aos meus dias. E por último, mas não
menos importante, minha família, a começar pela minha mãe, por tudo, incluindo
me manter no Rio em 2011, sem bolsa e sem emprego, para cumprir os créditos
do doutorado; Geisa que acompanhou minha seleção em 2010; Luiza que se
mudou de vez pro Rio e agora é quem me recebe em casa quando vou pra lá;
Gabriela, que concluiu a graduação agora, Gidu, Mara e Tima, a trindade
veterana.
10

Recortar agradecimentos é sempre difícil, mas muitas pessoas que não


foram incluídas aqui foram e são importantes na minha vida e na minha
caminhada acadêmica. Que possam se sentir representadas nos nomes citados e
que possamos continuar a trilhar caminhos de solidariedade e partilha. Obrigado a
tod@s vocês.
11

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABU – Aliança Bíblica Universitária

ACA – Associação de Acadêmicos

AEVB – Associação Evangélica Brasileira

AFAS – Associação Feirense de Ação Social

ALN – Aliança Libertadora Nacional

AP – Ação Popular

APML – Ação Popular Marxista Leninista

ASEL – Ação Social Evangélica Latino-americana

CEB – Confederação Evangélica Brasileira

CEBs – Comunidades Eclesiais de Base

CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação

CEDITER – Centro Ecumênico de Direitos da Terra

CENACORA – Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo

CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviços

CIIC – Conselho Internacional de Igrejas Cristãs

CLAI - Conselho Latino-americano de Igrejas

CMI – Conselho Mundial de Igrejas

COLINA – Comando de Libertação Nacional

CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs

FTL – Fraternidade Teológica Latino-americana

IBN – Igreja Batista Nazareth

IPB - Igreja Presbiteriana do Brasil

IPI - Igreja Presbiteriana Independente


12

IPU - Igreja Presbiteriana Unida

ISAL – Igreja e Sociedade na América Latina

ISER – Instituto Superior de Estudos da Religião

ITEBA – Instituto Teológico da Bahia

IURD - Igreja Universal do Reino de Deus

JUC – Juventude Universitária Católica

MCDC – Movimento Cristão Democrático de Centro

MEP – Movimento Evangélico Progressista

MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de Outubro

PC do B – Partido Comunista do Brasil

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PDT - Partido Democrático Trabalhista

PFL - Partido da Frente Liberal

PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro

POLOP – Política Operária

PORT – Partido Operário Revolucionário dos Trabalhadores

PRT – Partido Revolucionário dos Trabalhadores

PSB - Partido Socialista Brasileiro

PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira

PT - Partido dos Trabalhadores

PTB - Partido Trabalhista Brasileiro

SEPAL – Serviço Pastoral da América Latina / Servindo Pastores e Líderes

SIM – Serviço de Integração ao Migrante

UCEB – União Cristã de Estudantes Brasileiros

UNE – União Nacional dos Estudantes


13

ULAJE – União Latino-americana da Juventude Evangélica

UNELAM – União Evangélica Latino-americana

VAR-PALMARES – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares

VINDE – Visão Nacional de Evangelização

VPR – Vanguarda Popular Revolucionária


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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Tendências do protestantismo latino-americano, p. 38


Tabela 2 – Redes institucionais ecumênicas e evangelicais, p. 102-103
Tabela 3 – Dissidências da esquerda, p. 138
Tabela 4 – Filiação protestante às organizações clandestinas, p. 142
Tabela 5 – Bancada Evangélica: informações religiosas e políticas. (Anexos)

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 – CEBs e diálogo católico-evangélico, cap. II p. 113


Imagem 2 – Ilustração: A profecia durante a Monarquia, cap. III, p. 162
Imagem 3 – Ordenação de mulheres na Igreja Anglicana, cap. IV, p. 196
Imagem 4 – Tempo e Presença, capa ―Racismo e Opressão, cap. V p. 231
Imagem 5 – Tempo e Presença, capa ―Eleições em pacotes‖, cap. VI, p. 285
Imagem 6 – Fórum Evangélicos com Partidos Políticos, cap. VI, p. 303.
Imagem 7 – Consulta Dívida Externa e Igrejas, cap. VII, p. 369.
15

―A vida só pode ser compreendida,


olhando-se para trás; mas só pode ser
vivida, olhando-se para frente.‖Soren
Kierkegaard

―Quero trazer à memória o que me pode


dar esperança.‖ Lamentações 3:21
16

SUMÁRIO

Lista de Siglas e Abreviaturas


Lista de Tabelas
Lista de Imagens

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 18

PARTE I – CAMINHOS DO PROTESTANTISMO .....................................................................

Capítulo I – Ser protestante na América Latina ........................................................................ 31


Protestantes em busca de uma identidade latino-americana (1810-1961) ....................................... 31
A responsabilidade social e a cooperação eclesiástica .................................................................... 39
Richard Shaull e o Protestantismo Ecumênico ................................................................................ 43
Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL): autonomia e revolução .......................................... 49
Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL): contextualização e Missão Integral ................... 65

Capítulo II – Igreja e missão: redes institucionais, produção intelectual e sociabilidade


religiosa .......................................................................................................................................... 83
Ecumenismo em rede: serviço, pesquisa e representação eclesiástica ............................................ 79
Redes evangelicais e Missão Integral: evangelização, assistência e formação de lideranças .......... 94
Quando novos crentes leem a Bíblia: a emergência do pentecostalismo na esfera pública ........... 105
As CEBs e o sonho protestante de um catolicismo evangélico ..................................................... 111
O movimento ecumênico: as novas igrejas e o protagonismo protestante .................................... 115

PARTE II – ESQUERDAS E MINORIAS: TEOLOGIA E MILITÂNCIA ................................

Capítulo III – Socialismo Cristão: o desafio marxista e a resposta cristã .............................. 125
O evangelho segundo Marx e o marxismo segundo a fé. .............................................................. 125
Os protestantes e as organizações de esquerda na ditadura ........................................................... 136
A Bíblia dos oprimidos: as lutas de classe e as querelas teológicas .............................................. 150

Capítulo IV – O feminismo cristão latino-americano: saber teológico e poder eclesiástico . 175


A Teologia Feminista e a Década Ecumênica ............................................................................... 175
Feminismo e Libertação: vozes de uma teologia em construção .................................................. 181
―As peculiaridades das protestantes‖: Bíblia, pastorado e espiritualidade .................................... 188
O feminino e a igreja na Missão Integral ...................................................................................... 199

Capítulo V – Minorias militantes e teologias situadas: negros e homossexuais em debate no


protestantismo ............................................................................................................................. 217
Religião, racismo e Teologia Negra .............................................................................................. 217
O negro evangélico: o preconceito nas igrejas e a militância antirracista ..................................... 232
Homossexualidade e libertação: o sujeito ausente da teologia ...................................................... 246
Missão Integral e Psicologia Cristã: a benção do sexo e os pecados da sexualidade .................... 253
17

PARTE III – EVANGÉLICOS, ABERTURA E ELEIÇÕES .......................................................

Capítulo VI - Ser de esquerda entre os evangélicos ................................................................. 268


Uma abertura partida: o progressismo evangélico e as opções à esquerda ................................... 268
Além da ―tribo ecumênica‖: o CEDI e a abertura. ........................................................................ 273
Na igreja e no partido: as ambiguidades da dupla filiação ............................................................ 295
Na contramão da Bancada Evangélica: a dissidência protestante vai ao Parlamento .................... 306

Capítulo VII – Ser evangélico na esquerda: da Constituinte às eleições presidenciais ......... 333
Os evangélicos e a participação política: pentecostalismo, ecumenismo e Missão Integral. ........ 333
Cristianismo e política: uma referência evangélica para a esquerda cristã.................................... 343
Eleições presidenciais: os evangélicos à direita e à esquerda........................................................ 363
Nem católico, nem marxista: a afirmação de uma esquerda evangélica ....................................... 378

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................... 389


BIBLIOGRAFIA ...............................................................................................................................
FONTES .............................................................................................................................................
ANEXO ..............................................................................................................................................
18

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar a relação de setores protestantes com as


esquerdas e os movimentos de minorias na última década da Ditadura Militar e na
primeira década após o fim do regime, período que cobre três fases distintas,
descritas na historiografia como distensão (1974-1978), abertura (1979-1985) e
transição democrática (1985-1989).1Pretendi compreender quais transformações
no campo religioso e no campo político possibilitaram iniciativas de aproximação
entre os setores protestantes e as ideologias de esquerda, quais os principais
agentes dessa aproximação e quais as perspectivas teológicas e políticas que a
legitimavam. Essa relação inseria-se em um processo mais amplo da presença
protestante na arena política nacional, aproximando-se de diferentes correntes
políticas e ideológicas.
Os trabalhos sobre o papel da Igreja Católica durante a Ditadura Militar e a
abertura política, ainda que reclamem novas pesquisas e aprofundamentos, estão
incorporados à compreensão destes processos na historiografia brasileira. As
relações entre a Igreja Católica e o Estado constituem um campo de estudo no
qual floresceram temáticas relacionadas à cultura política trabalhista, o golpe de
1964, o apoio e a oposição à ditadura por setores da Igreja, a presença nos
movimentos sociais e o papel da Igreja na abertura política. Além de trabalhos
específicos, coletâneas de textos sobre a ditadura e a abertura contemplam a
presença do catolicismo e da Igreja no cenário social e político.2Os trabalhos
sobre o protestantismo são menos conhecidos, apesar do crescimento evangélico e
do peso político que o segmento adquiriu a partir da abertura. A maioria das

1
Apesar da historiografia recente optar por denominar o regime de Ditadura Civil-Militar,
enfatizando a participação civil no golpe, na legitimação ao governo e na gestão do Estado,
mantenho a designação tradicional Ditadura Militar por entender que a abordagem do trabalho
evidencia a participação civil no período, sem deixar de enfatizar o exercício do poder pelos
militares. Além disso, considero não ser possível compreender qualquer regime político sem
analisar suas bases sociais de legitimação ou contestação.
2
A bibliografia é extensa, por isso, cito aqui um trabalho por década entre os anos 1970 e 2014:
DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o
catolicismo brasileiro (1961-1964). Cidade/ Estado: Estudos Cebrap, 12, abril-junho, 1975;
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916-1985). Trad. Heloisa Braz
de Oliveira Prieto. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989; BURITY, Joanildo. Religião e
democratização no Brasil:reflexões sobre os anos 80. Soc. Rcciíe. v lo. ri. 2. p. I67-192, ju1/dez,
1994; SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra: Bispos e militares, tortura e justiça social na
ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; GOMES, Paulo Cesar. Os Bispos católicos e a
ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. 1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2014.
19

pesquisas sobre o protestantismo na História Recente do Brasil deu prioridade à


expansão do pentecostalismo, ao corporativismo político evangélico e às
afinidades entre o conservadorismo religioso e a direita política.3
O mesmo ocorre em relação à historiografia das esquerdas, desde
monografias, dissertações e teses, aos trabalhos de socialização ou divulgação da
produção acadêmica.4 A revista de circulação nacional História Viva dedicou
recentemente, na série Temas Brasileiros, um volume à história da esquerda no
país. No capítulo Cristianismo Político no Brasil, Marcelo Ridenti (1959-)
descreveu os grupos organizados do catolicismo que se engajaram nos
movimentos sociais e o papel dos católicos ligados à Teologia da Libertação na
resistência à Ditadura Militar, na luta pelos Direitos Humanos, e na formação do
Partido dos Trabalhadores (PT). Apenas de passagem citou a participação de
―setores protestantes‖ – e alguns militantes da Ação Popular que não eram
católicos, como Paulo Wright (1933-1973) – sem especificar as filiações
religiosas ou mencionar a trajetória desses ―setores‖ no percurso da esquerda
cristã.5
O desafio a que me propus foi de tentar compreender a possibilidade de
setores do protestantismo encontrarem em partidos de esquerda e movimentos de
minorias a expressão política de seu ethos religioso na última década da Ditadura
Militar e na primeira década após o fim do regime. Hipótese que colocou um
problema a ser perscrutado: é possível falar na formação de uma esquerda
evangélica ou protestante no Brasil durante o período? Problema de difícil
abordagem, uma vez que lida com as aproximações entre o campo religioso e o

3
Referências básicas dessa abordagem encontram-se em: FRESTON, Paul. Protestantes e política
no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese (Doutorado em Sociologia) – Unicamp,
Campinas, 1993; PIERUCCI, Antonio Flavio. A realidade social das religiões no Brasil: religião,
sociedade e política. São Paulo: Hucitec, 1996; FERNANDES, Rubem (Org.). Novo nascimento:
os evangélicos em casa, na política e na igreja. Rio de Janeiro: Mauad, 1998;MACHADO, Maria
das Dores Campos. Política e religião: a participação dos evangélicos nas eleições. Rio de Janeiro:
FGV, 2006; SANTOS, Adriana Martins dos. A construção do Reino: a Igreja Universal e as
instituições políticas soteropolitanas (1980-2002). Dissertação (Mestrado em História Social),
UFBA, Salvador, 2009.
4
Exemplos: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão (Orgs.). Revolução e democracia
(1964-). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (Coleção As esquerdas no Brasil);
DELGADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (Orgs.). O tempo da ditadura: regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
(Coleção O Brasil Republicano, vol. 4).
5
RIDENTI, Marcelo. O Cristianismo político no Brasil. In. HISTÓRIA VIVA, Temas
Brasileiros, Edição Temática nº. 5. Esquerda no Brasil: uma história nas sombras. São Paulo:
Duetto, 2006, p. 72-77.
20

campo político, entre o pertencimento às esquerdas e ao protestantismo,


aproximações sempre complexas que não podem ser reduzidas a uma síntese
definitiva.
Na segunda metade do século passado, o protestantismo foi polarizado em
diferentes tendências que iam do fundamentalismo religioso ao liberalismo
teológico, passando pelo conservadorismo político, a aproximações com grupos
de esquerda e movimentos de minorias. Tendências que atravessaram todo o
período da Ditadura Militar, se relacionando com as disputas políticas do regime,
com os conflitos da Guerra Fria, com novas correntes teológicas de origem
europeia e norte-americana e, finalmente, com os processos de distensão, abertura
política e transição democrática.
A expressão política do ethos religioso, à esquerda do campo político, foi
uma experiência minoritária, embora significativa, no protestantismo. A maioria
do segmento protestante encontrou na direita ou no conservadorismo político a
atmosfera propícia às suas ideias e práticas religiosas. Entretanto, a polarização do
campo religioso não se reduz a uma mecânica repercussão da polarização do
campo político. Os conflitos que dividiam os protestantes em diferentes
tendências possuíam motivações especificamente religiosas, imbricadas às lutas
sociais.
Para uma definição de esquerda, utilizei a análise de Norberto Bobbio, para
quem a defesa de uma sociedade igualitária é o critério que distingue a esquerda
da direita. Desta forma:

o elemento que melhor caracteriza as doutrinas e os movimentos que se


chamam de ―esquerda‖, e como tais têm sido reconhecidos, é o igualitarismo,
desde que entendido, repito não como a utopia de uma sociedade em que
todos são iguais em tudo, mas como tendência, de um lado, a exaltar mais o
que faz os homens iguais do que o que os faz desiguais, e de outro, em
termos práticos, a favorecer políticas que objetivam tornar mais iguais os
desiguais.6

Tal distinção precede a associação entre esquerda e socialismo, mas a


explica em função do igualitarismo ser o princípio da ideologia socialista. A
direita teria como princípio a defesa da liberdade individual, inclusive diante de
propostas de promoção da igualdade que viessem a restringi-la. Evitando atribuir
6
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política.
Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. UNESP, 1995, p. 110.
21

a diferença entre esquerda e direita a partir do critério da igualdade à disposição


dos indivíduos, Norberto Bobbio esclareceu:

Quanto à relação entre direita e desigualdade, disse e repeti várias vezes que
a direita é inigualitária não por más disposições – e, portanto, pra mim, a
afirmação de que o inigualitarismo é a característica principal dos
movimentos de direita não se mostra como um juízo moral –, mas porque
considera que as desigualdades entre os homens são não apenas inalienáveis
(ou são elimináveis apenas com o sufocamento da liberdade) como são
também úteis, na medida em que promovem a incessante luta pelo
melhoramento da sociedade.7

A díade ―direita”e“esquerda” se combina com outras distinções do campo


político, como progressista e conservador, libertário e autoritário, moderado e
extremista. Cada uma dessas oposições “não se superpõe à distinção entre direita
e esquerda, mas com ela se cruza”.8 Portanto, a esquerda pode se manifestar de
forma moderada ou extremista/radical, conservadora ou progressista, libertária ou
autoritária, a depender de outras polarizações relativas à liberdade individual ou às
formas de exercício do poder. Norberto Bobbio considerou ainda a inspiração
religiosa para o igualitarismo como princípio de distinção entre posições políticas:

Também é igualmente parcial a atribuição a toda a esquerda de uma visão


não religiosa, até mesmo ateísta, da vida e da sociedade. […] não se pode
deixar de reconhecer quanta importância o igualitarismo de inspiração
religiosa sempre teve nos movimentos revolucionários, dos Niveladores
ingleses e dos seguidores de Winstanley à Teologia da Libertação. E, vice-
versa, existe toda uma tradição de pensamento não igualitário, da qual
Nietzsche é a expressão máxima, que considera o igualitarismo e seus
produtos políticos, a democracia e o socialismo, o efeito deletério da
predicação cristã.9

Ernst Blochenfatizou a relação entre a esperança cristã e as utopias políticas


ao analisar o milenarismo numa perspectiva marxista e o marxismo numa
perspectiva milenarista. Em O princípio esperança (1959), escreveu: ―O que é
desejado utopicamente guia todos os movimentos libertários, e também todos os
cristãos o conhecem a seu modo, com a consciência adormecida ou manifestando
comoção, a partir de trechos bíblicos messiânicos ou do êxodo‖10. Na definição de

7
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política.
Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. UNESP, 1995, p. 20.
8
Ibidem, p. 21.
9
Ibidem, p. 78.
10
BLOCH, Ernst. O princípio da esperança. Vol. I. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro:
EDUERJ/Contraponto, 2005, p. 18.
22

esquerda, Jacob Gorender acrescentou à defesa de uma sociedade igualitária, as


lutas emancipatórias de segmentos sociais subalternos. Em seu livro Combate nas
Trevas, originalmente publicado em 1990,a definiu como:“movimentos e ideias
endereçados ao projeto de transformação social em benefício das classes
oprimidas e exploradas”. Uma definição que contemplaria a diversidade de
experiências esquerdistas, pois ―os diferentes graus, caminhos e formas dessa
transformação social pluralizam a esquerda e fazem dela um espectro de cores e
matizes‖.11A pluralidade nos modos de ser esquerda, fez com que a mesma se
organizasse em partidos e movimentos distintamente relacionados com o
marxismo, com o Estado, com os movimentos sociais e com as forças de oposição
nos processos de distensão, abertura política e transição democrática.
Durante a Ditadura Militar, esquerda e oposição foram experiências
políticas relacionadas, muitas vezes intercambiáveis, porém não sinônimas. Na
década seguinte ao fim da ditadura, o significado de pertencer à esquerda
diferenciou-se cada vez mais do simples pertencimento à oposição e passou a ser
disputado a partir de filiações teóricas, propostas políticas e identidades
partidárias concorrentes, numa esfera pública mais ampliada e propícia a este
debate. Um momento de inflexão importante foi a reforma eleitoral que rompeu
com o bipartidarismo:

O debate sobre a iminente reforma partidária, em meados de 1979,


apresentou duas grandes posições: uma, defendida pela maioria da liderança
do MDB, intelectuais e PCs [Partidos Comunistas], que afirmava a
necessidade de ampliar a participação popular, com a incorporação dos novos
movimentos sociais, mas mantendo a unidade da oposição em um novo
partido, herdeiro natural do MDB; outra, defendida pelas lideranças do novo
sindicalismo, grupos trotskistas, representantes dos movimentos sociais e
intelectuais, que propunham a criação de um novo partido, comprometido
com as reivindicações populares, apoiado nas bases dos movimentos sociais e
que se diferenciasse daqueles considerados burgueses.‖ 12

Neste processo, em que o pertencimento à esquerda adquiriu significados


novos, as aproximações de setores protestantes com este campo político
acentuaram as polarizações no segmento religioso. Mudanças no campo religioso
e no campo político fizeram com que as aproximações de setores do
11
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
armada. São Paulo: Perseu Abramo e Expressão Popular, 2014, p. 9.
12
ALMEIDA, Luciene Silva de. ―O comunismo é o ópio do povo‖: Representações dos batistas
sobre o comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia. Dissertação (Mestrado em
História) – UEFS, Feira de Santana, 2011, p. 205.
23

protestantismo com as esquerdas variassem entre 1974 e 1994, proporcionando


combinações entre as identidades ―evangélica‖ e de ―esquerda‖ que não possuíam
continuidade ou homogeneidade entre os dez primeiros anos e os dez últimos.
Alguns setores protestantes fizeram parte da esquerda em função de uma agenda
social e política, distanciando-se dos movimentos de minorias (feminista, negro,
gay) e dos temas do comportamento e sexualidade (legalização do aborto,
descriminalização das drogas, homossexualidade, etc.), enquanto outros também
dialogavam com essas propostas, parcial ou integralmente.13
Não era uma especificidade protestante. Mesmo na esquerda secular, os
temas: sexualidade, direitos reprodutivos, descriminalização das drogas e direitos
das minorias, etc. custaram a ser incorporados durante o período abordado. O
conflito entre uma esquerda tradicional, pautada apenas na luta de classe e numa
perspectiva teórica de totalidade e universalidade, e uma esquerda alternativa,
ligada aos movimentos de minorias e adotando uma perspectiva teórica de
especificidade e fragmentação dos sujeitos políticos, só não provocou uma ruptura
entre as esquerdas em função de um enfretamento comum com a Ditadura Militar.
De acordo com Maria Paula Araújo:

No Brasil, portanto, os movimentos de novo tipo não enfatizaram, pelo


menos num primeiro instante, o rompimento com a tradição marxista nem
com a esquerda mais tradicional; embora tenha havido uma tensão constante
entre eles. Essa tensão – que se traduzia por um processo contínuo de
aproximação/afastamento, diálogo/conflito – foi uma das marcas fortes da
política brasileira nas décadas de 1970-1980.14

As distinções entre os protestantes, interferiam e dialogavam com o


posicionamento político das diferentes frações do protestantismo, possibilitando
identidades transversais às denominações. Houve uma circulação de crenças e
práticas religiosas, bem como de ideias e posicionamentos políticos, que não

13
Para pensar o conceito de ―agenda‖ utilizo o debate sobre a ―definição de agendas‖, cuja
preocupação básica está em compreender: ―1) como surgem novos assuntos públicos e por que
alguns (e não outros) ascendem às arenas públicas e ali permanecem (ou não); 2) que atores
participam do processo de definição de assuntos públicos‖ e considera ainda que: ―a emergência
de questões na agenda pública explica-se mais em termos da dinâmica social e política do que dos
atributos intrínsecos dos assuntos em disputa, ou seja, das ‗condições reais‘ dos problemas em
questão‖. FUKS, Mario. Definição de agenda, debate público e problemas sociais: uma
perspectiva argumentativa da dinâmica do conflito social. Rio de Janeiro: BIB, n° 49, 1° semestre
de 2000, p. 80.
14
ARAÚJO, Maria Paula. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 19.
24

podem ser considerados exclusivamente ligados a esta ou aquela denominação ou


classificação dos grupos protestantes.15
Utilizo os termos ―protestante‖ e ―evangélico‖ como sinônimos ao longo do
trabalho, exceto quando a distinção for fundamental para explicar elaborações
teológicas e posicionamentos políticos específicos. O mesmo ocorre com
―pentecostal‖ e ―neopentecostal‖, pois, embora haja discordância sobre a
continuidade ou a ruptura entre ambos, considero o neopentecostalismo uma
expressão ―nova‖ ou ―historicamente recente‖ do pentecostalismo, como o próprio
nome sugere.16
A partir do final dos anos 1960 existiram pelo menos três tendências
mobilizadoras do protestantismo: ecumenismo, fundamentalismo e
evangelicalismo. A primeira empreendeu esforços de cooperação entre as
diferentes denominações do protestantismo e de diálogo entre protestantes e
católicos, criou entidades de atuação social e realizou debates sobre os problemas
nacionais fundamentados numa reflexão sobre a responsabilidade social das
igrejas cristãs.17 A segunda pautou-se na defesa da herança teológica e doutrinária
recebida pelas missões norte-americanas que criaram as primeiras denominações
protestantes no Brasil. O fundamentalismo surgiu como uma defesa dos
fundamentos da fé em reação à Teologia Liberal que dialogava com o iluminismo
e utilizava métodos históricos de crítica bíblica.18 Esta tendência se tornou

15
A trajetória e as classificações do protestantismo serão discutidas no primeiro capítulo. Até a
primeira metade do século XX, prevaleceu o uso do termo ―protestante‖ para o conjunto de
denominações de origem imigrante ou missionária, europeia ou norte-americana, que aportou no
Brasil no século XIX. O termo ―evangélico‖, para designar as diferentes frações do protestantismo,
se tornou corrente na segunda metade do século passado, hegemonizando a classificação deste
segmento religioso a partir da abertura política.
16
A análise do pentecostalismo em três ondas ou movimentos pentecostais proposta por Paul
Freston (1993) tem sido bem aceita na historiografia do protestantismo. As divergências dizem
respeito à caracterização e designação de cada movimento pentecostal. A terceira onda, por
exemplo, tem sido chamada de ―neopentecostalismo” e ―pós-pentecostalismo‖. Ver: SIEPIERSKI,
Paulo D. Contribuições para uma tipologia do Pentecostalismo Brasileiro. In: GUERRIERO, Silas.
O estudo das religiões:desafios contemporâneos. São Paulo: Paulinas, ABHR, 2003.
17
A discussão sobre este segmento será aprofundada no primeiro capítulo, mas, para uma
compreensão panorâmica, pode-se consultar os verbetes ―Conselho Mundial de Igrejas‖ (p. 262-
269), ―Ecumenismo Espiritual‖ (p. 447-448) e ―Sociedade Responsável‖ (p. 1026-1027) em:
LOSSKY, Nicholas [et. al.]. Dicionário do movimento ecumênico. Tradução: Jaime Clasen.
Petrópolis: Vozes, 2005.
18
De 1909 a 1915 foi publicada nos EUA uma coletânea de 12 textos apologéticos que se
propunham a defender os fundamentos da fé cristã diante da crítica histórica dos textos bíblicos e
da Teologia Liberal. O termo ―fundamentalismo‖ foi assumido positivamente por igrejas e grupos
cristãos que adotaram a perspectiva da coletânea, que pode ser lida em edição brasileira:
25

majoritária no seio das igrejas e reagiu fortemente ao crescimento ecumênico no


protestantismo, rejeitando reflexões teológicas contextualizadas e o engajamento
em lutas sociais emancipatórias. A terceira tentou conciliar a preocupação com a
proposta de responsabilidade social dos ecumênicos com a defesa de uma
identidade evangélica ortodoxa, oscilando entre perspectivas conservadoras e
progressistas, entre a proximidade à primeira e à segunda tendência.19
O trabalho está dividido em três partes: I) Caminhos do Protestantismo; II)
Esquerdas e minorias: teologia e militância; III) Evangélicos, abertura e eleições.
A parte I é formada por dois capítulos. O primeiro tenta compreender a
experiência de ―Ser protestante na América Latina‖, uma vez que esta ambiência
continental foi determinante no desenvolvimento do ecumenismo, do
fundamentalismo, do evangelicalismo e na construção de uma ética social e
política para as diferentes tendências do protestantismo. O segundo
capítulo,―Igreja e missão: redes institucionais, produção intelectual e sociabilidade
religiosa‖, é uma breve descrição das redes ecumênicas e evangelicais,
movimentos e entidades que tentaram transformar, desde instâncias externas às
denominações e igrejas, o modo do protestantismo interagir com a esfera pública
e o campo religioso. Analisa ainda de que forma o ecumenismo, o
pentecostalismo e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reconfiguraram as
práticas sociais motivadas pela religião.
A parte II tem como ponto de partida o capítulo III, ―Socialismo Cristão: o
desafio marxista e a resposta cristã‖, que descreve as experiências de Socialismo
Cristão no protestantismo brasileiro, suas relações com o marxismo, com os
grupos políticos de orientação marxista e suas leituras da Bíblia. O Capítulo IV,
―O feminismo cristão latino-americano: saber teológico e poder eclesiástico‖,
introduz o estudo do impacto deste Socialismo Cristãonas elaborações teológicas
do protestantismo sobre as minorias, completado pelo capítulo V, ―Minorias
militantes e teologias situadas: negros e homossexuais em debate no
protestantismo‖.

TORREY, R. A. Os fundamentos: a famosa coletânea de textos das verdades bíblicas


fundamentais. Tradução Cláudio J.A. Rodrigues. São Paulo: Hagnos, 2005.
19
“Tem como ponto de partida por um lado, a origem fundamentalista, não se exaurindo nela
mesma, e por outro, não avança para o campo da Teologia Liberal”. In: LONGUINI NETO, Luiz.
O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no protestantismo latino-
americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 27.
26

Na parte III, os capítulos VI e VII analisam de que forma a pertença de


protestantes à esquerda foi significada no campo religioso e político. O sexto
capítulo discute o que era ―Ser de esquerda entre os evangélicos‖, de que forma
isso foi vivenciado em momentos importantes como a emergência do novo
sindicalismo, as campanhas pela Anistia, o pluripartidarismo, as Diretas Já e a
Assembleia Nacional Constituinte. O sétimo e último capítulo, por sua vez, versa
sobre o significado de ―Ser evangélico na esquerda: da Constituinte àseleições
presidenciais‖. Foram analisadas as agendas políticas formuladas para o
protestantismo durante a abertura e como as mesmas se manifestaram durante as
eleições de 1989 e 1994. Apresenta ainda, uma discussão sobre a forma como
determinados setores do protestantismo se apresentaram no final do período como
uma ―esquerda evangélica‖.
Uma opção desta pesquisa foi não circunscrever a relação entre
protestantismos, esquerdas e minorias, no período escolhido, a uma localização
geográfica específica. Isso não significa que não havia o predomínio de
determinados centros de produção teológica ou de elaboração política das
tendências protestantes investigadas. A maioria das fontes consultadas foi
produzida em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul,
embora alguns dos sujeitos e entidades tenham atuado em outros lugares e alguns
eventos marcantes tenham acontecido em outras regiões, especialmente na Bahia e
em Pernambuco. Além do trânsito dos agentes religiosos por diferentes lugares,
núcleos regionais de uma mesma tendência do protestantismo poderiam
apresentar visões conflitantes.
As principais fontes utilizadas nesta pesquisa foram produzidas por redes
institucionais e intelectuais ligadas às tendências protestantes investigadas. Do
Protestantismo Ecumênico, as publicações do Centro Ecumênico de
Documentação e Informação (CEDI): revista Tempo & Presença, os jornais
Aconteceu, Aconteceu no mundo evangélicoe Contexto Pastoral e os Cadernos do
CEDI.20 Do movimento de Missão Integral, o Boletim Teológico da Fraternidade
Teológica Latino-americana (FTL), a revista Ultimato e livros da Aliança Bíblica

20
A documentação do CEDI encontra-se disponível no site do projeto Memórias Ecumênicas
Protestantes, que também produziu um livro homônimo de depoimentos, muito utilizado neste
trabalho, e um documentário intitulado Muros e pontes: memória protestante na ditadura‖, ambos
divulgados em 2014. Endereço para consulta do acervo:
<http://koinonia.org.br/protestantes/acervo> Acesso em: 09 out. 2015.
27

Universitária (ABU).Outras publicações do segmento religioso, como os livros


dos principais intelectuais ecumênicos e evangelicais, bem como as entrevistas
com participantes de ambas as tendências, ajudaram a compreender o quadro das
opções religiosas e políticas na relação dos protestantes com as esquerdas e as
minorias.21
Periódicos como Jornal do Brasile Folha de São Paulo, fontes ligadas à
atividade parlamentar, como os discursos na Câmara dos Deputados e documentos
produzidos por partidos de esquerda e movimentos de minorias, completaram o
mosaico de informações e alternativas disponíveis aos sujeitos e grupos
investigados.22Embora não houvesse uma continuidade absoluta entre a
heterodoxia religiosa e a contestação política e nem entre a ortodoxia religiosa e a
legitimação política da ordem, a abordagem sobre as relações entre o poder
simbólico e o poder político no campo religioso foi útil para perceber as
ambiguidades destas inserções da religião na arena política. Segundo Pierre
Bourdieu (1930-2002):

A estrutura das relações entre o campo religioso e o campo de poder


comanda, em cada conjuntura, a configuração das estruturas de relações
constitutivas do campo religioso que cumpre uma função externa de
legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da ordem
simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem política, ao
passo que a subversão simbólica da ordem simbólica só consegue afetar a
ordem política quando se faz acompanhar por uma subversão política dessa
ordem.23

Para compreender como ocorrem esses reforços simbólicos à manutenção


ou à subversão da ordem política, é preciso considerar em cada conjuntura
histórica os movimentos políticos e simbólicos que tecem as aproximações ou
oposições entre as ideologias e os interesses dos grupos em disputa. Para entender

21
Algumas entrevistas foram concedidas diretamente ao autor, outras foram realizadas por
pesquisadores do Centro de Pesquisas da Religião (CPR) da Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS). Recorri também a coletâneas de entrevistas e depoimentos, impressas ou
audiovisuais, a exemplo dos recentes depoimentos à Comissão Nacional da Verdade, que
apresentou relatório final em 2014 sobre violações dos direitos humanos pelo Estado brasileiro
durante a ditadura militar (1964-1985). No capítulo sobre o feminismo cristão, utilizei os livros de
entrevistas com teólogos e teólogas da libertação sobre a mulher: TAMEZ, Elsa (Org.). As
mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições Loyola, 1990; TAMEZ, Elsa (Org.). Teólogos da
Libertação falam sobre a mulher.São Paulo: Edições Loylola, 1989.
22
Optei por apresentar as fontes ao longo dos capítulos, além de compartilhá-las nas referências
completas no final do trabalho para não sobrecarregar a leitura da introdução.
23
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5ª edição. Introdução, Organização e
Seleção: Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009, p. 69.
28

o posicionamento de setores protestantes que se articularam como uma esquerda


evangélica ou se incorporaram à esquerda secular, foi importante considerar suas
relações com as ideologias socialistas e com as práticas e representações do
segmento protestante.
Utilizei o conceito de afinidade eletiva, trabalhado por Max Weberno
clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo, visando compreender
como a interação entre ―um complexo de elementos associados na realidade
histórica‖24 das comunidades protestantes e um ethos político de esquerda,
proponente de uma ordem social democrática e popular, podem ter atuado para a
tentativa de formar uma ―esquerda evangélica‖ no período analisado. Michael
Löwyutilizou o conceito de afinidade eletiva em Redenção e Utopia para analisar
a relação entre pertença cultural (judaica) e contexto intelectual (Europa Central)
na formação de um ―romantismo utópico‖, e em A guerra dos deuses, para a
relação entre a comum ―aversão ética‖, católica e marxista, ao capitalismo, na
formação do Cristianismo da Libertação. Interpretando o conceito weberiano,
Löwy assim o descreveu:

Com base em certas analogias, certas afinidades, certas correspondências,


duas estruturas culturais podem – em determinadas circunstâncias históricas
– entrar em um relacionamento de atração, de escolha, de seleção mútua.
Esse não é um processo unilateral de influência e sim uma interação dialética
e dinâmica que, em alguns casos, pode levar à simbiose ou mesmo à fusão. 25

O conceito de ―afinidades eletivas‖ pode contribuir para a compreensão das


reativações mútuas entre as ideologias que polarizavam o campo político com as
teologias que polarizavam o campo religioso. Nesse sentido, a pesquisa sobre a
relação entre os protestantes e as esquerdas atentou para o desenvolvimento de
mediações que não apenas aproximaram essas duas estruturas culturais entre si,
como consequentemente aproximaram as estruturas culturais de oposição a cada
uma delas.
As afinidades eletivas não existem a priori ao processo histórico, antes, são
tecidas em cada conjuntura, mediadas por redes institucionais e intelectuais

24
Foi dessa forma que Weber definiu o conceito de ―espírito‖: ―um complexo de elementos
associados na realidade histórica que nós aglutinamos em um todo conceitual, do ponto de vista do
seu significado cultural‖. In: WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad.
Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 43.
25
LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 116.
29

situadas nas fronteiras de duas estruturas culturais ou campos de poder distintos.


Portanto, não existiam afinidades eletivas por si mesmas entre os protestantes e as
esquerdas que tornaram possível a articulação do Socialismo Cristão, mas no
processo de contestações simultâneas no campo político e no campo religioso,
num período de luta pela ampliação de direitos sociais e liberdades democráticas,
gestaram-se elementos de aproximação e tensão entre esses dois polos, os
protestantes e as esquerdas.
A relação entre poder simbólico e poder político no campo religioso
(Bourdieu) e a relação entre o igualitarismo religioso e esquerda no campo
político (Bobbio) foram instrumentais para compreender estas afinidades eletivas
(Weber, Löwy) construídas no processo histórico investigado. Este trabalho
procura tornar estas experiências mais compreensíveis, contribuindo para novas
abordagens sobre a relação entre religião e política na História Recente do Brasil,
sem a pretensão de esgotar um tema tão amplo e complexo.
30

PARTE I
CAMINHOS DO PROTESTANTISMO
A parte I é formada por dois capítulos. O primeiro tenta compreender a
experiência de ―Ser protestante na América Latina‖. O segundo capítulo, ―Igreja e
missão: redes institucionais, produção intelectual e sociabilidade religiosa‖, é uma
breve descrição das redes institucionais e intelectuais do ecumenismo e do
evangelicalismo.
31

Capítulo I
Ser protestante na América Latina

Será que nunca faremos se não confirmar


a incompetência da América Católica, que
sempre precisará de ridículos tiranos?
Caetano Veloso.(1984)

A América Latina está se tornando


protestante? David Stoll(1990)26

Protestantes em busca de uma identidade latino-americana (1810-1961)

Uma breve introdução à presença protestante na América Latina, com


ênfase na inserção do protestantismo no Brasil, é importante para compreender os
movimentos e tendências que pensaram alternativas evangélicas de participação
política, pois, de um modo geral, estas alternativas estavam articuladas à
construção de uma identidade nacional e continental para o protestantismo. João
Feres Jr. ao escrever uma história do conceito de ―América Latina‖ nos Estados
Unidos, demonstrou uma alteridade que produzia a autoglorificação dos valores
da América (EUA) e uma representação invertida desses valores para descrever os
vizinhos do Sul (Latinos). Demonstrou ainda que, a despeito do conceito ser
geralmente utilizado como a definição geográfica de um continente, ele não pode

26
STOLL, David. Is Latin America turning protestant?The politics of evangelical growth.
Berkeley e Los Angeles, Califórnia: University of California Press, 1990.
32

ser desassociado de uma caracterização pejorativa, com componentes racistas e


interesses, invariavelmente, imperialistas.27
Entretanto, optei por utilizá-lo no sentido convencional de definição
geopolítica, por causa da sua utilização pelas tendências protestantes aqui
analisadas quando se referiam ao continente Latino-americano, em alguns
momentos contemplando apenas a América do Sul, em outros, estendendo-se à
América Central. Quatro características marcaram, de modo não linear, o percurso
da experiência de ser protestante no continente entre 1810 e 1961: a) dependência
financeira e cultural às missões estrangeiras, sobretudo à norte-americana; b)
projetos de autonomia eclesiástica e cooperação entre as diferentes denominações;
c) iniciativas de contextualização da leitura bíblica, da pregação religiosa, da
atuação missionária e pastoral à realidade social e cultural latino-americana; d)
vínculos protestantes com projetos liberais, com significados distintos no século
XIX e na segunda metade do século XX.
O protestantismo inseriu-se nas novas nações independentes do
colonialismo ibérico de forma sistemática a partir do século XIX. Primeiramente
através de acordos diplomáticos com países de maioria protestante, depois com a
presença dos agentes das sociedades bíblicas britânica e norte-americana, em
seguida favorecido pelas políticas de imigração nas nações independentes ou em
processo de emancipação, e finalmente, através de missões evangelísticas de
iniciativa individual ou promovida por sociedades missionárias, sobretudo, norte-
americanas. A historiografia do protestantismo nomeia o conjunto de
denominações instaladas no século XIX de ―protestantismo histórico‖, dividindo-
o em dois tipos: ―protestantismo de imigração‖ (luteranos, anglicanos, valdenses,
menonitas, entre outros) e ―protestantismo de missão‖ (congregacionais,
presbiterianos, metodistas, episcopais e batistas).28
Os acordos diplomáticos e econômicos com países de maioria protestante ou
com companhias comerciais e empreendimentos financeiros foram os primeiros
fatores que promoveram a tolerância religiosa ao protestantismo no continente.

27
FERES JUNIOR. João. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru,
SP: EDUSC, 2005, p. 15-27.
28
Para um relato da inserção de cada denominação do protestantismo histórico no Brasil, consultar
ALMEIDA, Vasni de; SANTOS, Lyndon de Araújo; SILVA, Elizete da (Org.). Fiel é a palavra:
leituras históricas dos evangélicos protestantes no Brasil. Feira de Santana: UEFS Editora, 2011.
33

Exemplo significativo foi o acordo entre a Inglaterra e Portugal em 1810.29


Acordos semelhantes foram feitos entre a Inglaterra e os demais países. Nas
constituições das novas nações independentes, garantiu-se a tolerância religiosa
ou a liberdade de culto para estrangeiros, resguardando a condição de religião
oficial do Estado ao catolicismo.30
A imigração protestante durante a primeira metade do século XIX foi
majoritariamente europeia. No rastro dos acordos diplomáticos e das garantias
constitucionais da tolerância religiosa, foram fundadas as primeiras capelas
anglicanas, como a do Brasil, em 1819, sucedidas pela chegada dos luteranos,
imigrantes de fala alemã nas províncias do sul do Brasil (1824).31 Os menonitas,
no século XX, foram “o último grupo expressivo de imigrantes protestantes que
chegaram à América Latina”,32 sobretudo no México (1922) e Paraguai (1926).33
A maioria das denominações do protestantismo histórico na América Latina
provém dos Estados Unidos e se estabeleceu a partir dos anos 1850 em dois

29
“Sua Alteza Real, o Príncipe Regente de Portugal, declara, e se obriga no seu próprio nome, e no
de seus herdeiros e sucessores, que os vassalos de Sua Majestade Britânica, residentes nos seus
territórios e domínios, não serão perturbados, inquietados, perseguidos, ou molestados por causa
da sua religião, mas antes terão perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e
celebrarem o serviço divino em honra do Todo-Poderoso Deus, quer seja dentro de suas casas
particulares, quer nas suas igrejas e capelas, que sua Alteza Real agora, e para sempre
graciosamente lhes concede a permissão de edificarem e manterem dentro dos seus domínios.
Contanto, porém, que as sobreditas igrejas e capelas sejam construídas de tal modo que
externamente se assemelhem a casas de habitação; e também que o uso dos sinos não lhes seja
permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do serviço divino”. Tratado de Aliança
e Amizade (1810), Portugal e Inglaterra, apud. REILY, Ducan Alexander. História documental do
protestantismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo: ASTE, 2003, p. 47.
30
A primeira Constituição do Império brasileiro (1824) reconhecia o direito de culto aos acatólicos
com as mesmas condições do acordo de 1810 entre Portugal e Inglaterra. A Constituição das
Províncias Unidas do Rio da Prata (1826), a chilena (1833) e a argentina (1853) também garantiam
tolerância religiosa aos súditos britânicos e o direito de enterrarem seus mortos em cemitério
próprio, uma vez que os cemitérios públicos eram administrados pela Igreja Católica. BASTIAN,
Jean-Pierre. Protestantismos y modernidad latinoamericana: historia de unas minorías religiosas
activas en America Latina. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1994.
31
Cronologia da inserção anglicana: Brasil (1819), Argentina (1824), Venezuela (1834), Chile
(1837), Uruguai (1840), Costa Rica (1848) e Peru (1849). Os luteranos se estabeleceram
posteriormente, por ordem, Venezuela (1834), Argentina (1845), Uruguai (1857), México (1861),
Chile (1867), Peru (1899), Bolívia (1923) e Guatemala (1929). GONZALEZ, Ondina E.,
GONZALEZ, Justo. L. Cristianismo na América Latina: uma história. Tradução: Valdemar
Kloker. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 277-295. Para a relação entre luteranismo e imigração
alemã consultar: DREHER, Martin N. Igreja e germanidade. 2ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal,
2003.
32
GONZALEZ; GONZALEZ, op. cit. p. 299.
33
No Paraguai, houve incentivo do governo à colonização menonita para povoar a região do
Chaco, que estava sendo disputada pela Bolívia. Durante o conflito, os menonitas se estabeleceram
nos dois países. GONZALEZ; GONZALEZ, op. cit., p. 299-304. Os menonitas eram parte do
movimento anabatista do século XVI. Ver: LINDBERG, Carter. As reformas na Europa.
Tradução: Luis Henrique Dreher e Luís Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal. 2001.
34

momentos: um migratório e outro missionário. No primeiro caso, presbiterianos,


metodistas, batistas e episcopais, dentre outros, criaram os primeiros templos,
escolas e vínculos com autoridades e redes liberais de apoio ou incentivo à
presença protestante. Embora nesta fase migratória também estivessem
preocupados com as demandas religiosas dos colonos, organizassem o culto em
inglês e não realizassem atividades proselitistas, prepararam as condições para o
segundo momento ao divulgar para o país e para a denominação de origem as
condições propícias às missões estrangeiras, a exemplo da garantia de tolerância
religiosa.34
Na fase missionária, ampliou-se a obra educacional com a fundação de
escolas americanas voltadas para a instrução das elites dos novos países, a criação
de uma rede de escolas anexas aos templos para a alfabetização e o ensino dos
filhos de fiéis, a difusão da Bíblia e da literatura religiosa em castelhano e
português. A cronologia da criação das denominações é muito próxima entre os
diferentes países. No Brasil estabeleceram-se congregacionais (1858),
presbiterianos (1862), metodistas (1869), batistas (1882), episcopais (1898). Os
presbiterianos se estabeleceram no mesmo período na Colômbia, os batistas foram
os mais tardios também na Argentina, que, entretanto, contou com uma presença
metodista mais precoce. Segundo Justo Gonzalez: ―Em meados do século XIX, a
obra missionária protestante estava presente em todos os países da América
Latina”(GONZÁLEZ, 2010, p. 310).
No Brasil, o missionário estrangeiro mais influente foi o médico escocês
Robert Kalley (1855-1876), que, acompanhado da sua companheira, a missionária
e musicista inglesa Sara Kalley (1825-1907), estabeleceu uma relação próxima ao
Imperador Dom Pedro II, intervindo a favor das primeiras comunidades
protestantes. Além de barganhar a ampliação dos direitos das novas comunidades
de fé, o casal Kalley ainda traduziu, compôs e compilou o hinárioSalmos e Hinos,
que foi usado pelos protestantes até as primeiras décadas do século XX.35

34
Exemplos significativos são os ―livros de viajantes‖ que faziam a propaganda do País para as
missões estrangeiras. O mais conhecido foi: FLETCHER, James Cooley; KIDDER, Daniel P.
Brazil and the Brazilians: portrayed in historical and descriptive sketches. 9ª ed. Boston: Little,
Brown, 1879. E também: KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências no
Brasil: Rio de Janeiro e Província de São Paulo. Tradução: Moacir N. Vasconcelos. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2001.
35
SOUZA, Ely Ricardo Freitas de. Da intolerância político-religiosa à tolerância: Robert Reid
Kalley (1855-1876).Rio de Janeiro: Edição do autor, 2007.
35

Embora os principais empreendimentos missionários tenham sido norte-


americanos, não basta considerar o quadro político e religioso do país emissário
das missões estrangeiras ou os interesses das agências missionárias. É preciso
também compreender a conjuntura interna dos países destinatários e, neste caso,
maçonaria, liberalismo e anticlericalismo formaram um conjunto propício à
inserção protestante, conforme observou Jean Pierre Bastian em sua análise sobre
os vínculos protestantes com o liberalismo:

A pesar de los lugares comunes repetidos a diestro y siniestro, la irrupción de


las sociedades protestantes en Latinoamérica, en una época de graves
confrontaciones entre el Estado liberal y la Iglesia Católica, no provino de
una invasión o de una conspiración de origen exógeno. Esas sociedades
surgieron de un movimiento social, de la fiebre asociativa que animaba a las
minorías liberales en el poder, dentro de una corriente táctica que buscaba el
debilitamiento de la Iglesia Católica. En ambos casos, las propias demandas
de los sectores liberales radicales explican la irrupción protestante y la
propagación de sus sociedades. Nada de ello debe atribuirse exclusivamente a
la voluntad misionera de las sociedades protestantes norteamericanas o
inglesas.36

Enquanto os setores mais tradicionais das elites locais e a Igreja Católica se


opunham ao liberalismo político e econômico que associavam negativamente à
imigração e expansão protestante, setores identificados com o projeto liberal do
capitalismo industrial entendiam que a promoção do protestantismo em seus
territórios, ou ao menos a concessão para a sua liberdade de atuação, poderia
contribuir na contraposição aos seus adversários políticos e na implantação do
modelo econômico que propunham.37 O momento de maior expansão do
protestantismo no continente coincide com a emergência de governos liberais ou
do crescimento de forças anticlericais influentes.38
O protestantismo em expansão na América Latina enfrentou dificuldades
para ser aceito pelo conjunto mais abrangente da sociedade como um novo

36
BASTIAN, Jean-Pierre. Protestantismos y modernidad latinoamericana: historia de unas
minorías religiosas activas en America Latina. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica,
1994, p. 103.
37
David Gueiros Vieira chamou a atenção para a colaboração da maçonaria e das redes literárias,
políticas e intelectuais do liberalismo na promoção do protestantismo no Brasil, relação que fez
parte do cenário de conflito entre a Igreja Católica e a Coroa quando da ―questão dos Bispos‖ nos
anos 1870. VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a questão religiosa no
Brasil. 2ª edição, Brasília: Editora UNB, 1980.
38
Jean Pierre Bastian destacou a colaboração entre liberais radicais e protestantes no México, que
resultou numa política anticlerical agressiva (1873) e se estendeu até a Revolução Mexicana em
1910: BASTIAN, Jean-Pierre.Los disidentes:sociedades protestantes y revolución in Mexico,
1872-1911. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1989.
36

elemento da cultura dos seus países. A oposição ao protestantismo se apresentou


muitas vezes como reação ao ―herege invasor‖ em nome da defesa da ―unidade
nacional‖ associada ao monopólio da fé que a Igreja Católica gozou durante a
colonização.39 Se por um lado houve um crescimento da hegemonia econômica e
política anglo-saxônica sobre o continente latino-americano na transição do século
XIX para o XX, o mesmo não aconteceu na religião e na cultura, muito mais
resistentes, sobretudo pelo papel da Igreja Católica nessas sociedades.40
O aumento de lideranças nacionais nas denominações protestantes latino-
americanas e a incidência de movimentos nacionalistas em seus países
provocaram conflitos entre as missões norte-americanas e as comunidades
protestantes do continente.41 Esses conflitos se manifestaram nas proposições de
autofinanciamento das missões nacionais, do controle nacional das estruturas
eclesiásticas e da contextualização do cristianismo às respectivas culturas –
criticando a vinculação entre a identidade evangélica e cultura anglo-saxônica –
que cindiram as denominações protestantes em comunidades independentes das
missões estrangeiras versus igrejas dependentes das missões financeira e
culturalmente, com predominância dessas últimas até os anos 1950.42
Associadaao problema da tutela do protestantismo nacional às missões
estrangeiras estava a questão da identidade cristã do continente latino-americano.
No começo do século XX, dois congressos missionários mundiais de
evangelização evidenciaram as disputas. Na Conferência Missionária Mundial de
Edimburgo (Escócia), em 1910, a América Latina foi considerada cristã, por conta
da presença católica desde o século XVI e, por isso, como não necessitada de

39
VIEIRA, op. cit., p. 209-212.
40
A religião foi um componente fundamental na elaboração do conceito de ―América Latina‖ nos
EUA e no discurso protestante, pois a modernidade, o individualismo, o trabalho, o progresso e a
democracia foram associados ao protestantismo, enquanto o catolicismo era identificado com o
Antigo Regime, o atraso, a pobreza, a falta de liberdade individual e a tirania política. Essa
alteridade assimétrica tornou-se comum nos estudos acadêmicos sobre a América Latina,
particularmente nas pesquisas dedicadas ao protestantismo, por autores que ―viram no crescimento
do protestantismo evangélico em Latin America uma cura para os males advindos do catolicismo‖,
dentre eles David Martin, Christian Smith, David Stoll e John Burdick. In: FERES JUNIOR. João,
A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p. 22.
41
“Em toda a América Latina, particularmente no México, Peru, Rio da Prata e no Brasil, o ideal
da nacionalização do evangelismo, de criar um ministério e uma igreja identificados com a vida
nacional, impulsiona o protestantismo”.In: BRAGA, Erasmo. Pan-americanismo:aspectos
religiosos. Nova Iorque: Sociedad para la Educación Misionera en los Estados Unidos y el Canadá,
1917, p. 38, 39.
42
GONZALEZ, Ondina E.; GONZALEZ, Justo. L. Cristianismo na América Latina: uma história.
Tradução: Valdemar Kloker. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 337-348.
37

missões que a evangelizassem com o objetivo de converter os católicos. Na


análise de Longuini Neto:

Tal atitude pode ser ―compreendida‖ considerando o objetivo principal da


conferência: o trabalho missionário em continentes considerados ―não-
cristãos‖, ou seja, África, Ásia e Oceania. A América Latina foi considerada
um continente cristão, levando em consideração a colonização católica. Esse
raciocínio predominava entre as agências missionárias europeias, mormente
nas alemãs, e o reconhecimento da América Latina como continente cristão
foi o preço exigido para a cooperação da Igreja da Inglaterra nas missões
mundiais.43

Missionários protestantes norte-americanos que atuavam na América Latina


se opuseram a esta decisão. Organizaram a Comissão de Cooperação na América
Latina (CCLA) e um novo congresso mundial de evangelização em 1916, no
Panamá. Legitimaram a evangelização da América Latina considerando-a pagã,
pois, de acordo com tais missionários, a Igreja Católica teria apostatado da
verdadeira fé cristã e falhado na evangelização dos povos do continente. Além
disso, enfatizavam as perseguições religiosas sofridas pelos protestantes no
continente e a proximidade com os EUA como menos prejudicial naquele
contexto do que com os antigos colonizadores europeus.44
A CCLA esteve à frente dos congressos de evangelização que aconteceram
no Uruguai (1925) e em Havana (1929), com crescente participação de lideranças
autônomas do protestantismo latino-americano, superando gradativamente as
lideranças norte-americanas. No último congresso, realizado em Havana, o tema
da Ação Social emergiu. Nas palavras de Luiz Longuini Neto:

Pode-se depreender disso que à medida que a igreja latino-americana foise


desprendendo do paternalismo norte-americano e, nesse caso específico, da
tutela da CCLA na condução dos congressos, as questões sociais começaram
a fazer parte da agenda.45

Cresciam no seio do protestantismo histórico as denominações nascidas de


movimentos independentes das missões estrangeiras. Tais movimentos autônomos

43
LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no
protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 87.
44
REILY, Ducan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo:
ASTE, 2003, p. 248-254.
45
LONGUINI NETO, op. cit., p. 104.
38

constituíram ―o rosto evangélico do protestantismo latino-americano”.46


Momentos de disputa entre as vertentes nacionalistas e dependentes foram as
Conferências Evangélicas Latino-Americanas (CELA), inicialmente organizadas
pela CCLA e depois, pelas lideranças latino-americanas do protestantismo.47 Foi a
partir das Conferências que o campo protestante se dividiu em três tendências:
fundamentalismo, evangelicalismo, ecumenismo.
A CELA I aconteceu na Argentina em 1949, com o tema O cristianismo
evangélico na América Latina. Defrontou-se com os conflitos ideológicos do pós-
guerra e tentou definir a identidade evangélica como não circunscrita ao
capitalismo ou ao socialismo. Foi recomendado que as denominações utilizassem
a expressão ―evangélica‖ para nomear suas igrejas locais. A CELA II foi a última
conferência organizada pela CCLA e ocorreu em Lima, no Peru, com o tema
Cristo, a esperança para a América Latina. As lideranças continentais assumiram
o controle das ações e das diretrizes missionárias. Uma expressão dessa nova
liderança foi o protagonismo assumido pela junta missionária Igreja e Sociedade
na América Latina (ISAL), formada a partir das Confederações Evangélicas de
Argentina, Chile, Uruguai e Brasil. Criada pouco antes da CELA II em Huampaní
(Peru) em 1961,ISAL era representativa da tendência ecumênica do
protestantismo histórico e hegemonizou o debate na conferência. A CELA III, em
1969 na Argentina, expressou a contribuição do setor ecumênico do
protestantismo a uma nascente proposta de teologia latino-americana que iria se
vincular aos movimentos de libertação no continente.48
Como alternativa a este setor, o evangelicalismo organizou o Congresso
Latino Americano de Evangelização (CLADE), em Bogotá (Colômbia), que por
sua vez criou uma alternativaao movimento de ISAL: a Fraternidade Teológica
Latino-americana (FTL).Este foi, portanto, o momento em que as tendências

46
BONINO, José Miguez. Os rostos do protestantismo latino-americano. São Leopoldo: Sinodal.
2002, p. 31-46.
47
Todas as informações sobre as CELAs apresentadas a seguir foram consultadas nos livros:
PRIEN, Hans Jürgen. La historia del cristianismo en America Latina. Salamanca: Ediciones
Sígueme; São Leopoldo: Editora Sinodal, 1985, p. 888-898; BASTIAN, Jean-Pierre.
Protestantismos y modernidad latinoamericana: historia de unas minorías religiosas activas en
America Latina. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1994, p. 206-207, 234;
LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no
protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p.109-128.
48
Os documentos das Conferências Evangélicas Latino-americanas (CELA) podem ser
encontrados em: LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e
evangelical no protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 109-128.
39

ecumênica e evangelical se bifurcaram em âmbito continental, não obstante


apresentarem divergências mundiais e regionais anteriores. Dessa forma, é
possível resumir a trajetória das duas tendências da teologia latino-americana no
protestantismo a partir da tabela abaixo:

Tabela 1 – Tendências do protestantismo latino-americano


Setor Protestante Evento Mundial Evento Organizadora do
Continental Evento Continental
Ecumênico Conferência - Cela I (1949) - CCLA (1949)
Missionária Mundial de - Cela II (1961) - CCLA (1961)
Edimburgo (Escócia) - Cela III (1969) - ISAL (1969)
em 1910.

Evangelical Congresso Mundial de - Clade I (1969) - Associação


Evangelização - Clade II (1979) Evangelística Billy
(Panamá) em 1916. - Clade III (1992) Graham (1969)
- FTL (1979)
- FTL (1992)

Com a repressão do Protestantismo Ecumênico pelas cúpulas eclesiásticas


conservadoras e pelas ditaduras militares dos anos 1960-1970, não houve
continuidade à CELA III. O ecumenismo se rearticularia nas décadas seguintes
através de outros eventos, entidades e estratégias. Por outro lado, o
evangelicalismo deu continuidade ao CLADE, aprofundando a ênfase
evangelística e assumindo a agenda de contextualização do protestantismo às
culturas latino-americanas. Era a afirmação de uma tendência intermediária,
diante da divisão do protestantismo histórico de origem missionária norte-
americana numa ala fundamentalista e outra ecumênica.

A responsabilidade social e a cooperação eclesiástica

O movimento ecumênico mundial forneceu respaldo teórico e institucional


para os movimentos de renovação do protestantismo latino-americano. As
conferências ecumênicas de Estocolmo (1925) e Lausanne (1927) deram origem
respectivamente aos movimentos ―Vida e Ação‖ e ―Fé e Constituição‖ – o
primeiro mais preocupado com a prática religiosa e a relação dos cristãos com as
crises sociais e políticas; o segundo enfatizando a necessidade de unidade diante
das divergências doutrinárias e das tensões entre os empreendimentos
missionários e as culturas evangelizadas. As conferências de Oxford (Vida e
Ação) e de Edimburgo (Fé e Constituição), ambas em 1937, convergiram para a
40

formação de uma comissão conjunta dos dois movimentos, visando a implantação


de um conselho de igrejas com alcance internacional.49
O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) surgiu na primeira assembleia
organizada pela comissão conjunta dos movimentos ecumênicos Vida e Ação e Fé
e Constituição ocorrida na cidade holandesa de Amsterdã, em 1948.
Estaassembleia contou com a participação de 351 delegados de 147 igrejas,
procedentes de 44 países, representando, naquele momento, praticamente todos os
ramos cristãos não católicos.50 Definiu-se como um conselho formado por igrejas
nacionais através de seus delegados eleitos. Suas finalidades foram desenvolvidas
num encontro do Comitê Central da entidade em Toronto (1950). O documento A
Igreja, as igrejas e o Conselho Mundial de Igrejas, conhecido como Declaração
de Toronto, apresentou, além das bases de fé, uma série de negativas sobre o CMI
que expressavam as dificuldades enfrentadas para agregar a diversidade do mundo
cristão não católico:

(1) o CMI não é e nunca deve tornar-se uma super-igreja; (2) o objetivo do
CMI não é negociar uniões entre igrejas, o que só pode ser feito por elas
mesmas, agindo por iniciativa própria; (3) o CMI não pode e não deve
basear-se em nenhum conceito particular de igreja; ele não prejulga o
problema eclesiológico; (4) a filiação ao CMI não supõe que uma igreja trata
suas próprias concepções eclesiológicas como meramente relativas; (5) filiar-
se ao CMI não implica em aceitar uma doutrina específica referente à
natureza da unidade da igreja.51

Uma das primeiras publicações do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) foi a


Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
(ONU), também criada em 1948.Como orientação para conciliar a participação de
igrejas dos dois blocos em conflito na Guerra Fria, o CMI formulou o conceito de
―sociedade responsável‖, que deveria ser um posicionamento ético em relação às
sociedades capitalistas e comunistas, unindo justiça social e liberdades
individuais, incluindo a liberdade religiosa, sem constituir-se como um modelo de

49
Pode-se consultar o verbete World Council of Churches (WCC), escrito por Wilbert R.Shenk
para: HILLERBRAND, Hans. Joachim (Editor). The encyclopedia of protestantism. Nova Iorque e
Londres: Routledge, 2005. p. 821-866.
50
Sua primeira base de fé para as igrejas filiadas foi a declaração “O Conselho Mundial de Igrejas
é uma comunhão de igrejas que aceitam nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Senhor”. Para
uma descrição pormenorizada da criação do CMI por um dos seus protagonistas, ver: HOOFT,
W.A.Visser‘t. The genesis and formation of the World Council of Churches. Genebra, Suíça: WCC
Publications, 1982.
51
LOSSKY, Nicholas. Dicionário do movimento ecumênico. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 330.
41

sociedade cristã ou apresentar-se como uma terceira via entre capitalismo e


comunismo.52
O conceito de ―sociedade responsável‖ foi proposto em Amsterdã,se
consolidou como diretriz política na II Assembleia em Evanston (Suíça) no ano de
1954 e se tornou paradigmático na reflexão do Protestantismo Ecumênico. O
documento de Evanston afirmava:

Sociedade Responsável não é um sistema político-social entre outros, e sim


um critério, por meio do qual julgamos todas as ordens sociais existentes e,
ao mesmo tempo, uma norma para guiar-nos nas decisões específicas que
teremos de tomar. Os cristãos estão sendo chamados a viver
responsavelmente, a viver respondendo ao ato redentor de Deus em Cristo,
qualquer que seja a sociedade em que vivam, mesmo dentro de estruturas
sociais mais desfavoráveis.53

Tributário do conceito de Sociedade Responsável como mediação para


pensar a relação dos cristãos com os problemas sociais, formou-se o movimento
de Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL). As confederações evangélicas
nacionais possuíam Departamentos de Responsabilidade Social das Igrejas
(DRSI). A partir das confederações evangélicas da Argentina, do Chile, do
Uruguai e do Brasil,se formou em Huampaní, no Peru (1961) uma junta
missionária continental que estabeleceria vínculos com o Conselho Mundial de
Igrejas.
A Confederação Evangélica do Brasil (CEB), que contribuiu para a
formação domovimento de ISAL, foi criada em 1934 para representar os
interesses evangélicos frente à influência católica no governo de Getúlio Vargas e
para atividades conjuntas no campo da evangelização e da educação religiosa das
igrejas. Depois da II Assembleia do CMI em Evanston, criou seu Departamento
de Responsabilidade Social da Igreja que realizou, entre 1956 e 1962, quatro
conferências nacionais para analisar numa perspectiva cristã a ―realidade
brasileira‖. A CEB se tornou, ao longo das décadas de 1950 e 1960, um fórum de

52
FEY, Harold E. A History of the Ecumenical Movement,1948–1968. Vol. 2. Filadélfia:
Westminster Press, 1970.
53
Apud BURITY, Joanildo. Fé na revolução: protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro
(1961-1964). Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011, p. 121.
42

articulação e reflexão sobre o compromisso social dos cristãos e das igrejas com a
transformação da sociedade à luz dos princípios evangélicos.54
A juventude evangélica participava ativamente dos movimentos de
renovação das igrejas e possuía suas próprias organizações, como sociedades
internas nas igrejas (mocidade, juventude, etc.), grupos missionários ou de estudos
bíblicos. No Brasil, a mais importante para o ecumenismo protestante foi a União
Cristã de Estudantes do Brasil (UCEB) que agregava os diferentes núcleos das
Associações Cristãs de Acadêmicos (ACA). A UCEB era filiada em nível
continental à União Latino-americana da Juventude Evangélica (ULAJE) e
internacionalmente à Federação Universal de Movimentos Estudantis Cristãos
(FUMEC).55 Os eventos e publicações da juventude evangélica, como o Jornal da
Mocidade (presbiteriana) e a revista Cruz de Malta (metodista), foram
fundamentais para o aprofundamento do paradigma de responsabilidade social no
protestantismo brasileiro.
Os jovens que participavam das sociedades internas das igrejas do
protestantismo histórico destinadas à mocidade, e também os filiados à ACA e à
UCEB, foram os mais engajados no Departamento de Responsabilidade Social da
Igreja (DRSI), posteriormente Departamento de Igreja e Sociedade. Isso provocou
atritos com os pastores e as lideranças mais antigas da CEB. Analisando o
Protestantismo Ecumênico das décadas de 1950 e 1960, Elizete da Silva destacou
o protagonismo da juventude, o conflito de gerações nas igrejas e em órgãos
denominacionais e a influência da conjuntura histórica:

Os jovens protestantes estavam atentos às transformações que aconteciam no


cenário internacional e nas suas reflexões e ações demandavam reformas,

54
Sobre as mudanças no perfil da Confederação Evangélica do Brasil ver: GÓES, Paulo. Do
individualismo ao compromisso social: a contribuição da Confederação Evangélica do Brasil para
a articulação de uma ética social cristã. Dissertação (Mestrado) Instituto Metodista de Ensino
Superior, São Bernardo do Campo, 1985.
55
―A União de Estudantes para o Trabalho de Cristo foi organizada em 1926, com estudantes
secundaristas. Os grupos se reuniam nos grêmios estudantis, principalmente de colégios
evangélicos, e realizavam anualmente um congresso. Estabelecendo contatos com a FUMEC
[Federação Universal de Estudantes Cristãos], este trabalho fortaleceu seus objetivos missionários
e se expandiu. Em 1940, adotou o nome de União Cristã de Estudantes do Brasil (UCEB),
filiando-se oficialmente à Federação em 1942. O trabalho com estudantes universitários só foi
organizado em 1940, com o nome de Associação Cristã de Acadêmicos (ACA)‖. QUADROS,
Eduardo Gusmão de. Evangélicos e mundo estudantil: uma história da Aliança Bíblica
Universitária do Brasil (1957-1987). Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011, p. 29-30.
43

mudanças nos velhos quadros mentais e doutrinários da hierarquia religiosa


de suas respectivas denominações e organismos cooperativos. 56

As principais referências do protestantismo brasileiro continuavam


tributárias da herança das missões norte-americanas que fundaram o
denominacionalismo protestante no País. Rubem Alves (1933-2014), que estudou
no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, escreveu:

Com exceção de alguns indivíduos isolados, que liam por conta própria, e
pagaram caro por isso, nada se sabia, por exemplo de Barth, Brunner e
Bultman até a década de 1950. Não estou me referindo ao conhecimento dos
leigos. Refiro-me aos seminários que preferiam uma teologia metafísica que
iniciava seus textos com as provas da existência de Deus. Kant ainda não
havia nascido.57

O quadro começou a mudar significativamente com a chegada do


missionário Richard Shaull (1919-2002), em 1952, que além de ensinar no
Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, colaborou com os movimentos de
juventude, os grupos de estudo bíblico e as publicações do protestantismo,
divulgando autores e correntes teológicas até então pouco acessíveis, por serem
consideradas ―modernistas‖58 pela ala conservadora que dirigia as igrejas e
seminários teológicos e por não terem, na maioria das vezes, tradução em
português.59

Richard Shaull e o Protestantismo Ecumênico

A participação do teólogo Richard Shaull (1919-2002) foi um elemento


importante nas transformações do protestantismo histórico nas décadas de 1950 e
1960.60 Formado no seminário de Princeton, atuou como missionário

56
SILVA, Elizete da. Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira. Feira de Santana: UEFS
Editora, 2010, P. 71.
57
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 135.
58
No discurso dos fundamentalistas, o ―modernismo‖ era uma referência tanto a teologias e
doutrinas consideradas heterodoxas quanto a comportamentos ―mundanos‖, não cristãos ou
desviantes. Os dois aspectos estavam relacionados, entendendo-se que a heterodoxia implicava um
mal testemunho de vida.
59
Em contato com a biblioteca do Rev. João Dias de Araújo, colega de Rubem Alves e ex-aluno de
Richad Shaull no Seminário Presbiteriano de Campinas, pude verificar que todos os autores acima
citados estavam em inglês ou espanhol.
60
Sobre a importância de Richard Shaull para a teologia latino-americana e brasileira: FARIA,
Eduardo Galasso. Fé e compromisso: Richard Shaull e a teologia no Brasil. São Paulo: ASTE,
44

presbiteriano na Colômbia de onde foi expulso a pedido das autoridades católicas


do país.61 Chegou ao Brasil em 1952 e logo passou a colaborar com o movimento
estudantil evangélico, publicando pela UCEB o livro OCristianismo e a revolução
social (1953), que tratava da expansão do comunismo como um desafio ético ao
cristianismo.62
Os livros de Richard Shaull publicados no primeiro período em que esteve
no Brasil foram: O cristianismo e a revolução social (1953), Alternativa ao
desespero (1962), As transformações profundas à luz de uma teologia evangélica
(1966), nos quais relacionava a fé cristã e a herança da Reforma Protestante com
os principais temas do seu tempo, como os movimentos revolucionários na
América Latina, a luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos, a
revolução cultural, o avanço do comunismo, as lutas de libertação nacional, as
transformações da Igreja Católica pós-Concílio Vaticano II (1962) e as correntes
filosóficas existencialistas e humanistas. Porém, seus textos mais influentes, por
serem mais acessíveis e difundidos, foram os artigos nos periódicos da juventude
protestante Cruz de Malta63 e Mocidade, e nas revistas do movimento ecumênico,
como a publicação oficial do ISAL Cristianismo y Sociedad. Como observou
Arnaldo Huff Jr.:

Diversos artigos e palestras foram publicados e veiculados tanto em


periódicos como Cristianismo y Sociedad e Theology Today, como em
materiais de estudo e preparação para conferências da UCEB, da FUMEC e
do SRSI. A partir de tais textos é possível perceber, na reconstrução de sua
perspectiva teológica, uma série de deslocamentos de sentido produzidos no
debate nestes fóruns, sentidos estes que o conduziram a pensar
teologicamente a revolução da maneira que o fez na Conferência de Genebra,
em 1966.64

2002; HUFF JUNIOR, Arnaldo Érico. Um protestantismo protestante: Richard Shaull, missão e
revolução. Tese (Doutorado em História Social) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2012.
61
Sobre suas experiências na Colômbia, pode-se consultar sua autobiografia: SHAULL, Richard.
Surpreendido pela graça: memórias de um teólogo: Estados Unidos, América Latina, Brasil. São
Paulo: Editora Record, 2003.
62
Arnaldo Huff Jr. escreveu um perfil biográfico de Richard Shaull para a editora Novos Diálogos:
HUFF JÚNIOR, Arnaldo Érico. Richard Shaull: uma teologia para a revolução. Rio de Janeiro:
Novos Diálogos, 2013. (Coleção Perfis Protestantes).
63
Elizete da Silva cita alguns artigos de Richard Shaull na revista Cruz de Malta: ―O cristão na
esquerda‖, ―O cristão no momento revolucionário de hoje‖, ―O que é mesmo que Cristo pode fazer
por nós?‖ Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira. Feira de Santana: UEFS Editora
2010, p. 90.
64
HUFF JUNIOR, Arnaldo Érico. Um protestantismo protestante: Richard Shaull, missão e
revolução. Tese (Doutorado em História Social) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2012, P. 204.
45

O texto Somos uma comunidade missionária, escrito como um roteiro de


oito estudos para o IV Congresso da Mocidade Presbiteriana em 1956, na cidade
de Salvador, apresentava a proposta de uma nova eclesiologia, um modo de ser
igreja que respondesse aos desafios contemporâneos, sugerindo que: “Para
cumprir a sua missão, a igreja tem de fazer o que Cristo fez: entrar na vida do ser
humano e do mundo. Somos enviados ao mundo; somos chamados a dar
testemunho de Cristo entre as pessoas‖.65 Desafiava a Mocidade a não ser apenas
uma sociedade interna da igreja66, mas sua vanguarda no mundo “para tornar
visível o que Jesus realizou e realiza por intermédio de nossas ações de amor e
serviço” o que significava ―penetrar nas estruturas básicas da sociedade e lutar
por sua transformação‖, atuando junto aos operários, aos estudantes e na política,
a partir dos princípios de justiça social presentes na tradição religiosa.67
O missionário dialogava com as principais teologias críticas europeias e
norte-americanas, contribuindo decisivamente para a difusão delas no pensamento
teológico brasileiro. Tanto a bibliografia quanto as entrevistas e depoimentos com
protestantes ecumênicos que atuaram no período analisado destacam basicamente
as mesmas referências teológicas europeias, principalmente a partir da docência
do Richard Shaull no Seminário Presbiteriano de Campinas e nos movimentos da
juventude evangélica.68Algumas merecem ser apresentadas resumidamente para
dar inteligibilidade às iniciativas dos setores com os quais o missionário
colaborou.

65
SHAULL, Richard. Somos uma comunidade missionária: oito estudos de preparação para o
testemunho. São Paulo: Imprensa Metodista, 1957, p. 10. Foi utilizado por outros grupos de estudo
da juventude protestante ecumênica e publicado na imprensa metodista.
66
―É preciso fazer um parêntese e recordar como era a vida e o programa da juventude evangélica
nesse período. Em geral os moços e moças se propunham a fugir do mundo, criando seu mundo de
relações sociais exclusivo, sentindo-se seguros apenas quando estavam dentro dos templos e salões
sociais. Além de momentos devocionais semelhantes aos cultos formais das igrejas, realizavam o
encontro social dos sábados à noite, jogando pingue-pongue, comendo bolo e tomando refresco.
Sentiam-se abençoados por Deus quando podiam encontrar uma namorada ou um namorado crente
para ter um casamento feliz‖. FARIA, Eduardo Galasso. Fé e compromisso: Richard Shaull e a
teologia no Brasil. São Paulo: ASTE, 2002, p. 98.
67
Além da publicação da época pela imprensa metodista, há um resumo dos oito estudos, feito por
Richard Shaull em sua autobiografia: SHAULL, Richard. Surpreendido pela graça: memórias de
um teólogo: Estados Unidos, América Latina, Brasil. São Paulo: Editora Record, 2003, p. 102-104.
68
Um exemplo significativo do reconhecimento dessa influência foi a coletânea de textos do
teólogo entre os anos 1950 e 1960, acrescida de depoimentos de protestantes ecumênicos, alguns
ex-alunos de Shaull: SHAUL, Richard. De dentro do furacão: Richard Shaull e os primórdios da
Teologia da Libertação. Organizado por Rubem Alves. São Paulo: Editora Sagarana, CEDI, CLAI,
Programa Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1985.
46

A mais destacada apropriação do Protestantismo Ecumênico foi a ―neo-


ortodoxia‖ que, assim como o fundamentalismo, se contrapôs à Teologia Liberal,
porém não pelos mesmos motivos e nem com as mesmas implicações.69 Seu
principal expoente foi o teólogo suíço Karl Barth (1886-1968), de tradição
reformada.70 O comentário de Karl Barth à Epístola aos Romanos foi um divisor
de águas na teologia protestante do século XX. Originalmente publicado em 1919,
foi a partir da segunda edição do livro em 1922, amplamente revista pelo autor,
que seu pensamento se impôs no cenário intelectual da teologia europeia. Em
Carta aos Romanos,Karl Barth escreveu: ―Na Ressurreição, o mundo novo do
Espírito Santo toca o velho mundo carnal qual tangente roçando o círculo, não o
tocando, mas tangenciando apenas; chega ao ponto de tangência como o
limiteentre os dois mundos”.71 Influenciado por Rudolf Otto (1869-1937), Karl
Barth se referiu a Deus como ―o totalmente outro‖, inacessível ao esforço próprio
do homem e só conhecido pela iniciativa divina de revelar-se. A revelação era um
―não radical‖ às tentativas do homem em conhecê-lo ou defini-lo por si mesmo e,
por isso, era a condição para a fé, pois ―exatamente porque o NÃO de Deus é
total, ele é também o divino SIM!‖.72 Em outras palavras:

É pela sua fidelidade que Deus, como o total outro, o Santo, com seu
inevitável NÃO, veio ao nosso encontro, em nosso encalço. A fé, pela parte
do homem é a adoração que este NÃO divino aceita; a fé é a fonte que
promove no homem a vontade de esvaziar-se; a fé é a comovida persistência
na negação. Onde a fidelidade de Deus encontra essa fé, aí se revela a sua
73
justiça. E o justo viverá!

No campo da ética, rejeitava-se a identificação do Reino de Deus com


qualquer projeto de sociedade, afirmando a impossibilidade da realização de uma
ordem social cristã. Tal perspectiva levou Karl Barth a romper, no final da
primeira guerra mundial, com o movimento Socialismo Religioso, com o qual

69
A Teologia Liberal ―Ligava-se a elementos liberais presentes nas estruturas sociais e políticas;
ao pensamento autônomo das ciências e à rejeição de qualquer autoridade. Compatível com o
espírito personalista liberal da época, essa teologia não conseguiu se impor no século vinte.‖
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. 2ª Ed. Trad. Jaci
Maraschin. São Paulo: ASTE, 1999, p. 224.
70
Alguns trabalhos sobre o protestantismo usam o termo ―reformados‖ para se referir ao conjunto
dos protestantes. Evitei este uso generalizado porque a expressão é reivindicada pelas igrejas
calvinistas na Europa e, no Brasil, particularmente pelos presbiterianos, o que poderia provocar
confusão conceitual quando da aparição do termo associado a estes grupos específicos.
71
BARTH, Karl. Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 30.
72
BARTH, Karl. Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 43.
73
BARTH, Karl. Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 48.
47

esteve ligado no começo da sua trajetória pastoral, por entender que o mesmo
começava a reduzir o Reino de Deus à realização das promessas do socialismo.
Isso não o impediu de continuar demonstrando solidariedade aos movimentos
operários e se opor ao nazismo na Alemanha a partir da ascensão de Hitler ao
poder em 1933. A repercussão do pensamento barthiano pôde ser percebida no
surgimento do movimento da Igreja Confessante (1934), que rompeu com a Igreja
Luterana na Alemanha, legitimadora do regime nazista. Repercutiu ainda no
documento da Conferência de Oxford do movimento Vida e Ação em 1937.74
Também ligada à Igreja Confessante na Alemanha, outra referência que se
tornou cara ao Protestantismo Ecumênico foi a do pastor luterano Dietrich
Bonhoeffer (1906-1945), tanto pelo seu pensamento e escritos quanto por sua
morte no campo de concentração. Dietrich Bonhoeffer criticou desde o início o
apoio da Igreja Luterana à política antissemita do Estado e o segmento majoritário
da igreja autodenominado ―cristãos alemães‖ por associar as ideias nazistas às
doutrinas cristãs.75 Recusou-se a fazer o juramento de fidelidade ao Führer, pelo
que foi proibido de pregar e publicar. Em 1934, participou da redação do
manifesto da Igreja Confessante e deu início às atividades do seminário
clandestino do movimento em Finkenwald (1934-37). Depois de um período nos
Estados Unidos, onde poderia ter permanecido em segurança, decidiu retornar à
Alemanha em 1939, quando foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial. Ao voltar,
ingressou em um dos movimentos conspiratórios para assassinar o ditador, pelo
qual foi preso em 1942 e assassinado em 1945, no campo de concentração em
Buchenwald a pedido do próprio Hitler mesmo após consumada a derrota alemã
na guerra.
Na prisão, Dietrich Bonhoeffer escreveu muitas cartas a familiares e ao
amigo Eberhard Bethge (1909-2000), ex-aluno do seminário de Finkenwald e
responsável pela publicação de suas obras póstumas, a exemplo das cartas da

74
No contexto da segunda guerra mundial, Karl Barth foi o principal interlocutor teológico do
movimento da Igreja Confessante com o movimento ecumênico, participando da redação do seu
principal manifesto, a Declaração de Barmen (1934),e do movimento de Vida e Ação, também
contribuindo com a redação da Declaração de Oxford (1937). Ver: CORNU, Daniel. Karl Barth:
teólogo da liberdade. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1971.
75
Todas as referências sobre a trajetória de Dietrich Bonhoeffer foram retiradas da biografia:
METAXAS, Eric. Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta, espião. Tradução: Daniel Faria. São Paulo:
Mundo Cristão, 2011. Há uma cinebiografia intitulada Bonhoeffer: o agente da graça (1999),
lançada no Brasil pela COMEV (Comunicações Evangélicas).
48

prisão com o título Resistência e submissão.76Nesta obra, há o que certamente se


tornou uma das ideias mais conhecidas e de apropriações mais controversas do
autor: o cristianismo sem religião:

As questões que exigem resposta seriam: que significado tem uma igreja,
uma comunidade, um sermão, uma liturgia, uma vida cristã num mundo sem
religião? Como falaremos de Deussem religião, isto é, sem o pressuposto
condicionado pelo tempo da metafísica, da interioridade, etc. Como
falaremos (ou talvez nem mais se possa ―falar‖ como até então) de maneira
―profana‖ sobre ―Deus‖, como seremos cristãos ―profanos-a-religiosos‖,
como somos eclésia, selecionados, sem que nos possamos entender como
preferidos, mas, ao contrário, como inteiramente pertencentes ao mundo?
Cristo, assim já não é mais objeto de religião, mas algo bem diferente, pois
77
verdadeiramente Senhor do mundo. Mas o que isso quer dizer?

A morte de Dietrich Bonhoeffer foi interpretada pelos protestantes


ecumênicos como um martírio decorrente do seu compromisso com a justiça em
nome do evangelho, e sua reflexão sobre um ―cristianismo sem religião‖ abria
possibilidades de engajamento em movimentos de transformação social como
uma transfiguração secularizada dos valores cristãos. Eram apropriações criativas
em um contexto próprio e não alguma importação inautêntica ou imprecisão
conceitual. Eram novos modos de ser cristão e de ser igreja diante dos desafios da
contemporaneidade, assimilados pelo Protestantismo Ecumênico como o principal
legado do pastor luterano.78
Para não ser exaustivo na apresentação de autores que serviram de
referência para Richard Shaull e os protestantes ecumênicos, o último a ser
apresentado será Paul Tillich (1886-1965).79 Teólogo luterano, Tillich participou

76
BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão. Tradução: Ernesto J. Bernhoeft. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Paz & Terra, 1980.
77
BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão. Tradução: Ernesto J. Bernhoeft. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Paz & Terra, 1980, p. 181.
78
Dietrich Bonhoeffer escreveu: ―Afinal, existem soluções cristãs para problemas seculares? A
questão é, evidentemente, o que se pretende: se se pensa que o cristianismo tem resposta para
todos os problemas sociais e políticos do mundo, isso certamente é um equívoco. Se se pensa que
da parte do cristianismo, há algo de específico a dizer em relação às coisas do mundo, então está
correto. A ideia de que a igreja dispõe, em princípio, de uma solução cristã para todos os
problemas mundanos e que apenas não se deu o devido trabalho para isso está especialmente
difundida no pensamento anglo-saxão‖. BONHOEFFER, Dietrich. Ética. Trad. Halberto Michel.
10ª edição. São Leopoldo: Sinodal, 2013, p. 225. [Grifos do autor]. Como a maioria das suas
obras, foi publicada postumamente, em 1949.
79
Outras referências importantes para os protestantes ecumênicos até o final dos anos 1950 foram:
Emil Brunner (1889-1966) e Rudolf Bultmann (1884-1976). O primeiro é, depois de Karl Barth, o
mais importante teólogo da neo-ortodoxia e suas contribuições mais assimiladas pelo
Protestantismo Ecumênico foram no campo da eclesiologia, na relação da igreja com os demais
elementos da fé e com o mundo secular. O segundo se destacou no campo da hermenêutica bíblica,
49

na Alemanha do movimento Socialismo Religioso, que tentava responder


teologicamente à ―situação proletária‖, desde as condições de vida dos
trabalhadores aos movimentos operários, passando pela presença da ideologia
socialista nesses movimentos. Foi capelão voluntário na Primeira Guerra Mundial,
pastor e professor de Teologia até a ascensão do regime nazista que o proibiu de
exercer suas funções (1933). Mudou para os EUA logo em seguida, onde viveu
até o final da vida, publicando suas obras, exercendo a docência nas universidades
e tornando-se cidadão norte-americano.80
Paul Tillich definia seu pensamento como uma ―Teologia da Fronteira‖
construída a partir do ―método da correlação‖ entre: a Filosofia e a Teologia, a
religião e a cultura, a ortodoxia e o liberalismo, a revelação e a história, a
imanência e a transcendência. Fez análises teológicas de ideologias, filosofias e
estéticas contemporâneas, como o socialismo, o existencialismo e o surrealismo,
levando-o a produzir uma ―Teologia da Cultura‖, presente num livro homônimo e
na obraTeologia Sistemática. Um conceito tillichiano que se tornou importante
para o pensamento de Richard Shaull e para o Protestantismo Ecumênico foi o de
―princípio protestante‖, explicado pelo autor com as seguintes palavras:

Esse nome ―princípio protestante‖, vem do protesto dos ―protestantes‖ contra


as decisões da maioria católica. Contém o protesto divino e humano contra
qualquer reivindicação absoluta feita por realidades relativas, incluindo
mesmo qualquer igreja protestante. O princípio protestante é o juiz de
qualquer realidade religiosa e cultural, incluindo a religião e a cultura que se
chamem ―protestantes‖.81
Uma iconoclastia radical que seria inerente ao ―modo de ser protestante‖ e
que confrontaria as ―formas de existir do protestantismo‖, além de outras ―formas
culturais‖ do cristianismo ou de ―realidades relativas‖ que se reivindicam
absolutas, mesmo no campo secular. Certamente um conceito propício às
iniciativas dos ecumênicos de transformação da igreja. Os presbiterianos, de
tradição teológica reformada, associavam o ―princípio protestante‖ com um dos

propondo a ―demitologização‖, que consistia numa leitura crítica da construção mítica dos textos
com o propósito de legitimar uma apropriação das narrativas para o viver cristão no mundo, sem
tomar o conteúdo dos textos como fatos ou verdades prescritivas.
80
Notas biográficas de Paul Tillich nas edições brasileiras dos seus livros: A era protestante
(1992), Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX (1999) e História do
pensamento cristão (2000). Todos publicados pela editora da Associação de Seminários
Teológicos Evangélicos (ASTE).
81
TILLICH, Paul. A Era Protestante. São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992, p. 182-
183.O livro foi publicado originalmente em inglês em 1948 pela editora da Universidade de
Chicago com o título The protestant era.
50

lemas da reforma calvinista: Eclesia Reformata et Semper Reformanda Est (A


igreja reformada sempre se reformando).Jovens leigos e seminaristas evangélicos
começavam a tomar conhecimento de novas referências teológicas que
contribuíram para uma crítica à herança religiosa recebida, para o envolvimento
em diálogos ecumênicos com setores da Igreja Católica e para a discussão sobre
os problemas sociais.

Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL): autonomia e revolução

As transformações sociais e políticas da sociedade brasileira impactaram as


igrejas na mesma proporção em que os crentes se lançavam ao mundo com novas
ferramentas intelectuais. Em 1962, a Confederação Evangélica do Brasil realizou
em Recife sua quarta e última conferência nacional com o tema ―Cristo e o
processo revolucionário brasileiro‖. A Conferência do Nordeste, como ficou
conhecida, aconteceu durante o Governo de João Goulart (1961-1964) e contou
com a presença das principais lideranças ecumênicas do protestantismo, ligadas à
UCEB e ao movimento de ISAL, com observadores católicos e intelectuais
convidados, dentre eles Celso Furtado (1920-2004), então na Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), Gilberto Freyre (1900-1987) e Paul
Singer (1932-). Foram 167 delegados de 17 Estados, representando 14
denominações protestantes e delegados de 5 igrejas de outros países, como:
Estados Unidos, México e Uruguai.82
O Protestantismo Ecumênico buscava estabelecer um diálogo com a
intelectualidade brasileira visando compreender o que naquele momento se
apresentava como um processo revolucionário. A revolução, para os diferentes
alinhamentos políticos da época, tornava-se uma promessa ou uma ameaça
crescente e, mais do que a discussão sobre se ela ocorreria ou não, parecia urgente
tomá-la nas mãos e dar-lhe o caráter desejado. Os protestantes também falavam de
revolução. Como Joanildo Burity salientou, não é surpreendente que eles falassem
sobre o tema, tão impregnado na atmosfera política e cultural da época, mas que

82
Para a leitura dos documentos produzidos pela Conferência do Nordeste e as palestras proferidas
no evento ver: CÉSAR, Waldo [et. ali.]. Cristo e o processo revolucionário brasileiro: a
Conferência do Nordeste. 2 volumes. Rio de Janeiro: Lóqui, 1962.
51

tal tema fosse falado pelos protestantes, até então historicamente recalcitrantes ao
engajamento político.83
As ligações da CEB e do Protestantismo Ecumênico com a política eram
conflituosas. Conflitos alimentados pela Guerra Fria, definitivamente incorporada
ao cenário brasileiro no início da década de 1960. Eleito vice-presidente pelo
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), João Goulart (1918-1976), também
conhecido como Jango, assumiu o cargo depois que o presidente Jânio Quadros
(1917-1992), eleito pela União Democrática Nacional (UDN), renunciou ao
mandato em 1961.84 Jango pertencia à ala esquerda do trabalhismo e era
considerado pelos seus opositores como representante do populismo e herdeiro
político de Getúlio Vargas (1882-1954)o, de quem fora Ministro do Trabalho.85 A
principal plataforma do seu governo, sustentado pela aliança PTB-PSD com o
apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), eram as reformas de base,
principalmente a Reforma Agrária e a defesa da soberania nacional, com a
manutenção de uma política externa independente e limitação da remessa de
lucros das empresas estrangeiras, medidas apoiadas pela União Nacional dos
Estudantes (UNE) e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).86
A CEB, a exemplo da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), apresentou-se favorável às reformas de base, mas durante a
radicalização dos conflitos entre os movimentos de apoio e oposição ao governo,
ambas se afastaram de sua órbita política. Grimaldo Zachariadhes, historiador do
catolicismo na Bahia durante a ditadura, explicou que:

No início da década de 60, com o agravamento da crise política, os católicos


dividiram-se, grosso modo, entre uma parcela que lutava pelas Reformas de

83
BURITY, Joanildo. Fé na revolução: protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro
(1961-1964). Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011, p. 13.
84
Os militares tentaram impedir sua posse em 1961, garantida após a campanha da legalidade, mas
com poderes limitados por um acordo que instituía o parlamentarismo. Um plebiscito no ano
seguinte restaurou o presidencialismo e deu a Jango plenos poderes de Presidente da República.
Ver: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 10ª. Edição.
São Paulo: Paz & Terra, 1996.
85
Sobre o populismo: IANNI, Octávio. O populismo na América Latina. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1975; WELFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de
Janeiro: Paz & Terra, 1980; FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Para entender o trabalhismo: GOMES, Ângela de
Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2005.
86
A principal referência sobre o período neste trabalho é: BANDEIRA, Muniz. O Governo João
Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1977.
52

Base e que queria transformações profundas no país, e outra que defendia o


status quo e tinha medo do perigo comunista (fosse real ou não).87

O posicionamento das lideranças do Protestantismo Ecumênico nas eleições


de 1962 ajuda a compreender a polarização política do período e a inserção dos
religiosos no processo. Rodolfo Anders e João Dias de Araújo (1930-2014),
quaisquer que fossem concretamente suas identidades políticas, situaram-se nas
eleições de 1962 nos polos opostos da ―guerra de posições‖ em relação ao
governo Goulart.
O Secretário Geral da CEB, Rev. Rodolfo Anders, assinou um documento
conjunto com o Cardeal Dom Jayme de Barros Câmara e o líder da Comunidade
Cristã Ortodoxa do Brasil, Rev. Dumitru Mihaescu, aconselhando os eleitores do
Estado da Guanabara a não votar em candidatos que representassem “um esforço
ou uma ameaça de implantação do comunismo ou de outra doutrina que torne
ohomem escravo do homem”.88 Do outro lado, o Rev. João Dias de Araújo,
professor de Teologia no Seminário Presbiteriano do Norte, em Recife, e um dos
principais palestrantes da Conferência do Nordeste em 1962, se aproximava de
lideranças políticas que apoiavam as reformas de base e eram identificadas pelos
opositores como comunistas, ainda que não se definissem desta forma. Apoiou a
candidatura de Miguel Arraes (1916-2005) do Partido Social Trabalhista (PST) ao
governo de Pernambuco e colaborou com as Ligas Camponesas a pedido do
advogado Francisco Julião (1915-1999), deputado pelo Partido Socialista
Brasileiro (PSB).
Analisando o pensamento anticomunista no Brasil, Rodrigo Patto Sá Mota
chamou a atenção para a existência de um anticomunismo de esquerda,89 mas
ponderou que nos momentos de maior polarização, como no período de 1961-
1964, a esquerda mais colaborou do que se opôs aos comunistas, evitando se
alinhar à propaganda de setores mais conservadores. O autor considerou ainda o
cristianismo, em sua vertente católica, uma das matrizes do anticomunismo. Havia

87
ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro. Os jesuítas e o Apostolado Social durante a Ditadura
Militar. 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 137.
88
O Globo. 01/10/1962, p. 1.
89
Anarquistas, socialistas e social-democratas eram críticos da experiência soviética e dos partidos
comunistas. Entre as forças à esquerda do campo político no Brasil durante o governo Jango,
trabalhistas, socialistas e a esquerda cristã também apresentavam divergências em relação ao
comunismo. SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo
no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002, p.17.
53

também a vertente protestante, que partilhava de muitas das representações do


anticomunismo católico. Conforme estudo sobre o anticomunismo entre os
batistas, feito por Luciane Almeida, o discurso anticomunista:

transcendia o terreno político – onde comumente se faz a crítica a essa


ideologia – para o campo religioso, demonstrando que a comunidade
religiosa reivindicava para si toda a atenção do fiel, não admitindo outras
formas de lealdade.90

Nos anos 1950 e 1960, convivendo com um clima político cada vez mais
polarizado por ideologias distintas e soluções tão diversas para os problemas de
seus países, setores católicos e protestantes aprofundaram os diálogos entre si e
com o mundo. Aumentaram as propostas de reformar a sociedade numa
perspectiva cristã. Participaram do processo de crise das soluções
desenvolvimentistas ou graduais. A ―libertação‖ e a ―revolução‖ tornaram-se
temas da reflexão teológica. Em 1966, no livro As transformações profundas à luz
de uma teologia evangélica, Richard Shaull sugeriu que o paradigma da
responsabilidade social não conseguia responder satisfatoriamente à situação da
América Latina e ao papel que os cristãos e as igrejas deveriam cumprir. A
proposta era fazer uma ―análise teológica da revolução‖ para fundamentar a ação
dos cristãos no processo. Para o autor:

A revolução social [grifo do autor] é o fato primário com que a nossa


geração terá de se defrontar, na medida em que muita gente em todo o mundo
vai sendo tomada de paixão pela derrubada total das velhas estruturas e pela
tentativa de um novo começo com o estabelecimento de uma nova ordem
[…]. Se quisermos preservar os elementos mais importantes da nossa herança
moral e religiosa e contribuir para a formação do futuro, não podemos
permanecer fora da luta revolucionária nem nos retirar dela. O único
comportamento responsável é aquele que não foge a esta luta e ao que estiver
além dela.91

Perspectivas que também se faziam presentes no pensamento acadêmico e


político, como os intelectuais da teoria da dependência, que interpretavam a
situação da América Latina como de subdesenvolvimento, e este, não como um
estágio econômico provisório tendente ao progresso, mas como uma dependência

90
ALMEIDA, Luciene Silva de. O comunismo é o ópio do povo Representações dos batistas sobre
o comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia. Dissertação (Mestrado em História) –
UEFS, Feira de Santana, 2011, P. 16.
91
SHAULL, Richard. As transformações profundas à luz de uma teologia evangélica. Petrópolis:
Vozes, 1966, p. 12-13.
54

estrutural produzida no âmbito do capitalismo mundial, com a hegemonia de um


centro sobre economias periféricas. Essa dependência produtora de
subdesenvolvimento seria uma herança histórica do passado colonial das nações
do continente, e possuiria dimensões políticas e culturais que a reproduzia ou
legitimava.92
Somada às críticas teóricas, o impacto da Revolução Cubana em 1959 fez
com que as esquerdas e os movimentos nacionalistas da América Latina
criticassem os limites dos projetos desenvolvimentistas na superação das
desigualdades sociais e para a proposição de projetos de autonomia das nações do
continente. Nas palavras de Halperin Donghi: “obrigou a formular de modo novo
os termos da luta política e social no âmbito de cada país latino-americano”.93
Uma sucessão de movimentos nacionalistas, surgimento de dissidências nas
esquerdas tradicionais e de grupos que propugnavam pela guerrilha colocou a
―libertação‖ no clima intelectual e político da região.
O entendimento de que a situação latino-americana era revolucionária
influenciava a leitura do passado das nações do continente, da inserção das
comunidades cristãs nelas e do papel que deveriam desempenhar caso quisessem
ser relevantes. Em 1968, intelectuais do Protestantismo Ecumênico e ligados ao
movimento deISAL publicaram por uma editora católica o livro Protestantismo e
Imperialismo na América Latina: Questões Abertas. Waldo César (1923-2007),
sociólogo de origem presbiteriana, que fora atuante nos setores de juventude e de
responsabilidade social da CEB, escreveu sobre ―Situação Social e crescimento do

92
Importantes referências das teorias da dependência ou do subdesenvolvimento foram os
economistas Celso Furtado e Teotônio dos Santos. Ver: FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e
estagnação na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. No livro
Dependência e desenvolvimento na América Latina, Enzo Faletto e Fernando Henrique Cardoso
sintetizaram as interpretações das teorias da dependência: “A situação de subdesenvolvimento
produziu-se historicamente quando a expansão do capitalismo comercial e depois do capitalismo
industrial vinculou-se a um mesmo mercado de economias que, além de apresentar graus variados
de diferenciação do sistema produtivo, passaram a ocupar posições distintas na estrutura global do
sistema capitalista. Desta forma, entre as economias desenvolvidas e as subdesenvolvidas não
existe uma diferença de etapa ou de estágio do sistema produtivo, mas também de função ou
posição dentro de uma mesma estrutura econômica internacional de produção e distribuição. Isto
supõe, por outro lado, uma estrutura definida de relações de dominação”. (CARDOSO, Fernando
Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. São Paulo:
Civilização Brasileira, 1984 p. 24-25).
93
HALPERIN DONGHI, Túlio. História da América Latina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975 p.
325.
55

protestantismo na América Latina‖.94 A construção de um protestantismo


autônomo e referido à realidade do continente deveria considerar as
transformações que se processavam no campo religioso e no campo político:

Isto parece significar que a autenticidade de qualquer movimento de


renovação do protestantismo latino-americano, face à realidade social, deve
estar aberto, primeiramente, ao que acontece na sociedade e, como
conseqüência, ao que se passa na igreja em função de tais acontecimentos;
em segundo lugar, deve considerar e tentar influir nas estruturas eclesiásticas
ou em movimentos, como o pentecostismo, que ofereçam quaisquer
possibilidades de compreensão e participação na revolução social; em
terceiro lugar, ver quais são as potencialidades disponíveis, a curto ou a longo
prazo, tanto em manifestações que consideramos sectárias, como nas que
hoje se multiplicam no campo ecumênico, principalmente as que se
processam entre católicos e protestantes; finalmente, não se pode deixar de
trabalhar no plano de ecumenismo mais amplo, que inclua elementos não
cristãos capazes de participarem em atividades que visem à humanização
integral do homem latino-americano.95

O livro ainda contou com o documento produzido pela II Consulta Latino-


americana de Igreja e Sociedade (ISAL), intitulado Encontro entre a fé evangélica
e a cultura Latino-Americana (1966). O documento ressaltou a recepção
favorável ao protestantismo no início de sua inserção em função dos seus vínculos
com o liberalismo. Vinculação ambígua para os intelectuais isalinos, pois em
1968, o liberalismo tinha um significado distinto em relação ao momento da
inserção protestante no século XIX: ―No final do século XX, a expressão ―liberal‖
– que queria dizer acima de tudo ser proponente do livre comércio e da
globalização econômica – era usada frequentemente como um insulto”, escreveu
Justo Gonzalez, completando a observação afirmando que: “um liberal era mais
ou menos o mesmo que um conservador nos Estados Unidos, isto é, alguém a
favor da livre iniciativa”.96
Nem desenvolvimento, nem liberalismo. No final dos anos 1960, a
―libertação‖ como caminho e a ―revolução‖ como horizonte entraram para a
linguagem da teologia latino-americana. Em 1968, Rubem Alves, orientando de

94
―Como um movimento de fora para dentro e, portanto, ligado aos países que de todos os modos
aqui tentavam estabelecer a sua política econômica e cultural, não poderia o protestantismo,
socialmente falando, estar desvinculado dessa política, fosse ela da Europa ou dos Estados
Unidos‖. In: CÉSAR, Waldo. Protestantismo e Imperialismo na América Latina. Petrópolis:
Vozes, 1968, p. 35.
95
CESAR, Waldo.Protestantismo e Imperialismo na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1968, p.
35.
96
GONZALEZ, Ondina E.; GONZALEZ, Justo. L. Cristianismo na América Latina: uma história.
Tradução: Valdemar Kloker. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 348.
56

Richard Shaull, defendeu nos EUA (Princeton) a tese de doutorado intitulada


Towards a Theology of Liberation (Para uma Teologia da Libertação).97 No
prefácio à primeira edição em português, o autor descreveu o nascimento da nova
teologia:

E assim eu batizei esta tese/filha: Towards a Theology of Liberation, nome


que se encontra lá no original e no registro de direitos autorais. [...]Não sabia
que aquele era um primeiro afluente, quase sem água e sem nome, de um
grande rio: Teologia da Libertação. Um editor católico se interessou pelo
meu texto. Ele fez uma reserva apenas. O nome do livro era meio esquisito:
libertação, nome sem respeitabilidade teológica, sobre que ninguém falava. O
que estava na crista da onda era a Teologia da Esperança. E ele me sugeriu
mudar o título, para entrar no debate. É sempre mais fácil pegar um trem que
já está correndo que fazer um outro novo, a partir do nada. E assim ficou: A
Theology of Human Hope (Washington, Corpus Books, 1969). E, com isso, o
nome ―Teologia da Libertação‖ me escapou…98

A menção à teologia que estava na crista da onda, mas não correspondia ao


conteúdo da tese, precisa ser explicada. Uma nova perspectiva se abriu com o
surgimento de uma teologia centrada na relação da mensagem cristã com a utopia.
Jürgem Moltman (1926-) publicou o livro Teologia da Esperança em 1964, muito
inspirado na reflexão filosófica de Ernst Bloch sobre a esperança como princípio
impulsionador da ação transformadora dos homens.99 Na abordagem de Moltman,
a esperança foi considerada a base da mensagem cristã, que seria, por excelência,
escatológica. A escatologia era entendida como utopia, como um anúncio do
prometido-desejável, era em si mesma crítica do presente e construtora do Reino,
um convite do futuro feito por Deus aos homens. Nas palavras de Moltman:

Por isto, existe um único verdadeiro problema da teologia cristã, proposto


pelo seu próprio fim, e, através dela, proposto à humanidade e à reflexão
humana: o problema do futuro. Com efeito, aquilo que encontramos nos
Testamentos bíblicos como objeto de esperança é ―o Outro‖, algo que não
podemos pensar ou imaginar a partir das experiências que já tivemos e da

97
A expressão, pela primeira vez utilizada em um trabalho teológico, foi rejeitada pelos editores
da Corpus Books (Washington) que a publicaram com o título A Theology of Human Hope (Uma
Teologia da Esperança Humana). No Brasil, o livro só foi publicado em 1987 com o título Da
Esperança. Apenas em 2012 o livro foi publicado no Brasil com a tradução do título original: Por
uma Teologia da Libertação. Rubem Alves estava em autoexílio nos EUA e foi orientado pelo seu
antigo professor do Seminário Presbiteriano do Sul em Campinas, Richard Shaull.
98
ALVES, Rubem. Da Esperança. Campinas, Papirus, 1987, p. 41.
99
―Expectativa, esperança e intenção voltadas para a possibilidade que ainda não veio a ser: este
não é apenas um traço básico da consciência humana, mas, retificado e compreendido
concretamente, uma determinação fundamental em meio à realidade objetiva como um todo‖.
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Vol. I. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro:
EDUERJ/Contraponto, 2005, p. 17.
57

realidade dada, mas que nos é apresentado como promessa de algo ―novo‖,
objeto de esperança que está no futuro de Deus. O Deus de que aí se fala não
é um Deus intramundano ou extramundano, mas o ―Deus da esperança‖ (Rm
15.13), um Deus que tem o ―futuro como propriedade do ser‖ (E. Bloch), tal
como se apresenta no Êxodo e nos profetas de Israel, um Deus que não
podemos ter em nós, nem está acima de nós, mas sempre diante de nós, que
nos encontra em suas promessas sobre o futuro, a quem por isso mesmo não
podemos ―possuir‖, mas só ativamente aguardar em esperança.100

A tese de doutorado de Rubem Alves apresentou a transição de uma


teologia progressista, próxima às teorias desenvolvimentistas dos anos 1950, para
uma teologia radical, próxima aos movimentos revolucionários dos anos 1960,
nos seguintes termos: ―Não me bastavam sonhos de jardins: era preciso saber que
jardins poderiam e iriam ser plantados. O amor pelos jardins tinha de se
transformar em manual de jardinagem. A esperança tinha que se exprimir como
política‖.101Era uma crítica à Teologia da Esperança de Jürgem Moltman, feita
como ponto de partida para uma teologia política mais alinhada com os
movimentos revolucionários. A Teologia da Esperança foi reconhecida pelos
teólogos latino-americanos como uma inspiração decisiva para a Teologia da
Libertação, mas ao mesmo tempo como limitada para a realidade do continente.
Não pretendo estabelecer uma cronologia do desenvolvimento da Teologia
da Libertação ou entrar no campo das disputas de memória sobre seus mitos de
origem. A maior parte da historiografia considera o livro Teologia da Libertação
de Gustavo Gutiérrez (1928-), publicado em 1971, o marco de fundação de uma
teologia latino-americana pensada a partir da dialética opressão/libertação e no
pobre como sujeito de sua própria emancipação102, embora reconheçam em
Richard Shaull, na tese de Rubem Alves e na formação do ISAL precedentes deste
pensar teológico.103
A existência de tais cronologias e disputas de memória, entretanto, indica a
complexidade de um processo marcado por convergências e divergências entre os

100
MOLTMAN, Jürgen. Teologia da Esperança: estudos sobre os fundamentos e as
consequências de uma escatologia cristã. Trad. Helmuth Alfredo Simon. São Paulo: Editora
Teológica, 2003, p. 22-23.
101
ALVES, Rubem. Da Esperança. Campinas, Papirus, 1987, p. 40. [Grifo do autor].
102
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas. 3ª. Edição, Petrópolis-RJ,
Vozes, 1979.
103
Para um balanço historiográfico sobre as origens da Teologia da Libertação e o debate sobre a
anterioridade protestante ou católica no seu surgimento, ver: SUNG, Jung Mo. Teologia e
economia: repensando a Teologia da Libertação e utopias. São Paulo: Fonte Editorial, 2008; e
SILVA, Elizete. Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira. Feira de Santana: UEFS
Editora, 2010.
58

campos católico e protestante. Como bem salientou Michael Löwy, a nova


corrente teológica foi a expressão intelectual de um amplo movimento social e
religioso: o Cristianismo da Libertação. Seguindo a trilha weberiana sobre as
afinidades eletivas entre protestantismo e capitalismo, o autor teorizou sobre as
afinidades eletivas entre o ethos católico e o espírito anticapitalista do marxismo
na formação do Cristianismo da Libertação. Na diferenciação que fez da
abordagem de Rubem Alves e de Gustavo Gutiérrez, apontou as divergências
entre católicos e protestantes:

Rubem Alves não fala como um teólogo brasileiro ou latino-americano, nem


usa conceitos marxistas tais como dependência, capitalismo ou luta de
classes. No entanto, sua obra pioneira foi um ponto de partida para a
Teologia da Libertação e teve uma influência significativa, sobretudo entre a
104
juventude protestante.

A referência de Löwy à ausência de uma fala brasileira ou latino-americana


no pensamento de Rubem Alves corresponde à conjuntura de escrita da tese de
doutoramento em Princeton (EUA).105Quanto a não utilização dos conceitos
marxistas, o próprio Rubem Alves, ao comentar a recepção do seu livro
Tomorrow’s Child (1971) publicado nos EUA, referiu-se à sua heterodoxia:

Também os teólogos da libertação não gostaram. Nem todos, é bem verdade.


Alguns disseram que eu havia me vendido ao público norte-americano. Acho
que tiveram dificuldades de ler nas entrelinhas, desejosos que estão de ideias
claras e distintas. Faltavam também as palavras-chave, marcas de uma
ortodoxia, como dialética, luta de classes e outras do mesmo estilo. De fato,
tenho horror ao ventriloquismo. E faltava também uma certa raiva – o que
sugeria que eu estivesse me sentindo feliz junto aos rios da Babilônia. Talvez
não tenham percebido que, com frequência, a busca da beleza e a tristeza
caminham juntas.106

104
―Alves foi apresentado a Gustavo Gutiérrez pela primeira vez em Genebra, em 1969, em uma
conferência ecumênica da SODEPAX, e ambos concordaram a respeito da necessidade de
substituir a ―Teologia do Desenvolvimento‖ por uma nova teologia, baseada no conceito de
liberação‖. LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 179.
105
Em documentário recente, produzido pela TV Câmara, Rubem Alves alegou ter sofrido boicote
de Frei Betto em eventos de Teologia da Libertação nos anos 1970 por ser protestante e por ter
escrito a tese nos Estados Unidos. Declarou ter respondido à crítica de Frei Betto, publicada no
Pasquim, com uma ironia: ―Diz para ele que Marx escreveu O Capital em Londres”.
106
ALVES, Rubem. A gestação do futuro. Campinas, Papirus, 1987, p. 19. Em documentário
recente, produzido pela TV Câmara, Rubem Alves alegou ter sofrido boicote de Frei Betto em
eventos de Teologia da Libertação nos anos 1970, por ser protestante e por ter escrito a tese nos
Estados Unidos. Declarou ter respondido à crítica de Frei Betto, publicada no Pasquim, com uma
ironia: ―Diz para ele que Marx escreveu O Capital em Londres”.
59

Os intelectuais de ISAL participavam da ―ortodoxia‖ referida por Rubem


Alves, sendo este um dos motivos das críticas dirigidas ao movimento pelos
setores mais tradicionais do protestantismo, que criticavam a utilização da
perspectiva barthiana e marxista na interpretação dos textos bíblicos e da missão
da igreja no mundo.Sete anos separaram o surgimento do movimento de ISAL em
Huampaní, no Peru (1961), da realização da Conferência Episcopal Latino-
Americana (CELAM), em Medelín, na Colômbia (1968), quando os Bispos
católicos latino-americanos discutiram os meios de adaptar as diretrizes do
Concílio Vaticano II ao continente e, ao mesmo tempo, superar uma teologia que
não respondia à conjuntura política da região.
Para Zwinglio Mota Dias (1941-), ex-aluno de Rubem Alves nos anos 1960,
―a Teologia da Libertação é uma criação protestante‖.107 Durante estes sete anos,
Rubem Alves e Richard Shaull contribuíram com a revista do ISAL,Cristianismo
y Sociedad, ao lado de Julio de Santa Ana (1934-), José Miguez Bonino (1924-
2012), Franz Hinkelammert (1931-), Waldo César, dentre outros. Propuseram um
novo modo de ser igreja (eclesiologia)e refletiram sobre os desafios da fé cristã na
América Latina. No primeiro volume da revista, Julio de Santa Ana apresentou os
propósitos da publicação:

En la política editorial de CRISTIANISMO Y SOCIEDAD, se dará


preferencia a contribuciones originales en español y portugués sobre algún
aspecto de los siguientes temas: Problemas de la misión cristiana frente a la
estructura social de América Latina; Sociología religiosa latino-americana;
Teología de los problemas que conciernen a Iglesia y Sociedad, etc.108

No primeiro volume, a seçãoLa Iglesia en la Revolucióncompartilhou uma


correspondência enviada à redação sobre as igrejas cristãs na Rússia, anotações de
Josef Hromádka (1889-1969) sobre o processo revolucionário na
Tchecoslováquia109 e o relato de Rafael Cepeda sobre a relação dos cristãos com a
revolução cubana, no qual escreveu: “es imposible ejercer influencia cristiana en
una revolución a menos que la Iglesia se mueva al mismo ritmo que ella‖,
alertando, porém, que ―La Iglesia no tiene que ir la siga de la Revolución, y

107
Zwinglio Mota Dias. Entrevista ao autor. 31/05/2013.
108
SANTA ANA, Julio. Palabras preliminares. In: CRISTIANISMO Y SOCIEDAD. Ano I, Nº. I,
enero-abril, Montevideo, 1963, p 4.
109
O autor era um teólogo reformado que participou do movimento ecumênico com destacada
atuação nos países comunistas. HROMÁDKA, Josef L. Checoslovaquia. In: CRISTIANISMO Y
SOCIEDAD. Ano I, Nº. I, janeiro-abril, Montevideo, 1963, p. 57-59.
60

mucho menos de la reacción. Pero tiene que tener TAMBIÉNun ritmo


revolucionario, o se queda a zaga y en descredito” [grifo do autor]110Por fim, foi
publicado um manifesto do Movimento Social Evangélico Boliviano sobre a
revolução no país.111
O diálogo entre ―igreja‖ e ―sociedade‖ proposto pelo ISAL, questionava as
formas litúrgicas do culto protestante, a hinologia religiosa de origem europeia e
norte-americana, as dicotomias corpo/alma e igreja/mundo da pregação pastoral e
as implicações desses dualismos para a relação com a cultura e a política e para a
dependência cultural do protestantismo latino-americano às suas matrizes
estrangeiras, bem como o quanto esse conjunto de elementos contribuía para
legitimar as desigualdades sociais e o capitalismo.A missão da igreja deveria
inspirar-se no exemplo de Jesus, sua encarnação,112 conforme escreveu Joaquim
Beato (1924-) em Cristianismo y Sociedad:

Eis aqui porque pensamos que a Incarnação constitui não apenas base para
nossa responsabilidade social, mas até mesmo imperativo para a ação social
da igreja. Pois assim como Deus em Cristo nos confrontou com uma pessoa
concreta e nos salvou como pessoas concretas, dentro de uma condição
concreta, da qual não podem sair para ouvir a mensagem, mas de dentro da
qual têm de ouvir e entendê-la. Se para falar a homens dentro de sua
condição a única linguagem inteligível a eles for a ação social, a igreja não
pode, para pleno cumprimento de sua missão precípua, recusar-se descer a
esse campo de ação, num esforço máximo de comunicação, que é sua
tentativa de identificação.113

O movimento de ISAL defendia a integralidade do ser humano, como


espírito-corpo, e enfatizava que a atitude dos cristãos na sociedade deveria ser
profética. O profetismo era entendido como a denúncia das injustiças sociais e o
anúncio de uma realidade nova, associada à crença no Reino de Deus. Criticava a
omissão das igrejas diante das desigualdades, a legitimação religiosa do status quo
e o discurso de que a missão da igreja era unicamente espiritual, desvinculada da
política. Assimilando o conceito de igreja como comunidade missionária,

110
CEPEDA, Rafael. El ritmo revolucionario. In: CRISTIANISMO Y SOCIEDAD, op. cit. p. 60.
No mesmo número da revista havia outro texto sobre a revolução cubana intitulado La ironia de
Cuba (p.51-54), escrito por Reinhold Niebuhr (1892-1971), um dos mais importantes teólogos
norte-americanos do século XX e ex-professor de Richard Shaull.
111
MOVIMIENTO SOCIAL EVANGÉLICO BOLIVIANO. El más y el menos de La Revolución
Nacional. In: CRISTIANISMO Y SOCIEDAD, op. cit., p 62 - 63.
112
A doutrina da encarnação fundamenta-se na crença cristã de que Jesus era Deus encarnado em
natureza humana, era ―o verbo que se fez carne e habitou entre nós‖ (Jo 1: 14).
113
BEATO, Joaquim. Ideologia cristã como base para a ação social da Igreja. In:
CRISTIANISMO Y SOCIEDAD. Ano I, Nº. I, enero-abril, Montevideo, 1963, p. 15, 16.
61

defendido por Richard Shaull, o movimento de ISAL propunha uma igreja em


diáspora:

Dado que em muitíssimos casos já não é possível conceber a comunidade


cristã como agrupada geograficamente ao redor do templo, acha-se
conveniente promover o agrupamento dos cristãos através de suas tarefas
comuns, profissões, atividades e interesses particulares. 114

O movimento de ISAL defendia o encontro da fé com a cultura nacional,


pois, sem isso, “provavelmente, nunca chegaremos a saber o que significa uma
nova estrutura da congregação local, fato que de algum modo deve expressar esse
encontro e manifestá-lo”.115O anúncio do Reino de Deus como metáfora de
libertação das opressões se tornou o centro da teologia isalina, que também usava
a doutrina da encarnação como justificativa teológica para o engajamento dos
cristãos na construção de um ―mundo de justiça”, outra palavra cara ao
movimento, cujo conteúdo era preenchido por noções religiosas de igualitarismo.
O movimento deISAL se aproximou dos movimentos leigos, de juventude e
reformistas do catolicismo que deram origem à esquerda católica, a exemplo da
Juventude Universitária Católica (JUC).116 Para o Cristianismo da Libertação,
católico e protestante, era preciso compreender a realidade, julgar o que no mundo
era contrário aos valores do evangelho e do Reino de Deus, denunciar as injustiças
e lutar contra elas. Como bem analisou Aline Coutrot:

Da mesma forma que sempre existiram muitas correntes teológicas, há


muitas espiritualidades modeladoras de comportamentos profundamente
dessemelhantes em relação ao mundo e à sociedade política. A indiferença
básica pelas realidades temporais de cristãos que voltam todos os seus
pensamentos para outra vida opõe-se a uma espiritualidade da encarnação
que leva a sério a prefiguração do reino a ser construído desde aqui embaixo,

114
ISAL. Documento da primeira consulta. Huampaní, Peru, 1961, p. 36.
115
ISAL, 1961, p. 36.
116
―A Juventude Universitária Católica (JUC) foi criada em 1930 como parte da ACB [Ação
Católica Brasileira]. Começou como um movimento conservador, clerical, visando cristianizar a
futura elite. Mas, após a reorganização da ACB entre 1946 e 1950, o movimento tornou-se mais
autônomo. A JUC passou a ter maior envolvimento no movimento universitário e na esquerda e
foi, em contrapartida, gradualmente mais afetada por esses movimentos. No final dos anos 50, a
JUC deu início a uma rápida radicalização que a levou a um contundente conflito com a
hierarquia. O momento decisivo dessa virada foi a conferência nacional da JUC em 1959, quando
o movimento assumiu uma responsabilidade explícita pela ação política como parte do seu
compromisso evangélico‖. MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a Política no Brasil (1916-
1985).Trad. Heloisa Braz de Oliveira Prieto. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 84.
62

o engajamento na igreja que une o homem ao Cristo, a salvação não


individual, mas coletiva, de toda a humanidade.117

Em seu livro sobre os Círculos Operários, comentando a presença da Igreja


Católica nas relações de trabalho, Jessie Jane Vieira de Souza considerou “não ser
possível compreender a participação da instituição no movimento social sem que
se entendam suas propostas teológicas – referências essenciais no conteúdo de sua
atuação como agente social”.118 Não se trata, portanto, de discutir ideias
teológicas apenas como uma construção discursiva, mas de perceber como os
modos de crer e de pensar a fé do Cristianismo da Libertação desempenharam
mediações para a participação política nas conjunturas analisadas e, por fim, de
como estas últimas afetaram as elaborações teológicas, pois como observou Scott
Mainwaring, quando ―uma organização ou movimento religioso acredita que sua
missão exige um envolvimento político, os conflitos políticos afetam a sua
concepção de fé‖.119
Para o ISAL, a construção de um protestantismo autônomo e promotor da
―humanização integral do homem latino-americano‖120passava pelo resgate de
elementos libertários da identidade evangélica capaz de alicerçar as comunidades
de fé nas culturas nacionais. Alguns desses elementos eram: a crença no
sacerdócio universal de todos os fiéis, os modelos eclesiológicos mais
participativos, o caráter missionário da igreja e, finalmente, a própria
fragmentação do protestantismo entendida como relativização da posse da verdade
religiosa por uma única instituição, desde que isso contribuísse para iniciativas de
aproximação entre as diferentes denominações e apontasse para um ecumenismo
ainda mais abrangente.
A reação conservadora dentro das igrejas evangélicas ao ecumenismo e ao
engajamento social da UCEB e do ISAL foi intensa. No livro Inquisição sem
fogueiras (1982),que relata o conflito entre fundamentalistas e ecumênicos na
Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) entre 1954 e 1974, João Dias de Araújo

117
COUTROUT, Aline apud RÉMOND, René. Por uma história política. Tradução: Dora Rocha.
2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
118
SOUZA, Jessie Jane Vieira de. Os círculos operários: a Igreja Católica e o mundo do trabalho
no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002, p. 26.
119
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916-1985). Trad. Heloisa
Braz de Oliveira Prieto. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 25.
120
CÉSAR, Waldo. Protestantismo e Imperialismo na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1968, p.
35.
63

narrou expurgos de professores considerados heterodoxos nos seminários


teológicos, fechamento de departamentos de mocidade nas igrejas com
impedimento de suas publicações, cassação de mandatos pastorais, punição para
fiéis que participassem de atividades ecumênicas e a denúncia de teologias com
preocupações sociais como ―subversão comunista‖ ou ―modernismo
121
teológico‖. O golpe militar de 1964 foi saudado pelos protestantes
conservadores como uma ―revolução‘ que iria fazer na sociedade brasileira o que
já fora feito nas igrejas: a eliminação dos subversivos. Nas palavras de Joanildo
Burity:―o destino dos progressistasprotestantes foi, de certa maneira, o dos
progressistas nãoreligiosos – com a agravante de que a derrota começou mais
cedo‖.122
Depois do golpe militar em 1964, Rubem Alves foi denunciado como
subversivo por lideranças da IPB e exilou-se nos EUA onde, sob a orientação de
Richard Shaull, defendeu a tese propondo uma Teologia da Libertação (1968).
Richard Shaull foi proibido pelos militares de regressar ao Brasil durante vinte
anos. Waldo César, Jovelino Ramos (1922-) e outros protestantes ecumênicos
fizeram parte da criação da revista Paz & Terra, importante publicação da
intelectualidade de esquerda que daria origem à editora. Em 1966, o Gabinete do
Ministério da Guerra encaminhou um ofício ao Centro de Informações do
Exército (CIEX)relatando o lançamento, pela Editora Civilização Brasileira, da
revista Paz & Terra, acusando o periódico de ser:

um veículo para infiltração de grupos comunistas nos meios religiosos


católicos e protestantes, em especial a organização protestante Iglesia y
Sociedad en America Latina (ISAL), que manteria contatos com a
organização Ação Popular e integraria, através de seus membros, a diretoria
da revista. Denuncia o diretor presidente Waldo A. César, o secretário
Moacyr Felix e os correspondentes estrangeiros Richard Shaull, Gonzalo
Castillo Cárdenas, Hiber Conteris e Hector Borrat de manterem ligações com
grupos esquerdistas.123

121
ARAÚJO, João Dias de.Inquisição sem fogueiras: vinte anos de história da Igreja Presbiteriana
do Brasil: 1954-1974. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER),
1982. Uma descrição dos conflitos entre os batistas: ALMEIDA, Luciene Silva de. O comunismo é
o ópio do povo: representações dos batistas sobre o comunismo, o ecumenismo e o governo militar
na Bahia. Dissertação (Mestrado História) – UEFS, Feira de Santana, 2011.
122
BURITY, Joanildo. Fé na revolução: Protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro
(1961-1964). Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011, p. 238.
123
DSI. Processo SECOM nº 30.067 – 9/9/1966.
64

Protestantes ecumênicos exilados nos EUA e na Europa criaram comitês de


informação sobre a violação de Direitos Humanos no Brasil para a comunidade
internacional, dentre eles Joaquim Beato, Jovelino Ramos e Jether Ramalho,
participantes da Conferência do Nordeste (1962).124Em 1968, foi editado o Ato
Institucional nº. 5 (AI-5), responsável pelo fechamento do Congresso Nacional,
cassação de mandatos parlamentares, suspensão de direitos políticos, restrição às
liberdades de opinião, censura à imprensa e às artes e o fim da garantia de habeas
corpus a presos políticos. Após o AI-5, os protestantes ecumênicos, assim como
outros segmentos da oposição à ditadura, encontraram no exílio não apenas uma
forma de manter-se em segurança, mas tempo de continuar com a militância.
Contavam para isso com o apoio do CMI – que oferecia desde funções a serem
desempenhadas no Conselho a bolsas de estudo no exterior – e das redes de
solidariedade do movimento ecumênico na América Latina.
Com a posse do presidente socialista Salvador Allende (1908-1973) em
1970, o Chile se tornou um dos destinos mais procurado pelos exilados. Porém, o
golpe militar em 1973 fez parte da série de golpes no continente durante a década
de 1970, tendo ocorrido no mesmo ano no Uruguai e três anos depois na
Argentina (1976). Todos os golpes, desde o do Brasil em 1964 até o da Argentina
em 1976, foram justificados pelos militares na semântica da Guerra Fria: como
uma revolução contra o comunismo e a corrupção, em defesa da democracia, da
propriedade e da civilização cristã. Contaram internamente com processos de
intensa polarização e desestabilização dos governos depostos, e externamente com
o apoio – em alguns casos, com a intervenção direta – dos EUA.
Os sucessivos golpes militares na América Latina afetaram o movimento de
ISAL, conforme depoimento de Zwinglio Mota Dias: “A coisa se abateu forte
sobre ISAL. Era vista como um movimento subversivo, que queria mobilizar as
igrejas para a militância, aquela conversa, cheia de comunista!‖125 Zwinglio Mota
Dias narrou o período de exílio no Uruguai, quando trabalhou no setor de
publicações do movimento de ISAL e pastoreou uma igreja que contava com
alguns jovens ligados ao movimento guerrilheiro Tupamaro. Antes disso, ainda no

124
Sobre a oposição à ditadura a partir da comunidade internacional e por exilados políticos:
GREEN, James N.Apesar de Vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
125
DIAS, Zwinglio Mota. Entrevista concedida ao autor, Campina Grande-PB, 31/05/2013.
65

Brasil, seu irmão, Ivan Mota Dias (1942-1971),havia sido preso no Congresso da
UNE em Ibiúna no ano de 1968 e, após ter sido solto, recusou-se a se reapresentar
aos órgãos de segurança para dar novos depoimentos, entrando definitivamente na
clandestinidade. Zwinglio acabou preso em 1970 porque seu irmão estava sendo
procurado pelos órgãos de repressão e uma militante da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR) forneceu o nome do pastor após ter sido torturada. Ivan
Mota voltou a ser preso em 1971 e nunca mais foi encontrado.126 A esposa de
Zwinglio, a uruguaia Edda Mastrangelo, pertencia à Igreja Metodista de
Montevidéu, pastoreada por Emílio Castro (1927-2013), importante intelectual do
Protestantismo Ecumênico.127 Um fato marcante relatado na entrevista foi a
ocupação da igreja pelos Tupamaros, que fuzilaram uma personalidade do
governo militar nos fundos do templo. Após o episódio, Emílio Castro foi preso.
Seu prestígio público no Uruguai impediu que sofresse maiores consequências,
sendo solto logo depois. Em seguida, a repressão alcançou as lideranças do
movimento de ISAL:

Então prenderam o Julio de Santa Ana, e o Julio foi torturado, perdeu um


tímpano. Prenderam o Julio Barreiro. O Julio de Santa Ana era na época o
Secretário Executivo de ISAL e o Júlio Barreiro dirigia a editora de ISAL,
era professor de Direito, universitário, intelectual. Com o Júlio não houve
maiores violências, mas com isso o escritório ficou desguarnecido, então eu
128
passei a trabalhar em casa, não ia ao escritório, ia só de vez em quando.

O cerco ao grupo do movimento de ISAL se fechou definitivamente,


culminando com a invasão do escritório da junta missionária continental:

Daí eu tenho um episódio interessante: eu fui salvo por um cafezinho.


Café,pra mim, virou uma bebida sagrada. Numa tarde estávamos no
escritório, estávamos eu e uma menina americana que estava fazendo um
trabalho de pesquisa sobre o movimento de Igreja e Sociedade na América
Latina, e outro rapaz chileno que era do grupo de ISAL no Chile. Deu
vontade de tomar café, então eu fui na cozinha. E o escritório de ISAL era
uma casona antiga, ficava assim na esquina da rua. Eu cheguei na cozinha
não tinha pó. Então fui tomar no bar da esquina. Aí eu chamei o chileno, que

126
Ibidem.
127
Emílio Castro se formou no Seminário Teológico União, de Buenos Aires, em 1950. Concluiu a
pós-graduação em Teologia na Basiléia (1954) tendo Karl Barth como orientador. Foi um dos
criadores da União Evangélica Latino-Americana (UNELAM) em 1965 e do Conselho Latino-
americano de Igrejas (CLAI) em 1982. Tornou-se doutor em Teologia na Universidade de
Lausanne em 1984. Esteve à frente de muitos empreendimentos ecumênicos e teológicos,
chegando a Secretário Geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) entre 1985 e 1992. Ver:
LOSSKY, Nicholas. Dicionário do movimento ecumênico. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 174.
128
DIAS, Zwinglio Mota. Entrevista concedida ao autor, Campina Grande-PB, 31/05/2013.
66

disse: ―não, agora não quero‖, ia continuar escrevendo e tal, então eu chamei
a Carol, a garota americana. Aí nós saímos, sentamos no café, bebemos.
Quando eu levanto a xícara, levanto o rosto e olho pela janela, o caminhão do
Exército do Uruguai cercou a esquina toda e invadiu o ISAL. Levaram
documentos, aquela coisa toda, e levaram o Hiber Conteris, que ficou preso
vários dias. Aí levamos aquele susto e corremos pra avisar o pessoal da
Igreja Metodista. Então eu comecei a pensar em sair do Uruguai. ―Se me
129
pegam aqui me mandam pro Brasil‖, porque já havia a colaboração.

Quando os Estados de Segurança Nacional proliferaram na América Latina


nos anos 1960 e 1970, os expurgos e repressões que realizaram a grupos
opositores contribuíram para desarticular institucionalmente o Protestantismo
Ecumênico.130 O movimento de ISAL, marcadamente sul-americano, teve sua
sede deslocada, a cada golpe militar, para outro país. Foi fechada em 1975 e
realocada para a América Central, com o nome de Ação Social Ecumênica Latino-
americana (ASEL), que existiu e manteve a publicação da revista Cristianismo y
Sociedad até os anos 1990.
O ISAL inaugurou uma teologia protestante pensada a partir da América
Latina. Seus discursos e práticas iriam influenciar o Protestantismo Ecumênico
nas décadas seguintes, e mesmo os setores discordantes ou concorrentes
transitaram por construções discursivas comuns à teologia isalina, ainda que com
novas abordagens: responsabilidade social, igreja como comunidade missionária,
integralidade do homem e do Evangelho, contextualização, encarnação, justiça,
profetismo, Reino de Deus, libertação. A ausência da UCEB e do ISAL no cenário
contribuiu para que um segmento evangélico que se opunha às propostas do
Protestantismo Ecumênico incorporasse algumas delas a partir de outras tradições
evangélicas reivindicadas e se distanciasse cada vez mais dos setores
fundamentalistas.

Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL): contextualização e


Missão Integral (1969-1983)

129
DIAS, Zwinglio Mota. Entrevista concedida ao autor, Campina Grande-PB, 31/05/2013.
130
―Diversos nomes que militaram nas fileiras do movimento ecumênico protestante passaram pela
experiência do enquadramento em IPMs, foram presos, outros torturados ou tiveram de fugir do
Brasil. Alguns desses nomes foram: Waldo César, João Dias de Araújo, Zwinglio Mota Dias,
Rubem Alves, Anivaldo Padilha, Leonildo Silveira Campos, Rubem César Fernandes, Jovelino
Ramos, Lysâneas Maciel, dentre outros‖. BRITO, Souza André. Cristianismo ateu: O Movimento
Ecumênico nas malhas da repressão militar do Brasil, 1964-1985. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014, p. 103.
67

Superando a dicotomia entre progressistas e conservadores, ou entre


ecumênicos e fundamentalistas, alguns estudiosos do protestantismo chamaram a
atenção para a existência de uma terceira tendência que seria intermediária,
oscilando ora num sentido, ora em outro. Em geral, essa abordagem foi feita por
intelectuais pertencentes a esta tendência, autodenominada ―evangelical". A
palavra pode ser traduzida como ―evangélico‖, que é usada nos Estados Unidos
como sinônimo de protestante. Foi após o surgimento do fundamentalismo que a
palavra passou a designar um segmento do protestantismo conservador diferente
dos fundamentalistas. De acordo com Luiz Longuini Neto:

o movimento fundamentalista é uma espécie de linha de frente, um grupo


militante que nasceu dentro do movimento evangelical, vindo mais tarde a se
radicalizar e a se distanciar deste. Sendo assim, todo fundamentalista é um
evangelical, mas nem todo evangelical é um fundamentalista.131

O campo conservador do protestantismo estaria dividido em


fundamentalistas e evangélicos. É neste sentido, por exemplo, que José Miguez
Bonino se refere aos rostos ―fundamentalista‖ e ―evangélico‖ do protestantismo
latino-americano.132 No Brasil, porém, continuou-se a usar o termo ―evangélico‖
como sinônimo de ―protestante‖ e o anglicismo ―evangelical‖ para designar um
movimento específico, surgido no final dos anos 1960, que deu origem à Teologia
da Missão Integral. A expansão do pentecostalismo na segunda metade do século
XX, que também assumiu a identidade evangélica, contribuiu para consolidar o
anglicismo ―evangelical‖ como termo de diferenciação entre os grupos,
evidenciando que “As interações simbólicas que se instauram no campo religioso
devem sua forma específica à natureza particular dos interesses que aí se
encontram em jogo‖,133uma vez que os ‗ecumênicos‘ e os ‗fundamentalistas‘ não
estão interessados em fazer esta distinção entre fundamentalistas e evangelicais,
mas somente os evangelicais se interessam em fazê-lo‖.134

131
LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no
protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 23.
132
Os outros ―rostos‖ seriam o liberal, o pentecostal e o étnico: BONINO, José Miguez. Os rostos
do protestantismo latino-americano. São Leopoldo: Sinodal. 2002.
133
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5ª edição. Introdução, Organização e
Seleção Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009, p. 82.
134
LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: Os movimentos ecumênico e evangelical no
protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 19.
68

O evangelicalismo se apropriou da herança teológica de três movimentos na


construção de uma identidade ―evangélica‖: puritanismo,135 pietismo136 e
avivalismo.137 Do primeiro, a ênfase na autoridade da Bíblia e na reforma dos
costumes; do segundo, a preocupação com a prática da devoção pessoal e
comunitária, em especial a leitura cotidiana da Bíblia e a oração, individual ou em
pequenos grupos; e do terceiro, o empenho missionário e evangelístico, tanto para
alcançar não cristãos quanto para o despertamento religioso dos fiéis.138
Um grande ponto de discussão na historiografia sobre o evangelicalismo diz
respeito às possibilidades de um movimento teologicamente conservador ou
ortodoxo fundamentar posicionamentos políticos engajados na luta contra
desigualdades sociais: ―Como é possível que uma visão de mundo conservadora
gere uma política progressista?‖, questionava Rubem César Fernandes (1943-) em
1981, classificando o evangelicalismo de ―fundamentalismo de esquerda‖.139A
crise do movimento de ISAL após os sucessivos golpes militares na América
Latina deu espaço para que novos engajamentos político-religiosos no
protestantismo continental ganhassem mais visibilidade.
Nos espaços em que o ecumenismo protestante se enfraquecia, diminuía os
temores de muitos evangélicos com a associação entre teologia contextualizada e
liberalismo teológico, preocupação com os problemas sociais e marxismo,
espectros que rodavam as igrejas em tempos de Guerra Fria e ditaduras militares.

135
Movimento dissidente da Igreja Anglicana após a Reforma religiosa conduzida pela monarquia
inglesa no século XVI. O separatismo em relação ao Estado, a ênfase na autoridade bíblica e as
diferentes experiências de democracia eclesiástica influíram na revolução inglesa do século XVII.
HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
136
O pietismo foi um movimento de despertamento da prática devocional que pretendeu reformar
as igrejas protestantes após estas terem se estabilizado em suas ortodoxias. Os grupos de oração e
de estudo bíblico pretendiam superar uma religião centrada na ortodoxia teológica. Teve início no
final do século XVII nas igrejas luteranas, estendendo-se depois a outras denominações A obra
clássica do pietismo foi Pia Desideria (1675) de Philipp Jacob Spener (1635-1705). Edição
brasileira: SPENER, P. Jacob. Pia Desideria: mudança para o futuro. Curitiba/ São Bernardo do
Campo: Encontrão Editora e Instituto Ecumênico Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1996.
137
Movimento de despertamento religioso. Voltou-se muito mais para a evangelização e as
missões do que para a reforma interna da igreja. Dava muita ênfase à pregação itinerante e à
reforma moral do indivíduo e da sociedade. Influenciou no surgimento do metodismo na Inglaterra
do século XVIII. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. II: A maldição
de Adão. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987, p. 225-289.
138
Para uma análise dessas heranças teológicas do evangelicalismo ver: GONDIM, Ricardo.
Missão Integral: em busca de uma identidade evangélica. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p. 25-
60; e SANCHES, Regina Fernandes. Teologia da Missão Integral: história e método da teologia
evangélica latino-americana. São Paulo: Reflexão 2009, p. 70-87.
139
FERNANDES, Rubem César. Fundamentalismo à direita e à esquerda. In: Protestantismo e
Política. Tempo e Presença, nº. 29, 1981, p. 133-55.
69

Em uma conferência proferida em 1969, Samuel Escobar (1932-) descreveu a


situação:

Até o presente tem havido na América Latina a tendência de identificar a


preocupação com os problemas sociais ao liberalismo teológico, ou com um
arrefecimento à tarefa evangelizadora. Devemos duma vez para sempre
acabar com esta confusão. Existe base suficiente na história da igreja e nos
ensinamentos da Palavra de Deus para afirmar categoricamente que a
preocupação pelo aspecto social do testemunho evangélico no mundo não é
um abandono das verdades fundamentais do Evangelho, pelo contrário, é
levar às suas últimas consequências os ensinos a respeito de Deus, de Jesus
Cristo, do homem e do mundo, que formam a base desse Evangelho. 140

Lideranças do movimento missionário no meio estudantil, ligadas à


Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE) desempenharam
importante papel de articulação do novo discurso. A CIEE foi criada em Harvard
em 1947 por setores do movimento estudantil evangélico que discordavam do
perfil da Federação Universal de Movimentos Estudantis Cristãos (FUMEC), que
havia incorporado contribuições da Teologia Liberal e do Evangelho Social. Além
das divergências teológicas, havia “todo un nuevo talante o actitud del cual estaba
ausente el énfasis en la oración diaria, la conversión personal y aun el espirito
misionero”, escreveu Samuel Escobar no livroLa chispa y la llama, em que narra
a história da CIEE na América Latina.141Em outras palavras, as divergências
doutrinárias expressavam experiências evangélicas de juventude concorrentes.
No Brasil, a Aliança Bíblica Universitária (ABU), foi criada em 1957 pelos
missionários Roger Young e Ruth Siemens142 e estruturada definitivamente no
congresso de 1962, com o apoio do assessor da CIEE continental, Samuel
Escobar. O lema da ABU era ―estudante alcançando estudante‖. Eles sereuniam

140
Conferência proferida por Samuel Escobar no Congresso Latino-americano de Evangelização
(CLADE) em 1969, Bogotá, Colômbia: ESCOBAR, Samuel. A responsabilidade social da Igreja.
Tópicos do momento: uma interpretação evangélica. São Paulo: Edições Vida Nova, 1970, p. 7-8.
141
ESCOBAR, Samuel. La chispa y la llama. Buenos Aires: Certeza, 1978, p. 22.
142
Sobre as origens da ABU, Eduardo Quadros escreveu: ―Roger Young viajou como estudante
para Costa Rica em 1953. Em 1954, resolveu transferir-se para a Argentina e matriculou-se na
Universidade do Prata. Tendo a Argentina como base, começou a realizar viagens a diversos
países buscando encontrar estudantes dispostos a aderir ao trabalho. Em 1957, optou por instalar-
se no Brasil. Já a missionária Ruth Siemens foi como professora para Lima, Peru, no ano de 1954.
Depois de, ali, organizar o ‗Círculo Bíblico Universitário‘, veio para o Brasil no início de 1957.
Com apoio de alguns pastores, ambos começaram a contactar estudantes universitários para
organizar grupos de estudos bíblicos‖. QUADROS, Eduardo Gusmão de. Evangélicos e mundo
estudantil: uma história da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (1957-1987). Rio de Janeiro:
Novos Diálogos, 2011, p 36.
70

em núcleos de estudos bíblicos nas universidades e realizavam acampamentos de


formação de lideranças e de evangelização.
Com uma proposta mais conservadora, a ABU recebeu críticas dos
movimentos de juventude ecumênicos ligados às Associações Cristãs de
Acadêmicos (ACA) que formavam a União Cristã de Estudantes do Brasil
(UCEB), conforme Robinson Cavalcanti (1944-2012) relatou: “Se espalhou, na
época, que era um movimento de missionários americanos de direita,
fundamentalistas, para combater a ACA”.143 Em outro depoimento, a ABU
apareceu como um meio propício à preservação da fé no ambiente universitário:

A ―crise da adolescência‖ tomou-me em cheio, levando-me a sufocar os


princípios morais e a disciplina religiosa que havia recebido. Por outro lado,
possibilitou que, com o tempo, experimentasse um profundo vazio, uma
necessidade de algo que me desse sentido à existência. Isso abriu caminho a
uma busca feita em termos pessoais; e dou graças a Deus por haver-me
concedido as oportunidades que então precisei. [...] Cito também a Aliança
Bíblica Universitária que, na época certa, quando ingressava na vida
universitária, me ofereceu o ambiente, a convivência, a comunhão que
precisava; e muito me ajudou a alcançar uma visão segura do Cristianismo. E
assim, no confronto inevitável com ideologias e escolas de pensamento,
tenho constatado a supremacia da mensagem de Jesus Cristo, solução integral
para os problemas do homem. 144

O texto acima foi escrito em 1969 por Uriel Heckert, 23 anos, estudante de
medicina na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e filho do Rev. Oséas
Heckert, pastor da Igreja Presbiteriana de Juiz de Fora.145 O jornal em que o texto
foi publicado menciona que o jovem tinha sido presidente e diretor da União da
Mocidade Presbiteriana (UMP), entidade que esteve na vanguarda dos
movimentos ecumênicos de juventude até ser fechada pelo Supremo Concílio da
IPB em função do conflito entre fundamentalistas e ecumênicos na igreja.146
Outras organizações dos movimentosde juventude cristão, católico e protestante,

143
CAVALCANTI, Robinson apud QUADROS, Eduardo Gusmão de. Evangélicos e mundo
estudantil: uma história da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (1957-1987). Rio de Janeiro:
Novos Diálogos, 2011, p 52.
144
O encontro. Ultimato, Ano II, nº. 13, janeiro de 1969, p. 4.
145
Uriel Heckert foi um dos criadores do Centro de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) em
1977.
146
A Confederação das UMPs foi proibida de se organizar em 1960 e o jornal Mocidade deixou de
circular nas igrejas em 1967. Apenas o trabalho de juventude da igreja foi reprimido, as sociedades
internas da IPB ligadas ao trabalho masculino e feminino continuaram com estruturas e modos de
funcionamento iguais ao da extinta UMP. ARAÚJO, João Dias de. Inquisição sem fogueiras: a
história sombria da Igreja Presbiteriana do Brasil. 3ª. Edição. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p.
47-58. A UMP só voltaria a se organizar a partir de 1982.
71

deixaram de existir depois do golpe militar por possuir vínculos com o movimento
estudantil ou com as esquerdas. Reprimidas tanto pelas cúpulas eclesiásticas
quanto pela ditadura, a católica JUC e a protestante UCEB encerraram as
atividades em 1966. Com isso, a ABU se tornou “o único movimento nacional a
trabalhar com a articulação entre a vida estudantil e a vida religiosa‖.147
Os movimentos estudantis da CIEE formaram muitas lideranças e
difundiram novas referências teológicas, contribuindo com a reflexão sobre o
sentido de ―missão da igreja‖ que seria desenvolvido nos Congressos Latino-
americanos de Evangelização (CLADE). Os CLADEs foram espaços de
articulação de uma comunidade de teólogos e lideranças leigas que criticavam o
fundamentalismo e a reprodução da herança missionária norte-americana do
protestantismo continental.
O CLADE I (1969), em Bogotá, na Colômbia, foi organizado pela
Associação Evangelística Billy Graham148, agência missionária norte-americana
de perfil conservador. O livro de Peter Wagner (1930-), missionário norte-
americano que atuava na Bolívia, intitulado Teologia latino-americana:
esquerdista ou evangélica? foi distribuído entre os congressistas. Tratava-se de
uma denúncia de que a teologia produzida pelo ISAL possuiria orientação
marxista e seria influenciada pelo Concílio Vaticano II, no qual se listava os
teólogos da ―esquerda radical protestante‖, dentre os quais Richard Shaull, José
Miguez Bonino, Emílio Castro, Rubem Alves e Joaquim Beato.149
O livro de Peter Wagner era também a defesa das teorias de crescimento da
igreja promovidas pelo Seminário Fuller de Pasadena, EUA.150 Os métodos

147
QUADROS, Eduardo Gusmão de. Evangélicos e mundo estudantil: uma história da Aliança
Bíblica Universitária do Brasil (1957-1987). Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011, p 50.
148
Billy Graham (1918-), é importante pregador norte-americano, influente na política dos EUA e
organizador de muitas cruzadas evangelísticas. A associação que leva o seu nome esteve à frente
não apenas da organização do CLADE I, mas também do Congresso Mundial de Evangelização
em Lausanne, na Suíça, no ano de 1974 que se tornaria um marco para o evangelicalismo latino-
americano.
149
ESCOBAR, Samuel. La fundación de FTL: breve ensayo histórico. In: PADILLA, René (Org.).
25 años de teologia evangélica latinoamericana. Buenos Aires: Fraternidad Teológica
Latinoamericana, 1995, p. 15 e 16.
150
O Seminário Fuller produziu um estudo que apontava o lugar secundário das missões norte-
americanas na evangelização do continente diante do crescimento pentecostal, das mudanças do
catolicismo depois do Concílio Vaticano II e do protestantismo depois do movimento de ISAL. O
resultado do estudo foi o livro Avance Evangélico en la América Latina (1969). Após apresentar
um diagnóstico pessimista, recomendou estratégias missionárias que assimilavam métodos
pentecostais de proselitismo, o modelo de cruzadas evangelísticas de Billy Graham e um processo
de ―mobilização total‖ que envolvia manifestações de massa e ocupação do espaço público.
72

propostos pelo Seminário Fuller deram origem, na América Latina, ao movimento


―Evangelismo a fondo‖ (EVAF), que unia a ênfase na evangelização como a
tarefa primordial da igreja com “una dimensión política – el deseo de competir
con la izquierda‖ colocando ―sus esperanzas en las reformas de la Alianza para el
Progreso norteamericana”.151Os evangélicos depositaram muitas esperanças nos
programas Aliança para o Progresso e Alimentos para a Paz, do Governo
Kennedy (1960-1963), direcionados aos países latino-americanos como uma
forma de contenção ao avanço do comunismo, de modo que muitas igrejas
participaram das campanhas de doação de alimentos.152 Rubem Alves, um dos
acusados de esquerdista no livro de Peter Wagner, relatou que uma das denúncias
aos protestantes ecumênicos foi que ―nos deleitávamos quando nossos filhos
escreviam frases de ódio contra os americanos, nas latas de leite em pó por eles
doadas (eram os anos do programa Alimentos para a Paz)‖.153
O patrocínio do CLADE I a esta proposta missionária e o teor beligerante do
livro de Peter Wagner mobilizaram missionários latino-americanos, alguns
atuantes no CIEE continental, que pensavam uma alternativa evangélica ao
movimento de ISAL, mas rejeitavam o fundamentalismo norte-americano e o
―Evangelismo profundo‖.Evangélicos de diferentes nacionalidades e
denominações começaram a pensar na criação de uma entidade continental de
reflexão teológica. Como descreveu Samuel Escobar, um dos expoentes do grupo:

Não nos sentíamos representados pela teologia elaborada na América do


Norte e imposta por meio de seminários e institutos bíblicos dos evangélicos
conservadores, cujos programas e literatura eram tradução servil e repetitiva,
forjada em uma situação totalmente alheia à nossa. Tampouco nos sentíamos
representados pela teologia elitista dos protestantes ecumênicos, geralmente
calcada em moldes europeus e alienada do espírito evangelizador e das
convicções fundamentais das igrejas evangélicas majoritárias do continente
americano.154

LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no


protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 158-162.
151
STOLL, David. ¿América Latina se vuelve protestante? Cidade do México: Nódulo, 2002, p.
146.
152
Sobre a participação das igrejas evangélicas brasileiras no programa ―Alimentos para a Paz‖
ver: ALMEIDA, Luciane. O comunismo é o ópio do povo: representações dos batistas sobre o
comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia (1963-1975). Dissertação (Mestrado
História) – UEFS, Feira de Santana, 2011, p. 85.
153
ALVES, Rubem.Da Esperança. Campinas: Papirus, 1987, p. 30.
154
ESCOBAR, Samuel. La fundación de la Fraternidad Teológica Latinoamericana: breve ensayo
histórico. In:PADILLA, René (Compilador). 25 años de teología evangélica latinoamericana.
Buenos Aires, Fraternidad Teológica Latinoamericana, 1995 p. 16.
73

Acima, a dupla contraposição aos evangélicos fundamentalistas e aos


protestantes ecumênicos. Aos primeiros, a contestação foi à teologia elaborada na
―América do Norte‖, à imposição e reprodução da mesma através da tradução de
uma literatura ―forjada em uma situação totalmente alheia à nossa‖, portanto, sem
identidade latino-americana. Aos segundos, a contestação foi ao ―elitismo‖ da
teologia ―calcada em moldes europeus‖, neste caso, também importada, mas
principalmente ao alheamento à identidade evangélica das comunidades
protestantes do continente, ou seja, seu ―espírito evangelizador‖ e suas
―convicções fundamentais‖. Sobre este último aspecto, cabe destacar que:

Para cumprir o papel de teologia contextualizada, os teólogos da missão


latino-americanos entenderam como condição necessária não abrir mão da
tradição protestante evangélica, pois seria a partir dela que tratariam da
situação histórica da América Latina. Compreenderam que este era o seu
contexto eclesial e lugar legítimo para o fazer teológico. (SANCHES, 2009,
p. 60)

O programa para uma identidade evangélica latino-americana a fundamentar


a nova comunidade teológica estava delineado: construir uma teologia a partir da
situação do continente e da identidade missionária e doutrinária das comunidades
protestantes. Identidade heterogênea, a despeito da tentativa dos projetos
concorrentes de defini-la, mesmo no campo conservador, como ficou evidente no
CLADE I.
A Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL) passou a existir
institucionalmente em 1970, quando realizou uma consulta sobre ―El debate
contemporáneo sobre la Bíblia‖.155 Os membros que se tornaram mais influentes
foram: Samuel Escobar (1932-); René Padilla (1932-) e Orlando Costas (1942-
1987). Estes três nomes representam, respectivamente, as ênfases principais do
evangelicalismo: compreensão da situação política e religiosa da América Latina
155
A consulta ocorreu em Cochabamba entre os dias 12 e 18 de dezembro de 1970 e contou com a
presença de fundamentalistas, como os missionários norte-americanos que atuavam no continente
Peter Wagner e Washington Padilla. Os oradores do evento, no entanto, foram os missionários e
teólogos latino-americanos do novo evangelicalismo que começou a se articular no CLADE I. A
consulta produziu a Declaração de Cochabamba. Assinaram a declaração: Ismael Amaya,
Francisco Anabalón, Pedro Arana, Robinson Cavalcanti, Enrique Cepeda, Samuel Escobar, Hector
Espinoza, Geraldo de Ávila, David. L. Jones, André Kirk, Antonio Nuñez, René Padilla,
Washington Padilla, Ericson Paredes, Oscar Pereira, Pablo Pérez, Mauro Ramalho, Asdrúbal Rios,
Pedro Savage, Ricardo Sturz, Douglas Smith, Ezequiel Torrez, César Thomé, Virgílio Vangioni e
Peter Wagner. As comunicações da consulta foram publicadas dois anos depois no livro:
SAVAGE, Pedro (Coordenador). El debate contemporáneo sobre la Bíblia. Barcelona: Ediciones
Evangélicas Europeas, 1972.
74

numa perspectiva evangélica; reflexão sobre a Missão Integral da igreja, entendida


como a união de evangelização e ação social; contextualização do culto e da
pregação evangélica às culturas latino-americanas.
Samuel Escobar, peruano e missionário batista, atuou como assessor dos
movimentos da CIEE no Brasil e na Argentina nos anos 1960 e se tornou diretor
da revista e editora Certeza, responsável pela publicação de grande parte da
produção do movimento de Missão Integral. René Padilla, equatoriano, radicou-se
na Argentina, atuando junto ao movimento local da CIEE nos anos 1960. De
formação batista, tornou-se depois ligado aos Irmãos Livres e criou a Fundación
Kairós que editava a revista Iglesia y Misión. Orlando Costas era porto-riquenho e
professor do Seminário Bíblico Latino-americano (SBL), na Costa Rica. De
formação metodista, tornou-se batista e depois membro da denominação
Discípulos de Cristo.156
Os teólogos da FTL criticavam a preocupação exclusiva do movimento
―Evangelismo a fondo” com o crescimento quantitativo da igreja. Para René
Padilla, isto era fruto do ―condicionamiento que el sistema capitalista ha venido
ejerciendo sobre los ‗missiólogos‘ del mundo evangélico‖.157Assim como os
ecumênicos e os teólogos da libertação, os intelectuais da FTL falavam do ―Reino
de Deus‖ como metáfora de um horizonte de plena realização humana e igualdade
social anunciada nos evangelhos. Em 1975, a FTL publicou o livro El Reino de
Dios y América Latina.158O Reino de Deus foi interpretado como o centro da
mensagem cristã, que dotava a igreja e a história de uma dimensão escatológica,
não mais entendida como o final dos tempos, mas como “um novo mundo no seio
da história” já presente através da igreja e ainda por vir, como uma promessa a
nutrir a esperança cristã.159
Outros conceitos comuns ao Protestantismo Ecumênico ganharam novos
significados, forjando um vocabulário muito próprio à FTL, senão nas palavras
utilizadas, ao menos no sentido dado a elas, na identidade atribuída por seus

156
CALDAS, Carlos. Orlando Costas: Sua contribuição na história da teologia latino-americana.
São Paulo: Editora Vida, 2007.
157
PADILLA, René (Org.). El Reino de Dios y América Latina. Buenos Aires: Casa Bautista de
Publicaciones, 1975, p. 57.
158
Uma compilação de textos da II consulta teológica da entidade realizada entre os dias 11 e 18
de dezembro de 1972 no Seminário Bíblico em Lima, no Peru, com a presença de 27 participantes,
dentre eles José Miguez Bonino, um dos fundadores do movimento de ISAL.
159
PADILLA, op. cit., p. 45.
75

enunciadores. O mais importante deles foi o conceito de Missão Integral, para


significar que o Evangelho não apenas era para todos os homens, mas
principalmente para o homem todo, sem dicotomia entre o corpo e a alma. O
anúncio desse Evangelho pela igreja deveria superar outras dicotomias, tais como:
secular e religioso, responsabilidade social e evangelização, fé e obras. Numa
consulta da FTL sobre ética social em 1972, Samuel Escobar alertou que “a
menos que tomemos conciencia de lo político, no podremos emprender lo social
en buena conciencia”.160 Orlando Costas, por sua vez, propôs uma reflexão sobre
o culto protestante na cultura latino-americana. O culto foi tomado como um
indício capaz de indicar se “esa comunidad es integrada o desligada de la
sociedad, se si ve a sí misma como sierva o primadona, se concibe su culto como
un refugio alienante o como una celebración liberadora”.161Para o autor, todo
culto deveria ser ―indígena‖, ou seja, autenticamente nacional ou conscientemente
enraizado na cultura evangelizada:

Elementos culturales como los himnos, el sermón, y los avisos; expresiones


litúrgicas, como la estructura arquitectónica y las decoraciones que
caracterizan el lugar de culto, los movimientos corporales, los gestos, el ritmo
y las actitudes y la clase de oficiantes-participantes revelan la intensidad de
interacción de una congregación con su cultura.162

No Congresso Mundial de Evangelização ocorrido em Lausanne, na Suíça,


em 1974, e organizado pela Associação Evangelística Billy Graham, o
evangelicalismo se consolidou como uma tendência oposta ao fundamentalismo,
distinta do ecumenismo protestante e da Teologia da Libertação. O documento do
conclave foi muito influenciado pelas ideias dos teólogos latino-americanos da
FTL, sendo Samuel Escobar um dos componentes do comitê de redação
representando a América Latina, e pelas ideias do inglês John Stott (1921-2011),
pastor anglicano. O texto, que ficou conhecido como ―Pacto de Lausanne‖,
incorporou principalmente os conceitos de Reino de Deus e Missão Integral como
parâmetros para a contextualização do cristianismo e para o compromisso dos
cristãos com a justiça social. O quinto dos quinze itens do Pacto, intitulado

160
Textos da consulta foram publicados dois anos depois. ESCOBAR, Samuel. La situación
latinoamericana. In: PADILLA, René (Org.). Fe cristiana y Latinoamérica hoy. Buenos Aires:
Ediciones Certeza, 1974, p. 33.
161
COSTAS, Orlando, La realidad de la Iglesia Evangélica latinoamericana. In: PADILLA, René
(compilador). Fe cristiana y Latinoamérica hoy. Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1974, p. 39.
162
Ibidem, p. 40.
76

―Responsabilidade Social Cristã‖ dizia: “A mensagem de salvação implica


também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de
discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer
que existam”.163
O movimento de Missão Integral passou a invocar o ―espírito de Lausanne‖
em suas falas, escritos e congressos, para conclamar os evangélicos ao
compromisso de transformação social como inerente à ação evangelizadora da
igreja. A recepção no Brasil foi mais lenta. O núcleo brasileiro da FTL se
institucionalizou entre 1983, quando criou a revista Boletim Teológico,164 e 1985
quando se tornou formalmente um setor nacional da FTL com estatuto próprio; a
FTL-Setor Brasil.165 Foi formado inicialmente por luteranos do sul do país ligados
à Aliança Bíblica Universitária e ao Movimento Encontrão166 – Arzemiro
Hoffmann (1946-), Ênio Müller (1954-), Marlon R. Flück (1957-), Emil
Sobottka,167 Valdir Steuernagel (1950-) e pelo anglicano Robinson Cavalcanti
(1944-2012).
Há aqui uma diferença fundamental entre a experiência de ISAL e FTL. Se
na primeira, desde o início, houve uma atuação significativa de brasileiros como
Rubem Alves, Waldo César e Joaquim Beato, estabelecendo uma comunicação
direta da teologia do ISAL com o ecumenismo protestante no Brasil, na segunda
houve um descompasso entre a FTL continental e a brasileira, que resultou numa
incorporação tardia das referências de Lausanne e da Teologia da Missão Integral
elaborada pelos expoentes do evangelicalismo continental.
A difusão da Missão Integral aconteceu, a princípio, por iniciativa da ABU,
estruturada há mais tempo, presente em maior parte do território nacional e da
qual faziam parte como secretários, assessores ou apoiadores, membros da FTL
nacional, a exemplo de Valdir Steuernagel, Arzemiro Hoffmann e Robinson

163
STOTT, John (Org.). A missão da igreja no mundo de hoje (as principais palestras de Lausanne
74). Billy Graham, John Stott, Samuel Escobar, René Padilla e outros. São Paulo: ABU Editora,
1982.
164
Alguns intelectuais do Protestantismo Ecumênico transitariam entre os protestantes da Missão
Integral, a exemplo de José Miguez Bonino na FTL continental e João Dias de Araújo na FTL-
Setor Brasil. Este último compôs a comissão editorial do Boletim Teológico por vários anos.
165
LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no
protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 175.
166
Voltado para atividades evangelísticas, pode ser considerado um movimento de avivamento da
fé formado por luteranos descontentes com as diretrizes da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil (IECLB), uma das denominações mais engajadas no ecumenismo protestante.
167
Não encontrei informações sobre a idade.
77

Cavalcanti. Também contribuíram para o protagonismo da entidade estudantil, a


relação dos expoentes da FTL continental com os núcleos nacionais do CIEE e a
realização do Congresso Missionário da ABU em Curitiba no ano de 1976, cujo
documento final, o Pacto de Curitiba, incorporou alguns dos temas de Lausanne.
Antônia Leonora Van Der Meer, à época assessora da entidade, relatou em suas
memórias:

O Congresso Missionário foi realizado em janeiro de 1976, em Curitiba.


Despertou tanto interesse que, no princípio, houve 3 mil inscrições. Cada
inscrito tinha que fazer um curso por correspondência e, assim, foram
selecionados 500 participantes (além de assessores e preletores). Como isso
era possível no Brasil de 1976, em que todos os estudantes eram suspeitos de
ter simpatias de esquerda e o governo controlava ao máximo qualquer
possibilidade de surgimento de focos de revolução?168

A resposta, ela mesma antecipou. Enfatizando a proteção divina, evidenciou


outras defesas, mais terrenas, ao Congresso: ―Houve alguns políticos nossos
amigos que defenderam nosso encontro – e a benção de Deus estava claramente
sobre nós!‖.169A editora da ABU publicou uma série de documentos do Comitê de
Lausanne “visando uma igreja que abrace a sua Missão Integral a serviço do
Reino”170 como material de preparação para o Congresso Brasileiro de
Evangelização (CBE) que ocorreu em 1983. A própria ABU reconheceu no livro
em que publicou as palestras do congresso que “durante muitos anos houve um
grande silêncio quanto à Lausanne, com referência especial às publicações”.171A
resistência das igrejas brasileiras ao novo discurso e o atraso nas publicações foi
apenas uma face da moeda. A outra, segundo Luiz Longuini Neto, foi o boicote
dos próprios evangelicais brasileiros através de uma tradução dos documentos dos

168
MEER, Antônia Leonora Van Der. Eu, um missionário? Quando o jovem cristão leva a sério o
seu chamado. Viçosa: Ultimato, 2006, p. 54.
169
MEER, Antônia Leonora Van Der. Eu, um missionário? Quando o jovem cristão leva a sério o
seu chamado. Viçosa: Ultimato, 2006, p. 54. Os nomes dos políticos não foram citados, mas dos
participantes da FTL continental e nacional sim. Participaram do Congresso: ―Ada Lum, a famosa
missionária mundial da IFES (International Fellowship of Evangelical Students), mãe do estudo
bíblico indutivo, estava ali e conquistou o coração de todos. Estavam presentes líderes como Rev.
Abival Pires da Silveira e o missionário Robert Grant, René Padilla e Samuel Escobar, pioneiros e
nossos pais na fé e no desenvolvimento do trabalho estudantil na América Latina; Robinson
Cavalcanti, Valdir Steuernagel, Dionísio Pepe e muitos outros‖.
170
STEUERNAGEL, Valdir (Org.). A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada; as
principais palestras e seminários do Congresso Brasileiro de Evangelização. São Paulo: ABU
Editora, 1985, p. 285.
171
Ibidem, p. 284 - 285.
78

CLADEs e do Pacto de Lausanne (1974) feita de maneira a moderar ainda mais o


discurso, com algumas alterações e omissões claramente ideológicas.172
A ―Série Lausanne‖, publicada pela ABU durante os anos 1980, constava de
documentos produzidos em consultas internacionais do movimento sobre temas
que haviam gerado controvérsias no Congresso Mundial de Evangelização em
1974.173 A maioria deles era comentada por John Stott, cuja produção autoral
também era publicada pela editora da ABU, sendo em alguns casos a primeira
edição em português. A importância dessas publicações se deve ao alcance das
reflexões de John Stott no evangelicalismo internacional, sua proximidade com a
FTL continental e o papel que ele desempenhou na redação do Pacto de Lausanne,
em 1974, incorporando a contribuição latino-americana. Sua perspectiva de ação
social cristã era uma alternativa mais progressista, em comparação, por exemplo,
com a Associação Evangelística Billy Graham, mais assistencialista.
Entre suas obras publicadas em primeira edição pela ABU se destacam:
Crer é também pensar (1978), Contracultura cristã: a mensagem do sermão do
monte (1981), Tu, porém: A mensagem de II Timóteo (1982). Os livros continham
guias para estudos em grupo e eram muito utilizados nos encontros de formação
da ABU. Em Contracultura Cristã, o Sermão do Monte era apresentado como a
inspiração para o não conformismo com o estado atual ―tanto da igreja nominal,
como do mundo secular‖.174 Para o autor, o que Jesus estava propondo no Sermão
do Monte era uma nova mentalidade:

suas palavras são as que mais se aproximam de um manifesto, pois


descrevem o que ele desejava que os seus seguidores fossem e fizessem.
Penso que nenhuma outra expressão resume melhor a intenção de Jesus, ou
indica mais claramente o seu desafio para o mundo moderno, do que a
expressão "contracultura cristã‖.175

A igreja deveria ir ao encontro dos anseios de inconformismo e de valores


alternativos que a juventude pós-Segunda Guerra Mundial chamava de
contracultura.

172
LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no
protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 186-189.
173
No início de 1984, a ABU havia publicado os seguintes livros da série Lausanne: Tive fome;
Responsabilidade social; Evangelho e cultura; Viva a simplicidade; Homem secularizado; O
evangelho e o marxista; Desafio das novas religiões; Testemunho cristão junto a mulçumanos.
174
STOTT, John. Contracultura cristã: a mensagem do sermão do monte. São Paulo: ABU, 1981,
p. 9.
175
STOTT, John. Op. Cit., p. 7.
79

Pois, se a juventude de hoje está à procura das coisas certas (significado, paz,
amor, realidade), ela as tem procurado nos lugares errados. O primeiro lugar
onde deveriam procurar é um lugar que normalmente ignoram, isto é, a
igreja. Pois, com demasiada freqüência, o que vêem nas igrejas não é a
contracultura, mas o conformismo; não uma nova sociedade que concretiza
seus ideais, mas uma versão da velha sociedade a que renunciaram; não a
vida, mas a morte.176
Carlos Queiroz (1961-), que à época da publicação do livro era membro da
ABU, escreveu: “Na juventude, refletir sobre o Sermão do Monte, tendo como
guia de estudo o comentário de John Stott intitulado Contracultura Cristã,
acalentou o sonho de transformação da sociedade‖.177Mas ainda que a ABU tenha
sido fundamental para a difusão da Missão Integral no Brasil, a expressão
teológica do movimento foi amadurecida na FTL nacional. Um marco na tentativa
de colocar o movimento na agenda das igrejas evangélicas foi o Congresso
Brasileiro de Evangelização (CBE) ocorrido em Belo Horizonte, em 1983,
organizado pela FTL e patrocinado pela Visão Mundial. O tema era ―A
evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada‖. No primeiro volume do Boletim
Teológico da FTL foram explicitados os objetivos do evento identificados com as
propostas da Teologia da Missão Integral e com o Pacto de Lausanne:

Queremos alcançar o homem todo, com o evangelho todo e em todo o lugar.


Este homem todo quer ser amado e compreendido por nós, com todas as suas
implicações. Não somos chamados apenas ao anúncio da palavra verbal, mas
ao testemunho da vida e ao envolvimento concreto com aqueles que são
carentes e sofredores. Esta perspectiva de compromisso com os pobres, nos
seus variados aspectos, bem como a dimensão profética do ministério da
igreja, são o resultado puro e límpido de uma leitura profunda e sincera da
Palavra de Deus e do desejo de modelar a nossa missão pela do Mestre.178

O evangelicalismo quis fazer do CBE o seu Congresso de Lausanne, um


“atestado de maioridade da igreja evangélica no Brasil”,179 conforme a
apresentação do livro com as principais palestras do congresso e com título
homônimo ao tema do evento:

176
STOTT, John. Contracultura Cristã:a mensagem do sermão do monte. São Paulo: ABU, 1981,
Op. Cit. p. 7-8.
177
Texto de apresentação do livro QUEIROZ, Carlos. Ser é o bastante: felicidade à luz do sermão
do monte. Curitiba: Encontro, 2009, p. 14.
178
. BOLETIM TEOLÓGICO. Congresso Brasileiro de Evangelização. out./dez.1983.Outubro a
Dezembro de 1983. Ano 1, n° 1. FTL.
179
Valdir Steuernagel no texto de apresentação do livro com as palestras do CBE publicado em
1985 pela editora da ABU. O autor foi Secretário Geral da entidade estudantil. STEUERNAGEL,
Valdir (Org.). A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada; as principais palestras e
seminários do Congresso Brasileiro de Evangelização. São Paulo: ABU Editora, 1985, p. 8.
80

Nunca houve, numa reunião evangélica interdenominacional no Brasil,


tamanha representação por estados, regiões, denominações e tipos de
ministérios. Com seus dois mil e poucos participantes, o CBE foi,
certamente, uma das reuniões mais representativas do protestantismo
brasileiro dos últimos tempos e, talvez, de todos os tempos.180

O critério era a representatividade do segmento evangélico. Na tentativa de


apresentar-se como o mais importante conclave do protestantismo no Brasil até
então. Houve um esquecimento da Conferência do Nordeste, mesmo para fins
comparativos quanto à representatividade ou à abrangência dos temas discutidos.
O evento foi fundamentalmente voltado para a evangelização e todos os demais
temas foram discutidos em função desta ―tarefa inacabada‖. Não houve, pelas
informações do livro, intelectuais sem filiação religiosa entre os palestrantes.
Como os demais congressos voltados para a evangelização, o CBE foi um
fórum no qual as discussões sobre a missão da igreja serviram para que o
evangelicalismo procurasse uma abertura à reflexão teológica sobre a
responsabilidade social em meio a discursos mais conservadores que pautaram o
evento. Para o pastor Marcos Monteiro (1951-), na época professor do Seminário
Batista em Recife e participante do Congresso:

Num certo sentido, eu creio assim que o Congresso Brasileiro de


Evangelização foi propedêutico, foi o início de caminhada para algumas
pessoas que ultrapassaram os limites de Lausanne. Por outro lado, no meu
caso específico, eu tinha agora uma teologia mais confortável, porque o
imaginário eclesiástico da Missão Integral era o imaginário da igreja
evangélica, o conversionismo, a própria questão da evangelização e mais uma
coisa bem interessante que eu acho no imaginário que atrapalhava outras
coisas: a questão do exorcismo. Tudo isso fazia parte do pacote todo da
Missão Integral e que não se questionava algumas coisas.181

Uma análise do Congresso de 1983 pode ajudar a compreender os temas


sociais prioritários e como isso era conciliado com a identidade evangélica. Os
textos que discutiam a responsabilidade social da igreja citavam o quinto
parágrafo do Pacto de Lausanne, com o qual o CBE declarou-se comprometido no

180
STEUERNAGEL, Valdir (org.). A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada; as
principais palestras e seminários do Congresso Brasileiro de Evangelização. São Paulo: ABU
Editora, 1985, p. 8.
181
Entrevista ao autor. Marcos Monteiro, 2014. Ele se formou em Teologia no Seminário
Teológico Batista do Norte do Brasil (STBNB), em Recife, em 1976 e tornou-se professor no
início da década seguinte.
81

documento final. Três textos foram publicados na seção ―Questão social‖, escritos
por Carlos Queiroz182, Dieter Brepohl183 e Paulo Ayres Mattos (1940-)184.
Além das palestras principais, o livro publicou na seção ―ênfases e acentos‖,
temas específicos trabalhados durante o congresso em grupos de estudos, todos
referidos ao tema geral do evento: a evangelização. Nem todos os temas foram
publicados. Ficaram de fora, por exemplo, ―Cristianismo, marxismo e
capitalismo‖,de Ziel Machado e ―A missão da mulher na igreja‖, de Sulamita
Ferreira e Maria Lucia Marques. Nesta seção, o congressista mais preocupado em
discutir a ―questão social‖ foi o assessor católico da ABU, Luís José Dietrich. A
despeito de citar referências evangelicais no seu texto, como a palestra de John
Stott no Congresso de Lausanne e um livro sobre a igreja primitiva publicado pela
editora Certeza de Samuel Escobar, seu pronunciamento foi o mais próximo da
Teologia da Libertação na abordagem da pobreza:

O compromisso com os pobres deve ser entendido como um compromisso


com a justiça, porque os pobres não são produto da natureza, e sim,
consequência de um modelo de sociedade injusto e concentrador de riquezas
e de poder. Os pobres são os injustiçados, os empobrecidos. O compromisso
com os pobres sem o compromisso com a justiça é demagogia e traição à boa
fé dos pobres. Isto significa que, além do atendimento assistencial, necessário
porque urgente, deve-se também lutar pela criação e estabelecimento de
novas estruturas que, ao contrário das já existentes, não sejam geradoras de
pessoas pobres e miseráveis.185

Integral, contextualizada, socialmente responsável e promotora da justiça.


Essa deveria ser a missão da igreja. Se havia recusa à Teologia da Libertação, o
evangelicalismo preocupava-se em legitimar o engajamento político em lutas
emancipatórias dos sujeitos subalternos como inerentes ao testemunho cristão e
tentava familiarizar os evangélicos com conceitos que faziam parte da teologia

182
QUEIROZ, Carlos Pinheiro. Testemunho: a questão social. In: STEUERNAGEL, Valdir
(Org.). A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada; as principais palestras e seminários do
Congresso Brasileiro de Evangelização. São Paulo: ABU Editora, 1985, p. 157-161.
183
BREPOHL, Dieter. Afluência e pobreza: a relação entre evangelização e responsabilidade
social. In: STEUERNAGEL, Valdir (Org.). A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada; as
principais palestras e seminários do Congresso Brasileiro de Evangelização. São Paulo: ABU
Editora, 1985, p. 129-148.
184
MATTOS, Paulo Ayres. Os irmãos que somos nós. In: STEUERNAGEL, Valdir (org.). A
evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada; as principais palestras e seminários do Congresso
Brasileiro de Evangelização. ABU Editora, São Paulo, 1985, p. 149-156.
185
DIETRICH, Luís José. A evangelização e o compromisso com os pobres. (p. 226). In:
STEUERNAGEL, Valdir (org.). A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada; as principais
palestras e seminários do Congresso Brasileiro de Evangelização. ABU Editora, São Paulo, 1985,
p. 226.
82

latino-americana, ainda que reelaborados para conciliá-los com uma identidade


evangélica mais conservadora.
As reflexões sobre a ação cristã na sociedade ou, em termos teológicos,
sobre a missão da igreja no mundo, seriam marcadas pela conjuntura de
polarização política na América Latina, em tempos de Guerra Fria e processos
revolucionários. A Teologia da Libertação e a Teologia da Missão Integral, o
movimento de Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL) e a Fraternidade
Teológica Latino-americana (FTL), expressaram diferentes caminhos do
protestantismo continental. As convergências e divergências entre estes setores e
os diálogos que estabeleceram com as conjunturas políticas formaram as
referências intelectuais, os espaços institucionais e as militâncias políticas dos
protestantes que se aproximaram das esquerdas e dos movimentos de
minorias.Nas décadas de 1970 e 1980, o movimento de Missão Integral e o
Protestantismo Ecumênico criaram, através de redes institucionais e produções
intelectuais, a linguagem teológica, o discurso ético e as estratégicas de atuação
simultânea no campo religioso e político.
83

Capítulo II
Igreja e missão: redes institucionais, produção intelectual e
sociabilidade religiosa

O reino dos céus é semelhante a uma rede


lançada ao mar, e que apanha toda a
qualidade de peixes. Mateus 13:47

O Protestantismo Ecumênico e o movimento de Missão Integral criaram


uma rede ampla de entidades paraeclesiásticas, que se constituíram em espaços de
elaboração de uma militância para a intervenção cristã na sociedade. Para
compreender a capacidade dessas entidadesde influenciarem o universo religioso
protestante, é preciso considerar seus limites e possibilidades de atuação. De
acordo com Paul Freston:

Na divisão do trabalho religioso, a para-eclesiástica cumpre o mesmo papel


das entidades católicas que transcendem a estrutura paroquial e diocesana,
como as ordens religiosas, os movimentos leigos da Ação Católica, as
Pastorais (da Terra, etc.) e os ―novos movimentos‖ (Renovação Carismática e
outros). A diversidade ideológica nesses exemplos católicos nos alerta para a
possibilidade da mesma diversidade protestante. Mas há duas diferenças. Por
um lado, as para-eclesiásticas têm mais liberdade, não podendo ser fechadas
por hierarquias eclesiásticas. Por outro lado, a segmentação protestante
dificulta o exercício, por parte das para-eclesiásticas, de um papel reformador
de toda a igreja evangélica, como tiveram os movimentos da Ação Católica
no catolicismo brasileiro nos anos 50 e 60.186

Nas décadas de 1950 e 1960, as principais paraeclesiásticas ecumênicas


foram: a União Cristã dos Estudantes do Brasil (UCEB), a Confederação
Evangélica do Brasil (CEB) e Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL). O
ecumenismo da CEB foi, fundamentalmente, uma cooperação entre denominações
do protestantismo histórico. Abrigou um setor minoritário mais aberto ao diálogo
com o catolicismo e um setor majoritário mais resistente a essa aproximação. Essa
divisão também se manifestava em relação ao engajamento na então chamada
―questão social‖, ou seja, na discussão sobre problemas como a fome, o
desemprego, as desigualdades, o analfabetismo, a não participação popular na
política, etc., o que fez a CEB oscilar entre o apoio às reformas de base, propostas
pelo Governo Jango, e o anticomunismo, que rejeitava esse alcance da
―responsabilidade social‖ como um esquerdismo.
186
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Unicamp, Campinas, 1993, p. 122.
84

Se até a Conferência do Nordeste em 1962 os setores progressistas


conseguiram pautar a agenda da CEB, a partir do golpe militar de 1964, os
conservadores se tornaram responsáveis pelas ações da entidade.187 Para Muniz
Ferreira, a trajetória do Protestantismo Ecumênico no Brasil pode ser descrita
como uma história de insurgências, conciliações e resistência:

De um lado, uma fração de vanguarda, que reivindicava um aggiornamento


do pensamento e da ação social protestante à luz das concepções políticas e
sociais renovadas em disseminação na sociedade brasileira. De outro, grupos
predominantes no rebanho de fiéis das principais denominações brasileiras,
que apresentavam uma vivência religiosa fortemente tributária de tradições
individualistas, liberais conservadoras, legalistas e anticomunistas.188

Os conflitos políticos que culminaram no golpe militar de 1964 impactaram


as igrejas, a CEB e as iniciativas institucionais que a sucederam. Na década de
1970, algumas paraeclesiásticas reorganizaram os ecumênicos progressistas
dispersos com a desarticulação – pela repressão política e eclesiástica – das
entidades das décadas anteriores, e se tornaram novos espaços de renovação
teológica, cooperação eclesiástica e contestação ao regime militar.

Ecumenismo em rede: serviço, pesquisa e representação eclesiástica

Dentre as entidades paraeclesiásticas que reorganizaram o setor ecumênico,


se destacaram o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), a
Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE) e o Instituto de Estudos da
Religião (ISER). Sobre o CEDI, o pastor Djalma Torres (1926-) escreveu em sua
autobiografia que se tratava de “uma entidade de proscritos protestantes e uns
poucos católicos, no Rio de Janeiro”. E continuou:

187
Depois do golpe, a CEB enviou um telegrama de congratulações ao presidente Castelo Branco,
fazendo votos ―de contínua assistência divina ao Governo de Vossa Excelência, iluminando o
caminho da reconstrução cristã democrática em nossa pátria, assegurando direitos ao homem,
promovendo justiça social e bem-estar ao povo, defendendo a soberania nacional, cristianizando o
desenvolvimento da sociedade brasileira, conduzindo a Pátria a alto destino no concerto de nações
livres, sentido em que Vossa Excelência terá constante apoio moral e leal cooperação dos cristãos
evangélico. Amandino Adorno Vassão, presidente; Rodolfo Anders, secretário-geral.‖
(FERREIRA In: DIAS [et. ali.], 2010, p. 86)
188
FERREIRA, Muniz. Insurgência, conciliação e resistência na trajetória do Protestantismo
Ecumênico brasileiro. In: DIAS, André Luiz Mateddi; COELHO NETO, Eurelino Teixeira;
LEITE, Márcia Maria Barreiros (Orgs.). História, Cultura e Poder. Feira de Santana: UEFS
Editora, Salvador: EDUFBA, 2010, p. 84.
85

Lá eu conheci e convivi com homens e mulheres ilustres no mundo da luta


ecumênica, vários deles lançados à diáspora por suas igrejas: Zwinglio Mota
Dias, José Bittencourt Filho, Carlos Cunha, Rubem Alves, Milton Schwantes,
Julio de Santa Ana e muita gente ainda marcada pela perseguição de suas
igrejas. O CEDI era um refúgio para muitos bons líderes expulsos de suas
igrejas ou desencantados com elas. As celebrações de encerramento das
reuniões eram marcadas por forte conteúdo emocional. (TORRES, 2011, p.
26)

A entidade nasceu do Centro Evangélico de Informação (CEI), criado em


1965 pelos setores progressistas desabrigados ou dissidentes da CEB, comoWaldo
César, Jether Ramalho (1920-), Domício Pereira de Mattos (1916-2010), Carlos
Cunha (1927-2011). O CEI publicava boletins informativos com notícias sobre a
atuação de pastores, seminaristas e leigos engajados em movimentos sociais e
pastorais populares, notícias do mundo ecumênico e denúncias de situações
arbitrárias no cenário internacional.189 Em 1974, o CEI transformou-se,
formalmente, no CEDI. Quatro anos depois criou a revista Tempo & Presença,
classificada pelos órgãos de informação e segurança da ditadura como um reduto
de ―expressos elementos esquerdistas‖ não apenas pela presença de intelectuais da
Teologia da Libertação, mas também em função da colaboração de intelectuais
seculares, em especial, marxistas.190
O CEDI foi adquirindo, ao longo da primeira década, uma estrutura ampla
para uma entidade paraeclesiástica, com escritórios no Rio de Janeiro e em São
Paulo, programas de assessoria pastoral, operária e rural, e de educação popular e
indígena. Publicava livros (Cadernos do CEDI), revistas (Tempo & Presença) e
jornais (Aconteceu, Aconteceu no Mundo Evangélicoe Contexto Pastoral), possuía
um Centro de Documentação, tanto do movimento ecumênico quanto dos
movimentos sociais, e realizava oficinas, cursos de formação e fóruns de debates
dos problemas nacionais. Entre 1979 e 1993, o Secretário Geral do CEDI foi
Zwinglio Mota Dias, que havia participado do movimento de ISAL. Sobre a
abrangência da instituição, ele comentou que:
189
No primeiro boletim, a capa foi ilustrada com uma fotografia do foguete soviético Sputnik e a
pergunta ―Qual a mensagem do espaço para o Cristianismo?‖. No encerramento da primeira
edição, o boletim questionava: ―Em várias partes do mundo, cristãos (católicos, protestantes e
ortodoxos) protestam contra injustiças e proclamam a vontade de Deus para a ordem social. Que
quer dizer o nosso silêncio, o silêncio do protestantismo brasileiro?‖. Apud CUNHA, Magali do
Nascimento. Contra todo silenciamento e esquecimento: memória de uma experiência de
confrontação religiosa. 1999, p. 9.
190
―Apreciação sobre a entidade; relata recebimento de fundos de organizações da Europa e
América Latina, contatos com grupos guerrilheiros na Guatemala e no México. In: DSI.
Documentos Avulsos. Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI). 12/8/1981.
86

O CEDI ficou uma coisa grande, poderosa, o CEDI cresceu muito, financiado
por agências ecumênicas, basicamente. Agências ecumênicas de vários países
da Europa, Canadá e EUA, e o meu papel neste período foi muito de manter
relações com as agências, aprovar projetos, e eu fiquei no CEDI até 1993. Em
1994, o CEDI encerra suas atividades e se multiplica em três novas ONGs. É
interessante, porque o CEDI foi uma das primeiras grandes ONGs do Brasil,
191
uma coisa ainda meio desconhecida por aqui.

No processo de abertura política, as ONGs se tornaram agentes importantes,


contribuindo para a inserção de militantes de diferentes tendências e movimentos
sociais no cenário político. Com o advento do pluripartidarismo no início dos anos
1980, tiveram uma relação ambígua com os partidos de esquerda: às vezes de
colaboração, em função da aproximação delas com os movimentos sociais e as
bases populares, outras, de competição na definição da agenda política destes
segmentos diante do Estado. De acordo com uma pesquisa realizada nos anos
1980, a maioria das ONGs possuía algum vínculo com instituições religiosas,
católicas e protestantes, e era financiada por agências internacionais, ecumênicas
ou estatais. Algumas foram organizadas por ex-exilados políticos e proscritos
religiosos.192
Para Virgínia Fontes, o surto de ONGs ocorrido nos anos 1980 promoveu
um deslocamento de sentido nas lutas sociais, profissionalizando, especializando
tecnicamente e remunerando em moldes empresariais, uma nova militância
responsável por “uma modificação substantiva nas formas de organização
popular”:193

Ocorria uma transferência de militância para as áreas de assessoria e


―serviço‖ que, conservando um horizonte vagamente rebelde – a
―transformação social‖ – o fazia de maneira difusa. A influência religiosa
provavelmente explica porque, embora atuando com sindicatos e com
inúmeros grupos de trabalhadores, sobretudo rurais, priorizavam o termo
―opressão‖, reduzindo-se as reflexões sobre a exploração (e suas diferentes
modalidades) nas próprias organizações de trabalhadores. Esses novos
intelectuais-militantes ligados às ONGs criticavam fortemente o intuito de
partidos de falar ―em nome‖ dos movimentos sociais, justificando assim sua
própria atuação; criticavam ao mesmo tempo as concepções de vanguarda,
muitas vezes caricaturando-as. [...] Cumpriam um papel segmentador,
educando e consolidando as lutas sociais, por um lado e, de outro,
cristalizando-as e favorecendo sua manutenção naqueles formatos, modo

191
DIAS, Zwinglio Mota. Entrevista concedida ao autor, Campina Grande-PB, 31/05/2013.
192
LANDIM, Leila. Experiência Militante – Histórias das assim chamadas ONGs. In: _________.
Ações em sociedade – militância, caridade, assistência, etc. Rio de Janeiro: NAU – Instituto de
estudos da religião (ISER), 1998.
193
FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro:
Fiocruz/UFRJ, 2010, p. 236.
87

inclusive de assegurarem sua própria reprodução enquanto ONGs ―a serviço


de‖.194
Esta crítica precisa ser situada na análise geral que Virgínia Fontes realizou
sobre o processo de abertura política, dando destaque ao processo de organização
dos trabalhadores em entidades nacionais autônomas como expressão de lutas
sociais realizadas no âmbito das organizações populares e da ampliação de
reivindicações políticas classistas.195As entidades nacionais que se formaram
impulsionando as lutas no sentido classista e contra-hegemônico à ordem
capitalista foram, para a autora, o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única
dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST).196
Esta abordagem é pertinente para compreender os interesses e limites das
ONGs, suas ambíguas relações com a política e com a reprodução da ordem
capitalista, mas sugere como horizonte das lutas sociais, o partido, o sindicato e o
movimento, capazes de organizar a luta ―em sua direção‖ contra-hegemônica.
Entretanto, a autora tem o devido cuidado em demonstrar que as próprias ONGs,
assim como os partidos e as entidades classistas, estavam igualmente em disputa:
“seu papel, de conservação ou de transformação, deriva de sua atuação orgânica
com as classes sociais em luta”.197 O CEDI possuía algumas características que se
enquadram nestas inserções das ONGs no campo político, embora com algumas
particularidades que indicam a complexidade do quadro.
A instituição agregou ex-exilados e proscritos religiosos. Ainda que não
fosse ligada oficialmente a uma instituição religiosa, nem fosse ela mesma uma
entidade que se definia eclesiasticamente, era financiada por agências ecumênicas
internacionais e atuava em assessoria pastoral, tanto para as pastorais católicas
quanto protestantes. Seus membros e colaboradores participavam de outras
ONGs, principalmente Entidades Ecumênicas de Serviço.198Muitos eram pastores,

194
FONTES, Virgínia. 2010, p. 236-237.
195
Virgínia Fontes adotou uma perspectiva gramsciana de análise ao se referir às ONGs como
―aparelhos privados de hegemonia‖, cuja multiplicação implicava no redirecionamento e sentido
das lutas, inserindo-se na disputa pela hegemonia política entre as classes sociais que
representavam o capital e o trabalho.
196
FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro:
Fiocruz/UFRJ, 2010, p. 232-233.
197
FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro:
Fiocruz/UFRJ, 2010, p. 231
198
Nome que designa as instituições religiosas de caráter ecumênico que prestam assessoria a
movimentos sociais ou desenvolvem projetos de serviço social.
88

teólogos ou leigos inseridos em igrejas ou comunidades de fé, ou ainda, quando


não inseridos, leigos que encontravam na atuação paraeclesiástica um substitutivo
para a filiação religiosa.
Na assessoria aos movimentos e pastorais sociais, o CEDI atuou nas frentes
sindical, rural e de educação popular. O trabalho de Heloísa Martins sobre o papel
da igreja no movimento operário paulista destacou o programa do CEDI “voltado
para a reconstrução das lutas operárias na região do ABC, com o objetivo de
colaborar na construção de um novo sujeito político histórico”.199 Tratava-se do
programa ―Memória e Acompanhamento do Movimento Operário‖, coordenado
pelo economista Aloisio Mercadante (1954-), assessor econômico da CUT e
militante do PT.200 O escritório de São Paulo, coordenado por um antropólogo,
possuía um programa de levantamento dos povos indígenas no Brasil que deu
importante contribuição à pesquisa e à militância indigenista dos anos 1980.
Os programas do Centro de Documentação voltados para os movimentos,as
pastorais sociais e o ecumenismo, publicavam o informativo Aconteceu,
ampliando os canais de comunicação das organizações populares com a opinião
pública ou com as redes de apoio. O programa de assessoria à pastoral protestante
produziu um informativo sobre o que acontecia no segmento religioso intitulado
Aconteceu no mundo evangélico e também um jornal de debates intitulado
Contexto Pastoral. Os programas para a área rural e para a educação popular
desenvolviam atividades ligadas às pastorais sociais, Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs) e círculos de leitura bíblica. O objetivo era a formação de novos
sujeitos políticos que organizassem desde a base os movimentos de luta pela terra
ou por uma educação emancipadora.
A revista Tempo & Presença tentava dar publicidade ao conjunto de
atividades do CEDI e constituir-se ela mesma numa literatura a serviço dos
movimentos sociais e ecumênicos. A revista é um bom indício do papel do CEDI
como mediador do Protestantismo Ecumênico, tanto no campo religioso quanto
político, pois ambos estavam em disputa e imbricados nas lutas sociais. Com qual
projeto de hegemonia contribuíram CEDI e Protestantismo Ecumênico? Isso será
visto neste e nos próximos capítulos, primeiro no campo religioso e depois, no

199
MARTINS, Heloisa Helena Teixeira de Souza. Igreja e movimento operário no ABC, 1954-
1975. São Paulo: Editora HUCITEC, 1994, p. 15.
200
TEMPO & PRESENÇA. Lutas operárias: desafios e perspectivas, nº. 221, agosto de 1987.
89

político, embora esta divisão seja apenas didática, uma vez que não acontecia
separadamente na experiência. Era difícil distinguir o religioso do político numa
ação pastoral, num projeto de educação popular ou mesmo numa nova proposta de
leitura da Bíblia.
Havia um trânsito entre os agentes que compunham as entidades
paraeclesiásticas. Alguns atuavam em duas ou mais entidades, em programas e
assessorias comuns, compartilhavam das mesmas fontes de financiamento dos
órgãos ecumênicos internacionais e participavam das mesmas publicações.
Constituíam, enfim, uma rede, cuja formação, considerando os sujeitos
protagonistas, remontava à CEB, UCEB e ISAL, agregando as novas lideranças
formadas nas décadas de 1970 e 1980.201 Estas instituições convergiam
principalmente quando a atuação se dava na esfera de apoio aos movimentos
sociais e na defesa dos Direitos Humanos, neste último caso, em constante diálogo
com os movimentos de oposição à Ditadura Militar. Ao fazê-lo, não deixavam de
desafiar o modo como as esquerdas lidavam com a religião:

Finalmente, devemos abandonar as velhas características das esquerdas,


como, por exemplo, ―a tradição iluminista e contratual‖, no dizer de José de
Souza Martins. Especificamente no que se refere às igrejas, de onde provém a
maioria das organizações de base vinculadas à defesa dos direitos humanos, a
relação precisa considerar o apoio fundamental das mesmas e a religiosidade
popular, em que, a par da dedicação em defesa dos direitos, se soma uma
característica tradição de fé e novas relações de mútuo respeito e fraternidade
entre os trabalhadores e seus dirigentes.202

Outra entidade evangélica ou teológica que transitou para um órgão


ecumênico de pesquisa e informação foi o Instituto Superior de Estudos
Teológicos (ISET) criado em Campinas no ano de 1970, que se transformou em
Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER) em 1973. Em 1977, passou a
publicar a revista Religião e Sociedade, que se tornou a mais importante
publicação acadêmica sobre religião no Brasil, e, a partir de 1981, as
Comunicações do ISER. Houve uma intensa colaboração ente CEDI e ISER,

201
Zwinglio Mota Dias falou, na entrevista ao autor, sobre a preocupação do CEDI com a formação
de novas lideranças para as pastorais: ―A gente montou o projeto Juventude e Fronteiras da
Missão, então a gente formava toda uma geração de novos pastores, novas lideranças, um
programa dedicado mesmo à juventude. Um trabalho muito interessante que era dirigido pelo José
Bittencourt Filho‖. DIAS, Zwinglio Mota. Entrevista concedida ao autor, Campina Grande-PB,
31/05/2013.
202
RECH, Daniel. Articulação Nacional: Repensar o caminho (p. 15-17). In: TEMPO E
PRESENÇA. Direitos Humanos: a luta dos povos, nº. 237, 1988
90

cujos escritórios no Rio de Janeiro ficavam muito próximos. Os autores que


assinavam os artigos das publicações de ambos eram comuns, assim como eram
compartilhadas as fontes internacionais de financiamento, os membros que
compunham os conselhos editoriais e a direção das instituições.
O ano de 1973 data ainda a criação da Coordenadoria Ecumênica de Serviço
(CESE), uma das principais articuladoras de iniciativas de ação social e trabalho
comunitário, financiada pelo Conselho Mundial de Igrejas, como a maioria das
Entidades Ecumênicas de Serviço.203A CESE era, de certa forma, herdeira do
Departamento de Projetos da antiga CEB, o único a sobreviver após o controle da
entidade pelos conservadores. O departamento de mocidade e o setor de Igreja e
Sociedadeda CEB foram fechados logo após o golpe de 1964, e os projetos
mantidos pela entidade (Apodi, Gurupi, SIM) eram realizados ―de forma
moderada e conciliadora, sem as críticas e a oposição que caracterizavam o Setor
de Igreja e Sociedade na década anterior‖.204A criação da CESE em 1973 foi
precedida de consultas realizadas nos três anos anteriores por setores ecumênicos,
protestantes e católicos, para discutir a captação de recursos, auxílio técnico e
cooperação institucional a projetos de desenvolvimento comunitário e serviço
social nas áreas de saúde, educação, migrações e direitos humanos.
A primeira Consulta aconteceu em Feira de Santana em 1970, com
participação de igrejas evangélicas e da Igreja Católica, em que foram debatidos
os problemas sociais. Um ponto que marcou aquela consulta e continuou pautando
as demais que a sucederam, foi a centralidade do Nordeste como lugar estratégico
de intervenção, diante das desigualdades regionais nas políticas públicas e ajuda
externa e dos índices sociais que tornavam a região emblemática da concentração
de renda e da pobreza.
Após a análise dos projetos remanescentes da CEB e a crítica aos modelos
tradicionais de ajuda, a Consulta recomendou a criação de uma Comissão de
Projetos coordenada por ummembro indicado pelas igrejas filiadas. Permeando a
concepção de ―serviço‖ da entidade estavam os princípios de: cooperação
203
A história da CESE foi resumida aqui com base no livro institucional publicado em 2013 para
comemorar os 40 anos da entidade: COUTO, Edilece; FERREIRA, Muniz; SILVA, Elizete da.
Ecumenismo e cidadania: a trajetória da Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE).
Organização Lucyvanda Moura. São Leopoldo: CEBI, 2013.
204
COUTO, Edilece; FERREIRA, Muniz; SILVA, Elizete da. Ecumenismo e cidadania: a
trajetória da Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE). Organização Lucyvanda Moura. São
Leopoldo: CEBI, 2013, p. 122.
91

ecumênica, defesa dos direitos humanos, responsabilidade social e educação


libertadora. Neste sentido, era uma recuperação das ideias do setor de Igreja e
Sociedade da CEB e do ISAL.205
A última Consulta antes da criação efetiva da CESE aconteceu em 1972, na
cidade de Salvador, estabelecendo os parâmetros da futura entidade e, ao mesmo
tempo, acirrando a polarização entre os setores conservadores e progressistas no
protestantismo da Bahia. Salvador foi a cidade escolhida como sededa instituição,
mas seus projetos sociais abrangiam todo o território nacional. Tornou-se um
centro de articulação do movimento ecumênico no Brasil, para o qual deu
particular impulso, formando lideranças ou apoiando aquelas que se projetavam
através de programas de intervenção social e pastoral. Uma das primeiras
publicações da CESE foi uma cartilha com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos comentada por cristãos católicos e evangélicos, relacionando o
conteúdo do documento com textos bíblicos.206 A colaboração com outras
Entidades Ecumênicas de Serviço e o apoio do CMI preocupavam a Ditadura
Militar, conforme observou André Brito:

a CESE, desde sua criação, passou a representar oficialmente o Conselho no


Brasil. Com efeito, ocorria com certa frequência de o CEDI contatar a CESE
a fim de conseguir recursos para financiar algum projeto ecumênico. Com
efeito, os espiões estatais do SNI estavam atentos ao funcionamento dessa
rede. Em documento de dezembro de 1979, foi constatado o envio de um
cheque no valor de quase dezesseis mil dólares, referente à última parcela
destinada ao financiamento de um dos cursos de formação desenvolvidos
pelo CEDI. O documento, que contém inclusive a cópia do cheque, com a
assinatura de Enilson Rocha, conclui com a seguinte observação: ―conforme
exposto pode-se caracterizar a ligação CESE-CEDI-CMI com recebimento de
doações, oriundas do estrangeiro para realização de suas atividades‖.207

A CESE colaborou com projetos que alcançaram grande relevância na


atuação do Protestantismo Ecumênico na Bahia: a Associação Feirense de Ação
205
―Antes da CESE, diversos grupos receberam de várias organizações mundiais somas fabulosas
para projetos e esses fundos foram empregados, na sua maior parte, em construções nas áreas mais
ricas do Sul. Eram templos, escolas, hospitais, mas em lugares errados. Então as Agências
começaram a retrair-se. E se fez esse admirável esforço ecumênico nacional, isto é, a CESE com
uma nova filosofia. A CESE é brasileira, dirigida por brasileiros, em ingerência de estrangeiros e
esperamos que assim continue‖. Apud BRITO, Souza André. Cristianismo ateu: o Movimento
Ecumênico nas malhas da repressão militar do Brasil, 1964-1985. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014, p.235.
206
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Coordenadoria Ecumênica de
Serviço (CESE). Salvador – BA, 1973.
207
BRITO, Souza André. Cristianismo ateu: o movimento ecumênico nas malhas da repressão
militar do Brasil, 1964-1985. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2014, p. 232.
92

Social (AFAS), o Serviço de Integração do Migrante (SIM), o Centro Ecumênico


de Direitos da Terra (CEDITER). A AFAS, o SIM e o CEDITER já mereceram
estudos abrangentes208 e não irei me deter neles, apenas mencionar que os dois
primeiros foram criados em Feira de Santana por Josué Mello (1953-) e o último,
por João Dias de Araújo, ex-alunos de Richard Shaull e pastores presbiterianos
com perfis diferentes de inserção no campo político baiano.209 Josué Mello se
aproximou do grupo político de Antônio Carlos Magalhães (1927-2007),
conhecido como ACM, enquanto João Dias de Araújo sempre esteve próximo aos
grupos de oposição ao carlismo.210Em depoimento a esta pesquisa, Djalma Torres
comentou sobre a dificuldade de situar politicamente os ecumênicos, citando
como exemplo a proximidade de Josué Mello com o carlismo:

Veja como é difícil diagnosticar isso. O pessoal da IPU era considerado um


pessoal de esquerda, mas você tinha Josué Mello, que foi Reitor da UEFS por
obra e graça de ACM. E aí, quando a gente questionou, quando eu questionei
o pessoal da IPU, a resposta que eu tive foi a mais ―esdrúxula‖ possível:
Josué representa a esquerda de ACM. Aí eu disse: eu não sei se ACM tem
esquerda. Então, quando você fala na postura dos líderes religiosos da Bahia
você se depara com essas dificuldades. Agora, tinha João Dias, com um bom
pensamento, você tinha Áureo, que estava no meio do caminho, Adauto, que
não se comprometia.Adauto até hoje não se compromete. Você tinha
politicamente ativo mesmo, o Celso, mas eu acho queCelso cometeu um
bocado de pecado como político. Somos amigos até hoje, mas...Tanto que
não se reelegeu, ele não soube trabalhar. Mas a militância ecumênica mesmo,
no meio presbiteriano, tinha esse pessoal.211

Percebe-se na entrevista de Djalma Torres, uma disputa no campo da


memória sobre o protagonismo ecumênico na Bahia, que se manifestou em outros
208
Há dois trabalhos fundamentais sobre o Protestantismo Ecumênico e suas redes institucionais
na Bahia: BRITO, Charlene. Da assistência à resistência: ecumenismo presbiteriano,
mendicância, migração e luta pela terra na Bahia (1968-1990). Dissertação (Mestrado em História)
– UEFS, Feira de Santana, 2013, e SILVA, Elizete da. Protestantismo Ecumênico e realidade
brasileira: evangélicos progressistas em Feira de Santana. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010.
209
Ambos eram pastores da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) que se juntaram com outras
lideranças presbiterianas reprimidas pela cúpula eclesiástica ou descontentes com a igreja e
formaram a Federação Nacional de Igrejas Presbiterianas (FENIP) em 1978. A FENIP deu origem
à Igreja Presbiteriana Unida (IPU) em 1983. A IPU participou desde o início do movimento
ecumênico e suas lideranças participavam do CEDI, do ISER e da CESE.
210
O carlismo foi a rede de relações de uma elite política estadual baiana com a liderança política
de Antônio Carlos Magalhães, ex-integrante da UDN, antes de 1964, da ARENA, após o golpe, e
do Partido da Frente Liberal (PFL), após o fim da ditadura. Sua maior influência se deu nos
últimos anos da ditadura e durante a década de 1990. A ocupação do grupo carlista no poder do
Estado ocorreu nas instâncias do governo, de grandes empresas públicas e privadas e das
comunicações (emissoras de rádio, televisão e órgãos de imprensa). ACM e o carlismo são
analisados na obra: NETO, Paulo Fábio Dantas. Tradição, autocracia e carisma: a política de
Antônio Carlos Magalhães na modernização da Bahia (1954 – 1974). Belo Horizonte: Editora
UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006.
211
TORRES, Djalma. Entrevista concedida ao autor, Alagoinhas-BA, Maio/2015.
93

aspectos discutidos mais adiante.Pode ser difícil para os sujeitos das memórias ou
para os historiadores atuais a definição política dos participantes do movimento
ecumênico, masas comunidades de informação e segurança da ditadura
enquadravam as redes institucionais no campo da esquerda, como foi feito com a
CESE, classificada como uma ―entidade esquerdista com sede em
SALVADOR/BA, que representa, no BRASIL, o Conselho Mundial de Igrejas
(CMI) e realiza os repasses dos recursos para os movimentos populares de
esquerda‖.212
Fechando o ciclo de entidades paraeclesiásticas que compunham as redes
institucionais e intelectuais do Protestantismo Ecumênico, formaram-se: o
Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) e o Conselho Nacional de Igrejas
Cristãs (CONIC), ambos em 1982. O CLAI e o CONIC eram formados por
representação de igrejas e movimentos cristãos, o primeiro exclusivamente
protestante e o segundo com a participação da Igreja Católica através de
representação da CNBB. Ao contrário das entidades de serviço, assessoria
pastoral e pesquisa, a atuação dos conselhos era especificamente religiosa,
organizando os diálogos intereclesiásticos entre as diferentes confissões cristãs.
Atuavam também como uma representação pública das igrejas filiadas
pronunciando-se em assuntos relativos à religião ou emitindo pareceres em temas
considerados de interesse público.
A rede ecumênica do protestantismo estabelecia relações com o catolicismo
progressista. Não era apenas uma proximidade institucional, mas também política
e teológica, envolvendo uma oposição comum ao conservadorismo religioso e à
ditadura. Em Salvador, por exemplo, havia convergência e colaboração entre a
rede ecumênica em torno da CESE e o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS).
A Companhia de Jesus criou os Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) a
partir dos anos 1960 para responder às transformações sociais que demandavam
uma nova vivência da Doutrina Social da Igreja; um ―apostolado social‖.213
O CEAS na Bahia era um desses centros. Unia religiosos e leigos, muitos
deles marxistas, e tinha como principal publicação e veículo de sua agenda

212
Apud BRITO, Souza André. Cristianismo ateu: o Movimento Ecumênico nas malhas da
repressão militar do Brasil, 1964-1985. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2014, p. 254.
213
Para uma análise aprofundada sobre o CEAS ver: ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro. Os
jesuítas e o Apostolado Social durante a Ditadura Militar. 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2010.
94

teológica e política o Caderno do CEAS.O centro contava com agências


financiadoras internacionais e organizava iniciativas de pesquisa, assessoria
pastoral e ação social. De acordo com Grimaldo Zachariadhes:

O Centro de Estudos e Ação Social fundado em Salvador foi fruto das


transformações por que passava a Companhia de Jesus como um todo e de
suas preocupações com as questões sociais especialmente durante a segunda
metade do século XX. O apostolado social teve uma importância muito forte
na Companhia de Jesus, principalmente na América Latina. 214

O discurso contra a tortura e em defesa dos direitos humanos como uma


estratégia de oposição ao regime uniam católicos e protestantes na rede
ecumênica.215 Essa colaboração ficou mais evidente em ações conjuntas, como
ocorreu durante a campanha pela Anistia em 1978, na Bahia. O CEAS abrigou o I
Encontro Nacional dos Movimentos de Anistia e Direitos Humanos e participou
do II Congresso da Anistia no Colégio 2 de Julho, educandário presbiteriano. A
CESE contribuiu na organização e financiamento de ambos.216 Outro ponto em
comum foi o diálogo entre cristianismo e marxismo, com todas as implicações
políticas durante a ditadura, tanto no Protestantismo Ecumênico como na esquerda
católica, como será discutido mais adiante.
Esta narrativa do surgimento das paraeclesiásticas – até aqui,do
Protestantismo Ecumênico, e a seguir da,Missão Integral – tem o objetivo de
mostrar onde foram formuladas as referências intelectuais para as aproximações
protestantes com as esquerdas e quais suas redes institucionais de apoio ou
militância político-religiosa. No Protestantismo Ecumênico, se destacaram
entidades de três tipos: serviço, educação teológica e representação eclesiástica,
que desenvolviam atividades de assessoria, ensino, publicação e cooperação
institucional. No movimento de Missão Integral, analisado a seguir, se destacaram

214
ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro. Os jesuítas e o Apostolado Social durante a Ditadura
Militar. 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 59.
215
Uma importante contribuição historiográfica sobre o papel do Movimento Ecumênico nas
campanhas contra a tortura e as violações dos direitos humanos durante a ditadura, encontra-se em
GREEN, James N.Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
216
Sobre o papel do CEAS na campanha pela Anistia, ver o livro anteriormente citado de
Grimaldo Zachariadhes. Um depoimento feito por um militante católico sobre o II Congresso da
Anistia em Salvador encontra-se em: CARVALHO NETO, Joviniano Soares de. O II Congresso
da Anistia: Momentos de resistência e definições. In: ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro.
Ditadura Militar na Bahia: novos olhares, novos objetos, novos horizontes. Salvador: EDUFBA,
2009.
95

basicamente as entidades de serviço e de evangelização, abrangendo um leque


amplo de áreas de atuação: desenvolvimento comunitário, publicação teológica,
assessoria pastoral e música cristã.

Redes evangelicais e Missão Integral: evangelização, assistência e


formação de lideranças

Além da ABU e da FTL, já analisadas até aqui, outras entidades


paraeclesiásticas foram campos propícios de propagação da Teologia da Missão
Integral no meio evangélico. Outras, não ligadas formalmente às elaborações
dessa teologia, contribuíram para mudanças na sociabilidade religiosa, criando
aberturas nos modelos de culto e piedade cristã herdados das missões norte-
americanas. Voltadas basicamente para a juventude, algumas delas surgiram ainda
no final da década de 1960, como Jovens da Verdade (JV) e Vencedores por
Cristo (VPC), ambas em 1968. Embora se dedicassem basicamente à
evangelização numa perspectiva conservadora, não deixaram de ser, como
observou Ariovaldo Ramos (1956-):

uma reação ao que a Ditadura fez na igreja. A Ditadura fechou a porta da


igreja para os jovens. Os jovens não tinham onde se reunir, as federações de
jovens foram fechadas, os jovens não podiam promover nada, foram fazer na
rua. Começaram a desenvolver ministérios paralelos. A igreja caiu na mão da
direita. A direita fechou a porta e esses movimentos foram uma reação a isso.
E até que não era muito consciente, não era ideológico, não eram jovens
querendo se rebelar contra o regime. Era gente querendo pregar o evangelho.
Mas acabaram incomodando o sistema porque tinha essa coisa libertária, de
sair, de pregar o evangelho, ―o jovem pode‖, ―o jovem faz‖, ―tem de dar
espaço para o jovem‖. Ideias que por si só eram libertárias.217

Na década de 1970 houve uma proliferação de grupos musicais ligados aos


movimentos evangélicos de juventude, que a exemplo das entidades de serviço,
muitas vezes atuavam em rede.218Nelson Bomilcar (1955-), um músico evangélico

217
RAMOS, Ariovaldo Ramos. Entrevista ao site Novos Diálogos, 11/08/2010. Disponível
em:Link: <http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=249> Acesso em: 09 out. 2015.
218
―Uma consequência deste processo vivenciado nos anos 70 foi a consolidação dos conjuntos
jovens como modelo de participação da juventude nas igrejas locais – era raro encontrar uma
igreja evangélica que não o possuísse, e muitas possuíam mais de um. [...] Os conjuntos para-
eclesiásticos ditavam moda. Os conjuntos jovens em pouco tempo tornaram-se a forma de
articulação da juventude local, que se reunia não só para ensaiar as canções, mas também para orar
e estudar a Bíblia em preparação para as apresentações musicais; e frequentemente realizava
retiros espirituais para busca de maior consagração como jovens cristãos‖. CUNHA, Magali
96

que participou desses movimentos escreveu: ―Víamos com grande alegria o


crescimento de movimentos de evangelização – por exemplo, entre a juventude.
Era um refúgio, um espaço, uma área de respiro e alento‖.219 Narrando a própria
experiência nos movimentos de juventude, Bomilcar destacou a importância deles
como espaços de formação e conhecimento da diversidade evangélica:

Aos 18 anos, eu viajava e era treinado para a evangelização em uma


organização e missão interdenominacional chamada Vencedores por Cristo.
Foi muito bom conhecer diversas tradições das igrejas históricas protestantes,
além de descobrir a realidade da igreja pentecostal e das chamadas ―igrejas
independentes‖ que começavam a brotar pelo Brasil. Testemunhei, preguei e
toquei em diversas dessas comunidades, de culturas tão diferentes da minha,
sem desconfiar que aquela experiência de itinerância estivesse apenas
começando, em um ministério que dura até hoje. Era meu seminário prático,
antes mesmo que cursasse um.220

A música elaborada por esses grupos contribuía com os eventos do


movimento de Missão Integral e com a difusão da sua teologia, o que não
significava necessariamente a adesão dessa juventude às perspectivas políticas
mais progressistas do movimento nem mesmo a participação em entidades de
serviço. De certa forma, era a expressão cultural e estética de uma disputa
teológica e política no seio do conservadorismo evangélico, mas também uma
disputa com outras sociabilidades da juventude, se apropriando da linguagem de
algumas delas, como o Rock, a Contracultura e a MPB, porém, reproduzindo a
mensagem tradicional do protestantismo histórico.221
Não é possível negligenciar a importância da Visão Nacional de
Evangelização (VINDE) para a expansão do movimento de Missão Integral e da
agenda que o conjunto de entidades paraeclesiásticas do evangelicalismo tentou
criar para as igrejas evangélicas. Criada em 1978 pelo jovem pastor presbiteriano
Caio Fábio D‘Araújo Filho (1955-), colocou em evidência tanto a Missão Integral

Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no
Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, Instituto Mysterium, 2007,p. 75.
219
BOMILCAR, Nelson. Os sem-igreja: buscando caminhos de esperança na experiência
comunitária. São Paulo: Mundo Cristão, 2012, p. 22.
220
BOMILCAR, Nelson. Os sem-igreja: buscando caminhos de esperança na experiência
comunitária. São Paulo: Mundo Cristão, 2012, p. 45.
221
Magali Cunha analisa esses grupos da juventude evangélica como reelaborações do lugar da
música e da juventude no culto protestante, mas também como precussores da cultura gospel que
se consolida nos anos 1990. Essa formação de uma cultura gospel interagiu simultaneamente com
as transformações do campo religioso e da indústria cultural brasileira. CUNHA, Magali. A
explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2007, p, 72-86.
97

quanto o criador da entidade, que tinha um bom trânsito no protestantismo


histórico e no pentecostalismo. Os congressos e cruzadas evangelísticas
percorriam vários lugares do país e logo a VINDE se tornou um complexo
missionário que unia editora, programas de rádio, TV e assistência social.222
Caio Fábio se tornou umas das lideranças mais requisitadas ao longo dos
anos 1980, tanto para falar ao segmento evangélico quanto em nome dele para um
público externo à comunidade religiosa. Partilhava das posições predominantes do
segmento evangélico em temas relacionados ao comportamento, à sexualidade e
aos direitos reprodutivos, condenando o aborto e o ―homossexualismo‖, como se
referiam à homossexualidade, a pornografia e o sexo na adolescência. Uma
amostra das suas posições sobre estes temas pode ser vista na palestra que ele
proferiu no Congresso Brasileiro de Evangelização de 1983, em que ele condena
os temas acima mencionados no tópico ―a moralidade brasileira‖. 223Ao mesmo
tempo, criticava o padrão evangélico predominante de participação política, de
corporativismo e trocas clientelistas, além de uma crítica intramuros das relações
de poder nas igrejas.
O trânsito de pessoas em organizações paraeclesiásticas era muitas vezes
acompanhado do trânsito nas denominações cristãs, como a trajetória de
Ariovaldo Ramos exemplifica. Convertido na Igreja Metodista Livre, na qual
permaneceu por oito anos, Ariovaldo Ramos foi filiado ao presbiterianismo e à
denominação batista. Apenas em 1992 tornou-se pastor da Comunidade Cristã
Reformada (CCR), uma igreja independente com identidade calvinista, pois,
segundo ele: “Eu queria ser leigo. Não queria ser pastor. Porque eu sempre
acreditei nessa coisa do sacerdócio universal dos crentes, de que a igreja tem que
ser leiga.‖ Para ele, essa resistência ao pastorado explica seu envolvimento com
todas as paraeclesiásticas com as quais se envolveu e que definem sua identidade:
“se eu tivesse de me classificar, eu me classificaria como um
224
caraparaeclesiástico”.

222
Autobiografia: FÁBIO, Caio. Confissões de um pastor. Rio de Janeiro: Record. 1997.
223
ARAÚJO FILHO, Caio Fábio. A evangelização do Brasil: desafios e perspectivas. In:
STEUERNAGEL, Valdir. A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada. 1ª. Edição, ABU
Editora, 1985, p. 16 - 27.
224
RAMOS, Ariovaldo. Entrevista ao site Novos Diálogos 11/08/2010. Disponível em:
<http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=249>. Acesso em: 09 out. 2015.
98

A primeira experiência de Ariovaldo Ramos foi com a organizaçãoJovens


da Verdade, de 1981 a 1984. Mesmo com o propósito estritamente evangelístico e
teologicamente ortodoxo da entidade, ele conta que havia resistência nas igrejas
aos ministérios de juventude: “Jovens da Verdade mesmo sofreu demais. Era
acusada de tirar os jovens da igreja, de desviar os jovens, de ficar ‗colocando
minhoca na cabeça‘ dos jovens, todo tipo de acusação. Então, era uma coisa assim
terrível”.225 A saída da JV em 1984 foi a convite de Caio Fábio para trabalhar na
VINDE, assumindo a função de organizar os congressos e cruzadas evangelísticas
da entidade.
Em 1992, Ariovaldo Ramosingressou em outra paraeclesiástica, o Serviço
de Evangelização para a América Latina (SEPAL), que, a exemplo de outras
entidades, era a filial brasileira, nascida em 1968, de um ministério internacional
com sede nos EUA. A função da SEPAL era o treinamento de pastores,
missionários e líderes eclesiásticos para o exercício dos diferentes ministérios que
poderiam ser desempenhados nas igrejas.226 De acordo com Ariovaldo Ramos, a
SEPAL sempre foi ideologicamente conservadora, mas foi se tornando híbrida,
permitindo aos responsáveis pelos cursos a serem ministrados aos pastores,
ênfases correspondentes às suas perspectivas teológicas:

A SEPAL não diz pra você o que você tem que fazer. Cada um de nós tem a
sua ênfase. A minha ênfase é Missão Integral e Eclesiologia. E todos nós
fazemos basicamente a mesma coisa que é treinar pastores e líderes, que essa
é a ênfase da SEPAL. Então o que eu fazia era isso: treinar pastores e líderes
nessas duas áreas basicamente, Missão Integral– que envolve missiologia,
missão transcultural, missão urbana, compreensão da responsabilidade sócio-
política da igreja – e Eclesiologia, que é uma área que eu gosto e escrevi um
livro ―Igreja: e eu com isso?‖ sobre o que é a natureza da igreja e a vida
prática da igreja.227

A participação de Ariovaldo Ramos nas entidades paraeclesiásticas nos anos


seguintes ao recorte temporal desta pesquisa não será contemplada, embora caiba
mencionar que ele voltaria a trabalhar com a VINDE e a SEPAL em outros
períodos, e ingressaria na Visão Mundial. Dentre as paraeclesiásticas

225
RAMOS, Ariovaldo. Entrevista ao site Novos Diálogos, 11/08/2010. Disponível em:
<http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=249>. Acesso em: 09 out. 2015.
226
A entidade colaborava com os eventos de outras paraeclesiásticas, realizando treinamento e
publicando material para os ministérios de juventude e os congressos de evangelização. Nos anos
2000 a instituição mudaria o nome para ―Servindo Pastores e Líderes‖, mantendo a sigla SEPAL.
227
RAMOS, Ariovaldo. Entrevista ao site Novos Diálogos 11/08/2010.Disponível em:
<http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=249>. Acesso em: 09 out. 2015.
99

comprometidas com o enfrentamento de problemas sociais, a Visão Mundial


tornou-se uma instituição de referência em projetos de desenvolvimento
comunitário e serviço social em áreas de pobreza, assistindo principalmente às
crianças. Era, no entanto, um dos alvos da crítica à onguinização das lutas sociais
e suspeita de ser um braço filantrópico do imperialismo norte-americano na
América Latina, conforme depoimento de uma liderança indígena equatoriana:
―Não é fácil organizar as pessoas quando a World Vision oferece dinheiro e nós só
oferecemos conscientização‖.228
Não eram desconfianças infundadas. A Visão Mundial nasceu nos Estados
Unidos por iniciativa de Robert Pierce (1914-1978), pastor e correspondente de
guerra. Bob Pierce, como ficou conhecido, realizou suas primeiras campanhas
evangelísticas e filantrópicas na China e na Coreia do Sul entre 1947 e1950, com
o apoio do grupo Mocidade para Cristo229, visando transformar a expansão
evangélica em obstáculo ao crescimento do comunismo. O perfil começou a
mudar quando Bob Pierce renunciou à direção da entidade em 1967, sendo
substituído pelo ex-secretário da Associação Evangelística Billy Graham, Stanley
Mooneyham (1926-1991). Sob sua presidência (1967–1982), a Visão Mundial
consolidou-se como uma organização de ajuda humanitária em situações de
emergência, o que possibilitou o recebimento de apoio financeiro da USAID, que
a rigor não permitia contribuição estatal a instituições religiosas.230
A Visão Mundialse estabeleceu oficialmente no Brasil em 1975, depois de
adotar o desenvolvimento comunitário como principal política de combate à
pobreza, embora mantivesse práticas consideradas mais paternalistas, como o
sistema de doações destinado ao apadrinhamento de crianças.231 A partir dos anos

228
Ana Maria Guacho, líder do Movimento Indígena Chimborazo, em depoimento para o livro:
STOLL, David. Is Latin America turningprotestant?The politics of evangelical growth. Berkeley e
Los Angeles, Califórnia: University of California Press, 1990, p. 293.
229
A filial brasileira do grupo Mocidade para Cristo (MPC) foi criada em 1952 por missionários
norte-americanos. Utilizando estratégias comuns às demais paraeclesiásticas de juventude -
treinamento de lideranças, música e acampamento – tornou-se o embrião, no começo dos anos
1980, de grupos musicais e de festivais de música cristã contemporânea.
230
Sigla em inglês da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (United
States Agency for International Development), responsável pela política de ajuda externa de
caráter civil pelo governo norte-americano, criada em 1961.
231
O sistema de apadrinhamento de crianças ainda é mantido, embora tenha sido associado ao
desenvolvimento comunitário, conforme explicado no site da instituição: ―Cada criança do
programa pode ser escolhida por um único padrinho, que passa a fazer contribuições mensais,
além de participar de seu desenvolvimento por meio do vínculo criado. O valor das doações, ao
invés de ser enviado diretamente para a família da criança, é destinado ao projeto da Visão
100

1980, parte das publicações, dos eventos e das lideranças que mais influenciaram
protestantes teologicamente conservadores a serem politicamente progressistas
estavam ligadas à Visão Mundial. A instituição acolheu a Missão Integral como
fundamentação teológica e alguns de seus integrantes, como os batistas Manfred
Grellert (1941-), Carlos Queiroz e Marcos Monteiro, engajaram-se dentro do
movimento de Missão Integral no debate sobre a ―questão social‖.
Manfred Grellertera filho de missionário alemão e formado em Teologia
pelo Seminário Batista do Rio de Janeiro. Ensinou no Seminário Batista do Norte
em Recife durante a década de 1970.232Em 1980, se tornou diretor executivo da
Visão Mundial no Brasil econtribuiu com a organização do Congressos Brasileiro
de Evangelização (1983) e do Congresso Nordestino de Evangelização (1988),
eventos que possibilitaram uma recepção, ainda que tardia, da Missão Integral no
protestantismo brasileiro. Recepção que passava por uma ―insegurança‖ em
relação às concepções teológicas do movimento, conforme sugeriu Marcos
Monteiro ao comentar o papel de Manfred Grellert como professor do Seminário
Batista e, depois, diretor da Visão Mundial:

Foi quando eu tive contato com o movimento Lausanne, como sempre,


atrasado, porque Lausanne acontece em 1974; no Brasil, em 1983 é que vai
acontecer o Congresso Brasileiro de Evangelização, ou seja, nove anos
depois. Manfred tinha participado de Lausanne, mas não tinha nos tocado,
não tinha nos influenciado em termos de Lausanne ainda, talvez ele não
tivesse também tão seguro ainda da Teologia da Missão Integral e ele é um
grande nome, ele é o realizador- mor do Congresso Brasileiro de
Evangelização que na vida de muitos jovens foi marcante. 233

Em sua palestra durante o Congresso Brasileiro de Evangelização, Carlos


Queiroz deu um testemunho pessoal sobre como transitou de uma perspectiva
assistencialista da ―Questão Social‖ para uma perspectiva mais transformadora,
destacando a contribuição da Visão Mundial, na qual ingressara, para esta
mudança. Marcos Monteiro também destacou a contribuição da entidade na sua
trajetória, responsável por colocá-lo em contato com o cotidiano da pobreza e com
as desigualdades sociais:

Mundial em que ela estiver inscrita para que ajude a suprir as necessidades imediatas e de longo
prazo desse afilhado.‖ Site oficial: <http://www.visaomundial.org.br>. Acesso em: 09 out. 2015.
232
Cursou o doutorado em Teologia no Seminário Batista do Sul, nos EUA (Louisville, Kentucky)
e licenciatura em Filosofia na Universidade Católica de Pernambuco. Tornou-se pastor da Igreja
Batista da Capunga, em Recife, aos 28 anos (1969). Foi seu único pastorado que durou até 1979.
233
MONTEIRO, Marcos. Entrevista concedida ao autor. Feira de Santana-BA, 09/2014.
101

Durante esse período de Visão Mundial, eu tive um choque ao descobrir a


pobreza no Brasil. A pobreza no Brasil estava escondida por outdoors, estava
escondida pelos centros. Estive nas periferias e eu lembro que eu tive a
impressão que eu dizia em alguns dos meus discursos na época que a pobreza
no Brasil você não conhece nem de carro, nem de automóvel, nem de ônibus,
você só conhece a pé, ela estava em lugares inacessíveis. O camarada que
morava no morro, ele descia num local urbanizado razoavelmente bom e
andava meia hora para chegar no lugarzinho dele, que era subindo estrada,
era subindo caminhos pequenininhos, era pulando poça d‘água, então esse
Brasil que eu nem sabia que existia eu tive o privilégio de conhecer.
Conhecendo esse Brasil, a sensação de que eu precisava me posicionar como
cristão e como pastor de igreja numa forma mais contundente foi cada vez
maior.234

A influência de Manfred Grellert e da Visão Mundial tornou-se ainda mais


destacada entre os pastores e jovens que atuavam no Nordeste, o que teria
contribuído para que os núcleos da Missão Integral na região desenvolvessem
perspectivas teológicas e ações pastorais mais contundentes em relação às
desigualdades sociais e mais comprometidas com a contextualização do
protestantismo às realidades locais. Esta é, ao menos, a memória de organizadores
e participantes do Congresso Nordestino de Evangelização de 1988. Recorro
novamente ao depoimento de Marcos Monteiro, no qual aparecem essa memória e
a avaliação:

O Nordestino foi um avanço, o Nordestino foi bem um avanço. No


Nordestino a questão cultural estava presente como questão Nordestina
mesmo. O Primeiro Congresso Nordestino de Evangelização foi realmente
assim um quebrar de barreiras e muitas denominações caminharam
independentemente. Quem organizou foi a FTL daqui com apoio da Visão
Mundial.235

Uma das razões para uma maior radicalização da Missão Integral no


Nordeste, tornando possível uma maior proximidade da Teologia da Libertação e
do Protestantismo Ecumênicono núcleo nordestino da FTL, era a própria
desigualdade regional no país, que tornava o Nordeste uma referência dos
problemas sociais, como a fome e a pobreza, agravados pelas secas e pela
exploração política dessas carências pelos políticos tradicionais e pelas elites
econômicas. Ainda de acordo com Marcos Monteiro:

234
MONTEIRO, Marcos. Entrevista concedida ao autor. Feira de Santana-BA, 09/2014. O
entrevistado atuou na entidade filantrópica Visão Mundial, entidade filantrópica, juntamente com
Carlos Queiroz, na década de 1980.
235
MONTEIRO, Marcos. Entrevista concedida ao autor. Feira de Santana-BA, 09/2014.
102

Nós analisávamos ali que no Nordeste as questões sociais estavam à vista, no


nosso cotidiano, nós não precisávamos procurar muito. Apesar da pobreza
real no Brasil não precisar ser buscada, não precisar ser procurada a pé, o
Nordeste era pobre o suficiente na sua generalidade para que as questões
sociais estivessem na nossa pele, no nosso cotidiano, então não dava para
ficar uma ―água morna‖, a gente tinha uma tendência de ir radicalizando
muito grande.236

Criou-se, então, uma tensão entre a FTL-Nordeste e a FTL-Brasil, a


primeira com participantes mais influenciados por leituras alternativas às
referências teológicas da Missão Integral, incluindo o marxismo. A inclinação
ecumênica de alguns participantes da FTL Nordeste contribuía para essa
tensão.237Um ano antes do Congresso Nordestino de Evangelização,Manfred
Grellert, então vice-presidente da Visão Mundial para a América Latina, explicou
no livro Os compromissos da missão (1987), como a entidade atuava e qual
relação possuía com as igrejas evangélicas e a Missão Integral:

como organização cristã de serviços especializados, nosso ministério no


Brasil tem dois objetivos centrais: tentamos ser servos dos pobres e servos
dos servos do Senhor. Isto é, procuramos, em primeiro lugar, ajudar
comunidades carentes através de projetos sociais de desenvolvimento
humano integrado, geralmente feitos em convênio com igrejas ou outras
instituições idôneas. Somos servos dos servos das igrejas, enquanto estas
praticam a promoção humana cristã. [...] Em segundo lugar, procuramos
incentivar líderes cristãos através de conferências, simpósios, literatura e
pesquisa, em diferentes áreas da Missão Integral da igreja como:
evangelização, missões transculturais, ministérios sociais e treinamento de
lideranças. 238

A presença de Manfred Grellert à frente da entidade na América Latina e


seu papel na alegada ―radicalização‖ da Missão Integral no Nordeste, não
eliminaram as suspeitas sobre a instrumentalização da Visão Mundial pelo
imperialismo norte-americano. No livro Os demônios descem do Norte (1987),
Delcio Monteiro de Lima denunciava:

236
MONTEIRO, Marcos. Entrevista concedida ao autor. Feira de Santana-BA, 09/2014.
237
―Na época nós tínhamos, assim, uma leitura de realidade muito mais marxista do que o resto da
Fraternidade Teológica no Brasil. Nós éramos uma parte interessante do movimento. Pelo menos a
parte estratégica do movimento teológico, aqui no Nordeste, era ecumênico. Manfred era assim,
mas já estava no sul, né? Mas, assim, Anivaldo Júnior, Carlos Queiroz, Arnulfo Barbosa e eu, acho
que éramos os que tendíamos mais a um ecumenismo, uma militância político-social mais
contundente.‖ MONTEIRO, Marcos. Entrevista ao autor, Setembro/2014.
238
O livro foi publicado em coedição da Visão Mundial com a editora batista JUERP.
GRELLERT, Manfred. Os compromissos da missão: A caminhada da igreja no contexto
brasileiro. São Paulo: JUERP/Visão Mundial, 1987, p. 17-18.
103

Como todas as transconfessionais [paraeclesiásticas] procedentes dos Estados


Unidos, a ―Visão Mundial‖ faz clara pregação anticomunista e procura evitar
qualquer relacionamento com grupos que professam ideologias de esquerda.
Nesse proselitismo e atitude de resguardo, tenta incutir, talvez até
inadvertidamente, estereótipos culturais americanos implícitos no ideário do
comportamento fundamentalista em voga nos Estados Unidos. Certos
mecanismos de aculturação são admitidos tranquilamente pelo setor de
relações eclesiásticas, um dos mais atuantes da engrenagem de
funcionamento daquela sociedade religiosa. Embora as evidências mostrem o
contrário, a ―Visão Mundial‖ nega energicamente qualquer promiscuidade
com os serviços de informação dos Estados Unidos, particularmente a CIA, e
que agregue intenções políticas estranhas às suas finalidades.239

Comentando as denúncias que eram feitas à época, sobretudo pelas


esquerdas e a Igreja Católica, Djalma Torres disse na entrevista que não
acreditava nelas por conhecer Manfred Grellert, ex-diretor da entidade no Brasil e
então vice-presidente latino-americano da Visão Mundial. Considerava que as
denúncias não correspondiam aos compromissos assumidos por ele.
O resguardo ao pensamento de esquerda também não encontrava respaldo
na descrição feita por seu ex-aluno do Seminário Batista Marcos Monteiro, que
destacou a abertura do professor Manfred Grellert para a Teologia da Libertação,
as CEBs e a ―insegurança‖ em compartilhar a Missão Integral, mesmo tendo
participado de Lausanne.240Os depoimentos traçam, portanto, o perfil de uma
liderança agregadora do evangelicalismo, à frente de uma entidade organizadora
dos Congressos Brasileiro (1983) e Nordestino (1988) de Evangelização,e
integrante do setor da Missão Integralmais próximo do ecumenismo e da Teologia
da Libertação.
A Teologia da Libertação e a Teologia da Missão Integral contavam, para a
sua elaboração e circulação, com instituições e agentes religiosos que atuavam em
rede. A inserção política dos evangélicos em partidos de esquerda e lutas sociais
emancipatórias durante a abertura política foi basicamente mediada pelas redes
institucionais do ecumenismo e do evangelicalismo (tabela 2), e suas expressões
teológicas, estéticas e sociais, ainda que não exclusivamente por elas.

Tabela 2 – Redes institucionais ecumênicas e evangelicais


Período Ecumênicas Eventos ou Evangelicais Eventos ou

239
LIMA, Delcio Monteiro de. Os demônios descem do norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1987, p. 136-137.
240
―Manfred Grellert me abriu a leitura para Leonardo Boff e eu pesquisei mais do que isso, do que
a leitura que ele colocou, porque ele começou a abrir também outras leituras‖. MONTEIRO,
Marcos. Entrevista concedida ao autor. Feira de Santana-BA, 09/2014.
104

Década publicações publicações


importantes importantes
1930-1970 - UCEB - Conferência do - ABU, - CLADE (1969)
- CEB Nordeste (1962) - Movimentos - Congresso da
- ISAL - Revista missionários de ABU (1976)
Cristianismo y juventude
Sociedad (JV, MPC,
VPC, etc.)
1970-1990 - CEDI - Tempo & Presença SEPAL, FTL - CBE (1983)
- ISER - Comunicações do VINDE, VISÃO - CNE (1988)
- CESE ISER MUNDIAL - Cruzadas
- CONIC - Cartilha dos (VINDE)
- CLAI Direitos Humanos - Boletins (FTL)

Durante a Ditadura Militar e a abertura política, novas sociabilidades


religiosas redefiniram a presença da religião na esfera pública no Brasil. Três
experiências foram marcantes nesse processo: o pentecostalismo, as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) e o ecumenismo, atravessadas por éticas sociais,
elaborações teológicas, redes institucionais e militâncias políticas, como o
fundamentalismo, a Teologia da Libertação, o movimento de Missão Integral, a
Teologia da Prosperidade e a cultura gospel.
A revista Tempo & Presençadedicou a edição de junho de 1986 à análise de
algumas dessas experiências. Com o título ―Novos jeitos de ser igreja‖, o CEDI,
responsável pela publicação, relacionava o pentecostalismo, as CEBs e o
ecumenismo à ampliação da participação de sujeitos até então marginalizados e à
inovação das expressões litúrgicas e cultuais. De acordo com o editorial:

Todos esses novos fenômenos, complexos e diversificados, refletem em


primeiro lugar, o avanço da participação social e política dos setores
populares, na sociedade como um todo e, particularmente, nas Igrejas. O
arcabouço institucional eclesiástico vai sendo, assim, desafiado interna e
externamente, para se transformar, em função de estruturas participativas e
democráticas, revendo-se desde a forma de exercício da autoridade, indo até a
liturgia e ao canto utilizado nas celebrações.241

Ainda que o próprio editorial tenha ponderado para a necessidade de se


evitar interpretações triunfalistas e lineares, a publicação foi bem entusiasta das
―novas formas de ser igreja‖, num paralelo ao entusiasmo demonstrado pelas
produções acadêmicas da época aos chamados ―novos movimentos sociais‖.
Concordando mais com as ponderações do que com o entusiasmo, destaco, ainda

241
EDITORIAL ―Novos jeitos de ser igreja‖. In: Tempo e Presença, junho de 1986, página 03.
105

assim, algumas intuições importantes apresentadas pela revista. Essas novas


sociabilidades podem ser interpretadas a partir da emergência de novos sujeitos
políticos e religiosos, conforme interpretou o CEDI, mas também a partir do
processo de secularização e de pluralismo religioso na sociedade brasileira,
abordagem que faltou à publicação, ligada a uma entidade ecumênica.
O conceito de secularização enfrenta atualmente muitas críticas, por ter
frustrado os prognósticos de marginalização ou mesmo desaparecimento da
religião na modernidade, mas ainda é instrumental para perceber as mudanças das
interações sociais mediadas pela religião ou das quais ela participa. Ao invés de
explicar as condições de desaparecimento da religião, como fizeram as teorias
clássicas da secularização e desencantamento do mundo, ou ainda advogar a
persistência e, muitas vezes, o regresso da centralidade normativa da religião,
como defendem os críticos dessas teorias, talvez o melhor caminho seja, como
propôs Fernando Catroga, perceber as mutações do religioso, compreender não a
morte (Nietsche) ou a revanche de Deus (Giles Kepel), mas as suas metamorfoses.
Por isso, defendendo a pertinência do conceito de secularização, o autor de Entre
Deuses e Césares salientou que:

a secularização não é sinônimo de anti-religião, mas afirmação de autonomia


do século. Assim, se a primeira atitude padece de um exagerado optimismo
racionalista e antropocêntrico – que as experiências históricas concretas não
confirmam –, as que enfatizam, em termos ―restauracionistas‖, o
contemporâneo ―regresso‖, mostram-se insensíveis a esta outra evidência: a
gradual infiltração de atitudes, comportamentos individuais e relações
institucionais de inspiração secular, nas próprias religiões.242

Processo que se dá externamente à religião, através dos limites que o Estado


e as demais instâncias da sociedade civil estabelecem para ela, e internamente,
através de novas sensibilidades e elaborações das crenças e subjetividades
religiosas. Por isso mesmo, não é possível analisar a presença de agentes e grupos
religiosos na esfera pública, com suas respectivas filiações ideológicas e práticas
políticas, sem analisar as afinidades eletivas que se constroem no processo
histórico entre crenças e discursos religiosos, e os projetos de sociedade em
disputa.

242
CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil: uma
perspectiva histórica. Coimbra: Almedina, 2006, p. 453.
106

O processo de secularização, assim entendido, tornou possível o pluralismo


religioso, ou aquilo que numa outra chave de leitura pode ser interpretado como a
expansão do mercado religioso de bens simbólicos. Embora a Cristandade
colonial tenha sido contestada desde o início – pela resistência cultural indígena e
africana e por práticas desviantes da ortodoxia pelos próprios católicos, que
geraram uma religiosidade popular diversificada –, houve oficialmente um
monopólio da fé, que perdurou até o advento do Império em 1822. Ainda que a
presença protestante tenha conseguido abrir brechas jurídicas e culturais no
monopólio da fé cristã, a Igreja Católica ostentou durante todo o Império a
condição de religião oficial, numa aliança com o Estado regida pelo Padroado
Régio que, se não evitou conflitos entre as instâncias religiosa e estatal,
proporcionou a manutenção dos privilégios do catolicismo na gestão das almas.243
A separação entre a Igreja e o Estado e a consequente liberdade de cultos só
ocorreu a partir da primeira Constituição Republicana, de 1891. Porém, conforme
palavras de um Bispo anglicano, a Igreja Católica deixou de ser oficial para ser
oficiosa.244Religiões afro-brasileiras e o Espiritismo ainda enfrentaram
perseguições por parte do Estado, como batidas policiais nos locais de culto e
acusações de charlatanismo de acordo com um Código Penal que criminalizava
práticas religiosas associadas a essas religiões.245 O protestantismo, maior
beneficiário da liberdade de cultos, era uma minoria tentando superar resistências
culturais de uma sociedade afeita ao catolicismo desde a colonização. Resistências
que se desdobravam em conflitos entre leigos e em polêmicas entre lideranças e
intelectuais do catolicismo e do protestantismo. O quadro mudou
significativamente na segunda metade do século XX, provocado principalmente
pelo crescimento de um protestantismo de massas e urbano: o pentecostalismo.

Quando novos crentes leem a Bíblia: a emergência do pentecostalismo


na esfera pública

243
Sobre as relações entre a Igreja Católica e o Estado da Colônia à República ver: AZEVEDO,
Thales de. Igreja e Estado: tensão e crise. São Paulo: Ed. Ática, 1978.
244
CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e Política: teoria bíblica e prática histórica. São Paulo:
Nascente, 1985, p. 182.
245
SENNA, Ronaldo. Feira dos Encantados. Um panorama da presença afro-brasileira em Feira
de Santana: construções simbólicas e ressignificações. Feira de Santana: UEFS Editora, 2014.
107

Ausente até o momento nas análises deste trabalho, o pentecostalismo foi


protagonista de importantes transformações culturais e religiosas que, desde a
década de 1950, contribuíram para aproximações evangélicas à direita
(majoritariamente) e à esquerda (minoritariamente) do campo político. Tornou-se,
além disso, uma nova fração do cristianismo não católico a reivindicar a herança
protestante ou a identidade evangélica, entrando em disputas simbólicas e
eclesiásticas com o protestantismo histórico. O pentecostalismo cresceu paralela e
marginalmente ao protestantismo histórico, até assumir a hegemonia no meio
evangélico, a ponto de praticamente ter se tornado sinônimo deste segmento
depois da década de 1980.
Em geral, a literatura acadêmica concebeu a presença pentecostal no Brasil
em três inserções históricas fundamentais, das quais as denominações citadas a
seguir foram as mais representativas do tipo de pentecostalismo emergente no
respectivo período: 1) No início do século XX, com o surgimento das
denominações Congregação Cristã do Brasil (1910) e Assembleia de Deus (1911);
2) em meados do século com o surgimento das denominações Igreja do Evangelho
Quadrangular (1951), O Brasil para Cristo (1955) e Deus é Amor (1962); 3) e no
último quartel do século com o surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus
(1977), Igreja Internacional da Graça de Deus (1980) e Renascer em Cristo
(1985).246
A primeira inserção coincide com o surgimento do movimento pentecostal
nos Estados Unidos, reproduzindo as crenças e práticas religiosas que passaram a
definir o pentecostalismo: crença no batismo do Espírito Santo, capacitando o
crente a manifestar os carismas, os chamados ―dons espirituais‖, como a
glossolalia (falar línguas estranhas ou a língua dos anjos) e a profecia, além de
muitas manifestações de êxtase religioso atribuídas à ação do Espírito. Os grupos
dessa primeira onda foram classificados como pentecostalismo clássico ou
histórico por causa da contemporaneidade com o fenômeno norte-americano,
considerado matriz do pentecostalismo, ainda que as denominações citadas
tenham suas origens ligadas a missionários suecos (Assembleia de Deus) e
imigrantes italianos (Congregação Cristã do Brasil).

246
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Unicamp, Campinas, 1993.
108

A segunda inserção ocorreu num momento de acelerado processo de


urbanização do país, provocando intensos deslocamentos do campo para as
cidades e num momento de popularização de meios de comunicação de massa,
como o rádio. Os grupos desta segunda onda foram classificados como
pentecostalismo autônomo ou de cura divina, porque contribuíram para a
proliferação de pequenas comunidades de fé autônomas às denominações
institucionalizadas e porque tinham nas manifestações de cura atribuídas ao
Espírito uma importante experiência religiosa e veículo de pregação.
A terceira inserção, denominada neopentecostalismo, surgiu durante o
processo de abertura política, contemporânea à consolidação da indústria cultural
no País e ao agravamento de crises sociais, provocadas pelo crescimento da
inflação e do desemprego. Expressão de um pentecostalismo de massas,
fundamentou-se no tripé: cura, exorcismo e prosperidade, advogando a superação
de males físicos, psicológicos e sociais através da benção divina, evidência de um
milagre ou de uma libertação das raízes espirituais destes males, muitas vezes
atribuídas à possessão demoníaca ou associadas à influência de outras religiões,
sobretudo afro-brasileiras.247
Até o início dos anos 1970, o conjunto de denominações protestantes
somavam aproximadamente 5%da população brasileira com 4.833,106 fiéis. No
final da década seguinte representava um contingente de 9%, somando 13.157,094
e alcançando os 15% no final dos anos 1990 com 26.452,174 praticantes.248
Crescimento acompanhado de uma fragmentação institucional e alicerçada numa
incorporação, por parte do pentecostalismo, da religiosidade popular (um
amálgama de práticas católicas, espíritas, afro-brasileiras e ameríndias) aos
esquemas de significação evangélica. Incorporação conflituosa, porque vivenciada
sob o signo da ―batalha espiritual‖ na qual o ―outro‖ é demonizado enquanto se

247
Sobre a classificação desta terceira inserção como neopentecostalismo ou pós-pentecostalismo,
ver: SIEPIERSKI, Paulo D. Contribuições para uma tipologia do Pentecostalismo Brasileiro. In:
GUERRIERO, Silas.O estudo das religiões:desafios contemporâneos. São Paulo: Paulinas,
ABHR, 2003.
248
Dados dos censos de 1970, 1980, 1990, 2000 e 2010 apresentados em: CAMPOS, Leonildo
Silveira. ―Evangélicos de missão‖ em declínio no Brasil: exercícios de demografia religiosa à
margem do Censo de 2010. In: MENEZES, Renata; TEIXEIRA, Faustino. Religiões em
movimento: o censo de 2010. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013, p. 137.
109

opera uma apropriação dos seus bens simbólicos, numa ―antropofagia da fé


inimiga‖.249
Propícios ao crescimento evangélico, cada vez mais identificado ao
pentecostalismo a partir do final dos anos 1970, estavam as formas alternativas de
ocupação do espaço urbano, a adoção de métodos empresariais de organização
eclesiástica, a aquisição e o uso sistemático dos meios de comunicação formando,
em alguns casos, grandes oligopólios e empreendimentos próprios às megaigrejas.
A conversão de teatros, cinemas e casas de entretenimento em igrejas urbanas ou
a localização de templos em locais estratégicos, o serviço religioso acessível em
qualquer horário, tanto para os fiéis regulares quanto para um público anônimo,
significou uma nova configuração da geografia religiosa, ao mesmo tempo que
contribuiu para a alteração da paisagem urbana. Conforme observou Maria Lúcia
Montes:

Desse modo, aglutinando ao seu redor uma rede frouxa de sociabilidade à


qual acaba por integrar-se os fiéis, esses templos se inscrevem na lógica do
pedaço, recriando para seus frequentadores um novo sentido de
pertencimento à cidade. Assim se revelam as inúmeras mediações que, no
domínio do sagrado, se interpõem entre o indivíduo e a vida social mais
ampla, demonstrando que, diante da realidade urbana, a vida privada não se
confina apenas num isolamento individualista, mas, ao contrário, se estende
para além da esfera doméstica, nos limites da casa e do círculo familiar.250

Distantes das disputas entre fundamentalistas e ecumênicos nas


denominações mais tradicionais, e não agregadas ao movimento de Missão
Integral, o pentecostalismo foi criando suas próprias formas de evidenciação e
representação no espaço público. Se desde a chegada ao Brasil no século XIX o
protestantismo se inseriu nas lutas sociais e políticas do país e, pelo menos desde
os anos 1930, é possível falar de uma presença evangélica regular nos espaços de
representação, o fato é que nos anos 1980 uma nova presença evangélica se
instituiu, com características diferenciadas do que ocorria anteriormente.
Participação política ancorada em bases sociais e religiosas cuja sociabilidade e
relação indivíduo-comunidade eram muito distintas do protestantismo histórico.

249
Sobre a ―antropofagia da fé inimiga‖ pelo pentecostalismo, ver: ALMEIDA, Ronaldo;
MONTERO, Paula. Trânsito religioso no Brasil. São Paulo: CEBRAP, 2000.
250
MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado na religiosidade
brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 101.
110

Por isso, para compreender fenômenos que atualmente estão em evidência,


como o crescimento exponencial de igrejas de bairro (não denominacionais), o
uso intensivo da mídia por este segmento protestante, a criação de uma cultura
gospel por meio de uma indústria cultural religiosa251 e a consolidação de uma
Bancada Evangélica nos poderes legislativos federal e estaduais, é preciso
compreender os modos complexos a partir dos quais as crenças e práticas
religiosas do meio evangélico criaram efeitos sociais e políticos duradouros desde
a Ditadura Militar até o fim do processo de abertura política.
O crescimento pentecostal começou a dar sinais de força eleitoral em níveis
locais e regionais desde os anos 1950, preparando o terreno do modelo de
participação política que se tornaria hegemônico no meio evangélico e matriz da
Bancada Evangélica a partir da Constituinte: o voto corporativo252, com
candidatos oficiais de igrejas e divisão do eleitorado por territórios estratégicos.253
Seu crescimento nos setores mais marginalizados da população se refletia na
reação pentecostal ao ―intelectualismo‖ ou ―frieza espiritual‖ do protestantismo de
classe média em defesa da experiência religiosa pentecostal, como se vê na carta
de um leitor da revista Ultimato sobre a matéria Superespiritualidade: ―Nós
precisamos mesmo de uma superespiritualidade para vencer a
superintelectualidade e o supermaterialismo que se desenvolvem em nossas
escolas, universidades e até em nossas igrejas‖.254
Parte significativa dos estudos recentes sobre os evangélicos e a política no
Brasil, aborda principalmente o impacto do crescimento pentecostal na relação

251
A cultura gospel, segundo Magali Cunha, é uma cultura híbrida que resultou: ―do
entrecruzamento de aspectos tradicionais do modo de ser protestante construído no Brasil com as
manifestações de modernidade presentes em propostas pentecostais, no fenômeno urbano
brasileiro, no avanço da ideologia do mercado de consumo e na cultura das mídias‖, portanto, a
―articulação destes aspectos – música, mídia, consumo – que, aliados ao entretenimento, formam o
gospel como uma expressão cultural‖. A música se tornou o instrumento privilegiado de difusão
dessa cultura, pois: ―A partir da explosão gospel no Brasil, a música religiosa reveste-se de um
poder que torna cantores, grupos musicais e participantes de reuniões que a entoam em
instrumentos de Deus‖. In: CUNHA, Magali Nascimento. A explosão gospel: um olhar das
ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, Instituto
Mysterium, 2007, p. 10-11.
252
Referência nesse sentido foi o livro do pastor da Assembleia de Deus Josué Sylvestre: Irmão
vota em irmão: os evangélicos, a Constituinte e a Bíblia. Brasília: Pergaminho, 1986.
253
SANTOS, Adriana Martins dos. A construção do Reino: A Igreja Universal e as instituições
políticas soteropolitanas (1980-2002). Dissertação (Mestrado em História Social) – UFBA,
Salvador, 2009.
254
Carta de Heber Orcalino da Silva à Ultimato. Ituiutaba – MG, 1973. apud CÉSAR, Elben M.
Lenz (org.). Cartas à Ultimato (1968-2008): uma radiografia do cristianismo brasileiro. Viçosa-
MG: Editora Ultimato, 2008, p. 36.
111

entre Estado, sociedade civil e religião, privilegiando o aspecto parlamentar, ou


seja, o entendimento dos vínculos das comunidades evangélicas com as forças
políticas da sociedade, e a representação desses vínculos no poder legislativo.
Esses estudos tentam dimensionar os graus de articulação entre as bases religiosas
e as alianças partidárias, as afinidades entre interesses religiosos e as plataformas
políticas voltadas para a gestão das relações sociais pelo Estado.
Uma das primeiras pesquisas sobre a relação entre os evangélicos e a
política no Brasil pós-Ditadura Militar foi realizada pelo Instituto Superior de
Estudos da Religião (ISER) em 1994 e se chamava Novo nascimento: os
evangélicos em casa, na política e na igreja, um censo institucional que pretendia
analisar o padrão comportamental dos evangélicos e, consequentemente, as
implicações da conversão (novo nascimento) na vida dos sujeitos religiosos e nas
relações sociais e políticas nas quais estavam inseridos. Embora o estudo tenha
demonstrado que o protestantismo concentrava a maioria daqueles que mudavam
de religião, chamava a atenção também para o ―trânsito religioso‖ dos fiéis entre
as diversas denominações e os valores compartilhados que formavam um padrão
comportamental evangélico. Esse padrão comportamental estaria mais próximo da
direita política, apesar do estudo apontar indícios de uma aproximação dos
evangélicos com a esquerda.
Dando um salto de quinze anos, como parâmetro de comparação, Maria das
Dores Campos Machado, no livro Política e religião: a participação dos
evangélicos nas eleições, indicou que havia um maior compromisso dos sujeitos
religiosos com suas respectivas comunidades do que com seus partidos, fato
comum a outros grupos sociais, não apenas religiosos. Isso fez com que os
evangélicos se filiassem a diferentes partidos, persistindo uma maior concentração
nos partidos de centro e direita, coexistindo com um processo de ―deslocamento
de alguns segmentos dessa tradição religiosa em direção à esquerda e, mais
particularmente, do Partido dos Trabalhadores‖.255 O livro ainda aborda a
mobilização religiosa para a disputa do campo político no processo histórico
brasileiro, que sempre contou com o catolicismo desempenhando esse papel:

255
MACHADO, Maria das Dores Campos. Política e religião: a participação dos evangélicos nas
eleições. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 14.
112

Assim, seria um equívoco caracterizar a recente participação dos


evangélicos na política como a emergência do fenômeno religioso na esfera
pública. O mais correto seria interpretar essa participação como uma
ampliação da arena política em decorrência do surgimento de novos atores
individuais e coletivos nas sociedades civis e política. 256

A autora ainda argumentou que é preciso relacionar a participação política


dos evangélicos com a cultura política brasileira ―caso se pretenda criar novos
padrões de relações políticas e não apenas combater a participação desses setores
nas esferas dos poderes Legislativo e Executivo‖.257
Os trabalhos sobre a relação dos evangélicos com a política pós-Ditadura
Militar apresentam, assim, algumas interpretações convergentes. A primeira delas
diz respeito ao envolvimento tardio dos evangélicos na política enquanto um
segmento social articulado, com a Constituinte apresentando-se como um
momento decisivo para a ampliação da atuação desses novos sujeitos. A segunda
estabelece um conjunto de princípios religiosos e práticas sociais como um
―padrão comportamental evangélico‖, convergente com uma agenda política
próxima à direita e ao centro no campo político. E a terceira diz respeito à
qualificação da participação dos evangélicos na política, onde prevaleceria o
corporativismo religioso e o clientelismo político.
A atuação na Constituinte e outros desdobramentos das sociabilidades
pentecostais no campo político brasileiro serão discutidas nos dois últimos
capítulos, principalmente a partir da crítica feita a essa participação pelo
Protestantismo Ecumênico e de Missão Integral, que se aproximaram de partidos e
movimentos de esquerda. Por ora, cabe apenas ressaltar que se a dinâmica do
campo religioso impactou a esfera pública no período da abertura, este último
também influenciou no crescimento e visibilidade do pentecostalismo. Para uma
melhor percepção do rearranjo do campo religioso brasileiro, uma comparação
com as outras experiências dos ―novos jeitos de ser igreja‖ indicados na revista
Tempo & Presençaé fundamental.

As CEBs e o sonho protestante de um catolicismo evangélico

256
MACHADO, Maria das Dores Campos. Op cit. p. 20.
257
MACHADO, Maria das Dores Campos. Op cit. p. 46.
113

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), iniciadas no final dos anos 1950


com o propósito de incentivar a participação dos leigos e tornar a igreja mais
acessível à massa dos fiéis católicos através de comunidades de fé organizadas
nos locais de moradia e trabalho, contribuíram com experimentos litúrgicos,
desenvolveram práticas de leitura comunitária dos textos bíblicos e promoveram
uma administração dos sacramentos mais descentralizada. Scott Mainwaring
definiu a CEB como:

um pequeno grupo (com uma média de 15 a 25 participantes) que geralmente


se reúne uma vez por semana, usualmente para discutir a Bíblia e sua
relevância face às questões contemporâneas. Seus membros são responsáveis
pelas cerimônias religiosas do grupo assim como por muitas decisões.258

O propósito inicial das CEBs não contemplava a dimensão política


desenvolvida nas décadas seguintes. De acordo com o autor supracitado, foram
pensadas ―como um meio de fortalecer a igreja tradicional, não para ser uma nova
forma de igreja‖. Elas deveriam existir para ―estimular a fé dentro de uma
sociedade secular, não para modificar essa sociedade‖.259 Ganharam maior
impulso com as mudanças eclesiológicas e pastorais da Igreja Católica após o
Concílio Vaticano II (1962) e a Conferência do Episcopado Latino-americano em
Medelín (1968). Diante do fechamento das vias institucionais e democráticas de
participação na sociedade, imposto pela ditadura, principalmente depois do AI-5,
em 1968, as CEBs se tornaram não apenas espaços de atuação para agentes de
pastoral e formação de lideranças populares, mas também de militância para a
esquerda católica e secular.
A autorrepresentação construída pelas CEBs durante os anos de maior
projeção (décadas de 1970 e 1980), bem como as interpretações construídas pela
intelectualidade religiosa ou secular favoráveis à sua atuação, deram a essas
comunidades um estatuto de força emancipadora dos pobres, instrumento de
empoderamento ou conscientização de sujeitos. As CEBs seriam, de acordo com
esses discursos, a Teologia da Libertação vivida comunitariamente e no cotidiano,
enquanto a Teologia da Libertação seria a formulação teórica de uma prática
eclesial em curso nas comunidades. Claro que não faltaram visões críticas sobre
258
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916-1985). Trad. Heloisa
Braz de Oliveira Prieto. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 127.
259
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916-1985). Trad. Heloisa
Braz de Oliveira Prieto. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 128.
114

as CEBs, mas tomando a revista Tempo & Presença como um termômetro da


repercussão alcançada, percebe-se que as análises se confundiam muitas vezes
com as expectativas. Certamente, era às CEBs, mais do que às igrejas
pentecostais, a que o CEDI se referia quando publicou no editorial:

Unindo fé e política, com vistas a uma nova sociedade de justiça e paz, as


novas comunidades cristãs inspiradas na plena mensagem evangélica, vão
sendo reforçadas, cada vez mais, pelo exemplo dos mártires [...]. Na
realidade brasileira, as novas expressões do ser cristão vão se revelando
dentro da luta pela reforma agrária, pela participação popular na formulação
do novo texto constitucional e pela conquista de direitos básicos para a
maioria da população e em particular do povo trabalhador.260

As esquerdas encontrariam nas CEBs e pastorais sociais católicas um meio


de acesso ao povo, ainda que mediado pelo discurso religioso, muitas vezes
incompatível com o modo como esse sujeito coletivo, povo, era pensado pelas
próprias esquerdas. Era antes ―os pobres‖ da ética católica tradicional ou da
Teologia da Libertação, do que os trabalhadores ou a classe operária das análises
marxistas, que os militantes de esquerda encontravam nos movimentos populares
originados da experiência das CEBs.

Imagem 1 – CEBs e diálogo católico-evangélico

260
TEMPO E PRESENÇA. Editorial Novos jeitos de ser igreja. jun. 1986, página 03.
115

ACONTECEU NO MUNDO EVANGÉLICO. Encontro das CEBs cresce no diálogo católico-


evangélico. nº. 78, agosto de 1989.

Porém, o misto de análise e expectativas sobre o papel transformador das


comunidades de base não estava presente apenas no catolicismo ou nas esquerdas
seculares que tentavam se reorganizar para enfrentar a ditadura depois do fracasso
da luta armada. No protestantismo histórico havia uma leitura positiva sobre as
mudanças que ocorriam no catolicismo e as CEBs eram vistas como um
experimento ecumênico possível, não por sua suposta novidade, mas ao contrário,
por um reconhecimento tardio de princípios protestantes. Em 1984, o teólogo
presbiteriano Antônio Gouveia Mendonça (1922-2007) escreveu que:

Para muitos protestantes no Brasil as Comunidades Eclesiais de Base


constituem nada mais que uma fase historicamente ultrapassada das igrejas
protestantes, como uma recuperação tardia de um modo antigo de ser igreja.
Esta visão provoca entre os protestantes duas atitudes distintas: primeiro,
uma certa satisfação por ver nas CEBs um possível reconhecimento por parte
dos católicos de erros históricos justificadores de todas as críticas que tem
sofrido a respeito de sua impotência evangelizadora na América Latina e,
segundo, uma certa preocupação porque o potencial católico retomando o
caminho certo poderá representar sério obstáculo à expansão protestante.
Poderíamos acrescentar como um apêndice, uma visão intermediária, que é a
dos poucos espíritos ecumênicos, para os quais uma nova era da igreja no
Brasil, e em algumas partes da América Latina, está começando. 261

Houve certa longevidade dessa associação das CEBs com uma herança
protestante esquecida pelo próprio protestantismo. No início dos anos 1990, o
teólogo presbiteriano Richard Shaull escreveu:

O meu contato com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Teologia


da Libertação na América Latina me convenceram de que uma Nova
Reforma já se iniciou. Participando dela, eu me senti regressando mais e mais
à Reforma Protestante e me envolvendo em um novo diálogo com ela. 262

A valorização protestante das CEBs vinha acompanhada da relativização da


novidade desse modo de ser igreja, que, ao invés de novo, seria antigo não apenas
na experiência protestante, mas no próprio catolicismo. Antônio Gouveia
Mendonça encontrou nas Comunidades de Base da sua época o mesmo espírito
comunitário, leigo, autônomo e descentralizado das primeiras comunidades

261
MENDONÇA, Antônio Gouveia de. Uma inversão radical: uma visão protestante das
Comunidades Eclesiais de Base no Brasil. In: ASTE, Revista Simpósio, julho de 1984, p. 283.
262
SHAULL, Richard. A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação: perspectivas para os
desafios da atualidade. São Paulo: Livraria e Editora Pendal Real, São Paulo, 1993.
116

protestantes no meio rural do Brasil do século XIX ou em expressões do


catolicismo colonial anteriores à implantação definitiva da Cristandade:

Antes da chegada da cristandade já existiam formas individuais, grupais e


localizadas de religião cristã (não importa aqui se constituíam formas
desviantes ou não) muito próximas, sob o ponto de vista sociológico, do que
poderíamos chamar de congregação local protestante ou das modernas CEBs.
E ainda, o que é mais significativo, essas formas eclesiais não constituem, na
mentalidade de seus componentes, formas provisórias de ser igreja. Ao
contrário [...] a resistência que esses grupos opunham à chegada da paróquia
e do padre evidencia que não havia nenhuma relação provisória/definitiva,
mas que a expropriação religiosa constituía uma perda real. 263

As CEBs eram vistas como renovadoras do catolicismo exatamente por


resgatar uma herança protestante. Esta interpretação das CEBs feita por Antônio
Gouveia Mendonça servia como um meio de entender a crise do protestantismo
tradicional e o sucesso das igrejas pentecostais. Uma das explicações sugeria que
ocorrera uma ―inversão radical‖ entre catolicismo e protestantismo no modo de
ser igreja:

Assim, o que encontramos hoje na relação catolicismo/protestantismo, desde


que se considere as CEBs como uma marca das tendências renovadoras, e
porque não dizer reformistas, da Igreja Católica, é o seguinte: a Bíblia como
Palavra de Deus no catolicismo (presença dinâmica) e como ―biblismo‖
(codificação de leis religiosas já interpretadas, na maioria das vezes, ou
orientação oracular da vida, com muita frequência) no protestantismo;
tendência laicizante no catolicismo (participação cada vez maior do leigo,
inclusive na ministração dos sacramentos) e clericalização progressiva no
protestantismo (tendência fortemente institucionalizadora na maioria das
igrejas); popularização da liturgia no catolicismo (participação do leigo,
inclusive a circulação da ideia de ―culto‖ paralela à ―missa‖) e a permanência
histórica da prática da ―audiência de discurso‖ (o templo é frequentemente
chamado de auditório) no protestantismo. 264

A inversão indicada deixava entrever, porém, os caminhos sugeridos para a


recuperação do protestantismo histórico e para a superação dos entraves ao
ecumenismo, a outra experiência de ser igreja que mesmo possuindo antecedentes
se apresentava para o contexto como uma novidade.

O movimento ecumênico: as novas igrejas e o protagonismo protestante

263
MENDONÇA, Antônio Gouveia de. Op cit. p. 285.
264
MENDONÇA, Antônio Gouveia de. Uma inversão radical: Op cit. p. 283.
117

Nos anos 1960 e 1970, as disputas entre fundamentalistas e ecumênicos,


progressistas e conservadores, provocaram muitas dissidências no conjunto das
igrejas do protestantismo histórico. Em 1976, foi criada em Salvador a Igreja
Batista Nazareth (IBN), uma comunidade formada por jovens e leigos expulsos,
por envolvimento com o ecumenismo ou com a oposição à Ditadura Militar, da
Igreja Batista Dois de Julho. De acordo com o relato da memória institucional da
IBN:

Naquele tempo a intolerância política gerava consequências graves nas


igrejas evangélicas e, batistas em particular, resultando na expulsão dos
jovens antes referidos e centenas de outros que perderam a referência
evangélica. A cúpula batista na Bahia primeiro apostou que aquele ―bando de
desordeiros‖ não permaneceria junto muito tempo. Depois apostou que não
fundaria igreja nenhuma e, finalmente, que se fundasse, ela teria vida curta.
Assim é que em 08 de abril de 1976, a Junta Executiva da JUERP comunica à
IBN em resposta ao seu pedido de ingresso na Convenção Batista Brasileira
que ―o assunto foi tirado de ‗sobre a mesa‘ para voltar ao plenário‖. Sendo
finalmente aceita em julho de 1976 para, em agosto de 1988, ser expulsa,
―tendo em vista as diretrizes ecumênicas que têm sido observadas por esta
igreja‖.265
Em 1978, os presbiterianos dissidentes ou excluídos da Igreja Presbiteriana
do Brasil (IPB) criaram a Federação Nacional de Igrejas Presbiterianas (FENIP)
que, em 1983, se tornou Igreja Presbiteriana Unida (IPU). A IPU manteve como
um dos documentos da denominação, o Pronunciamento Social da IPB de 1962,
descrito abaixo:

No propósito de avivar a consciência de todos os fiéis para os perigos,


deveres e oportunidades da hora presente, [a IPB] apresenta o seguinte
pronunciamento sobre os problemas políticos e sociais:
O imperativo que impõe à igreja a obrigação de fazer pronunciamentos sobre
questões sociais da atualidade nacional e internacional deriva de sua vocação
profética de proclamadora e testemunha do Reino de sua submissão e
fidelidade à Palavra de Deus.
Sua autoridade para pronunciar-se sobre essas questões em dada situação
concreta deriva, porém, da disposição com que os cristãos participem, sincera
e sacrificialmente, da luta por uma ordem social em que se expressem cada
vez mais perfeitamente os postulados fundamentais da fé cristã sobre Deus, o
homem, a sociedade, o Estado e os sistemas ideológicos políticos, sociais e
econômicos. 266

265
Igreja Batista Nazareth: 25 anos de resistência, luta e fé. Salvador-Bahia 1975-2000. Livro
organizado em 14 de fevereiro de 2000 por um Grupo de Trabalho coordenado por Nilza Andrade
Dela Fonte para contar a história da igreja com documentos anexos e depoimentos. Não há
numeração de páginas.
266
DIRETÓRIO DA IPU. Pronunciamento Social. Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, 2010, p.
25.
118

Novas comunidades e denominações nasceram agregando pessoas que


foram submetidas à disciplina eclesiástica e excluídas do rol de membros por
serem ecumênicos ou se envolverem em movimentos políticos e religiosos
voltados para o enfrentamento de problemas sociais. Houve ainda o desencanto de
muitas pessoas com as igrejas de origem em função do perfil mais conservador ou
progressista, quer no aspecto da responsabilidade social ou na dimensão litúrgica
e comportamental.
Houve solidariedade entre as novas comunidades e entre os sujeitos que
circulavam nas redes institucionais do Protestantismo Ecumênico, mas havia
também diferenças que se perpetuaram nas disputas de memória sobre o
protagonismo no movimento ecumênico. Isso se manifestou nos depoimentos do
pastor batista Djalma Torres, não apenas em relação à IPU, valorizando-se
comparativamente a experiência da Igreja Batista Nazareth, mas também em
relação ao Instituto de Educação Teológica da Bahia (ITEBA). A instituição ainda
não foi devidamente estudada, mas representou uma iniciativa importante para a
organização do movimento ecumênico, por dedicar-se à educação teológica,
fundamental na formação de lideranças religiosas inspiradas nas Teologias da
Libertação.
Uma comissão formada por representações da Igreja Batista Nazareth, da
Igreja Presbiteriana Unida e de igrejas luteranas e metodistas, com o apoio de
quatro entidades ecumênicas, destacadamente a CESE e o CMI, elaboraram um
curso voltado ao ensino de uma teologia contextualizada, chamado no primeiro
momento de Teologia para Hoje e depois, deTeologia para o Desenvolvimento,
coordenado por João Dias de Araújo. O curso funcionou de 1980 a 1986, mantido
nas dependências da IPU em Salvador. No entanto, Djalma Torres reivindica a
iniciativa na criação do ITEBA:

Nesta época também, como parte dessa proposta ecumênica, nós


organizamos aqui na Bahia o ITEBA, que é Instituto de Educação Teológica
da Bahia. O ITEBA foi organizado no final da década de 1980 por iniciativa
minha. Há uma certa incompreensão porque os presbiterianos da IPU vendem
a ideia de que partiu da IPU a ideia de organização do ITEBA, mas não é
verdade. A ideia foi minha, vendida a João Dias e discutida num evento
promovido pelo Conselho Mundial de Igrejas em Salvador, aqui no hotel São
Salvador. E aí eu lancei a ideia com alguns líderes religiosos, e eu me lembro
bem que havia o pastor Ramom Coutinho, da Igreja Metodista, João Dias, da
Igreja Presbiteriana, da IPU, eu que lancei a ideia, e nós então começamos a
119

dialogar a respeito da organização do ITEBA até que conseguimos


formalizar.267

Em 1988, numa assembleia realizada na Igreja Batista Nazareth, o curso


Teologia para o Desenvolvimento se transformou oficialmente em Instituto de
Educação Teológica da Bahia (ITEBA), com a primeira diretoria constituída por
Djalma Torres (batista), João Dias de Araújo (presbiteriano) e Ramon Coutinho
(metodista). O funcionamento acadêmico, com a proposta pedagógica pretendida
pelo movimento ecumênico na Bahia, começou dois anos depois. De acordo com
o pastor Djalma Torres:

O lançamento do ITEBA, como instituição de formação acadêmica teológica,


foi feito no início da década de 1990, em janeiro ou fevereiro de 1990, na
Igreja Batista Nazareth. E eu fui lançado como o diretor-presidente, mas a
minha alegação era a seguinte: que a pessoa mais qualificada para assumir a
direção geral, e essa era a nomenclatura, diretor geral do seminário, devia ser
João Dias, já que a formação teológica dele era a mais qualificada entre nós
três. E assim se organizou o ITEBA: João Dias diretor geral, eu diretor
administrativo e o Ramom diretor acadêmico. 268

Era o primeiro seminário não confessional, aberto a todas as confissões


cristãs, com um programa de educação teológica ecumênica, contextualizada e
afinada com a Teologia da Libertação latino-americana, o que se manifestava no
currículo:

Então, o sonho do ITEBA se concretizava através dessa grade curricular que


a instituição realizava. Foi discutido por muito tempo a ideia de que o
currículo do ITEBA não atendia especificamente às denominações
evangélicas todas, ou seja, o aluno ou a aluna que estudasse no ITEBA, não
estava devidamente qualificado para assumir o pastorado de uma igreja
qualquer, nem batista, nem metodista, nem presbiteriana, por causa das
doutrinas particulares a essas denominações. O que nós fizemos foi discutir o
seguinte: a gente atende a uma grade curricular normal do ITEBA, que
alcance todas as pessoas e aí nós designamos mais um semestre ou dois a
critério dessas igrejas, para que os alunos por ela indicados se afinassem com
as doutrinas de suas igrejas. E assim o ITEBA realizou um grande
trabalho.269

A instituição era filiada às associações de educação teológica nacionais,


continentais e mundiais, sobretudo as que promoviam programas de educação

267
TORRES, Djalma. Entrevista concedida ao autor, Alagoinhas-BA, 05/2015.
268
Ibidem.
269
Uma das disciplinas ministradas por Djalma Torres era Movimentos Messiânicos e diálogo
inter-religioso.
120

teológica financiados pelo CMI.270 Em sua autobiografia, o pastor Djalma Torres


ressaltou a importância que o ITEBA adquiriu no movimento ecumênico:

Em 1991, numa Consulta Latino-americana e Caribenha sobre teologia, em


Manágua, na Nicarágua, da qual participei, o ITEBA foi apontado como a
grande novidade do conclave no mundo teológico latino-americano e
caribenho.271

―Ecumenismo no Brasil é coisa de protestantes‖, escreveu Edin Sued


Abumanssur nas Comunicações do ISER em 1985.272 Para comprovar a
afirmação, fez uma lista das pessoas que estavam à frente das entidades
ecumênicas mais influentes no país nos últimos 20 anos (1965-1985) e chegou ao
resultado de 50 protestantes entre 52 pessoas. Seu texto se tornou uma referência
para pensar essas redes institucionais a partir da interação entre seus agentes, mas
também serviu para interpretações reducionistas quanto ao alcance desse
ecumenismo, por conta da conceituação imprecisa dessa rede como uma ―tribo‖,
assim descrita:

Tanto as pessoas quanto suas instituições acabam formando o que podemos


chamar, sem um rigor acadêmico, de ―tribo ecumênica‖. Essa ―tribo‖, no
correr dos anos, construiu e delimitou um público e um espaço próprio
através de seu discurso e sua proposta ecumênica. As pessoas dessa ―tribo‖
têm um percurso bastante semelhante em suas igrejas; algumas carregam,
ainda hoje, as marcas de sua militância nas duas décadas passadas. 273

Nesse primeiro momento, ―tribo‖ é apenas uma forma de demonstrar os


laços de identidade e coesão de um grupo de pessoas e instituições que possuíam
trajetórias, interesses, perspectivas teológicas e políticas próximas ou comuns. O
ecumenismo, como bem descreveu o autor, era ―a ideologia da tribo‖, através da
qual os ecumênicos se diferenciavam e competiam com um ―outro‖, descrito
como conservador ou fundamentalista. A discordância que apresento a esta
conclusão passa por entender que a disputa do poder simbólico não pode se

270
O ITEBA era filiado nacionalmente à Associação de Seminários Teológicos Evangélicos
(ASTE) e, em âmbito continental, à Comunidade de Educação Teológica Ecumênica Latino-
Americana e Caribenha (CETELA). Esta última integrava o setor de Educação Teológica
Ecumênica (ETE) do Conselho Mundial de Igrejas (CMI).
271
TORRES, Djalma. Caminhos de Pedra. Feira de Santana: Curviana, 2011, p. 26.
272
ABUMANSSUR, Edin Sued. Ecumenismo no Brasil: do que estamos falando. In:
Comunicações do ISER, nº 15, julho de 1985, p. 61.
273
ABUMANSSUR, Edin Sued. Ecumenismo no Brasil: do que estamos falando. In:
Comunicações do ISER, nº 15, julho de 1985, p. 61.
121

desvincular da disputa do poder político. Nesse sentido, o ―outro‖ do ecumenismo


não era apenas um agente do processo de diferenciação ou concorrente no
mercado religioso, mas também uma outra ―tribo‖ com suas interações entre
pessoas e instituições e com memórias e identidades próximas ou comuns. As
―tribos‖ concorrentes – não restringindo o termo, portanto, apenas ao movimento
ecumênico – estavam, direta ou indiretamente, ligadas a projetos de igreja e
sociedade conflitantes, se não no conteúdo desses projetos, ao menos na forma e
nos caminhos de construí-los.
Edin Sued Abumanssur estava preocupado em entender ―as dificuldades do
ecumenismo no Brasil e como caminhamos de uma proposta de busca de
harmonia entre as igrejas para uma postura quase sectária‖.274 Paul Freston, que se
apropriou da conceituação de ―tribo ecumênica‖, tentava explicar ―seu
distanciamento da massa protestante do país‖.275 Preocupações que não ajudam a
compreender as ligações dessa ―dificuldade‖ ou desse ―distanciamento‖ com os
vínculos políticos do ecumenismo, do fundamentalismo e da Missão Integral no
âmbito da disputa do Estado, servindo apenas para responsabilizar uma ―tribo‖
pela incapacidade de agregação, enquanto o outro é interpretado sem maiores
ponderações como ―a massa protestante‖.
Com tais pressupostos, Edin Sued Abumanssur poderia lamentar a forma
como o ecumenismo foi vivido no Brasil que ―nos leva para longe de sua intenção
primeira‖ e Paul Freston poderia arrolar os pecados coletivos da ―tribo
ecumênica‖ que a afastava da ―massa protestante‖: o elitismo e a secularização.
Contudo, seria fundamental compreender os limites impostos pela ―massa
protestante‖ ao ecumenismo: não apenas as ideias, mas os interesses religiosos e
políticos em jogo que tornavam essa ―massa‖ impermeável à agenda ecumênica.
Um exemplo é que os movimentos de juventude na Missão Integral, a longo
prazo, também influenciaram na secularização ou no abandono das instituições
eclesiásticas formais, como demonstra o depoimento de Nelson Bomilcar:

Esse despertar espiritual parecia ameaçar uma liderança denominacional,


insegura e personalista, que misturava o conceito de autoridade espiritual
com o poder e a influência. Ali se delineava uma ―tribo‖ dos que não

274
Ibidem.
275
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese
(Doutorado em Sociologia), UNICAMP, Campinas, 1993.
122

desejavam a igreja engessada – ou, no mínimo, a igreja com aquela


formatação institucional. Era a semente do que viria a ser chamado na década
de 2000 de os ―sem-igreja‖, uma nação que reúne diversos grupos de
insatisfeitos que aumenta em velocidade vertiginosa. É uma realidade no
mundo religioso, tanto protestante quanto católico romano. 276

O aspecto mais pertinente na abordagem de Edin Sued Abumanssurfoi a


proposta de classificação do movimento ecumênico: eclesiológica, cooperativa e
sociológica. O ecumenismo eclesiológico seria ―a busca da unidade da igreja”,
que ―coloca em xeque as múltiplas manifestações eclesiais‖. O ecumenismo
cooperativo consistiria em ―acordos de cooperação para a execução de um
propósito‖ nos quais, ―os limites de cada confissão continuarão intocados e que o
resultado final não questionará as respectivas eclesiologias‖. Por fim, o
ecumenismo no sentido sociológico seria ―uma política de regulamentação e
contenção do mercado religioso‖, uma forma de ―pôr ordem na competição entre
as agências no campo religioso‖.277 A partir dessas três concepções, ele propôs
cinco ―possibilidades de práticas ecumênicas‖, elencando os sujeitos, momentos e
entidades participantes de cada uma delas. As modalidades seriam:

1) Ecumenismo litúrgico, cuja prática exemplar seria a ―Semana de


Oração pela Unidade dos Cristãos‖ celebrações conjuntas de
casamentos, formaturas e outros eventos, além de experimentos de
cultos comunitários entre confissões diferentes. Restrito ao evento
litúrgico, sem relação permanente.
2) Ecumenismo cooperativo, no qual há, diferentemente do primeiro,
―uma cooperação permanente entre as igrejas em função de um interesse
comum‖, como o ensino religioso. Igrejas arredias a outras formas de
ecumenismo também participam dessa modalidade, evitando, porém,
utilizar o termo ecumenismo (―até batistas e, em alguns casos,
pentecostais‖).
3) Ecumenismo de base ou serviço, ―restrito a uma comunidade e aos
cristãos envolvidos na solução do problema imediato‖, como condições
de moradia, alimentação, saneamento, saúde, etc. Acontece sem

276
BOMILCAR, Nelson.Os sem-igreja: buscando caminhos de esperança na experiência
comunitária. São Paulo: Mundo Cristão, 2012, p. 22-23.
277
ABUMANSSUR, Edin Sued. Ecumenismo no Brasil: do que estamos falando. In:
Comunicações do ISER, nº 15, julho de 1985, p. 58.
123

interferência ou sem participação relevante de organizações


eclesiásticas.
4) Ecumenismo eclesiástico, que busca a unidade das igrejas através de
reflexões teológicas, declarações conjuntas e organismos
paraeclesiásticos de diálogo entre as confissões. Dessa modalidade,
fariam parte: CMI, CLAI, CONIC.
5) Ecumenismo político, aquele que ―ocorre tendo como pano de fundo
uma estratégia política de transformação social a longo prazo‖. Nessa
modalidade foram citados: CESE, CEDI, ISER, CESEP, ULAJE,
FUMEC, ASEL, CELADEC e outros que ―vivem da execução de
projetos financiados por agências de ajuda do Primeiro Mundo. Estão
nas fronteiras entre as igrejas e os movimentos sociais‖.278

As três primeiras formas não teriam impacto no ―modo de ser igreja‖ dos
participantes envolvidos. Apenas as duas últimas poderiam ser classificadas como
ecumenismo eclesiológico, no qual ―a questão ecumênica está colocada no centro
das preocupações e as atividades dos organismos envolvidos se pautam por essa
perspectiva‖.279Se as formas de ecumenismo tinham impactos diferenciados nas
igrejas, as particularidades regionais tinham impactos diferenciados no
movimento ecumênico. As muitas histórias localizadas do ecumenismo poderiam
trazer contribuições para o conhecimento das trajetórias individuais e das redes
institucionais. Djalma Torres descreveu algumas iniciativas do movimento na
Bahia:

Criamos, então, em Salvador, uma espécie de filial do CONIC. Estou dizendo


uma espécie porque era uma organização estadual ligada ao CONIC, mas
com a liberdade de fazer a programação que a gente achasse conveniente.
Este trabalho foi um trabalho muito bonito porque nós começamos a
participar da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que no Brasil é
celebrada sempre na semana que antecede a Pentecostes.280

O depoimento evidencia que o ecumenismo foi compreendido entre os anos


1950 e 1980, majoritariamente, como a cooperação entre confissões cristãs

278
Todas as citações acima em ABUMANSSUR, Edin Sued. Ecumenismo no Brasil: do que
estamos falando. In: Comunicações do ISER, nº 15, julho de 1985, p. 58-59.
279
ABUMANSSUR, Edin Sued. Op cit. p. 59.
280
TORRES, Djalma. Entrevista ao autor, Alagoinhas-BA, Maio/2015.
124

(católica, protestante, ortodoxa) ou a partir da atuação de instituições


paraeclesiásticas. Quando a historiografia se refere ao ecumenismo, é basicamente
neste sentido, como no trabalho de Agemir Dias:

Entendemos por movimento ecumênico todas as instituições que de alguma


forma procuram promover a unidade dos cristãos. Temos diversos graus de
ecumenismo: em um sentido restrito, podemos pensar na busca da unidade
entre as diversas denominações advindas da Reforma Protestante, no Brasil
genericamente chamadas de evangélicas; também temos as organizações que
incluíram a participação de outros cristãos além dos protestantes, como os
católicos romanos e ortodoxos; e por fim as organizações que se
desvincularam de uma relação eclesial, mas que promovem o ideal
281
ecumênico de unidade.

O diálogo inter-religioso, abarcando todas as religiões, se tornou mais


presente nas ações do movimento ecumênico a partir dos anos 1990, embora
iniciativas individuais ou mesmo institucionais localizadas tenham ocorrido antes
disso. Djalma Torres, a Igreja Batista Nazareth, o ITEBA e a CESE se destacaram
na transição do ecumenismo para o diálogo inter-religioso na Bahia, sobretudo
com as religiões afro-brasileiras.No Rio de Janeiro, Koinonia Presença Ecumênica
e Serviço, uma das ONGs que nasceram do antigo CEDI em 1994, também se
engajou em projetos de combate à intolerância religiosa.282
Para tornar inteligíveis as interações entre religião e política no período em
apreço, é importante comparar os efeitos produzidos por estes novos modos de ser
igreja no campo religioso e no campo político. Comparação que não pode
esquecer que ―tudo o que põe os homens em movimento tem necessariamente que
passar pelo seu cérebro, mas a forma que toma nesse cérebro depende muito das
circunstâncias‖.283 No processo de abertura política as circunstâncias foram
sinalizadas por alguns acontecimentos, campanhas e movimentos, como a
revogação do AI-5, as greves do ABC, a campanha da Anistia, o

281
DIAS, Agemir de Carvalho. O movimento ecumênico no Brasil (1954-1994): a serviço da igreja
e dos movimentos populares. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2007, p. 14.
282
Sobre a inadequação do conceito de ecumenismo para designar o diálogo com as confissões não
cristãs, Djalma Torres escreveu: ―Essa aproximação das igrejas cristãs com as religiões não-cristãs
tem sido chamada de Ecumenismo, por uns poucos que entendem ser o grego oikoumene, que
significa toda a terra habitada, a palavra que deve reger as relações entre cristãos e não cristãos.
Acontece, entretanto, que o termo adquiriu conotações históricas especiais e passou a designar
apenas a relação entre igrejas cristãs‖. TORRES, Djalma. Caminhos de pedra. Feira de Santana:
Curviana, 2011, p. 192.
283
ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: ENGELS,
Friedrich; MARX, Karl. Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1972, p. 287.
125

pluripartidarismo, as Diretas Já, o Colégio Eleitoral, a Assembleia Nacional


Constituinte, a nova Constituição e a retomada de eleições livres e diretas paras
todos os poderes. A atuação do movimento ecumênico nessas circunstâncias
talvez ajude a perceber que não eram apenas as ideias que passavam por suas
cabeças que incompatibilizava o movimento com as igrejas.

PARTE II

ESQUERDAS E MINORIAS: TEOLOGIA E MILITÂNCIA


126

O capítulo III, ―Socialismo Cristão: o desafio marxista e a resposta cristã‖,


analisa as relações do protestantismo brasileiro com o marxismo, a filiação de
protestantes às organizações de esquerda e a apropriação do marxismo nas leituras
da Bíblia. O capítulo IV, ―O feminismo cristão latino-americano: saber teológico
e poder eclesiástico‖, introduz o debate sobre a incorporação de pautas dos
movimentos de minorias nas elaborações teológicas do protestantismo, discutindo
as mulheres no Protestantismo Ecumênico e no movimento de Missão Integral. O
capítulo V, ―Minorias militantes e teologias situadas: negros e homossexuais em
debate no protestantismo‖, discute a militância antirracista no meio evangélico e
as abordagens sobre a homossexualidade.
127

Capítulo III
Socialismo Cristão: o desafio marxista e a resposta cristã

A crítica à religião é a
condição preliminar de toda
a crítica […] A crítica do
céu transforma-se assim em
crítica da terra, a crítica da
religião em crítica do
direito, a crítica da teologia
em crítica da política.
Karl Marx284

A vocação cristã pela


justiça antecede o
marxismo por muitos
séculos.
Rubem Alves285

O evangelho segundo Marx e o marxismo segundo a fé

Na pesquisa sobre os movimentos sociais que emergiram entre o final dos


anos 1970 e o início dos anos 1980, Eder Sader destacou três matrizes discursivas
que construíram a linguagem e a ação política destes movimentos: o cristianismo
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o marxismo de uma esquerda
dispersa, e o surgimento do ―novo sindicalismo‖.286 Para o autor, essas matrizes
discursivas foram construídas a partir da crise das instituições que referendavam a
prática religiosa, a utopia política e a organização dos trabalhadores,
respectivamente: a igreja, o partido e o sindicato. Não pretendo discutir a tese do
autor, mas apenas seguir algumas pistas sugeridas sobre a interseção entre crise
das instituições tradicionais, produção de novas matrizes discursivas e emergência
de sujeitos políticos para entender de que forma as transformações do
protestantismo inseriram-se no processo de abertura política.
Para os propósitos deste trabalho, a ordem foi invertida, iniciando pelo
marxismo, não tanto em sua elaboração por uma ―esquerda dispersa‖, como em
Sader, mas considerando as afinidades eletivas do igualitarismo religioso com as

284
MARX, Karl. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. 1ª edição. São Paulo:
Editora Expressão Popular, 2010, p. 29, 31-32.
285
ALVES, Rubem. Prefácio ao livro. In: RAUSCHENBUSCH, Walter. Orações por um mundo
melhor. São Paulo: Paulus, 1997, p. 14.
286
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1988.
128

ideologias de esquerda que foram sendo construídas pelo Protestantismo


Ecumênico e de Missão Integral. Estas afinidades forjaram novas expressões
doSocialismo Cristão. Em seguida, tento perceber o impacto do Socialismo
Cristãona leitura da Bíblia por entender que esta última constituía uma
experiência fundamental e conflituosa da inserção do Protestantismo Ecumênico e
de Missão Integral tanto no campo religioso quanto no campo político.
O Socialismo Cristão não erauma novidade brasileira ou protestante, surgida
no período aqui analisado. Antes, poderiaser interpretado como uma das correntes
de crítica às desigualdades sociais produzidas pelo capitalismo, uma das matrizes
do socialismo enquanto movimento intelectual e político no século XIX. Suas
expressões no cristianismo brasileiro foram tardias em comparação com as
experiências europeias e norte-americanas, recebendo delas influências indiretas e
descontínuas, apropriadas de acordo com a dinâmica do campo religioso.
Para entender o Socialismo Cristão é preciso considerá-lo como parte do
movimento socialista, portanto, crítico ao capitalismo, e como parte do
cristianismo, ou seja, reprodutor de uma visão de mundo religiosa diante dos
problemas sociais e diante de ideologias secularistas, especialmente o marxismo e
sua crítica à religião. A análise do papel da religião nas lutas de classe ao longo da
história foi um tema muito presente na literatura marxista. Não apenas os
formuladores do materialismo histórico escreveram sobre o assunto em
Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, A questão judaicae A
Sagrada Família (Marx), As guerras religiosas na Alemanha e Cristianismo
primitivo (Engels), citando apenas os textos mais conhecidos287, como também
Rosa Luxemburgo (1871-1919), Kautsky (1854-1938), Gramsci (1891-1937), E.
P. Thompson (1924-1993) e Christopher Hill (1912-2003), dentre outros, teceram
considerações teóricas sobre o cristianismo do primeiro século, a Reforma
Protestante, o puritanismo, as seitas radicais, o Socialismo Cristão e a Igreja
Católica.288
Não houve uma única abordagem, mas todas as análises marxistas se
preocuparam com a dupla face da religião, como ―expressão da angústia real‖ e

287
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1972.
288
Para uma abordagem das análises marxistas da religião, ver o capítulo ―Marxismo e religião:
ópio do povo?‖ em: LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina.
Tradução de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000 p. 11-34.
129

―protesto contra angústia real‖, ―suspiro da criatura oprimida‖ e ―ópio do povo‖


para citar o mais famoso dos textos marxistas sobre o tema.289 Na projeção do
comunismo como uma sociedade pós-capitalista, não pareceu o bastante para o
marxismo condenar a ideologia religiosa. Era importante descrever as
experiências protossocialistas na religião, principalmente no cristianismo, como
forma de compreender o estágio em que se encontrava a luta de classes.
As comparações e analogias entre o Cristianismo Primitivo e o movimento
operário, entre a Reforma Protestante e as revoluções contemporâneas, indicam
uma necessidade de compreensão da religião por parte do marxismo como
possibilidades conformadoras ou subversivas de uma concepção de mundo. Em
Cristianismo primitivo,Fiedrich Engels (1820-1895) reproduziu a comparação que
Ernest Renan (1823-1892) fez entre as primeiras comunidades cristãs do século I
e as primeiras associações operárias do século XIX.290 Em As guerras
camponesas da Alemanha, comparou as lutas religiosas do século XVI entre os
campos católico, luterano e anabatista com as lutas políticas do século XIX entre
aristocracia, burguesia e proletariado. Em Contribuição à crítica da filosofia do
direito de Hegel,Karl Marx (1818-1883) comparou o papel de Lutero (1483-1546)
e o de Hegel (1770-1831) como formuladores de uma revolução circunscrita
apenas ao campo teórico.291
No cristianismo do século XIX, além da oposição religiosa ao ateísmo
marxista, havia o que se convencionou chamar de ―a questão social‖. A maioria
religiosa era de pobres, trabalhadores e operários, a quem o marxismo se dirigia.
Assim como para os marxistas, a crítica filosófica à religião não era suficiente
para eliminá-la, em função das necessidades sociais que ela cumpria, diferentes
intelectuais cristãos defenderam que a artilharia de discursos religiosos para
condenar o marxismo não bastava, era necessário mostrar como o cristianismo

289
MARX, Karl. Contribuição àcrítica da filosofia do direito de Hegel. 1ª edição. São Paulo:
Editora Expressão Popular, 2010.
290
―Se quiserem fazer uma ideia das primeiras comunidades cristãs, observem uma secção local da
Associação Internacional de Trabalhadores‖. ENGELS, Friedrich. Contribuição para a história do
cristianismo primitivo. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre a Religião. Lisboa: Edições
70, 1972, p. 365.
291
―O passado revolucionário da Alemanha é efectivamente teórico, é a Reforma. Como outrora
no cérebro do monge, é agora no do filósofo que começa a revolução‖. [grifos originais]. MARX,
Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre a
Religião. Lisboa: Edições 70, 1972, p. 59.
130

poderia apresentar aos pobres, trabalhadores e operários uma solução para suas
condições de vida.
O Manifesto do Partido Comunista (1848) faz referência ao Socialismo
Cristão que, segundo Marx e Engels, condenava o capitalismo não em nome de
uma sociedade futura sem propriedade privada (comunista), mas em nome de uma
sociedade passada com menor distância entre as classes (cristã). O Socialismo
Cristão foi descrito como a manifestação de um ―socialismo reacionário‖,
aristocrático, feudal e clerical. Para Marx e Engels:

Nada mais fácil do que dar um verniz socialista ao ascetismo cristão. O


cristianismo também não se manifestou contra a propriedade privada, contra
o matrimônio, contra o Estado? Em seu lugar não pregou a caridade e a
pobreza, o celibato e a mortificação da carne, a vida monástica e a igreja? O
socialismo clerical é apenas a água benta com que o padre consagra o
despeito dos aristocratas.292

O principal representante deste Socialismo Cristão criticado por Marx e


Engels foi o teólogo anglicano Frederik Denison Maurice (1805-1872). Embora
não tenha contado com a adesão dos trabalhadores e tenha recebido oposição tanto
dos anglicanos conservadores quanto do socialismo secular, as teses mauricianas
de cooperativismo e da ética cristã no comércio e na indústria se tornaram um
legado social do protestantismo europeu. Segundo a historiadora da inserção do
anglicanismo no Brasil, Elizete da Silva, as ideias de Maurice não foram
incorporadas pelos Bispos anglicanos que atuaram no país desde o século XIX até
os anos 1970.293
No final do século XIX, o Socialismo Cristão, com expressões variadas no
catolicismo e no protestantismo, fazia uma releitura dos textos bíblicos, da
história do cristianismo, dos dogmas e da tradição religiosa a partir da ―questão
social‖. A publicação da Rerum Novarum (1891) deu impulso às formas de
catolicismo social então existentes. Indicava o cooperativismo, o convívio entre
capital e trabalho, a intervenção do Estado para minorar desigualdades,
292
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. 2ª edição. Trad. Pietro
Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2000, p. 70-71.
293
Ela apontou para a influência do Socialismo Cristão em iniciativas de educação popular no seio
do movimento operário, a exemplo do ―College para trabalhadores‖, semelhante ao que o
historiador E. P. Thompson atuou na segunda metade do século XX na Inglaterra, ainda que neste
caso a vinculação fosse com uma ideologia socialista secularizada, o marxismo. SILVA, Elizete
da. Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira. Feira de Santana: UEFS Editora 2010, p.
78-79.
131

resguardando o direito de propriedade e a família, condenava o materialismo


como uma doutrina ateia que incita à luta de classes. Criava as bases para a
formação de um sindicalismo católico e o que se tornaria a social-democracia
cristã. Nas palavras de Jessie Jane Vieira de Souza:

conseguiu romper com a ―nostalgia medievalista‖ católica de cunho


fortemente rural e pré-capitalista, que surgia como reação à sociedade
burguesa. Ao liberar o catolicismo social das utopias românticas e colocar-se
num contexto reformista, Leão XIII inseriu sua igreja no terreno da disputa
possível do social.294

Semelhante ao catolicismo, a vertente protestante do Socialismo Cristão


possuía uma elaboração intelectual que era a expressão de um movimento social e
religioso. Muitos cristãos já participavam dos movimentos operários, dos partidos
socialistas ou social-democratas, e legitimavam tal inserção a partir da própria fé.
No protestantismo europeu e norte-americano, surgiram dois movimentos
principais na transição do século XIX para o XX: o Socialismo Religioso e o
Evangelho Social. O Socialismo Religioso contou, entre seus formuladores e
intelectuais, com nomes como Karl Barth e Paul Tillich.295 Comentando a
apresentação das ideias desenvolvidas no Socialismo Religioso para a
Conferência de Oxford (1937), importante conclave do movimento ecumênico
internacional, Tillich resumiu ideias muito comuns às diferentes formas de
Socialismo Cristão:

Dissemos que muitas vezes Deus fala à igreja mais diretamente de fora da
igreja por meio dos inimigos da religião e do cristianismo, do que a partir de
seu interior, por meio dos representantes oficiais da igreja. Relacionamos
nossas ideias com os movimentos revolucionários dos séculos dezenove e
vinte e, especialmente, com o movimento socialista.296

O Evangelho Social nos EUA teve como principal liderança o pastor batista
Walter Rauschenbusch (1861-1918). Além das críticas ao capitalismo, os livros

294
SOUZA, Jessie Jane Vieira de. Os círculos operários: a Igreja Católica e o mundo do trabalho
no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002, p. 84.
295
Mesmo após a ruptura com o Socialismo Religioso, percebe-se uma influência decisiva do
movimento no modo como Barth e Tillich continuaram a pensar as respostas cristãs às
desigualdades sociais e aos conflitos políticos e ideológicos. Segundo Tillich, os precursores do
movimento foram Johann Christoph Blumhardt (pai) e Christoph Blumhardt (filho) na Alemanha,
Hermann Kuttet e Leonhard Ragaz na Suíça. Ver: TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia
Protestante nos séculos XIX e XX. 2ª Edição. Trad. Jaci Maraschin. São Paulo: ASTE, 1999.
296
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX.2ª Ed. Trad. Jaci
Maraschin. São Paulo:, ASTE, 1999, p. 238.
132

Princípios sociais de Jesus, Cristianizando a ordem social e Cristianismo e crise


social faziam analogia entre a utopia do marxismo e a esperança cristã.297 O
socialismo revelava-se uma opção política pelo Reino de Deus, embora distinto do
mesmo. Para Walter Rauschenbusch e adeptos do Evangelho Social, o Reino de
Deus se concretizava numa ordem de justiça:

O Reino de Deus é o primeiro e mais fundamental dogma da fé cristã. Ele é


também o ideal social perdido da cristandade. Ninguém é cristão no sentido
pleno do discipulado original, até fazer do Reino de Deus o propósito
dominante de sua vida. […] Os profetas foram reformadores religiosos que
exigiam ação social. Não discutiam sobre a santidade, de forma abstrata, mas
social.298

Uma obra devocional ajudou a estender o Evangelho Social para além do


espaço e do tempo em que o movimento se desenvolveu: o livro Em seus, passos
o que faria Jesus? (1896) de Charles Sheldon(1857-1934).299 Na história, uma
comunidade cristã de classe média, a maior igreja da cidade de Raymond, é
desafiada por um homem pobre e desempregado a pautar todas as ações pessoais e
sociais a partir da pergunta ―o que Jesus faria se estivesse no meu lugar?‖. A
distância social entre o homem que lançou o desafio e a igreja, era uma
representação literária da denúncia que o Evangelho Social fazia ao
aburguesamento do protestantismo:

Era duvidoso que algum indivíduo daquela espécie já tivesse enfrentado


alguma vez a Primeira Igreja, dentro do santuário. A congregação estava
mais ou menos familiarizada com essa qualidade de gente lá fora na rua, nas
oficinas da estrada de ferro e vagueando pelas avenidas, mas nunca sonhara
em vê-la assim tão de perto, dentro do templo. 300

297
Ainda não há traduções das obras principais de Walter Rauschenbusch, apenas livros de orações
e sermões como Preces fraternais: horas de recolhimento, publicado no Brasil em 1936, e
Orações para um mundo melhor,em 1997.
298
RAUSCHENBUSCH, Walter apud ALVES, Rubem. Protestantismo e Repressão. São Paulo:
Editora Ática, 1979, p. 267.
299
Charles M. Sheldon foi pastor da Igreja Congregacional Central de Topeka, Estado do Kansas-
EUA. Escreveu o livro In His Step para a mocidade da igreja. Fazia a leitura dos capítulos do livro
à medida que os escrevia. Depois publicou o livro como folhetim num jornal de Chicago. A
primeira edição em inglês foi publicada em 1896. A primeira tradução para o português foi
publicada em 1901. Em 1945, a Casa Publicadora Batista publicou nova tradução feita por J. Reis
Pereira que seria utilizada nas edições subsequentes do livro. GONÇALVES, Almir S. Prefácio.
In: SHELDON, Charles M. Em seus passos, o que faria Jesus? 4ª edição. Tradução J. Reis Pereira.
Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1956.
300
SHELDON, Charles M. Em seus passos, o que faria Jesus? 4ª edição. Tradução J. Reis Pereira.
Rio de Janeiro:, Casa Publicadora Batista, 1956, p. 15.
133

A igreja aceita o desafio proposto pelo homem pobre e desempregado. Aos


poucos a comunidade vai se inserindo no bairro popular do Retângulo,
renunciando a privilégios de classe ou usando-os para fins solidários,
direcionando talentos e bens para a missão religiosa e participando da política
para a promoção do bem-estar da cidade. O pastor Maxwell, líder da comunidade,
passa a pregar para os operários da fábrica de um de seus fiéis e a conviver com
viciados em álcool do Retângulo. Convidado para falar a uma assembleia de
operários, ―começou a aplicar o princípio aos problemas sociais‖, ouvindo em
seguida os argumentos dos líderes socialistas criticando as soluções morais da
religião:

esta cidade, como todas as outras grandes cidades, abriga milhares de


pessoas, que se dizem cristãs, que gozam de todo conforto, sustentam luxo,
mas vão às igrejas todos os domingos e cantam hinos, em que prometem dar
tudo a Jesus, segui-lo, levar sua cruz! Não digo que entre elas não se
encontrem algumas pessoas boas; mas vá o ministro que vos falou aqui, nesta
noite, a uma dúzia de igrejas aristocráticas que eu poderia indicar e lhes
proponha o compromisso apresentado aqui, hoje, e verá como se rirão dele,
chamando-o de louco e fanático! Oh, não! Isso não é o remédio! Isso para
nada serve. É necessário mudar inteiramente o governo. É preciso reconstruir
todo o mecanismo. Não creio que alguma reforma boa possa vir das igrejas.
Elas não estão com o povo, estão com os aristocratas, com a gente do
dinheiro. Os trusts e os monopólios tem seus chefes nas igrejas. Os ministros
são seus escravos. Necessitamos de um sistema que tenha ponto de partida
nas bases comuns do socialismo, fundamentado nos direitos do povo.301

A representação literária de Charles Sheldon mais uma vez fornece indícios


para interpretar de que forma esse discurso socialista repercutiu no Evangelho
Social, ao abordar o modo como o pastor Maxwell assimilou as críticas:

O que ele acabava de ver e ouvir confirmava a sua convicção de que o


problema das grandes cidades encontraria sua solução se os cristãos se
resolvessem a seguir Jesus como Ele ordenou. Estariam as igrejas tão
afastadas do Mestre que o povo não mais o encontraria nelas? Já teriam elas
perdido seu poder sobre aquela qualidade de pessoas que nas épocas
primitivas do cristianismo formavam justamente a maioria das igrejas? Que
havia de verdade no que dissera o chefe socialista, quando afirmava ser inútil
olhar para as igrejas, esperando reforma, por causa do egoísmo de seus
membros?302

301
SHELDON, Charles M. Em seus passos, o que faria Jesus? 4ª edição. Tradução J. Reis Pereira.
Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1956 p. 249-250.
302
SHELDON, Charles M. Op Cit. p. 252
134

Encontrei o livro Em seus passos, o que faria Jesus?na biblioteca de alguns


depoentes ou sujeitos desta pesquisa, em inglês ou português.303 Richard Shaull,
em sua autobiografia, se referiu à importância do livro durante sua adolescência:

Li com enorme interesse dois pequenos livros sobre Jesus: The Man Nobody
Knows [O homem que ninguém conhece], de Bruce Barton, e In His Steps
[Nos seus passos], de Charles Sheldon. Nunca mais encontrei esses livros,
mas tenho vívida lembrança deles, especialmente In His Steps, que já li várias
vezes. O que mais me cativou se relaciona com a vida e o ensinamento de
Jesus ao lado da radicalidade de sua chamada para o discipulado. Quando
leio os Evangelhos hoje, esse apelo volve a mim com a força dos dias da
minha adolescência.304

Por outro lado, o ―Evangelho Social‖ se tornou uma expressão depreciativa


utilizada pelos conservadores para condenar o que entendiam ser a redução do
cristianismo a uma ideologia política.305O Socialismo Religioso e o Evangelho
Social não podem ser compreendidos independentemente do conjunto de
movimentos operários e socialistas. Seus diagnósticos da realidade e prognósticos
de ação política estavam integrados, intelectual e politicamente, aos socialismos
seculares, ainda que a identidade cristã fosse assumida como uma equidistância
crítica à total identificação ideológica. A discussão sobre a ―natureza
transcendente‖ ou ―histórica‖ do Reino de Deus, docaráter espiritual ou social da
igreja, vai percorrer toda relação de oposição/diálogo entre cristianismo e
marxismo no século XX.
Ao se tornar a ideologia mais influente nos movimentos revolucionários ou
anticapitalistas, especialmente após a Revolução Russa (1917) e durante a Guerra
Fria (1945-1989), o marxismo passou a ocupar cada vez mais as preocupações e
análises do mundo religioso, sobretudo o cristão. Por outro lado, a atitude da
esquerda cristã diante do marxismo e a participação ativa de cristãos em
movimentos sociais e revolucionários, colocou o debate sobre a religião e a luta
de classes no marxismo em novas perspectivas.
Na medida em que os trabalhadores envolvidos com os movimentos
operários, bem como os jovens e intelectuais influenciados pelo marxismo, se

303
Na biblioteca de João Dias de Araújo em inglês, na biblioteca de Djalma Torres e Marcos
Monteiro em português.
304
SHAULL, Richard. Surpreendido pela graça: memórias de um teólogo: Estados Unidos,
América Latina, Brasil. São Paulo: Editora Record, São Paulo, 2003, p. 22.
305
ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo: Editora Ática, 1979, p. 266-268.
135

afastavam das igrejas ou reinventavam sua religião, o cristianismo reagiu de


diferentes formas ao ateísmo marxista e ao lugar que o marxismo passou a ocupar
na sociedade. Os diálogos entre cristãos e marxistas se aprofundaram tanto na
Europa após o fim da Segunda Guerra, quanto no chamado ―Terceiro Mundo‖ em
meio aos movimentos revolucionários ou de libertação nacional.
Parte significativa desse debate foi divulgado no Brasil por editoras com
vínculos com as redes ecumênicas, que publicavam artigos e livros sobre o tema,
principalmente de autores franceses. No campo da intelectualidade marxista, o
livro Do anátema ao diálogo: marxistas e cristãos face a face de Roger Garaudy
(1913-2012),dirigente do Partido Comunista Francês (PCF), foi publicado em
1966 pela editora Paz e Terra. Na teologia protestante, o livro Ideologia e fé: o
pensamento cristão em face das ideologias contemporâneas de André
Dumas(1918-1993) foi publicado em 1968 pela editora Tempo e Presença.306A
revista Cristianismo y Sociedad do ISAL publicou em 1965 um número intitulado
Diálogo de nuestro tiempo: fe cristiana y marxismo, em cujo editorial se lia:
―desde el punto de vista Cristiano, el marxismo se presenta, según el ángulo de
mira, como un desafio, una complementación o una amenaza a su existência
histórica‖.307No livro O cristianismo e a revolução social (1953), Richard Shaull
escreveu:

Se, na verdade, os cristãos se preocupam com o mundo em que vivem, não


podem, por mais tempo, ignorar este movimento. Mas, qual deverá ser a
nossa atitude em face do problema? Se, porventura, estamos inclinados a ver,
no movimento, a solução para os problemas da humanidade, deveremos,
então, perguntar-nos a nós mesmos: - Poderá o comunismo, realmente,
presentear-nos com uma sociedade mais estável e mais justa? Que tem feito
ele nos países onde já domina? Que poderíamos esperar se o Comunismo
subisse ao poder em nosso país? Se, pelo contrário, nos inclinamos para uma
atitude negativa diante dele, devemos, antes, inquirir: - Será justificada a
nossa atitude negativa? Qual a natureza da crise que produziu tal movimento?
Se não podemos aceitar a solução que o Comunismo propõe, que temos nós,
cristãos, a propor em seu lugar?308

306
Entre os autores católicos que a partir dos anos 1950 foram apropriados pelos grupos da Ação
Católica no Brasil, figuraram nomes como Lebret, Emanuel Mounier, Thomas Cardonel, conforme
analisado por Grimaldo Zachariadhes sobre a atuação do CEAS na Bahia em: .
ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro. Os jesuítas e o Apostolado Social durante a Ditadura
Militar. 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 121-137.
307
CRISTIANISMO Y SOCIEDAD. Diálogo de nuestro tiempo: fe cristiana y marxismo. Ano III,
número 08, 1965, p. 1. Andre Dumas foi um dos colaboradores, com o artigo Das contribuciones
sobre el significado del ateísmo marxista, em coautoria com Joseph Hromádka.
308
SHAULL, Richard. O cristianismo e a revolução social. São Paulo: UCEB, 1953, p. 8.
136

O significado do marxismo para a contemporaneidade foi incorporado à


linguagem teológica como um desafio ético aos cristãos.309 Reverberando o
Socialismo Religioso e o Evangelho Social, Richard Shaull fazia uma autocrítica
em nome do cristianismo pela expansão do marxismo como alternativa à crise
social:

Pois o fato é que, quanto mais estudamos o Comunismo, mais temos de


reconhecer as nossas falhas de cristãos. Não nos temos preocupado com a
luta em prol da justiça social. Muitas vezes mesmo, não temos compreendido
o significado da crise de nosso tempo. [...] É possível que Ele, na Sua Santa
Providência, esteja usando o Comunismo para acabar com a nossa
tranquilidade e abrir os nossos olhos, a fim de podermos entender o que ele
quer que façamos nesta hora. Como a Assíria do tempo dos profetas, assim,
hoje, o Comunismo pode ser ―vara e bordão de Deus‖ (Is. 10:5) para
despertar e julgar o Seu povo e ensinar-nos o caminho do arrependimento e
da obediência.310

O comunismo, a despeito do seu ateísmo, era, assim como a nação


estrangeira do texto bíblico citado, a Assíria, um instrumento de Deus para
despertar ―o seu povo‖ ao caminho de justiça. Ex-aluno de Richard Shaull, João
Dias de Araújo fez a mesma autocrítica durante a Conferência do Nordeste
(1962), de que o marxismo cresceu porque o cristianismo não assumiu sua
responsabilidade de transformar o mundo:

Foi tanta a displicência dos cristãos, que a palavra Justiça foi arrebatada da
bandeira cristã para hoje ocupar lugar de destaque na bandeira vermelha do
materialismo. A palavra justiça está mais na boca de ateus do que de cristãos.
Chegou ao ponto de quando um cristão começa a falar em justiça ser
considerado inimigo do cristianismo e elemento perigoso para a ―sociedade
cristã democrática‖.311

Em O jovem comunista e o jovem cristão, escrito para os alunos do


Seminário Presbiteriano em Recife, João Dias de Araújo defendia que não havia
incompatibilidade entre o pertencimento dos jovens ao cristianismo e aos partidos
comunistas, mas que os cristãos já encontravam na figura do Cristo a motivação
necessária para lutar por transformações sociais. Essas ideias foram discutidas no

309
Paul Lehmann, orientador de Richard Shaull em Princeton, escreveu livros e artigos tecendo
uma comparação ética entre o marxismo e o cristianismo. Adotando uma perspectiva semelhante à
de Ernest Bloch, interpretou ambos como experiências messiânicas ou escatológicas.
310
SHAULL, Richard.O cristianismo e a revolução social. São Paulo: UCEB, 1953, p. 8-9
311
O conteúdo da palestra ―A revolução do Reino de Deus: conteúdo revolucionário do ensino de
Jesus sobre o Reino de Deus‖ do Rev. João Dias de Araújo, encontra-se nas páginas 33 a 57 do
livro: CESAR, Waldo [et. ali.]. Cristo e o processo revolucionário brasileiro: A Conferência do
Nordeste. 2 volumes. Rio de Janeiro, Lóqui, 1962.
137

VI Congresso da Mocidade Presbiteriana em 1964. O documento do conclave dos


jovens presbiterianos produziu a seguinte conclusão sobre as palestras do Rev.
João Dias de Araújo:

O jovem cristão e o jovem comunista são forças vivas e atuantes na


comunidade brasileira. Aquilo em que o jovem comunista se aproxima do
Cristão foi subtraído ao Cristianismo e deturpado pela conceituação
materialista; urge que o moço cristão empunhe a bandeira social que lhe
pertence por direito. Contra o Capitalismo e toda a forma de exploração do
homem. Visto como só em Cristo o homem tem a sua completa realização. A
bandeira é nossa e a paixão nos foi copiada.312

Esta perspectiva legitimava formas concretas de engajamento na situação


proletária, como o envolvimento de João Dias de Araújo com as Ligas
Camponesas em Pernambuco nos anos 1960 e na criação do Centro Ecumênico de
Direitos da Terra (CEDITER) na Bahia duas décadas depois.Sobre a experiência
nas Ligas Camponesas, João Dias de Araújo narrou uma história que mostra as
dificuldades de separar a prática religiosa dos conflitos sociais e dos embates
ideológicos:

Eu era da Igreja Presbiteriana da Encruzilhada, Recife, e Julião ficou sabendo


que eu estava lá como pastor e ele pediu pra eu colaborar porque ele queria,
no discurso dele ao povo, não só no interior como na capital, ele queria citar
importantes pensamentos bíblicos e religiosos cristãos, então ele pediu
exatamente pra mim e pra outro pastor metodista que era da equipe de D.
Hélder, que nós conseguíssemos uma lista de textos bíblicos que falasse
sobre a questão social, aí lá vai... nós apresentamos os profetas Isaias, Daniel,
Miqueias, Amós e Jeremias. E Julião soltava esses nomes: ―como disse o
nosso grande profeta Amós, Oseias...‖, falava pro público e os militares
tomavam nota desses profetas, ―vamos prender essa gente que essa gente tá
falando coisa muito pesada‖, eles não sabiam nem que era gente da Bíblia.
Eu acompanhei tudo.313

O Rev.João Dias de Araújo deu continuidade à sua militância com


trabalhadores rurais através da criação do CEDITER em 1982, na cidade de Feira
de Santana. A instituição prestava assessoria jurídica e pastoral a movimentos
populares de luta pela terra, uma organização similar à Comissão Pastoral da
Terra (CPT) da Igreja Católica. Como ocorreu com a maior parte da militância
cristã em lutas sociais emancipatórias, a assessoria pastoral aos trabalhadores em
312
O Congresso ocorreu em Campinas entre os dias 25 de janeiro a 2 de fevereiro de 1964 e
contou com a participação de 43 delegações de mocidades presbiterianas de todo o país e 150
delegados. A NOITE. Marco Evangélico. Mocidade Presbiteriana. 24/02/1964, p.4.
313
ARAÚJO, João Dias de. Entrevista concedida ao Centro de Pesquisas da Religião, por Elizete
da Silva. 06/01/2007.
138

conflitos de terra também contou com uma expressão teológica desse


engajamento, e João Dias de Araújo foi, no campo protestante, o elaborador de
uma Teologia da Terra. De acordo com Charlene Brito:

A entidade já nasceu ecumênica, ainda que a iniciativa tivesse partido de


presbiterianos, pois havia a participação dos Rev. João Dias de Araújo e José
Moreira Cardoso, de Presbíteros, bem como de católicos que já se
encontravam envolvidos na luta pela terra através da CPT no município
baiano de Ruy Barbosa. Amparada por uma Teologia da Terra, a CEDITER
surgiu como uma espécie de CPT, com atividades direcionadas para as
Regiões da Chapada Diamantina e do Vale do São Francisco.314

O livro de Richard Shaull sobre cristianismo e revolução social (1953), a


palestra de João Dias de Araújo na Conferência do Nordeste (1962), a proposta de
uma Teologia da Revolução por Richard Shaull (1966) e da Libertação por
Rubem Alves (1968), a criação da CEDITER (1982)e a elaboração de uma
Teologia da Terra, são exemplos de respostas cristãs aos problemas sociais que
estavam sendo colocados em discussão pela intelectualidade marxista ou
mobilizando as organizações de esquerda. Ambas as mediações, o marxismo
como um desafio ético ao cristianismo e a fé cristã como uma motivação ética
para a participação em movimentos de esquerda ou orientados pelo marxismo,
ainda que ―difusamente‖, fizeram parte da experiência dos protestantes que
militaram nas organizações clandestinas nos anos 1960 e 1970.

Os protestantes e as organizações de esquerda na ditadura

Dois aspectos precisam ser considerados na participação de protestantes nas


organizações clandestinas: 1) as divergências internas que fragmentavam as
esquerdas, 2) a presença protestante num conjunto mais amplo de atividades de
oposição à ditadura. Sobre este último aspecto, o Relatório Final da Comissão
Nacional da Verdade (2014) lamentou as dificuldades de levantar os atingidos
pela repressão da ditadura nas igrejas, o que possibilitaria uma visão mais ampla
da participação política:

314
BRITO, Charlene. Da assistência à resistência: ecumenismo presbiteriano, mendicância,
migração e luta pela terra na Bahia (1968-1990). Dissertação (Mestrado em História) – UEFS,
Feira de Santana, 2013p.114.
139

As pesquisas da Comissão Nacional da Verdade não dão conta do exato


número de detenções arbitrárias entre protestantes e de situações de tortura
sofridas por homens e mulheres vinculados a este segmento religioso, nos
porões das prisões do aparelho repressivo da ditadura militar, acusados de
subversão e de representarem ameaças à segurança nacional. Alguns casos
chegaram ao extremo de morte e desaparecimento forçado, como será
relatado adiante. É lamentável reconhecer que as limitações de pesquisa da
CNV se devem ao grande número de ocorrências, sua dispersão pelos estados
do Brasil e ao silêncio de muitos dos que sofreram essas violações dos
direitos humanos que, diante dos traumas e do desejo de apagamento das
ultrajantes memórias, não se dão a conhecer. Os casos aqui listados dizem
respeito a sobreviventes das prisões, e resultam de registros em bibliografia e
documentação aos quais a CNV teve acesso e dos depoimentos coletados nas
audiências públicas e privadas, realizadas em 2012 e 2013.315

Ainda não há um levantamento preciso dos protestantes que militaram nas


organizações clandestinas da esquerda entre 1964 e 1979. Cruzando dados do
Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, com os depoimentos do
projeto Memórias Ecumênicas Protestantes e acrescentando informações
extraídas da bibliografia sobre o protestantismo no período, organizei uma tabela
da participação dos protestantes nas esquerdas clandestinas (tabela 4). Ela é
imprecisa, por causa da circulação dos sujeitos pelas diferentes tendências, a
dispersão das informações e a história de fragmentação e fusão dos grupos
clandestinos.
Por isso, antes de analisar os dados sobre o pertencimento protestante às
organizações, cabe uma breve digressão sobre a história das suas ramificações.
Segundo Marcelo Ridenti, as esquerdas se dividiam basicamente por três razões:
―uma, referente ao caráter da revolução brasileira; outra, às formas de luta para
chegar ao poder; uma terceira, ao tipo de organização necessária à revolução‖.316
Em outras palavras, os questionamentos eram: 1) se a revolução seria
imediatamente socialista ou passaria por uma etapa nacional e popular, 2) seria
alcançada através da luta armada ou pela mobilização de massas, 3) seria
conduzida por um partido leninista ou por uma vanguarda guerrilheira. Minha
preocupação não foi traçar uma descrição pormenorizada do perfil de cada

315
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. As igrejas protestantes e as graves violações de
direitos humanos, Relatório final, Volume II, Textos Temáticos, 2014, p. 179. Ao todo, o
Relatório listou entre os protestantes: 19 detenções, 3 banimentos, 7 mortes ou desaparecimentos
forçados, 2 missionários expulsos, 14 casos de exílio.
316
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: UNESP, 2010, p. 32.
140

tendência, mas um painel de como situavam-se ideologicamente para entender as


filiações protestantes entre as opções disponíveis.317
No processo de diferenciação, a referência básica era o projeto político do
Partido Comunista Brasileiro (PCB), principal força das esquerdas antes do golpe
de 1964, que defendia uma etapa nacional e popular para a revolução brasileira, a
ser dirigida por um partido revolucionário de modelo leninista, que deveria
organizar as massas para a construção do socialismo. As reformas de base
propostas pelo governo Jango poderiam representar essa etapa e por isso o PCB
esteve próximo às outras forças que defendiam as reformas, como o Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), as Ligas
Camponesas, a Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB) e a União
Nacional dos Estudantes (UNE).
Completavam o campo das esquerdas até 1964, o Partido Operário
Revolucionário dos Trabalhadores (PORT) e o Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), além da Organização Marxista Revolucionária Política Operária
(POLOP) e a Ação Popular (AP). Após o golpe militar surgiram dissidências que
Antonio Ozaí da Silva organizou em cinco grupos formados, respectivamente,
pelos ―rachas‖ nos partidos e organizações PCB, POLOP, AP, PCdoB, PORT,
conforme a tabela3.318

Tabela 3 – Dissidências da esquerda


PCB POLOP AP PCdoB PORT
(1922) (1961) (1962) 1962 (1953)
Ação Comando de Partido Ala Vermelha Fração
Libertadora Libertação Revolucionário Bolchevique
Nacional Nacional dos Trotskista
(ALN) (COLINA) Trabalhadores (FTB)
(PRT)
Partido Vanguarda Ação Popular Movimento Grupo
Comunista Popular Marxista- Revolucionário Comunista
Brasileiro Revolucionária Leninista Tiradentes Primeiro de
Revolucionário (VPR) (APML) (MRT), Maio
(PCBR) dissidência da
ALA
Movimento Vanguarda Partido

317
Sirvo-me, para essa breve digressão, de três estudos sobre o tema: SILVA, Antonio Ozaí da.
História das tendências no Brasil: origens, cisões e propostas. 2ª edição. São Paulo: Proposta
Editorial, 1987; GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões
perdidas à luta armada. São Paulo: Perseu Abramo e Expressão Popular, 2014; RIDENTI,
Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: UNESP, 2010.
318
SILVA, Antonio Ozaí da. História das tendências no Brasil: origens, cisões e propostas. 2ª
edição. São Paulo, Proposta Editorial, 1987, p. 104-144.
141

Revolucionário Armada Comunista


Oito de Revolucionária Revolucionário
Outubro (VAR-Palmares) (PCR)
(MR-8)
Partido Operário
Comunista (POC)
Movimento de
Emancipação do
Proletariado
(MEP)

Uma parte das organizações propunha a revolução em duas etapas, uma


primeira nacional e popular, a segunda socialista. Outra parte das organizações
advogava por uma revolução imediatamente socialista. Essas organizações se
dividiam em defensores do partido leninista e defensores da ação revolucionária
direta, com perspectivas distintas sobre a ação das vanguardas e a participação das
massas no processo revolucionário.319
Também perpassava as organizações, o debate sobre a centralidade do
campo ou da cidade como lugar estratégico da ação revolucionária, com
predomínio da defesa teórica da guerrilha rural ou do cerco da cidade pelo campo,
apesar do predomínio concreto de ações de guerrilha urbana (expropriações de
bancos e cofres, sequestro em troca de prisioneiros, ofensivas de propaganda ou
resistência). A promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em 1968 endureceu o
regime e fechou os canais, já restritos, de contestação institucional e comunicação
com as massas, o que serviu para reforçar o argumento dos grupos que
propugnavam pela luta armada e impulsionar outros até então reticentes.
Conforme escreveu Jacob Gorender:

Enquanto a ditadura militar bloqueava o acesso às massas e as ações da ALN


e da VPR se prestigiavam pela publicidade, subia a pressão pelo imediato
engajamento na luta armada dentro das organizações da esquerda radical até
o final de 1968 ainda dedicadas ao trabalho direto com os movimentos de
massa. Excluídos, por motivos diferentes, o PCB, o PORT, o PC do B e a
AP, deu-se a imersão geral na luta armada. 320

Mesmo as organizações que não defendiam a luta armada acabaram


participando dela de alguma forma, seja através de ações isoladas ou dando apoio
aos militantes das outras organizações (informações, esconderijo, recursos,

319
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: UNESP, 2010, p. 39-40.
320
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
armada. São Paulo: Perseu Abramo e Expressão Popular, 2014, p. 169-170.
142

solidariedade). Os sequestros de embaixadores estrangeiros realizados por uma


organização, contemplavam a libertação de prisioneiros de várias organizações de
esquerda. Narrando a negociação da libertação de prisioneiros pelo embaixador
dos EUA, Charles Elbrick, sequestrado pelo MR-8 e pela ALN em 1969, Flávio
Tavares escreveu:
O critério de escolha dos prisioneiros foi ―ecumênico‖, tentando criar um
arco representativo dos principais grupos da oposição não consentida. A
maioria saiu das prisões de São Paulo porque lá é que se gerou a segunda
etapa da resistência à ditadura, após o Ato Institucional nº 5, que a partir de
dezembro de 1968, espelhou também a segunda fase do regime militar, dura e
321
intolerante.

A história das esquerdas rivaliza com a história do protestantismo em


cissiparidade e geração de siglas. Os rachas acima mencionados se desdobraram
em uma miríade de novas dissidências que não foram contempladas, porque fazer
uma história das organizações, não é o propósito deste trabalho e porque não
apareceram nas trajetórias protestantes investigadas. Alguns jovens protestantes
conheceram a militância nas universidades, com a presença das tendências de
esquerda no movimento estudantil. A descoberta do engajamento também
acontecia nos movimentos evangélicos de juventude, como as ―mocidades‖ das
igrejas, as Associações Cristãs de Acadêmicos (ACA), o Departamento de
Mocidade da Confederação Evangélica Brasileira (CEB), a União Cristã de
Estudantes Brasileiros (UCEB), a União Latino-americana da Juventude
Evangélica (ULAJE) e os grêmios estudantis nos seminários teológicos, alguns
ligados à UNE e a suas filiais regionais. O fechamento da Faculdade de Teologia
dos metodistas em São Paulo no ano de 1968 foi motivado pela participação dos
seminaristas no movimento estudantil.322 De acordo com Anivaldo Padilha (1940-
):

os Bispos decidiram fechar a Faculdade de Teologia e expulsar os alunos


com base em acusações moralistas, mas a motivação real era política, pois

321
TAVARES, Flávio. Memórias do Esquecimento. O segredo dos porões da ditadura. Porto
Alegre-RS, L&PM, 2012, p. 121.
322
Uma boa análise sobre o fechamento da Faculdade de Teologia encontra-se em: SCHMIDT,
Daniel Augusto. Protestantismo e Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Editora Reflexão,
2014, p. 100-126.
143

descobriram que o Centro Acadêmico da Faculdade de Teologia, ainda que


não formalmente, participava da União Estadual de Estudantes e da UNE. 323

Essa militância estudantil protestante contribuiu para a formação da Ação


Popular (AP), originalmente constituída a partir das entidades estudantis católicas
em 1963. Líder da juventude metodista na ocasião, Anivaldo Padilha relatou:

A AP foi formada, em grande parte, pela Juventude Universitária Católica


(JUC), mas também por membros da União Cristã de Estudantes do Brasil
(UCEB), organização que reunia os estudantes protestantes nas
Universidades. Eu já tinha uma relação de amizade com alguns dos seus
fundadores, como o Paulo Wright, que tinha conhecido ainda na UCEB, e
com o Hebert de Souza, o Betinho, que tinha conhecido na JUC. Entretanto,
só aderi à AP em 68, já na Universidade, no movimento estudantil. 324

A historiografia não considera esta base de formação da AP, o que


dificulta compreender a relação da organização com o ecumenismo e como
expressão do Socialismo Cristão. O recente livro de Otto Figueiras
Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular (2014) faz apenas uma
breve menção à UCEB e ao papel que algumas lideranças saídas dessa experiência
cumpriram na entidade.325 Três exemplos ilustram esse papel. Na eleição da
diretoria da União Estadual Estudantil (UEE) de São Paulo para os anos de 1962-
1963, a chapa que saiu vencedora foi montada com os nomes do católico José
Serra (JUC) e do protestante Rubens Menzen Bueno (UCEB), estudante do
Seminário Presbiteriano em Campinas.326 Os outros exemplos foram Paulo Wright
(1933-1973), um dos fundadores e dirigente da AP, e os jovens do Seminário
Metodista denunciados como subversivos por militarem na organização.

323
. PADILHA, Anivaldo. Bispo denuncia fiel, líder da juventude. In: DIAS, Zwinglio Mota.
Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura: colaboração e resistência. Rio de
Janeiro, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 67.
324
PADILHA, Anivaldo. Bispo denuncia fiel, líder da juventude. In: DIAS, Zwinglio Mota.
Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura: colaboração e resistência. Rio de
Janeiro, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 67.
325
FIGUEIRAS, Otto. Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular. Volume I:
primeiros tempos. São Paulo: Instituto Caio Prado Jr., 2014, p. 201.
326
Segundo Agemir Dias: ―A militância política de Rubens Menzen Bueno no movimento
estudantil foi alvo de duas resoluções da Comissão Executiva da Igreja Presbiteriana do Brasil. Na
primeira, o Presbitério Paulistano (PLIS) comunicou a cassação de sua candidatura ao pastorado
presbiteriano, o que levaria ao seu desligamento do Seminário. A segunda resolução notifica o
Seminário de que ele deveria ser considerado candidato ao ministério pela Missão Brasil Central
(MBC), ligada à Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, cujo dirigente era Jaime Wright – dessa
forma, ele não deveria ser desligado do Seminário.‖ In: DIAS, Agemir de Carvalho. O movimento
ecumênico no Brasil (1954-1994): a serviço da igreja e dos movimentos populares. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007
144

Ao todo, contabilizei 27 protestantes, circulando entre 13 organizações


diferentes, sendo 13 metodistas, 11 presbiterianos, 2 batistas e 1 membro da
Assembleia de Deus, com predomínio da filiação aos partidos comunistas (PCB e
PCdoB)327, Ação Popular (AP/APML), POLOP/COLINA, VPR/VAR-Palmares,
Ala Vermelha e ALN, com filiações marginais ao Movimento Revolucionário
Tiradentes (MRT), Grupo dos 11 e MR-8. As escolhas protestantes
acompanhavam o protagonismo do PCB, a aglutinação da esquerda cristã na AP e
a presença de organizações atuantes no movimento estudantil, como a VPR/VAR-
Palmares e a POLOP/COLINA. Percebe-se a tendência de uma militância
familiar, com irmãos metodistas e presbiterianos pertencendo às mesmas
organizações e o trânsito dos protestantes entre as diferentes tendências, conforme
tabela abaixo:

Tabela 4 – Filiação protestante às organizações clandestinas

Organizações de esquerda Protestantes/igrejas


PCB/PCdoB Os irmãos metodistas
1. Daniel José de Carvalho
2. Derly José de Carvalho
3. Devanir José de Carvalho
4. Joel José de Carvalho

Os irmãos presbiterianos
5. Nilton Emmerick de Oliveira
6. Paulo Roberto Emmerick de Oliveira

7. Frederick Morris/metodista
8. Ivan Mota Dias/presbiteriano
9. Norberto Bispo dos Santos Filho/batista
10. Zenaide Machado de
Oliveira/presbiteriana
AP/APML 1. Agostinho Muniz/batista
2. Anivaldo Padilha/metodista
3. Celso Cardoso da Silva/metodista
4. Fernando Cardoso da Silva/metodista
5. Manoel da Conceição/Assembleia de Deus
6. Mozart Noronha/presbiteriano
7. Paulo Stuart Wright/presbiteriano
8. Renato Godinho Navarro/metodista
9. Roberto Chagas/presbiteriano
10. Rubens Mezen Bueno/presbiteriano
POLOP/COLINA 1. Apolo Heringer Lisboa/presbiteriano
2. Claudius Ceccon/metodista

327
Apesar de colocados em um único bloco de partidos comunistas na tabela, o PCB e o PCdoB
tinham perspectivas políticas distintas. Enquanto o primeiro defendia o trabalho de base para
organizar uma frente democrática de oposição à ditadura, o segundo defendia a luta armada no
campo a partir da concepção de guerra popular prolongada, em conformidade com o maoísmo.
145

3. Ivan Mota Dias/presbiteriano


4. Juarez Guimarães de Brito/presbiteriano
ALN 1. Ana Maria Ramos Estevão/metodista
2. Idinaura Aparecida Marques/metodista
VPR/VAR-Palmares Os irmãos metodistas
1. Daniel José de Carvalho/metodista
2. Joel José de Carvalho/metodista

3. Heleny Telles Ferreira Guariba/metodista


4. Zenaide Machado de
Oliveira/presbiteriana
5. Ivan Mota Dias/presbiteriano
6. Juarez Guimarães de Brito/presbiteriano
7. Roberto Chagas/presbiteriano
Ala Vermelha Os irmãos metodistas
1. Daniel José de Carvalho/metodista
2 Joel José de Carvalho/metodista
3. Devanir José de Carvalho/metodista
MRT Devanir José de Carvalho/metodista
―Grupo dos 11‖ (Brizola) Juarez Guimarães Brito/presbiteriano
MR-8 Roberto Chagas/presbiteriano

Por se tratar de uma organização com muitos militantes ligados às igrejas, a


AP contou com uma rede de simpatizantes e apoiadores mais ampla que as
demais. Seu caráter cristão e sua recusa à luta armada até 1968 foi, aos poucos,
afastando os militantes que procuravam outra mediação teórica e desejavam maior
radicalização. O que influenciou a secularização de alguns quadros, conforme
depoimento de Roberto Chagas, à época estudante de Engenharia e líder da
mocidade presbiteriana:

Eu até fazia uma brincadeira, fazia gozação com eles, dizendo que havia
quase uma base de carolas dentro da AP. Isso também foi um fator que
certamente teve um papel para eu me afastar rapidamente dessa base da AP
de Engenharia e passar a militar no PC. Essa dissidência da Guanabara que
depois, muito mais tarde, se tornou o MR-8. Foi isso, o processo de saída da
igreja e saída da religião e, portanto, deixar de ser um militante protestante. A
militância como protestante foi por um período relativamente curto. Deve ter
sido mais ou menos entre 63 e 66. Depois eu já não me considerava mais
protestante.328

Filho de pastor e duas vezes presidente da mocidade presbiteriana, Roberto


Chagas destacou a influência na sua militância da irmã, Maria Olivia Chagas, que
atuava no movimento estudantil do Rio, e do pertencimento da maior parte da
família ao círculo político do PTB. E considerou a militância uma das razões que

328
CHAGAS, Roberto. Do abandono da Igreja à luta clandestina. In: DIAS, Zwinglio Mota.
Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura: colaboração e resistência. Rio de
Janeiro, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 51.
146

o fez questionar a compreensão religiosa de mundo, embora continuasse na igreja


como espaço de sociabilidade e identidade:

Então, pouco a pouco, por razões quase filosóficas, eu comecei a me afastar


da igreja e da religião. Isso não foi uma ruptura linear nem instantânea, foi
um processo que ao mesmo tempo ocorreu em paralelo, com o meu
engajamento na militância. Apesar de não ter mais religião, apesar de não
acreditar mais inclusive em Deus, mesmo assim a primeira vez que militei,
fui militar na AP, que naquele momento ainda era uma organização cristã. Ou
seja, a base da Engenharia a qual em me entreguei era uma base de católicos.
Não, católicos exceto um, que ele sim era protestante, acho que era metodista
do Lins. Não me lembro mais o nome dele. Ele sim, ele ainda era cristão
mesmo. No meio de todos os outros que eram católicos. 329

Essa secularização se manifestava, por exemplo, no desconhecimento da


filiação religiosa entre protestantes de uma mesma organização e na transferência
dos valores cristãos para a militância de esquerda. Zenaide Oliveira disse ter
experimentado a secularização das motivações cristãs para a luta política na VPR:
―Quando a gente começou nessa militância, nós não tínhamos mais vínculos com
a igreja. Eu, como militante, eu não tinha mais vínculo nenhum com a igreja. E
nem com a religiosidade. Era uma outra maneira de cultivar valores‖.330 Roberto
Chagas relatou desconhecer o pertencimento de Zenaide Machado de Oliveira, sua
ex-companheira de VPR, ao protestantismo, o que poderia ser também parte da
clandestinidade, a ocultação de pertencimentos que pudessem comprometer ou
pôr em risco outras pessoas.
Quem também militou na VPR foi o presbiteriano Ivan Mota Dias, irmão de
Zwinglio Mota Dias,organizador do livro de depoimentos Memórias Protestantes
Ecumênicas de 2014.331 Zenaide Oliveira narrou sua proximidade com Ivan na
organização e seu perfil político:

Ivan, também era protestante.Ele e eu éramos estudantes de História na UFF.


Então, nos conhecemos naquele ambiente universitário. É chopinho, é
discutir política, ir no cinema no Paysandu, não é? Ele era de uma linha
política diferente da minha. O Ivan era da POLOP. Nós fomos juntos para um
Congresso de História em BH. Fizemos muita política estudantil. Inclusive
com Ivan, nós participamos de uma chapa. O Ivan era presidente da Chapa e
eu, a vice. Nós não ganhamos o Centro Acadêmico, mas, enfim, vivemos

329
CHAGAS, Roberto. Do abandono da Igreja à luta clandestina. In: DIAS, Zwinglio Mota.
Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura: colaboração e resistência. Rio de
Janeiro, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 51.
330
OLIVEIRA, Zenaide Machado. Da igreja e da universidade para a clandestinidade. In: DIAS,
Zwinglio Mota (Org.). Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 46.
331
Não foi possível localizar informação sobre a idade de todos os depoentes.
147

muitos anos juntos e depois ficamos clandestinos e compartilhamos a


militância cotidianamente. Aí já estávamos na mesma organização que era a
Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR.332

Uma hipótese, que careceria de outra pesquisa para ser mensurada em sua
plausibilidade, é que a tendência do protestantismo à dissidência, aliada à
secularização dos quadros no envolvimento com a militância política, tornou os
protestantes mais propensos à circulação entre as organizações e à ruptura
definitiva com a militância. Em 1969, Roberto Chagas fez a transição da AP para
a Dissidência Estudantil do PCB na Guanabara (DI-GB) que deu origem ao MR-
8, depois passou pela VPR/VAR-Palmares em 1970, o exílio no Chile entre 1971
e 1973, o retorno ao Brasil em 1975 e a reintegração no MR-8 de 1975 a 1976,
quando rompeu definitivamente com a militância organizada:

Quando cheguei ao Brasil o que encontrei foi uma caricatura de pseudo-


stalinista dirigindo a organização no Brasil.O cara até já morreu, o Cláudio
Campos, que era da Engenharia também. Em suma, era uma coisa assim
caricatural, de achar que o Stalinismo era o caminho, digamos, para se
avançar para o comunismo. Aquilo acabou por me divorciar da militância
ativa na esquerda brasileira.333

De todos os depoimentos no livro Memórias Ecumênicas Protestantes, o de


Roberto Chagas é o mais crítico à experiência pregressa, ressaltando as rupturas
com a igreja e com as organizações de esquerda. Certamente, os rumos que a
esquerda tomou depois da mudança definitiva dele para a França em 1989,
contribuíram para essa elaboração da memória. Para ele, a contribuição da igreja
foi importante no exercício da liderança na mocidade presbiteriana e não para a
radicalidade dos compromissos que assumiu na militância. O depoimento de
Zenaide Oliveira foi mais favorável à contribuição religiosa:

Tive experiências com as quais eu tenho uma enorme dívida de gratidão. Eu


acho que na igreja só aprendi coisas boas, só tive uma vivência construtiva e
vi ali uma comunidade. As pessoas tinham enorme interesse umas pelas
outras, um interesse generoso. A igreja tinha muitas práticas sociais. Prática

332
O depoimento também menciona relações com outros protestantes que militaram nas
organizações de esquerda como a metodista Heleny Guariba (VPR) e os presbiterianos Juarez
Guimarães de Brito (POLOP, COLINA, VAR-Palmares) e Roberto Chagas (AP, MR-8, VPR).
OLIVEIRA, Zenaide Machado. Da igreja e da universidade para a clandestinidade. In: DIAS,
Zwinglio Mota (Org.). Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 46.
333
CHAGAS, Roberto. Do abandono da Igreja à luta clandestina. In: DIAS, Zwinglio Mota.
Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura: colaboração e resistência. Rio de
Janeiro, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 56.
148

de amparar os pobres, prática de amparar desassistidos e isso como coisas


sistemáticas, como ações comunitárias mesmo.334

Além das práticas sociais e comunitárias, Zenaide Oliveira também narrou


manifestações de solidariedade quando esteve na clandestinidade por ser militante
da VPR:
[Tive ajuda] De um grande amigo meu que era da igreja, sobrinho de um
pastor. Passamos a nossa infância e adolescência juntos, que é o Avelino
Gomes Moreira Neto, sobrinho do Rev. Sebastião. Ele me abrigou na casa
dele. Ele era na ocasião, já formado em Direito, hoje ele é um Procurador
aposentado. Enfim, atos da maior generosidade, de humanidade, porque
naquela época da ditadura, você sabe Zwinglio, o que isso representava. Ele
tinha duas filhinhas pequenas. A outra figura era um membro da igreja, uma
diaconisa Leonor Vasquez de Oliveira, mãe de Antônio Carlos, mas na época
nós não tínhamos um relacionamento. Não éramos casados. Ela fez isso por
ato absoluto de generosidade, de fraternidade, de humanidade. Me conhecia
desde pequena. Sei também de outro membro da igreja que na ocasião,
quando eu era procurada pelas Forças Armadas, os órgãos de repressão,
saiam notícias no jornal, cartazes, aquela coisa toda de terrorista, esse
membro da igreja se aproximou do meu pai e disse: Presbítero, estou à sua
disposição. O senhor, sua esposa, sua filha. O que precisarem de mim,
contem comigo, estou à sua disposição.335

O casamento de Zenaide de Oliveira com Antônio Carlos, citado no


depoimento acima, aconteceu na prisão. Casaram ―no militar‖ nas palavras de
Antônio Carlos. O casamento facilitou o contato enquanto ela permaneceu presa,
conforme narrou Zenaide:

Quando fui presa, depois do período de tortura, de incomunicabilidade, em


uns nove ou 11 quarteis lá na Vila Militar. Então ali só meu pai, minha mãe e
meus irmãos é que podiam me visitar. Então nós tínhamos que nos casar pra
podermos ter um encontro, um contato. Naquela época não tinha visita
matrimonial, nada disso. Casar era uma possibilidade da gente se encontrar
por meia hora que fosse, enfim, com gente vigiando, tenente anotando tudo...
mas podíamos nos encontrar. Ele não pediu minha mão para o meu pai,
―pediu‖ para o auditor da 2ª Auditoria do Exército. Um juiz nos casou. No
dia, o pastor Evaldo foi, era da família do meu pai, mas ele não fez o
casamento religioso. Ele pretendia até dizer algumas palavras, mas ali estava
uma confusão danada, muita imprensa, eu ia algemada, aí depois, já queriam
me levar logo, rápido. Sabe? Então ele acabou sem condição de falar.336

334
OLIVEIRA, Zenaide Machado. Da igreja e da universidade para a clandestinidade. In: DIAS,
Zwinglio Mota (Org.). Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 42.
335
OLIVEIRA, Zenaide Machado. Da igreja e da universidade para a clandestinidade. In: DIAS,
Zwinglio Mota (Org.). Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 42.
336
OLIVEIRA, Zenaide Machado. Da igreja e da universidade para a clandestinidade. In: DIAS,
Zwinglio Mota (Org.). Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 45.
149

As manifestações na igreja não foram apenas de solidariedade. Ao contrário,


como se reportam a maioria das memórias de protestantes ecumênicos dos anos
1960 e 1970, as igrejas reprimiram o progressismo religioso, legitimaram o golpe
e apoiaram a ditadura. Se o AI-5 acelerou o processo de ―imersão geral na luta
armada‖ nas esquerdas, a ―inquisição sem fogueiras‖ promovida nas igrejas
acelerou a radicalização dos setores engajados na perspectiva da responsabilidade
social e do ecumenismo.
Paulo Stuart Wright foi um exemplo da radicalização. Filho de missionários
norte-americanos que atuaram em Joaçaba, Santa Catarina, pela Missão
Presbiteriana do Brasil Central (MPBC), tornou-se membro da União Cristã de
Estudantes Brasileiros (UCEB) chegando a Secretário Regional da entidade. Fez
parte da experiência dos jovens presbiterianos liderados pelo missionário Richard
Shaull que foram morar na Vila Anastácio no bairro da Lapa em São Paulo.
Empregou-se como torneiro mecânico aos 23 anos (1956).337 Esta experiência,
inspirada nos padres operários da França, expressava um anseio de superação do
aburguesamento protestante e universitário, levando a juventude ecumênica a
inserir-se no mundo dos trabalhadores assalariados e na luta sindical. Tal inserção
implicava mudanças nas concepções religiosas:

Iniciei, a partir da minha ligação inicial com a classe operária, em 1956-1957,


um processo longo, complexo, de transformação ideológica em que eu partia
de uma meditação teológica sobre o marxismo e cheguei, finalmente, a
inverter a questão, para, com base no socialismo científico, analisar a questão
de Deus e da Religião.338

Paulo Stuart Wright foi candidato a prefeito pelo PTB em 1960 e deputado
estadual eleito pelo PSP em 1962, com mandato cassado em 1964. Exilou-se em
Cuba de onde retornou ao Brasil em 1965 com um curso de formação em
guerrilha na bagagem política. Integrou-se à Ação Popular (AP) da qual foi
expulso em 1972 e desapareceu no ano seguinte após ser preso pelos órgãos de
repressão da Ditadura Militar. A tendência mudou o nome para Ação Popular
Marxista Leninista (APML) e também a linha política em 1968. Conforme
observou Marcelo Ridenti:

337
Dados biográficos e citações, retirados de: WRIGHT, Delora Jan. O coronel tem um segredo:
Paulo Wright não está em Cuba. Petrópolis: Vozes, 1993.
338
WRIGHT, Delora Jan. O coronel tem um segredo: Paulo Wright não está em Cuba. Petrópolis:
Vozes, 1993, p. 86.
150

Tampouco a AP passou incólume pelas lutas dos anos 1960: deixou o


cristianismo pelo maoísmo, o que a fez perder muitas bases e desagradou aos
setores da organização que optaram por uma linha com características
leninistas e guevaristas, juntando-se a outros revolucionários para fundar,
entre 1968 e 1969, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), sem
contar aqueles que, no decorrer do processo, trocaram a AP por grupos que
realizavam ações armadas urbanas.339

Paulo Wright foi expulso por adotar a defesa da criação de um partido de


novo tipo que organizasse os trabalhadores no enfrentamento político à Ditadura
Militar e na construção da revolução socialista, aproximando-se da perspectiva de
outras esquerdas clandestinas e que originou o PRT. Sua prisão e desaparecimento
pelos órgãos de segurança do Estado em 1973 deu início à mobilização do seu
irmão, o pastor presbiteriano Jaime Wright, em defesa dos presos políticos e das
famílias de mortos e desaparecidos.
Uma trajetória na AP muito diferente das anteriores foi a de Manoel da
Conceição (1935-), membro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais na região de
Pindaré Mirim-MA e fiel da Assembleia de Deus. Enquanto Paulo Wright
participou de iniciativas de ―proletarização‖ de jovens universitários e
protestantes, Manoel da Conceição fazia parte da classe social que as esquerdas
queriam representar e que a AP organizar para a revolução a partir do campo.
Numa reunião do sindicato no dia 13 de julho de 1968, foi baleado na perna
em ação policial de repressão aos trabalhadores. Preso e sem tratamento médico,
sofreu complicações e teve que amputar a perna. Recebeu oferta de ajuda do
governador do Maranhão, José Sarney (UDN), que havia sido eleito com o apoio
da AP e do próprio Manoel, mas o trabalhador rural respondeu com uma frase que
acabou se tornando célebre e foi publicada no jornal Libertação da AP: ―minha
perna é minha classe‖.340 O livro Revolucionários sem rosto não menciona o
pertencimento à Assembleia de Deus nem discute qual a relação entre a filiação
religiosa e sua militância política, muito próxima à experiência das Ligas

339
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: UNESP, 2010, p. 31.
340
Com o apoio de Paulo Wright e outros militantes da organização, Manoel da Conceição fez o
tratamento na capital paulista, onde voltou a ser capturado pelo regime em 1972. Passou por
diversas torturas, incluindo a retirada da perna mecânica, até 1975, quando um telegrama do Papa
Paulo VI ao general Geisel pediu pela sua vida e sua liberdade. Depois de solto, ficou sob proteção
da Anistia Internacional e exilado em Genebra, na Suíça. COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE. As igrejas protestantes e as graves violações de direitos humanos, Relatório final,
Volume II, Textos Temáticos, 2014, p. 185-186.
151

Camponesas, nas quais a maioria dos trabalhadores eram católicos, mas boa parte
das lideranças eram evangélicas.341
No relatório da Comissão Nacional da Verdade, participantes das esquerdas
armadas figuram também como militantes do PCB, como Zenaide Oliveira e Ivan
Mota Dias, o que poderia corresponder a filiações efetivas ou à classificação
persecutória do regime para todo o campo da esquerda. Participaram do PCB os
irmãos metodistas Derly José de Carvalho, Daniel José de Carvalho, Joel José de
Carvalho, Devanir José de Carvalho, os irmãos presbiterianos Nilton Emmerick
de Oliveira e Paulo Roberto Emmerick de Oliveira e o batista Norberto Bispo dos
Santos Filho. No depoimento de um dos irmãos presbiterianos filiados ao PCB
aparece uma dupla militância, clandestina e legal. A formação religiosa foi
valorizada no depoimento de Nilton Emmerick de Oliveira, que ressaltou a
influência do pastor Joaquim Beato da Igreja Presbiteriana em Colatina-ES, da
qual era membro no final dos anos 1960:

Este pastor, que inclusive foi quem me batizou, tinha sempre uma visão cristã
religiosa voltada para a ação social da igreja, para um engajamento político
dos seus membros. E eu cresci ouvindo outras igrejas na perspectiva do
movimento ecumênico que, então, já existia. O Rev. Beato foi também um
dos idealizadores do ―Seminário do Centenário‖ que existiu em Alto
Jequitibá e que depois foi fechado pela Ditadura. Fechado pela igreja, pela
IPB, cuja direção naquele momento era uma das aliadas da ditadura. 342

No Seminário do Centenário, que depois foi transferido para Vitória-ES, o


depoente foi aluno do Rev. Joaquim Beato e de outros expoentes do movimento
ecumênico, como Waldo César, Jheter Ramalho e Claudio Labrunie. Em 1970,
entrou para a Faculdade de Odontologia, inserindo-se no movimento estudantil e
ocupando a presidência do Diretório Acadêmico do curso no ano seguinte. Não se
filiou a nenhuma organização durante a graduação, apenas após a formatura.
Quando a repressão se abateu sobre os colegas de militância por razões políticas,
tentou rearticular o movimento através de atividades culturais:

Por uma ingenuidade dos que estavam militando no PC do B, a polícia teve


acesso a um caderno com lista de presença dos militantes. Todos os que

341
JULIÃO, Francisco. Que são as Ligas Camponesas?Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1962.
342
OLIVEIRA, Nilton Emmerick de. A militância política de um presbiteriano comunista. In:
DIAS, Zwinglio Mota (Org.). Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 74.
152

tinham o nome lá foram presos e torturados. Eu, como não estava ligado
naquele momento a nenhuma organização clandestina (só fui fazer isso
depois de formado), não fui preso. Então, eu e o presidente do diretório da
Engenharia resolvemos iniciar uma mobilização estudantil em cima de um
movimento cultural, porque, em função daquelas prisões, t odos ficaram com
muito medo. Então criamos a Cinemateca Universitária de Arte. 343

As fronteiras entre atividades políticas e culturais dentro do movimento


estudantil e durante o regime autoritário nunca foram seguras. A Cinemateca foi
abortada após a primeira exibição e seus organizadores chegaram a ser presos para
prestar esclarecimentos. Nilton Emmerick de Oliveira foi submetido a outro
constrangimento antes de concluir a graduação: a censura ao discurso de
formatura que ele iria proferir como orador da turma. Após a conclusão do curso
de Odontologia começou na militância clandestina e nas formas legais de
oposição, como mostra a narrativa a seguir:
Formado, fui logo em seguida convidado para participar do Partido
Comunista Brasileiro, do diretório clandestino lá no Espírito Santo. Para me
organizar partidariamente, me filiei ao MDB mas era, de fato, do PCB. Então
fizemos ali uma caminhada intensa de participação no movimento sindical,
no movimento de Associações de Moradores e dentro do MDB organizado.
Foi dentro desse processo que organizamos o Sindicato de Odontologia. Fui
da primeira Diretoria. Logo no mandato seguinte, fui eleito Presidente e,
passado esse período, também fui ocupar o cargo de Assessor Técnico da
Secretaria Estadual de Saúde, Chefe do Serviço de Odontologia do Estado.
Tudo isso numa articulação dentro do PCB, que montava toda a sua
estratégia para poder colocar os quadros em pontos estratégicos. 344

Os depoimentos disponíveis de protestantes que militaram nas organizações


clandestinas são, em sua maioria, das esquerdas dissidentes (AP, VPR, MR-8),
porém o maior índice de filiação foi aos partidos comunistas. O PCB foi, dentre os
segmentos da esquerda, quem contou com uma adesão familiar mais significativa,
o que sugere uma sociabilidade política comunista – de filiados, apoiadores ou
simpatizantes – em algumas famílias protestantes. O debate ideológico entre as
organizações e a solidariedade entre os opositores do regime em momentos de
perseguição política também favorecia a proximidade.345 Uma outra militância

343
OLIVEIRA, Nilton Emmerick de. A militância política de um presbiteriano comunista. In:
DIAS, Zwinglio Mota (Org.). Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 75.
344
OLIVEIRA, Nilton Emmerick de. A militância política de um presbiteriano comunista. In:
DIAS, Zwinglio Mota (Org.). Memórias Ecumênicas Protestantes: os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 76-77.
345
Zenaide de Oliveira declarou que a mãe era simpatizante do PCB e que abrigou em sua casa ex-
prisioneiros políticos do período Vargas. Paulo Ayres Mattos também se reportou à ligação
familiar com o PCB e com o bairro operário no qual o partido era influente.
153

protestante, que também respondeu ao ―desafio ético‖ do marxismo e dialogou


com a conjuntura política nacional, ocorreu intramuros, no universo
especificamente religioso, particularmente em um ponto central de conflito entre
os protestantes: a Bíblia.

A Bíblia dos oprimidos: as lutas de classe e as querelas teológicas

Em As guerras camponesas na Alemanha, Friedrich Engels criticou


historiadores e homens de Estado que viam nos conflitos religiosos do passado e
políticos do presente apenas aquilo que estava expresso nas reivindicações dos
lados em disputa, fossem crenças religiosas ou ideias políticas. A tese central do
autor era de que as lutas sociais na Idade Média não poderiam falar outro idioma
que não o da religião, mas que tais conflitos não constituíam apenas querelas
teológicas. Em trecho que se tornou conhecido e suscitou muitos debates
escreveu:

Se as lutas de classe tinham, nessa época, um caráter religioso, se os


interesses, as necessidades, as reivindicações das diferentes classes se
dissimulavam sob a máscara da religião, isso em nada altera o assunto e
explica-se facilmente pelas condições da época.346

Foi recorrente no texto de Engels, referências à religião como ―reflexo‖,


―roupagem ideológica‖, ―fraseologia bíblica‖ e ―disfarce religioso‖ de interesses
reais. A interpretação da religião como máscara ou como expressão de conflitos
reais pressupõe as condições materiais como sinônimas de realidade e obscurece a
forma como as pessoas vivenciam seus conflitos em termos culturais. Thompson,
ao comentar o papel da religião na Revolução Inglesa escreveu:

A Revolução Inglesa foi disputada em termos religiosos não porque seus


participantes estavam confusos com relação aos seus interesses reais, mas
porque a religião importava. As guerras giravam em torno da autoridade
religiosa. Um direito de propriedade do homem sobre sua consciência e
lealdades religiosas tornara-se tão real quanto (e momentaneamente mais real
que) direitos de propriedade econômica. 347

346
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1972, p. 119.
347
THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da
Unicamp, 2001, p. 119.
154

Igualmente dedicado à análise da Revolução Inglesa, mas num tema que


interessa mais diretamente a este tópico, Christopher Hill chamou a atenção para o
fato de que os historiadores devem descrever as ações de uma experiência
marcada pela religião em termos secularizados, mas que a experiência que está
sendo estudada invariavelmente não possui a distinção entre secular e religioso –a
religião perpassa o conjunto de práticas sociais –, de modo que se torna
inadequado entender o discurso religioso apenas como uma ―máscara‖ que
encobre motivaçõesque se encontram em outro lugar, embora, ele possa muitas
vezes ser usado desta forma. Por isso, ao analisar as apropriações da Bíblia
durante a revolução, Hill comentou:

Devemos diferenciar a linguagem bíblica utilizada pelos homens de suas


ações concretas, que precisam ser descritas hoje em termos seculares.
Entretanto, é, ao mesmo tempo, importante que evitemos a armadilha oposta,
de supormos que a ―religião‖ era usada como um ―disfarce‖ para encobrir
motivos seculares ―reais‖. Este pode ter sido o caso de alguns poucos
indivíduos, mas, para a maioria dos homens e das mulheres, a Bíblia foi o
ponto de referência de todo o seu pensamento. 348

Neste sentido, considero que não é possível entender o modo como os


protestantes criaram novas concepções de evangelização e ética social que os
aproximaram das esquerdas e de movimentos de minorias, sem compreender as
releituras e apropriações que fizeram do texto bíblico. Ramo do cristianismo
marcadamente associado ao surgimento do livro impresso, em que a leitura
privada e pública se tornou parte fundamental da vida religiosa, o protestantismo
sempre teve na Bíblia um elemento fundamental de identidade e de conflito. A
suficiência da leitura bíblica para o conhecimento da salvação e o direito de todo
cristão de examiná-la livremente, foram princípios fundamentais da Reforma
Protestante. Sobre as práticas comunitárias da Reforma, François Lebrun
escreveu: ―Baseada na justificação pela fé, no sacerdócio universal e na única
autoridade da Bíblia, a Reforma protestante coloca o fiel em relação direta com
Deus, cuja palavra está na Bíblia, que se deve ler e interrogar diariamente‖.349

348
HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 54-55.
349
LEBRUN, François. As Reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal. In: CHARTIER,
Roger (Org.). História da Vida Privada. Vol. 3. Da Renascença ao Século das Luzes. Trad.
Hidelgard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 104.
155

Ainda que as igrejas protestantes tenham criado seus mecanismos de


controle eclesiástico e critérios de interpretação bíblica, as doutrinas do livre
exame e da suficiência da Bíblia relativizaram as mediações institucionais,
criando possibilidades para cismas e movimentos heterodoxos. No livro
Ocativeiro babilônico da igreja (1520), o reformador Martinho Lutero escreveu:
―A palavra de Deus se encontra em uma situação incomparavelmente mais alta
que a Igreja, a qual, como criatura da Palavra, não pode determinar, ordenar ou
fazer, mas ela deve ser regida, ordenada e estabelecida‖.350
O movimento missionário que criou as denominações protestantes no Brasil
e na América Latina contou com os agentes das sociedades bíblicas como
importantes propagandistas da fé. E se a propagação da Bíblia favoreceu o
protestantismo, a recíproca também é verdadeira, pois o protestantismo contribuiu
com a disseminação da sua leitura. A polêmica sobre ―a Bíblia verdadeira‖, a
católica ou a protestante, fez parte do cenário de conflitos do campo religioso
brasileiro desde a chegada dos missionários, envolvendo, inclusive, animada
confrontação de versões nos jornais seculares.351
Nas décadas de 1950 e 1960, os fundamentalistas acusavam os ecumênicos
de ―modernismo teológico‖, uma referência à aceitação do método histórico de
crítica bíblica e de interpretações da Teologia Liberal do século XIX, embora esta
última não corresponda às referências teológicas que os ecumênicos procuraram,
num primeiro momento, para servir de base à sua hermenêutica. Mesmo teólogos
que, na Europa, eram considerados conservadores ou moderados na hermenêutica
bíblica, recebiam a alcunha de modernistas pelos fundamentalistas brasileiros, a
exemplo de Karl Barth. O motivo era a distinção entre Escritura Sagrada e
Revelação. Para o teólogo, a primeira é uma testemunha da segunda, através da
qual Deus se revela. Nesta perspectiva: “Não é um texto autoritativo que cria a fé.
É a experiência de fé que reconhece o texto como autoritativo”.352 Barth não
questionava tanto a crítica especializada dos textos, mas a caracterização da Bíblia
como um livro explicado exclusivamente em parâmetros históricos e literários,

350
LUTERO, Martinho. O cativeiro babilônico da igreja. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 101.
351
Sobre a ―reação católica‖ à ―era das missões estrangeiras‖ no Brasil, ver: LEONARD, Émile G.
O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e História Social. Trad. Linneu de Camargo
Schützer. 3ª edição. São Paulo: AST,2002, p. 81-138.
352
ALVES, Rubem. Protestantismo e Repressão. São Paulo: Editora Ática, 1979, p. 261.
156

sem a dimensão de revelação divina presente na leitura do texto a partir da fé. No


prefácio à primeira edição de Carta aos Romanos(2005), o autor escreveu:

O método histórico-crítico aplicado ao estudo da Bíblia prepara a mente, o


que é sempre útil; porém, se eu for constrangido a optar entre este método e a
arcaica doutrina da inspiração, eu decididamente escolheria por esta, pois ela
é, de direito, maior, mais profunda e mais importante; porque a inspiração
visa ao próprio processo do entendimento sem o que toda e qualquer
construção do raciocínio se torna vã. Sinto-me feliz por não precisar escolher
entre estas duas formas. No entanto, apliquei toda a minha atenção para
observar os fatos através da história, no espírito da Bíblia, que é o Espírito
Eterno.353

Neste sentido, a neo-ortodoxia era conservadora e a defesa da revelação


justificava a crença em doutrinas questionadas pela crítica histórica e pela
Teologia Liberal, como a concepção virginal do Cristo por Maria e a ressurreição
física e não apenas simbólica de Jesus. Ao mesmo tempo, rejeitava a ―velha
ortodoxia‖ que identificava totalmente o texto com a revelação. Para Karl Barth, a
Bíblia é um testemunho da palavra divina, e não ela mesma, pois esta última
―acontece‖ na experiência de fé.
Para os fundamentalistas, a Bíblia era normativa em relação à sua
autoridade. A crítica ao relativismo perpassou toda a coletânea de textos
apologéticos publicada nos EUA de 1909 a 1915 com o título Os Fundamentos.
Sobre a crítica moderna dos textos bíblicos um dos autores da coletânea, David
Heagle (1821-1989), escreveu:

O que ela nos oferece? Nada. O que nos tira? Tudo. Temos alguma utilidade
para ela. Não! Ela não nos auxilia na vida nem nos conforta na morte. Ela
não nos julgará no mundo vindouro, pois, em nossa fé bíblica, não
precisamos nem dos encômios dos homens, nem da aprovação de alguns
pobres pecadores. Não tentaremos melhorar as Escrituras nem adaptá-las ao
nosso querer, mas, nós mesmos, seremos dirigidos por elas. Não exercemos
autoridade sobre, mas as obedeceremos.354

Não devemos, no entanto, reproduzir a identidade que o fundamentalismo


construiu para si e considerar que ele faça simplesmente uma leitura literal da
Bíblia. Como em qualquer perspectiva hermenêutica, a leitura fundamentalista
também possui premissas filosóficas e é seletiva em relação aos textos que são

353
BARTH, Karl. Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 13.
354
HEAGLE, David. A Bíblia e a crítica moderna. In: TORREY, R. A. Os Fundamentos:
examinando os principais temas da fé cristã. São Paulo: HAGNOS, 2005, p. 35.
157

assumidos em sua literalidade, lidos de forma alegórica ou


contextualizada.355Prócoro Velasques Filho observou que o fundamentalismo
partilha três premissas da ―filosofia do senso comum‖: a) universalidade da
verdade, b) capacidade da linguagem de expressar o real, c) capacidade da
memória de conhecer objetivamente o passado. Para o autor, tais premissas têm
algumas implicações teológicas:

No caso da Bíblia, suas informações e afirmações são tomadas como


verdades universais independentemente de quaisquer referências ao seu
contexto. Quanto à linguagem, não se podem sobrepor interferências e
interpretações às intenções dos autores bíblicos a fim de harmonizar o
conflito, por exemplo, com as ciências naturais. Isso significa que quando os
evangelhos se referem ao nascimento virginal de Cristo ou aos seus milagres
estão, efetivamente, se referindo a uma intervenção específica de Deus na
história humana. [...] Quanto à memória: a Bíblia se compõe de testemunhos
da revelação de Deus, em particular daquela ocorrida em Cristo e através dos
primeiros cristãos. Os escritores sagrados recorreram à sua memória e à
memória de outros para o registro desses acontecimentos. O armazenamento
das informações colhidas foi fiel à revelação original.356

Além disso, tratando-se de um movimento apologético, a leitura


fundamentalista varia de acordo com ―os inimigos da fé‖ que ele elege em cada
período histórico ou configuração do campo religioso. Nos anos 1950 e 1960,
houve uma nova cruzada fundamentalista nos EUA e na América Latina associada
não apenas à crítica ao ―modernismo teológico‖, mas à defesa da ―civilização
cristã, do mundo livre e da democracia‖, alinhando-se ao bloco capitalista da
Guerra Fria.
Se o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) deu respaldo ao ecumenismo
protestante, o Conselho Internacional de Igrejas Cristãs (CIIC), idealizado por
Carl McIntire (1906-2002)357 e formado pelo movimento fundamentalista em
1949, contribuiu para a expansão mundial do movimento. Carl McIntire foi um

355
Uma discussão interessante sobre este aspecto encontra-se no capítulo ―Como o protestantismo
constrói e conhece a realidade‖ (82-127), especialmente o tópico ―o modo indicativo versus o
modo imperativo‖ (117-119) no livro: ALVES, Rubem. Protestantismo e Repressão. São Paulo,
Editora Ática, 1979.
356
VELASQUES FILHO, Prócoro; MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Introdução ao
Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990, p. 117-118).
357
Pastor e missionário presbiteriano, o norte-americano Carl McIntire esteve muito presente no
Brasil nos anos 1950 e 1960, suas atividades eram noticiadas na imprensa secular. Em 1951, O
Diário de Notícias anunciou uma série de conferências do missionário (09/08/1951, p. 4) e o
Correio da Manhã, em 1960, noticiou: “O Rev. Carl McIntire, presidente do Internacional Council
of Christian Church, que passou no Rio de Janeiro em viagens de estudos e observações, regressa
hoje a Nova York, e ontem à noite, veio visitar o Correio da Manhã, trazendo-nos as despedidas.‖
(29/06/1960, p. 7)
158

dos conferencistas do IV Congresso do CIIC que ocorreu em Petrópolis, em 1958,


cuja resolução declarou a incompatibilidade do cristianismo com o
comunismo.358As opções teológicas na conjuntura política de Guerra Fria e de
movimentos revolucionários reforçaram as hostilidades entre fundamentalistas e
ecumênicos.
Foi neste clima que ocorreram os debates sobre a leitura da Bíblia entre a
Teologia da Libertação e a Missão Integral nas décadas de 1960 a 1980, que
deram origem a um conjunto de grupos de estudos bíblicos e publicações que
colocaram a Bíblia em disputa entre os protestantes da América Latina. Não é
possível dar conta de todas essas iniciativas, mas cabe apresentar algumas delas,
começando pelo Protestantismo Ecumênico, acusado de marginalizar a leitura da
Bíblia em nome do engajamento político ou da cooperação eclesiástica.
No Protestantismo Ecumênico houve o esforço da Confederação Evangélica
do Brasil (CEB) em elaborar materiais para a Escola Bíblica Dominical que
fossem de uso comum entre as igrejas evangélicas, enquanto a União Cristã de
Estudantes do Brasil (UCEB) organizou grupos de estudos bíblicos com marcada
influência barthiana. Uma personagem destacada nestes estudos foi a francesa
Suzanne de Dietrich (1891-1981)359, descrita pelo secretário do Departamento de
Estudos da UCEB, Jorge Cesar Mota, como ―uma das mulheres mais ilustres da
Igreja de Cristo nos últimos tempos‖, destacando sua influência ―no terreno dos
estudos bíblicos‖para os quais ―realiza pesquisas visando a tornar mais eficaz a
comunicação da Palavra de Deus‖360
No livro A descoberta da Bíblia, publicado pela UCEB em 1958, Suzanne
de Dietrich recomendava cuidado para que os grupos não se convertessem em
―clube de debates teológicos‖, lugar de experiências religiosas compartilhadas ou
ainda um espaço para a audição de sermões. Os grupos deveriam ser pequenos,

358
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. ―Cristianismo e comunismo não podem existir juntos‖. 19/08/1958,
p. 17.
359
Suzanne de Dietrich era dirigente da Federação Universal do Movimento de Estudantes
Cristãos (FUMEC) e foi uma das principais responsáveis pela renovação dos estudos bíblicos da
juventude ecumênica no mundo após as guerras mundiais. As principais influências de Suzanne
eram o Socialismo Cristão, a neo-ortodoxia e a crítica histórica da Bíblia. Ver: WEBER, Hans
Ruedi. A paixão de viver: uma biografia de Suzanne de Dietrich. Trad. Hope Gordon Silva. São
Paulo: ASTE, 2010.
360
MOTA, Jorge Cesar. Apresentação. (p. 5)In: DIETRICH, Suzanne. A descoberta da Bíblia: um
manual prático de estudo bíblico. São Paulo: UCEB, 1955. Jorge Cesar Mota foi um dos pioneiros
em promover grupos de estudos da teologia de Karl Barth na juventude evangélica desde os anos
1930.
159

considerando-se de oito a dez pessoas o número ideal de participantes, manter a


regularidade nas reuniões, periodicidade e horários definidos. O trabalho de
leitura deveria ser coletivo, ainda que coordenado por um líder que poderia ou não
apresentar previamente um roteiro ou uma introdução ao tema. Congressos e
seminários congregando todos os grupos eram recomendados para a atualização
dos estudos e para animar os movimentos ecumênicos de juventude. Para a
biblista francesa, líder internacional da FUMEC:

Qualquer que seja o assunto, o objetivo principal do grupo deve ser um


estudo cuidadoso do próprio texto bíblico, para que todos se tornem bem
seguros quanto ao significado (usar comentários, etc.) Em seguida, o texto
deve ser encarado dentro do contexto, em relação à passagem bíblica como
um todo. Somente depois disso devemos então perguntar-nos o que Deus
tem a nos dizer, hoje, por meio daquele texto. 361

O livro A Descoberta da Bíblia e a participação de Suzanne à frente do


Seminário Latino-americano de Estudos Bíblicos, que ocorreu no Brasil em
1959,362 foram marcos na experiência dos protestantes que na década seguinte
ingressariam no movimento de ISAL. Paulina Steffen (1922-2015), uma das
participantes do Seminário dirigido por Suzanne e também da Conferência do
Nordeste em 1962, escreveu:

Na América Latina, onde vivíamos um tempo de grande politização do


movimento estudantil, e frente à alienação social e política de nossas igrejas
(éramos um grupo interdenominacional), ao lado de uma enorme
desigualdade social, chegava a nós a voz dos profetas e a esperança de um
―Novo Céu e Nova Terra‖! As ideias desse Seminário, centrado na Bíblia, a
fé e a serenidade de Suzanne, deixaram em cada um de nós uma nova
convicção e um chamado à fidelidade, para prosseguir e levar a sério nossa
presença no mundo dos jovens e estudantes de nosso tempo. 363

Na Conferência do Nordeste (1962), duas palestras foram exclusivamente


dedicadas a temas bíblicos: ―Os profetas numa época de transformações sociais‖,
proferida por Joaquim Beato, e ―O conteúdo revolucionário do ensino de Jesus

361
DIETRICH, Suzanne. A descoberta da Bíblia: Um manual prático de estudo bíblico. São
Paulo, UCEB, 1955.
362
O Seminário Latino-Americano de Estudos Bíblicos aconteceu em Campos do Jordão-SP,
organizado pela FUMEC e pela UCEB. Contou com a participação dos movimentos cristãos de
estudantes dos países sul-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Uruguai e
Venezuela. WEBER, Hans Ruedi. A paixão de viver: uma biografia de Suzanne de Dietrich. São
Paulo: ASTE, 2010, p 7.
363
WEBER, Hans Ruedi. A paixão de viver: uma biografia de Suzanne de Dietrich. São Paulo:
ASTE, 2010, p. 9.
160

sobre o Reino de Deus‖ de João Dias de Araújo. Nesta última palestra o


conferencista se referiu ao Reino de Deus como um ―símbolo poético‖ de uma
realidade já presente dentro do homem e na história a partir do ministério do
Cristo e da igreja, mas sempre transcendente a qualquer realidade concreta. Um
símbolo de integralidade da mensagem do Evangelho, destinado a salvar não as
almas, mas os homens.364
Em sua palestra, João Dias de Araújo acusou ―ortodoxos e
fundamentalistas‖ de cometer uma heresia fundamentada num princípio pagão e
não bíblico: a dicotomia da natureza humana em corpo e alma: “não sabem esses
cristãos que Jesus não ensinou essa dicotomia, essa separação herética. Mas
ensinou sim, que o homem é uma unidade, um todo que ele veio
salvar‖.365Posteriormente, esta perspectiva foi desenvolvida numa poesia, escrita
em 1967, chamada inicialmente de Consciência e transformada depois no hino
Que estou fazendo se sou cristão?366

Que estou fazendo se sou cristão?


Se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres sem lar, sem pão.
Há muitas vidas sem salvação.
Meu Cristo veio pra nos remir:
O homem todo, sem dividir.
Não só a alma do mal salvar,
Também o corpo ressuscitar. [...]
Aos poderosos eu vou pregar,
Aos homens ricos vou proclamar
Que a injustiça é contra Deus
367
E a vil miséria insulta os céus.

Esta composição de João Dias de Araújo se tornou o hino oficial da IPU e


foi incorporado em outros hinários protestantes. Percebe-se no hino uma
convocação dos cristãos à responsabilidade com os sofredores do mundo,
compromisso que seria uma consequência da salvação integral do homem pelo
Cristo. Esta foi uma das leituras bíblicas mais presentes no Protestantismo
Ecumênico. Outra leitura recorrente foi o recurso ao profetismo, pelo qual o

364
IV Conferência de Responsabilidade Social da Igreja, 1962 – Documentos Avulsos.
365
Ibidem.
366
SOUZA, Carlos César Borges Nunes de. A Cidade, a justiça, e a paz: João Dias de Araújo e sua
poesia sociorreligiosa como fundamento a uma teologia da missão urbana (p. 46). In: TEOLOGIA
HOJE. Revista de Estudos Teológicos, Seminário Teológico Richard Shaull. Vol. I, nº 1, 2010.
Edição Especial em homenagem aos 80 anos do Rev. João Dias de Araújo.
367
Ibidem.
161

Protestantismo Ecumênico atribuía a si mesmo uma missão profética, ou seja, o


papel de confrontar a consciência social e religiosa da nação e da igreja,
denunciando as injustiças sociais e anunciando uma nova ordem de justiça em
nome de um Deus libertador. Esta abordagem esteve presente na palestra ―Os
profetas numa época de transformações sociais‖ de Joaquim Beato na Conferência
do Nordeste (1962). Os profetas, segundo palestrante:

concebiam a si mesmos como porta-vozes de Deus e como aqueles que, de


posse do segredo do Senhor, eram os únicos capazes de perceber o sentido
íntimo dos acontecimentos da história do povo de Deus e os únicos chamados
a proclamá-la a seus contemporâneos. 368

Analisando as palestras dos protestantes na Conferência do Nordeste,


Joanildo Burity destacou a importância da mediação bíblica, principalmente o uso
do Velho Testamento, para atualizar o discurso da igreja e ao mesmo tempo
neutralizar as tensões entre progressistas e conservadores:

Frente a um público obcecado pela pretensão de posse da verdade, a


descoberta de aspectos questionadores da ordem vigente na própria Escritura
quebraria, de certa forma, a resistência exercida, no inconsciente, pela
herança fundamentalista dos protestantes brasileiros em geral. Assim, se
estabelecem compromissos com o universo discursivo ortodoxo – por
exemplo, através de citações bíblicas -, a fim de introduzir as variações
discursivas pretendidas.369

Numa perspectiva sociológica, o profeta como um agente contestador da


classe sacerdotal, representa a crise do status quo político e religioso, como
analisou Pierre Bourdieu. Ao descrever o campo religioso como o conflito entre
agentes do sagrado (profeta, sacerdote e feiticeiro) pelo capital religioso e de
empresas de salvação (igreja e seita) pela adesão dos leigos à sua mensagem e
autoridade, o sociólogo francês considerava o recurso ao profetismo como uma
subversão simbólica a servir ou provocar uma subversão política:

Enquanto a crise não tiver encontrado seu profeta, os esquemas com os quais
se pensa o mundo invertido continuam sendo o produto do mundo a ser
derrubado. O profeta é quem pode contribuir para realizar a coincidência da

368
IV Conferência de Responsabilidade Social da Igreja, 1962 – Documentos Avulsos.
369
BURITY, Joanildo. Fé na revolução: protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro
(1961-1964). Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011, p. 185.
162

revolução consigo própria, operando a revolução simbólica que a revolução


política requer.370

Os protestantes que desejavam uma função ―profética‖ para a igreja ou que


se apropriavam dos profetas bíblicos, reivindicavam para si um papel
transformador da realidade na qual estavam inseridos. Quanto maior a crise,
dentro das igrejas ou na situação política, maior a capacidade de articular o
profetismo como discurso.Durante os anos 1960 e 1970, a revista Cristianismo y
Sociedad,publicada pelo ISAL, contribuiu com a gestação da Teologia da
Libertação, mas não tinha como objetivo principal ser uma revista de reflexão
bíblica. Com este objetivo, se destacaram duas publicações no segmento
ecumênico nascidas nos anos 1980: a revista Estudos Bíblicos, de origem católica,
mas aberta à contribuição protestante, publicada desde 1986,371 e a Revista de
Interpretação Bíblica Latino-americana (RIBLA), publicada pelo Departamento
Ecumênico de Informações (DEI) da Costa Rica desde 1988.372 Indissociável do
Cristianismo da Libertação, surgiu um Movimento Bíblico Latino-americano.373
No Brasil, o núcleo mais importante de articulação deste movimento foi o
Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), criado com o apoio do Programa de
Assessoria Pastoral do CEDI, por Jether Ramalho (1920-), Lucilia Ramalho,
Agostinha Vieira de Mello e frei Carlos Mesters (1931-). Zwinglio Mota Dias
relatou: ―Nós ajudamos a fundar o CEBI. Eu fui o primeiro vice-presidente do
CEBI, Nós fundamos o CEBI lá na casa dos carmelitas, em Angra dos Reis, que o
Mesters estava morando lá. Nós criamos toda a estrutura jurídica do

370
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5ª edição. Introdução, Organização e
Seleção: Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009, p. 77-78.
371
A revista Estudos Bíblicos nasceu dos comentários bíblicos feitos na Revista Eclesiástica
Brasileira (REB) a partir de 1986. A revista, ainda em circulação, possuía/possui periodicidade
trimestral e cada número é dedicado a um tema principal. Foi e é publicada pelas editoras Vozes e
Sinodal, respectivamente, católica e luterana.
372
RIBLA é editada em duas versões: espanhola e portuguesa. A versão em português é editada
pela Ed. Sinodal (São Leopoldo/RS) e pela Vozes (Petrópolis/RJ). A versão em espanhol é editada
pelo Departamento Ecumênico de Informações (DEI) da Costa Rica. O DEI é uma entidade similar
ao que foi no Brasil o Centro Evangélico de Informação (CEI) e, depois, o Centro Ecumênico de
Documentação e Informação (CEDI), além de outras instituições congêneres na América Latina e
no Caribe. Publicava estudos bíblicos, informações do movimento ecumênico e da situação
política do continente, prestava assessoria a comunidades eclesiais de base, a movimentos e a
pastorais sociais.
373
Para uma análise das influências teóricas e abordagens metodológicas do movimento bíblico
latino-americano, ver: CABRAL, Jimmy Sudário. Bíblia e teologia política: escrituras, tradições e
emancipação. Rio de Janeiro: Mauad X, Instituto Mysterium, 2009. p. 125-165.
163

CEBI”.374Antes de nascer formalmente, o CEBI existia como uma rede dos


círculos bíblicos que se formaram nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e
nos movimentos ecumênicos de juventude, católicos e protestantes.
No final dos anos 1980 o CEBI passou a publicar os fascículos Por trás da
Palavra e a série A palavra na vida, convertendo em texto o conteúdo dos cursos
bíblicos e de formação destinados às CEBs e agentes de pastoral.A princípio, a
leitura comunitária da Bíblia foi feita através do método ―ver-julgar-agir‖, nascido
da experiência da Ação Católica. Partia-se da observação dos problemas concretos
da realidade (ver), julgava-se esta realidade a partir dos valores cristãos ou do
texto bíblico (julgar) e definia-se uma ação transformadora, de enfrentamento dos
problemas (agir). Esta primeira forma de leitura foi o ensaio da experiência que
caracterizaria o movimento bíblico latino-americano: a leitura popular da Bíblia,
para o qual a RIBLA dedicou seu primeiro número:

A leitura popular da Bíblia é uma prática de leitura da Bíblia realizada


geralmente nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) inseridas em meios
populares na América Latina, que procura resgatar o sentido histórico e
espiritual original da Bíblia, a partir da experiência da presença e revelação
de Deus no mundo dos pobres e em função do discernimento e comunicação
da Palavra de Deus. Quanto à Hermenêutica da Libertação, é simplesmente a
teoria desta prática de leitura popular da Bíblia.375

Os biblistas protestantes deram importante contribuição ao Cristianismo da


Libertação, principalmente Milton Schwantes (1946-2012), luterano e brasileiro;
Elsa Tamez (1951-), metodista e costa-riquenha; e Jorge Pixley (1923-), batista e
norte-americano, radicado no México. Estes autores aplicavam o conflito
―opressão/libertação‖ como chave de interpretação dos textos bíblicos e
colaboravam com as revistas: Estudos Bíblicos, RIBLA,Por trás das palavras, A
Palavra na Vida e Tempo & Presença.376
Milton Schwantes trabalhou no Programa de Assessoria Pastoral do CEDI,
pelo qual ministroucursos e organizou seminários em vários lugares do País.377
Escreveu sobre o livro de Gêneses, sobre o direito dos pobres na Bíblia, tema de
374
DIAS, Zwinglio Mota. Entrevista concedida ao autor, Campina Grande-PB, 31/05/2013.
375
RICHARD, Pablo. Leitura popular da Bíblia na América Latina (Hermenêutica da Libertação).
In: Leitura popular da Bíblia: por uma hermenêutica da libertação na América Latina. RIBLA,
nº. 1, 1988/1, p. 8.
376
A revista Tempo e Presença não era especificamente dedicada aos estudos bíblicos, e sim ao
conjunto de atividades do CEDI, mas possuía uma coluna intitulada A Bíblia hoje.
377
Milton Schwantes foi o autor foi o mais frequente na coluna A Bíblia hoje da revista Tempo e
Presença do CEDI.
164

sua tese de Doutorado em Teologia na Alemanha, e sobre os profetas. O tema do


profetismo mobilizava o discurso de transformação social. Em um dos números da
série A Palavra na Vida, Milton Schwantes escreveu:

Profetas têm hora e local. Sua atuação é concreta. Está relacionada a certo
momento, a certas pessoas, a certas estruturas. Não é, pois, o discurso
genérico que os caracteriza. E nem são defensores de doutrinarismos. São
intérpretes da história. São leitores da vida do povo. Através dos seus gestos
e de suas palavras, a história se torna transparente. E onde estariam situados
estes profetas? [...] A profecia é contemporânea à monarquia. A partir daí já
se pode dizer que os profetas exigem ser lidos e interpretados em uma ótica
política. A perspectiva pública lhes é inerente. 378

Acompanhando o texto acima, a publicação colocou uma imagem que servia


de mensagem política e não apenas de ilustração: dois homens conversando diante
de um cartaz em que apareciam rostos com a legenda ―defensores assassinados‖.
Um deles reproduzia as palavras de Schwantes: “A leitura dos profetas exige uma
ótica política”, ao que o outro respondia “Verdade, definição política e não falsa
neutralidade. É próprio dos profetas a perspectiva política”. Nas ilustrações
seguintes aparecia o choque entre a Constituição e a Reforma Agrária, a Tradição
e a Profecia.379

Imagem 2 – Ilustração A profecia durante a monarquia

378
SCHWANTES, Milton. A profecia durante a monarquia. In: SCHWANTES, Milton;
MESTERS, Carlos. Profeta: saudade e esperança. Nº. 17/18, 2ª. Edição, São Leopoldo, CEBI,
1989, p. 6-7. (Série: A palavra na vida).
379
Este número da série A Palavra na Vida juntou as contribuições do biblista luterano Milton
Schwantes e do biblista católico Carlos Mesters num curso de verão organizado pelo Centro
Ecumênico de Serviço à Evangelização e Educação Popular (CESEP). Milton Schwantes escreveu
A profecia durante a monarquia, enquanto Carlos Mesters escreveu A profecia durante e depois
do cativeiro.
165

Um dado importante sobre o Cristianismo da Libertação e o movimento


bíblico latino-americano era a diferença entre a América do Sul e a América
Central no que diz respeito aos movimentos revolucionários ou de oposição às
ditaduras militares nos anos 1980. A América Central sofreu um forte impacto do
processo revolucionário da Nicarágua e a participação dos cristãos na revolução
de 1979 influenciou a produção dos biblistas da região. Elsa Tamez, uma das
criadoras do DEI na Costa Rica, dedicou o livro A Bíblia dos Oprimidos (1979):
“Aos cristãos da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e do povo em
geral, que combateram na revolução popular da Nicarágua”.380No livro Santiago:
Lectura latinoamericana de la epístola (1985), Elsa Tamez escreveu:

Si esta carta fuera enviada hoy día a comunidades cristianas de América


Latina, posiblemente sería interceptada por la Seguridad Nacional de algunos
países. Se tacharía de documento subversivo al leer los párrafos que
denuncian con vehemencia la exploración de los terratenientes (5. 1-6) y la
vida regalada de los hombres de negocios (4. 13-17). El párrafo que afirma
que ―la religión pura y sin mancha es visitar los huérfanos y las viudas y
manterse apartados del mundo‖ (1. 27), seria criticado de ―reduccionismo del
evangelio‖ o infiltración marxista-leninista en las comunidades o comunidad
que espera esa carta caería bajo sospecha frente a las autoridades. 381

No primeiro número da RIBLA, intitulado Leitura popular da Bíblia: por


uma hermenêutica da libertação na América Latina, o predomínio foi de autores

380
O livro foi publicado originalmente em espanhol pelo DEI em 1979, ou seja, no mesmo ano da
revolução nicaraguense. A obra é uma parte da dissertação de Elsa Tamez para a licenciatura no
Seminário Bíblico Latinoamericano (SBL) de San José, Costa Rica. A edição brasileira foi
publicada no ano seguinte: TAMEZ, Elsa. A Bíblia dos oprimidos: a opressão na teologia bíblica.
2ª. Edição. Tradução: José Raimundo Vidigal. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
381
TAMEZ, Elsa. Santiago: lectura latinoamericana de la epístola. San José: DEI, 1985. p. 13.
166

da América Central. Além de Elsa Tamez, que voltou a escrever sobre a epístola
de Tiago para a revista, Jorge Pixley, escreveu sobre o livro do profeta Oseias. O
autor comparou a metáfora da prostituição, usada pelo profeta para condenar os
pecados de Israel, com a crítica dos revolucionários centro-americanos aos
―vendilhões da pátria‖, colaboradores do imperialismo na Nicarágua, Guatemala,
Costa Rica e Honduras. Do mesmo modo que em Oseias o amor do profeta
resgatou sua mulher da prostituição e o amor divino é anunciado como capaz de
restaurar o decoro de Israel, os revolucionários centro-americanos lutavam pela
restauração do ―decoro nacional‖. Se referindo simultaneamente à prostituição de
Israel e à situação dos países da América Central, Jorge Pixley escreveu:

Decoro e dignidade são justamente o que a prostituta sacrifica para poder


sobreviver. Faz o que o amante lhe pede, embora peça mais por uns favores
que por outros. Dignidade e decoro significa reter uma medida de controle
sobre as condições de vida, de tal sorte que as relações com os outros, que
são parte da vida, ocorram em condições que satisfaçam as necessidades
materiais e espirituais da pessoa (ou da nação). Em condições de submissão
às mutáveis necessidades do império, não é possível levar uma vida
econômica interna nem tampouco uma conduta de relações internacionais
estáveis e duradouras. 382

Fechando o primeiro número da RIBLA, o jesuíta mexicano Javier Saravia


escreveu o texto A Nicarágua na Bíblia, em que propôs a leitura de três relatos
bíblicos a partir da experiência revolucionária do país. Comentando uma
passagem do Evangelho de Lucas (Lc 7: 11-17) a partir da morte de um jovem
sandinista, o jesuíta comparou a Nicarágua com a viúva de Naim:

imaginei que aquela viúva de Naim é hoje a Nicarágua. Mulher, pobre, viúva
e que agora perdeu o seu filho que foi morto e está sendo levado para
enterrar. Nicarágua, pátria pobre e agora mais empobrecida do que nunca
pela guerra, pelo bloqueio. Desprestigiada e temida pela mentira e pela
propaganda caluniosa dos meios de informação e de comunicação social. E
agora querem matar sua tenra filhinha, a Revolução, por todos os meios
possíveis.383

Após essa comparação, o autor conclamou os cristãos à ―insurreição


evangélica‖, a lutar ―pela vida e pela paz, com e pelos valores do Evangelho‖,
identificados com a Revolução. Para completar o quadro de diferenças, o que
382
PIXLEY, Jorge. Oséias: nova proposta de leitura a partir da América Latina. In: Leitura
popular da Bíblia: por uma hermenêutica da libertação na América Latina. RIBLA, nº. 1, 1988/1,
p. 46.
383
SARAVIA, Javier. A Nicarágua na Bíblia. In: Leitura popular da Bíblia: por uma hermenêutica
da libertação na AméricaLatina. RIBLA, nº. 1, 1988/1, p. 98.
167

havia sido o movimento deISAL na América do Sul, funcionava como o ASEL na


América Central. Zwinglio Mota Dias, que era secretário de estudos da ASEL
quando assumiu a secretaria geral do CEDI em 1979, destacou as perspectivas
conflitantes:

Mas aí começaram a surgir algumas discrepâncias neste grupo de ASEL, uma


vez que a realidade da América Central é completamente diferente da
realidade da América do Sul. Então havia algumas ênfases que nós do Brasil
achávamos que não valia. Quer dizer, a gente já tinha passado pela luta
armada e tudo aquilo e se dado conta de que isso não funcionou. Mas o
pessoal na América Central tava mais a fim de radicalizar. Então, houve uma
discrepância. Aí, o CEDI resolveu sair de ASEL. Com o CEDI saindo de
ASEL, eu também saí de ASEL. Não tinha como eu permanecer. 384

No Brasil, a luta armada foi praticamente extinta na metade da década de


1970, parte significativa dos seus quadros foi morta, presa e exilada, o que levou a
um processo de autocrítica à opção da violência revolucionária após a ―imersão
geral na luta armada‖ entre 1968 e 1974 por parte das esquerdas. 385 No final da
década, o país presenciava o retorno dos exilados políticos com a anistia de 1979,
o impulso de movimentos sociais urbanos e rurais, alguns nascidos da
contribuição do Cristianismo da Libertação, através das CEBs e pastorais, e as
greves sindicais do ABC paulista iniciadas em 1978. As consequências desta
mobilização foram políticas e teóricas, conforme observou Eder Sader:

O impacto dos movimentos sociais em 1978 levou a uma revalorização de


práticas sociais presentes no cotidiano popular, ofuscadas pelas modalidades
dominantes de sua representação. Foram assim redescobertos movimentos
sociais desde sua gestação no curso da década de 70. Eles foram vistos,
então, pelas suas linguagens, pelos lugares de onde se manifestavam, pelos
valores que professavam, como indicadores da emergência de novas
identidades coletivas. Tratava-se de uma novidade no real e nas categorias de
representação do real.386
Estas experiências pretendiam forjar um conteúdo social para a democracia
reivindicada e uma forma historicamente nova de fazer política. Na interpretação
da abertura feita pela militância de esquerda, pela imprensa e pela academia, o
epíteto de ―novo‖ era acrescentado a partidos, movimentos e sujeitos participantes
do processo. Naquele momento, a insurreição revolucionária não era a pauta

384
DIAS, Zwinglio Mota. Entrevista concedida ao autor, Campina Grande-PB, 31/05/2013.
385
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
armada. São Paulo: Perseu Abramo e Expressão Popular, 2014, p. 169-176.
386
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1988,
p. 26-27.
168

principal das oposições à Ditadura Militar. No jargão das esquerdas, ainda que a
revolução fosse estratégica, a insurreição não era tática. Por isso, Milton
Schwantes, o único brasileiro protestante no primeiro número da RIBLA,
apresentou outras fontes para a leitura popular da Bíblia:

São as lutas pela terra e pelo teto as que, entre nós, puxam e animam a
redescobrir a história bíblica. É a opressão da mulher pobre e a espoliação da
classe trabalhadora que direcionam a ótica de leitura. Reivindicam uma
interpretação que parta do concreto e do social, das dores e utopias da gente
latino-americana.387

Também o Cristianismo da Libertação e o Movimento Bíblico Latino-


americano pretendiam inaugurar ―um novo jeito de ser igreja‖ e ―um novo modo
de ler a Bíblia‖. No primeiro caso, não se tratava apenas de novos grupos
religiosos que surgiam, mas de uma nova prática dentro das velhas estruturas, da
presença efetiva das igrejas em cotidianos dos quais esteve distante. No segundo
caso, era um movimento da periferia da sociedade para a periferia dos textos,
buscando encontrar neles uma memória subterrânea dos oprimidos. O novo era
um resgate, como sugeriu Milton Schwantes:

Na América Latina, a Bíblia está sendo redescoberta. É lida com fervor. Fez-
se símbolo e alimento do novo jeito de ser de toda a igreja. As comunidades
cristãs se nutrem e se animam, lendo e celebrando a história bíblica. Esta
redescoberta traz à tona um novo jeito de compreender a Escritura.
Experimenta-se uma nova aproximação aos textos. [...] E, enfim, emerge um
novo portador de interpretação. Mulheres e homens empobrecidos são os
novos agentes, os novos hermeneutas. A Escritura é a memória dos pobres.388

Se o fracasso da luta armada levou ao processo de autocrítica das esquerdas


no Brasil, a emergência de novos sujeitos e a reconfiguração do campo político e
religioso durante o processo de abertura também provocaram o Cristianismo da
Libertação a uma reavaliação das suas abordagens teológicas, pastorais e eclesiais.
A preocupação com uma possível capitulação ao marxismo e a necessidade de
recuperar um conteúdo ―especificamente religioso‖ na linguagem teológica e
pastoral, faziam parte ao mesmo tempo da autocrítica e da resposta aos críticos
externos, postura que apareceu com mais ênfase na segunda metade dos anos

387
SCHWANTES, Milton. Jacó é pequeno: (visões em Amós 7-9). (p. 81). In: Leitura popular da
Bíblia: por uma hermenêutica da libertação na América Latina. RIBLA, nº. 1, 1988/1, p. 81.
388
SCHWANTES, Milton. Jacó é pequeno: (visões em Amós 7-9). (p. 81). In: Leitura popular da
Bíblia: por uma hermenêutica da libertação na América Latina. RIBLA, nº. 1, 1988/ 1, p. 7-9.
169

1980, o que talvez explique a proliferação de publicações bíblicas no Cristianismo


da Libertação neste período. No primeiro número da revista Estudos Bíblicos, o
frei carmelita Carlos Mesters escreveu:

as palavras ―opressor‖ e ―oprimido‖ não vêm da análise marxista, nem de


uma ideologia esquerdista ou de uma teoria social determinada. São palavras
que estão na raiz da própria Bíblia. Basta conferir um dicionário da língua
hebraica! Ao usar estes termos, o povo é fiel à Palavra de Deus. 389

Do ponto de vista teórico, a leitura popular da Bíblia dialogava com a crítica


literária e com os métodos históricos de pesquisa e, com isso, as mudanças nas
teorias literárias e na historiografia afetavam a hermenêutica bíblica. No final dos
anos 1980, quando trabalhadores, negros, mulheres e organizações populares se
afirmavam como novos sujeitos políticos, a historiografia começou a abordar o
cotidiano, o popular, os vencidos, os de baixo, etc. As novas abordagens
encontraram correspondência na leitura da Bíblia e na história da igreja e do
Cristianismo a partir dos pobres, marginalizados e excluídos.390
O primeiro número da revista Estudos Bíblicos teve como tema A Bíblia
como memória dos pobres. Analisando a formação do Pentateuco391, Milton
Schwantes defendeu a tese de que o mesmo foi constituído de uma edição de
perícopes, pequenas histórias autônomas às grandes unidades literárias do texto,
que nasceram na tradição oral a partir da experiência campesina dos clãs e
famílias. Atentar para isso na leitura popular e comunitária da Bíblia era uma
forma de se apropriar de memórias desafiadoras do status quo religioso e social:

Portanto, para compreender o surgimento dos textos a nível de escrita, será


prioritário compreender o surgimento, sua transmissão e seu impacto a nível
de recitação oral e de memória popular. Neste ponto reside o problema dos
empreendimentos que se satisfazem em compreender os textos bíblicos a
nível de literatura. A dinâmica social que produziu perícopes literárias deve
integrar nossa hermenêutica de reapropriação de tais escritos. Se os

389
MESTERS, Carlos. Como se faz teologia bíblica hoje no Brasil. In: Estudos Bíblicos, nº. 1. A
Bíblia como memória dos pobres. 4ª. Edição. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 11.
390
De acordo com Danillo Pereira: ―Na América Latina houve relevante estímulo de pesquisas e
debates historiográficos entre estudiosos ligados às igrejas cristãs‖. Em 1973, alguns desses
estudiosos criaram a Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA) em
Quito, no Equador. PEREIRA, Danillo Rangell Pinheiro. Concepções de História na Teologia da
Libertação e conflitos de representação na Igreja Católica(1971-1989). Dissertação (Mestrado em
História) – UEFS, Feira de Santana, 2013, p. 116.
391
Pentateuco é o nome atribuído ao conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis,
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
170

dissociamos de suas origens, talvez corremos o risco de entregá-los de mão


beijada aos detentores do poder.392

Na tentativa de construir um caminho evangélico para a teologia latino-


americana, os teólogos da Missão Integral começaram a crítica ao Protestantismo
Ecumênico pela hermenêutica bíblica. Como forma de diferenciar-se também do
fundamentalismo, o primeiro aspecto da crítica foi o reconhecimento de que o
movimento de ISAL inaugurou uma perspectiva situada na realidade do
continente, ainda que criticassem os instrumentais teóricos usados para ler esta
realidade, sobretudo, o uso do marxismo.
A primeira consulta da Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL), que
deu origem à Missão Integral, foi dedicada ao tema El debate contemporáneo
sobre la Biblia. A consulta ocorreu em Cochabamba (Bolívia), em 1970.393 No
prólogo do livro com os textos da consulta, Pedro Savage enfatizou que os
participantes representavam “muitas ênfases teológicas da linha conservadora”.O
autor sugeriu durante a consulta algumas normas para uma hermenêutica da Bíblia
com o propósito de evitar ―subjetivismos‖.394 Sem fazer referências diretas ao
fundamentalismo e ao Protestantismo Ecumênico, Pedro Savage criticou, por um
lado, a preocupação com o êxito, as estatísticas e as normas pragmáticas, bem
como “o farisaísmo da tradição, onde a letra tem mais importância que a
sensibilidade à voz de Deus”.395 Por outro lado, criticou a utilização de quadros
sociológicos e da experiência como elementos normativos para a compreensão da
Bíblia, que faziam a igreja ficar “surda à voz infalível da Palavra‖.396 Por fim, o

392
SCHWANTES, Milton. Interpretação de Gn 12-25, no contexto da elaboração de uma
hermenêutica do Pentateuco. (p. 36, 37). In: Estudos Bíblicos, nº. 1. A Bíblia como memória dos
pobres. 4ª. Edição. Petrópolis: Vozes, 1987.
393
A consulta ocorreu entre os dias 12 e 18 de dezembro de 1970 e contou com a presença de
fundamentalistas, como os missionários norte-americanos que atuavam no continente Peter
Wagner e Washington Padilla. No entanto, os oradores do evento foram os missionários e teólogos
latino-americanos do novo evangelicalismo que começou a se articular no CLADE. Ver:
SAVAGE, Pedro (Org.). El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones
Evangélicas Europeas, 1972.
394
Tais normas se aproximam das premissas da filosofia do senso comum descritas por Prócoro
Velasques Filho, citadas anteriormente: “1) El lenguaje es un medio digno de confianza para la
comunicación de ideas. 2) Cada proposición expresada por el autor comunica un pensamiento, y
solo un pensamiento. 3) El sentido preciso de una palabra depende de su asociación con otras
palabras en su contexto inmediato y el ambiente del autor. 4) La verdad no puede ser
contradictoria”. In: SAVAGE, Pedro (Org.). El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona:
Ediciones Evangélicas Europeas, 1972, p. 14.
395
SAVAGE, Pedro. El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas
Europeas, 1972, p. 13-14.
396
Ibidem, p. 14.
171

autor resgatou o princípio reformado de livre exame das Escrituras para sugerir os
limites da crítica bíblica especializada:

às vezes, Deus permite que o homem mais sensível entenda e conheça alguns
horizontes de sua revelação em contraste com aquele erudito que perde a
mensagem em sua busca dos pontos complexos da linguística hebraica ou
grega397

O ponto nevrálgico do embate pela Bíblia era a questão da sua autoridade.


Uma referência muito citada nos textos da FTL foi o teólogo norte-americano
Bernard Ramm (1916-1992), para quem a Bíblia é uma revelação especial da
Palavra de Deus e, como tal, deve ser o fundamento no fazer teológico e na
missão da igreja.398 Na maioria dos textos da consulta esta autoridade foi
assumida apenas em assuntos concernentes à ―história da salvação‖ (criação,
queda, redenção), da ética pessoal e social, contrapondo-se às leituras
fundamentalistas que rejeitavam as descobertas científicas e filosóficas quando
consideradas incompatíveis com a Bíblia ou pretendiam ser um sistema acabado
de deduções de verdades do texto:―a perigosa eventualidade de ter doutrinas
muito ortodoxas sobre Bíblia, mas ela mesma não ser a base da nossa pregação e
do nosso ensino‖399, segundo Pedro Arana Quiroz. Tratava-se da sutil distinção
entre ―infalibilidade‖ e ―inerrância‖ da Bíblia,que separava o evangelicalismo do
fundamentalismo. Na explicação de Ismael Amaya, a primeira “se limita al área
de la fe, la práctica y la autoridad de sus enseñanzas”, enquanto a segunda
sustenta que:

La Biblia está en perfecto acuerdo con la verdad en todas as sus enseñanzas,


ya sean éstas espirituales, cosmológicas, geográficas, históricas, científicas o
gramaticales. Es decir, que en ninguna de sus páginas, la Biblia hace una
declaración equivocada. Non solo en asuntos de fe, sino en cualquier otro
asunto del que la Biblia trate.400

397
Ibidem.
398
Edição em português da obra citada na consulta: RAMM, Bernard. A revelação especial e a
palavra de Deus. São Paulo: Fonte Editorial, 2004.
399
QUIROZ, Pedro Arana. La Revelación de Dios y La Teología en Latinoamérica. In: SAVAGE,
Pedro (Org.). El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas
Europeas, 1972, p. 78.
400
AMAYA, Ismael E. La inspiración de la Biblia en la teologia latino-americana.In: SAVAGE,
Pedro (compilador). El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas
Europeas, 1972, p. 103.
172

As abordagens na consulta não foram homogêneas. Samuel Escobar,


discorrendo sobre ―O conteúdo bíblico e a roupagem anglo-saxã na teologia
latino-americana‖, dedicou-se mais à crítica ao fundamentalismo e em apresentar
as fontes ibero-americanas para uma renovação da teologia evangélica:

Hoy que el racismo y el anti-imperialismo son factores importantes en las


tensiones mundiales, la obra teológica de un Bartolomé de las Casas, puede
tener mucho que decir a nuestra situación más que la ética racista de un
evangélico del Sur de los Estados Unidos, o un teórico del ―crecimiento a
toda costa‖. En otro orden de cosas, significa que podemos aproximarnos al
existencialismo, por ejemplo, mejor a través de un Unamuno comprendido en
las contradicciones y tensiones de su vida española, que a través de un
comentarista anglosajón de hoy como Francis Schaeffer. 401

Ao mesmo tempo, ressaltou a importância de buscar na Reforma as fontes


evangélicas para esta renovação, que seriam segundo o autor: o ―existencialismo
de Lutero‖, o ―humanismo clássico‖ de Calvino, o ―poder de assimilação‖ do
anglicanismo e o ―vigor revolucionário‖ dos anabatistas do século XVI, lidos:
“diretamente e não através da lente ou comentário fundamentalista‖402. O autor
criticou as simplificações feitas na polêmica fundamentalismo versus
modernismo, apontando que o primeiro classificou como modernistas homens de
indubitável ortodoxia evangélica, como Alberto Rembao (1895-1962) e Gonzalo
Baez Camargo (1899-1983), em função dos mesmos transitarem nos círculos
ecumênicos. Para Samuel Escobar, esta polêmica não era alimentada no
continente pelas ―melhores expressões do fundamentalismo‖, mas por ―versões
tendenciosas ao estilo de Carl McIntire‖403. Como esta ―roupagem anglo-saxã‖
interferia no ―conteúdo bíblico‖ da teologia produzida na América Latina?

Además, la situación política internacional hace que el movimiento misionero


coincida con el estabelecimiento de la Pax Britannica ayer, y la Pax
Americana hoy, es decir, con una orden internacional en el cual poderío
económico, militar y político de una nación anglosajona es como un
trasfondo, necesario quizá. Como consecuencia de estos hechos, el misionero
trae ciertas preferencias en lo político. La mentalidad de progreso en una
sociedad industrial destaca ciertas virtudes cristianas. La necesidad de orden
para el progreso hace preferir ciertos pasajes de la Biblia cuando se habla del
Estado. (…) Junto con el Evangelio, los evangélicos recibimos una

401
ESCOBAR, Samuel. Una teología evangelica para iberoamerica. In: SAVAGE, Pedro
(compilador). El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas
Europeas, 1972, p. 33
402
ESCOBAR, Samuel. Una teología evangélica para iberoamerica. In: SAVAGE, Pedro (Org.). El
debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas Europeas, 1972, p. 33.
403
Ibidem.
173

preferencia por el orden social anglosajón, los valores culturales británicos o


norteamericanos, y el deprecio por lo hispánico que se acentuó por el
404
conservadorismo del constatinismo católico en nuestras tierras.

Os evangélicos deveriam ser os primeiros a reconhecer a correspondência


entre a dependência política, econômica e cultural, e a reprodução de uma teologia
importada, uma vez que o teólogo está inserido em uma comunidade de fé que é
fruto das missões estrangeiras. A busca de referências europeias pelos protestantes
ecumênicos foi explicada como uma reação à ―aridez e pobreza‖ do
fundamentalismo, geralmente legitimadoras da ―ordem de coisas existente‖ no
plano social, político e econômico, o que provocava, segundo o autor, uma fácil
aceitação de correntes mais radicais pelos ecumênicos:

Aquí la tentación del teólogo es doble: o bien justificar incondicionalmente el


orden establecido, o bien justificar la revolución. Es indubitable que una
teología proveniente de fuente anglosajona, ha cedido especialmente a la
primera tentación. El radicalismo contrario se ha dado ya entre nosotros,
precisamente entre los círculos que primero intentaron una reflexión
teológica latino-americana. En ambas posturas, sin embargo, no hay
suficiente conocimiento de lo que la revolución es en cada caso y en cada
405
país.

A última contribuição a ser analisada é a de René Padilla, cujo conteúdo foi


o mais reproduzido no documento da consulta, a Declaração de Cochabamba. O
autor apontou uma contradição entre o reconhecimento da autoridade da Bíblia
como a característica mais generalizada do protestantismo latino-americano e o
uso real da Bíblia no ensino das igrejas. Para ele, havia uma ausência de reflexão
teológica sobre todos os aspectos concernentes à ―revelação‖, que estava
conduzindo a um conhecimento meramente dedutivo ―a partir do uso prático das
Escrituras‖.406René Padilla falou de três modalidades da Revelação: 1) os atos
redentores de Deus na história da salvação, 2) a comunicação desses atos através
da palavra divina por inspiração dos profetas e apóstolos, 3) a encarnação de Deus
entre os homens mediante Jesus Cristo; sendo que nenhuma dessas modalidades

404
ESCOBAR, Samuel. Una teología evangélica para iberoamerica. In: SAVAGE, Pedro (Org.). El
debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas Europeas, 1972, p. 28.
405
ESCOBAR, Samuel. Una teología evangélica para iberoamerica. In: SAVAGE, Pedro (Org.). El
debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas Europeas, 1972, p. 35.
406
PADILLA, C. René. La autoridad de la Biblia en la teologia latino-americana. In: SAVAGE,
Pedro (Org.). El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas
Europeas, 1972, p. 124.
174

isoladamente daria à Bíblia um caráter autoritativo, mas apenas a conjunção das


três permitiria ler o texto como Palavra de Deus:

No creo en Dios porque la Biblia es autoritativa, sino en la autoridad de la


Biblia porque forma parte del proceso por medio del cual Dios ha obrado la
redención del hombre (…). Yo creo en la Biblia porque creo en Jesucristo a
quien el Espírito Santo me ha revelado por medio de ella en virtud de que ella
es la Palabra de Dios.407

Por fim, cabe mencionar alguns elementos da Declaração de


Cochabamba408 para situar a hermenêutica da FTL no campo das disputas do
protestantismo pela Bíblia na América Latina. O texto produziu como síntese a
compreensão de queDeus:

se revela por medio de acontecimientos históricos especiales que han sido


interpretados por el habla divina comunicada por medio de los apóstolos y los
profetas. La Biblia deriva su autoridad de su conexión con esa revelación de
Dios que culmina en Jesucristo.409

O documento falou em crise do púlpito evangélico em função do


desconhecimento da Bíblia. Manifestou alegria pelo espaço que a leitura e o
estudo bíblico estavam adquirindo na Igreja Católica pós-Concílio Vaticano II,
considerou as ideologias que desafiavam a igreja e o continente como “el aguijón
que Dios quiere usar para que escuchemos Su voz”e ressaltou a necessidade de
um novo compromisso com o estudo bíblico nas igrejas da América Latina.
Concluiu afirmando a superioridade do Evangelho e da missão da igreja frente às
demais forças ideológicas atuantes:

Es hora de ver cuanto hay de elemento bíblico que, a causa de nuestras


propias tradiciones humanas, nosotros hemos dejado de lado en esas visiones
de un mundo nuevo que alimentan utopías de nuestro tiempo y tocan las
fibras de tanto corazón sensible. Así nosotros, que conocemos la Verdad, que

407
PADILLA, C. René. . La autoridad de la Biblia en la teologia latino-americana. In: SAVAGE,
Pedro (Org.). El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas
Europeas, 1972, p.127.
408
Assinaram a declaração: Ismael Amaya, Francisco Anabalón, Pedro Arana, Robinson
Cavalcanti, Enrique Cepeda, Samuel Escobar, Hector Espinoza, Geraldo de Ávila, David. L.
Jones, André Kirk, Antonio Nuñez, René Padilla, Washington Padilla, Ericson Paredes, Oscar
Pereira, Pablo Pérez, Mauro Ramalho, Asdrúbal Rios, Pedro Savage, Ricardo Sturz, Douglas
Smith, Ezequiel Torrez, César Thomé, Virgílio Vangioni e Peter Wagner. As comunicações da
consulta foram publicadas dois anos depois no livro: SAVAGE, Pedro (Org.). El debate
contemporáneo sobre la Bíblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas Europeas, 1972.
409
DECLARAÇÃO DE COCHABAMBA In: SAVAGE, Pedro (Org.). El debate contemporáneo
sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones Evangélicas Europeas, 1972, p. 225.
175

tenemos la única Esperanza verdadera, que hemos sido objeto del Amor
supremo, podremos presentar a nuestra América Latina el Evangelio de
Jesucristo con brillo que deje apagados tantos falsos evangelios. 410

A autoridade da Bíblia foi defendida contra as interpretações que, a exemplo


da Teologia da Libertação, valorizavam a história humana como lugar de
revelação da vontade de Deus e assumiam a crítica literária e histórica do texto
bíblico. Teologias acusadas de ideologizar o Evangelho:―Na ideologia de ISAL,
Deus se traduz como revolução. O povo de Deus como hostes revolucionárias. O
propósito de Deus como humanização. E a palavra de Deus, como os escritos
revolucionários. Todo mundo sabe que isso é humanismo marxista‖, escreveu na
época Pedro Arana Quiroz sobre a hermenêutica do Protestantismo Ecumênico.411
Discutindo a acusação feita à Teologia da Libertação de ideologizar a
Bíblia, o teólogo metodista argentino José Miguez Bonino,412 criticou o modo
como seus opositores pretendiam que ela fosse lida: ―Já não basta a lógica formal
que permite estabelecer, por dedução, as consequências de verdades conceituais. É
preciso analisar a práxis histórica que se pretende cristã‖413, e escreveu que as
teologias concorrentes, fundamentalistas, conservadoras e liberais, reproduziam
outras ideologias, pois todas elas dependiam da práxis histórica da fé cristã à qual
se vinculavam:

Se se trata de fatos, e não meramente de ideias, sentimentos ou intenções,


mergulhamos de imediato no âmbito da política (entendido agora no sentido
mais amplo daquilo que é público e social). Billy Graham, a Igreja
Reformada da África do Sul, Martin Luther King ou ―Cristãos pelo
Socialismo‖ não se nos apresentam primordialmente como sistemas de ideias
ou de posições teológicas. Eles são agentes históricos que operam em
determinada direção e com certos efeitos, que podemos avaliar e verificar
[…]. Seu cristianismo deve ser verificado com relação a questões tais como o
apartheid, o imperialismo, a integração, a autodeterminação e outras
magnitudes sócio-políticas.414

410
DECLARAÇÃO DE COCHABAMBA, 1972, p. 227.
411
QUIROZ, Pedro Arana. ―La Revelación de Dios y La Teología en Latinoamérica‖ In:
SAVAGE, Pedro (Org.). El debate contemporáneo sobre la Biblia. Barcelona: Ediciones
Evangélicas Europeas, 1972, p. 71.
412
José Miguez Bonino foi um dos expoentes protestantes da Teologia da Libertação, fez parte do
movimento de ISAL, colaborou com a revista Cristianismo y Sociedad, participou da segunda
consulta teológica da FTL e da consulta sobre ética social da mesma entidade, ambas em 1972.
413
Trecho do livro La fe en busca de eficácia (1977). Citado a partir da edição em português:
BONINO, José Miguez. A fé em busca de eficácia: uma interpretação da reflexão teológica latino-
americana sobre a libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 79-80.
414
BONINO, José Miguez. A fé em busca de eficácia: uma interpretação da reflexão teológica
latino-americana sobre a libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1987, p, 80.
176

Esta percepção de que a leitura poderia ser determinada por outros fatores
culturais e intelectuais não era negada pelo movimento de Missão Integral, porém,
este insistia na primazia do texto bíblico como ponto de partida em comparação
com as visões de mundo que podem perpassar sua leitura:

Nosso princípio para decidir o que a Bíblia significa é às vezes determinado


por nossa cosmovisão. Alguns cristãos, por exemplo, acham que o
significado de ―os pobres‖ em Lucas 4:18, apenas se refere a todos os
homens como pobres de espírito. Porém não podemos interpretar a Bíblia
num vazio. Ao passo que, por princípio, devemos começar pela Bíblia, por
uma questão de ponto de partida cronológico, nossa interpretação terá início
em nossa situação. Para nós, essa situação é de pobreza e injustiça. 415

Nos meios mais conservadores do protestantismo, as principais críticas à


Teologia da Libertação diziam respeito ao uso do marxismo como instrumental
para entender tanto a realidade social quanto os textos bíblicos, e tudo o que era
identificado como uma derivação disso: a práxis como ponto de partida para a
leitura da revelação, a doutrina do pecado como mal estrutural e não individual, a
libertação social e política da opressão como símbolo do Reino de Deus, a
ausência de evangelização para a conversão individual e a participação dos
cristãos em movimentos revolucionários ou partidos de esquerda. Parte
significativa deste conjunto de críticas aparece no livro Teologia da Libertação,
escrito por Harvie Conn e Richard Sturz, publicado no Brasil pela editora
evangélica Mundo Cristão em 1984:

as Escrituras não têm quase nenhum lugar na Teologia da Libertação;


tampouco os documentos históricos dos concílios ecumênicos dos primeiros
séculos do cristianismo. A Bíblia, como no caso de muitos evangélicos, não
passa de um saco de tesouros do qual vão tirando aqui e ali para comprovar
aquilo que dizem, mas que de fato, já vem de outra fonte. Na Teologia da
Libertação a Bíblia tem um lugar mínimo. Em seu lugar fica a voz viva da
comunidade atual, a práxis da igreja.416

Um segmento protestante acusava o outro de usar a Bíblia como disfarce de


interesses alheios à fé. O crescimento do movimento de Missão Integral na
segunda metade dos anos 1980 e a inserção deste segmento no final da década e
415
ABU EDITORA. O Evangelho e o marxista: como comunicar o Evangelho aos marxistas. São
Paulo-SP, 1983, p. 18.
416
CONN, Harvie; & STURZ, Richard. Teologia da Libertação: suas raízes, seus proponentes e
seu significado hoje em dia. São Paulo: Mundo Cristão, 1984, p. 154. Harvie Conn era catedrático
de missões e apologética no Seminário Teológico de Westminster, e Richard Sturz, missionário
norte-americano que atuava há três décadas no Brasil, da Divisão de Estudos Histórico-
Sistemáticos e bibliotecário da Faculdade Batista de São Paulo.
177

início dos anos 1990 no campo político das esquerdas, colocou em novos termos a
atribuição de seletividade na leitura, uso do instrumental marxista para interpretar
os textos, conceitos formulados a partir de elementos do texto ou externos a ele, e
principalmente o tema da autoridade da Bíblia.
178

Capítulo IV
O feminismo cristão latino-americano: saber teológico e poder
eclesiástico

Não podemos esquecer também que o


poder feminino ainda não chegou às
instâncias superiores de nossa estrutura
religiosa cristã. Ainda não se tem o poder
de decidir, e como não há paridade,
certamente será com dificuldade que
teremos uma igreja com ―rosto feminino‖.
Maria do Carmo M. Lima. Teóloga
metodista417

A Teologia Feminista e a Década Ecumênica

Como bem analisou Maria Paula Araújo, as novas esquerdas pós-1968


foram experimentos de tensão e aproximação entre o marxismo e os movimentos
de minorias, entre debates sobre a exploração de classe e as opressões identitárias
(étnicas, de gênero e de sexualidade), entre horizontes de totalidade e experiências
de especificidade.418 O progressismo religioso, profundamente articulado durante
a ditadura com as ideologias de esquerda ou com os movimentos de oposição ao
regime, também incorporou novos sujeitos e abordagens, alargando o conceito de
―pobre‖ e ―oprimido‖ para além dos referenciais de classe.
Diferentes formas de engajamento religioso incorporaram, heterogênea e
assimetricamente, tanto as tentativas de renovar o marxismo quanto de superá-lo.
A ortodoxia católica e protestante foi relida a partir dos ―de baixo‖: leigos, pobres,
mulheres, hereges, colonizados; e do momento histórico: regimes autoritários,
lutas anticolonialistas, movimentos revolucionários e de minorias. Neste
cristianismo, as noções de experiência, autenticidade e especificidade – de que
lugar se vivencia a fé e se produz teologia – transformou a hermenêutica dos
textos bíblicos e as propostas eclesiológicas numa arena teórica da luta política.
A Teologia da Libertação abriu caminhos para que outras opressões que não
as de classe fossem pensadas teologicamente, visando uma mudança no modo de

417
CONTEXTO PASTORAL. LIMA, Maria do Carmo M. A dificuldade de uma igreja com rosto
feminino. Ano VI, nº 35, novembro/dezembro de 1996, p. 7.
418
ARAÚJO, Maria Paula. A utopia f ragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 9-12.
179

ser igreja em relação aos diferentes sujeitos oprimidos e marginalizados pelo


status quo social, religioso e político. Ao mesmo tempo, foi confrontada em seus
limites nos campos do comportamento, dos costumes e da moralidade, sobretudo
em temas relacionados ao corpo e à sexualidade.
No Brasil, assim como aconteceu nas esquerdas seculares, quem iniciou a
abertura para as novas demandas teológicas e políticas na religião foram os
movimentos de mulheres e o feminismo. A revista Paz & Terra, que contou com
Waldo César, Jovelino Ramos e outros protestantes ecumênicos na sua criação e
edição, publicou em 1967 o artigo Mulheres, a revolução mais longa, da feminista
Juliet Mitchel (1940-). Como a revista era uma publicação àquela altura conhecida
dos círculos intelectuais e militantes das esquerdas, pode ter contribuído para
familiarizar o público leitor com o conjunto de temas apresentados: 1) as mulheres
na teoria socialista, particularmente na obra de Engels, 2) o debate inaugurado por
Simone de Beauvoir (1908-1986) em O segundo sexo (1949), 3) as pautas
feministas nos campos da produção econômica, reprodução biológica,
socialização e sexualidade.
A referência acima é importante por dois motivos. Os depoimentos de
militantes das esquerdas clandestinas nos anos 1960 e 1970 mostraram a
marginalização do debate sobre a condição da mulher no seio das esquerdas e as
dificuldades das relações decorrentes da reprodução do machismo entre mulheres
e homens militantes.419 E também porque Juliet Mitchel foi incorporada como
referência duas décadas depois por mulheres do protestantismo em suas
elaborações teológicas sobre o papel da mulher na igreja.
A principal referência para a o surgimento de uma Teologia Feminista
remonta à primeira onda do feminismo europeu e norte-americano, no final do
século XIX. Algumas militantes sufragistas, que lutaram pela participação das
mulheres na vida pública, incluindo o direito ao voto, eram protestantes. Para
estas, uma crítica exclusivamente política da exclusão dos direitos sociais das
mulheres era limitada se não se fizesse acompanhar de uma crítica à matriz
cultural da opressão feminina no ocidente: a Bíblia.Lideradas por Elizabeth

419
Isso aparece nos depoimentos do livro: NASCIMENTO, Ingrid Faria Gianordoli. Et ali.
Mulheres e militância: encontro e confrontos durante a Ditadura Militar. Belo Horizonte: UFMG,
2012; e na análise da imprensa feminista no livro: TELES, Amelinha; LEITE, Rosalina Santa
Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil
(1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013.
180

Stanton (1815-1902), as sufragistas protestantes produziram uma contundente


crítica teológica ao patriarcalismo bíblico e aos mitos cristãos: The Woman's Bible
(a Bíblia da Mulher), publicada em 1898.420
Para dar um exemplo da crítica empreendida por estas teólogas, Eva foi
interpretada não como a responsável por fazer o homem pecar, mas como o
arquétipo da mulher que torna a civilização possível, uma vez que ela foi quem
provou o fruto do conhecimento do bem e do mal. Além disso, são denunciadas
no comentário ao livro de Gêneses, escrito por Elizabeth Stanton, a opressão que
Deus infligiu às mulheres, como a sujeição do desejo próprio ao marido e a
gravidez como um castigo e sinal de submissão.421
Para muitas sufragistas não religiosas aquilo pareceu uma perda de tempo,
um desvio das pautas centrais da luta feminista. Oposição que outras feministas
cristãs enfrentariam ao tentar mostrar a importância não apenas da crítica ao
patriarcalismo do texto sagrado, mas também do resgate de experiências
femininas silenciadas ou marginalizadas na escrita e na interpretação da Bíblia. A
teóloga católica e alemã, especialista em Novo Testamento, Elizabeth Fiorenza
(1938-), escreveu quase um século depois outra obra que se tornaria
paradigmática para a Teologia Feminista: In memory of Her (1988), publicada no
Brasil com o título As origens cristãs a partir da mulher, na qual, como o nome
sugere, tentava reconstituir o papel das mulheres nas primeiras comunidades
cristãs e como a igreja se tornou uma estrutura verticalizada e patriarcal. Houve
muitas produções da Teologia Feminista entre A Bíblia da Mulher e As origens
cristãs a partir da mulher, mas esta última pode exemplificar algumas das
dificuldades que a Teologia Feminista enfrentou no campo religioso e político.

420
Na interpretação de Bianca Almeida: ―Para a biblista norte-americana, o voto feminino era
importante, mas, se a pedra angular da moral norte-americana não fosse tocada, revisitada em seus
conceitos ou até mesmo desconstruída sob muitos aspectos, ainda que seus direitos civis
estivessem assegurados, a mulher continuaria sendo percebida como um ser de segunda categoria.
Era necessário um resgate da capacidade da mulher de gerir sozinha sua existência, de fazer
escolhas e se responsabilizar por elas. Embora também lutasse pelo voto feminino, Elizabeth
Stantone suas colaboradoras demonstraram uma visão mais ampla do problema da submissão e
inferioridade feminina impostas pelas instituições civis e eclesiásticas‖. ALMEIDA, Bianca
Daéb‘s Seixas. Uma história das mulheres batistas soteropolitanas. Dissertação (Mestrado em
História Social) – UFBA, Salvador, 2006, p. 148.
421
STANTON, Elizabeth. The woman's Bible. Boston: Northeastern University, 1993. Até o
presente momento não há edição em português desta obra. O livro A Bíblia da mulher atualmente
em circulação no mercado editorial evangélico nada tem a ver com a publicação do século XIX e,
ao contrário, reforça os papéis de gênero da pregação religiosa convencional.
181

As críticas internas, de teólogos e biblistas que a acusavam de parcialidade,


foram acompanhadas de críticas externas, de feministas que a acusavam de querer
salvar aspectos da religião cristã: ―Se foi difícil remover os receios intelectuais de
minhas colegas na faculdade, achei bem mais difícil defender meus interesses
bíblicos das objeções feministas‖.422 Criticando as ―feministas pós-bíblicas‖ a
autora escreveu:

No entanto, essa posição feminista pós-bíblica corre o risco de se tornar a-


histórica e apolítica. Com grande rapidez concebe que as mulheres não têm
história autêntica dentro da religião bíblica e, com grande facilidade, renuncia
à herança bíblica feminista das mulheres. Essa posição não pode fazer justiça
às experiências positivas de mulheres contemporâneas no seio da religião
bíblica. Deve ou negligenciar a influência da religião bíblica nas mulheres de
hoje ou declarar a adesão das mulheres à religião bíblica como ―falsa
consciência‖. Na medida em que a religião bíblica continua a ter influência
ainda hoje, uma transformação feminista cultural e social do ocidente deve
levar em conta a história bíblica e o impacto histórico da tradição bíblica. 423

Reconhecendo a importância da Bíblia da Mulher organizada por Elizabeth


Stanton e legitimando seu próprio empreendimento de construir uma
hermenêutica das origens cristãs a partir da mulher, a teóloga alemã concluiu:

Se a história em geral e a história cristã primitiva em particular são um dos


caminhos que a cultura e a religião androcêntricas usaram para definir as
mulheres, então ela precisa se tornar um objeto importante para a análise
feminista. Semelhante análise da história e da Bíblia deve revelar
criticamente a história patriarcal no que ela é em si e, ao mesmo tempo,
reconstruir a história das mulheres no cristianismo primitivo como desafio ao
patriarcado histórico religioso.424

No Brasil, a Teologia Feminista teve alguns ensaios no seio da Teologia da


Libertação na primeira metade dos anos 1970, mas acompanhou o movimento de
mulheres e a organização dos primeiros grupos e publicações feministas. A
segunda onda do feminismo, começou a se desenvolver no Brasil durante a
distensão (1974-1978) e se tornou mais organizado durante a abertura política
(1979-1985), tornando-se, inclusive, protagonista nas lutas pela anistia, em
movimentos contra a carestia, além das reinvindicações por direitos iguais para

422
FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher – uma nova
hermenêutica. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p. 14.
423
FIORENZA, Elisabeth Schüssler.1992, p. 15, 16.
424
FIORENZA, Elisabeth Schüssler.1992, p. 17.
182

mulheres e homens, tanto na legislação social quanto na esfera política e


cultural.425
Um marco para a organização dos primeiros grupos foi a realização da
Conferência da ONU sobre a Mulher, em 1975, consagrado pela entidade como
Ano Internacional das Mulheres, quando também foi reconhecido oficialmente o 8
de Março como o Dia Internacional da Mulher e inaugurada a Década da Mulher.
Ano que viu surgir o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Tereza
Zerbini (1928-2015) e protagonista nas campanhas nacionais pela ―Anistia ampla,
geral e irrestrita‖ até 1979. Na esteira da formação de grupos de estudo, pesquisa e
ação política, sob influência do avanço dos movimentos de mulheres (pela
Anistia, contra a carestia e de combate à violência), surgiram as primeiras
publicações da imprensa feminista no Brasil: os jornais Brasil-Mulher(1975), Nós
Mulheres(1976) e Mulherio(1981).426
Se a Década da Mulher, consagrada pela ONU entre 1975 e 1985, foi um
marco para o feminismo laico, a inauguração da Década Ecumênica de
Solidariedade das Igrejas com as Mulheres em 1988, proposta pela subunidade
Mulheres na Igreja e na Sociedade do CMI, impulsionou o debate e as iniciativas
do feminismo cristão. Os objetivos da Década Ecumênica (1988-1998) eram:

 Capacitar as mulheres para que se oponham às estruturas opressoras que


existem na comunidade mundial, em seus países e em suas igrejas.
 Afirmar as contribuições decisivas das mulheres em suas igrejas e
comunidades, compartilhando o trabalho de direção e tomada de decisões, a
reflexão teológica e a espiritualidade.
 Tornar conhecidas as perspectivas e ações das mulheres em esforços e
luta pela justiça, a paz e a integridade da criação.
 Capacitar as igrejas para que se liberem do racismo, do sexismo, do
classismo, e para que abandonem as práticas discriminatórias para com as
mulheres.
 Estimular as igrejas para que empreendam atividades de solidariedade
com as mulheres.427

425
PINTO, Céli. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2013, p. 41-89.
Na primeira onda do feminismo no Brasil, se destacaram as mulheres do movimento anarquista,
jornalistas e intelectuais que publicavam na imprensa, ordinária ou feminina, e a figura de Ana
Montenegro (1915-2006) no Partido Comunista Brasileiro (PCB), a primeira mulher a ser exilada
após o golpe de 1964.
426
ARAÚJO, Maria Paula. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 159-170.
427
(CMI, Subunidade Mulheres na Igreja e na Sociedade). Década Ecumênica de Solidariedade
das Igrejas com as Mulheres. Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), Porto Alegre, 1993,
p. 3.
183

A intenção do CMI era promover ações de emancipação da mulher na igreja


e na sociedade, reconhecendo e incentivando a contribuição feminina na
hermenêutica bíblica, na elaboração teológica, no exercício dos ministérios
eclesiásticos e da docência, na criação de modelos comunitários de eclesiologia e
espiritualidade. De acordo com Sibyla Baeske:

Um passo decisivo para mudar o rumo da situação da mulher nas igrejas foi a
decisão da composição igualitária entre homens e mulheres, nos órgãos
diretivos e consultivos do próprio Conselho Mundial de Igrejas,
incentivando-se o mesmo nas igrejas filiadas. Em 1983, na 6ª Assembleia
(Vancouver, Canadá), metade dos oradores e moderadores eram mulheres e
as delegadas constituíam um terço do total dos participantes. Naquela ocasião
foi aprovada a proposta de solicitação ao Movimento Ecumênico de
considerar as preocupações e perspectivas das mulheres em todos os
departamentos e programas. Assim, cada iniciativa humanitária, cada ação
social, cada pesquisa teológica, cada curso de capacitação deveria sempre
incluir a pergunta: a questão feminina foi contemplada? Há mulheres
participando? Esta medida colocou novo critério para a totalidade da vida das
igrejas, enfrentando a tendência de restringir as questões femininas apenas
aos departamentos femininos.428

Foram formadas no Brasil uma Comissão Nacional, constituída a partir das


igrejas filiadas ao CONIC, e comissões regionais, que promoveram seminários,
encontros, painéis e celebrações ecumênicas. A Comissão Internacional ligada ao
CMI também realizou visitas às igrejas no Brasil para avaliar o andamento da
campanha. Houve ainda representação das Comissões em eventos religiosos e
seculares sobre a mulher e incentivo às igrejas para que pautassem os objetivos da
Década nos encontros de mulheres de suas respectivas denominações.429 Alguns
desses objetivos foram perseguidos pelo Cristianismo da Libertação, enquanto a
maioria deles foi timidamente contemplada no movimento de Missão Integral.

428
BAESKE, Sibyla (Org.). Mulheres desafiam as igrejas cristãs: década ecumênica de
solidariedade das igrejas com a mulher (1988-1998). Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 16. Em seu
livro, Sibyla Baeske O livro rememora o período através do depoimento de algumas das
participantes e organizadoras das atividades no Brasil.
429
Entre os eventos em que houve a representação da Comissão: Encontro Mundial de Mulheres
Episcopais Anglicanas (1992), Encontros Nacionais de Mulheres da IPU (1993, 1995, 1996,
1997), Consulta sobre Mulheres e Homens na Tradição Reformada (1997), 1ª Jornada Ecumênica
(1994), Encontro Ecumênico de Mulheres (1996), Foro de Mulheres da América Latina e Caribe
(1996), Encontro Internacional de Solidariedade entre as Mulheres (1998). (BAESKE, 2001, p. 30-
31).
184

Feminismo e libertação: vozes de uma teologia em construção

Significativo das possibilidades abertas pela Teologia da Libertação, foi a


coletânea de entrevistas organizada por Elsa Tamez430 com intelectuais
masculinos e femininos da teologia latino-americana intitulada Teólogos da
libertação falam sobre a mulher (1988), seguido por As mulheres tomam a
palavra (1989).431 A publicação coincidia com a inauguração da Década
Ecumênica e alguns temas discutidos nas entrevistas contemplavam os objetivos
propostos pelo CMI. No primeiro volume, em que os homens foram entrevistados,
três teólogas (Ivone Gebara, Maria Clara Bingemer e Raquel Rodriguez) foram
convidadas a debater os temas, enquanto no segundo, em que as mulheres foram
entrevistadas, o debatedor foi um teólogo, Jon Sobrino. Uma das entrevistadas no
segundo volume, a teóloga metodista argentina Nelly Ritchie, ao comentar o
primeiro volume, manifestou uma preocupação que mostrava o estágio da
caminhada do feminismo cristão no continente:

Por outro lado, preocupa-me o fato de que talvez corramos o risco de querer
buscar nos grandes teólogos da libertação – ou seja, nossos irmãos que têm
muita fama em nível latino-americano e mundial – uma espécie de respaldo
para o nosso trabalho. Não sei como as outras mulheres receberam o livro,
mas isso eu senti hoje ao relê-lo. E me parece perigoso, porque, mesmo que
um, dois ou vários teólogos da libertação tivessem dito que a tarefa teológica
a partir da perspectiva da mulher não é importante, de qualquer maneira a
nossa tomada de consciência aumentou de tal forma que estamos convencidas
de ter uma contribuição a dar. Vou lhe dizer uma coisa: descobri, em certos
momentos, que me alegrava que Gustavo, Leonardo, Frei Betto ou Miguez
dissessem algo que me respaldasse no meu trabalho. Nesse sentido, vê-se um
pouco a solidão em que a mulher trabalha, pois muitas vezes ela não tem esse
respaldo dos que trabalham com ela, isto é, dos seus companheiros homens
no trabalho concreto; vê-se também que às vezes sentimos a necessidade de
ter essa ―justificativa‖ importante para tornar mais válida a nossa tarefa.432

Na apresentação do segundo volume, Elsa Tamez destacou quatro pontos


que evidenciavam os avanços ―em termos de clareza, dentro de um consenso
430
Elsa Tamez, teóloga metodista e costarriquenha, já havia se notabilizado, no campo protestante,
como um dos principais nomes da Teologia da Libertação latino-americana, com publicações
como A Bíblia dos oprimidos (1979) e Santiago: Lectura latinoamericana de la Epístola (1985),
além de colaborar com as publicações do Movimento Bíblico Latino-americano, com o
Departamento Ecumênico de Investigações (DEI) e o Seminário Bíblico Latinoamericano (SBL),
ambos na Costa Rica.
431
As datas indicadas no corpo do texto são das publicações originais pelo Departamento
Ecumênico de Investigações (DEI) da Costa Rica. As edições brasileiras foram publicadas,
respectivamente, em 1989 e 1995.
432
RITCHIE, Nelly. Apud. TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições
Loyola, 1995, p. 81.
185

mínimo‖ da Teologia Feminista da Libertação latino-americana: 1) A


insuficiência do conceito de ―classe‖ para uma análise da condição da mulher, 2)
A necessidade de estudar as teorias feministas, 3) A defesa da ordenação feminina
aos ministérios eclesiásticos para superar estruturas de poder patriarcais, 4) Uma
definição teórica e metodológica sobre ―a perspectiva da mulher‖ na teologia, na
hermenêutica bíblica e na pastoral.
Se nos anos 1970, ―os movimentos de novo tipo‖ no Brasil (feminista,
negro, gay, etc.) não romperam com as esquerdas tradicionais e com o marxismo
em razão de um enfrentamento comum à Ditadura Militar, ainda que desde o
início as tensões e os conflitos tenham aparecido, após o fim do regime e com a
fragmentação institucional das oposições e das esquerdas, se esboçou uma maior
autonomia dessas militâncias. Persistiu, porém, a tentativa ―de incorporar à
cultura marxista as novas questões que estavam sendo colocadas‖,433 o que
apareceu também no campo da Teologia da Libertação. A católica Maria José R.
Nuñes, uma das teólogas entrevistadas por Elsa Tamez, fez referência à ―assunção
da subjetividade‖ como metodologia de análise da condição da mulher, citando
como referência uma teórica marxista do feminismo:

Lembrei-me de uma cientista brasileira, socióloga marxista, muito rigorosa


em seu trabalho, que estuda a problemática da mulher; ela se chama Heleieth
Safiotti. No final de um dos seus artigos, na bibliografia, além dos livros que
utilizou, ela põe outra fonte: ―vivência pessoal‖. Creio que a assunção da
subjetividade, do cotidiano, na produção científica, é um desafio à ciência.434

A teórica citada por Maria José R. Nuñes defendeu em 1967 a tese de livre
docência intitulada A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, dando
início a uma produção que somou 12 livros – até sua morte em 2010, aos 76 anos
– sobre a condição da mulher, abordando a dominação patriarcal sempre com
recorte de classe: operárias, trabalhadoras domésticas, trabalhadoras rurais.435 Mas
se houve o reconhecimento da contribuição marxista na abordagem da condição
feminina, também houve crítica à subordinação do tema à análise de classe,

433
ARAÚJO, Maria Paula. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 19.
434
NUÑES, Maria Joé R. apud. TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições
Loyola, 1995, p. 39.
435
A última edição do livro é: SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e
realidade. 3ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
186

conforme a depoimento de outra teóloga entrevistada, a católica Carmem Lora,


sobre o primeiro volume da coletânea com os teólogos:

Creio que há uma perspectiva – que me parece muito valiosa e que


compartilho – que é a preocupação de formular o tema da mulher a partir do
que é a experiência da mulher pobre. Pessoalmente, creio que o enfoque é
fundamental no nosso continente. Mas às vezes, de repente, ao ler o livro,
senti que era uma forma de evitar uma pergunta mais de fundo sobre o tema
do gênero total. Evidentemente, não julgo que seja possível falar da mulher
sem um posicionamento referente ao setor social de que se está falando na
América Latina. No entanto, creio que a afirmação muito rápida, a passagem
muito repentina à situação da mulher pobre, pode nos afastar um pouco do
tema do que constitui o drama de toda pessoa oprimida. Em alguns casos,
observo uma compreensão um pouco fechada, uma maneira muito abreviada
de exprimir a diferença entre o que é ser ou nascer mulher e o que pode
significar já a tomada de consciência dessa mulher, ou a participação da
mulher num determinado processo.436

Embora o recorte escolhido prejudique uma visão mais global do feminismo


cristão, a discussão dos depoimentos feita neste trabalho privilegiou teólogos e
teólogas protestantes, uma vez que o objetivo principal é perceber se o
Protestantismo Ecumênico incorporou o feminismo à construção de um novo jeito
de ser igreja ou de que forma essa agenda foi incorporada às formas de
engajamento político protestante. Em alguns momentos fiz menção às
perspectivas católicas com o objetivo de apontar como as diferenças religiosas
interferiam nas apropriações do feminismo e nas elaborações teológicas.
Começando pelos intelectuais masculinos, ao responder sobre qual era a situação
da mulher nas igrejas protestantes, Rubem Alves declarou:

É uma coisa terrível, no caso das igrejas protestantes, especialmente das


igrejas reformadas, a forma como a mulher – não quero usar a palavra
dessexualizada – foi levada a perder a sensualidade no sentido mais amplo,
em virtude de uma ideologia religiosa. De modo que é uma mulher muito
empobrecida como mulher. É que nossa ideologia religiosa é uma ideologia
repressora do sexo, e a mulher não tem licença para ser mulher. É a mulher
que se define como mãe, e não só como mãe, mas também como esposa. [...]
Então você sempre vê a ideia de uma companheira, de um complemento. A
ideia da mulher como entidade, bela em si mesma, autônoma, dona do seu
corpo e de sua vida é algo insólito. Até mesmo a sociedade das mulheres, na
Igreja Presbiteriana pelo menos, chama-se Sociedade Auxiliadora Feminina.
Na igreja, quem é a mulher? É a mulher que faz o almoço quando há visitas.
A mulher está sempre ali, ajudando em alguma coisa. Mas está ausente.437

436
LORA, Carmem. apud. TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições
Loyola, 1995, p. 28, 29.
437
ALVES, Rubem. apud. TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São
Paulo: Edições Loyola, 1989, p. 82.
187

O empobrecimento erótico da mulher nas igrejas protestantes, denunciada


no trecho acima, vinculava-se ao projeto de Rubem Alves de uma teologia que
contemplasse o lúdico, o poético, o erotismo e a necessidade de beleza, como
caminhos de libertação. De acordo com Leopoldo Cervantes-Ortiz, Rubem Alves
foi um dos autores que mais desenvolveu essa perspectiva na teologia latino-
americana, desagradando a ortodoxia da Teologia da Libertação, crítica das
estruturas sociais, mas reprodutora do status quo da linguagem acadêmica.438 Por
isso mesmo, Elsa Tamez perguntou se ele refletira sobre as possibilidades que
essa teologia do erotismo abria para a perspectiva da mulher, ao que ele
respondeu: ―não sei se isso afeta as mulheres, mas diria que minha teologia é
afetada pelas mulheres‖.439
Num ponto em particular, a entrevista de Rubem Alves polemizou com um
aspecto importante para o feminismo de então, fosse secular ou cristão: a
linguagem inclusiva. Mesmo reconhecendo que ―há toda uma série de
mecanismos nos quais nos damos conta de que a mulher está excluída da
linguagem‖ e que por isso as mulheres ―começaram a insistir na assim chamada
linguagem inclusiva‖, o que na religião significava que ―Quando se fala de Deus
que seja Ele/Ela. Que a mulher nunca fique excluída‖, Rubem Alves criticou o
uso dessa linguagem porque, segundo ele, ―para incluir, ela esvazia conteúdos
sensuais‖. Resumindo sua posição neste ponto, argumentou:

Creio que a linguagem teológica é uma linguagem que deve exprimir o pulsar
dos desejos. Eu diria: às vezes eu desejo uma mulher, e quando o meu desejo
é por uma mulher, então Deus é uma mulher, somente mulher, não há porque
pôr homem no meio. Às vezes meu desejo é por um homem – um amigo, um
filho – e quando meu desejo é por um homem, é um homem. Não há porque
colocar mulher no meio. Às vezes meu desejo não é nem por uma mulher,
nem por um homem, mas é por uma árvore, pela lua, pelo mar, pelo silêncio,
pelo fogo, pela água. Quando meu desejo é por essas coisas, então não tem de
ser nem homem, nem mulher. O que quero dizer é que o nome de Deus é um
mistério, no qual cabe o mundo inteiro. E como eu não posso dizer esse
mundo inteiro dentro desse mistério, a única coisa que posso dizer é o nome
do desejo que sinto nesse momento. [...] Creio que essa linguagem inclusiva é
uma linguagem de generalidades, pois quando você tem ele e ela juntos, você
não tem nem ele, nem ela.440

438
CERVANTES-ORTIZ, Leopoldo. A teologia de Rubem Alves: poesia, brincadeira, erotismo.
Trad. Eleonora Frenkel Barreto. Campinas-SP: Papirus, 2005, p. 27-30.
439
ALVES, Rubem. apud. TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São
Paulo: Edições Loyola, 1989, p. 87.
440
ALVES, Rubem. apud. TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São
Paulo: Edições Loyola, 1989, p. 85.
188

No segundo volume, Nancy Cardoso Pereira, teóloga metodista e brasileira,


discutiu o problema da linguagem em outros termos. Para ela o importante não era
desenvolver uma linguagem adequada para que a mulher fosse incluída, mas
discutir o lugar de fala, por isso: ―A questão da linguagem então deixa de ser
sobre a viabilidade ou não, sobre se é adequada ou não, se soa bem o discurso
inclusivo sobre Deus ou não‖. A pergunta fundamental deveria ser:

se é possível falar de Deus a partir das exigências do cotidiano, se é possível


falar de Deus a partir das exigências de sobrevivência do corpo, se é possível
falar de Deus a partir da vivência da sexualidade, se é possível falar de Deus
a partir da maternidade, se é possível falar de Deus a partir da desordem, da
submissão e da rotina do cotidiano.441

Isso evitaria a construção de uma linguagem feminina paralela e


fundamentaria a desconstrução de ―uma linguagem exclusiva, fundada na
experiência masculina do público, do político, da cidade, que só pode chamar
Deus de Senhor, de Pai, Rei, Poderoso, Amantíssimo, Excelso‖442. Não era uma
simples contraposição entre o público e o privado. Na abordagem de Nancy
Cardoso Pereira, era o desvelamento da sustentação da ordem pública através da
dominação na ordem privada. Por isso ela questionou, mais do que as demais
entrevistas, a esfera familiar, o casamento e a maternidade, e criticou a
secundarização da ―revolução do cotidiano‖ em detrimento de uma ―prioritária
libertação econômica‖:

É no cotidiano da vida doméstica que a mulher é violentada


sistematicamente. É na privacidade do lar que a mulher é despojada do poder
e mantida longe dele. É na intimidade da vida familiar que se tecem os
mecanismos de eternização da subjugação. As produções teológicas e muitas
práticas pastorais movidas pela Teologia da Libertação se mostram aptas e
muitas vezes radicais na denúncia necessária e urgente das formas de
opressão e marginalização da mulher, especialmente da mulher pobre latino-
americana. Mas elas se revelam lentas e cuidadosas ao extremo com
referência à suspeita e à denúncia da família como instituição opressora e
repressora.443

441
PEREIRA, Nancy Cardoso. Aapud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo:
Edições Loyola, 1995, p. 103.
442
PEREIRA, Nancy Cardoso. apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo:
Edições Loyola, 1995, p. 103.
443
PEREIRA, Nancy Cardoso. apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo:
Edições Loyola, 1995, p. 101.
189

Para a teóloga metodista, essa marginalização do cotidiano configurava um


desvio, porque não enfrentava alguns debates tão mais difíceis quanto mais
concretos: ―Houve mais facilidade na crítica e subversão à questão do Estado. Foi
mais fácil propor outro estatuto de propriedade. Foi mais tranquila e unânime a
reflexão sobre outras relações possíveis entre capital e trabalho.‖444. Abordagem
semelhante aparecia na imprensa feminista, como no editorial do jornal Nós
Mulheres:

Se fazer política significa deixar que o ―individual‖ se mantenha


fragmentado, separado do ―social‖ e esquecer que somos homens, mulheres,
velhos, crianças, negros, brancos ou índios com problemas específicos dessa
diversidade, então, certamente, resultará daí apenas uma mudança parcial,
nunca uma verdadeira revolução.445

Segundo Nancy Cardoso Pereira, isso escamoteava os limites que essa


concepção, que adiava as transformações do cotidiano para depois da libertação
econômica, impunha às lutas sociais:

Ela tenta encobrir o desserviço que prestamos à comunidade de homens e


mulheres que se organizam na luta de libertação do continente quando
continuamos reforçando e mantendo intacta a família ou quando guardamos
absoluto silêncio sobre o tema. 446

No campo hermenêutico a grande pergunta foi sobre as possibilidades que


uma leitura ―na perspectiva da mulher‖ poderia abrir para a interpretação da
Bíblia e para as lutas sociais. O teólogo batista Jorge Pixley sugeriu que uma
leitura da Bíblia a partir da libertação dos oprimidos não pode aceitar textos
opressores como normativos. Não se tratava, porém, de fazer uma seleção de
textos libertadores, mas de pensar o conjunto dos textos a partir de ―certos
momentos que são germinais,que dão tudo o mais na Bíblia, ou seja, sem os quais
a Bíblia não existiria‖.447 Para Jorge Pixley, esses momentos seriam o Êxodo e a
vida de Jesus Cristo:

444
PEREIRA, Nancy Cardoso. apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo:
Edições Loyola, 1995, p. 101-102.
445
NÓS MULHERES: Março de 1978. apud ARAÚJO, Maria Paula. A utopia fragmentada: as
novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 30.
446
PEREIRA, Nancy Cardoso apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo:
Edições Loyola, 1995, p. 102.
447
PIXLEY, Jorge apud TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São Paulo:
Edições Loyola, 1989, p. 35.
190

Qualquer texto bíblico deve ser lido a partir do Deus dos pobres, o Deus da
libertação, e se é dito que Deus é outra coisa como se diz em algumas partes
[...] isso deve ser medido pela norma do Êxodo. No Novo Testamento isso se
aplicaria a algumas passagens das epístolas que não parecem refletir a
pregação do reino de Deus, do Jesus dos evangelhos sinópticos. Parece-me
que Jesus, a pregação do reino nos evangelhos sinópticos, tem de ser a norma
que guia a leitura e a interpretação de todos os demais. 448

Um exemplo prático citado pelo teólogo batista foi sua rejeição ao texto de
Efésios que ordena que as mulheres sejam submissas aos maridos. Para o autor,
um texto que não pode ser aceito como normativo, porque: ―É um texto que me
parece irrecuperável, nunca trabalhei, mas quando vou a um casamento e o escuto,
fico chocado; eu simplesmente o evitaria numa cerimônia matrimonial‖, porque ―é
uma forma de despojar a mulher de sua dignidade dizer-lhe que em qualquer caso,
deve submeter-se ao marido‖.449Na sequência, o autor criticou o modelo de
matrimônio que esse texto alimenta, opressor para as mulheres e limitador
também da humanidade do homem. Milton Schwantes, biblista luterano e
brasileiro, propôs uma pergunta fundamental para pensar a leitura a partir da
mulher: questionar o pressuposto de que a Bíblia foi escrita por homens,
principalmente levando-se em conta o modo de produção agrário tributário,
predominante em boa parte da Bíblia. Em resumo:

Na Escritura há textos que vem da voz da mulher; talvez tenham sido escritos
por um homem, isto é bem possível, mas tem toda a manifestação do
interesse e da cultura da mulher. Creio que esta pesquisa não foi feita até hoje
porque não nos fizemos a pergunta se no modo de produção da Bíblia o texto
não pode provir da mulher. Eu creio que há muitos textos que vêm da mulher
[...] e quando falo em escrito não me refiro apenas à questão técnica de
escrever, mas à questão intelectual; porque no mundo antigo, a escrita não é
idêntica à inteligência.450

As diferenças entre as abordagens católicas e protestantes ficaram evidentes


por causa do lugar que a Bíblia ocupa em ambas as tradições e do estágio de
disputa do poder eclesiástico em cada uma delas. O problema da linguagem e do
cotidiano, apontado por Nancy Cardoso Pereira, significava para o feminismo
cristão, um desafio a três dimensões fundamentais do cristianismo: a

448
PIXLEY, Jorge apud TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São Paulo:
Edições Loyola, 1989, p. 36.
449
PIXLEY, Jorge apud TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São Paulo:
Edições Loyola, 1989, p. 34.
450
SCHWANTES, Milton apud TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São
Paulo: Edições Loyola, 1989, p. 103-104.
191

hermenêutica bíblica, o poder eclesiástico e a mística devocional. E, nestes


pontos, as diferenças entre católicas e protestantes apareceram com mais
frequência.

“As peculiaridades das protestantes”: Bíblia, pastorado e


espiritualidade

Sobre a hermenêutica bíblica, uma teóloga que ficou de fora da coletânea


por impossibilidade de ser entrevistada, a metodista argentina Beatriz Melano
Couch, escreveu em 1973 o livro La mujer y la Iglesia, no qual analisou a mulher
na tradição judaico-cristã, o mito da mulher como portadora do pecado, o mito da
inferioridade feminina e da determinação biológica do ser mulher, a relação de
Jesus e da igreja primitiva com as mulheres e, por fim, as implicações políticas,
culturais e eclesiásticas dessas análises. Utilizando o conceito de ―nova
humanidade em Cristo‖ como uma chave de leitura para os textos bíblicos sobre a
igreja, a autora contestou a legitimidade daqueles que se utilizavam da autoridade
do apóstolo Paulo para reproduzir a dominação masculina:

Lo certo es que Pablo no menoscambó el ministerio femenino, muy al


contrario, lo esalzó, como ya hemos mencionado; no podemos tomar, por lo
tanto, estos dos versículos y aislarlos de todo el contenido de las demás
epístolas paulinas y com ellos fundamentar tesis sobre un ministerio único y
exclusivamente masculino.451

Um pouco na contramão da maioria das teólogas feministas que atribuíam o


patriarcalismo da igreja às Epístolas de Paulo, para Beatriz Melano Couch, os
versículos que eram usados para legitimar a exclusão das mulheres nos
ministérios eclesiásticos eram insuficientes e secundários em relação à concepção
de humanidade e de igreja expressa nos mesmos textos em que tais versículos
estavam inseridos. Como proposta final, a teóloga argentina defendeu uma
coparticipação de homens e mulheres em todos os ministérios, incluindo o
pastoral, tornando a igreja mais capaz de falar com relevância aos problemas da
época.452 Voltando às entrevistas, a pastora da Igreja Presbiteriana em Cuba,

451
COUCH, Beatriz Melano. La Mujer y La Iglesia. Buenos Aires: El Escudo, 1973, p. 43.
452
―un ministerio que incluya no sólo un punto de vista, la intuición, la visión, la forma de pensar
y sentir de una mitad de la humanidad‖ In: COUCH, Beatriz Melano. La mujer y la Iglesia.
Buenos Aires: El Escudo, 1973, p. 94.
192

Ofélia Ortega, destacou que a abertura da igreja à ordenação feminina era


importante para provocar uma mudança nas estruturas de poder, e não apenas na
ocupação destas:

Nós queremos um novo modelo de igreja, modelo que seja comunitário,


participativo e não piramidal. Mas, para isso, é preciso romper muitas
tradições e mudar muitíssimos conceitos, ou relê-los, porque o modelo que
interiorizamos é o ―pastor-cêntrico‖, e para mim a tarefa pastoral é de
acompanhamento da comunidade em seu caminhar, em sua marcha como
igreja. E nesse caminhar juntos vão surgindo animadores da comunidade
(mulheres, homens, crianças) que vão descobrindo o carisma dos outros.453

Nas igrejas que ordenavam mulheres, o problema apontado era a reprodução


não apenas do modelo ―pastor-cêntrico‖, mas também de uma tradição masculina
de exercício do pastorado, conforme observou a teóloga protestante Raquel
Rodriguez:

É um tanto chocante (e especialmente no Caribe, cultura altamente fogosa)


ter uma pastora com um estilo masculino. Diante disso, as pessoas reagem. E
reagem também a outras coisas como a maternidade (quantos homens e
mulheres não usaram como argumento contra a ordenação de mulheres o fato
de não sentir-se bem diante de uma pastora barriguda?) e um marido
dominado (pressupondo que pelo fato de ser ela pastora vai mantê-lo ―sob
controle‖). Lutar contra esses preconceitos é um longo processo. Não basta
que esteja na moda a ordenação de mulheres. É preciso compromisso e
vocação para poder iniciar o processo de mudança.454

Nelly Ritchie manifestou preocupação semelhante quando disse: ―temer que


no campo pastoral se interprete, por exemplo, que a tarefa da mulher como pastora
seja uma versão feminina de um papel masculino‖,455 aceitável enquanto for
eficiente para reproduzir a estrutura, mas perigoso quando pretender transformá-
la. Para Nancy Cardoso Pereira, o problema também se apresentava na educação
teológica, com algumas diferenças entre católicas e protestantes, ligadas tanto às
diferenças institucionais quanto à ação das mulheres dentro delas:

É muito curioso que nas igrejas que aceitam a ordenação de mulheres não
haja teólogas na docência das faculdades ou dos seminários. Já na Igreja
Católica, onde não se pratica a ordenação de mulheres, há várias teólogas que
são professoras dos homens que assumirão o ministério ordenado.

453
ORTEGA, Ofélia apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições
Loyola, 1995, p. 76-77.
454
RODRIGUEZ, Raquel apud TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São
Paulo: Edições Loyola, 1989, p. 169.
455
RITCHIE, Nelly apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições
Loyola, 1995, p. 86.
193

Gostaríamos de sublinhar dois pontos relacionados com isso. Em primeiro


lugar, da parte das mulheres, cada uma buscou ocupar os espaços que estão
abertos em suas igrejas respectivas, espaços em que não há muita resistência
(pelo menos hoje). E, a partir dessa inserção, foram construídas pontes que
permitem chegar a canais de poder e de decisão mais coerentes com o grande
número de mulheres que fazem parte da base de suas igrejas. O outro ponto
se refere à estrutura de poder que sofre a dominação dos homens que,
consciente ou inconscientemente, se esforçam para manter o monopólio das
decisões. No caso da Igreja Metodista, ela está aberta ao ministério feminino
ordenado, mas a formação das mulheres é feita toda por homens. Temo que
seja para que os padrões não se alterem e a ordem eclesial se mantenha, sem
ameaças ao poder masculino.456

Aqui cabe citar, a título de comparação, a visão de teólogas e teólogos


católicos. Para Pilar Aquino: ―na teologia clássica dominante, feita por homens,
brancos e celibatários (e em geral sob a égide da igreja da cristandade), é claro
que se dá prioridade a problemas de homens, brancos e celibatários‖.457 Teologia
Clássica e igreja da cristandade se reforçariam mutuamente num modelo
excludente da participação feminina. Juan Luis Segundo, no primeiro volume,
apresentou uma leitura discordante. Para ele ―o verticalismo da igreja não tem
muito a ver com o fato do predomínio masculino da igreja‖, pois não seria
possível dizer ―que esta forma de exercer o poder é meramente masculino‖.
Portanto, para Juan Luis Segundo, tratava-se do modo como a autoridade é
concebida dentro da igreja, uma autoridade ―que se exerce somente de cima para
baixo, que dá informações sem diálogo‖.458
Por fim, houve um entusiasmo dos teólogos e teólogas católicos em relação
às CEBs, com diagnósticos e projeções muito otimistas sobre o papel das
mulheres nas comunidades, enquanto houve um grande silêncio de teólogos e
teólogas protestantes sobre as comunidades pentecostais, muitas das quais
ordenavam mulheres com mais desenvoltura que as igrejas do protestantismo
histórico. As CEBs foram descritas como abertas às transformações que a
presença qualitativa das mulheres poderia realizar na igreja a partir das bases,
tanto na liturgia e na hermenêutica, quanto na tomada de consciência das mulheres
sobre sua própria condição e sobre a realidade social.

456
PEREIRA, Nancy Cardoso apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo:
Edições Loyola, 1995, p. 108-109.
457
AQUINO, Pilar apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições
Loyola, 1995, p. 12.
458
SEGUNDO, Juan Luis apud TAMEZ, Elsa. Teólogos da libertação falam sobre a mulher. São
Paulo: Edições Loyola, 1989, p. 15.
194

Finalizando a discussão dos temas abordados na coletânea, que apresenta


um panorama dos engajamentos do feminismo cristão, não poderia deixar de
discutir algo fundamental para a socialização e individuação de mulheres e
homens, no catolicismo e no protestantismo: a mística devocional ou, na
linguagem das pessoas analisadas, a espiritualidade. Perguntada sobre qual teria
sido a principal lacuna no volume em que os homens foram entrevistados, a
teóloga católica Leonor Aída Concha respondeu que faltou abordar um tema
importante numa discussão sobre as mulheres: a mariologia (estudo teológico
sobre Maria e seu culto), não discutido pelos teólogos ―talvez por você [Elsa
Tamez], não o ter mencionado diretamente‖.459 Negligência que a entrevistadora
reconheceu, atribuindo-a ao ―inconsciente amariológico da tradição
protestante‖.460 E de que forma as teólogas protestantes, preocupadas em
legitimar o empoderamento eclesiástico e teológico das mulheres e em promover
uma hermenêutica da Bíblia a partir da mulher, enxergavam o tema da
espiritualidade sem essa representação do sagrado feminino tão presente na
tradição católica? O depoimento de Nancy Cardoso Pereira apresentou alguns
caminhos:

É preciso desconstruir o mito de uma espiritualidade que se mantém pela


negação do desenvolvimento no cotidiano, que se fundamenta no celibato, na
virgindade, desespiritualizando a sexualidade e a maternidade. A mulher que
foi mais diretamente incluída nos discursos sobre a divindade e assumida
como símbolo na espiritualidade foi Maria – mãe despojada da sexualidade,
ilhada de virgindade, voltada exclusivamente para o ministério, o sofrimento
e a glória do filho (imagem antes construída pela tradição do que pela
memória dos evangelhos e comunidades primitivas).461

A partir de uma crítica à representação mariana do sagrado feminino, no que


ele tinha de opressor às mulheres, o feminismo protestante mantinha por outros
meios a sua amariologia. Em contrapartida, buscava construir uma cristologia
libertadora para as mulheres, como Nelly Ritchie propôs:

Eu, da perspectiva da mulher, vejo em Jesus o Cristo Deus que se aproxima


de nós, que se faz próximo de nós, se coloca em nosso caminho para
transformá-lo, para pôr em andamento uma coisa totalmente nova. Para mim

459
CONCHA, Leonor Aída apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo:
Edições Loyola, 1995, p. 88.
460
TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 88.
461
PEREIRA, Nancy Cardoso apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo:
Edições Loyola, 1995, p. 104.
195

é uma questão revolucionária, que transforma não apenas a nossa vida como
mulheres, mas também as estruturas, digamos ―domésticas‖ e as estruturas
em geral da sociedade.462

Outros meios das mulheres protestantes construírem uma espiritualidade


feminista, segundoNelly Ritchie, era assumindo liturgias, gestos simbólicos e
linguagens que significassem um princípio feminino da divindade ou uma
expressão feminina da fé. Citando a frase de Aurora Piedra: ―Eu sinto Deus de
outro modo‖, fez a ressalva de que não se tratava apenas de algo sensitivo, mas
também ético e racional.463
Como todo esse feminismo cristão latino-americano se relacionava com os
movimentos de mulheres, o feminismo acadêmico e as militâncias de esquerda? A
primeira consideração é que esse feminismo cristão abria possibilidades de novas
formas de socialização para as mulheres, principalmente se levarmos em conta
que o maior contingente feminino da população fazia parte das comunidades
religiosas ou possuía alguma experiência de fé e religiosidade. Analisando a
trajetória de mulheres nas esquerdas que se opuseram à Ditadura Militar, as
autoras do livro Mulheres e Militância mostraram como a socialização religiosa
marcou a formação e o aprendizado de parte da juventude que atuou nas
esquerdas: ―A vida cristã de justiça social e de caridade e as discussões sobre
pobreza, igualdade e educação fizeram parte do aprendizado de muitos desses
jovens‖.464
Em segundo lugar, o feminismo cristão enfrentava o patriarcalismo e o
machismo num campo que historicamente serviu de base para a dominação
masculina: a religião, suas estruturas e símbolos. Levava as lutas por
empoderamento feminino, linguagem inclusiva, crítica à violência física e
simbólica, para dentro das igrejas, do texto sagrado e da piedade pessoal. O que
levou Elsa Tamez a afirmar que os diálogos entre homens e mulheres sobre a
condição da mulher na sociedade estavam mais avançados na Teologia da
Libertação do que em outros espaços:

462
RITCHIE, Nelly apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições
Loyola, 1995, p. 83.
463
RITCHIE, Nelly. apud TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições
Loyola, 1995, p. 85.
464
NASCIMENTO, Ingrid Faria Gianordoli. Et ali. Mulheres e militância: encontro e confrontos
durante a Ditadura Militar. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p. 43.
196

A teologia latino-americana da libertação está bastante à frente nesse tímido e


recente processo de diálogo entre homens e mulheres; fato que chama a
atenção porque a teologia é um campo tradicionalmente dominado por
homens. É claro que este fato não é casual: a teologia latino-americana, por
ser de libertação, e por se deixar interpelar pelas realidades concretas, abre
suas portas às mulheres cristãs e estas se sentem atraídas por essa teologia.465

Não encontrei nos jornais da imprensa feminista, nenhuma menção à


Década Ecumênica de Solidariedade das Igrejas às Mulheres, proposta pelo CMI,
e pouquíssimas às reivindicações religiosas das feministas cristãs, como a
ordenação de mulheres ao pastorado, o exercício da docência teológica ou a
interpretação da Bíblia a partir da mulher.466 A maioria contemplava o debate no
catolicismo. Uma dessas referências foi uma matéria do jornal Mulherio relatando
os debates do I Encontro Sobre Produção Teológica Feminina que aconteceu em
Petrópolis, em 1985, com a participação de trinta católicas e quatro protestantes
―ligadas à produção teológica, ao trabalho pastoral e à formação em ciências
sociais‖. A matéria divulgou que:

Entre outras coisas, as 34 religiosas constataram a contradição que existe na


grande participação das mulheres na base da igreja e em sua exclusão de
instâncias de decisão.
A grande participação feminina abriria espaço para a construção de uma
igreja menos clerical e masculina. A própria concepção de Deus vai sendo
deslocada de um Teísmo Cristão para uma ideia de Deus como família, o que
vem dando bases para repensar as relações homem e mulher no interior da
igreja.
No Encontro ainda a constatação de que a Teologia da Libertação não
desenvolveu reflexão suficiente sobre a ética sexual, de que as leituras
correntes da Bíblia discriminam as mulheres e de que mesmo os movimentos
feministas não vêm levando em conta o papel da religiosa.467

O Encontro reconhecia uma mudança importante na experiência religiosa


das mulheres, havendo ―uma redescoberta da feminilidade da religiosa, superando
a antiga desfeminização que era introjetada pelo fato de uma certa concepção de
feminino estar automaticamente associada ao pecado‖.468 Após citar esse trecho
do entendimento exposto pelo evento, o jornal saudou a luta feminina no campo
religioso. Na mesma edição, o Mulherio divulgou uma nota das teólogas católicas

465
TAMEZ, Elsa. As mulheres tomam a palavra. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 8.
466
Dos jornais mencionados anteriormente, encontram-se disponíveis na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional Mulherio e seu sucessor Nexo.
467
MULHERIO. A feminilidade das religiosas descoberta, julho/agosto/setembro de 1985, p. 12.
468
Ibidem.
197

reunidas no Fórum 85 em Nairóbi em protesto contra o patriarcalismo do


Vaticano.469
Um ano antes, o Mulherio já havia divulgado a repercussão do livro Igreja,
carisma e poder de Leonardo Boff (1938-) no Vaticano, que o levou à punição
com um ano de silêncio obsequioso pela Sagrada Congregação para a Doutrina da
Fé, presidida pelo então Cardeal Joseph Ratzinger (1927-).470 O jornal feminista
destacou a crítica de Boff à exclusão das mulheres nos espaços de decisão e
ensino na igreja, no capítulo IV do livro que tratava ―Da violação dos direitos
humanos dentro da igreja‖. O conflito entre Ratzinger e Boff evidenciava uma
contradição fundamental naquele momento, pois ―Se a linha progressista da igreja
se coloca contra a discriminação da mulher, ela ainda parece ter uma visão
bastante conservadora da moral e dos costumes, que desempenham papel
fundamental no controle sobre a mulher na família e na sociedade‖.471 Sobre o
protestantismo, encontrei uma nota sobre a resistência à ordenação de mulheres na
Igreja Anglicana:

A Igreja Anglicana está em crise. O motivo não são as pequenas questões que
sempre geram discussões e alarme em suas sessões. A polêmica agora gira
em torno da ordenação de mulheres. A simples cogitação do assunto foi
capaz de provocar uma quase cisão entre os segmentos pró e contra,
representados pelo Arcebispo de Canterbury, Robert Runcie, o primeiro na
hierarquia anglicana, e o Bispo de Londres, Graham Leonard, favorito de
Margareth Thatcher. Leonard argumenta que o homem foi escolhido para o
sacerdócio e a mulher para a maternidade, o que, segundo seus oponentes,
confinaria o cristianismo aos de nascimento judeu e colocaria a
espiritualidade como privilégio masculino. O Bispo londrino afirma ainda
que o movimento pela ordenação de mulheres, bem-sucedido em Igrejas
Anglicanas fora da Inglaterra, está sendo fomentado pelo Feminismo e pela
moda.472

No Brasil, a ordenação feminina aos ministérios eclesiásticos esteve em


pauta dentro do protestantismo histórico pelo menos desde o início do século
XX.Na segunda metade do século, a presença de lideranças femininas no
pentecostalismo e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), acelerou as
reivindicações femininas nas igrejas e na produção teológica. Além disso, o

469
MULHERIO. Protesto contra o Vaticano. Cidade(estado): Julho/agosto/setembro de 1985, p.
12.
470
O silêncio obsequioso consiste na proibição de escrever ou pronunciar-se publicamente, como
membro da igreja, sobre assuntos da fé e da doutrina católica considerados dogmas.
471
MULHERIO. Padres de saias. setembro/outubro de 1984, p. 10.
472
MULHERIO. Ordenação de Mulheres. maio/junho de 1987, p. 14.
198

envolvimento de mulheres leigas das igrejas tradicionais em movimentos sociais e


políticos e o avanço das ideias feministas durante a abertura contribuíram para
uma Teologia Feminista da Libertação latino-americana.
Herdeiro das missões norte-americanas, o protestantismo brasileirodemorou
a acompanhar as mudanças que ocorreram em relação ao papel das mulheres na
igreja nos EUA onde, de acordo com Duncan Reily, ―entre 1956 e 1976, quase
todas as grandes denominações abriram plenamente suas portas ao ministério
feminino‖. No Brasil, ainda de acordo com o autor, ―tomaram a dianteira o
Exército de Salvação e a Igreja Quadrangular, ambos não ligados às igrejas
históricas‖.473
Se 1976 foi o marco no qual se completou a abertura ao ministério feminino
entre as grandes denominações norte-americanas474, no Brasil, a década de 1970
parecia ser o início desse processo, ainda inconcluso. Luteranos, anglicanos e
metodistas contaram, antes desse período, com diaconisas e presbíteras, mas só
ordenaram pastoras a partir dele. A ordenação de mulheres foi parcial ou
totalmente reconhecida em igrejas ecumênicas. A Igreja Presbiteriana Unida
(IPU) desde o seu início, em 1983, admitiu mulheres como diaconisas,
presbíteras, pastoras e em cargos administrativos da denominação. Após citar os
nomes de Clícia S. Labrunie, Ithamar Bueno de Araújo, Ruth Albuquerque
Tavares e Romélia Azevedo Meyer, mulheres que ocuparam cargos no Conselho
Coordenador da IPU, Elizete da Silva salientou que ―Ao ordenar mulheres, a IPU
estava atendendo antigas reivindicações do setor feminino protestante e de
vanguarda entre as denominações evangélicas‖.475Porém, tratava-se de uma
abertura ao pastorado, mas não a garantia do seu exercício. Nas funções
especificamente religiosas e não administrativas, a ordenação na IPU aconteceu
para as funções de diaconisa e presbítera, não havendo nenhuma ordenação
pastoral até 1989.476A Igreja Batista Nazareth também reconheceu em seus

473
REILY, Ducan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo:
ASTE, 2003, p. 382.
474
Na Europa e nos EUA, as mulheres Quakers foram ordenadas desde o século XIX.
475
SILVA, Elizete da. Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira. Feira de Santana: UEFS
Editora, 2010, p. 194.
476
OLIVEIRA, Rosângela Soares de. Brasil tem 80 pastoras. Tempo & Presença, CEDI, dez.
1989, p. 23. A autora era uma pastora metodista que integrava o programa de assessoria pastoral
do CEDI.
199

estatutos o direito de participação feminina nos ministérios eclesiásticos, apesar


de não ter, até o momento ordenado uma mulher como pastora.477

Imagem 3 – Ordenação de mulheres na Igreja Anglicana

O CEDI, através da revista Tempo e Presença, deu muito destaque ao


feminismo cristão, publicando matérias sobre a mulher na teologia,
compartilhando reflexões bíblicas de teólogas e biblistas na seção A Bíblia Hoje e

477
Entre as denominações do protestantismo histórico, os batistas são os mais resistentes à
ordenação feminina e até o limite cronológico da pesquisa não houve nenhuma mulher ordenada
ao pastorado. De acordo com Bianca Almeida, pronunciamentos em defesa da ordenação feminina
nas igrejas batistas podem ser encontrados desde 1939, principalmente como reivindicação das
próprias mulheres. ALMEIDA, Bianca Daéb‘s Seixas. Uma história das mulheres batistas
soteropolitanas. Dissertação (Mestrado em História) –UFBA, Salvador, 2006, p. 144.
200

acompanhando o crescimento da ordenação de mulheres ao pastorado nas


igrejas.478 Na edição de número 248, dedicada ao temaMulheres, a revista
divulgou um levantamento feito pela assessoria pastoral da entidade que
contabilizava 80 pastoras no protestantismo histórico, com 43 metodistas, 34
luteranas e 3 episcopais. Os dados não são seguros e desconsideram o universo
pentecostal, mas serve de parâmetro para perceber os tímidos avanços que
ocorriam naquele momento e a visibilidade que as lideranças femininas
alcançaram no movimento ecumênico.
A ocupação de cargos de liderança, no entanto, não era suficiente.
Interessava às feministas cristãs, assim como às não religiosas, a desconstrução do
patriarcalismo religioso, e para isso era necessário realizar um empreendimento
teológico, cujos instrumentos foram encontrados na Teologia da Libertação, no
feminismo acadêmico, nos movimentos de mulheres e na resistência comum com
as esquerdas e movimentos de oposição à Ditadura Militar.
A presença do debate sobre a mulher no protestantismo nas páginas do
jornal Mulherio foi uma raridade, valendo a pena compartilhar as poucas matérias
publicadas para perceber algumas comunicações entre a vertente protestante do
feminismo cristão e a imprensa feminista. O protagonismo metodista não se
evidencia apenas na projeção de Elsa Tamez como importante biblista e teóloga
da libertação, capaz de entrevistar as principais personalidades da teologia latino-
americana, nem nos posicionamentos de Beatriz Melano Couch, Nelly Richie,
Nancy Cardoso Pereira e Tânia Mara. O Instituto Metodista Bennet do Rio de
Janeiro criou uma Assessoria de Pastoral Universitária, que por sua vez criou um
Programa de Promoção da Mulher.
O jornal Mulherio divulgou a organização de um seminário promovido pelo
Programa metodista a ser realizado na sede do Instituto Bennet para discutir ―A
educação e os papéis sexuais‖ em julho de 1982. Algumas convidadas eram
importantes intelectuais do feminismo brasileiro e articulistas da imprensa
feminista. Dentre elas, foram citadas pelo jornal: Danda Prado, Lélia Gonzalez

478
Entre os números de Tempo & Presença que dedicaram a reportagem de capa às mulheres
estavam: Os novos ministérios da mulher (nº 214), Mulheres na construção de uma nova
sociedade (nº 214), Mulheres (nº 248), Mulheres e direitos reprodutivos (nº 256). Na edição com o
Balanço dos anos 1980 (nº 249), foi dedicado uma parte às mulheres. Entre as mulheres que mais
publicaram na seção A Bíblia Hoje, estava Nancy Cardoso Pereira.
201

(1935-1994), Mariska Ribeiro, Mary Sue, Felícia Madeira e Lucy Lupia.479 O


jornal feminista Mulherio poderia ser adquirido na Imprensa Metodista e no
próprio Instituto Bennet, conforme anúncios publicados no periódico.
Se no início dos anos 1980 as mulheres metodistas estavam discutindo com
a intelectualidade feminista os papéis sexuais e a educação, no início da década
seguinte, as mulheres da denominação deram um passo adiante, criando a revista
feminista Mandrágora, editada pelo Núcleo de Estudos de Gênero e Religião do
programa de Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo
(UMESP). A primeira edição foi publicada em 1994, com um dossiê sobre o
aborto. O tema em sua interface com a religião, aliás, era muito caro ao
movimento feminista e sua imprensa. No momento da Constituinte de 1987, um
dos entraves mais destacados pela imprensa feminista para o avanço de uma
legislação favorável ao direito da mulher de interromper a gravidez era a
moralidade religiosa, representada pela CNBB e pela Bancada Evangélica.
O progressismo protestante, assim como o católico, tinha suas
ambiguidades. A resistência aos temas da sexualidade e do comportamento
também se fazia presente no segmento. As iniciativas inovadoras nesse campo,
quando não partiam dos movimentos de minorias, organizados internamente nas
igrejas, eram articuladas nas entidades de serviço ou por alguns poucos indivíduos
mais abertos aos temas emergentes. Em uma das matérias do Mulherio, por
exemplo, a socióloga Gabriela Silva Leite (1951-2013), organizadora das
primeiras associações e encontros de prostitutas, confessou que depois de passar
por muitas dificuldades financeiras e ausência de apoio, encontrou junto ao ISER
as condições necessárias para articular o trabalho. O convite para integrar a equipe
da instituição partiu de Rubem César Fernandes (1943-), presbiteriano e militante
do movimento ecumênico, ―uma pessoa que me deu muita força‖, como disse
Gabriela S. Leite ao jornal. Em matéria do Nexo, jornal que sucedeu ao Mulherio,
foi noticiado:

Pesquisadora de Antropologia do Instituto de Estudos da Religião (ISER),


Gabriela coordenou o debate que lançou, dia 1º de junho, no Centro Cultural
Cândido Mendes, em Ipanema, o documentário em vídeo ―Fala mulher da

479
MULHERIO. Notas, julho/agosto de 1982, p. 23.
202

vida‖, produzido durante o 1º Encontro Nacional de Prostitutas, ocorrido em


julho passado com a participação de setenta profissionais de todo o Brasil.480

A pesquisadora do ISER, que começou o trabalho de organização política


das prostitutas com o apoio da Pastoral da Mulher Marginalizada, ligada à Igreja
Católica, e que foi convidada por um protestante para a equipe de uma entidade
ecumênica que lhe deu suporte para desenvolver o trabalho, não deixou de criticar
a dificuldade da Teologia da Libertação com a sexualidade feminina, assim como
o Mulherio não perdeu de vista as contradições entre a igreja progressista e
amoralidade religiosa em temas considerados tabus no comportamento e nos
costumes. A Teologia da Libertação e as CEBs dialogavam com as perspectivas
de classe do marxismo, superando o pobre da caridade tradicional e falando dele
como explorado e como sujeito político. A presença do feminismo cristão nesse
espaço tecia as afinidades eletivas entre os debates que ocorriam nas esquerdas e
as mudanças que aconteciam no progressismo religioso. Como dito em outro
momento, ao menos instituía um clima intelectual propício a engajamentos
feministas.

O feminino e a igreja na Missão Integral

O movimento de Missão Integral, por assumir-se conservador em teologia,


apresentou uma abordagem tardia e tímida em relação ao tema das mulheres, não
assumindo o feminismo como militância, e sim tratando-o como um desafio da
contemporaneidade às relações humanas. Antes dos anos 1990, a maioria dos
escritos e documentos relativos ao tema foram textos sobre as mulheres na bíblia,
na família ou no casamento, muitas vezes escritos por homens quando se tratava
de autores brasileiros ou de autoria estrangeira quando escritos por mulheres.
Tomando como referência as editoras que publicavam obras ligadas à
intelectualidade da Missão Integral, podemos destacar os livros da VINDE, ABU
e Ultimato, além do Boletim Teológico da FTL. A editora VINDE publicou em
1986 o livro de Caio Fábio intitulado A mulher no projeto do Reino de Deus. A
editora da ABU publicou dois livros específicos sobre o tema, A mulher na Bíblia,
de Mary Evans (1986), e Mulheres ontem e hoje, de Margaret Elise Lacler (1987).

480
NEXO. Prostitutas criam associação., julho de 1988, p. 27.
203

Outro livro sobre as mulheres da Bíblia foi publicado nos anos 1990 pela editora
Ultimato, intitulado Deixem que elas mesmas falem, de Elben M. Lenz César
(1993). A FTL organizou em 1991 uma Consulta Teológica com o tema A relação
masculino-feminino: em busca de saúde e obediência,que deu origem a duas
edições do Boletim Teológico (16 e 17): uma anterior à Consulta, com textos
prévios para estudo(1991), e uma posterior,com as palestras da Consulta, além de
um documento final (1992).481
Analisando os textos das edições 16 e 17 do Boletim Teológico, é possível
constatar que havia a tentativa de empreender avanços na discussão, negociando-
se com o conservadorismo das bases evangélicas. Isso se manifestava de três
formas: 1) Não se discutia especificamente a mulher, mas a relação masculino-
feminino; 2) Não se falava a partir das reivindicações feministas, mas do que se
entendia como obediência à Bíblia; 3) Mesclava-se referências da Teologia da
Libertação e do feminismo com a literatura publicada pelas editoras evangelicais.
Quanto ao primeiro ponto, Emil Sobottka escreveu na apresentação do Boletim
Teológico anterior à Consulta:
O que está em questão não é a igualdade ou um conjunto de direitos, mas a
relação entre os seres humanos. A pergunta não é se, segundo a Bíblia, a
mulher tem direito a isto ou àquilo, a questão é como manter a imagem e
semelhança de Deus no cotidiano de nossa vida. A imagem de Deus nos seres
humanos está no tipo de relação que eles travam com seus semelhantes e, por
extensão, com Deus. Segundo o propósito de Deus expresso na criação (Gn.
1 e 2) e reafirmado inequivocamente por Jesus (Mc. 12: 28-34 Mt. 25: 31-
46), esta relação é o companheirismo.482

Tal abordagem era antes um julgamento teológico do feminismo do que a


assunção do mesmo como um desafio à tarefa teológica. O caráter reivindicatório
do movimento feminista, sua preocupação com a luta por direitos e com a
afirmação da mulher, foram apresentados como um modo limitado de colocar o
debate, que acirrava os ânimos e polarizava as relações, prejudicando a garantia
das próprias conquistas alcançada pelo movimento. De acordo com o texto de
apresentação de Emil Sobottka:

481
―A Fraternidade Teológica Latino-Americana-Brasil reuniu-se em Campinas, de 19 a 22 de
setembro de 1991, para discutir e aprofundar o tema da Relação masculino-feminino: em busca de
saúde e obediência.‖ Boletim Teológico 17, maio/1992, p. 59.
482
SOBOTTKA, Emil. Apresentação: e Deus os criou companheiros. Boletim Teológico 16,
agosto/1991, p. 4.
204

O movimento das mulheres estruturou-se fundamentalmente como


reivindicatório; a luta era por direitos, pelo lugar da mulher que
presumidamente lhe assistia, mas fora interditado. Mas essas lutas
reivindicatórias tem uma ingrata característica; elas se estruturam sobre uma
polarização e não há a menor segurança que, uma vez conquistada a
reivindicação, essa polarização cesse. Ao contrário, ela poderá permanecer e
até mesmo seguir ameaçando as ―conquistas‖. No caso em pauta, esta
polarização mantém acirrados muitos ânimos e dificulta a superação de uma
série de injustiças ainda remanescentes.483

Não se atribuía o acirramento de ânimos ou a polarização à resistência da


hierarquia social entre homens e mulheres estabelecida ao longo do processo
histórico, mas ao modo como o movimento de mulheres estava estruturado, à
forma como reivindicava direitos e o lugar da mulher que ―presumidamente lhe
assistia‖. As dificuldades colocadas pelo movimento de mulheres chegaram à
igreja, na qual:

Mais do que na sociedade em geral, aqui os ânimos estão por vezes exaltados
e as posições polarizadas. Há, por vezes, dificuldade inclusive para ouvir e
dialogar fraternalmente. Não será isso também consequência de uma
estruturação excessivamente reivindicatória, calcada na luta por direitos, por
espaços, perdendo de vistas dimensões muito mais evangélicas, muito mais
bíblicas?484

As dimensões evangélicas e bíblicas, de acordo com o editor do Boletim,


poderiam contribuir para ―superar os estreitos limites em que fora colocado o
tema pelos movimentos feministas e similares‖, através de um ―companheirismo
solidário‖ que seria a ―realização diária e constante da imagem e semelhança de
Deus em nós‖.485Este primeiro Boletim Teológico (16) foi composto por oito
textos (sete artigos e a apresentação), dois escritos por mulheres e seis por
homens. O segundo Boletim Teológico (17) tinha seis textos (cinco artigos e o
documento da Consulta), três escritos por mulheres, um escrito por um casal, um
de autoria masculina, um coletivo.
No Boletim 16, houve indícios de incorporação de demandas femininas,
embora em abordagens resistentes ao movimento de mulheres, dentro e fora da
igreja, sobretudo nos textos masculinos. Destes, destaco o artigo de René Padilla,
referência continental da Teologia da Missão Integral. René Padilla abriu a

483
SOBOTTKA, Emil. 1991, p. 3.
484
Ibidem.
485
SOBOTTKA, Emil. 1991, p. 4.
205

coletânea com o artigo A relação homem-mulher na Bíblia, reconhecendo que o


tema era o que mais exigia da hermenêutica bíblica, porque:

não há como evitar que sua análise seja afetada por um duplo
condicionamento. Por um lado, o da longa história de interpretação bíblica
marcada pelo machismo; por outro lado, o da luta pelos direitos da mulher,
promovida pelo feminismo dentro e fora da igreja.486

Diferentemente da Teologia da Libertação, o machismo e o patriarcalismo


eram ressaltados pela Missão Integral mais na interpretação do texto bíblico do
que na sua produção. Admitia-se o machismo na sociedade na qual a Bíblia foi
produzida, mas isso não relativizava a autoridade do texto do modo como estava
escrito. De acordo com René Padilla, ―ao longo da história a relação homem-
mulher tem estado constantemente marcada pelo machismo e pela misoginia‖, o
que se refletiu na interpretação da Bíblia ―até o ponto de hoje ser difícil crer que a
Bíblia proveja uma base firme para a reivindicação dos direitos da mulher na
sociedade ou para o ministério da mulher na igreja‖487. O feminismo era lido,
assim, como um transfundo cultural da contemporaneidade que colocava
perguntas inquietantes à igreja, conforme René Padilla escreveu:

Frente à discriminação de que a mulher tem sido objeto, muitas vezes


supostamente apoiada pelo ensino bíblico, não surpreende que a ala radical
do movimento feminista descarte a Bíblia por considerá-la ―machista‖, fonte
e origem do sexismo que aflige a igreja e a sociedade. Se a Bíblia apresenta
um Deus masculino que dispôs que o homem exerça domínio sobre a mulher,
o que se pode oferecer à mulher que busca libertar-se das imposições de uma
sociedade machista e realizar-se como pessoa? Não se pode considerar o
tema da relação homem-mulher sem tomar em consideração este desafio que
o feminismo contemporâneo coloca.488

O esforço hermenêutico dos teólogos da Missão Integral, aqui falando


basicamente dos homens, dedicava-se a encontrar critérios de leitura que
contemplassem a contextualização à cultura e à contemporaneidade, negociando
com o conservadorismo das igrejas e de fiéis evangélicos para manter a identidade
e o lugar da Missão Integral e sua intelectualidade no seio das comunidades
religiosas. O feminismo era visto, assim como o machismo, como um

486
PADILLA, René. A relação homem-mulher na Bíblia. Boletim Teológico n. 16, agosto/1991, p.
5.
487
PADILLA, René. 1991, p. 5.
488
PADILLA, René. 1991, p. 6.
206

condicionante da leitura, capaz de impedir a auscultação da voz divina na Bíblia.


Por isso:

Somos convocados a interpretar o ensino bíblico sem permitir que as leituras


machistas tradicionais nem os pressupostos feministas atuais a respeito da
Bíblia impeçam que escutemos a voz de Deus. Com este propósito
consideramos a relação homem-mulher à luz da Bíblia, primeiro no contexto
da criação, depois no contexto do pecado e, finalmente, no contexto da
redenção.489

A sequência clássica da teologia cristã, ―criação, queda e redenção‖,


presente tanto em correntes conservadoras quanto progressistas, era a chave de
leitura para a relação homem-mulher na Bíblia, não apenas no texto de René
Padilla, mas na maioria dos autores e autoras dos Boletins 16 e 17. Trabalhando-
se com essa chave aceitável para a mentalidade evangélica, introduzia-se
abordagens mais críticas de biblistas, teólogos e teólogas da libertação. O que se
pretendia compreender ―à luz da Bíblia‖ era qual o propósito original de Deus
para a relação homem-mulher na criação, como o pecado ou queda interferiu na
relação e como a redenção em Cristo restaurou o propósito original, colocando a
partir de então as relações homem-mulher num patamar diferente e superior ao da
sociedade não cristã. Ponto pacífico nos artigos dos dois Boletins era quanto à
imagem de Deus descrita nos relatos bíblicos da criação, Gênesis 1 e 2, que seria
atributo da humanidade, em sua expressão masculina e feminina. Para René
Padilla:

o simples fato de que o Homem tenha sido criado como homem e mulher
sugere que seria mais bíblico dizer que em Deus se integram a masculinidade
e a feminilidade em perfeita harmonia; que ele incorpora e ao mesmo tempo
transcende a polaridade sexual humana criada por ele.490

Conclusão que não impediu o autor de se referir ao gênero humano sempre


no masculino, o Homem. Ao mesmo tempo, colocava a necessidade de superar
―pautas ditadas por um machismo que se constitui numa triste negação da vocação
humana da mulher‖ e os equívocos de um ensino bíblico que reduzia a mulher ―a
um estado de inferioridade em relação ao homem, inclusive na igreja‖, ainda mais
489
Ibidem.
490
PADILLA, René. 1991, p. 9. Nesta discussão sobre a transcendência e incorporação da
masculinidade e feminilidade em Deus, René Padilla tomou como referência a discussão de uma
biblista norte-americana, Mary Hayter, autora do livro The new eve in Christ: the use and abuse of
the Bible in the debate about woman in the church.
207

grave na América Latina onde ―o problema assume dimensões de tragédia‖. E


como deveria ficar o ensino da relação homem-mulher na igreja e na sociedade a
partir dessa leitura bíblica? Sobre isso, René Padilla escreveu:

Mais importante que a feminilidade da mulher é a sua humanidade. Por isso a


primeira preocupação da mulher não pode ser a de casar e ter filhos. Se por
acaso o é, isso se deve a que a mulher, através dos séculos, internalizou uma
imagem de si própria que lhe foi imposta pelo sexo masculino. A tarefa
prioritária da mulher deriva-se diretamente do fato de ter sido criada à
imagem e semelhança de Deus. Seu lugar no mundo não depende unicamente
de sua sexualidade feminina, mas de sua vocação, não da biologia, mas do
mandato de Deus.491

Ressaltar a humanidade da mulher em relação ao sexo não impediu o autor


de se contrapor ao feminismo quanto ao lugar do casamento e da maternidade na
relação homem-mulher, portanto:

equivoca-se quem pensa que para lutar pela reivindicação dos direitos da
mulher é necessário rejeitar a maternidade ou negar as diferenças que existem
entre ela e o homem. O esforço para eliminar as diferenças somente pode
levar a uma situação artificial, com o perigo de que a mulher acabe
concebendo sua libertação em termos de uma imagem da ―mulher liberta‖
imposta pelo homem (mais uma vez!). O caminho da libertação da mulher
não está na negação dos atributos de sua feminilidade, incluindo seu espírito
maternal, mas na integração plena da mulhercomo mulhernum projeto de
vida que expressa sua vocação humana.492

A hierarquia social entre mulheres e homens, a inferiorização da mulher ao


longo da história, teria decorrido, segundo autoras e autores da FTL, do pecado
original e da queda, cujo conteúdo era moral e não sexual. O pecado e a queda
teriam transformado ―a polaridade sexual‖ numa ―trágica polarização entre os
sexos‖,493 conforme escreveu René Padilla. Para finalizar a síntese produzida por
este autor sobre a relação homem-mulher na Bíblia a partir da sequência criação-
queda-redenção, cabe descrever como ele interpretava Cristo como aquele que
restaurou os propósitos originais da criação e colocou em novos termos o lugar da
mulher e do homem na sociedade. Citando o texto bíblico de Gálatas 3:28, que
afirma que ―em Cristo‖ não existe ―judeu nem grego, escravo nem liberto, nem
homem nem mulher‖, o autor resumiu o pensamento comum a todas as
abordagens do Boletim Teológico:

491
PADILLA, René. 1991, p. 10.
492
PADILLA, René. 1991, p. 11.
493
PADILLA, René. 1991, p. 14.
208

A obra de Jesus Cristo, cumprida em sua morte e ressurreição dirige-se à


totalidade da existência humana. Não tem exclusivamente a ver com a
salvação da alma num futuro distante, nem se limita ao aspecto religioso da
vida. Ela toca o ser humano, homem ou mulher, no próprio centro de sua
personalidade e transforma todas as suas relações. Orienta-se à restauração da
imagem de Deus no Homem.494

A crença nessa obra de restauração do Cristo estava na base de toda a


Teologia da Missão Integral, principalmente para fundamentar, a partir de uma
compreensão conservadora da fé e da leitura bíblica, um engajamento progressista
na superação de ―toda forma de alienação, opressão e discriminação‖, conforme
definia o Pacto de Lausanne. Segundo René Padilla, em Gálatas 3:28:

A ideia é clara: a unidade da humanidade, baseada na criação, mas afetada


pelo pecado, foi restaurada por Jesus Cristo; portanto, perderam vigência as
divisões raciais, sociais ou sexuais que colocam alguns em situação de
superioridade e outros em situação de inferioridade.495

Uma das organizadoras da Consulta e autora do BoletimTeológico 16 foi


Ilze Zirbel, na época, estudante na Escola Superior de Teologia (EST) em São
Leopoldo, faculdade luterana, e apresentada como ―membro fraterno da FTL-B‖.
O título do seu artigo foi Redenção: onde?, cujo propósito era buscar ―uma
resposta à pergunta pelo tipo de relacionamentos humanos que Cristo
reestabelece‖.496 Eles seriam de três tipos: com Deus, com a natureza, dos seres
humanos entre si. ―De alguma forma‖, escreveu a teóloga, ―a situação caótica em
que se encontra o mundo atual espelha a dificuldade do relacionamento nestes três
níveis‖ e o livro do Gênesis seria um testemunho de que ―houve uma quebra do
sistema de governo comunitário entre Deus e sua criação‖.497
De que forma, então, houve, através de Jesus Cristo, uma restauração das
relações homem-mulher segundo o propósito original? Para Ilze Zirbel, a
restauração começou no próprio modo como Jesus se relacionou com as mulheres
no seu tempo e o quanto suas atitudes e ensinamentos nessas relações deviam
servir de exemplo para a igreja. A autora defendeu que:

494
PADILLA, René. 1991, p. 17.
495
Ibidem.
496
ZIRBEL, Ilze. Redenção: onde? Boletim Teológico 16, agosto/1991, p. 23.
497
ZIRBEL, Ilze. 1991, p. 24.
209

Desta maneira Jesus, com sua vida e suas palavras, restaura o propósito
original de Deus de uma simetria nos relacionamentos humanos, tanto entre
homens e mulheres, como entre pais e filhos (e outros que se poderia
enumerar), Jesus desconhece preceitos historicamente determinados que
querem justificar o domínio de uns sobre outros. Deus os criou iguais e para
ele, Jesus, esta é ―a lei e os profetas‖.498

Também no texto de Ilze Zirbel aparece uma crítica ao modo como o


patriarcalismo condicionou a leitura da Bíblia, mas não há uma crítica a este
condicionamento em relação à sua escrita. O princípio da contextualização, como
ela o utiliza, admitia determinadas estruturas e hierarquias sociais presentes no
texto bíblico como próprios de uma época, não tanto para desculpar o texto por
reproduzi-las, e sim para assumir a crítica à normatividade que o fundamentalismo
impunha ao leitor contemporâneo:

Numa época em que as mulheres são gerentes de bancos e presidentes de


países, nós não podemos continuar pregando a cultura antiga. Se para a época
de Paulo era escândalo que uma mulher falasse em público, hoje é motivo de
escândalo exigir que elas calem a boca.499

No fim do artigo, tecendo considerações sobre a missão da igreja diante da


restauração das relações homem-mulher em Cristo, não houve nenhuma menção
direta sobre que lugar ou papel a mulher poderia ocupar concretamente na igreja.
A missão foi vista sempre coletivamente, agregando homens e mulheres num
trabalho comum e cooperativo, mas sem estabelecer como isso interferiria no
status quo religioso das comunidades evangélicas.
Carmem Perez de Camargo, teóloga batista e mexicana, apresentou o artigo
Quem é o ser humano?,no qual seguia o roteiro e a abordagem da Missão Integral
sobre a relação homem-mulher a partir da ―história da salvação‖, ou seja: criação-
queda-redenção.500 Uma autora escreveu um artigo em cada um dos Boletins,
ambos extraídos de um trabalho apresentado como requisito para a ordenação
pastoral. Tratava-se de Yokimi Yuaça, pastora da Igreja Evangélica Holiness. No
Boletim 16, ela escreveu o artigo Entendendo melhor os escritos aos Coríntios e

498
ZIRBEL, Ilze. 1991, p. 29.
499
ZIRBEL, Ilze. 1991, p. 32.
500
CAMARGO, Carmem Peresz. Quem é o ser humano?. Boletim Teológico 16, agosto/1991, p.
35-42. O texto foi escrito como requisito para o ingresso na FTL do México. Não houve, por parte
de Carmem Perez Camargo, qualquer definição da missão da igreja na promoção da igualdade
entre mulheres e homens. O texto foi citado em dois artigos no Boletim 17 em discussões sobre o
campo da sexualidade.
210

no Boletim 17, o artigo Auxiliadora idônea. No primeiro, a autora desafiou a


tentativa de legitimar o monopólio masculino na igreja a partir das Epístolas aos
Coríntios.501 O segundo comentava a partir da própria trajetória de mulher
ordenada como pastora, os avanços e resistências no meio evangélico à ordenação
de mulheres aos ministérios eclesiásticos. De todas as autoras da Consulta,
Yokimi Yuaça foi a mais preocupada com o empoderamento das mulheres na
igreja (Bíblia, teologia e ministérios), conforme expôs no primeiro Boletim:

Já nos acostumamos a aceitar uma série de interpretações bíblicas em relação


à mulher e seu papel. O problema é que a teologia enquanto produção
humana tem sido quase que monopolizada pelos homens, sendo
eminentemente a expressão forte na perspectiva masculina. [...] Nós ouvimos
os homens falarem do que é ―bíblico‖ para a mulher e aceitamos isso como
Palavra de Deus muitas vezes sem questionar e ver se é realmente isso que a
Palavra de Deus quer dizer. Uma boa parte da responsabilidade pela falta de
equilíbrio entre masculino e feminino na vida de nossas igrejas cabe a nós
mulheres, que temos sido omissas na reflexão teológica. Não que, pelo
simples fato de serem homens, os teólogos sempre darão o seu parecer de
forma tendenciosa. Mas frequentemente nossa compreensão do papel da
mulher vem carregada de preconceitos, onde o machismo assume a sua
postura ―sagrada‖ na palavra de muitos pastores. Nós mesmas introjetamos
esses conceitos e temos muita dificuldade em trabalhar certas questões com
mais autonomia e desenvoltura.502

Ao analisar a Epístola de Paulo aos Coríntios, a autora não estava


interessada em apontar o machismo no texto, mas em questionar a denúncia do
texto como machista, pois:

Quando, quase na entrada do século XXI, lemos que às mulheres de Corinto


é recomendado que se mantenham em silêncio, que não façam perguntas em
público, mas depois particularmente ao marido, logo reagimos a partir dos
nossos padrões modernos e duvidamos que o cristianismo realmente trouxe a
mulher para um plano melhor.503

Comparada aos cultos gregos que lhe eram contemporâneos, nos quais,
segundo a autora, a segregação de mulheres e homens era acentuada e as
primeiras eram privadas do ensino, na igreja de Corinto ―Paulo encorajou as
esposas a fazerem perguntas e os maridos a discutirem as coisas de Deus com

501
Epístola de Paulo aos Coríntios, na qual o apóstolo fez recomendações sobre a ordem no culto
da comunidade cristã em Corintos. Nessa Epístola, o apóstolo recomenda o uso adequado dos dons
espirituais na liturgia e do comportamento dos fiéis, sendo muito conhecido o trecho em que
ordena às mulheres guardarem silêncio na igreja e usarem o véu.
502
YUAÇA, Yokimi. Entendendo melhor os escritos aos Coríntios. Boletim Teológico 16,
agosto/1991, p. 53.
503
YUAÇA, Yokimi. 1991, p. 54.
211

elas‖ e ainda ―rejeitou a segregação de homens e mulheres num mesmo culto, ao


contrário do judaísmo‖.504 O silêncio ordenado às mulheres na igreja de Corinto
não seria impeditivo do discurso, mas do falar no momento impróprio, assim
como outros falares impróprios e desordenados masculinos foram proibidos pelas
recomendações paulinas. Yokimi Yuaça estava empenhada em propor uma
agenda positiva para a promoção da igualdade entre mulheres e homens na igreja,
e por isso denunciava o atraso da igreja em relação à sociedade, como fez em
Auxiliadora Idônea:

Embora secularmente as mulheres tenham, até certo ponto, conquistado


espaços mais amplos e já tenha se tornado ―senso comum‖ a aceitação, ao
menos ideologicamente, dos direitos iguais para homens e mulheres, o
mesmo não tem ocorrido com fluência em nossas igrejas.505

O artigo do Boletim 17 é interessante como fonte porque além da reflexão


proposta pela Consulta, Yokimi Yuaça contousua trajetória para se tornar pastora
e o processo de pesquisa sobre o assunto, compartilhando a própria experiência e
de outras mulheres que enfrentaram resistências nos discursos e nas atitudes das
lideranças eclesiásticas, da membresia das igrejas e mesmo das mulheres da sua
congregação. Assim como destacado por algumas teólogas da libertação nas
entrevistas analisadas anteriormente, a pastora da Igreja Evangélica Holiness
entendia a ausência feminina nos espaços de poder eclesiástico como um prejuízo
para a formação das próprias mulheres e para a vida da igreja. Narrando as
próprias experiências, relatou:

Na minha época de adolescência, ouvi dizer que ―liderar não é feminino‖.


Presenciei, de forma indireta, a substituição de todas as mulheres que
ocupavam cargos de liderança em certa igreja. Admiro-me hoje, que
ninguém, naquela época, tenha achado nada de estranho. Para ser ―feminina‖
era preciso abafar qualquer tipo de manifestação que indicasse liderança.506

Isso não a impediu de buscar o pastorado, mas a imagem da liderança como


uma atribuição masculina, a ausência de referências femininas na liderança e a
ausência de ensino nas igrejas para que as mulheres a exercessem, fez com que ela

504
Ibidem.
505
YUAÇA, Yokimi. 1991, p. 41.
506
YUAÇA, Yokimi. 1991, p. 42.
212

encontrasse dificuldades depois da formação em Teologia. De acordo com suas


palavras:

Mais tarde senti-me chamada ao ministério. Completei o curso de seminário,


tendo escolhido deliberadamente o curso completo para a formação de
pastores, e não o curso de teologia com ênfase em educação religiosa (como
era o esperado, no caso de mulheres). Depois de trabalhar quatro anos na
companhia de meu pai (pastor da Igreja Holiness), recebi a nomeação para a
Igreja Holiness de Belo Horizonte. Era ―o primeiro obreiro‖ que a igreja
recebia. De repente, porém, dei-me conta de que a liderança não tinha sido
algo bem trabalhado na minha vida, e creio que também na vida das
―meninas‖ daquela época. Receio que a liderança não esteja sendo bem
trabalhada na vida das ―meninas‖ de hoje...507

Numa discussão sobre a identidade feminina no ministério, durante um


retiro de pastores da sua igreja, Yokimi Yuaça presenciou a utilização da palavra
―auxiliadora‖ na narrativa da criação em Gênesis para circunscrever a mulher às
funções subordinadas. A autora, entretanto, interpretava a palavra como uma
atitude da mulher em relação ao homem que a corresponderia com
companheirismo equivalente, e não como uma função ou limite das atribuições
femininas. O uso da palavra ―auxiliadora‖ para definir o lugar da mulher
contribuía para formar nela uma ―identidade reflexa‖, conforme referência de
Juliet Mitchel citada no artigo,508 ou seja, fazia com que a mulher visse a si
mesma através do olhar masculino e reproduzisse o papel que lhe era
estabelecido:

A partir dessa interpretação da palavra ―auxiliadora‖, muitas mulheres


adquiriram a compreensão, ou foram treinadas para assim pensarem, de que a
mulher não deve assumir coisa alguma por si mesma, mas deve ser auxiliar
do marido, sua sombra, a mulher que está sempre ―atrás de um grande
homem‖. O que ocorre, na prática de minha denominação, é que o papel da
mulher que se consagra ao ministério se resume a ser auxiliadora do pastor,
especialmente se ela é casada com um pastor. Em termos de ministério
específico, a mulher não possui identidade profissional própria.509

Os argumentos contrários ao pastorado feminino, ouvidos por Yokimi


Yuaça, não foram apenas fundamentados em determinadas interpretações da

507
YUAÇA, Yokimi. 1991, p. 41.
508
―A maioria das mulheres ainda possui uma identidade reflexa, ou seja, veem-se com os olhos
dos homens; e, para complicar, toda ciência criada pelo homem vêm reforçar ainda mais esta
identidade, que constitui o mal estar profundo de todas as mulheres.‖ MITCHEL, Juliet apud.
YUAÇA, Yokimi. Entendendo melhor os escritos aos Coríntios. Boletim Teológico 16,
agosto/1992, p. 41.
509
YUAÇA, Yokimi.YUAÇA, Yokimi. 1991, p. 43.
213

Bíblia, mas também de natureza biológica, moral e familiar: ―Ainda, num outro
diálogo, onde a pauta era a questão do ministério da mulher‖, narrou a autora,
―um pastor usou o argumento de que, depois do casamento, a prioridade da
mulher era a família‖. A partir disso ela contestou a parcialidade evangélica na
defesa da família quando a ocupação do poder eclesiástico por mulheres ou
homens estava em discussão, questionando:

quando o homem casa, a sua prioridade não é também a família? Ora, tanto
para a esposa como para o marido a família deve ocupar um espaço de
fundamental significação. Mas por que esta ―prioridade‖ não abafou os
anseios profissionais do marido, e, necessariamente, tem que sufocar a
realização profissional da mulher? Seria interessante uma ―prioridade‖ que
também desse direitos para a mulher servir empregando seus dons nos
espaços mais amplos do que a cozinha e seu lar.510

Não houve por parte da autora questionamentos mais profundos sobre o


modelo de família e sua centralidade na moral cristã. O que houve, no espírito da
proposta da Consulta, foi a defesa de uma ―obediência à Bíblia‖ de acordo com a
interpretação da Missão Integral, visando relações mais ―sadias‖ entre mulheres e
homens na sociedade e na igreja. Propunha-se uma correção ao que parecia uma
distorção machista da igreja, de modo a reconhecer o direito e a capacidade da
mulher, mas não a libertação do modelo de igreja ou de família. Um exemplo
dessa ―negociação‖ está no trecho em que Yokimi Yuaça estabeleceu uma
conciliação possível entre ser esposa, mãe e profissional (no seu caso, pastora):

Muitos de nós temos o ser esposa e mãe como o limite da virtuosidade


feminina, e demonstramos certa preocupação com mulheres que, além da
família, querem exercer alguma coisa mais. Logo argumentamos que, assim,
elas estariam abandonando a educação de seus filhos. Não posso
compreender como esta imagem idealizada de mãe, esposa que renuncia tudo
de sua vida e de suas aspirações (inclusive sua própria realização e felicidade,
em troca de dedicação exclusiva a sua família), seja mais ―espiritual‖ do que
a atitude de quem, além da família, queira servir especificamente em outra
área que ultrapasse o seu lar.511

Uma acusação recorrente, de acordo com os relatos da pastora da igreja


Holiness, era que ―mulher na liderança só dá problemas e descamba para a
heresia‖. Contrapondo-se a essa acusação, ela lembrava que ―na história da igreja,
existiram muitos líderes homens que incorreram em heresias. Não é pelo fato de

510
YUAÇA, Yokimi.1992, p. 44.
511
YUAÇA, Yokimi.1992, p. 44.
214

ser mulher que ela está mais próxima ao erro como sustentam alguns‖. Recorria-
se, para igualar os gêneros, ao tema da redenção, pois ―o sangue de Cristo tem
poder para redimir e completar a obra de salvação tanto nos homens como nas
mulheres‖ e dialogando com o universo pentecostal, recorria-se também à
intervenção do Espírito Santo ―suficientemente capaz de distribuir dons na ‗ala‘
feminina.‖512
Um ponto fundamental para Yokimi Yuaça era o quanto o percurso do
seminário ao pastorado revelava a não formação da liderança feminina, o
favorecimento ao homem para desenvolver suas funções, e as resistências das
comunidades em receber as mulheres na liderança. O desenvolvimento posterior à
formação teológica indicava que os incentivos eram segmentados por gênero. Por
isso, a articulista questionou:

por que os homens e as mulheres, enquanto seminaristas, estudantes,


localizam-se no mesmo nível, e, após alguns anos de ministério, de
experiências no campo de trabalho, o desnível de crescimento entre um
obreiro homem e uma obreira mulher, quanto à articulação e formação de
opiniões próprias, liderança, experiências pastorais, era tão nítido? 513

O desnível, segundo a autora, não estava nas pessoas, mas nas relações, o
que apontava o exercício do pastorado pelos homens como natural, enquanto para
as mulheres alguns critérios se interpunham entre elas e a liderança, como a
expectativa de maturidade ou uma capacidade excepcional (porque demonstrada
por uma mulher). Por isso:

Ninguém questiona um jovem pastor, que pede sua ordenação, quanto ao


porquê de estar fazendo isso. Nem mesmo interpreta isto como algo que
possa indicar presunção de sua parte (afinal este é o caminho natural...). Mas,
quando uma obreira começa a pensar sobre a possibilidade da ordenação há
um caminho maior a ser percorrido. Algumas pressões acontecem
naturalmente.514

Voltando ao uso da Bíblia como forma de estabelecer negociações com o


discurso conservador para introduzir novas propostas, Yokimi Yuaça utilizou o
termo ―auxiliadora idônea‖, historicamente utilizado para limitar a participação
feminina, como um meio de reivindicar sua ampliação, atribuindo-lhe outro

512
YUAÇA, Yokimi.1992, p. 45.
513
Ibidem.
514
Ibidem.
215

sentido. Primeiro, era preciso denunciar a ausência da mulher nos espaços de


reflexão, ensino e decisão nas igrejas como uma injustiça:

Dificilmente encontramos presbíteras ou diaconisas, ou mesmo mulheres


fazendo a parte ativa nas reuniões de diretoria de uma comunidade, a não ser
que seja a convencional ―secretária‖ da reunião. Em casos mais extremos,
sequer se encontram mulheres dirigindo cultos que não sejam os específicos
de senhoras. Faz-se necessário refletir, numa comunidade onde metade ou
mais dos membros são mulheres, porque há diretorias e assembleias onde a
maioria (muitas vezes absoluta) dos que decidem são homens? 515

Em segundo lugar, era necessário denunciar essa injustiça como uma


desobediência à Bíblia e ao propósito da criação da mulher de ser uma
―auxiliadora idônea‖ do homem:

Sem dúvida, ainda temos que caminhar muito para que o auxílio idôneo das
mulheres, no que diz respeito às decisões, posicionamentos, funções de
responsabilidade, avaliação de fatos e planejamentos, seja sentida de forma
mais direta nas igrejas brasileiras.516

A diminuição da importância da mulher no pastorado, na experiência da


Igreja Evangélica Holiness, passava inclusive pela utilização do termo ―obreira‖
ao invés de ―pastora‖, o que atestava uma ―não identidade‖, conforme a própria
autora interpretou, uma vez que entre os homens se distinguiam ―obreiros‖ de
―pastores‖. Quanto à aceitação das pastoras dentro das igrejas, havia uma
diferença entre as denominações com modelo episcopal, mais hierárquico, em que
os líderes são indicados de cima para baixo e dentro do qual ―algumas pastoras
são ainda contornáveis‖. Porém, num modelo congregacional, em que a escolha se
dá de maneira mais ampliada, por toda a comunidade, ―É comum‖ escreveu a
autora, ―que comissões, formadas na igreja local para a escolha de novos obreiros,
sejam compostas por uma maioria masculina‖. O resultado era que ―Muitos dos
que compõem estas comissões nunca pensaram na possibilidade de seu próximo
‗pastor‘ ser uma ‗pastora‘.‖517
A autora concluiu o artigo com citações do livro A mulher no projeto do
Reino de Deus, de Caio Fábio, e da revista Reflexões para a mulher metodista, do
Colégio Episcopal da Igreja Metodista (igreja que desde 1971 ordenava
mulheres). Textos que falavam em ―desmachificar‖ a igreja (Caio Fábio) e em
515
YUAÇA, Yokimi. 1992, p. 46.
516
YUAÇA, Yokimi.1992, p. 4.
517
YUAÇA, Yokimi. 1992, p. 48.
216

―conversão e santificação da igreja patriarcal transformando-a numa comunidade


de discípulos‖.518 Apesar das críticas às relações entre homens e mulheres na
igreja, na família e na sociedade terem sido bem moderadas ou mesmo
conservadoras se comparadas às teólogas da libertação, a trajetória e o texto de
Yokimi Yuaça apresentou os limites e possibilidades da intervenção desse debate
nas comunidades evangélicas, apresentando como convergência a proposta de um
modo mais comunitário e cooperativo de ser igreja.
Os textos de Raquel Prance519 e Isabelle Ludovico520 abordaram as imagens
construídas sobre homens e mulheres na propaganda, no meio popular e na
ciência, a primeira a partir da Antropologia e a segunda a partir da Psicologia
(Freud e Jung). A preocupação de ambas foi mostrar como a mulher foi colocada
numa condição de inferioridade e subalternização em função do seu sexo e como
isso se reproduziu na linguagem, na representação e na autoimagem da mulher,
interferindo no desenvolvimento pessoal, nas relações afetivas e profissionais.
Suas contribuições foram as mais incorporadas ao documento final da Consulta e
aquelas que mais exploraram feministas laicas ou da Teologia da Libertação.
O texto de Hilton Figueiredo de Oliveira foi de todos os artigos o mais
conservador em relação ao impacto dos movimentos de mulheres e do feminismo
nas igrejas.521 Primeiro, porque interpretava a desigualdade entre mulheres e
homens como um histórico de ―muitos séculos de animosidade, discórdia,
exploração e desrespeito mútuo‖ que culminaram ―no estado de coisas que vemos
hoje: ambos, homem e mulher, querendo provar que são melhores e mais capazes
do que o outro‖. A sequência do texto sugere que a aparente constatação de que
―muito de nossa discussão sobre a problemática masculino-feminino, no contexto

518
YUAÇA, Yokimi. 1992, p. 48-49.
519
Apresentação da autora no Boletim: ―Raquel Julia Prance é antropóloga e fez mestrado em
Teologia no Seminário Batista do Norte, em Chicago, EUA. Batista, trabalha num projeto social
dos menonitas em Recife, PE.‖ Apresentou o texto Aspectos antropológicos do relacionamento
masculino-feminino: em busca de saúde e obediência, no Boletim Teológico 17, maio/1992, p. 3-
5.
520
Apresentação da autora no Boletim: ―Isabelle Ludovico da Silva é formada em economia e
psicologia. Da Igreja do Cristianismo Decidido, trabalha e exerce o seu ministério em Curitiba,
PR.‖ Apresentou o texto Masculino-feminino: perspectivas psicológicas, no Boletim Teológico
17, maio/1992, p. 16-26.
521
Apresentação do autor no Boletim: ―Hilton Figueiredo de Oliveira é formado em Teologia. É
pastor presbiteriano e professor de Teologia na cidade de Natal, RN.‖ Apresentou o texto A
relação masculino-feminino: saúde pela obediência, no qual reproduziu a interpretação geral sobre
o tema a partir da ―história da salvação‖ (criação, queda, redenção). Texto publicado no Boletim
Teológico 17, maio/1992, p. 27-38.
217

do Reino de Deus, tem sido gerado pelas consequências dos movimentos


feministas‖, fizesse parte do incômodo com o fato de ―as discussões sobre a
situação atual têm acontecido mais por razões sociológicas do que por
propriamente se tratar de uma distorção da mensagem bíblica‖.522 Isso ficou
evidente quando relatou:

Há alguns anos atrás, por exemplo, assisti, estarrecido e envergonhado, um


debate sobre o ministério das diaconisas. Não podia acreditar no que ouvia.
Ministros de várias partes do Brasil discutiram, durante horas, sem sequer
uma vez estarem baseados no conteúdo bíblico. Os argumentos foram
bastante variados. Porém, todos careciam de embasamento bíblico-teológico.
Afinal, o que é que traz luz a nossa reflexão? O que é que dá solidez a nossa
argumentação? O que é que motiva nossas decisões?523

A defesa do ―embasamento bíblico-teológico‖ era a reivindicação do


―discurso competente‖, de quem exercia o pastorado e ensinava teologia. Seu
proponente fazia parte de numa denominação em que ―os ministros‖ ainda
debatiam ―o ministério das diaconisas‖. Por isso, concluiu o texto propondo de
maneira evasiva ―pensar qual o lugar da mulher na igreja, que tipo de ministérios
relevantes podem e devem elas assumir‖.524
Uma análise do documento final da Consulta pode resumir a discussão sobre
a missão da mulher na igreja e avaliar a incorporação ou resistência da agenda
feminista no movimento de Missão Integral. A proposta do tema foi feita por
―algumas mulheres da FTL-Brasil que, reunidas no ano anterior para agendar uma
consulta sobre a mulher‖ perceberam ―a urgência de se estudar a relação
masculino-feminino, antes de se tratar da questão da mulher propriamente dita‖
que seria feito ―em consulta posterior‖, da qual não encontrei referência nos
Boletins posteriores. O documento da Consulta não foi redigido durante o
encontro, mas ―preparado posteriormente pela equipe de Maceió presente àquela
reunião‖.525 As palestras foram feitas por mulheres e homens presentes no Boletim
Teológico 17, com exceção de Ilze Zirbel, autora de um artigo no Boletim

522
OLIVEIRA, Hilton. A relação masculino-feminino: a saúde pela obediência. Boletim
Teológico 17, maio/1992, p. 27.
523
Ibidem.
524
OLIVEIRA, Hilton. 1992, p. 38.
525
DOCUMENTO. Masculino-feminino: em busca de saúde e obediência. Boletim Teológico 17,
maio/1992, p. 59.
218

anterior. Paul Freston e Marilia Schüller debateram as palestras. Na programação


da Consulta:

O Pr. Hilton Oliveira e Ilze Zirbel apresentaram estudos de natureza bíblico-


teológica; Raquel Prance apresentou um ensaio antropológico sobre o
relacionamento homem-mulher a partir de sua inserção numa comunidade
pobre; Isabelle Ludovico da Silva estudou o tema numa perspectiva
psicológica, enfatizando a visão de Jung; Solymar e Ronaldo Alves
abordaram o tema a partir de sua experiência prática, como casal que trabalha
com meninos e meninas de rua em Maceió, Alagoas; Yokimi Yuaça, obreira
da Igreja Holiness, em processo de ordenação, preparou um trabalho sobre a
situação da mulher no ministério eclesiástico.526

O documento foi organizado em três tópicos que resumiam as preocupações


das mulheres da FTL e das demais participações na Consulta: 1) Masculino-
Feminino na Bíblia; 2) O ser humano homem-mulher, a cultura e a sociedade; 3)
Igualdade e desigualdade sexual na igreja. Neste último tópico, o documento
lamentava: ―Infelizmente, a igreja que deveria comandar a luta pela igualdade
vem a reboque desta‖. Tecendo comparações entre a sociedade e a igreja,
considerava:

Enquanto as leis da sociedade permitem cada vez mais o livre acesso da


mulher a todos os setores da vida pública e os estudos sobre identidade e
relacionamento reforçam a igualdade, a grande maioria das igrejas proíbem o
acesso da mulher a cargos de liderança, bem como a maior parte de sua
reflexão teológica sacraliza a desigualdade.527

O documento também responsabilizava as estruturas eclesiásticas de poder e


enfatizava como a participação feminina poderia contribuir para a transformação
do quadro vigente:

Apesar de vermos aumentar o número de pastoras ordenadas ao ministério, o


número de homens nesta função é infinitamente maior, sofrendo as pastoras
existentes vários tipos de discriminação. Isso se deve, especialmente, ao fato
dos homens controlarem as estruturas e a reflexão teológica da igreja.
Certamente, com o generalizado avanço dos direitos da mulher, a igreja
experimentará uma maior socialização das suas estruturas e do seu pensar
teológico, o que implementará mais rapidamente a igualdade entre homem e
mulher no seu seio.528

526
Ibidem.
527
DOCUMENTO. Masculino-feminino: em busca de saúde e obediência. Boletim Teológico 17,
maio/1992, p. 62.
528
DOCUMENTO. Masculino-feminino: em busca de saúde e obediência. Boletim Teológico 17,
maio/1992, p. 63.
219

No último parágrafo do documento, o conceito de ―Reino de Deus‖ foi


utilizado para incentivar a promoção do igualitarismo de gênero, através de uma
―hermenêutica comunitária (entre homens e mulheres), uma educação sexual
comunitária e um ministério comunitário, onde homens e mulheres, cidadãos
iguais do Reino, serão parceiros iguais na história‖.529Como aconteceu na
Teologia da Libertação, a reflexão sobre a mulher na Missão Integralrelacionava-
se com mudanças nas relações de gênero no conjunto da sociedade e tentava
impulsioná-las nas igrejas. A ampliação dos direitos da mulher foi reconhecida na
Constituição de 1988, contemporânea às entrevistas das teólogas da libertação e
anterior à Consulta da FTL, e se tornou possível por pressão dos movimentos de
mulheres, da militância feminista na academia e nos partidos, que assumiram a
responsabilidade de incorporar as reinvindicações por igualdade e emancipação
feminina. As respostas do Protestantismo Ecumênico e daMissão Integral a este
cenário foram diferentes, porém, convergiram para reivindicar mudanças na
igreja, seus símbolos e estruturas, que demonstram o desenvolvimento de um
feminismo cristão, a ser interpretado tanto a partir da história do movimento
feminista quanto do cristianismo no Brasil.
A divisão do campo político entre ―direita‖ e ―esquerda‖ não é totalmente
aplicável ao campo religioso, cujos conflitos são significados por outras
polarizações, como ortodoxo e herético, conservador e liberal, fundamentalista e
ecumênico, tradicional e ―modernista‖, católico e protestante, histórico e
pentecostal, dentre outras que se relacionam com a presente discussão, mas, por
analogia e comparação das inserções religiosas nas clivagens sociais e lutas
políticas, é possível situar discursos e práticas à esquerda ou à direita do campo
religioso.
Neste sentido, do mesmo modo que o feminismo laico enfrentou resistências
na esquerda e,ao mesmo tempo,encontrou no campo das esquerdas e nas lutas
comuns contra a ditadura o ambiente mais propício para se organizar e dar
visibilidade às suas lutas, as reivindicações das mulheres cristãs, mesmo
contempladas em outros espaços protestantes que não o Protestantismo
Ecumênico e a Missão Integral, tiveram nestes últimos a possibilidade de

529
DOCUMENTO. Masculino-feminino: em busca de saúde e obediência. Boletim Teológico 17,
maio/1992, p. 64.
220

estabelecer uma interlocução permanente e criar um segmento cristão do


feminismo, mais próximo das esquerdas políticas no caso do ecumenismo, menos
próximo no caso da Missão Integral, mas ambas ―à esquerda‖ no seio das
comunidades protestantes.
221

Capítulo V
Minorias militantes e teologias situadas: negros e homossexuais em
debate no protestantismo

Nos anos 60 e começo dos 70 difundiu-se


a convicção de que não era justo o branco
liberal falar pelo negro, o homem de
mente aberta pela mulher, o europeu
progressista pelo africano ou asiático; mas
que era preciso reconhecer, a esses
oprimidos, o direito de usarem a própria
voz, ainda e sobretudo quando errassem
[...]: menos importante do que o conteúdo
do discurso era quem o proferia. Renato
Janine Ribeiro.530

Religião, racismo e Teologia Negra

O movimento negro também desafiou a ―totalidade‖ na utopia da esquerda a


partir dos anos 1960 e 1970, ressaltando que muitas desigualdades sociais estavam
fundamentadas em hierarquias de cor e no preconceito às heranças culturais
africanas, denunciando a violência física e simbólica à população
afrodescendente, afirmando a necessidade de criar o poder negro e valorizar a
estética negra. Nos EUA, duas matrizes importantes do movimento negro foram
atravessadas pela religião no enfrentamento à segregação racial: o movimento
pelos direitos civis, que tinha no pastor batista Martin Luther King Jr. (1929-
1968) um dos expoentes, e o separatismo negro, herdeiro do pan-africanismo de
Marcus Garvey (1887-1940), que encontrou ressonância no líder mulçumano
Malcolm X (1925-1965). O primeiro pautou-se na ação não violenta como método
de mobilização e resistência à segregação, defendendo a integração dos negros no
―sonho americano‖, como em seu famoso discurso na Marcha para Washington
em 1963:

Eu digo a vocês hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as


dificuldades de hoje e de amanhã, eu ainda tenho um sonho. É um sonho
profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho de que um
dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença:
―nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os
homens são criados iguais‖ [...] Eu tenho um sonho de que um dia minhas

530
Prefácio do livro HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a
Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 17.
222

quatro pequenas crianças vão viver em uma nação onde elas não serão
julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.531

O separatismo negro, por outro lado, se opunha à segregação propondo ―a


independência das pessoas descendentes de africanos, aqui no ocidente e em
primeiro lugar aqui nos EUA‖. Se o movimento dos direitos civis defendia a não
violência, Malcolm X defendia que os negros lutassem contra o racismo ―por
qualquer meio necessário‖, entendendo o recurso à violência como uma legítima
defesa do oprimido contra o opressor.532 Assim:

O movimento guiado por Martin Luther King era reformista, integracionista e


não violento (se bem que nos últimos anos as posições de King se tivessem
tornado mais radicais); a Organização promovida por Malcolm X era
revolucionária, separatista e não fugia da teorização da violência
revolucionária (se bem que nos últimos meses de vida Malcolm X se
propusesse o problema de uma análise política mais aprofundada do
assunto).533

Perfis e estratégias diferentes que não impediram que ambos fossem


reprimidos e ao mesmo tempo se tornassem referências de organização,
autodeterminação e reflexão para os movimentos negros subsequentes. O mais
emblemático foi o movimento dos Black Panthers (Panteras Negras), mais
próximo da influência de Malcolm X e do Black Power, de Stokeley Carmichael
(1941-1998). Com a defesa do poder negro ―a luta não segue mais a estratégia da
integração, mas é conduzida em termos de conquista de poder real e efetivo em
todos os níveis pela comunidade negra‖.534
Como as experiências da igreja negra e da religiosidade negra foram
formadoras de militância nos movimentos de direitos civis e também em prol do
poder negro, surgiram elaborações teológicas que reconheciam a legítima defesa e
promoviam a autoafirmação. Em 1968, o pastor Albert Cleage (1911-2000)

531
Discurso Eu tenho um sonho, de Martin Luther King, disponível no Youtube e em coletâneas
de discursos do pastor batista, como Um apelo à consciência: os melhores discursos de Martin
Luther King, editado por Clayborne Carson e Kris Shepard e publicado no Brasil pela editora
Zahar. (CARSON, 2006, p. 73-76). Uma edição em português dos seus sermões foi publicada
ainda em vida por uma editora portuguesa no ano de 1966: KING, Martin Luther. Força para
amar. Trad. Margarida Bernard da Costa, Lisboa: Edições Tapir, 1966.
532
Discurso Por qualquer meio necessário, de Malcon X, disponível no Youtube. Uma abrangente
biografia do líder mulçumano foi publicada recentemente: MARABLE, Manning. Malcolm X: uma
vida de recordações. Tradução Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
533
GIBELINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. 392-393.
534
GIBELINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. 393.
223

publicou uma coletânea de sermões intitulada O messias negro, no qual


interpretava as narrativas bíblicas do Êxodo e da vida de Cristo como uma história
do povo negro eleito de Deus. Em 1969, a Conferência dos Teólogos e Pregadores
Negros dos EUA redigiu uma Declaração sobre a Teologia Negra, definida como
―uma Teologia da Libertação Negra‖ e também ―uma Teologia da Negritude‖, isto
é: ―a afirmação da humanidade negra que emancipa o povo negro do racismo
branco, provendo assim autêntica liberdade tanto para o povo branco como para o
povo negro‖.535 Porém, os marcos fundadores da Teologia Negra encontram-se
nos livros Teologia Negra e poder negro (1969), Teologia Negra da Libertação
(1970) e O Deus dos oprimidos (1975), do teólogo afro-americano James Cone.
A Teologia Negra,como uma Teologia da Libertação proposta por James
Cone, se apropriava do símbolo do Messias negro para construir o falar de Deus a
partir da vivência das comunidades negras e da experiência de ser negro numa
sociedade segregada. Desta forma, o Cristo e o Deus neutro ou incolor da teologia
tradicional eram denunciados como legitimadores do ―Deus branco‖ da
segregação e dos movimentos de supremacia branca, como a Ku Klux Klan. Nas
palavras de James Cone:

Deus não é daltônico, isto é, indiferente às cores. Dizer que Deus não faz
distinção de cor é como dizer que ele não faz distinção entre justiça e
injustiça, entre razão e desrazão, entre bem e mal [...] Deus é negro. A
negritude de Deus significa que Deus fez da condição dos oprimidos sua
própria condição.536

No Brasil, a religião também atravessou os movimentos de resistência


negra, como na Revolta dos Malês na Bahia do século XIX, em que escravos
islamizados organizaram e lideraram a rebelião. No século XX, o advento da
República não garantiu plenamente a liberdade religiosa para as religiões não
cristãs, principalmente o Candomblé e a Umbanda, que foram submetidas muitas
vezes à repressão policial nos espaços de culto, por causa de uma legislação que
reproduzia estigmas de primitivismo, desordem e charlatanismo às religiões afro-
brasileiras. Em resposta a esta cidadania parcial, surgiram federações em defesa

535
GIBELINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. p. 394-395
536
CONE, JAMES H. Teologia Negra. Trad. Euclides Carneiro da Silva. São Paulo: Paulinas,
1986.
224

das ―religiões de matriz africana‖, como a Federação Baiana dos Cultos Afro-
brasileiros (FEBACAB) em 1946.537
Na primeira metade do século XX, a relação entre entidades negras,
religiões afro-brasileiras e esquerdas políticas nem sempre foram solidárias. A
Frente Negra Brasileira (FNB), criada em São Paulo, em 1931, mirava os negros
norte-americanos como exemplo, ministrava aulas de catecismo católico nos
cursos de formação, apresentava certo moralismo na esfera do comportamento e
pretendia educar o povo negro a um padrão de vida que o fizesse respeitado pelo
Estado. Além disso, aproximava-se politicamente muito mais de ideologias de
direita, reproduzindo um discurso anticomunista, do que das ideologias de
esquerda, como transparece na filiação de intelectuais negros, como Abdias
Nascimento (1914-2011) ao Integralismo e no apoio da FNB ao Estado Novo.538
Nos anos 1960 e 1970, surgiram clubes, grupos e movimentos culturais
negros, que buscavam: 1) ampliar a sociabilidade da população afro-brasileira,
promovendo educação cultural e lazer aos seus membros e/ou sócios; 2) se
contrapor aos espaços de sociabilidade que restringiam ou impediam, por racismo
e preconceito de classe, o acesso da população negra; 3) afirmar a identidade e
assumir uma estética negra. Procuravam se identificar com as lutas
anticolonialistas na África e com o combate aos regimes segregacionistas
(Apartheid, Segregação americana, etc.) e valorizavam as expressões culturais
mais identificadas com as heranças africanas no Brasil.
Nos anos 1980 e 1990, os bailes funks, que começaram nas quadras das
escolas de samba do Rio, as discotecas e a difusão do reggae nas periferias das
cidades com maior população negra (Salvador, São Luís, Rio de Janeiro),
popularizaram estéticas de afirmação da identidade como o cabelo black power e
os dreadlocks, este último comumente chamado de ―rasta‖ por associação com o

537
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FILHO, Walter Fraga. Uma história do negro no Brasil.
Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais/Fundação Cultural Palmares, 2006.
538
―Talvez essa proximidade fosse uma estratégia para garantir prestígio e legitimidade à Frente,
mas também é possível que alguns militantes vissem no projeto nacionalista do governo Vargas a
possibilidade de realização de muitos de seus anseios. A expectativa da comunidade negra era de
que o Estado assumisse a ideia de um país mestiço onde o racismo não fosse tolerado e, ao mesmo
tempo, amparasse a população negra que sofria com a pobreza, o analfabetismo, a prostituição e o
alcoolismo. Era o desejo de um Estado forte, capaz de garantir a cidadania aos negros da ―raça
brasileira‖. Assim, eles esperavam que a sociedade os reconhecesse como parte da nação, como
agentes formadores da ―raça mestiça‖. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FILHO, Walter Fraga.
Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais/Fundação Cultural
Palmares, 2006, p. 267-268.
225

movimento Rastafári. Surgiram também os blocos afros no carnaval de Salvador,


dentre os quais o Ilê Aiyê (1974) e estilos musicais como a Axé Music, que se
tornou a música afro-pop de Salvador, unindo música afro e trio elétrico.539
O surgimento do movimento negro como expressão não apenas de
afirmação da identidade, mas de mobilização e representação de minorias
políticas, ocorreu, assim como o movimento feminista no Brasil, durante a
Ditadura Militar. A conjuntura repressiva, ainda sob vigência do AI-5, favoreceu
as aproximações com as esquerdas, em oposição comum à ditadura e em
reinvindicação por liberdades democráticas. Os movimentos de minorias
(feminista, negro, gay) criaram, cada um, sua respectiva imprensa. No final da
década de 1970 e início dos anos 1980 surgiram jornais e revistas que
constituíram uma ―imprensa negra‖, como Sinba (1977), Tição (1978), Koisa de
Crioulo (1981), Nego (1981), este último, primeiro como boletim e depois como
jornal do Movimento Negro Unificado (MNU), surgido três anos antes.540 De
acordo com Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho:

A formação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial,


que depois passou a se intitular apenas Movimento Negro Unificado (MNU),
contestava a idéia de que se vivia uma democracia racial brasileira, idéia que
os militares adotaram na década de 1970. Mas a questão racial também não
encontrava lugar nas organizações de esquerda. Para a maioria delas, a
desigualdade e o preconceito raciais eram decorrentes da exploração da
classe dominante no sistema capitalista. Para a esquerda, só a revolução
socialista poderia aniquilar toda e qualquer desigualdade, por isso não fazia
sentido uma luta específica contra o racismo. Ao eliminar a desigualdade
social, automaticamente se eliminaria a desigualdade racial – era assim que a
maioria da esquerda pensava. (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 291)

O movimento negro nasceu insurgindo-se, portanto, contra três problemas:


1) o racismo e a desigualdade na sociedade brasileira, muitas vezes escondidos
pelo Estado através do mito da democracia racial; 2) a Ditadura Militar e a
ausência de liberdades democráticas; 3) a subordinação da questão racial à
questão de classe no discurso das esquerdas. Em relação aos movimentos norte-
americanos, a militância negra no Brasil apresentou tanto influências e
semelhanças quanto ênfases diferentes. Ainda segundo Wlamyra Albuquerque e
Walter Fraga Filho:
539
GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo: Editora
34, 2000. p. 15-17.
540
ARAÚJO, Maria Paula. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000. p. 30-31.
226

A militância negra brasileira foi fortemente influenciada pela trajetória das


organizações negras norte-americanas em defesa dos direitos civis e
especialmente do movimento Black Power. Ocorre que o movimento negro
norte-americano se desenrolava numa sociedade baseada no modelo bi-racial
de classificação, ou seja, um modelo que só reconhecia negro e branco como
categorias raciais. O mestiço de negro, o pardo, por exemplo, lá era
considerado igualmente negro. A questão racial no Brasil e nos Estados
Unidos tem histórias bem diferentes. Se nos Estados Unidos a identidade
negra era definida pela afro-descendência, no Brasil ela era, e continua a ser,
definida pela cor da pele e outros traços físicos, sobretudo textura do cabelo.
É por isso que um pardo claro pode ―se passar‖ por branco, especialmente se
tem dinheiro, educação, prestígio político. Assim, níveis de renda e educação
podem influenciar bastante na classificação e na autoclassificação raciais.
(ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 290).

No livro Católico, protestante, cidadão,Ângela Paiva comparou a influência


da religião na reivindicação de direitos e no exercício da cidadania no Brasil e nos
EUA em dois momentos históricos distintos: 1) a campanha abolicionista nos dois
países, 2) a luta por direitos civis (EUA) e de oposição à ditadura (Brasil) nos
anos 1950 e 1960. No primeiro caso, a discussão tentou compreender como o
catolicismo, no Brasil, e o protestantismo, nos EUA, contribuíram para formar um
ativismo religioso contra a escravidão e qual o grau de mobilização do discurso
religioso a favor da abolição pelos protagonistas do abolicionismo. No segundo
caso, o quanto o ativismo religioso estava enraizado ou conseguia enraizar sua
pauta no senso comum e na opinião pública, tomando como parâmetros a
Conferência da Liderança Cristã no Sul (SCLC) na luta contra a segregação e a
Ação Popular (AP) formada por leigos católicos de esquerda na luta contra a
ditadura.541
O exercício de compreender comparativamente o ativismo religioso de
matriz protestante no Brasil e católico nos EUA, nesses e em outros temas, ainda
está por ser feito, mas o que interessa a este trabalho é pensar a presença ou a
ausência do cristianismo como um elemento formador de ativismo protestante no
movimento negro. Isso passa por compreender a relação entre protestantismo e
negritude no Brasil.

541
Na segunda comparação, apenas nos EUA a questão racial estava colocada, porém lideranças
dos direitos civis nos EUA, como Ralph Albernarty, colaboraram com a campanha de denúncia
dos exilados brasileiros contra a tortura no Brasil, se aproximaram de Dom Hélder Câmara e dos
protestantes ecumênicos, como Jovelino Ramos e Anivaldo Padilha.
227

O protestantismo imigratório e missionário que aportou no Brasil no século


XIX apresentou uma convivência pacífica com a escravidão. Como um dos
processos que contribuíram para a chegada de missionários norte-americanos no
Império Brasileiro foi a Guerra de Secessão nos EUA, muitos sulistas imigraram
para o País. O protestantismo de origem missionária que se instaurou no Brasil na
segunda metade do século XIX foi fundamentalmente norte-americano, sulista e
escravagista. Muitos missionários tinham escravos, outros, quer favoráveis ou
contrários ao escravismo, não criticaram publicamente o sistema, mantendo o
discurso da igreja como uma organização espiritual, que não deveria se intrometer
nos assuntos de ordem política.
Houve exceções e idiossincrasias. Eduardo Carlos Pereira (1855-1923)
escreveu em 1893 uma denúncia do colaboracionismo cristão com a escravidão no
Brasil, intimando os escravocratas protestantes a alforriarem seus escravos. A
Igreja Evangélica Fluminense, liderada por Robert Kalley (1809-1888), excluiu
do rol de membros um senhor de escravos que não quis obedecer a recomendação
do seu pastor, que dizia:

Para o senhor, o escravo é SEU PRÓXIMO; portanto está incluído na grande


lei que diz: ―Amarás ao teu próximo, como a ti mesmo‖. Porventura o senhor
gostaria de ser tratado por outro homem como escravo? [...] O escravo não é
filho do seu proprietário; não trabalha porque o ama, nem porque quer ser
generoso, trabalhando para ele como uma besta, sem obter recompensa de
espécie alguma do seu trabalho; e escravo só trabalha porque teme as
ameaças de pancadas e castigos desumanos da parte de um roubador da
liberdade alheia! O senhor que procede desse modo é inimigo de Cristo: não
pode ser membro da igreja de Jesus, daquele que nos resgatou da maldição
(Gál. 3: 13) e da lei do pecado da morte (Rom. 8:2) e nos deu liberdade,
fazendo-nos FILHOS DE DEUS (Rom. 8: 15 – 16).542

Ashbel Green Simonton (1833-1867), fundador da Igreja Presbiteriana do


Brasil (IPB), foi enviado por uma missão do norte dos EUA e era contrário à
escravidão. O próprio missionário registrou em seu diário vários trechos
condenando o escravismo, porém, antes de embarcar para o Brasil, este
missionário formado no norte dos EUA atuou durante muitos anos no sul,
negociando com o cotidiano escravagista da região para melhor desempenhar seus
ofícios profissionais e religiosos. A Igreja Presbiteriana do Brasil, embora fundada
sob a égide de uma missão do norte, criou seu primeiro Sínodo – instância
542
KALLEY. Robert. ―Exortação sobre a escravidão‖. apud REILY, Duncan A. História
Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984, p. 121.
228

máxima da denominação – através da unificação dos missionários do norte e do


sul dos EUA que atuavam no Brasil, com maioria destes últimos em 1888.543 Os
batistas, vinculados à escravagista Junta de Missões Estrangeiras de Richmond,
chegaram a comprar a liberdade de escravos impedidos pelos senhores de
comparecerem aos cultos, mas os colonos e missionários norte-americanos se
sentiram confortáveis com a escravidão brasileira, transitando entre o entusiasmo
e a omissão com o escravismo.544
O protestantismo missionário era incipiente, minoritário e com muitos
limites à sua atuação religiosa numa monarquia que reconhecia o catolicismo
como religião oficial. Os protestantes tiveram muita cautela, sobretudo no
posicionamento dos missionários estrangeiros, em criticar os pilares da ordem
social e política do País, isso quando reconheciam a necessidade de tecer alguma
crítica. Este protestantismo conviveu com os últimos trinta anos da escravidão
enquanto tentava consolidar-se, por isso, interessou-se em garantir liberdade
religiosa e direitos de cidadania no Império, negligenciando uma ação pública
mais crítica das estruturas do País, dentre elas a escravidão. O comportamento
protestante frente à escravidão foi de condenação moral, limitada quase sempre ao
plano individual, conivência com o sistema e inexistência de críticas ou medidas
institucionais contra o escravismo.
Os protestantes, enquanto segmento religioso, manifestavam dois racismos:
1) compartilhado pela sociedade, fruto de três séculos de escravidão; 2) de origem
interna, fundamentado nas próprias referências teológicas e doutrinárias. Como
acontecera com o catolicismo, o protestantismo também encontrou na Bíblia
meios de defender a escravidão ou incutir nos fiéis o respeito à ordem instituída,
desde que a mesma não atentasse contra a liberdade religiosa, principal
reivindicação das missões que se estabeleceram desde 1850, mas só alcançada
plenamente na República. Se durante o Império não houve crítica institucional por
parte das igrejas ao sistema escravista, após a Abolição em 1888 e a Proclamação
da República em 1889, ambos os processos foram apresentados no discurso
evangélico como mudanças de grande proporção e sem conflito social, que

543
REILY, Duncan A. História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984,
p. 139.
544
SILVA, Elizete da. Cidadãos de outra pátria: anglicanos e batistas na Bahia. Tese (Doutorado
em História) – USP, São Paulo, 1998.p. 165-177.
229

introduziram o Brasil no caminho do progresso, ao qual o protestantismo estaria


afeito, segundo seus propagandistas.
O pós-abolição no Brasil foi distinto do que ocorreu nos EUA, pois, mesmo
que as leis subsequentes ao fim da escravidão não tenham provido a população
liberta de condições básicas de cidadania e tentassem promover o branqueamento
cultural, criminalizando a presença do negro e de seus elementos culturais no
espaço público, não se instituiu aqui um processo de segregação racial como o
norte-americano.545Este fato, aliado ao caráter minoritário do protestantismo no
Brasil e ao mito da democracia racial brasileira, impediu que as igrejas estivessem
polarizadas ou engajadas em função do conflito racial. O que não significava que
o conflito não estivesse subjacente ou explícito na segmentação denominacional
protestante, em movimentos dissidentes e na disputa do campo religioso,
incluindo aí a polêmica religiosa com os cultos afro-brasileiros. Uma mesma
denominação poderia apresentar igrejas locais com experiências religiosas muito
diferentes a depender da composição étnica e social dos seus membros e do
próprio lugar que ocupasse na geografia urbana.
A relação do protestantismo com a negritude, no Brasil, foi marcada desde o
início pelo sentimento de superioridade dos missionários estrangeiros, pelo
preterimento das lideranças brasileiras, tratadas de ―nativas‖, e pelo estigma da
cor negra associada ao pecado. Os protestantes reproduziam um preconceito social
e reforçavam-no com a bagagem teológica missionária, aprendida de agentes
estrangeiros inseridos nos circuitos imperialistas europeus e norte-americanos. Ao
mesmo tempo, surgiram movimentos dissidentes que contestavam tanto a
dependência econômica quanto cultural às missões e tentavam criar um
protestantismo autenticamente nacional.
O pentecostalismo representou outra experiência de negritude no seio do
protestantismo por ter se desenvolvido predominantemente nas camadas mais
pobres da população, nas quais os negros eram maioria. Nas igrejas pentecostais,
mais do que no protestantismo histórico, a vivência de um cristianismo negro
esteve mais presente, mesmo marcada por ambiguidades. Em primeiro lugar,
porque os negros encontraram nas igrejas pentecostais, principalmente naquelas

545
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: EDUSP,
1965.
230

inseridas em bairros periféricos, um novo espaço de sociabilidade. Em segundo


lugar, porque a disputa com os cultos afros e a maior inserção na cultura popular
fez surgir experiências religiosas e expressões litúrgicas influenciadas por uma
religiosidade negra multifacetada. Em terceiro lugar, porque o pentecostalismo
contribuiu com a formação de lideranças negras comunitárias e se tornou uma
possibilidade de ascensão social do negro através da reprodução da ética
protestante.546
Nada disso impediu a reprodução do racismo nas igrejas. Tal como o
protestantismo histórico, o pentecostalismo também reforçava o estigma da cor
negra e de tudo o que pudesse ser associado às culturas africanas. Demonizava-se
o Candomblé e a Umbanda, embora assimilando, muitas vezes, alguns aspectos da
cosmologia e dos bens simbólicos dessas religiões. O neopentecostalismo, surgido
no final dos anos 1970, acrescentou a este racismo teológico e doutrinário, a
pregação da maldição hereditária e da batalha espiritual, que resgatavam discursos
que contribuíram para legitimar a escravidão e a segregação.
A doutrina da maldição hereditáriareforçava o racismo teológico das
missões norte-americanaque aportaram no Brasil durante o século XIX, que
apregoavam que a África e os negros seriam descendentes de Cam, o filho de Noé
que foi amaldiçoado com a servidão a seus irmãos, de quem deveria ser escravo,
por ter ―conhecido‖ a nudez do pai.547 Para romper com esta maldição, os negros
deveriam se converter e libertarem-se de qualquer ligação espiritual com a África
ou seu legado. Na reelaboração realizada pelo neopentecostalismo, qualquer
filiação religiosa anterior à conversão submeteria o sujeito a um espírito
amaldiçoado transmissível aos descendentes. Na análise deRicardo Mariano:

Os que pregam acerca de tais espíritos creem que um indivíduo, crente ou


não, tendo ancestral que pecara ou mantivera ligações com o espiritismo,
idolatria, ou quaisquer práticas religiosas antibíblicas, carrega consigo a
maldição provocada pelo espírito herdado. Para libertar-se, precisa renunciar
ao pecado e às ligações demoníacas de seus ancestrais e ―quebrar‖, por meio

546
DAVI, Marcos. A religião mais negra do Brasil: por que mais de oito milhões de negros são
pentecostais? São Paulo: Mundo Cristão, 2004.
547
Alguns biblistas chamam a atenção para a palavra hebraica traduzida em algumas versões como
―viu‖, e consideram que a tradução mais correta seria ―conheceu‖, que na língua original não
possuía um significado apenas intelectual, mas também sexual. Alguns defendem que Cam foi
punido por ter mantido relações incestuosas com o pai, Noé, que estava bêbado.
231

do poder de Deus posto em ação pelo culto de intercessão, as maldições


hereditárias.548

A doutrina da batalha espiritual enfatizava o conflito do bem e do mal,


permeando a vida do cristão e das igrejas com exércitos de espíritos, principados e
potestades a habitar nas estruturas do mundo, causando males sociais e
individuais. Para enfrentá-los, os cristãos e as igrejas deveriam reforçar suas
trincheiras espirituais, com a armadura da fé: oração, leitura bíblica, renúncia ao
mal. A pregação da Batalha Espiritual e da Maldição Hereditária circulou nas
pregações e oralidades do cotidiano neopentecostal antes de circularem no
mercado editorial evangélico com produções brasileiras. Os autores nacionais do
neopentecostalismo mais destacados foram Jorge Linhares (1952-) e Robson
Rodovalho (1955-), respectivamente, autores dos livros Benção e Maldição
(1992) e Quebrando as Maldições hereditárias (1994). Porém, uma literatura
estrangeira estava em circulação desde a década anterior e serviu de referência a
essas obras nacionais.549
O reforço ao racismo por esta literatura decorria do modo como o bem e o
mal eram associados respectivamente ao branco e ao negro, a exemplo do livro
Este mundo tenebroso,de Frank Perreti, povoado por seres do bem de cor branca,
olhos claros, cabelos loiros, prateados ou ruivos, e seres do mal de cor ou veste
negra, olhos ou óculos escuros, cabelos pretos. Os dois volumes desta obra de
ficção cristã foram lançados nos EUA e publicados no Brasil em 1988 e 1989.
Tornaram-se best sellers e favoreceram a boa acolhida da Batalha Espiritual nas
igrejas evangélicas brasileiras. Abaixo, alguns trechos evidenciam a representação
racial do confronto entre o bem e o mal.

Trecho I
— Os anjos dos seus sonhos? — Vovó assentiu com a cabeça. — Que
aparência têm?
— Oh, de gente, mas diferentes de todo o mundo. São grandes, muito
bonitos, roupas coloridas, grandes espadas ao lado, asas enormes, muito
brilhantes. Um
deles, que apareceu ontem à noite, fez-me lembrar meu filho; era alto, loiro,
parecia escandinavo. (p. 192)
Trecho II

548
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São
Paulo: Loyola, 1999, p. 139
549
LINHARES, Jorge. Benção e Maldição. São Paulo: Betânia, 1992. RODOVALHO, Robson.
Quebrando as Maldições Hereditárias. Brasília: Koinonia, 1994.
232

Quando Rafar desceu mais, notou uma concentração de espíritos negros


cercando um casarão de pedra de diversos andares nas cercanias do conjunto.
É ali que está o Homem Forte, pensou ele. (p. 227)
Trecho III
o Covil do Valente parecia uma caldeira que fervia e zumbia com miríades
de espíritos negros, formando uma neblina pululante e viva acima da
aglomeração de prédios. [...] Nesse momento, os demônios estavam
alvoroçados, à semelhança de enraivecido enxame de abelhas. (p. 448).
(Grifos meus)550

É muito comum, até hoje, nos relatos de visões e profecias pentecostais e


neopentecostais, a descrição de seres celestiais brancos, alvos, loiros ou ruivos,
olhos claros, enquanto os demônios são sempre escuros, negros, sombrios. O
―Homem forte‖ e o ―Valente‖, citados no livro, eram apropriações literárias de
parábolas narradas nos evangelhos, em que Jesus sugeria não ser possível saquear
a casa sem amarrar o ―homem forte‖ ou o ―valente‖ que nela habitava. Enquanto
na Teologia da Libertação era possível encontrar interpretações políticas da
parábola, Frank Perreti a interpretou como uma ação das forças do bem,
amarrando o demônio para libertar as pessoas presas pelos espíritos do mal.
Diante de todo esse componente racista, o que teria levado uma parte
considerável da população negra a aderir ao protestantismo e, mais ainda, a
ingressar nas igrejas? Dois intelectuais que fizeram parte da missão francesa na
USP se dedicaram ao estudo do fenômeno religioso na sociedade brasileira e
ofereceram algumas explicações: o antropólogo Roger Bastide (1898-1974), que
substituiu Claude Lévi-Strauss (1908-2009) em 1938, e o historiador Emile
Leonard (1891-1961), indicado por Lucien Febvre (1878-1956) à universidade
paulista em 1950. Ambos analisaram em seus livros a relação do protestantismo
com a população negra. Ambos tinham formação protestante, assumida pelo
historiador, relegada ao esquecimento pelo antropólogo depois da iniciação ao
Candomblé. O primeiro realizou um estudo publicado com o títuloAs religiões
africanas no Brasil,551 enquanto o segundo publicou em oito edições da Revista
de História da USP um trabalho pioneiro que resultou no livro O protestantismo
brasileiro.552

550
PERRETI, Frank. Este mundo tenebroso. São Paulo: Editora Vida, 1988.
551
BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. Tradução: Maria Eloisa Capelato. São
Paulo: Pioneira, 1971.
552
LEONARD, Émile. O iluminismo num protestantismo de constituição recente. Trad. Prócoro
Velásques Filho e Lóide Barbosa Velasques. São Paulo: Imprensa Metodista, 1988.
233

Para Roger Bastide, a principal motivação da conversão do negro ao


pentecostalismo era a perspectiva de ascensão social ou de reconhecimento da
comunidade decorrente da adoção de um estilo de vida considerado benéfico à
vida do indivíduo e sua família, calcado na ética protestante e respeitável para
uma moralidade conservadora. Para Émile Leonard, além das motivações
indicadas pelo antropólogo conterrâneo, o pentecostalismo também proporcionava
aos negros uma religiosidade mais próxima da cultura popular e da herança
cultural negra, mais gestual e emotiva, aproximando o sagrado da vida cotidiana e
da intimidade dos fiéis, seja no espaço litúrgico ou na devoção pessoal.
Considerando a influência norte-americana no protestantismo brasileiro, um
dado que precisa ser melhor investigado é quanto à recepção das notícias sobre o
movimento pelos direitos civis nos EUA e sobre o protagonismo das igrejas
negras e do pastor batista Martin Luther King Jr. Jorge Santana investigou essa
recepção entre os batistas entre os anos de 1955 (início do movimento) e 1968
(morte de King) e constatou tanto um silêncio sobre o movimento e seu líder,
quanto uma tentativa de transformá-los em exemplos inspiradores, mas sem
conexão com os conflitos raciais. Pesou a origem dos batistas brasileiros,
vinculados à Junta de Missões Estrangeiras de Richmond-EUA, que
historicamente situou-se num polo favorável à escravidão e à segregação.553
No Protestantismo Ecumênico, Richard Shaull mencionou em alguns artigos
e livros o ativismo cristão nos movimentos pelos direitos civis, destacando-o
como um exemplo do que naquele momento estava sendo chamado de
responsabilidade social da igreja. Rubem Alves o considerou em sua tese de
doutorado em Teologia, defendida em Princeton, EUA, no ano do assassinato de
Martin Luther King (1968), colocando-o entre os desafios da igreja em assumir a
agenda dos oprimidos. A Conferência do Nordeste, com um conjunto abrangente
de temas para a discussão sobre os problemas nacionais em 1962, não abordou o
problema do racismo ou do negro como um tema específico. No movimento de
Missão Integral, o racismo não apareceu como tema específico durante o
Congresso Brasileiro de Evangelização em 1983, nem nos boletins da FTL ou
publicações da ABU durante toda a década de 1980.

553
SANTANA, Jorge Luiz Nery de. Práticas e representações étnicas nas narrativas religiosas
dos batistas em Feira de Santana (1947- 1988). Dissertação (Mestrado em História) – UEFS, Feira
de Santana, 2010.
234

O CEI, matriz do que viria a ser o CEDI, publicou em 1968 a primeira


edição brasileira do livro O poder negro, de Stokely Carmichael. Os livros da
Teologia Negra de James Cone só foram publicados no Brasil nos anos 1980, mas
uma edição argentina contou com o prefácio de Paulo Freire (1921-1997) em
1974. Como a Teologia Negra afirmava ser uma Teologia da Libertação,
encontrou na congênere latino-americana uma aliada e difusora, ainda que tardia
se comparada com a recepção do feminismo.
A assunção da temática negra no protestantismo ocorreria através da criação
de missões e pastorais sociais que encontraram o racismo como um componente
fundamental das desigualdades. O pioneirismo coube aos metodistas, que
inseriram o combate ao racismo e a defesa da igualdade entre negros e brancos no
seu Credo Social de 1968 e criaram, em 1973, por iniciativa de pessoas negras da
denominação, a Comissão Nacional de Combate ao Racismo, oficializada pela
Igreja Metodista em 1985, quando também foi instituída a Pastoral de Combate ao
Racismo. Um ano depois, agregando outras denominações do protestantismo
histórico, surgiu a entidade interdenominacional Comissão Ecumênica Nacional
de Combate ao Racismo (CENACORA). Uma participante das pastorais negras
metodistas foi a gaúcha Marilia Schüller, que relatou:

Eu estive envolvida também no começo do ministério de combate ao racismo


da Igreja Metodista. Ela foi uma das pioneiras na pastoral nessa área. Havia
núcleos desse ministério no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eu participava
em São Paulo. Foi através desse processo que a minha consciência das
questões e a análise da questão do racismo se tornaram mais consistentes.
Estávamos engajados no que era uma batalha e ainda hoje é uma batalha:
achar espaço na igreja pra refletir sobre relações raciais, sobre o racismo e
fazer reflexões bíblico-teológicas também nessa área.554

Na mesma entrevista, Marilia Schüller confessou que esteve inicialmente


mais ligada à militância feminista do que ao movimento negro, mas, durante os
anos 1980, aproximou os dois engajamentos. De maneira similar ao que ocorreu
com a militância feminista, o movimento negro também estabeleceu relações de
aproximação e tensão com as esquerdas, mas não apenas com elas. Os próprios
movimentos de minorias confrontariam suas pautas e militâncias, como ocorreu a
partir do surgimento de um feminismo negro, crítico das feministas que não
compreendiam o debate racial e crítico do movimento negro por não considerar o
554
SCHÜLLER, Marilia. Entrevista ao site Novos Diálogos, 13/12/2009.
235

debate de gênero. Sobre isso, Núbia Regina Moreira escreveu ―Muitas militantes
do movimento de mulheres negras tiveram experiências políticas no feminismo
tradicional e no movimento negro. Algumas ainda tiveram experiências com
partidos políticos, tanto de direita quanto de esquerda‖.555A militância negra-
feminista organizou grupos de mulheres negras tanto em espaços do feminismo
quanto em entidades do movimento negro, realizando no final dos anos 1980, com
a presença de ―450 militantes de 17 Estados da federação‖, o I Encontro Nacional
de Mulheres Negras em 1988.556Experimentos pastorais antirracistas foram
realizados tanto no catolicismo quanto no protestantismo desde os anos 1970, o
boletim do CEI deu ampla cobertura aos conflitos raciais nos países africanos no
período e as principais publicações das entidades ecumênicas (CEDI e ISER)
dedicaram edições especiais ao tema a partir dos anos 1980.

Imagem 4 – Tempo e Presença, capa ―Racismo e Opressão‖

555
MOREIRA, Núbia Regina. A organização das feministas negras no Brasil. Vitória da
Conquista-BA, Edições UESB, 2011, p. 61.
556
MOREIRA, Núbia Regina. A organização das feministas negras no Brasil. Vitória da
Conquista-BA, Edições UESB, 2011, p. 71.
236

O CEDI publicou em 1985 uma edição da revista Tempo & Presença


discutindo racismo e opressão e em 1986, o livro Identidade Negra e Religião
apresentando o debate promovido pela Associação de Teólogos do Terceiro
Mundo. Em 1985, foi publicado nas Comunicações do ISER um trabalho pioneiro
sobre a relação entre negritude e protestantismo no Brasil intitulado O negro
evangélico, uma verdadeira radiografia do racismo nas igrejas do protestantismo
histórico. No ano do centenário da Abolição, o ISER publicou um Catálogo de
Entidades do Movimento Negro no Brasil (1988).

O negro evangélico: o preconceito nas igrejas e a militância antirracista


237

O ano do Centenário da Abolição no Brasil, em 1988, motivou, no final da


década, o debate sobre a questão racial, como a Campanha da Fraternidade
lançada pela CNBB denominada ―Ouvi o Clamor deste Povo‖. Motivou também a
formação de muitas entidades negras, algumas delas formadas por protestantes e
listadas por Hernani Francisco da Silva (1965-) em O movimento negro
evangélico: Associação Evangélica Palmares (1987), Grupo Evangélico Afro-
Brasileiro (1988), Coral Evangélicos (1988), Sociedade Cultural de Resistência
dos Negros Missões Quilombo (1988), Capoeiristas de Cristo, Negros
Evangélicos de Londrina, entre outros.557Em recente entrevista, Hernani Francisco
da Silva relatou:

Em 1988, na época eu era líder de mocidade, e tive, assim, um despertamento


de sair pro centro da cidade. Não sei o que aconteceu. Acabei indo pro centro
da cidade. Chegando no centro da cidade, encontrei uma grande marcha. Era
o 13 de maio de 1988. E então eu vi muitos negros, aquela marcha, negros
com cabelos de trança, uma coisa muito bonita, e eu comecei a acompanhar
aquela marcha e ali comecei a sentir muito a presença de Deus e foi naquela
hora que Deus mostrou que eu tinha que trabalhar essa questão. Já faz mais
de 20 anos.558

Era a Marcha da Abolição da Escravatura, no centenário da abolição, em


São Paulo. Convertido ao protestantismo em 1979 e, desde o início, atuando na
mocidade da igreja, Hernani Francisco da Silva começou a assumir o debate racial
como militância a partir de 1986. De acordo com seu depoimento: ―foi como uma
segunda conversão. Foi quando eu resgatei minha negritude, porque até então não
achava que eu era negro”. Este sentimento de conversão foi vivenciado também
por Paulo Ayres Mattos. Sobre sua nomeação como Bispo e a reação dos fiéis,
comentou:

Pouco tempo depois da minha eleição como Bispo da Igreja Metodista, em


dezembro de 1977, fui surpreendido por uma informação sobre uma
discussão entre as pessoas da igreja sobre a minha cor: ele é negro, moreno
ou mulato? Até que alguém deu o veredicto final: o Bispo é quase branco! O
fato é que, pela primeira vez na história, uma pessoa assumidamente ―não
branca‖ foi eleita para o episcopado da minha denominação. Os bispos eleitos
até então (na verdade, um), apesar da evidente mestiçagem, foram
reconhecidos pelos membros da igreja como "brancos". A escolha de um

557
SILVA, Hernani Francisco da. O movimento negro evangélico: um mover do Espírito Santo.
Edição Virtual, Selo Editorial Negritude Cristã, 2011, p. 13.
558
SILVA, Hernani Francisco da. Entrevista ao programa Análise Direta do canal evangélico RIT
TV, 18/10/2009.
238

"nãobranco" criou algumas dúvidas em algumas pessoas ou, talvez, certa


restrição.559

A razão do constrangimento foi atribuída pelo autor às desigualdades raciais


no Brasil, reproduzidas na igreja, que tornava o lugar de autoridade como um
espaço ocupado por brancos:

É que paraum certo tipo dementalidade, ser Bispoera serbranco;esta era


aregra do jogo. E é verdadeque eu nunca tive, nem poderia
terreivindicadoalgumabranquitude. Também é verdadeque o
Concílioquemeelegeunão se preocupou comesta questão e, portanto, não se
deixou determinar porqualquer preconceitoqueporventuraexistisseem
algunsmembros da igreja. Enquanto isso, a definição preconceituosa de
"quase branco" fazia do"branco" o critério paraalguém para serBispo da
igreja.560

O sentimento de conversão à negritude ocorreu depois da comparação entre


o Brasil e os EUA nas relações raciais feitas por outro Bispo metodista negro:

Minhaconsciência daquestão do racismono Brasilfoi fortementereforçada


poruma conversa informalque tive comBispoRoyNichols.Eu acho que elefoi
um dosprimeiros negros aser eleito para oepiscopado nos EUA. Estávamos
participando de umareuniãono Panamá.Hospedados na suíte do mesmo hotel
em que nósestávamos falando sobrea questãoracialnos nossos países,quando
ele me disseque em seu paísseria consideradouma pessoa negra. Naquele
momentoeu percebi que ser consideradoum "quasebranco" significava
também ser um"quase negro". No Brasil, asociedade hipócritae o racismo
velado, o termo "quase branco" aplicado a umBispo metodistanão faz deleum
branco;mas na explicitamenteracista sociedade americana, um ―quase
negro‖é necessariamente um negro,ainda que seja um Bispometodista.Essa
percepçãomelevou aassumirdefinitivamentea minhanegritude, levando-me
para o processo delibertaçãodo cativeiroracistaem que todos nósnos
encontramosnas Américas, independentemente do fato de sermos pretos ou
brancos, nativos ou estrangeiros, homens ou mulheres, jovens
ouadultos,cristãosounão cristãos.561

Para Hernani Francisco da Silva, a Marcha da Abolição teve quase que o


sentido de uma ―revelação‖: ―E a partir dali eu senti que eu deveria trabalhar essa
questão dentro da igreja e daí em diante criamos esse movimento pra trabalhar a

559
Todas as citações do depoimento de Paulo Ayres Mattos à RIBLA foram livres traduções do
texto: MATTOS, Paulo Ayres. El derecho de ser diferente (Lucas 9, 51-56) . RIBLA 19. Costa
Rica: DEI, 1994. Todo o acervo da RIBLA está disponível no site do CLAI, mas sem a numeração
das páginas.
560
MATTOS, Paulo Ayres. El derecho de ser diferente (Lucas 9, 51-56) . RIBLA 19. Costa Rica:
DEI, 1994.
561
MATTOS, Paulo Ayres. RIBLA 19. El derecho de ser diferente (Lucas 9, 51-56). Costa Rica:
DEI, 1994.
239

questão da negritude dentro das nossas igrejas evangélicas protestantes‖.562Ainda


em 1988, foi um dos criadores da Sociedade Cultural de Resistência dos Negros
Missões Quilombo, de viés pentecostal. Para ele, o movimento negro evangélico
foi ―um movimento do Espírito Santo de Deus, porque ele nasceu na igreja, pra
igreja‖, com um duplo propósito: ―mostrar à sociedade que a igreja não está fora
da luta do negro no país. E também pra mostrar o próprio racismo que há, criado,
dentro das igrejas protestantes‖.563
Uma avaliação das publicações do CEDI, ISER e do movimento bíblico
latino-americano, especialmente a RIBLA, no período, ajuda a compreender de
que forma a minoria militante de negros cristãos produziu uma teologia situada na
identidade afro-brasileira. Começando com a radiografia do racismo nas igrejas do
protestantismo histórico publicada pelo ISER em 1985: O Negro Evangélico. Não
pretendo aqui abordar o mesmo tema que as autoras discutiram no livro, mas
apenas apresentá-lo como uma intervenção do ISER e do Protestantismo
Ecumênico no debate sobre racismo e discriminação, intervindo tanto nos estudos
sobre identidade negra e religião, que negligenciavam o protestantismo, quanto
nos estudos sobre protestantismo e composição social das igrejas, que
negligenciavam o racismo ou as hierarquias de cor.
O livro foi resultado do projeto Relações raciais no protestantismo
brasileiro, coordenado no ISER por Joaquim Beato, Olympio de Santana e
Rubem César Fernandes,564 contemplando ―as denominações protestantes de
origem missionária implantadas no país no século passado: Batista,
Congregacional, Episcopal, Presbiteriana e Metodista, localizadas no Grande Rio
e em São Paulo‖.565 Contou com o financiamento do Conselho Mundial de Igreja
(CMI), do Conselho Nacional de Igrejas de Nova Iorque e da Fundação Ford.

562
SILVA, Hernani Francisco da. Entrevista ao programa Análise Direta do canal evangélico RIT
TV, 18/10/2009.
563
SILVA, Hernani Francisco da. Entrevista ao programa Análise Direta do canal evangélico RIT
TV, 18/10/2009.
564
A presidência e a vice-presidência do ISER naquele ano estavam com os presbiterianos
Joaquim Beato e Waldo César, respectivamente. Na comissão editorial estavam outros dois
presbiterianos: Rubem César Fernandes, na coordenação, e Zwinglio Mota Dias como vogal.
565
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 5.
240

Para o ISER, a pesquisa deveria ser ―um instrumento de mobilização de


negros protestantes para a formação de um movimento de combate ao racismo‖566
A metodista Marilia Schüller fez parte da equipe composta por outras cinco
pesquisadoras e um pesquisador, coordenada por Maria da Graça Floriano e
Regina Célia Reyes Novaes, que assinaram o relatório final e a autoria do livro.567
A pesquisa cobriu 47 igrejas, distribuídas em 15 batistas, 15 presbiterianas, 10
metodistas, 4 congregacionais, 3 episcopais, somando 337 protestantes
entrevistados, entre leigos e líderes, mulheres e homens, negros e brancos. Sobre o
método de coleta dos depoimentos, foi informado que:

As ―entrevistas‖ com os membros das igrejas eram realizadas antes ou depois


dos cultos e das Escolas Dominicais. Com raras exceções foram realizadas
nas casas dos entrevistados. Somente com os pastores marcávamos
anteriormente a hora e éramos atendidas em seus escritórios.
Fomos em cada igreja (no mínimo três vezes) a cultos matinais, noturnos e
em dias diferentes da semana. Fomos também a festas nas igrejas e
assistimos a várias aulas de Escola Dominicais. 568

Seguindo os critérios de classificação adotados, chegaram ao resultado de


54% de negros ou mulatos entre as pessoas entrevistadas nas igrejas.569 O ISER,
através das autoras, assumia a responsabilidade de realizar um estudo que era ―o
primeiro que procura dar conta mais especificamente da questão do negro nas
igrejas protestantes históricas‖, acrescentando às justificativas da pesquisa o fato
de que: ―As questões da negritude têm sido bastante pesquisadas e discutidas no
âmbito das religiões afro-brasileiras. Bem menos se sabe sobre as suas
implicações no catolicismo, e quase nada na esfera do protestantismo‖.570 As
dificuldades na realização da pesquisa, apresentadas na introdução, mostraram a
contradição entre a imagem democrática, atribuída ou reivindicada, do
protestantismo, e o cotidiano das igrejas, reprodutor de hierarquias ou
desigualdades na membresia protestante:

566
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 5.
567
A equipe da pesquisa de campo foi formada por: Leila Beatriz Ribeiro, Sandra Tosta Fallace,
Vânia Penha Chaves, Marília Alves Schüller, Rui Cesar e Patrícia Costa.
568
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 7.
569
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 7.
570
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 3.
241

A presença negra na liderança de diversas denominações evangélicas é um


fato que desperta a atenção, relacionado talvez à sua condição minoritária, e
aos valores de igualdade que costumam se manifestar em suas mensagens.
―Os crentes‖, ao que parece, abriram possibilidades de manifestação que não
se encontravam em outras partes. No entanto, a mesma condição de minoria e
o discurso igualitário levam a uma negação radical de que o problema racial
exista no interior das igrejas protestantes. As oportunidades abertas são,
portanto, contraditórias, pois que, a um só tempo, deixam que se afirme e
pedem que se negue a presença do negro.571

Uma dessas dificuldades era o modo como ―os crentes‖ classificavam as


pessoas pela cor. A equipe de pesquisa procurava a hierarquia das igrejas e
solicitava a indicação de pessoas a serem entrevistadas, que por sua vez
indicariam outras. Depois solicitava que se classificassem as pessoas
recomendadas, o que gerava o incômodo com a atribuição de cor, como
mostraram alguns exemplos citados:

Nossos informantes diziam que ―não ficava bem ficar indicando a cor de
alguém‖, ou que, ―não conheciam todos‖, ou ainda davam respostas vagas:
―são muitos os negros‖; mas apontavam dois ou três em uma lista de cem.
Quando se dispunham a classificar, surgiam dificuldades, dúvidas,
indecisões, que só não apareciam nos casos extremos: ―É preto retinto,
pretinho mesmo‖ ou ―pra saber se são pretos ou brancos tenho que
raciocinar‖.
As classificações vinham sempre acompanhadas de um pedido: ―Não diga
que fui eu quem o indicou‖ ou ―pra não ficarem ofendidos, diga que você me
falou que não seria só negros, mas também morenos. Afinal, não ofende, todo
mundo é moreno neste país‖. A sensação que tínhamos era a de que teríamos
de manter o informante totalmente no anonimato, como se tivesse feito algo
muito perigoso e condenável.572

O argumento da indistinção de pessoas, de tratar a todos de maneira igual,


também foi utilizado para escamotear as diferenças e ocultar a presença da
negritude: ―Nunca prestei atenção na cor‖, ―a gente não vê essa parte, sabe?‖,
―pode conversar com todo mundo e você vai ver que aqui não existe racismo‖573.
Outra forma de negar o preconceito era a valorização das pessoas negras,
principalmente em cargos de lideranças. De acordo com as autoras:

Uma outra situação que se tornou comum no desenrolar da pesquisa foi que,
para mostrar que os protestantes não fazem discriminação racial, os
informantes citavam imediatamente um negro que ocupasse um cargo de

571
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 3.
572
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 6.
573
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 6-7.
242

destaque no momento ou um que já o tivesse ocupado no passado. [...] Ou


então faziam questão de frisar, falar muito bem dos poucos negros nos cargos
de projeção em suas igrejas.574

Os depoimentos e a análise das autoras traçavam um panorama das relações


do protestantismo histórico com os temas da desigualdade racial: escravidão,
discriminação, composição social das igrejas, mobilidade social e movimento
negro. Depois da apresentação e introdução, o livro era composto de cinco
capítulos, um para cada denominação: presbiterianos, episcopais,
congregacionais, metodistas e batistas. O primeiro e último, analisados por Maria
da Graça Floriano, do segundo ao quarto, analisados por Regina Célia Reyes
Novaes.
No capítulo sobre os presbiterianos, o primeiro aspecto abordado foi sobre a
escravidão: ―Assunto difícil, já que não foi objeto de pesquisas e quase não é
mencionado na literatura protestante e sociológica existentes‖, considerou a
autora.575 A postura majoritária da denominação teria sido de omissão e
conciliação com a ordem escravocrata, com uma predominância de missionários
do sul dos EUA, a despeito da origem da igreja no Brasil estar vinculada a uma
missão do norte. A maioria dos escravos ou negros livres que frequentaram as
igrejas no século XIX antes da Abolição era levada por seus senhores, com
algumas poucas exceções. Igualmente minoritárias eram as críticas à escravidão
que não fossem meras condenações morais sem maiores desdobramentos pastorais
ou cívicos.
Entre essas exceções destacaram-se o missionário James Fletcher (1823-
1901) e o pastor Eduardo Carlos Pereira, que não apenas condenavam a
escravidão, mas envidaram esforços para que seus irmãos na fé e compatriotas se
empenhassem na libertação dos cativos e rejeitassem qualquer justificativa bíblica
para a escravidão. Como eram minoritários, predominou a abordagem que
utilizava a maldição de Cam para justificar a escravidão. Predominou uma
pregação que separava o espiritual do temporal, o corpo da alma, a igreja do
mundo, ―uma das características dos presbiterianos que persiste até os dias
atuais‖. Como exemplo, numa conversa sobre o movimento negro, feita durante a

574
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 6-7.
575
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 10.
243

pesquisa, um pastor presbiteriano teria respondido ―Para nós o objetivo é o


homem; é modificar o homem e, naturalmente, a sociedade se modificará na sua
formação, na sua estrutura. É a nossa esfera, a esfera das igrejas é altamente
espiritual‖ por isso, ―as igrejas protestantes sempre primaram por conservar a
separação da igreja e do Estado‖.576
Um dado interessante sobre a composição social das igrejas, é que havia um
descompasso entre o fato da maior parte do protestantismo progressista ser
originário das igrejas históricas, com predominância presbiteriana, e estas
apresentarem uma composição social mais elitista, se comparada por exemplo ao
pentecostalismo. Elitismo que reforçava hierarquias, chocando-se com o discurso
igualitarista das igrejas. Um exemplo: ―um pastor nos deu a seguinte informação
sobre duas igrejas presbiterianas do Brasil, localizadas próximas uma da outra na
zona sul: ―as madames frequentam a igreja X e as empregadinhas, a igreja Y‖.
Em todas as igrejas presbiterianas pesquisadas houve o reconhecimento por
parte dos entrevistados de que a maioria na igreja era branca, sendo muito
diminuta a presença de negros. Contrariando as informações dos depoentes e a
expectativa da autora, a maioria branca prevalecia até nas igrejas presbiterianas
situadas em bairros periféricos, nos quais o contingente de negros era maior, ou
que eram pastoreadas por negros, pois ―se negros e mulatos representam 50 e 60%
da população total, nas igrejas representam 10% (negros) e 15 a 20%
(mulatos)‖.Em geral, os negros que faziam parte das igrejas presbiterianas
pertenciam a uma mesma família, que às vezes tinha membros em outras
denominações.
As entrevistas demonstraram que na opinião dos depoentes havia ―uma
relação entre afiliação religiosa e classe social. Como os negros se situam nas
classes mais baixas justificam sua ausência nas igrejas de classe média‖. E
manifestaram também o preconceito com ―as religiões que os negros gostam‖,
fossem o Candomblé e a Umbanda ou as igrejas pentecostais:

Na Assembleia de Deus tem mais preto porque é puxado para o espiritismo.


A pessoa que sai do espiritismo vai pra lá. (Leiga negra IPI).
Nós não temos aqueles gritos de ―Aleluia‖. Nós achamos isto muito infantil
e fruto de algumas influências até pagãs. (Pastor da IPU)

576
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 12.
244

Se o umbandista está vivendo na religião completamente alheia de Cristo não


quer a salvação. (Pastor da IPU)577

Rejeição às religiosidades mais comuns entre os negros ―seja porque ela não
dá garantia da salvação (cultos afro-brasileiros) ou porque são infantis, pagãs
(pentecostais)‖.578 Interessante ressaltar esses depoimentos presentes em igrejas
da IPU, uma denominação formada por desencantados e proscritos do
presbiterianismo mais conservador, e atuante no movimento ecumênico, então
restrito ao diálogo entre cristãos. O que levanta uma hipótese que precisaria de
uma radiografia similar entre os grupos políticos na época, especialmente os de
esquerda: que o progressismo religioso, assim como o político, não conseguia
superar internamente as relações de discriminação e preconceito, camufladas pelo
racismo ―à brasileira‖ e que estava sendo confrontado pela visibilidade política da
identidade negra afirmada pelos movimentos negros, nas igrejas e nos partidos.
Acrescentando mais suspeitas à hipótese, os depoimentos mostraram que a
cor interferia nas eleições da igreja, seja para as sociedades internas ou para os
cargos eclesiásticos. Aqueles que chegavam a ocupar os espaços de poder se viam
―invadindo‖ ou ―desagradando no início‖, se sentiam pressionados a provar serem
melhores do que a expectativa sobre eles. Quando não eram desautorizados pelo
exercício de um poder paralelo de famílias ou líderes brancos, eram usados como
exemplo de ausência do racismo, valorizados apenas quando demonstravam ser
―os homens mais cultos, mais respeitados das igrejas‖. Preconceito do qual o
próprio Joaquim Beato foi alvo, como narrou um pastor da IPB sobre a fala do
presidente do Supremo Concílio da Igreja:

Nós íamos fazer um retiro da mocidade e ele disse que estava convidando o
Rev. Joaquim Beato para ser o preletor do retiro. Nós perguntamos ―como é
que ele é? Qual a posição dele?‖ Respondeu o Reverendo: Ele é um homem
sábio, de grande cultura, ainda que seja negro. Ele falou embora ele seja
preto é um homem de grande cultura. Eu me lembro perfeitamente que ele
usou essa expressão. Por quê? Porque na mocidade, na igreja dele, não havia
muitos negros. Nós poderíamos, quando víssemos o Rev. Joaquim Beato,
achar que ele era um ―ignorantão‖. Então, ele quis eliminar esta idéia
contrapondo a negritude à sabedoria dele. (Grifos das autoras)579

577
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 18-19.
578
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 19.
579
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 22.
245

Apesar disso, do total de 101 presbiterianos entrevistados, apenas 7 negaram


que existia racismo no Brasil. Para uma dessas pessoas, pastor da IPB: ―Isso é
mais invenção de um certo grupo de intelectuais‖. Uma mulher negra, leiga da
IPI, mais otimista, disse que ―No Brasil não há. A gente vê negros como pastor,
doutor, tudo bonito por aí‖.580 Se o racismo na sociedade era admitido pela
maioria dos entrevistados, na igreja o quadro mudava. Apenas vinte e cinco
pessoas admitiam existir preconceito nas igrejas, mas negavam que se tratasse de
racismo, pois ―O preconceito existente é devido ao nível cultural. É um
preconceito de classe‖.581
Na Igreja Metodista, a denominação protestante mais comprometida com o
combate ao racismo, foram 59 pessoas entrevistadas, sendo que ―a quase
totalidade reconhece a existência de preconceito racial na sociedade brasileira‖,
porém ―quando se trata de saber como este preconceito se reflete no interior da
Igreja Metodista, as opiniões se dividem. Apenas 10% o admitem de início. O
restante onega‖ e para negar ―aciona-se como justificativa pressupostos
religiosos‖, como o igualitarismo da condição ―espiritual‖ de irmãos e a presença
de negros em espaços de liderança e poder, que no caso do metodismo era, de
fato, expressiva se comparada a outras igrejas do protestantismo histórico. Destas,
os batistas foram identificados pelos depoimentos como a denominação que tinha
o maior percentual de negros na membresia. Porém, isso não a tornava mais
sensível à discussão do racismo na igreja e na sociedade. A rejeição ao
movimento negro, por exemplo, manifestou-se em vários depoimentos de leigos e
líderes negros batistas, como os citados abaixo:

Movimento Negro? Acho que não é necessário. Cada um de nós deveríamos


ser simples na igualdade. Não existe movimento branco. Não preciso me unir
para mostrar o potencial que tenho. (Pastor negro)
Movimento Negro: procura não projetar o negro, mas sim separar, o que vai
contra o meu próprio preconceito que eu tento vencer. (Líder negra)

Uma rejeição que seria incompatível com o exemplo da participação do


pastor batista Martin Luther King no movimento pelos direitos civis dos negros
norte-americanos se não fosse pela produção do silêncio sobre essa militância na

580
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 23.
581
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 24.
246

imprensa e na memória da denominação.582 Somado ao individualismo batista e às


acomodações das clivagens sociais na igreja em nome da irmandade cristã, o
efeito desse silenciamento foi a redução do engajamento do líder negro a um
idealismo, ao invés de uma responsabilidade assumida, em nome da fé, diante de
um conflito social.583 No depoimento de um pastor negro e líder na hierarquia da
igreja, a comparação entre o preconceito no Brasil e nos EUA também contribuía
para não participar do movimento negro:

Eu tenho alguma dificuldade para me aliar a esse movimento. Lá nos Estados


Unidos, Martin Luther King lutou por uma causa nobre. E sofreu na própria
carne uma situação gritante no seu país. Agora, como eu tenho minhas
dúvidas acerca desta situação (preconceito) no meu país, eu acho que eu devo
aguardar um pouco mais os acontecimentos. 584

A admissão do racismo na sociedade e sua negação na igreja foi comum aos


presbiterianos, episcopais, congregacionais, metodistas e batistas. As
circunstâncias da pesquisa, claro, interferiam nos resultados, uma vez que os
crentes queriam se diferenciar do conjunto da sociedade e do catolicismo e, por
isso, reforçavam a autoimagem de igualitarismo e democracia diante da equipe de
pesquisa formada por pessoas ―externas‖ a seu universo.
Apesar dos esforços de autopreservação e construção da imagem de si
diante do outro, os depoimentos demonstraram tanto a existência do racismo nas
igrejas, quanto as formas de ocultação da discriminação com o uso de
pressupostos religiosos. Era evidente a dificuldade que os cristãos negros teriam
para mobilizar as igrejas do protestantismo histórico em pastorais antirracistas.

582
Em seu trabalho sobre as relações étnico-raciais entre os batistas, Jorge Santana escreveu: ―O
silêncio frente à atuação do pastor afro-americano batista Martin Luther King Jr. E, na sequência, à
Teologia Negra (Black Theology), demonstram a dificuldade do pensamento batista brasileiro,
ainda hoje, de assumir uma autonomia teológica frente a herança dos missionários, bem como
tematizar e problematizar o racismo nas comunidades‖. SANTANA, Jorge Luiz Nery de. Práticas
e representações étnicas nas narrativas religiosas dos batistas em Feira de Santana (1947- 1988).
Dissertação (Mestrado em História) – UEFS, Feira de Santana, 2010, p. 164.
583
―Isto também se expressa no não reconhecimento do ministério de Martin Luther King Jr. como
um modelo de ministério a ser seguido, muito próximo e inspirado no ‗Evangelho Social‘,
movimento de outro pastor batista norte-americano do final do século XIX e início do século XX,
Walter Rauschenbush. Rauschenbush ousou discutir pecado estrutural e pecados sociais
desafiando a responsabilidade social e ética no cristianismo contemporâneo. Além destes
elementos, o questionamento às relações raciais no país dos missionários era um testemunho nada
confortável para quem anunciava as boas novas‖. SANTANA, Jorge Luiz Nery de. Práticas e
representações étnicas nas narrativas religiosas dos batistas em Feira de Santana (1947- 1988).
Dissertação (Mestrado em História) – UEFS, Feira de Santana, 2010, p. 158.
584
FLORIANO, Maria da Graça; NOVAES, Regina Célia Reyes. O Negro Evangélico.
Comunicações do ISER. Ano 4, Edição Especial, Rio de Janeiro, 1985, p. 83.
247

Numa consulta sobre evangelização em 1980, os participantes convidavam no


documento ―a toda sociedade brasileira, e aos cristãos em particular, a
consideração séria e urgente do racismo anti-negro‖, um problema ―que afeta
diariamente milhões de descendentes de antepassados africanos e que interessa à
justiça, à paz social, e à consciência cristã‖, a ser combatido ―começando na
linguagem, na atitude e no comportamento individual, estendendo-se ao trabalho,
ao lazer público, aos serviços, à moradia, ao convívio social, aos textos escolares,
aos meios de comunicação de massa‖ levando ―à rejeição completa de toda uma
herança social e cultural racista‖.585 Um caminho para conseguir inseri-los no
debate era compartilhar a Teologia Negra, tocando num ponto capaz de
sensibilizar a mentalidade protestante: a hermenêutica bíblica.
A primeira edição da RIBLA totalmente dedicada à hermenêutica negra foi
a de número 19, intitulada Mundo negro e leitura bíblica, em 1994. Para os
editores da revista, o ―mundo negro‖ na América Latina foi marcado pela
imposição cultural que acompanhou a colonização, mas também pela resistência
negra, seja preservando a religião dos antepassados ou rejeitando a religião
dominante. Desta forma:

Apesar de tudo, a resistência negra, conhecida por uma diversidade de nomes


nos diferentes países latino-americanos e caribenhos, foi uma típica resposta
negra à opressão também típica de que era vítima. Neste contexto, e como
ocorre quase sempre com os setores oprimidos, sua religião ancestral, vinda
de uma terra distante, foi um fator determinante para tornar possível esta
resistência. Assim, esta experiência religiosa, ainda que nascida em outro
contexto, lentamente se foi convertendo em uma ―religião de resistência‖, em
razão do novo contexto em que os homens e as mulheres crentes tiveram que
se desenvolver.586

Este processo teria provocado o sincretismo como apropriação negra do


cristianismo e conversão do mesmo em religião negra. Na explicação do editor,
Marcus Villamán:

No entanto, é preciso lembrar que esta releitura da mensagem de Jesus Cristo


por parte de homens e mulheres afro-americanos/as e afro-caribenhos/as é
feita em relação a um cristianismo que aparecia, era percebido, e era de fato,
em sua expressão predominante, parte do aparato de dominação colonial. O
sincretismo não foi, então, o produto de um diálogo entre iguais, e sim ―a
resposta‖ possível‖, dos e das de baixo, à pretensão de uma imposição-
despojo cultural-religiosa que constituía parte do processo de espoliação

585
TEMPO E PRESENÇA. Racismo e Opressão (Editorial), setembro, 1985, p. 3.
586
VILLAMÁN, Marcus. RIBLA 19. Mundo negro y lectura bíblica. San José: DEI, p. 3.
248

econômica e sujeição política. De toda forma, aqueles homens e aquelas


mulheres, nas condições mencionadas, realizaram um processo de releitura e
apropriação da proposta cristã. Nesta releitura se fizeram presentes as marcas
da resistência e da visão de mundo que possuíam. Lentamente foram
aprendendo, apesar de tudo, a ser negros/negras cristãos/cristãs sem prejuízo
de nenhuma das partes que constituíam esse novo ser. Assim, com toda a
ambiguidade que é típica de qualquer experiência humana, mas com a
presença do Espírito que santifica, fez surgir um ―cristianismo novo‖, um
cristianismo negro e mulato, negro e cristão.587

De todos os artigos desta edição da RIBLA analiso apenas o depoimento ―O


direito de ser diferente‖ do metodista brasileiro Paulo Ayres Mattos. O destaque
se deve a duas razões: o pioneirismo metodista nas pastorais negras entre os
protestantes brasileiros e o recorrente envolvimento do autor em militâncias
antirracistas, que o fez um dos anfitriões de Desmond Tutu (1931-), Arcebispo da
Cidade do Cabo e expoente da luta contra o Apartheid na África do Sul, na sua
primeira passagem pelo Brasil. Seu depoimento é uma amostra de como a
emergência de novos sujeitos colocou em discussão a centralidade da dominação
econômica (classe) e política (esquerda), transversalizando o conceito de
opressão, pois:

Os teólogos negros nos indicam a existência de outros sujeitos políticos que


até então existiam junto aos pobres, junto aos trabalhadores do campo e da
cidade. Daí em diante, de forma paulatina, busquei integrar na minha reflexão
teológica e em minhas práticas estes novos sujeitos e entre eles de forma
mais intensa e desafiadora, aqueles ligados à luta contra o racismo. 588

O passo seguinte foi inserir-se nas lutas contra o racismo no Brasil, tanto a
partir da igreja quanto dialogando com os movimentos negros. Com estes o autor
disse ter aprendido que ―a luta contra o racismo demanda mais do que justiça
socioeconômica e liberdade política‖. Narrando o processo, escreveu:

Procurei entrar em contato com alguns representantes dos movimentos


negros brasileiros, dentro e fora das igrejas cristãs. Estes contatos sempre se
pautaram por uma convivência solidária com as ações concretas que
perseguiam principalmente desmantelar os mitos da harmonia e da
democracia racial no Brasil. Pouco a pouco me dei conta de que, apesar de
viver em uma realidade cotidiana impregnada de maneira profunda da
presença negra, só a conhecia (sem entender quase nada) seus aspectos
estereotipados por nosso velado racismo. Através desses contatos fui
aprendendo a conhecer todo um mundo até então desconhecido para mim. 589

587
Ibidem.
588
MATTOS, Paulo Ayres. El derecho de ser diferente (Lucas 9, 51-56). RIBLA 19. Costa Rica:
DEI, 1994.
589
Ibidem.
249

O Bispo metodista reservou críticas tanto às esquerdas, restritas ao debate


classista, quanto ao ecumenismo, restrito às confissões cristãs: duas expressões
―progressistas‖ que não davam conta do racismo como opressão. A libertação
econômica e política não resolvia o problema do negro porque:

A experiência das pessoas ―não brancas‖ nas Américas, seja no sistema


capitalista ou no socialista, mostra claramente, que o fato de romper, de uma
forma ou de outra, o círculo vicioso da pobreza de suas comunidades, não as
livra das garras do racismo. Ainda que gozando de certo bem-estar social,
permanecem excluídas de certas oportunidades pelo simples fato de serem
diferentes do padrão racial dominante. 590
Da mesma forma, se os cristãos ecumênicos estavam comprometidos com a
libertação dos oprimidos, conforme se apresentavam através da Teologia da
Libertação e das entidades de serviço, deveriam se abrir ao diálogo com as
religiões afro-brasileiras sem estabelecer qualquer atitude ou sentimento de
superioridade. Pois:

Somente quando nós, cristãos latino-americanos e caribenhos, estivermos


dispostos a reconhecer o valor dos diferentes, entre eles as religiões afro-
brasileiras, sem a pretensão consciente ou não, de fazê-los semelhantes a nós,
por negação ou apropriação, é que podemos finalmente praticar e viver o
ecumenismo que nos ajudará a vencer o racismo e a celebrar de modo pleno a
dignidade humana de todas as pessoas negras, qualquer que seja a religião
que possam confessar.591

No mesmo ano da edição da RIBLA dedicada à leitura negra da Bíblia na


América Latina, Joaquim Beato ministrou a oficina ―Teologia Negra‖ na 1ª
Jornada Ecumênica592, apresentando uma prévia das discussões no jornal
Contexto Pastoral, intitulada Que Teologia Negra podemos produzir? O texto se
referiaà ausência dessa reflexão no protestantismo brasileiro.593 Após apresentar
um histórico da Teologia Negra nos EUA como o braço teológico do movimento
negro,Joaquim Beato partiu da experiência de ser negro cristão no Brasil para

590
Ibidem.
591
Ibidem.
592
A Jornada Ecumênica foi um encontro organizado pelas principais entidades do Protestantismo
Ecumênico – CEDI, CMI, CLAI, CONIC e CESE – para analisar o ecumenismo no Brasil e
propor ações conjuntas em diferentes campos de atuação, demandas sociais e eclesiásticas.
Aconteceu na cidade de Mendes, interior do Rio de Janeiro, em 1994.
593
CONTEXTO PASTORAL. BEATO, Joaquim. Que Teologia Negra podemos produzir?nº 21,
julho/agosto de 1994, p. 20-21.
250

colocar em discussão as condições de produção de uma Teologia Negra brasileira.


Diferentemente dos EUA, escreveu o autor:

Como evangélicos brasileiros (e me arrisco a dizer o mesmo dos teólogos


católico-romanos brasileiros) de origem africana, nunca vivemos a
experiência de pertencer a uma igrejanegra. Estamos dispersos por numerosas
denominações eclesiásticas, numa proporção que raramente ultrapassa 10%
nas chamadas igrejas de missão. Essa proporção é, certamente, bem menor
nas igrejas de imigração, embora seja superior nas pentecostais.
Mas todas são predominantemente brancas, no que diz respeito ao controle
do poder. Em nenhum caso temos vivido a experiência de uma religião cristã
negra, de uma cultura negra ou de uma história negra. No que diz respeito a
uma cultura negra, os únicos africanismos que sobreviveram aos quinhentos
anos de racismo e opressão foram os que se tornaram universais em nossa
sociedade e deixaram, assim, de ser características exclusivas do povo
594
negro.
Neste momento, o depoimento de Paulo Ayres Mattos e o artigo de Joaquim
Beato demonstravam que o combate ao racismo não era apenas uma luta por
igualdade social e política entre negros e brancos, mas também por
reconhecimento do valor da diferença, pelo direito de ser diferente, como escreveu
o Bispo metodista. A militância negra acompanharia Joaquim Beato nos
engajamentos políticos nos anos subsequentes. Entre 1994 e 1998, exerceu como
suplente o mandato de Senador da República pelo Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB). Apesar de sua atuação como parlamentar ter sido marcada
mais pelo apoio ao seu Estado, Espírito Santo, proferiu alguns discursos no
Congresso defendendo políticas públicas para a população negra, e marcando a
memória das datas simbólicas para os movimentos negros no Brasil. Em um deles,
pelos 300 anos da queda do Quilombo de Palmares, em 1995, discursou:

Minha expectativa, Sr. Presidente, meu sonho talvez, é que dentro de pouco,
muito pouco tempo, não precisemos mais de manter quilombos no Brasil.
Que a campanha Trezentos Anos de Zumbi dos Palmares seja um passo
importante nessa direção. O Centro de Estudos da Cultura Negra no Estado
do Espírito Santo, Estado que tão orgulhosamente represento neste Senado,
pode contar comigo como aliado no empenho e na ação para que esse
objetivo seja alcançado. Pode contar também, tenho certeza, com a firme
disposição e vigilância desta democrática Casa Legislativa de promover e
garantir a democracia racial que tanto engrandecerá nosso País.595

594
CONTEXTO PASTORAL. BEATO, Joaquim. Que Teologia Negra podemos produzir? nº 21,
julho/agosto de 1994, p. 20-21.
595
BEATO, Joaquim. Pronunciamento. Senado Federal, 24/01/1995. Como professor, apoiou a
implantação de cotas na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) em 2004.
251

As trajetórias de Marilia Schüller, Paulo Ayres Mattos, Hernani Francisco


da Silva e Joaquim Beato são exemplos de inserções distintas do protestantismo
no debate sobre o racismo e a identidade negra entre os anos 1960 e 1990: 1) uma
mulher metodista, ligada ao feminismo e à pastoral negra da igreja, que uniu as
duas militâncias 2) um Bispo reconhecido na igreja como ―quase branco‖ que se
converteu à militância negra, 3) um pentecostal que se aproximou da Missão
Integral por causa da militância antirracista, 4) um pastor presbiteriano, pioneiro
da Teologia Negra no Brasil, que se tornou um Senador solidário aos movimentos
negros. A essas,outras militâncias se somariam no campo da política partidária.

Homossexualidade e libertação: o sujeito ausente da teologia

As teologias situadas foram expressões e respostas cristãs à emergência de


novos sujeitos políticos a partir dos anos 1960. Todas se afirmavam como
teologias de libertação e foram, ao mesmo tempo, eco dos movimentos e discurso
dos sujeitos participantes. A primeira onda da Teologia da Libertação esteve
associada às lutas anticolonialistas, contra a dependência e o imperialismo e em
oposição a regimes autoritários, como ditaduras e apartheids. Dessa onda
nasceram a teologia latino-americana, asiática e africana, cujos temas-sujeitos
eram: o ―pobre‖, o ―mundo dos dois terços‖ ou ―terceiro mundo‖, os ―condenados
da terra‖ ou ―excluídos‖. A segunda onda foi impulsionada pelos movimentos de
minorias, como os movimentos de mulheres e o feminismo, os movimentos
negros e indígenas.
O feminismo, o poder negro e a autodeterminação étnica avançaram como
pautas no espaço público durante os anos 1970 através de grupos de reflexão, de
ação política e da imprensa, tanto na sociedade quanto nas igrejas. As minorias
militantes que participavam desses movimentos fizeram da mulher, do negro e do
índio sujeitos da reflexão teológica, copartícipes da realidade dos pobres e povos
marginalizados, incluídos na luta dos ―oprimidos‖ por sua própria ―libertação‖.
Surgia assim a Teologia Feminista da Libertação, a Teologia Negra da Libertação,
e a Teologia Indígena. Porém, igualmente mobilizada em movimentos
252

reivindicatórios e de militância política, a minoria gay não encontrou na Teologia


da Libertação uma expressão da sua militância. Como observou André Muskopf:

Ao mesmo tempo em que explodiam a Teologia da Libertação e a Teologia


Feminista, explodia também o Movimento Gay, dando seus primeiros passos
na busca por direitos iguais também para gays e lésbicas.
Mesmo assim, o despontar desse novo sujeito teológico não teve reflexos
dentro da igreja e da teologia da mesma forma como o tiveram a Teologia da
Libertação, com sua opção preferencial pelos/as pobres, e a Teologia
Feminista, com a valorização do potencial das mulheres. 596

A ausência tinha a ver não apenas com os limites do progressismo religioso,


mas também com as dificuldades de todo o campo das esquerdas, com a
reprodução do preconceito à homossexualidade nas relações entre participantes de
partidos ou movimentos políticos de resistência. Especialmente entre 1964 e
1968: ―tratou-se quase nada da homossexualidade e das relações homoafetivas.
Havia, então, um forte preconceito por parte da esquerda contra as relações
homoafetivas, consideradas ameaçadoras para a segurança dos grupos de
oposição‖.597 Em trabalho recente, James Green mostrou as dificuldades
enfrentadas por mulheres e homens militantes que viviam sua homossexualidade
durante a Ditadura Militar, tanto na constituição de grupos autônomos e
específicos em defesa dos direitos das pessoas homossexuais quanto na
participação delas em partidos e organizações de esquerda, em oposição ao regime
autoritário no Brasil.598
As palavras usadas por uma historiadora do feminismo para descrever as
reações a esta militância poderiam ser aplicadas também ao movimento gay: ―a
esquerda via a questão como um tema burguês e a direita como uma ameaça à
família‖.599James Green, ao analisar um debate sobre homossexualidade na USP
em 1979, escreveu:

À ―luta específica‖ contrapunha-se ―a luta maior‖, como se houvesse uma


contradição insolucionável entre as mobilizações para derrubar a ditadura e,

596
MUSKOPF, André Sidnei. Uma brecha no armário: propostas para uma Teologia Gay. São
Leopoldo-RS: CEBI, 2005, p. 28.
597
LEITE, Rosalina Santa Cruz; TELES, Amelinha. Da guerrilha à imprensa feminista: a
construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013, p.
31.
598
GREEN, James; QUINALHA, Renan Honório. Ditadura e homossexualidades: repressão,
resistência e a busca da verdade. São Carlos-SP: EDUFSCAR, 2014.
599
PINTO, Céli. Uma História do feminismo no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2013.p. 84.
253

ao mesmo tempo, as campanhas para eliminar preconceitos e discriminações


sexuais. Nem os ativistas gays e lésbicas, nem os defensores das esquerdas no
debate tinham uma linguagem ou uma perspectiva mais universal para
conversar sobre o tema. Os proponentes das ―lutas específicas‖ tinham
dificuldades em articular o tipo de sociedade que eles queriam se a abertura
fosse consolidada e a ditadura saísse do poder, e as esquerdas insistiam numa
utopia socialista, imaginando que a saída dos militares abriria uma fase
revolucionária a partir da qual todos os ―problemas‖ sociais seriam
resolvidos. Os grupos esquerdistas, que viam a homossexualidade como um
desvio burguês ou uma doença, simplesmente decidiram ignorar o evento.600

Entre 1978 e 1980, James Green participava do grupo Somos e da


Convergência Socialista, uma corrente trotskista que atuava no movimento
operário e que contribuiu no surgimento do Partido dos Trabalhadores. Esta
corrente possuía uma Fração Homossexual, que participou do 1º de Maio de 1980
junto com o movimento operário do ABC carregando uma faixa com a frase:
―Contra a discriminação do/a trabalhador/a homossexual‖. A Convergência
Socialista elaborou um Programa pela Libertação Homossexual, que além de
condenar a repressão às pessoas e aos espaços homossexuais e defender direitos
sociais, manifestava-se: ―contra a condenação religiosa da homossexualidade
como pecado ou degradação da alma humana‖ e ―Por um Brasil socialista onde
todas as formas de exploração e opressão sejam eliminadas‖.601
Apesar das dificuldades decorrentes da situação política e da resistência à
expressão da homossexualidade na sociedade e nas esquerdas, houve participação
em variadas frentes de oposição ao regime, da luta armada à imprensa alternativa.
Nesta última, surgiu uma imprensa gay, com a criação dos periódicos Gente Gay e
Jornal da Aliança de Ativistas Homossexuais (1977), Boca da Noite (1980), O
Lampião da Esquina (1978) eO Corpo (1981).602
Do mesmo modo que nos demais movimentos de minorias, a imprensa gay
estava associada a grupos de sociabilidade, reflexão, ação política e/ou cultural,
com perfis diferenciados de participação e militância, porém solidários nas
reivindicações por direitos, aceitação e visibilidade, a exemplo do grupo Somos
(Grupo de Afirmação Homossexual, 1979), Ação Lésbico-Feminista (1980),

600
GREEN, James; QUINALHA, Renan Honório. Ditadura e homossexualidades: repressão,
resistência e a busca da verdade. São Carlos-SP: EDUFSCAR, 2014, p. 191.
601
GREEN, James; QUINALHA, Renan Honório. Ditadura e homossexualidades: repressão,
resistência e a busca da verdade. São Carlos-SP: EDUFSCAR, 2014, p. 182; 194-195.
602
ARAÚJO, Maria Paula. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 31.
254

Grupo Gay da Bahia (1980), dentre outros.603 E assim como aconteceu aos
movimentos feminista e negro, a militância gay no Brasil tinha nas experiências
norte-americanas pós-1968 uma das referências de organização. Houve ainda um
conjunto de perspectivas incorporadas por uma militância brasileira que retornou
do exílio nos anos finais da década de 1970 e, juntamente com os intelectuais que
atuavam no país, fundou os grupos citados anteriormente.
A revolta de gays, lésbicas, travestis, drag queens e transexuais, ocorrida no
bar Stonewall Inn em Nova Iorque, no dia 28 de agosto de 1969, se tornou um
marco do movimento LGBT.604 Naquele dia, os frequentadores do bar entraram
em conflito com os policiais que realizavam mais uma ação de revista e repressão
aos espaços alternativos para um público proscrito dos outros lugares públicos e
de lazer da cidade. No Brasil, também havia essa marginalização da sociabilidade
homossexual, mas também havia a dificuldade de realização de movimentos como
o de Stonewall no período mais duro da Ditadura Militar, entre 1968 e 1974.
Tudo isso contribuiu para retardar a visibilidade das pautas das minorias
homossexuais no país até a extinção do AI-5 (1978). Durante a abertura política,
uma coletânea importante de textos introdutórios sobre temas e problemas da
realidade brasileira foi a Coleção Primeiros Passos, publicada pela Brasiliense,
uma editora de oposição. Em 1983, foi publicado pela coletânea o livro
introdutório O que é homossexualidade?, de Peter Fry e Edward Macae, que
denunciava: ―a homossexualidade continua sendo tratada, na prática, como uma
indigesta mistura de pecado, sem-vergonhice e doença"605, uma amostra da
incorporação tardia do tema no debate intelectual do Brasil.
Este retardamento contribuiu também para que a Teologia Gay, presente nos
EUA durante os anos 1980, não encontrasse espaço nas expressões mais críticas
da teologia latino-americana e brasileira: a Teologia da Libertação. Novamente,
André Muskopf esclarece que: ―Embora essas propostas teológicas tenham
levantado a existência de sujeitos teológicos excluídos dos círculos dominantes de

603
Para um histórico do movimento LGBT no Brasil: FACCHINI, Regina; SIMÕES, Júlio Assis.
Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Perseu Abramo,
2009.
604
Sigla para Lésbicas, Gays, Bis, Travestis, Transexuais e Transgêneros. 28 de agosto, dia da
revolta de Stonewall, se tornou internacionalmente o Dia do Orgulho LGBT.
605
FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade? São Paulo: Brasiliense, 1983, p.
117-118.
255

construção do conhecimento, homossexuais não foram integrados como parte


desses novos sujeitos‖.606
A não inclusão no rol dos excluídos em luta por libertação no pensamento
teológico não foi a única barreira da aceitação da homossexualidade no
progressismo religioso. O estigma de pecado na vida de homossexuais, as leituras
bíblicas condenatórias e a incompatibilidade apregoada nas igrejas e em muitos
discursos religiosos entre a fé cristã e a condição gay, constituíam-se em
pressupostos e constrangimentos muito arraigados nas comunidades do
cristianismo católico e protestante no Brasil.
Tomando como exemplo a entrevista de Rubem Alves na coletânea
organizada por Elsa Tamez, fica evidente a dificuldade de diálogo com a
homossexualidade, mesmo se tratando de um teólogo da libertação, precursor da
perspectiva poética e erótica na teologia latino-americana. Ao rejeitar a linguagem
inclusiva, do falar em Deus no masculino e no feminino ao mesmo tempo,
argumentou: ―Não posso apaixonar-me por um Deus que é ele e ela ao mesmo
tempo. Fico muito confuso. Porque, se é ele e ela, é hermafrodita‖, e continuou:

Meus sentimentos de ser humano são distintos: quando amo um homem,


tenho amor por um homem (meu pai, meu filho, meus amigos); também amo
as mulheres (minha filha, minha esposa, outras mulheres, minhas alunas),
mas são amores diferentes. Agora, se eu os misturo, fico confuso. Então
minha objeção é que esta linguagem me perturba eroticamente. 607

O incômodo do teólogo protestante com o ―hermafroditismo de Deus‖, a


perturbação erótica com a mistura de amores masculino e feminino na divindade,
se fez acompanhar de uma ponderação sobre as possibilidades de amor a um
homem, destacada nos parênteses como pai, filho e amigos, enquanto as
possibilidades de amor a uma mulher incluíam além de filhas e alunas, ―esposa‖ e
―outras mulheres‖. Não há, aliás, em toda a coletânea organizada por Elsa Tamez,
nenhum debate sobre a homossexualidade como um tema de reflexão teológica ou
mesmo como um modo de vida de pessoas oprimidas.608

606
MUSKOPF, André Sidnei. Uma brecha no armário: propostas para uma Teologia Gay. São
Leopoldo-RS: CEBI, 2005, p. 120.
607
ALVES, Rubem. apud TAMEZ, Elsa. Teólogos da Libertação falam sobre a mulher. São
Paulo: Edições Loyola, 1989, p. 85.
608
Ausência significativa se pensarmos que foram entrevistadas vinte e nove pessoas, entre
mulheres e homens, ligadas à Teologia da Libertação, já no final da década.
256

Não encontrei nenhuma matéria sobre homossexualidade nas publicações do


CEDI entre 1974 e 1994. As publicações do movimento bíblico latino-americano
(CEBI, RIBLA, Estudos Bíblicos) também não contemplaram a discussão nem
realizaram uma hermenêutica gay no período em apreço.O silêncio da Teologia da
Libertação e do movimento ecumênico sobre a homossexualidade não impediu
que práticas solidárias, individuais ou pastorais, a pessoas e grupos homossexuais
ocorressem entre seus integrantes, inexistindo, igualmente, pronunciamentos
condenatórios da homossexualidade ou discriminatórios com o segmento LGBT
nas publicações acima mencionadas.
Dois caminhos conduziram segmentos do ecumenismo e da Teologia da
Libertação para uma aproximação com os grupos LGBT: a expansão da AIDS,
estigmatizada nos anos 1980 como uma ―doença gay‖609, e os estudos sobre a
sexualidade na perspectiva feminista. No primeiro caso, o CMI reconheceria que o
papel das igrejas cristãs na prevenção da doença e cuidado com as pessoas
atingidas deveria superar atitudes moralistas e condenatórias no campo da
sexualidade. Em 1987, emitiu a primeira declaração pública em que dizia: ―A
crise da AIDS nos desafia profundamente a sermos a igreja em atos e em verdade.
Ser a igreja como comunidade de cura‖. O desafio das igrejas era
―compadecerem-se, arrependerem-se da inatividade e dos moralismos rígidos‖.610
Como as teologias surgem a partir da experiência de fiéis e coletividades
religiosas, a criação de igrejas inclusivas, que acolhiam homossexuais cristãos nas
comunidades de fé, à revelia das correntes teológicas e organismos
paraeclesiásticos existentes, possibilitou a elaboração da Teologia Inclusiva, como
explicou Fernando Cardoso em A homoafetividade e o cristianismo:

A Igreja Inclusiva nasceu em 1968, com o reverendo Troy Perry – Bispo


fundador da Metropolitan Comunnity Church, em Los Angeles, Califórnia –
sendo a primeira igreja direcionada à pregação do evangelho para gays,
lésbicas e transgêneros. Já a Teologia Inclusiva, trata-se de uma ciência
espiritual que traz uma releitura contextualizada da Bíblia, rejeitando o
fundamentalismo cristão e afirmando que a Bíblia, de forma alguma, reprova
ou condena a homoafetividade.611

609
FACCHINI, Regina; SIMÕES, Júlio Assis. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual
ao LGBT. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2009, p. 41.
610
CONTACT, 1987, p. 7. apud LOSSKY, Nicholas. Dicionário do movimento ecumênico.
Petrópolis: Vozes, 2005, p. 40.
611
CARDOSO, Fernando. A homoafetividade e o cristianismo. São Paulo: Clube de Autores,
2010, p. 8.
257

O autor esclareceu que se trata de uma igreja ―que integra um movimento de


vertente protestante que não vê a homoafetividade como uma doença a ser
curada‖.612 As igrejas inclusivas, assim como a TeologiaGay, só se tornariam
conhecidas pelo público cristão brasileiro a partir do final dos anos 1990 e início
dos anos 2000, primeiro à margem da Teologia da Libertação e do movimento
ecumênico, depois reconhecidas por alguns de seus intelectuais, entidades de
serviço e publicações.613 O livro pioneiro do teólogo luterano André Muskopf,
militante dos movimentos LGBT, Uma brecha no armário: propostas para uma
Teologia Gay, foi publicado em 2005 pelo CEBI com texto de apresentação de
Jorge Pixley.614 Esses dados são representativos do quanto, apesar das resistências
e da demora da incorporação do sujeito gay na teologia, foi no seio do movimento
ecumênico e da Teologia da Libertação que a Teologia Gay encontrou ―a
possibilidade de articular esse novo‖, pois esses movimentos acabaram
―colocando marcos teóricos e criando métodos de reflexão a partir da margem,
fora do saber institucionalizado‖.615O CEBI, nascido durante a Ditadura Militar e
dedicado à pesquisa bíblica, foi responsável pela primeira publicação da Teologia
Gay no país, já nos anos 2000, justificando-a da seguinte forma:

A linha editorial do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) busca contribuir com


livros e publicações da área bíblica. No entanto, este não é um livro que trata
das questões ou de leituras bíblicas. Mesmo assim o Conselho Editorial do
CEBI resolveu publicar este livro de André Muskopf.
Decidimos publicar porque o CEBI quer ler a Bíblia a partir da realidade e da
Vida. E aqui se trata da vida de pessoas que cotidianamente devem vencer
uma série de preconceitos vindos de todos os lados. Muitos desses
616
preconceitos foram fundamentados ou reforçados por leituras bíblicas.

612
CARDOSO, Fernando. A homoafetividade e o cristianismo. São Paulo: Clube de Autores, 2010,
p. 9.
613
Em 2013, Marília de Camargo César escreveu: ―Em todo o Brasil, há registradas 28 dessas
comunidades inclusivas, que se reúnem sob quatro bandeiras, em nove estados. Há seis anos, não
havia nenhuma. É pouco se comparado aos Estados Unidos, por exemplo, com cerca de 6.800
congregações inclusivas registradas‖. In: CÉSAR, Marília de Camargo. Entre a cruz e o arco-íris:
a complexa relação dos cristãos com a homoafetividade. Belo Horizonte: Editora Gutemberg,
2013, p, 25.
614
O livro de André Muskopf foi resultado da monografia em Teologia, defendida na Escola
Superior de Teologia (EST) vinculada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
(IECLB) em 2002. Naquele mesmo ano o autor publicou uma edição independente e, três anos
depois, a segunda edição foi publicada pelo CEBI.
615
MUSKOPF, André. Uma brecha no armário: propostas para uma Teologia Gay. São Leopoldo:
Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), 2005, p. 121.
616
MUSKOPF, André. Uma brecha no armário: propostas para uma Teologia Gay. São Leopoldo:
Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), 2005, p. 7.
258

Ultrapassei o recorte temporal, chamando a atenção para o longo silêncio


sobre a homossexualidade na Teologia da Libertação e no movimento ecumênico,
apenas para mostrar o desenvolvimento de uma sensibilidade às reivindicações
das pessoas LGBT, ainda que tardia, exatamente por estas frações do
progressismo religioso. Citando um último exemplo, Jorge Pixley, talvez o mais
conhecido biblista protestante latino-americano e um dos criadores da RIBLA,
escreveu na apresentação que considerava o livro de André Muskopf ―uma
importante contribuição para a Teologia da Libertação‖, ressaltado ainda que:

A existência gay é uma vivência à margem de uma sociedade que reprime a


vida homossexual porque ameaça sua visão da dominação masculina. Sendo
isto assim, uma proposta teológica que abertamente parte desta opressão
homossexual é uma proposta para todos e todas que vivemos neste sistema
617
patriarcal e não somente para os gays.

A expectativa de Pixley era que essa proposta de uma Teologia Gay fosse
―uma conversa que deve penetrar nas igrejas e em primeiro lugar na Teologia da
Libertação‖.618 O roteiro da Teologia Gay, as metodologias adotadas e os assuntos
a serem discutidos, seguiram mais ou menos o caminho das outras teologias
situadas de minorias militantes, como a Teologia Negra e a Teologia Feminista:
hermenêutica a partir da experiência do ―sujeito oprimido‖, solidariedade aos
movimentos da minoria correspondente, abordagem histórico-crítica da Bíblia,
reinvindicação da equidade nas estruturas eclesiásticas, proposta de uma igreja
inclusiva e de uma pastoral comunitária, reconhecimento da espiritualidade
própria das pessoas excluídas, crítica ao fundamentalismo e à legitimação
religiosa das desigualdades denunciadas.

Missão Integral e Psicologia Cristã: a benção do sexo e os pecados da


sexualidade

Na Teologia da Missão Integral houve mais oposição do que diálogo ou


abertura à discussão sobre a homossexualidade. Os principais expoentes, eventos,
entidades paraeclesiásticas e publicações, de maneira mais incisiva ou moderada,

617
MUSKOPF, André. Uma brecha no armário: propostas para uma Teologia Gay. São Leopoldo:
Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), 2005, p. 13.
618
MUSKOPF, André. Uma brecha no armário: propostas para uma Teologia Gay. São Leopoldo:
Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), 2005, p. 121.
259

condenaram o ―homossexualismo‖, como se referiam, dando a entender que se


tratava apenas de um comportamento ou mesmo de uma ideologia militante.
Assumidamente conservador na hermenêutica bíblica, o movimento de Missão
Integral tratou a homossexualidade como pecado, desvio do ―padrão bíblico‖ de
sexualidade, associando-a, muitas vezes, a outras práticas consideradas
condenáveis, como a pedofilia e a promiscuidade.
Um dos primeiros a escrever sobre a sexualidade na Teologia da Missão
Integral foi Robinson Cavalcanti, que publicou os livros Uma benção chamada
sexo(1975) e Libertação e sexualidade(1989). O primeiro foi publicado pela
editora da ABU e pretendia apresentar uma contribuição sobre o tema, superando
o que se considerava uma lacuna da literatura religiosa, além de dialogar com as
ciências humanas, apresentar reflexão teológica e se constituir em um guia prático
para a vida cristã no campo da sexualidade. Foi motivado, segundo o autor, pelo
interesse da juventude evangélica, particularmente a universitária, que fazia parte
da filial brasileira da CIEE. Nas palavras introdutórias ao livro, o autor escreveu:

Em acampamentos, reuniões de grupos e diálogos com jovens universitários


evangélicos de diversas regiões do país, encontramos uma preocupação com
a ausência de suficiente literatura evangélica a respeito de sexo. Ausência
quase completa quando se trata de autores nacionais. Por outro lado,
tínhamos um compromisso estatutário com a Fraternidade Teológica Latino-
Americana de produzir algo cada ano, dentro dos objetivos da entidade, de
promover uma teologia na América Latina. Desejando evitar cair em uma
mera teorização, procuramos ouvir os jovens, sentir seus problemas, questões
e idéias, o que nos permitiria trabalhar sobre o concreto e o real. Somos
gratos a quantos, anonimamente, emprestaram sua colaboração. É a essa
geração de formação universitária que, primordialmente, nos dirigimos. [...]
Ao todo, cumprimos uma promessa solene feita a alguns jovens desafiantes:
tocar em todos os assuntos por eles propostos, não fugindo, por razão
alguma, de seu tratamento.619

Na sessão ―Absolutos de Deus‖, o autor discutiu os referidos ―assuntos‖


prometidos aos jovens, a partir do que considerava ser os ―padrões éticos
absolutos‖ instituídos por Deus em relação a eles. Nesta perspectiva, o livro
abordou: ―Bestialidade‖, ―Homossexualismo‖, ―Prostituição‖, ―Fornicação‖,
―Estupro‖, ―Incesto‖, ―Coitos abusivos‖, ―Adultério‖, ―Lascívia‖, ―Casamento
misto‖ (entre crentes e não crentes). Em outras sessões foram discutidos os temas
―Masturbação‖, ―Afetividade‖, ―Namoro‖, ―Noivado‖, ―Casamento monogâmico

619
CAVALCANTI, Robinson. Uma benção chamada sexo. 1ª Edição. São Paulo: ABU Editora,
1975, p. 5-6.
260

e poligâmico‖, ―Divórcio‖, ―Erotismo‖. Comentando os textos bíblicos de Gênesis


19 e Romanos 1, o autor escreveu:

Muito cedo, na Bíblia, vamos encontrar esse pecado, chamado de sodomia


em razão do incidente narrado em Gênesis 19, quando os habitantes da
corrupta Sodoma tiveram intenções dessa natureza em relação aos anjos que
falavam com Ló, o que acarretou a destruição da cidade. Paulo fala que esses
homens, que não aceitam a manifestação de Deus, ele "os abandonou às
paixões infames" e os entregou "à concupiscência de seus corações, à
imundícia, para desonrarem seus corpos entre si".620

Interpretou a pedofilia ou a atração sexual por crianças como ―uma forma


especial de homossexualismo‖, que, quando manifesta no homem é pederastia e
na mulher, lesbianismo. Endossou interpretações que consideravam o desejo por
pessoas do mesmo sexo como resultado de problemas na educação familiar ou
más influências do grupo social, ainda que recaísse sobre o indivíduo a maior
responsabilidade por tal ―pecado‖. Esse endosso estava no modo como
selecionava a literatura de apoio ao seu posicionamento ou como genericamente
se referia a ela, ao escrever, por exemplo, que: ―A psicologia e a psicanálise têm
conseguido estudos avançados na causalidade imediata e remota do problema, que
vem proliferando assustadoramente em alguns países‖.621 Expôs o que chamou de
―as conclusões de um debate sobre o assunto com psiquiatras e psicólogos
evangélicos‖, dentre as quais, a afirmação de que ―é muito rara a influência
biológica no homossexualismo‖, e também que ―não há tendências inatas ou
irreversíveis. A recuperação é possível para todos os sexos‖. Havia nessas
conclusões o entendimento de que a sociabilidade masculina e feminina era ―uma
etapa homossexual (sentido amplo) no desenvolvimento interpessoal do
indivíduo‖, que serviria para homens e mulheres fixarem―suas próprias
características‖. A afetividade poderia se manifestar nos homens e mulheres entre
seus iguais, pois ―A expressão afetiva física do amor se faz presente em nosso
relacionamento com qualquer sexo‖, porém ―não deve incluir a atração erótica‖.
Classificava ―gradações de homossexuais‖ que iam ―desde a mera tendência
ocasional até o extremo da ‗deslumbrada‘ ou ‗mulher-homem‘.‖.622 Para concluir

620
CAVALCANTI, Robinson.1975, p. 51.
621
Ibidem.
622
CAVALCANTI, Robinson.p. 52.
261

o diagnóstico dos ―psicólogos e psiquiatras cristãos‖ validado no livro, o autor


sugeriu que:

Podemos encarar o homossexualismo como enfermidade sob duplo aspecto:


psiquiátrico e espiritual. Em termos de culpa, temos que distinguir três
etapas:
a) o mero impulso;
b) o cultivo voluntário da idéia e dos devaneios eróticos;
c) a prática do ato.

Concordou com o ―pastor e psiquiatra batista argentino‖ Daniel Tinao,


quando este afirmava que ―o pecado toma uma conotação pessoal nas etapas b e c.
Na etapa a o indivíduo é mais uma vítima, mais um enfermo que pecador‖. As
formas do indivíduo encarar a homossexualidade, determinariam seu grau de
culpabilidade. Estas formas variavam em:

a) aceita a coisa como normal e a prática sem constrangimento: categoria da


culpa mostrada por Paulo;
b) aceita a coisa como anormalidade, mas não busca uma saída, rejeitando a
si mesmo, o que pode levar ao desespero, à fuga no álcool e nas drogas ou ao
suicídio, o que agrava o problema;
c) aceita o fato como anormalidade, mas não se atormenta com a idéia de que
é um pecador pior do que os outros, buscando em Cristo a nova vida, e no
cientista (muito preferivelmente um cristão), o auxílio terapêutico, quando
necessário.623

As escolhas recomendáveis poderiam acarretar consequências de maior


―libertação‖ da homossexualidade ou maior tensão cotidiana com ela, pois:

Em muitos casos a tendência é erradicada; em outros, permanece


latentemente, mas sem interferir no comportamento heterossexual, como
mero "espinho na carne", de maneira semelhante à tendência à embriaguez ou
ao furto, mantidas sob o controle do Espírito. Um cristão enquadrado nesse
caso disse que isso servia para mantê-lo em constante estado de humilhação e
dependência diante de Deus, que o usava em seu ministério segundo sua
graça.624

O livro trouxe ainda uma crítica às igrejas inclusivas e uma recomendação


para as comunidades cristãs em relação à homossexualidade. Na crítica escrevia
em tom de reprovação que ―Até ‗igrejas‘ são organizadas para essas pessoas‖,
lamentando ―Há pouco, víamos em um jornal o ‗casamento‘ entre duas pessoas de
sexo masculino em uma ‗igreja‘ nos EUA, com ‗bênção‘ nupcial, corte de bolo

623
CAVALCANTI, Robinson.1975, p. 53.
624
Ibidem.
262

etc.‖ Atitude que seria ―tão errônea quanto a de considerá-los como animais, sub-
homens, sujos, ou pessoas irrecuperáveis‖.625 Às igrejas, recomendava uma
atitude que interpretava como tolerante com os indivíduos, mas não com a
sexualidade deles:

Cabe à comunidade cristã desempenhar importante papel na recuperação


dessas pessoas. Infelizmente, nem sempre, por preconceito, as confrontamos
com a mensagem do Evangelho, ou as ajudamos no caminhar após a
conversão. Presenciamos, há anos, em um acampamento de universitários, o
triste comportamento de alguns ―cristãos‖– inclusive dois seminaristas –
espalhando a notícia e colocando no ridículo aquele que buscava auxílio. 626

Em Libertação e Sexualidade (1990), Robinson Cavalcanti reiterou algumas


teses defendidas em Uma benção chamada sexo (1976) sobre a homossexualidade
e aprofundou algumas ideias referentes a outras formas de relações conjugais e
modelos de família. Tentou responder críticas feitas ao livro anterior e
considerava que a ausência de reflexão na literatura evangélica nacional, tornava
as igrejas brasileiras reféns de traduções e cursos sobre a sexualidade baseados em
autores fundamentalistas norte-americanos. Comparando o ritmo de mudanças na
sociedade e na igreja, ponderou:

Diante de um mundo em mudança e um país em abertura, a instituição


eclesiástica se fecha, imóvel, estática, em uma atitude tradicionalista e
reacionária, tornando sagrado o passado, demoníaco o presente e aterrador o
futuro. Há um medo do novo. Um medo da diferença. Um medo das
mudanças. Uniformiza-se, unifica-se, enquadra-se, reprime-se. Um mundo
cinzento, tenso, triste, estéril.
Em relação à sexualidade, desinformação e silêncio, preconceitos e tabus. Os
cursos, publicações, movimentos e pastorais na área partem de um princípio
só: o modelo de família conjugal ocidental contemporânea é a única forma de
vida sexual lícita, em sua monogamia e indissolubilidade, e tudo o mais é
pecaminoso. Esse modelo é identificado com o ideal edênico, e tido como de
inspiração celestial.
Enquanto isso essa família conjugal entra em crise em todas as partes,
concorrendo com uma pluralidade de alternativas que vão surgindo ou
ressurgindo.627

Antes de analisar as teses do livro sobre a homossexualidade, é necessário


compreender em quais temas Robinson Cavalcanti pretendia diferenciar-se da
―atitude tradicionalista e reacionária‖ e apresentar uma contribuição ―libertadora‖

625
CAVALCANTI, Robinson.1975, p. 51.
626
CAVALCANTI, Robinson.p. 53.
627
CAVACANTI, Robinson. Libertação e sexualidade: instinto, cultura, revelação. São Paulo,
Temática Publicações, 1990, p. 11-12.
263

no campo da sexualidade. Isso fica mais evidente nas referências que o autor
buscou para pensar as relações conjugais e os modelos de família, citando o
relatório Kinsey, psicólogos e psicanalistas como Willian Reich (1897-1957),
Alfred Adler (1870-1937), Carl Rogers (1902-1987) e Roberto Freire (1927-
2008), intelectuais marxistas como Marilena Chauí (1941-), feministas como
Juliet Mitchel (1940-) e Rose Marie Muraro (1930-2014), ainda que as referências
à literatura pastoral e teológica evangélica, predominantemente conservadoras,
continuassem bem mais abundantes. Tais referências serviram para o autor
relativizar o caráter normativo das experiências contemporâneas de namoro,
noivado e casamento aceitas no meio evangélico brasileiro, colocando-as em
perspectiva histórica, definindo-as como arranjos culturais provisórios.
Contrapondo-se a uma literatura evangélica que associava pureza à ausência
de relações sexuais e condenava como ilícitos quaisquer atos sexuais praticados
antes do casamento ou fora dele, o autor advogou em favor da vivência sexual dos
casais cristãos, quer antes do casamento, ou depois dele, admitindo a
conjugalidade formal ou informal, monogâmica ou polígama, sobre as quais
―deve-se atentar para as diferenças de conteúdo e não de forma‖.628 Por isso:

Supõe-se que a intimidade cresça à medida que crescem: a) os sentimentos;


b) o conhecimento mútuo; c) o compromisso; d) a aproximação do vínculo
matrimonial, formal ou informal. Sendo o bom relacionamento sexual uma
das condições para o sucesso conjugal, algum indicador deve ser inferido
ainda nesse período preparatório. Se a virgindade de ambos os sexos é um
alvo ético cristão, a socialização dos custos sexuais (todo o mundo assumindo
o ônus) é um mal menor do que a dicotomia virgindade de algumas vs.
prostituição de outras, com umas ―pagando a conta‖ das outras.629

Diferenciando formas diversas de poligamia na história e nas sociedades,


elencando a posição de teólogos católicos e protestantes conservadores e liberais,
discutindo a produção sobre família nas ciências sociais – citando inclusive o
clássico livro de Engels sobre o tema – o Bispo anglicano defendeu a validade da
poligamia para a sociedade ocidental contemporânea e a compatibilidade dos
arranjos conjugais polígamos com a moralidade cristã. Eles deveriam ser
concebidos como parte da história da sexualidade humana que, quando

628
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 61.
629
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 60.
264

represados, resultam em saídas menos legítimas ou mais prejudiciais para os


indivíduos e as comunidades, incluindo as cristãs. Assim:

Não se poderia chegar a outra conclusão senão a de que a poligamia, como o


divórcio, se constitui em uma concessão divina (vontade permissiva) à
imperfeição humana, em qualquer época ou situação em que sirva para
impedir ou minorar males maiores. A imperfeição sempre aceitável para
evitar o antinatural ou a abominação. Logo, em sua excepcionalidade, a
poligamia é uma opção legítima para os cristãos ocidentais hoje. Uma outra
questão é se ela é ou não possível e recomendável. Não se trata do que é ou
não correto, mas do que é ou não, conveniente. 630

Além de relações consensuais ou abertas entre as pessoas envolvidas, foram


classificadas como polígamas pelo autor: as monogamias sucessivas, os casos
paralelos e as infidelidades fortuitas, motivadas por insatisfações ou busca de
novas experiências, que sinalizavam para ―uma pluralidade de vínculos afetivos
como uma expressão não-excludente de uma pluralidade de sentimentos‖.631
Diante dessa ―realidade histórica-existencial e de comprovação científica‖, o
Bispo anglicano recomendava às igrejas:
O que caberia às lideranças cristãs esclarecidas, maduras e não-
preconceituosas seria uma tarefa pastoral de apoio aos que a vivenciam.
Apoio humano e teológico, que os faça ver que não são anormais, que não
são os únicos, que não estão sozinhos, que não devem ser discriminados, nem
são pecadores, encarando de outro modo a sua situação, livres dos fardos
culturais indevidos, para melhor perceberem o amor de Cristo e melhor
poderem servir o Deus de Abraão e de Davi.632

Para não alongar os comentários sobre os diversos temas tratados pelo livro
e voltar à abordagem do autor sobre a homossexualidade, menciono apenas o
posicionamento sobre o celibato, a masturbação, o divórcio e temas correlatos a
estes. Quanto ao primeiro, Robinson Cavalcanti pregou o respeito à condição
celibatária por opção ou circunstâncias contrárias à vontade do indivíduo,
incluindo a solidão ou incapacidade de relacionar-se, mas condenou qualquer
tentativa de a impor como critério de santidade. Recomendou, aos celibatários e
celibatárias, a vida em comunidade, a construção de um círculo de amizades
íntimas, a disposição ao serviço e à solidariedade, ajuda médica ou pastoral.
Quanto à masturbação, o autor rejeitava o termo ―onamismo‖ para a prática, pois
considerava que ―o pecado de Onã‖ não foi a masturbação, mas o coito

630
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 105.
631
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 106.
632
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 107.
265

interrompido.633 Considerava uma manifestação natural da sexualidade,


compreensível, quando moderada na infância e adolescência ou entre adultos
solteiros, mas preocupante em adultos casados. As recomendações pastorais
foram:

Cremos que há uma relação entre excesso de auto-erotismo, problemas de


relacionamento, solidão e ociosidade. Defendemos, na medida do possível,
uma ―terapia ocupacional‖, com o trabalho, estudo, lazer, esportes etc. Ou
seja, sublimação mais do que repressão. A masturbação não encontra
condenação formal nas Escrituras e é algo biologicamente inevitável na
evolução sexual das pessoas normais. A espiritualização pelo ―esfriamento
sexual‖ dos santificados corre o risco de acarretar problemas posteriores.634

Como um tema correlato ao celibato e à masturbação, o autor discorreu


ainda sobre a pornografia. Recomendou que os jovens evitassem ―se expor de
formas várias à pornografia, que são cientificamente incorretas, moralmente
deturpadas e psicologicamente danosas‖. As pessoas celibatárias e aquelas que
buscavam a masturbação como uma forma compensatória a desejos reprimidos ou
irrealizáveis eram as mais expostas aos ―riscos‖ da pornografia. Para superá-la, o
autor sugeria a criação de uma erótica cristã, definida por Rose Marie Muraro, a
quem cita, como:

a arte que leva à vida e não como vulgarmente se possa pensar, como
caminho da manipulação dos desejos pelo poder (ex: pornografia, erotismo
de massa, exploração do corpo da mulher etc.): Para tanto advoga uma ética
de Sociedade, uma ética de maioria, e não uma ética de heroísmo, mas uma
ética de exceção.635

A abordagem do divórcio foi muito próxima a que foi apresentada sobre a


poligamia. O divórcio constituía-se numa saída à incapacidade humana de realizar
as potencialidades das relações conjugais, um limite a relações de dominação e
um remédio à hipocrisia de casamentos aparentes. Era mais um sintoma do que a
causa de problemas relacionais ou familiares. As palavras sobre o assunto podem
ser resumidas no trecho a seguir:

633
O texto bíblico se encontra em Gênesis 38:9 ―Onã, porém, soube que esta descendência não
havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía a mulher de seu irmão, derramava o sêmen
na terra, para não dar descendência a seu irmão‖. O pecado de Onã, portanto, foi ―derramar o
sêmen sobre a terra‖. Por isso a discussão sobre o uso do termo onamismo aplicado à masturbação
ou ao coito interrompido.
634
CAVALCANTI, Robinson. CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 35.
635
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 128.
266

Todos se preocupam com a facilidade com que as pessoas se ―descasam‖


hoje em dia. São os casamentos ―descartáveis‖, formais ou informais. Não
são, contudo, os mecanismos exteriores da lei civil e eclesiástica que mantêm
as pessoas juntas. Há de se ver que, a não ser nos casos de perturbação
mental ou notória irresponsabilidade, ninguém se divorcia por brincadeira.
Ninguém, em sã consciência, se casa pensando em se divorciar. Há sempre
um ânimo de permanência. O divórcio é uma experiência dolorosa que se
procura evitar. É em si mesmo um sofrimento e uma sanção. O divórcio,
todavia, é um remédio para a imperfeição do gênero humano em alcançar o
ideal divino. Remédios são para os enfermos e não para os sadios. A ruptura
da união conjugal não se constitui em pecado imperdoável. O matrimônio
não exige o exercício da infalibilidade.636

Secundariamente ao reconhecimento do divórcio como um recurso e não


como uma motivação para relações não duráveis, havia o problema dos
juramentos de fidelidade nas cerimônias matrimoniais, que segundo o autor,
poderiam redundar em hipocrisia com separações rápidas ou constantes.
Admitindo-se o divórcio como remédio para relações que não deram certo,
reconhecia-se igualmente que não havia garantias para a concretização de um
casamento indissolúvel em seus laços afetivos. De tal forma que:

Cremos que há matrimônios que Deus uniu, e que assim mesmo podem
fracassar, não por causa de Deus, mas pela natureza dos cônjuges. Há
matrimônios que o homem uniu em virtude do dinheiro, do status, da atração
física etc. E, também cremos, há matrimônios que o demônio uniu, e quanto
mais cedo cair fora dele, melhor. Embora saibamos que os matrimônios de
uniões humanas e satânicas também podem ser salvos pelo poder
transformador do Evangelho.637[grifo nosso]

Voltando ao modo como Robinson Cavalcanti descreveu a


homossexualidade, não houve mudança significativa entre Uma benção chamada
sexo (1976) e Libertação e Sexualidade (1990), a não ser a ampliação da literatura
religiosa sobre a temática e a consequente ampliação das classificações dos tipos
de relações homossexuais, de causas do ―homossexualismo‖ e de posicionamentos
pastorais a serem adotados. Na sessão ―Sexo, culpa e Graça‖, o autor respondeu à
pergunta ―o que pode o ser humano fazer com a sua sexualidade‖ com as opções:
realizá-la, reprimi-la e sublimá-la. Poderia realizá-la:

1 – de forma estável, comprometida e heterossexual (ideal) – o que nem


sempre é possível, por fatores interiores ou alheios à vontade (falta de
condições, falta de parceiros etc.);
636
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 52.
637
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 52.
267

2 – de forma instável, não comprometida ou mecânica com relacionamentos


heterossexuais sucessivos e superficiais;
3 – de forma homossexual, instável ou estável, o que não é recomendável;
4 – de forma isolada pela masturbação.638

Da pluralidade de referências citadas, Robinson Cavalcanti extraiu o que lhe


pareceu um consenso na ética cristã sobre a sexualidade, parâmetros que não
seriam nem da cultura, nem da tradição, mas instituídos na Criação. O pecado e a
queda teriam criado rupturas com os padrões divinos. Na lista dessas rupturas
estaria a relação entre pessoas do mesmo sexo, pois: ―Deus destinou o ser humano
à realização com o sexo oposto. O homossexualismo, ou atração pelo mesmo
sexo, fere esse padrão‖.639 (grifo nosso)
As outras rupturas do padrão ético instituído por Deus na Criação, segundo
o autor, seriam: a necrofilia, a zoofilia, o estupro, a prostituição, a fornicação, o
incesto, a masturbação, o aborto, o sadismo, o masoquismo, a lascívia
(sexocentrismo, sexomania ou obsessão sexual). Estas também seriam formas
desviantes de sexualidade que romperiam, respectivamente, com os seguintes
padrões de realização sexual: a) ―com outros seres vivos‖, b) ―com um ser da
mesma espécie‖, c) ―com o sexo oposto‖, d) ―por livre manifestação de vontade‖,
e) ―por amor‖, f) ―estáveis‖, g) ―na amplitude da espécie‖, h) ―como um ato de
comunicação interpessoal‖, i) ―para a reprodução da espécie‖, j) ―como um ato
construtivo de prazer‖, k) ―em equilíbrio com uma pluralidade de atividades e
interesses‖.640
Na sessão específica ―O homossexualismo‖ há uma digressão sobre o
posicionamento de diferentes igrejas, teólogos, pastores, ―psicólogos e psiquiatras
cristãos‖, condenatórios em diferentes gradações.641 Toda a discussão gira em
torno da sexualidade e da moralidade e a única menção aos direitos civis foi a
constatação, da existência de movimentos e grupos de pressão homossexuais na
sociedade e na igreja, feita em tom de reprovação:

638
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 24-25.
639
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 27.
640
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 26-27.
641
O Centro de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) foi criado em 1977, reunindo estudantes
ligados à ABU e jovens recém-formados no campo da psicologia. Tomavam como principal
referência na área psicológica o canadense Paul Tournier. No campo teológico, as referências eram
o teólogo John Stott e os intelectuais da FTL continental Samuel Escobar e René Padilla. Desde o
início compartilhou das teorias que consideravam a homossexualidade algum tipo de patologia,
distúrbio mental ou desvio de comportamento. Até hoje se posiciona contrário a qualquer defesa
cristã da homossexualidade e é favorável às terapias de reorientação sexual.
268

Na Grã-Bretanha, clérigos e leigos militam no Movimento Lésbicas e Gays


Cristãos e no Movimento pelos Direitos dos Homossexuais. Nos Estados
Unidos, os homossexuais fundaram uma denominação protestante, a Igreja
Comunitária Metropolitana, com congregações por todo o país. Grupos de
pressão pró-homo proliferam nas denominações religiosas históricas no
Velho e no Novo Mundos. Homossexuais assumidos são ordenados pastores.
No Brasil, o homossexualismo cresce nos arraiais cristãos, em geral
reprimido ou encubado.642[grifo nosso]

Em resposta, o conservadorismo estava ―reforçando as trincheiras‖ (título de


um livro do autor nos anos 2000):

Os teólogos conservadores partem para o contra-ataque. Tony Heigton é


peremptório: ―A atitude das Escrituras a respeito dos atos homossexuais é,
portanto, clara e consistente: eles são sempre errados e atraem o julgamento
divino‖. Gordon Wenham lembra a unânime condenação dos Pais da Igreja.
O Sínodo da Igreja da Inglaterra, de 1987, estatuiu: ―os atos homossexuais
não preenchem o ideal divino‖.643

Robinson Cavalcanti deu especial destaque ao debate na Igreja Anglicana,


na Inglaterra e no Brasil, bem como a teólogos e pastores conservadores desta
igreja. O mais influente dentre eles para a Missão Integral era John Stott, cujos
livros eram recorrentemente traduzidos pela ABU Editora, alguns prefaciados
pelo Bispo brasileiro. Ao comentar o posicionamento do pastor inglês, destacou
que para ele ―não devemos ter tratamento desumano com ninguém‖, que há ―uma
escala de tendências homo e hetero‖ na orientação sexual do ser humano, que os
pecados sexuais não são mais condenáveis que os de outra ordem e ―nem é pior
do que o orgulho e a hipocrisia‖, mas que enquanto cristãos ―devemos buscar
padrões morais, dependentes da Graça de Deus. A Bíblia advoga a igualdade e
complementaridade entre os sexos, e o heterossexualismo é o padrão‖.644Resumiu
as recomendações de John Stott afirmando que:

Ele faz uma distinção entre inversão ou inclinação natural e perversão ou


opção moral praticante. Não se é culpado da primeira, mas da segunda. É
contra o amoralismo permissivo e a discriminação, bem como a ―homofobia‖
(raiva dos gays). Crê na possibilidade de libertação, em se adquirindo uma
nova identidade em Cristo. Defende a aceitação das pessoas pelas igrejas, o
estabelecimento de famílias alternativas e o papel das amizades de apoio.645

642
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 29.
643
Ibidem.
644
STOTT, John apud CAVALCANTI, Robinson. Libertação e sexualidade: instinto, cultura,
revelação. São Paulo, Temática Publicações, 1990, p. 29-30.
645
Ibidem.
269

O autor citou ainda o psicólogo brasileiro Carlos Tadeu Grzybowsky como


―uma das maiores autoridades evangélicas no assunto‖, responsável por classificar
as abordagens nos meios cristãos em três tipos:

a) possessão demoníaca, defendida pelos setores conservadores e


pentecostais, com terapias espirituais, tipo ritos de expulsão ou libertação
(exorcismo), implicando na crença em curas instantâneas;
b) o estilo de vida alternativo, defendido pelos liberais, que afirmam a
impossibilidade de se mudar a orientação sexual e que, em decorrência, não
se é responsável ou condenável por tal orientação, que deve ser vivida em
uniões estáveis. Pode-se ser cristão e homossexual. Textos como os de Gn.19
e Lv.18 devem ser reestudados em seu contexto, e as condenações ali
incluídas não se resumem ao homossexualismo;
c) o desvio de personalidade e comportamento, defendida por psicólogos
cristãos, que consideram o homossexualismo um comportamento aprendido,
desviante e pecaminoso. Distinguem o homossexualismo latente, em que há
a atração sem a prática, não sendo pecado, do homossexualismo manifesto,
onde há a prática de atos. O foco da condenação, então, não é sobre a pessoa,
mas sobre os seus atos, sobre os quais ela exerce domínio. 646[grifo nosso]

Entre as teorias psicológicas que condenariam a homossexualidade, segundo


Carlos Tadeu Grzybowsky, estavam a ―Psicologia profunda‖, que considerava o
homossexualismo uma inversão da sexualidade normal, e a ―Teoria do
Hermafroditismo psíquico‖, para a qual o ―invertido‖ almejava como objeto de
desejo ―uma espécie de reflexo da própria natureza bissexual do indivíduo‖.
Alertava para o pouco cuidado em relação à homossexualidade feminina, o
―crescente lesbianismo‖, considerando que isso se dava porque o mesmo era
―favorecido pela cultura que admite mulheres vivendo juntas e se expressarem
carinhosamente como algo ‗normal‘, e pelo menor preconceito ao relacionamento
genital que não implique em penetração‖. O protagonismo de homossexuais em
alguns campos da cultura decorreria da canalização da libido reprimida em
atividades criativas, um substitutivo à impossibilidade de reprodução biológica,
pois: ―a libido – que não pode ser plenamente descarregada na união sexual – se
converte em criatividade/energia criativa: como não pode ‗criar seres‘, ‗cria
coisas‘, daí sua excelente performance nas artes, nas ciências e nos esportes‖.647

646
CAVALCANTI, Robinson.1990, p. 30-31.
647
Todas as citações sobre Carlos Tadeu Grzybowsky citadas acima em: CAVALCANTI,
Robinson. Libertação e sexualidade: instinto, cultura, revelação. São Paulo, Temática Publicações,
1990, p. 31-32.
270

As teorias reproduzidas por Robinson Cavalcanti no seu livro,


particularmente a dos ―psicólogos cristãos‖, tomavam a heterossexualidade como
padrão e buscavam compreender as ―causas‖ da homossexualidade. Estas eram
sempre encontradas em alguma experiência de inadequação, falta, bloqueio ou
trauma. Porém, apesar da considerável influência da moralidade religiosa na
condenação da homossexualidade ao longo da história, esta não existia apenas nos
círculos religiosos. Até 1990 a medicina ainda considerava a homossexualidade
uma doença mental. Em alguns países que vivenciaram a revolução sexual dos
anos 1960 e 1970, ela era considerada crime e houve perseguição a homossexuais
tanto em países capitalistas quanto socialistas durante a Guerra Fria. Na política,
os EUA elegeram o primeiro parlamentar assumidamente gay apenas na segunda
metade dos anos 1970, quando também ocorreram mudanças que ampliaram
direitos das minorias gays. No Brasil, a defesa dos direitos de homossexuais
durante a Constituinte de 1987 visou a proibição da discriminação por ―opção
sexual‖, em seguida denominada ―orientação sexual‖, mas apenas nos anos 2000
se reconheceriam direitos civis como a união estável.
Colocados estes elementos, o silêncio do movimento ecumênico e da
Teologia da Libertação sobre a temática durante as décadas de 1970 a 1990 pode
ser interpretado em outra perspectiva. Certamente, se tratando de correntes cristãs,
houve dificuldades de aceitação, abertura ou diálogo com o que a maioria
religiosa julgava ser um pecado e a maioria não religiosa um desvio ou inversão.
Mas se compararmos com os pronunciamentos explicitamente condenatórios do
fundamentalismo e da Missão Integral, e considerarmos o posicionamento do
progressismo religioso nos pleitos eleitorais ou em debates públicos mais recentes
sobre os direitos da população LGBT, veremos que o silêncio pode ter sido, em
alguns casos, um tipo de anuência, em comparação com as vozes condenatórias
bastante audíveis no campo religioso. Nas bordas do silêncio, forjaram-se posturas
inicialmente tolerantes e crescentemente inclusivas da agenda LGBT,
acompanhando as transformações da própria sociedade em relação à minoria.
O posicionamento nos pleitos eleitorais será discutido no último capítulo,
mas, quanto aos debates recentes sobre os direitos LGBT, alguns
pronunciamentos podem exemplificar a transição apontada acima, do silêncio
como tolerância à inclusão como militância ecumênica. Foi na Escola Superior de
Teologia (EST), vinculada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana, participante
271

do movimento ecumênico, que os primeiros trabalhos de Teologia Gay foram


escritos no Brasil. No mesmo ano em que a monografia sobre a Teologia Gay era
defendida na EST (2002), chegava ao Brasil a filial da primeira igreja inclusiva
dos EUA, a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM). O livro de André
Muskopf foi publicado em 2005, em sua segunda edição, por uma das entidades
mais importantes do movimento bíblico latino-americano, o CEBI, e prefaciado
por um dos teólogos e biblistas protestantes mais destacados na Teologia da
Libertação, Jorge Pixley.
Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável de
pessoas do mesmo sexo em 2011, alguns organismos e denominações ligados ao
movimento ecumênico saudaram a medida, parabenizando o STF. A Igreja
Presbiteriana Unida (IPU) pronunciou-se tentando conciliar o reconhecimento da
garantia dos direitos às minorias e a condenação a qualquer forma de
discriminação às pessoas homossexuais, com a crítica ao STF por desempenhar
uma função legislativa, atribuição do Congresso Nacional. A IPU reiterou ainda a
liberdade religiosa das igrejas celebrarem apenas casamentos aprovados pelas
comunidades de fé, sem interferência do Estado caso alguma igreja se recuse a
celebrar casamentos homossexuais. A Igreja Batista Nazareth (IBN) e a Aliança
de Batistas do Brasil (ABB), uma vertente ecumênica da denominação batista
nascida em 2010, foram enfáticas no apoio ao reconhecimento da união estável.
Algumas entidades e lideranças da Missão Integral tentaram distinguir a
condenação à homossexualidade da aprovação aos direitos civis das pessoas
homossexuais, enquanto os setores fundamentalistas continuaram condenando
ambas.
O surgimento da Teologia Gay no Brasil apenas nos anos 2000, foi a mais
longa e difícil incorporação de uma minoria militante no conjunto das teologias
situadas, mas, assim como aconteceu com suas antecessoras norte-americanas e
europeias, ela coincidiu com um momento de expansão de direitos e de
visibilidade dos movimentos LGBT. Impulsionou também o movimento
ecumênico e a Teologia da Libertação ao transitar do silêncio sobre a
homossexualidade para o acolhimento dos homossexuais na sua agenda.
272

PARTE III
EVANGÉLICOS, ABERTURA E ELEIÇÕES

O capítulo VI, ―Ser de esquerda entre os evangélicos‖, analisou de que


forma o Protestantismo Ecumênico se posicionou durante a abertura política e a
transição democrática, tomando como referência a cobertura da revista Tempo &
Presença do CEDI em momentos e processos como: o novo sindicalismo, as
campanhas pela Anistia, o pluripartidarismo, as Diretas Já e a Assembleia
Nacional Constituinte. O capítulo VII, ―Ser evangélico na esquerda: da
Constituinte às eleições presidenciais‖, abordou as agendas políticas formuladas
para o protestantismo durante a abertura e como os evangélicos atuaram nas
eleições de 1989 e 1994. Tentou avaliar o significado do pertencimento ao
protestantismo e às esquerdas no pós-ditadura.
273

Capítulo VI
Ser de esquerda entre os evangélicos

―Esquerda‖ e ―direita‖ indicam programas


contrapostos com relação a diversos
problemas cuja solução pertence
habitualmente à ação política, contrastes
não só de ideias, mas também de
interesses e de valorações a respeito da
direção a ser seguida pela sociedade,
contrastes que existem em toda a
sociedade e que não vejo como possam
simplesmente desaparecer. Norberto
Bobbio.648

Eu vim de uma igreja toda dividida e


vocês também estão todos divididos.
Waldo César.649

Uma abertura partida: o progressismo evangélico e as opções à


esquerda

Esquerda e oposição foram posicionamentos políticos correlatos, porém,


não sinônimos, durante a Ditadura Militar. No trabalho sobre as relações entre
Estado e Oposição no regime autoritário, Maria Helena Moreira Alves diferenciou
uma oposição de elite (CNBB, OAB, ABI, grupos organizados do MDB) da
oposição dos movimentos populares, mostrando como as liberalizações no regime
alcançadas através das primeiras ―ampliaram as margens de manobra para todos
os grupos de oposição‖, acrescentando ainda que: ―A revogação do Ato
Institucional nº 5 abriu novas possibilidades legais para a organização de bases, e
o movimento popular viria a desempenhar papel decisivo no processo
político‖.650Porém, o inverso também aconteceu. A ação dos movimentos sociais
e a pressão das campanhas de contestação ao regime aceleraram processos de
liberalizações, interferindo nas negociações da abertura pelo alto.

648
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção
política.Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. UNESP, 1995, p. 33.
649
Depoimento de Waldo César sobre a recusa a participar do Partido Comunista. In: DIAS,
Zwinglio Mota (Org.). Memórias ecumênicas protestantes. Os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, 2014, p. 96.
650
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis-RJ:
Editora Vozes, 1987, p. 226.
274

A repressão do Estado às esquerdas clandestinas, principalmente as que


defendiam a luta armada, conseguiu desarticulá-las na metade dos anos 1970. No
processo de distensão do regime (1974-1978) e de abertura política (1979-1985)
ocorreram transformações significativas nas forças políticas de oposição à
ditadura, desde a autocrítica em relação à luta armada feita por setores das
esquerdas, até a organização política dos movimentos de minorias sociais,
passando pela mobilização de setores da sociedade civil em defesa das liberdades
democráticas, a retomada das greves e manifestações de massa nas ruas
(especialmente dos movimentos estudantil e sindical), a campanha pela Anistia, a
volta dos exilados e suas inserções no campo político, o pluripartidarismo e a
campanha pelas eleições diretas.651
Se a revogação do AI-5 ampliou as possibilidades de organização e
mobilização e o fim da censura à imprensa e às artes deu mais visibilidade às
insatisfações com a ordem política, econômica e social no final da década de
1970, o pluripartidarismo fragmentou os setores que atuavam na oposição
partidária institucional. Porém, é um reducionismo entender essa fragmentação
política que se seguiu ao pluripartidarismo, apenas a partir do projeto de
liberalização proposto pelo regime. Para Gelsom Rozentino de Almeida: ―A
retórica sobre a divisão das oposições beneficiava o PMDB, que almejava se
apresentar como o legítimo e único partido de oposição‖.652 Durante toda a
ditadura, projetos divergentes de sociedade foram formulados no seio das
oposições e das esquerdas, e interessava a muitos desses grupos a ampliação do
campo político, de modo a garantir a autonomia e a expressão independente do
seu projeto:

Para uns, a questão primordial era a luta pela democracia. Para outros, a luta
pela democracia não se resumia ao fim da ditadura, mas significava o
reconhecimento dos direitos dos trabalhadores e a representação dos
movimentos organizados. Essa diferença levou a caminhos separados para a
criação do PT e do PMDB, mas não impediu a convivência no campo da
oposição. Se resultou, em 1982, na disputa entre PMDB e PT como duros

651
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis-RJ:
Editora Vozes, 1987, p. 185-289.
652
ALMEIDA, Gelsom Rozentino de. História de uma década quase perdida – PT, CUT e
Democracia no Brasil: 1979 – 1989. Rio de Janeiro: Garamond, 2011, p. 33.
275

adversários pelo governo do Estado de São Paulo, em outros estados a


653
coexistência foi mais pacífica.

A lei eleitoral de 1980 foi um dos mecanismos de controle, por parte da


ditadura, da incorporação de novos sujeitos políticos e projetos alternativos de
gestão do Estado. Os limites impostos pela legislação – que mantinha a proibição
aos partidos comunistas, legalizados apenas em 1985 – e a ordem de legalização
dos partidos consentidos comprovaram ―a vantagem dos partidos que herdassem
as organizações partidárias da ARENA e do MDB‖.654 Para mencionar apenas os
partidos mais importantes da oposição, o Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB) se formou como a maior legenda de oposição e herdeiro da
frente oposicionista abrigada no MDB, enquanto o Partido Democrático
Trabalhista (PDT), liderado por Leonel Brizola (1922-2004), recuperava a
tradição da esquerda trabalhista pré-1964. A última agremiação partidária a ser
reconhecida para o pleito eleitoral seguinte à promulgação da lei de 1980 foi o
Partido dos Trabalhadores (PT), que a despeito de uma composição heterogênea –
parlamentares de oposição, intelectuais, esquerdas clandestinas, sindicalistas,
socialistas cristãos, militantes de movimentos sociais, estudantis e de minorias –
se apresentava como um partido operário, nascido do novo sindicalismo, sua
principal base e ponto de partida.655Este ―mito fundador‖ foi um instrumento de
legitimação do grupo dirigente nos embates pela hegemonia do partido com outras
tendências internas, conforme observou Eurelino Coelho:

A história do PT, rica de tensões e possibilidades cruzadas, é deslocada por


um discurso heroico e unilateral. Neste sentido, o mito é um instrumento
valioso na disputa pela memória do partido e pela legitimidade que esta
memória pode conferir. Com efeito, este discurso sobre a fundação do PT
cumpriu um papel importante nas disputas internas do próprio partido ao
atribuir a um grupo, especificamente, a legitimidade decorrente do ato de
fundação. Não por acaso, o grupo de sindicalistas ligados a Lula constitui o
núcleo inicial da tendência majoritária que, posteriormente, seria denominada
Articulação. O ―mito fundador‖ seria, ao longo da existência do PT, muitas

653
ALMEIDA, Gelsom Rozentino de. História de uma década quase perdida – PT, CUT e
Democracia no Brasil: 1979 – 1989. Rio de Janeiro: Garamond, 2011, p. 209.
654
Ibidem, p. 215.
655
GOMES, Igor. Na contramão do sentido: origens e trajetória do PT em Feira de Santana – BA
(1979-2000). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2007, p. 13-26.
276

vezes transformado em argumento desta tendência para caracterizar teses


adversárias como não autenticamente petistas.656

Desde o início, portanto, o PT conviveu com uma disputa entre o


autoproclamado ―petismo autêntico‖ do núcleo sindical do ABC, as tendências de
orientação marxista (saídas da clandestinidade), os movimentos de base das
pastorais populares, católicas e protestantes, além de militantes independentes ou
com vínculos distintos (intelectuais, parlamentares, minorias, etc.). A opção pelo
PT entre os protestantes seguiu a variedade dos fluxos que desembocaram no
partido. Dos militantes da esquerda clandestina, analisados no terceiro capítulo, os
que passaram em algum momento pela AP figuram entre aqueles que mais se
aproximaram. Manoel da Conceição, fiel da Assembleia de Deus e líder histórico
do sindicalismo rural, foi um dos filiados de primeira hora.657Mozart Noronha
(1944-), da AP em Pernambuco, foi um dos fundadores do partido no Rio de
Janeiro em 1980. O debate na organização sobre a filiação ao PT foi narrado por
Manoel da Conceição, exilado na Suíça em 1979, da seguinte forma:

Lá tinha cara da AP, tinha outras tendências, outros grupos. O grupo de


militantes da AP exilados na Europa se reuniu. Alguns eram de Goiás, eu não
conhecia, outros eram de Brasília, tinha outros daqui de São Paulo. E a nossa
discussão foi: chegando no Brasil, não tem conversa, vamos direto para o PT
ajudar a discutir. Quando eu cheguei aqui, os companheiros da AP que
ficaram no Brasil estavam programando um encontro lá no Rio. Eu fui para
esse encontro e lá foi feita a discussão. Discutiu-se, discutiu-se, conversa vai,
conversa vem... mas o fato é que a maioria dos que estavam lá concordou que
nós devíamos ficar no PT. Só que depois a maior parte deles resolveu sair. A
gente ficou.658

Este depoimento foi feito para um livro de memória de militantes do PT e


deve ser relativizado. A AP também serviu de base para a formação do PC do B.
Muitos continuaram a dupla militância, clandestina e legal, nos partidos

656
COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital: crise do marxismo e mudanças nos projetos
políticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). São Paulo: Xamã; Feira de Santana: UEFS
Editora, 2012, p. 54.
657
Manoel da Conceição foi o terceiro filiado no evento de fundação do partido. Sobre a
participação na AP e no PT declarou: ―A minha militância foi só na AP, porque não tinha o PT. No
PT eu fui filiado só uma vez e até hoje não me desfiliei, continuo no PT e acho que vou morrer
petista.‖ CONCEIÇÃO, Manoel da. (Entrevista) In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FORTES,
Alexandre. (Org.). Muitos caminhos, uma estrela: memórias de militantes do PT. São Paulo:
Editora Perseu Abramo, 2008, p. 71.
658
CONCEIÇÃO, Manoel da. (Entrevista) In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FORTES,
Alexandre. (Org.). Muitos caminhos, uma estrela: memórias de militantes do PT. São Paulo:
Editora Perseu Abramo, 2008, p. 71.
277

comunistas e no PMDB, até a legalização dos PCs (1985) e suas dissidências


tardias – como o Partido Popular Socialista (PPS) em 1992 –, quando alguns
assumiram a filiação comunista.659 O próprio Manoel da Conceição reconheceu
no depoimento que a AP não entrou no PT como uma tendência, mas através de
filiações individualizadas.
Outra organização que forneceu quadros ao PT foi o MR-8, do qual Roberto
Chagas fez parte, antes de romper com qualquer militância em organizações de
esquerda. Reproduzindo o tom desiludido que pontuou seu depoimento sobre as
vivências pregressas na religião e na política, relatou a filiação dos companheiros
de MR-8 ao partido:

Aquilo [a última desilusão com o MR-8] acabou de me divorciar da


militância ativa na esquerda brasileira. Desde então, ―eu de carteirinha eu não
vou mais!!‖ Isto valeu pra depois. Valeu inclusive pra depois que a gente
voltou em 82, que todo mundo estava no PT, que todos os meus
companheiros estavam no PT, desde a sua fundação, dos que já estavam no
Brasil, e que vieram me chamar. Eu disse: tudo bem. Votei no PT várias
vezes, mas de carteirinha nunca mais. Agora eu penso e falo com a minha
boca e não com voz e nem com a camisa dos outros. 660

Militantes dos partidos comunistas (PCB e PC do B), enquanto ainda na


ilegalidade, se dividiram entre os partidos de oposição. Nilton Emmerick, do
PCB, escolheu o PT, assim como outros membros da mesma denominação
ecumênica à qual pertencia, a IPU:

Havia outras pessoas, especialmente naquele momento em que nascia o PT.


Então, boa parte das lideranças da IPU foram se filiar ao PT. Nós temos o
próprio Rev. João Pedro, que foi um dos líderes do PT no Espírito Santo.
Tanto é, que quando ele faleceu precocemente, acometido por um câncer
fulminante, foi honrado, no seu sepultamento, com a presença do Lula.
Tivemos ainda o Elieser Tavares Filho, que é filho do Rev. Elieser. É um
grande militante do PT hoje, do movimento político no Espírito Santo. É
mais novo um pouco do que eu, mas vem de uma corrente de pensamento
que nasce na IPU nesse momento de resistência, de trabalho e de
engajamento.661

659
Ver: ARANTES, Aldo; LIMA, Haroldo. História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São
Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1984.
660
CHAGAS, Roberto. Do abandono da igreja à luta clandestina. In: DIAS, Zwinglio Mota
(Org.). Memórias protestantes ecumênicas. Os protestantes e a ditadura: colaboração e resistência.
Rio de Janeiro: Koinonia Presença e Serviço, 2014, p. 56.
661
EMMERICK, Nilton. A militância política de um presbiteriano“comunista”. In: DIAS,
Zwinglio Mota (Org.). Memórias protestantes ecumênicas. Os protestantes e a ditadura:
colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia Presença e Serviço, 2014, p. 78.
278

Outras trajetórias se encaminharam para o PT, conforme apresentadas mais


adiante, enquantooutras fizeram a opção pelos demais partidos. A ênfase na tríade
PMDB, PDT e PT se deve ao fato de que estes foram os partidos com os quais
oProtestantes Ecumênicos e de Missão Integral mais dialogaram no processo de
abertura política. As inserções partidárias ganham mais inteligibilidade
analisando-se o posicionamento dos setores protestantes nos diversos processos
que marcaram a abertura política. Nenhum setor do protestantismo manifestou-se
tão próximo das ações de oposição à ditadura ou das ideologias de esquerda
quanto o ecumênico. A cobertura do CEDI, através da revista Tempo & Presença,
é bem representativa dessas afinidades eletivas, da convergência entre o
progressismo religioso e o político.

Além da “tribo ecumênica”: o CEDI e a abertura

O CEDI, através de seus serviços de documentação, publicação e assessoria


a movimentos e pastorais, representou muito mais do que a interação de pessoas e
instituições numa ―tribo‖ do mercado religioso, distante ou em dificuldade com a
massa protestante. Formação religiosa e articulação política foram os dois lados
de uma inserção política contra-hegemônica, com todos os efeitos, consequências
e limites desse posicionamento. A revista Tempo & Presença, sua principal
publicação, não negligenciou nenhum dos marcos do processo de abertura e tanto
os textos quanto as imagens marcavam a posição das pessoas e instituições,
religiosas e políticas, que encontraram no CEDI um espaço de militância ou
ressonância.
Como apresentado no segundo capítulo, o CEDI possuía programas de
assessoria a movimentos e pastorais sociais, contribuindo tanto com as ações de
organismos sindicais já existentes quanto com o surgimento de novos sindicatos,
movimentos e campanhas. Participavam dos programas de assessoria tanto os
líderes ecumênicos quanto intelectuais sem vínculo religioso, realizando trabalhos
de documentação, informação e divulgação. A produção de documentos e a
organização de acervos para os movimentos sociais serviam como instrumentos
de formação política. As publicações do CEDI divulgavam notícias das
organizações de base, pastorais e sindicatos, convertendo-se em material de uso
279

político em reuniões e eventos do sindicalismo e das lutas populares, ao mesmo


tempo que mantinha uma rede de militantes em contato.
Dentre as publicações, além da revista Tempo & Presença, boletins e jornais
alternativos, a entidade publicava livros com debates sobre temas religiosos, na
perspectiva da Teologia da Libertação, e de temas políticos, na perspectiva das
oposições e das esquerdas. Neste sentido, o CEDI pode ser considerado não
apenas uma Entidade Ecumênica de Serviço ou uma ONG, mas também uma
―editora de oposição‖. Flamarion Maués, que pesquisou as editoras de oposição
no Brasil durante os últimos dez anos da Ditadura Militar (1974-1984), escreveu:

As editoras que tinham perfil nitidamente político e ideológico de oposição


ao governo civil-militar, com reflexos diretos em sua linha editorial e nos
títulos publicados – ou seja, uniam ação editorial e engajamento político –,
são as que chamo editoras de oposição, cuja definição se dá, de um lado, por
razões de fundo político ideológico, e de outro, por sua atuação editorial
efetiva de oposição no período estudado.662

Entre as editoras de oposição pesquisadas por Flamarion Maués estavam


aquelas que publicavam obras da Teologia da Libertação, como Vozes e Paz &
Terra, mas o CEDI e o ISER, nascidas durante a ditadura e atuantes até o fim do
período aqui analisado, não figuraram na lista do autor, ao contrário de outras que
tiveram vida mais curta e não contavam com uma rede de relações tão ampla.
Com a revogação do AI-5 em 1978 e o fim da censura prévia à imprensa, a
atividade editorial se tornou parte do processo de abertura política, num
―movimento de mão dupla‖, uma vez que: ―Ao mesmo tempo em que esses livros
promovem e estimulam o debate de ideias, eles são também frutos de uma
situação em que já se tornara possível, novamente, trazer à tona tais debates‖.663 O
CEDI, através da revista Tempo & Presença e demais publicações, incluindo
livros de oposição, participava da ampliação da opinião pública durante a
abertura, contribuía com a disseminação de ideias contrárias à Ditadura Militar e
se tornava uma atividade de militância política importante para editores e leitores,
pois:

662
MAUÉS, Flamarion. Livros contra a ditadura: editoras de oposição no Brasil (1974-1984). São
Paulo: Publisher, 2013, p. 27.
663
MAUÉS, Flamarion. Livros contra a ditadura: editoras de oposição no Brasil (1974-1984). São
Paulo: Publisher, 2013, p. 31.
280

No quadro político dos anos 1970, as editoras de oposição foram muitas


vezes alternativas para grupos e pessoas que tentavam atuar e influir
politicamente de forma pública, mesmo sob um regime ditatorial. Como
outros canais institucionais de participação política e social, como partidos,
sindicatos, movimentos políticos e sociais, encontravam-se fechados ou
cerceados, a atividade editorial, mediante a edição de livros cujo conteúdo se
caracterizava pela oposição ao governo da época, passou a ser uma maneira
de manter uma atuação política visível, que possibilitasse a aglutinação de
pessoas e a divulgação de obras de denúncia e de propostas de transformação
da situação existente.664

Foi como editora de oposição e imprensa engajada que o CEDI posicionou-


se durante a abertura, e o fez dando visibilidade ao protesto e às mobilizações dos
movimentos sociais que assessorava. Um deles foi o ―novo sindicalismo‖,
divulgado em muitas notas, notícias de jornais, documentos e resoluções de
assembleias e congressos operários, entrevistas com líderes sindicais e artigos de
intelectuais ligados ao programa ―Memória e Acompanhamento do Movimento
Operário‖. Pelo programa passaram Regina Célia Reyes Novaes, Aloisio
Mercadante, Luis Flávio Rainho, Heloisa Martins, dentre outros, posteriormente
associados ao Partido dos Trabalhadores (PT), alguns deles dirigentes e
candidatos.
Das edições de Tempo & Presença cujas matérias de capa estavam ligadas
ao mundo do trabalho ou ao sindicalismo do campo e da cidade, podem ser
citadas: Questão Agrária: Movimento Sindical e Igreja (julho de 1979),
Trabalhadores e migrações no Brasil (março/abril 1980), Documento de São
Bernardo (dezembro de 1980), Operário em Construção (maio/junho de 1981), A
crise e os trabalhadores (abril de 1983), Falam os trabalhadores (setembro de
1983), No CONCLAT não se diz CUT? (janeiro/fevereiro de 1984), Cem anos do
1º de Maio (abril de 1986), Movimento operário, memória e identidade (julho de
1988). São apenas algumas das matérias de capa, mas suficientes para perceber o
acompanhamento pelo CEDI do sindicalismo, também evidenciado nos livros:
Nordeste, Estado e sindicalismo (1979), A CUT e as campanhas salariais de 1985
eHistória dos metalúrgicos de São Caetano (1987), Imagens da luta 1905-1985
(1987), A CUT e o movimento sindical internacional (1991).
Os discursos do líder sindical, depois deputado federal e candidato à
Presidência da República pelo Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio da Silva

664
MAUÉS, Flamarion. Livros contra a ditadura: editoras de oposição no Brasil (1974-1984). São
Paulo, Publisher, 2013, p. 28.
281

(1945-), o ―Lula‖, eram constantemente divulgados em matérias, notas ou recortes


de notícias de jornais emTempo & Presença. No depoimento para esta pesquisa,
Zwinglio Mota Dias também declarou que a presença de Lula nos escritórios do
CEDI em São Paulo e no Rio de Janeiro foi constante. Na edição 152 de julho de
1979, a revista Tempo & Presença divulgou o apoio das lideranças sindicais e dos
setores progressistas da Igreja Católica à Reforma Agrária durante o III Congresso
de Trabalhadores Rurais organizado pela Confederação Brasileira dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG):

A Comissão Pastoral da Terra, representada por trabalhadores e agentes de


pastoral de todas as regiões do Brasil, participou ativamente do trabalho das
comissões que funcionaram durante o Congresso. A classe operária também
juntou sua voz à dos congressistas. Um telegrama de São Bernardo do
Campo arrancou da Assembléia demorada ovação a Lula, e as palavras de
João Carlos, do Sindicato dos Petroquímicos de Caxias, sensibilizaram na
mesma medida. Representando todas as categorias de trabalhadores rurais,
procedentes de todas as regiões do país, os 1.500 delegados presentes ao
congresso, questionaram radicalmente a estrutura sindical, a legislação
trabalhista, a política agrária e a previdência social vigentes, e reafirmaram a
necessidade de uma Reforma Agrária "ampla, massiva e imediata".665

Na mesma edição, foi divulgado trecho de uma entrevista de Lula ao jornal


O São Paulo, da Arquidiocese da capital paulista, que naquele momento era
coordenado pelo reverendo presbiteriano Jaime Wright. Comentando o papel da
Igreja Católica, Lula respondeu:

Eu disse, certa vez, que a igreja como instituição sempre esteve muito mais
ao lado dos detentores do poder do que do povo. Ainda hoje, eu reafirmo
isso. Entretanto, não podemos dizer isso da igreja de D. Paulo, de D. Cláudio,
de D. Angélico, de D. Hélder e de outros combativos homens em toda a parte
do mundo.666

Outras notas da coluna Aconteceu publicadas naquela edição foram: ―Líder


metalúrgico retorna‖, ―DOPS atua nos bairros‖, ―Deputados questionados‖,
―Posseiros ameaçados‖, ―Multinacionais no garimpo‖, ―Famílias desalojadas‖,
―Lavradores protestam‖, ―Apoio às greves‖, ―Padre na CPI da grilagem‖,
―Protesto operário‖, ―Metalúrgicos e o acordo‖, ―Trabalhador rural‖, ―Favelados
unidos protestam‖, ―Reunião de índios acusa a FUNAI‖, ―Comissão Pastoral
Operária‖, ―Greve Rural‖, ―Documentos sobre problemas no campo‖, ―Operárias
665
TEMPO E PRESENÇA. Questão agrária, movimento sindical e igreja. Nº 152, CEDI, julho de
1979, p. 3.
666
TEMPO E PRESENÇA. Aconteceu. Nº 152, CEDI, julho de 1979, p. 13.
282

acusam‖, etc. A sessão Bíblia Hojeabordou o tema ―Trabalho e Libertação‖. Foi


nessa conjuntura de intensa mobilização de trabalhadores da cidade e do campo
que a proposta de um partido de novo tipo, de massa, dos trabalhadores e
anticapitalista, formulado por diferentes grupos políticos na clandestinidade e,
depois das greves do ABC (1978-1980), por líderes sindicais, movimentos e
pastorais sociais, socialistas cristãos e intelectuais marxistas, ganhou impulso. A
edição 153 da revista Tempo & Presença noticiou a participação de Lula numa
cerimônia de formatura na qual foi divulgada a proposta de criação do novo
partido:

Luis Inácio da Silva, o Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São


Bernardo e Diadema, em São Paulo, declarou em Belo Horizonte — onde foi
para ser patrono da turma de Administração de Empresas do Instituto
Cultural Newton Paiva — que será distribuído aos trabalhadores o esboço do
programa do Partido dos Trabalhadores para as primeiras discussões e, a
partir daí, "a criação do PT vai depender da vontade dos trabalhadores".
"Temos que começar a discussão pelas comunidades de bairros, associações,
dentro e fora das portas das fábricas". Perguntado sobre se Brizola "caberia"
dentro do PT, Lula declarou que "um partido denominado do trabalhador
pressupõe que nele se abriguem só assalariados e é isso que o PT fará".667

A representação política dos trabalhadores estava em disputa após a Anistia,


a volta dos exilados e o fim do bipartidarismo. Com a possibilidade de formação
de novas legendas, a disputa de capital político entre as lideranças das oposições e
de projetos políticos entre os partidos, colocava em questão os caminhos da
abertura. Brizola também teria sua opinião sobre o cenário divulgada na revista
Tempo & Presença, com a notícia ―Chegada de Brizola‖, na edição 154 de
outubro de 1979:

A chegada do Sr. Brizola, mereceu ampla cobertura da imprensa onde a


ênfase recai na intenção do ex-govemador em rearticular o antigo PTB, cujo
quartel general deverá se instalar no Rio de Janeiro. Dando continuidade às
articulações políticas que vem realizando, o Sr. Leonel Brizola chegou ao Rio
de Janeiro, sendo recepcionado por cerca de 1.500 pessoas. 668

Comentando sobre a criação do Partido dos Trabalhadores com a liderança


do novo sindicalismo à frente, Brizola respondeu: ―Falou ainda acerca do PT,
considerando que não constitui um fator de divisão ‗pois o PTB não pretende

667
TEMPO E PRESENÇA. Aconteceu. Nº 153, CEDI, agosto e setembro de 1979, p. 19.
668
TEMPO E PRESENÇA. Aconteceu. Nº 154, CEDI, outubro de 1979, p. 9.
283

abrigar a todos os trabalhadores por não se considerar o dono da verdade‘.‖669


Paulo Freire também teve sua volta do exílio divulgada na revista Tempo &
Presença, edição 153. Na edição seguinte foi publicada uma entrevista que o
pedagogo concedeu ao CEDI. Com as notícias da chegada de Brizola e Paulo
Freire, introduzo a contribuição do CEDI e do Protestantismo Ecumênico à
Campanha pela Anistia. A primeira contribuição foi na realização do II Congresso
pela Anistia ocorrido em Salvador, nas dependências do Colégio 2 de Julho,
importante educandário presbiteriano, dirigido por um pastor ecumênico e
integrante do grupo ―autênticos do MDB‖, o reverendo Celso Dourado (1931-).
Enquanto isso, o CEDI divulgava todas as manifestações favoráveis à
Campanha pela Anistia ―ampla, geral e irrestrita‖. No documento do III
Congresso dos Trabalhadores Rurais divulgado na edição 152 de Tempo &
Presença constava como uma das reivindicações: ―que se faça a reintegração de
todos os líderes afastados do movimento sindical pelos atos de exceção, através da
anistia ampla, geral e irrestrita.‖670 Na mesma edição, uma nota divulgava o
posicionamento do Secretário Geral da CNBB, D. Luciano Mendes, sobre a
Anistia: ―o único limite para o perdão deve ser a prova concreta de que o cidadão
é irrecuperável para o convívio social‖. A preocupação da Igreja Católica era com
―o número de presos que já poderiam estar em gozo de sua liberdade e que
permanecem presos por situações de arbítrio que ainda vigoram em nossa
sociedade‖.671 Em outra nota, um pouco maior e em tom editorial, a revista
comentava:

O projeto de anistia enviado pelo Governo ao Congresso é bem menos amplo


do que seus autores haviam deixado supor. Ele deixa de fora cerca de
duzentas pessoas (alguns cálculos vão a 370) acusadas de terem cometido
crimes de sangue ou atos de terrorismo com base em provas arrancadas sob
tortura em presos indefesos. Também no capítulo da reintegração de
servidores civis às suas funções o projeto deixa a desejar, pois condiciona
essa reintegração a um pedido do interessado a ser submetido a uma
comissão que julgará da conveniência ou não de seu atendimento. [...] vê-se
que o projeto de anistia do governo na realidade penaliza os injustiçados uma
segunda vez. O projeto de anistia revela os limites bastante estreitos impostos
ao Presidente da República por forças conservadoras de seu esquema de
sustentação. Aliás, o projeto tem recebido muitas críticas de setores
significativos da sociedade brasileira. A igreja proclama que ele deveria ter
maior grandeza, os trabalhadores, profissionais liberais, os estudantes

669
Ibidem.
670
TEMPO E PRESENÇA. Questão agrária, movimento sindical e igreja. Nº 152, CEDI, julho de
1979, p. 04.
671
TEMPO E PRESENÇA. Aconteceu. Nº 152, CEDI, julho de 1979, p. 14.
284

esperavam muito mais. Todos, entretanto, voltam os seus olhos para o


Congresso, na esperança de que ele não seja um dócil instrumento nas mãos
do executivo, mas que assuma realmente seu papel na atual conjuntura
brasileira.672

Em nota distribuída à imprensa, a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo


afirmava que o Presidente enviou ao Congresso:―um projeto que não é apenas
insatisfatório, mas se insere no contexto, ainda uma vez, do uso arbitrário do
Poder, por fazer discriminações que não cabem dentro do próprio conceito de
anistia”.673 O Arcebispo de São Paulo,D. Paulo Evaristo Arns (1921-), e Manoel
de Mello (1929-1990), pastor da Igreja Pentecostal ―O Brasil para Cristo‖, única
denominação pentecostal que participava do movimento ecumênico, emitiram
uma nota conjunta, com o seguinte teor:

Enquanto não voltarem os desaparecidos, que foram presos em nome da


segurança nacional, como poderão ter paz suas mães, esposas, filhos e outros
familiares? Enquanto a essas famílias não forem fornecidos os dados exatos
por aqueles que podem fornecê-los, continuará a intranquilidade. [...] Os que
foram torturados, dentro da maior humilhação e do aviltamento mais
grosseiro, não podem, por sua vez, esquecer ou seja, dar a anistia. É preciso
que eles digam primeiro, a todos, aquilo que disseram a alguns. Depois,
ouçam da nação inteira a promessa de que isto não mais acontecerá. Então,
poderão confiar na anistia, conhecer a paz e compartilhar o amor novo,
indispensável para a construção da pátria generosa.674

Na última página da edição 153 foi divulgado um manifesto de 42


religiosos, ―entre Bispos, padres, Reverendos, freis, representando as Igrejas
Católica, Metodista, Presbiteriana, Episcopal, Luterana e Batista, além de outras‖,
com o título Os cristãos e a luta pela Anistia. Acima do título da matéria um
cartaz em defesa da ―Anistia ampla, geral e irrestrita‖ e abaixo o subtítulo
―Assumimos‖. No manifesto, os signatários ressaltavam de que lugar falavam:
―Nós cristãos de diversas igrejas, fundamentados no Evangelho de Jesus Cristo,
comprometidos com sua opção pelos pobres e oprimidos‖ e solidários ―aos
diversos segmentos da sociedade brasileira‖,675 afirmavam:

1º) lutamos e apoiamos uma anistia que seja ampla, geral e irrestrita, dentro
de um espírito de grandeza e de profundo alcance político, reintegrando
plenamente todos sem discriminação à sociedade brasileira;

672
TEMPO E PRESENÇA. Aconteceu. Nº 154, CEDI, outubro de 1979, p. 16.
673
TEMPO E PRESENÇA. Anistia. Nº 153, CEDI, agosto/setembro de 1979, p. 18.
674
TEMPO E PRESENÇA. Aconteceu. Nº 153, CEDI, agosto e setembro de 1979, p. 18.
675
TEMPO E PRESENÇA. Igrejas apoiam Anistia. Tempo e Presença, nº 153, CEDI, agosto e
setembro de 1979, p. 36.
285

2º) reconhecemos que a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita é parte de
uma luta maior pelo pleno estabelecimento da democracia em nosso país,
inclusive a extinção de todos os instrumentos e órgãos que têm sido usados
para reprimir violentamente os legítimos reclamos da sociedade brasileira,
especialmente dos setores populares, excluídos sistematicamente do processo
de decisão e desenvolvimento nacional;
3º) compreendemos a dor e os esforços que estão sendo feitos por aqueles
que não foram atingidos pelo projeto de anistia enviado pelo Executivo ao
Congresso, assim como pelos seus familiares e amplos setores da sociedade;
4º) esperamos que o Congresso Nacional, ouvindo o inconteste clamor da
nação brasileira e usando do seu pleno direito, transforme o projeto da anistia
num ato amplo e condizente com as aspirações de toda a sociedade;
5º) assumimos, de acordo com o imperativo cristão, toda a dor e sofrimento
daqueles que lutam pela sua liberdade, sem nos considerarmos inflexíveis
julgadores de suas ações, e nesse espírito renovamos nossa esperança de que
esses sentimentos possam tornar-se brevemente uma realidade.676

Entre os signatários protestantes, estavam: Paulo Ayres Mattos (Bispo


metodista), Jaime Wright (pastor presbiteriano), Jaci Maraschin (pastor da Igreja
Episcopal), Jether Pereira Ramalho (pastor congregacional e Secretário Geral do
CEDI), Domício Pereira de Mattos (pastor presbiteriano), Mozart Noronha (pastor
presbiteriano), Zwinglio Mota Dias (pastor presbiteriano).677Mesmo após a
aprovação do projeto do governo pelo Congresso Nacional, que frustrou os
participantes da Campanha pela Anistia ―ampla, geral e irrestrita‖, não faltaram
notas de repúdio e manifestos, com a esperança de reverter a lei pouco depois de
promulgada.
A Lei de Anistia, mesmo restrita, impactava em outro aspecto do processo
de abertura: a reorganização das forças políticas. A reforma partidária de 1979 deu
origem a cinco novos partidos, mas os critérios estabelecidos pela nova legislação
previam que o registro definitivo das legendas ocorreria após as eleições de 1982.
Até lá, novos partidos surgiriam. Num festival de casuísmos, várias mudanças
foram feitas no sistema político e nas regras eleitorais visando o controle do
processo de inserção das lideranças políticas, antigas e novas, na configuração
partidária da abertura.

676
TEMPO E PRESENÇA. Igrejas apoiam Anistia. Tempo e Presença, nº 153, CEDI, agosto e
setembro de 1979, p. 36.
677
A seguir uma lista de outros protestantes citados: Luiz Boaventura (Presidente da Aliança de
Igrejas Reformadas do Brasil), Luis Carlos Garlipp (pastor luterano), Josué de Oliveira (pastor
presbiteriano), Paulo Schütz (pastor metodista), Hélcio da Silva Lessa (pastor batista), Carlos
Alberto Correia da Cunha (pastor presbiteriano), Felipe de Mesquita (pastor metodista), Aerton
Tavares de Azevedo (pastor metodista), Rui de S. Josgrilberg (pastor metodista). O predomínio era
de presbiterianos (seis) e metodistas (5).
286

Os primeiros partidos formados corresponderam às expectativas do governo,


com dois deles dando continuidade aos extintos MDB e ARENA. No primeiro
caso, a oposição formal manteve a sigla do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB) antecedida, por exigência da lei, pela letra P, correspondente a ―partido‖.
No segundo caso, surgiu o Partido Social Democrático (PSD), composto pela
maioria do partido do governo, mas também por quadros mais conservadores da
oposição. Um terceiro partido, colocando-se como centro democrático, compôs-se
com lideranças moderadas dos dois antigos partidos. Surgia o Partido Popular
(PP), liderado por um político tradicional, da ala moderada do MDB, o mineiro
Tancredo Neves (1910-1985), parlamentar da oposição e ex-ministro do
presidente deposto João Goulart.
Ocorreu ainda, como era esperado, o ressurgimento do trabalhismo pré-
1964, primeiro com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), legenda disputada por
brizolistas e ―trabalhistas históricos‖. Preterido na disputa pela sigla, Leonel
Brizola criou o Partido Democrático Trabalhista (PDT), originando assim duas
frações do trabalhismo: a primeira com perfil pragmático e liderada por Ivete
Vargas (1927-1984), sobrinha do ex-presidente Getúlio, beneficiada pela justiça
na disputa da sigla; outra de perfil social-democrata, liderada por Brizola,
contando com importantes lideranças e intelectuais que haviam enfrentado a
cassação e o exílio, a exemplo de Lysâneas Maciel e Darcy Ribeiro (1922-
1997).678 Por fim, ainda correspondendo às expectativas dos estrategistas do
governo, surgiu o quinto partido, dando expressão política ao novo sindicalismo e
a movimentos populares emergentes; o Partido dos Trabalhadores (PT), liderado
por Luís Inácio da Silva, o Lula, protagonista das greves de 1978 a 1980 no ABC
paulista.
Os partidos comunistas continuavam proibidos e antes do fim do regime
nenhum partido socialista foi criado, o que fez as esquerdas clandestinas e os
movimentos de minorias apoiarem os partidos oposicionistas PT, PDT e PMDB.
Os sucessivos pacotes eleitorais que alteravam a legislação política para beneficiar
o governo, provocaram a dissolução do PP de Tancredo Neves às vésperas da

678
CABRERA, José Roberto. Os caminhos da Rosa: um estudo sobre a social-democracia no
Brasil. Dissertação (Mestrado) – UNICAMP, Campinas, 1995.
287

eleição indireta de 1985. Tancredo e demais correligionários se filiaram ao


PMDB, enquanto a minoria arenista do PP integrou-se no PSD.
Em depoimento para a matéria As igrejas e o momento político, da edição
155 de Tempo & Presença, o Bispo metodista Paulo Ayres Mattos afirmou que a
reforma partidária deveria ser compreendida ―dentro de um quadro maior que é a
manutenção do regime político estabelecido a partir do golpe de 1964 e de forma
mais clara e definida, a partir de dezembro de 1968‖.679 Por isso, a extinção do
AI-5 e a volta do pluripartidarismo não eram suficientes para superar ―os
instrumentos surgidos com o regime de arbítrio‖, dentre os quais ―a lei de
Segurança Nacional, os aparatos da repressão [...] e outras instituições e
legislações filhas do arbítrio‖.680 O Bispo metodista concluiu que ―Desta forma,
parece-me que a atual reforma partidária que está sendo levada a cabo no Brasil é
parte deste jogo que visa, acima de tudo, iludir e mascarar a verdade maior da
situação política brasileira: a permanência da ditadura‖.681 A legalização dos
partidos comunistas, era, de acordo com Paulo Ayres Mattos, ―uma exigência
histórica‖, defendê-la não era optar pelo comunismo, mas por um meio de acabar
―com este fantasma que tem produzido a indústria do anticomunismo e que
alcança as raias da irracionalidade‖.682 Essa defesa da legalização dos partidos
comunistas era assumida também como um compromisso de fé, pois ―Como
cristão penso e tenho que defender o direito de todos aqueles que fazem parte de
uma sociedade de se organizarem politicamente da forma que melhor lhes
convier‖683,mas também a compreensão política de que:

Não adianta darmos uma de avestruz e querermos ignorar a existência do PC.


O Partido Comunista existe e está aí com todo o seu aparato e com toda a sua
capacidade de organização, e, portanto, não levar a sério esta parcela política
da vida nacional creio que é uma grande estupidez. Com uma legalização do
PC, os seus adeptos poderiam participar livre e abertamente do jogo político
brasileiro. Apresentar o seu programa, a sua proposta e ser um dos
interlocutores da reorganização da sociedade brasileira. Isto não significa
uma opção pelo Partido Comunista. Significa reconhecer o direito que os
comunistas têm de participar da vida política brasileira. O que vai dizer se os
comunistas estão certos ou errados será a prática que vão desenvolver. E o
povo terá condições de julgar se as propostas estão certas ou erradas. Se

679
TEMPO E PRESENÇA. As igrejas e o momento político. Nº 155, CEDI, novembro de 1979, p.
11-12.
680
Ibidem.
681
Ibidem.
682
Ibidem.
683
Ibidem.
288

atendem aos interesses maiores dos brasileiros e especialmente das classes


trabalhadoras ou não.684

A abertura não parecia, naquele momento, um processo inexorável ou


irreversível. A própria sensibilidade artística captou o momento de insegurança e
descontinuidade, como na famosa canção ―Abre-te, Sésamo!‖, de Raul Seixas
(1945-1989), que cantava ―Abre a porta, fecha a porta, abre-te, Sésamo!‖. Em
outro trecho a canção dizia ―é tudo mentira, quem vai nessa pira atrás de um
tesouro de Ali-bem-bem‖.685 Paulo Ayres Mattos também considerava que
alimentar expectativas democráticas a partir do projeto de abertura negociada
entre o governo e a ―oposição de elite‖ era uma ilusão. O modelo proposto lhe
parecia muito mais a continuidade de uma estrutura de dominação do que a
construção de uma sociedade com equidade de direitos. Nas suas palavras:

As coisas continuam como antes em sua essência e nas suas características


básicas. A reorganização partidária neste quadro é, portanto, um dos
elementos e um dos instrumentos através dos quais o sistema procura
preservar a si mesmo e garantir a sua sobrevivência sem que o povo tenha
condições de participar livre e soberanamente na reorganização da sociedade
brasileira de forma democrática. Eu diria que todo processo de abertura
política que está sendo feito a partir de iniciativas tomadas pelos detentores
do poder se faz para se reordenar a sociedade dentro de um quadro imutável.
Parece-me, ainda mais, que esta estratégia montada pelo sistema se enquadra
muito bem dentro do programa político elaborado pelos participantes da
Comissão Trilateral. Nesta Comissão procura-se estabelecer, nos países de
regime autoritário, uma democracia relativa através de um processo lento e
gradual em que as instituições democráticas existam só no seu aspecto
formal.686

Se o diagnóstico encontrava correspondência na canção ―Abre-te, Sésamo‖,


de Raul Seixas, a estratégia sugerida pelo Bispo metodista encontrava
correspondência em outra canção que captava o sentimento de movimentos que
pretendiam realizar profundas transformações na sociedade brasileira a partir das
bases. Como dizia a canção ―Desesperar, jamais!‖, de Ivan Lins (1945-):
―Cutucou por baixo, o de cima cai, cutucou com jeito, não levantam mais!‖.687

684
Ibidem.
685
Ao comentar a música ―Abre-te, Sésamo‖ na época de lançamento do LP homônimo (1980),
Raul Seixas confessou que a composição foi feita pensando na abertura para a qual ele convidou
Ali Babá, uma vez que, segundo ele, os quarenta ladrões sempre estiveram entre nós. Nos shows,
ele terminava a música gritando repetidas vezes: ―Abre-te!‖.
686
TEMPO E PRESENÇA. As igrejas e o momento político. Nº 155, CEDI, novembro de 1979, p.
11-12.
687
A canção ―Desesperar, Jamais‖ foi gravada no LP ―A Noite‖ (1979) de Ivan Lins.
289

Assim, Paulo Ayres Mattos argumentava que a tentativa dos grupos dominantes
em perpetuarem a ditadura por outros meios, através de uma democracia restrita,
não deveria produzir a inação dos movimentos de oposição, mas uma resposta à
tentativa de ludibriá-los:

A situação dos movimentos populares dentro deste quadro corre o risco de


duas coisas. A primeira é deixar-se envolver pela manobra escapista com que
o governo pretende iludir o povo brasileiro velando a ditadura existente. E o
outro perigo é não levar devidamente em consideração as possibilidades que
a reforma partidária cria para o fortalecimento das organizações populares. O
fato de que o governo e um grupo envolvido com a reforma partidária tenha
uma posição verticalista em relação ao processo político não deve, de forma
alguma, impedir as organizações populares de tentarem, dentro deste quadro,
fortalecerem-se o máximo possível a fim de que se possa atingir aquilo que é
central em toda a reorganização da vida política brasileira: a derrubada da
ditadura. Por isso, creio que neste momento é necessário que todos os setores
democráticos, inclusive os setores populares, se mantenham unidos e coesos
no combate pela derrubada da ditadura.688

Finalizando, Paulo Ayres Mattos comentou a posição da Igreja Metodista


em relação à reforma partidária. Declarou que muitos grupos da igreja faziam
apelos para que os Bispos se pronunciassem sobre a questão. Todavia, a igreja não
se encontrava preparada: ―isto não tem sido possível porque,apesar da
IgrejaMetodistater-se preocupado com a evolução do processo social brasileiro,
esta questão específica da reforma partidária nos colheu de surpresa‖.689 Nas
palavras do Bispo, ―não temos o conhecimento preciso do quadro amplo em que
se discute a questão da reorganização política da sociedade brasileira.‖ Na
ausência de um posicionamento específico, a igreja deveria recorrer ao Credo
Social para orientar os fiéis:

Eu diria que o que a Igreja Metodista possui como posição é a afirmação


contida no seu Credo Social de que, somente quando o povo tiver a liberdade
para escolher o governo que quer através de canais adequados para uma ação
política consciente, livre e democrática, é que realmente haverá um exercício
pleno da cidadania. Enquanto isto não acontecer, todo o resto ficará
comprometido. Além disso, a Igreja Metodista defende que os setores da
sociedade devem gozar de ampla liberdade a fim de expressar suas
convicções políticas de tal sorte que o debate nacional não seja privilégio de
poucos, mas seja compartilhado por todos. Porque somente assim aqueles que
exercem o poder poderão ser responsáveis perante o povo que os escolheu.
Se não for assim, o povo ficará sempre numa posição de tutelado, de alguém
menor de idade que não tem capacidade de decidir por si próprio e para si
próprio. O que precisa, portanto, existir em nosso país, de acordo com a
declaração da Igreja Metodista, é a possibilidade do povo organizar-se

688
Ibidem.
689
Ibidem.
290

livremente e do povo escolher os seus governantes e com eles estabelecer


uma relação dinâmica de responsabilidade e compromisso com as causas
básicas e fundamentais da vida do povo brasileiro.690

Depois de aprovada a Lei de Anistia e realizada a reforma partidária, o


quadro político adquiriu outra dinâmica e colocou outras pautas e estratégias
diante dos movimentos sociais, das esquerdas e da oposição ao governo. O
primeiro teste das alternativas em jogo com as mudanças institucionais foi o pleito
eleitoral de 1982. Depois de 18 anos de regime militar, seria a primeira vez que
ocorreriam eleições livres e diretas para todos os cargos, exceto presidente.
Segundo registrou Ronaldo Costa Couto:

Assim, as eleições gerais de 15 de novembro de 1982 vão contar com todos


os partidos e escolher os vereadores, prefeitos, deputados estaduais,
deputados federais, senadores e governadores. Exceto para parte do Senado,
governadores e prefeitos de capitais e municípios de interesse de segurança
nacional, far-se-ão por sufrágio universal direto e secreto, com participação
de todos os partidos registrados, com previsão de mais de cinquenta milhões
de eleitores. As maiores eleições da história do país.691

A revista Tempo & Presença deu cobertura às eleições. Na edição 176 de


julho/agosto de 1982, intitulada ―Eleições em pacotes‖, a capa mostrava várias
propagandas de candidatos do PT, PDT, PTB e PMDB e pichações de muros com
protestos ao sistema político.
Imagem 5 – Tempo e Presença, capa ―Eleições em pacotes‖

690
TEMPO E PRESENÇA. As igrejas e o momento político. Nº 155, CEDI, novembro de 1979, p.
11-12.
691
COUTO, Ronaldo Costa. A história indiscreta da ditadura e abertura. Rio de Janeiro: Record,
2010, p. 282.
291

O editorial denunciava ―os casuísmos e manipulações que foram elaborados


no sentido de neutralizar os efeitos da livre manifestação da vontade popular‖,
mas também valorizava a ―efervescência em busca do espaço perdido‖, que
poderia ser percebida observando-se ―Os candidatos na televisão, a propaganda
política nas ruas e os debates que se sucedem nas universidades, associações e
organizações eclesiásticas‖ que demonstravam ―o anseio dessa maioria em
participar mais ativamente do processo político‖. Apesar de precaver sobre ―as
muitas ambiguidades que ainda perduram‖, o editorial era otimista com os
―dividendos importantes para o crescimento dos movimentos populares‖.692
Três textos compunham o dossiê sobre as eleições de 1982: 1) Jether
Ramalho, pastor congregacional, sociólogo e membro do CEDI, discutiu a política
partidária na ótica da Pastoral Popular, compartilhando interpretações feitas sobre
o assunto nas discussões das CEBs; 2) Um documento elaborado por Bispos
metodistas defendeu uma participação política mais ativa dos pobres; 3) O padre
Oscar Beozzo escreveu um relato sobre as alterações no jogo político provocadas
pelos constantes pacotes eleitorais que visavam controlar efeitos indesejáveis da
participação popular.
O texto de Jether Ramalho pretendia apresentar ―uma visão dos rumos
tomados nas discussões das Comunidades de Base sobre as eleições e a

692
TEMPO E PRESENÇA. Eleições em pacotes. Nº 176, CEDI, julho/agosto de 1982, p. 2.
292

participação política dos cristãos católicos‖. Iniciou problematizando as ―posições


apartidárias, suprapartidárias e às vezes antipartidárias‖ nos pronunciamentos e
documentos oficiais de católicos e protestantes sobre a política, sugerindo que:

quando se examina a história com mais atenção percebe-se que há exemplos


claros de compromissos e de adesão a determinados partidos políticos;
principalmente quando os interesses eclesiásticos estão ameaçados. Embora
se possa falar em certa neutralidade e distanciamento, por outro lado, são
óbvias as ligações entre as igrejas e o poder e/ou partidos políticos.693

Tomando a Pastoral Popular como ponto de partida para analisar as


eleições, os partidos e os movimentos sociais, Jether Ramalho chegou a
conclusões muito próximas dos documentos iniciais do Partido dos Trabalhadores
sobre os mesmos temas. A convergência não era uma mera coincidência, mas
resultava da própria contribuição dada pela Pastoral Popular à construção do PT.
Se o texto de Jether Ramalho pode ser considerado representativo da discussão
acumulada nas CEBs até aquele momento, o principal motivo do desgaste dos
partidos políticos era porque:

não têm representado os anseios populares e por não serem um conduto


adequado que possa expressar o movimento social. Têm sido mais
instrumentos nas mãos dos poderosos em sua ânsia de tomar o poder e
permanecer nele. Por estas razões, o povo mesmo ainda não tem plenamente
experiência de uma organização partidária que possa representar seus
interesses e onde possa participar ativa e decisivamente.694

O manifesto do Movimento Pró-PT em 1980 colocava o partido como a


realização dos anseios de participação popular. ―Os trabalhadores‖, dizia o
manifesto, ―protestam quando, uma vez mais na história brasileira, vêem os
partidos sendo formados de cima para baixo, do Estado para a sociedade, dos
exploradores para os explorados‖. Se o povo, nas palavras de Jether Ramalho,
ansiava por ―uma organização partidária que possa representar seus interesses e
onde possa participar ativa e decisivamente‖, o PT se apresentava como um meio
para a classe trabalhadora ―se organizar como força política autônoma‖,
construindo um partido que fosse ―uma real expressão política de todos os
explorados pelo sistema capitalista‖, tornando a política uma ―atividade própria

693
TEMPO E PRESENÇA. Pastoral Popular e política partidária. Nº 176, CEDI, julho/agosto de
1982, p. 3.
694
Ibidem.
293

das massas que desejam participar, legal e legitimamente, de todas as decisões da


sociedade‖.695
Dois anos separam o manifesto de fundação do PT das primeiras eleições
disputadas pela legenda e do texto de Jether Ramalho sobre a visão que as CEBs e
a Pastoral Popular tinham sobre os partidos e a política. Havia, portanto, uma
desconfiança dos movimentos sociais e das pastorais populares quanto à
adequação do partido como instrumento de participação política ou organização
das lutas sociais. Por isso, o autor fez questão de ressaltar que a crítica ao desgaste
dos partidos existentes ―não invalida a importância do partido no processo político
atual‖. Percebe-se assim, que o pastor congregacional tentava mediar o conflito
entre as militâncias de base e a direção de umpartido que se pretendia
autenticamente popular, construído ―de baixo para cima‖, ―da sociedade para o
Estado‖, ―dos explorados diante dos exploradores‖.
A formação heterogênea do PT contribuía para este conflito, mas lhe
conferia, ao mesmo tempo, a condição de espaço de debate e pluralidade de
concepções partidárias à esquerda do campo político. De um lado, estavam os
quadros das esquerdas tradicionais, muitos deles saídos da clandestinidade,
defensoras de um partido revolucionário e direcionador das classes trabalhadoras
para a construção do socialismo; no outro, estavam os movimentos e pastorais
sociais, defensores da total autonomia política dos sujeitos subalternos, dos
―pobres‖ (classe) e ―oprimidos‖ (minorias) na linguagem do ―marxismo difuso‖
das novas esquerdas e da Pastoral Popular. Os primeiros acusavam os segundos de
―basistas‖, ou seja, limitados à organização de base sem projeto de poder através
do qual seria possível alterar a realidade, enquanto os segundos acusavam os
primeiros de burocratizarem as lutas sociais em função de interesses estranhos aos
―pobres‖ e ―oprimidos‖, visando um projeto de poder e não de transformação
política. Era neste debate que o CEDI pretendia intervir, quando o pastor Jether

695
Manifesto aprovado pelo Movimento Pró-PT, em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion
(SP), e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1980. O manifesto foi redigido
pela tendência trotskista Convergência Socialista. Defendia um partido dos trabalhadores, com
total autonomia de classe e independência política diante da burguesia. Como observou Eurelino
Coelho: ―A intervenção política dos grupos de esquerda tencionava o embrião do que viria a ser a
Articulação [grupo dirigente do partido] desde o período do Movimento Pró-PT‖. COELHO,
Eurelino. Uma esquerda para o capital: crise do Marxismo e mudanças nos projetos políticos dos
grupos dirigentes do PT (1979-1998). São Paulo: Xamã; Feira de Santana: UEFS Editora, 2012, p.
72.
294

Ramalho, um dos seus principais militantes e articulistas, escrevia na revista


Tempo & Presença:
Convém, no entanto, não confundir as perspectivas e considerar o partido
como a soma dos movimentos de base. Estes, em geral, lidam com problemas
mais localizados em setores sociais específicos e não podem articular uma
proposta política totalizadora, embora incluam em seu programa anseios que
são, na realidade, mais amplos. Quanto ao partido, tem que apresentar um
programa mais geral e que representa alternativas ao uso do poder e da forma
de administração da vida nacional. Por isto mesmo é que consideramos falso
o enfoque Partido Político versus Movimentos Populares.696

Para o pastor protestante que assessorava comunidades de base católicas, a


complementariedade passava por assegurar a formação popular dos militantes
partidários e a autonomia política dos movimentos sociais, para que ambos
atuassem na construção de uma sociedade emancipadora de explorados e
oprimidos. Em outras palavras:

Há partidos que podem (e devem) englobar aquilo que buscam os


movimentos populares, mas nem por isto eliminam sua validade e relevância.
É, pois, permanente a preocupação com o fortalecimento da sociedade civil.
Mesmo militantes dos atuais partidos estão incentivando e participando na
criação e fortalecimento das organizações populares autônomas como
sindicatos, associações de bairro, movimentos de libertação feminina, luta
pela terra, etc. Percebe-se, e a experiência tem demonstrado que sim, que isso
faz parte da educação política e possibilita melhor atuação nas atividades
partidárias.697

Ao abordar qual deveria ser a postura da Pastoral Popular diante dos


partidos, o pastor enfatizou que a dimensão da fé era inerente às comunidades
cristãs, mas o exercício da política partidária não. O que não impedia os cristãos
de buscarem nos projetos em disputa a realização da ética cristã. O que estava no
horizonte do Cristianismo da Libertaçãoera ―a expressão política da esperança‖:

Ainda mais: é preciso realçar que a prática pastoral não se reduz à atividade
política, não é complementar e nem provisória. Tem especificidade e
abrangência próprias. Por sua vez a política partidária realiza-se
independentemente das questões relacionadas com a fé. Ela se define em
relação do poder como instrumento de organização e de transformação social
e pode ser exercida sem referência explícita à fé.
Isto faz com que a responsabilidade das comunidades cristãs cresça, e se
torne cada vez mais urgente uma definição, à luz da fé e da realidade social,
das exigências que se fazem a um partido, para que ele possa realmente
representar os interesses populares. A fé, fundamento das Comunidades

696
TEMPO E PRESENÇA. Pastoral Popular e política partidária. Nº 176, CEDI, julho/agosto de
1982, p. 3.
697
Ibidem.
295

Eclesiais, também se expressa através dos programas que se elaboram para a


sociedade como um todo.698

Ao tentar definir ―os critérios para a definição de um partido, a partir das


expressões populares‖, o texto de Jether Ramalho convergiu, mais uma vez, com
o modelo de partido assumido pelo PT em seus documentos iniciais. O partido
deveria formular um programa que representasse ―uma alternativa diversa daquela
que existe‖, pois: ―aprimorar o injusto não leva à realização da justiça‖. O
programa deveria buscar ―a transformação da sociedade e não apenas uma simples
reforma ou melhoria do sistema vigente‖.699 Um documento anterior ao Manifesto
de Fundação do PT, escrito por uma das tendências que formaram o partido,
criticava os projetos reformistas do regime com as seguintes palavras:

os detentores do poder procuram agora, e até este momento com relativo


êxito,
reformar o regime de cima para baixo. Vale dizer, pretendem reformar alguns
aspectos do regime, mantendo o controle do Estado, a fim de evitar alterações
no modelo de desenvolvimento econômico, que só a eles interessa e que se
baseia, sobretudo, na superexploração das massas trabalhadoras, através do
modelo econômico do qual sobressai o arrocho salarial. 700

Os demais aspectos convergentes entre o texto da revista Tempo & Presença


e os documentos de fundação do PT eram: 1) a participação popular na elaboração
do programa; 2) democracia interna do partido, com participação e hegemonia dos
trabalhadores; 3) não se limitar ao processo eleitoral, mas participar das lutas para
a transformação de toda a sociedade; 4) estar organizado ―de baixo pra cima‖, dos
núcleos de base às instâncias máximas, sem perpetuação de quadros no poder; 5)
incentivo aos movimentos populares, com respeito à sua autonomia, sem tentativa
de instrumentalização; 6) reconhecimento do pluralismo interno, rejeição ao
pensamento único. Outras comparações serão feitas em momento oportuno,
cabendo apenas resumir quais deveriam ser, segundo o pastor, as contribuições
que as comunidades eclesiais poderiam dar aos partidos populares e ao processo

698
TEMPO E PRESENÇA. Pastoral Popular e política partidária. Nº 176, CEDI, julho/agosto de
1982, p. 3-4.
699
TEMPO E PRESENÇA. Pastoral Popular e política partidária. Nº 176, CEDI, julho/agosto de
1982, p. 4.
700
CARTA DE PRINCÍPIOS. Anterior ao Manifesto de Fundação do Partido dos Trabalhadores,
lançada publicamente no dia 1º de maio de 1979.
296

eleitoral. A inserção na luta partidária deveria ser encarada como uma


necessidade, sendo que:
Para isto é preciso estimular a educação política destas comunidades de
forma a que não se limitem ao período das eleições. Além disto há a
necessidade de criar condições para o surgimento de líderes que se engajem
num partido popular. Pessoas que, não se desligando de suas comunidades de
origem, exerçam sua natural liderança em uma prática partidária enquanto
recebem alimentação e estímulo de seu grupo de origem. 701

Esta inserção deveria evitar que ―a presença dos cristãos nas organizações
partidárias‖ viesse a ―constituir-se em mais uma tendência — a tendência da
igreja‖ e, ao mesmo tempo, alertar para que os cristãos não fossem ―usados como
massa de manobra por hábeis políticos ou facções minoritárias já organizadas‖.702
As comunidades cristãs deveriam precaver-se, além do mais, de conceber suas
lideranças como candidatos naturais da comunidade, pois uma vez candidatos,
eles representavam o partido e seu programa, podendo estar mais ou menos
afinados com a perspectiva da Pastoral Popular, mas sem confundir-se com ela.
As consequências dessa confusão ―têm trazido mágoas, desânimo e
fraccionamento no interior dos grupos‖. As comunidades deveriam reconhecer
que ―mais de uma tendência aparece através de seus membros‖.703
A pluralidade partidária nas bases significava que, para elas, nenhum
partido constituía uma alternativa exclusiva. Os proponentes do Partido dos
Trabalhadores, mesmo apresentando o partido como a autêntica expressão dos
interesses das classes trabalhadoras, esclareciam na Carta de Princípios de 1979,
que as críticas à oposição representada pelo MDB não pretendiam ignorar que o
mesmo ―foi utilizado pelas massas para manifestar eleitoralmente seu repúdio ao
arbítrio‖ e nem ―a existência, entre seus quadros, de políticos honestamente
comprometidos com as lutas populares‖.704
O reconhecimento da pluralidade partidária nas organizações de base no
texto de Jether Ramalho, assim como o reconhecimento do compromisso com as
lutas populares em políticos do antigo MDB por uma das tendências formadoras

701
CARTA DE PRINCÍPIOS. Anterior ao Manifesto de Fundação do Partido dos Trabalhadores,
lançada publicamente no dia 1º de maio de 1979.
702
TEMPO E PRESENÇA. Pastoral Popular e política partidária. Nº 176, CEDI, julho/agosto de
1982, p. 5.
703
Ibidem.
704
CARTA DE PRINCÍPIOS. Anterior ao Manifesto de Fundação do Partido dos Trabalhadores,
lançada publicamente no dia 1º de maio de 1979.
297

do PT, e a inserção do Socialismo Cristão em diferentes partidos nas eleições de


1982, mostrava que a esquerda era, para o CEDI e o Protestantismo Ecumênico,
uma experiência política transversal aos partidos de oposição. O que corrobora a
observação de Norberto Bobbio sobre a historicidade dos conceitos políticos:
―direita e esquerda não são palavras que designam conteúdos fixados de uma vez
para sempre. Podem designar diversos conteúdos conforme os tempos e as
situações‖.705
Igualmente transversal às oposições foi a campanha pelas eleições diretas
para a Presidência da República, iniciadas em 1983 e ampliadas em 1984, ano em
que se tornou a maior campanha de mobilização nacional por uma pauta política
no século XX. Foi impulsionada pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC)
encaminhada pelo deputado Dante de Oliveira (1952-) em 02 de março de 1983 ao
Congresso Nacional, que propunha o estabelecimento de eleições livres e diretas
para presidente e contou com a adesão dos principais partidos de oposição, com o
movimento sindical, artistas, intelectuais, atletas, igrejas, movimento estudantil e
demais movimentos sociais.
A reivindicação por Diretas Já ocupou o posto de principal bandeira das
oposições ao regime, que até então cabia à convocação de uma Assembleia
Nacional Constituinte, conforme explicou Dante de Oliveira e Domingos Leonelli
(1946-), parlamentares do PMDB à época e autores do livro de memórias sobre a
Campanha:

Embora fosse a bandeira geral dos partidos de oposição e da sociedade civil,


considerada corretamente como o ponto de inflexão mais profundo entre o
regime autoritário e a democracia desejada, a constituinte seria substituída
temporariamente pelo objetivo tático imediato da proposta de eleição direta
para Presidente da República.706

Entre a apresentação da emenda Dante de Oliveira em março de 1983 e a


votação da PEC em abril de 1984, ocorreram comícios com grande participação
popular nas principais capitais do País e em muitas cidades brasileiras, formaram-
se comitês pró-Diretas em diferentes entidades da sociedade civil e
pronunciamentos a favor da campanha foram emitidos por lideranças sindicais,
705
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção
política.Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. UNESP, 1995, 92.
706
LEONELLI, Domingo; OLIVEIRA, Dante. Diretas já! 15 meses que abalaram a ditadura. Rio
de Janeiro: Record, 2004, p. 72.
298

parlamentares de oposição, intelectuais, personalidades das artes e dos esportes,


igrejas e movimentos sociais. Na edição 189, a revista Tempo & Presença
publicou uma entrevista com o líder sindical Jair Meneguelli (1947), que
mencionou a contribuição das classes trabalhadoras para a campanha e o processo
de redemocratização:

Embora esteja sendo lançada hoje a nível de Brasil, eu acredito que poderá
impulsionar essa campanha, fazer com que se concretizem as eleições diretas
para Presidência da República; porque eu julgo ser um dos passos
importantes pra concretização da própria democracia no Brasil. Mas a
mensagem que eu gostaria de dar aos trabalhadores, para que se
conscientizassem daimportância de se organizarem a partir de seus
sindicatos, das suas associações de bairros, porque, na minha opinião, eu
entendo que a única forma de transformarmos essa sociedade, a única forma
de conseguirmos deveres e direitos iguais para todo o povo brasileiro, é a
própria organização da classe trabalhadora.707

O CEDI dedicou a edição 190 da revista à campanha das Diretas Já.


Publicada em março de 1984, portanto, antes da votação da emenda Dante de
Oliveira, já denunciava, no editorial, os acordos políticos e negociações de
bastidores entre Governo e oposição para garantir uma transição controlada do
poder militar ao civil através de uma sucessão presidencial indireta via Colegiado
Eleitoral, composto a partir de uma legislação casuística. Toda a mobilização da
campanha das Diretas Já estava sendo convertida em apoio à candidatura da
oposição moderada ao governo no Colégio Eleitoral. Numa crítica ao processo
sucessório e aos candidatos, o editorial de Tempo & Presença considerava:

Essa prática da sedução e tentação dá à campanha um silêncio de velório,


conversas de negócio ao pé do ouvido. Política passa a ser verbas e cargos,
nunca foi tão claramente isso. O candidato ministro do interior aparece todos
os dias na televisão assinando doações de verbas públicas como se fosse água
benta após suas visitas eleitorais. Aparece todos os dias, as doses
homeopáticas anestesiam nossa capacidade de indignação, ficamos como
doentes incuráveis, resignados e apáticos. O candidato deputado Maluf
realiza o seu capricho, ―sonha ser presidente desde criança‖, e como mostra
de que ainda não cresceu o bastante, a mãe paga a campanha do filho
mimado [...] Faz o contraponto a isso o candidato Aureliano Chaves, o único
que tem um discurso para a sociedade, apoiado na negação da prática dos
dois arrematadores de votos, na ética, isto porque para ela se tornar uma
força, precisa de verba. Mas não basta ser o negativo de um mesmo retrato,
nem para ganhar nem para diminuir o mal-estar. O que é preciso é um retrato
novo, fazer a vontade da sociedade, revelar-se numa outra foto institucional,
e a película sensível dessa metamorfose são as urnas: Diretas, já.708

707
TEMPO E PRESENÇA. Entrevista: Meneguelli fala do movimento sindical. Nº 189, CEDI,
1984, p. 7.
708
TEMPO E PRESENÇA. Editorial: Diretas na cara. Nº 190, CEDI, 1984, p. 3.
299

Os ―pacotes‖ das reformas eleitorais, não impediram o crescente equilíbrio


entre governo e oposição no Congresso desde 1978, nem a eleição de candidatos
oposicionistas em importantes estados da federação nas eleições de 1982, mas
dificultaram a aprovação de projetos e emendas ao estabelecer o mínimo de 2/3
dos votos, o que não poderia ser alcançado sem apoio da base aliada do Governo.
Apesar das dificuldades impostas pelo Estado ainda sob governo militar e do
silêncio da mídia em relação à campanha, houve uma crescente participação
popular em comícios ou comitês pró-Diretas e uma sensibilização da opinião
pública através das artes e dos esportes, sob a condução dos novos partidos de
oposição e suas principais lideranças, difundindo uma atitude de aceitação à
reivindicação política, como aparece nas páginas de Tempo & Presença:

Ainda que tardiamente, deslanchou com toda força a campanha nacional por
eleições diretas para presidente da República, cuja participação popular
tornou pequenas as praças e ruas das principais cidades do País. Nem mesmo
a "côrte" em Brasília pôde manter-se surda ao clamor popular: Diretas, Já!
Até candidatos que sempre estiveram à sombra do chamado "sistema"
declaram-se, hoje, favoráveis às eleições diretas, tudo levando a crer que
deverá intensificar-se a campanha pelas diretas até a votação da emenda
Dante de Oliveira pelo Congresso Nacional. 709

As organizações de base, os movimentos sociais e as esquerdas tentavam


vincular a pauta política com as reivindicações sociais e as demandas econômicas
das classes trabalhadoras. O objetivo era incluir no exercício de uma cidadania
ampliada – caso as Diretas fossem aprovadas – critérios emancipadores de
participação política e de sufrágio popular, visando a construção de outro modelo
de Estado e sociedade. O artigo Diretas e desemprego manifestava esta
preocupação:

A responsabilidade de todas as forças populares engajadas na campanha por


eleições diretas para presidente desta nossa República não é pequena. Trata-
se, sem dúvida, de uma "batalha" que, se ganha, representará um auxílio
substancial à consolidação e avanço do espaço democrático nacional. No
entanto, a gravidade da crise e os efeitos dramáticos da insensibilidade social
representada pelas políticas econômica e social do governo federal
determinam que seja necessário mostrar publicamente que as diretas, livres e
imediatas, têm que representar para os movimentos populares uma alternativa

709
TEMPO E PRESENÇA. Diretas e desemprego. Nº 190, CEDI, 1984, p. 4.
300

real de superação do "caos" deixado pelos governos que se sucederam depois


de 1964. Em outras palavras: Diretas já, com emprego e renda para todos! 710

Tratando especificamente dos avanços que o estabelecimento de eleições


diretas representaria para os movimentos sindicais, em campanha salarial naquele
ano, Aloísio Mercadante (1954-) escreveu no artigo ―Metalúrgicos: oi nóis aqui
otra veiz‖:

Abril, data-base da categoria, será o período provável de definição da questão


das eleições diretas para Presidente da República. Os metalúrgicos, como
toda a sociedade civil brasileira, também estão envolvidos e empenhados na
Campanha pelas diretas. Não que haja ilusões que as eleições em si resolvam
os problemas básicos da classe trabalhadora. Mas as Diretas Já abrem um
espaço de discussão e atuação política, onde os trabalhadores poderão
expressar o repúdio ao acordo com o FMI, à orientação da política econômica
recessiva e exigir de qualquer candidato propostas para a questão do arrocho
salarial e o desemprego.711

O autor concluiu o artigo ponderando que as mudanças não deveriam ser


medidas no plano institucional da política, mas na mobilização dos trabalhadores
e nas conquistas efetivas alcançadas por estes, pois:

Na campanha pelas diretas e nas eleições presidenciais se estará tentando


alargar as margens do rio. Mas a história e as experiências de luta da classe
trabalhadora demonstraram que a possibilidade de construção de uma
sociedade, onde os interesses básicos dos trabalhadores sejam respeitados e
assegurados, não depende apenas do resultado das urnas ou do tamanho da
margem, mas fundamentalmente da força do rio.712

Apesar de todo o otimismo difundido pela intensificação da campanha


Diretas Já, a emenda Dante de Oliveira foi derrotada. As circunstâncias da
votação, com o Congresso Nacional sitiado pelo Exército, as galerias lotadas, o
resultado frustrante, canalizaram os esforços do PMDB e outras frações da
oposição para a eleição indireta no Colégio Eleitoral em 1985. O Partido dos
Trabalhadores posicionou-se contra o processo sucessório indireto e absteve-se da
votação, alegando a ilegitimidade popular do pleito e a direção burguesa do
processo. Os parlamentares petistas que desobedeceram a decisão do partido
foram desligados da legenda. O PT visava com isso afirmar um programa de

710
TEMPO E PRESENÇA. Diretas e desemprego. Nº 190, CEDI, 1984, p. 6. O artigo foi escrito
por Jorge Eduardo L. Mattoso, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
711
TEMPO E PRESENÇA. ―Metalúrgicos: oi nóis aqui otra veiz‖. Nº 190, CEDI, 1984, p. 19.
712
TEMPO E PRESENÇA. ―Metalúrgicos: oi nóis aqui otra veiz‖. Nº 190, CEDI, 1984, p. 19.
301

autonomia política das classes trabalhadoras, que deveriam hegemonizar a


transição.
Os evangélicos não participaram de forma homogênea do processo de
redemocratização, inserindo-se em diferentes partidos e movimentos políticos.
Alguns eram do Protestantismo Ecumênico, outros do movimento de Missão
Integral, além de ex-militantes das esquerdas secular e católica que, ao se
converterem ao protestantismo, incorporaram a militância política à identidade
religiosa. Em toda essa pluralidade, o que houve em comum foi a ambiguidade
entre a fé e a militância, vivida na igreja ou no partido, quando não em ambos.

Na igreja e no partido: as ambiguidades da dupla filiação

Nascido em 1944, Mozart Noronha foi criado numa família presbiteriana em


Pernambuco. Estudou no Colégio Presbiteriano XV de Novembro, em Garanhuns,
e depois de concluir os estudos, ingressou no Seminário Presbiteriano do Norte
(SPN), em Recife, em 1966. Começou a participar da política ainda no
movimento estudantil. Em entrevista ao autor, declarou que desde a militância na
juventude separou a atuação na política do pertencimento à igreja: ―Eu não estava
militando enquanto religioso‖. Esta separação teria contribuído para que ele não
sofresse perseguições internas de cúpulas eclesiásticas conservadoras como
aconteceu a outros protestantes do mesmo campo político,mas que também
tentavam reformar as igrejas:

Eu nunca tive problemas com a tradição, eu nunca me meti a fazer política na


igreja, eu sempre entendi que a igreja é, por tradição, conservadora e que o
movimento social e político é da sociedade como um todo, portanto, eu não
deveria ficar convertendo ninguém dentro da igreja. Eu sempre fui um
protestante tradicional, dominicalmente na Escola Dominical, assistindo os
sermões, e não brigando com ninguém dentro da igreja. Portanto, eu fui um
pastor que tinha toda essa militância e nunca fui dedurado por ninguém
dentro da igreja, porque eu sempre tive muito boa relação, inclusive com os
conservadores e tudo. Sabiam da minha posição política, mas como eu não
incomodava dentro da igreja...Porque a minha militância foi na sociedade, no
movimento estudantil, com grande parte de jovens da juventude comunista.713

Depois do golpe militar de 1964 aproximou-se do movimento Ação, Justiça


e Paz liderado por Dom Hélder Câmara (1909-1999) em Recife, juntamente com

713
NORONHA, Mozart. Entrevista concedida ao autor. Rio de Janeiro, 11/07/2011.
302

outros presbiterianos e seminaristas do SPN e da Ação Popular (AP) ―como


simpatizante e apoio”. Migrou para São Paulo em 1968, onde concluiu os estudos
teológicos na Faculdade de Teologia Metodista Livre. Atuou como professor da
rede pública em São Paulo e ampliou a participação na AP, ao lado de católicos e
protestantes, cujo secretário geral na época era o presbiteriano Paulo Wright. Com
o aprofundamento da repressão aos grupos de esquerda, abandonou o pastorado e
o emprego na escola pública, vivendo na clandestinidade até deixar o país em
1973. Com o apoio do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), conseguiu uma bolsa
de estudos para estudar em Genebra, na Suíça. Retornou ao Brasil em 1978,
atuando como pastor na Igreja Cristã de Ipanema, de tradição presbiteriana, como
professor na Faculdade de Serviço Social do Rio de Janeiro e como agente da
Pastoral da Favela. Fez parte da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) no
Rio de Janeiro em 1980. A opção pelo PT, legitimada retrospectivamente, foi
explicada pelo pastor nos seguintes termos:

O PT na época era a alternativa da esquerda, era o partido mais coerente da


esquerda, nascido das lutas populares, do sindicalismo, das entranhas da
igreja, Lula era um grande símbolo deste movimento, apoiado pelos
intelectuais de esquerda, e apoiado pela esquerda da igreja e pelo movimento
sindical. 714

Para Mozart Noronha, os anos 1980 foram anos de atuação no partido e de


transição para a Igreja Evangélica de Confissão Luterana. Como militante de
esquerda, fez oposição à ditadura, mas como sacerdote luterano, foi encarregado
pela família do general Ernesto Geisel (1907-1996) de dirigir os ritos fúnebres do
ditador na década seguinte, em 1996. Em entrevista ao autor, Mozart Noronha
disse não ter sofrido muitas críticas pelo episódio, que a maioria delas partiu dos
seus alunos da Faculdade de Direito e não dos setores ecumênicos, e que
respondeu apenas: ―não ressuscitei o Geisel, eu o enterrei‖. Frase semelhante,
segundo ele, apareceu na imprensa:

Quando eu fui fazer o sepultamento, a imprensa deu tanta importância à


minha presença quanto ao sepultamento do Geisel. E me perguntou por que
aquilo, e eu disse ao Jornal do Brasil na época que publicou, jornal O Globo,
A Última Hora do sul, os jornais de Brasília, de Belo Horizonte, todos deram
uma grande ênfase, manchetes como ―a esquerda sepulta Geisel‖ etc, e me
perguntaram e eu disse: olha gente, o pastor é de todos, que eu faço uma

714
Idem.
303

separação entre fé e ideologia, a questão ideológica é minha, eu continuo


sendo um socialista, aceitando o marxismo como uma interpretação imanente
da história e a fé uma interpretação transcendente da história‖. 715

O Jornal do Brasil (JB) deu destaque ao fato do pastor ter sido candidato a
deputado estadual pelo PT em 1982 e ser amigo do então candidato à prefeitura do
Rio de Janeiro pelo partido, Chico Alencar (1959-). A matéria dizia: ―Ao chegar
ao velório,porém, o pastor chamou a atenção, por causa do adesivo com a
inscrição Vote no PT no vidro do carro que o conduziu ao palácio‖.716 Segundo a
matéria ―O Pastor é de todos‖, do JB, Mozart Noronha não era mais filiado ao
partido e acompanhava a família luterana do general desde a filiação da mesma à
Paróquia Bom Samaritano em Ipanema, da qual era pastor, em 1995. Ao contrário
do que sugere o depoimento de Mozart Noronha ao autor em relação à ausência de
críticas, a matéria sugere uma resposta a possíveis críticos: ―Detesto toda forma
de sectarismo e dogmatismo, da direita ou da esquerda. Detesto mais ainda o
dogmatismo da esquerda, porque ela tem sido vítima dele e já deveria ter
aprendido a não ser dogmática‖.717 E explicou a relação entre a política e o
ministério pastoral:

Numa comunidade religiosa, o pastor é pastor dos membros de todos os


partidos e ideologias, sejam eles civis ou militares. Ninguém é apolítico, nem
mesmo um pastor, mas se defender uma linha partidária na comunidade, ele
quebra a confiança e a comunicação com os membros. 718

A separação entre a atuação política e a vida eclesiástica não era a única


forma de conciliar as duas interpretações da história, marxista (imanente) e cristã
(transcendente). Esta conciliação também não era uma especificidade do pastor
luterano nem mesmo dos teólogos da libertação. Esta foi uma síntese construída
e/ou procurada em outras militâncias motivadas pela fé religiosa e pela utopia
política, tanto no catolicismo quanto no protestantismo. O pedagogo Paulo Freire,
cuja trajetória tem ligações com a esquerda católica, o Conselho Mundial de

715
NORONHA, Mozart. Entrevista concedida ao autor. Rio de Janeiro, 11/07/2011.
716
JORNAL DO BRASIL. FH evita enterro temendo protestos. 14/09/1996 p. 10.
717
JORNAL DO BRASIL. O pastor é de todos. 14/09/1996 p. 10.
718
Ibidem.
304

Igrejas (CMI) e o Partido dos Trabalhadores,719 deu um depoimento semelhante


na sua última entrevista:

Eu me situo, primeiro, entre os que creem na transcendentalidade. Segundo,


eu me situo entre aqueles que, crendo na transcendentalidade, não
dicotomizam a transcendentalidade da mundanidade. Quer dizer, em primeiro
lugar, até do ponto de vista do próprio senso comum, eu não posso chegar lá
a não ser a partir de cá. E se cá, se aqui, é exatamente o ponto em que eu me
acho para falar de lá, então, é daqui que eu parto e não de lá [...]. Quanto
mais eu li Marx, tanto mais eu encontrei uma certa fundamentação objetiva
para continuar camarada de Cristo. Então, as leituras que eu fiz de Marx e de
alongamentos de Marx não me sugeriram jamais que eu deixasse de
encontrar Cristo na esquina das próprias favelas. Eu fiquei com Marx na
mundanidade e à procura de Cristo na transcendentalidade. 720

O inverso também foi um caminho possível. Trajetórias inicialmente ligadas


ao marxismo que encontraram na fé cristã uma forma de estender a militância
política. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Jorge Pinheiro (1945-). A
primeira influência política e profissional veio de casa: ―sempre tivemos políticos
na família e nas duas últimas gerações muitos jornalistas. Eu
inclusive.‖721Começou a militância política no movimento secundarista como
presidente do Centro Acadêmico da Escola Estadual José Pedro Varela, no Rio de
Janeiro. Em 1966, iniciou os estudos em Ciências Sociais, aprofundando os
estudos sobre o marxismo e a participação no movimento estudantil:

Em 1966, entrei para a Universidade Católica no Rio de Janeiro. Até aquele


momento era um jovem sem comprometimento religioso e sem
espiritualidade definida. Quando entrei para a universidade, considerei-me
ateu e passei a ter uma atividade política que norteou minha vida nos vinte
anos seguintes. A partir daí me tornei um ativista político. Comecei a ler os
clássicos do marxismo. Quando entrei na universidade, fui convidado a fazer
parte da diretoria do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC.
Participei de todas as mobilizações e passeatas estudantis da época. Assisti à
morte de Edson Luís, o primeiro rapaz assassinado em uma manifestação no
governo militar. Essa morte gerou mobilizações incríveis, que acabaram

719
Paulo Freire fez parte do Movimento de Educação de Base (MEB) nos anos 1960, quando
começou a trabalhar sua concepção de pedagogia crítica, cujo método de alfabetização a partir da
palavra geradora e da leitura de mundo, associou-se, definitivamente, ao seu nome. Expulso do
país após o golpe de 1964, atuou em projetos de educação popular em vários países da América
Latina e da África com apoio do CMI. De volta ao Brasil, tornou-se Secretário de Educação da
primeira gestão do PT na prefeitura de São Paulo, no mandato da prefeita Luiza Erundina. Ver:
SOUZA, Ana Inês (org.). Paulo Freire: Vida e obra. São Paulo-SP, Expressão Popular, 2001.
720
ENTREVISTA. Paulo Freire. TV PUC de São Paulo, 17/04/1997.
721
PINHEIRO, Jorge. Entrevista concedida ao autor via e-mail, 21/09/2013. Sobre os pais, Jorge
Pinheiro comentou que a família materna era constituída de abolicionistas e republicanos
históricos, e o pai, Amynthas, ―era socialista e foi convidado várias vezes para ser candidato pelo
Partido Socialista Brasileiro.‖
305

levando a uma passeata de cem mil pessoas no Rio de Janeiro. Nunca havia
acontecido nada parecido no país.722

O jovem estudante logo seguiria o roteiro de outros militantes de esquerda


da época: ingresso na luta armada, clandestinidade, exílio. Ingressou no
Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), dirigido do exterior pelo ex-
governador do Rio Grande do Sul, deposto pelo golpe de 1964, Leonel Brizola.723
Sobre as atividades com a luta armada comentou: ―recebi instrução e
adestramento militar clandestino, com companheiros formados em Cuba.
Especializei-me na construçãode bombas e minas antitanques‖.724 Conseguiu
emprego na revista Manchete, onde, segundo relatou, começou a ter ―uma vida
dupla‖, de jornalista e ativista político clandestino. Após a edição do AI-5 no final
de 1968 e a perseguição ao movimento estudantil que se seguiu, entrou em acordo
para deixar o emprego na revista Manchete. Abandonou o curso de Ciências
Sociais para evitar a repressão na universidade e seguiu a recomendação do MNR
de sair do país.
A experiência do exílio começou em 1970, no Chile, após breve passagem
pela Argentina. O país era o destino de muitos exilados, em função do governo do
socialista Salvador Allende. Jorge Pinheiro ingressou na Universidade do Chile e
no Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), no qual conheceu outros
exilados políticos, dentre eles, Mario Pedrosa (1901-1981), intelectual trotskista
com quem fundou o Grupo Ponto de Partida ―que tinha a finalidade de construir
no Brasil um Partido Socialista‖. Atuou no Chile até a derrubada do governo
Allende pelo golpe militar de 1973.725 Voltou clandestinamente ao Brasil em
1974, retomando a profissão de jornalista pelo Diário do Comércio e Indústria, de
São Paulo. Em 1978, fez parte da criação do grupo Convergência Socialista (CS),
ocupando o posto de diretor de redação do jornal Versus, através do qual o grupo
difundia sua leitura trotskista do marxismo e da luta de classes no movimento
estudantil e sindical do ABC paulista.

722
Idem.
723
Uma descrição das atividades e das concepções políticas do MNR encontra-se em:
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática,
1990.
724
PINHEIRO, Jorge. Entrevista concedida ao autor via e-mail, 21/09/2013.
725
O entrevistado relatou muitas passagens marcantes do período no Chile, presentes também em
seu livro de memórias do exílio: PINHEIRO, Jorge. Um pedaço de mim: novela de memórias. São
Paulo: Ed. E-leva Cultural, 2008.
306

A atuação da Convergência Socialista fez parte da construção do Partido dos


Trabalhadores (PT), para o qual Jorge Pinheiro apresentou uma versão particular.
De acordo com o seu depoimento, quando ele propôs a criação de um Movimento
de Convergência Socialista em 1978 aos seus companheiros de militância
trotskista, o objetivo era reunir ―o socialismo histórico‖ visando a criação de um
―Partido Socialista de tipo europeu‖.726 Que tipo era esse? Nas palavras de Jorge
Pinheiro:

A classe operária e os sindicatos não lutavam pelo socialismo, mas


mobilizavam-se por melhores condições de vida. Eu não estava contra esses
anseios, mas comecei a ver que o mundo, ao menos por ora, não caminhava
para o socialismo. Isso me levou a constatar que a proposta de construção de
um partido marxista-leninista no Brasil era uma utopia, sem base na
realidade.727
Após romper com a Convergência Socialista em 1979 e contribuir com a
formação do PT nos três anos seguintes, o jornalista passaria pelo processo de
transição que o levou à fé cristã. A experiência seria compartilhadacom sua
esposa, Naira, na época,estudante de Administração de Empresas da Fundação
Getúlio Vargas (FGV), também envolvida em reuniões do recém-criado Partido
dos Trabalhadores. Para a descoberta da fé cristã como uma experiência de
engajamento pela justiça,Jorge Pinheiro destacou a leitura do livro Discurso da
Servidão Voluntária, escrito no século XVI por Etienne de La Boétie(1530-1563),
e que influenciou o movimento huguenote na França.728 Outras leituras de
experiências heterodoxas do protestantismo contribuíram para a conversão:

E, assim, o protestantismo, lido a partir da reforma radical dos anabatistas, da


militância política dos huguenotes e do Socialismo Religioso de Paul Tillich,
no qual me especializei em termos acadêmicos, me levou a continuar minha
história de esquerda.729

726
Sobre o papel da Convergência Socialista na formação do PT, pode-se consultar SILVA,
Antonio Ozaí da. História das tendências no Brasil: origens, cisões e propostas. 2ª edição. São
Paulo: Proposta Editorial, 1987, p. 184-190 e o documentário A Convergência Socialista e a
Ditadura Militar (2013).
PINHEIRO, Jorge. Entrevista concedida ao autor via e-mail, 21/09/2013.
728
BOÉTIE, Étienne de La. Discurso da servidão voluntária. Trad. Casemiro Linarth. São Paulo:
Martin Claret, 2009. O livro considerou a servidão voluntária dos súditos como o princípio do
poder do governante e discutiu as possibilidades de resistência não violenta à dominação a partir
da recusa em obedecer à autoridade.
729
PINHEIRO, Jorge. Entrevista concedida ao autor via e-mail, 21/09/2013.
307

No livro Teologia e Política, Jorge Pinheiro fez uma interpretação


―tillichiana‖ da formação do Partido dos Trabalhadores.730 Ao passo que conferiu
protagonismo à Convergência Socialista, como a tendência responsável por dar ao
partido a visão estratégica socialista e o princípio de autonomia de classe,
ressaltou a contribuição do Socialismo Cristão na criação do novo partido:

A essa leitura do catolicismo social, juntou-se o Evangelho social dos


protestantes europeus e norte-americanos, a partir da leitura bíblica de
responsabilidade social e do socialismo utópico. A ação combinada, mas
desigual, em ações e tempos, dessas duas visões levou ao cristianismo social,
que se expressou como Teologia da Libertação na América Latina e, no
Brasil, também através de movimentos organizados pela base, que vieram a
influenciar o pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores.731

Jorge Pinheirointerpretou o Socialismo Cristão como uma influência


decisiva ao socialismo petista. Não foi tão longe quanto Luis Mir, que considerou
o PT e a CUT a ―maior realização da trajetória do Estado religioso católico em
toda a sua história no Brasil‖.732 Embora seja possível concordar, parcialmente,
com a afirmação de que ―O PT, sem as organizações sociais católicas vinculadas
ou apoiadas pela CNBB, sem o discurso salvacionista, não teria chegado a se
tornar uma alternativa real de poder‖,733 e, levando em consideração os
desdobramentos posteriores à criação do partido, não considero plausível endossar
a conclusão a que chega o autor, que pode ser assim resumida:

Partido dos Trabalhadores/movimentos sociais/Central Única dos


Trabalhadores, uma trindade clerical-sindical em formato de partido político
e central sindical, fundados em tempos diferentes, mas que confluíram para
um só projeto político-religioso no final dos anos 1980. Com dois desígnios
declarados: retomar a centralidade católica no país e tornar o catolicismo
(popular e de massas) um fator político estratégico e operante dentro do
Estado brasileiro.734

Ao mesmo tempo, a existência dessa interpretação fornece alguns elementos


para analisar as disputas religiosas internas ao PT entre católicos e protestantes. A
incorporação da militância de esquerda à identidade evangélica foi um desafio
730
PINHEIRO, Jorge. Teologia e política: Paul Tillich, Enrique Dussel e a experiência brasileira.
São Paulo: Fonte Editorial, 2006.
731
PINHEIRO, Jorge. Teologia e política: Paul Tillich, Enrique Dussel e a experiência brasileira.
São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 183-184.
732
MIR, Luis. Partido de Deus: fé, poder e política. São Paulo, Alaúde Editorial, 2007, p. 11.
733
MIR, Luis. 2007, p. 347.
734
MIR, Luis. Partido de Deus: fé, poder e política. São Paulo, Alaúde Editorial, 2007, p. 346-
347.
308

vivido também por Benedita da Silva (1942-). A primeira filiação religiosa foi na
Umbanda, fazendo parte do Terreiro do Seu Sete na favela Chapéu Mangueira.
Após a morte da mãe, continuou no terreiro até os 18 anos, quando começou a
atuar nas obras sociais da Igreja Católica e em Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs), assimilando influências da Teologia da Libertação. A conversão
aconteceu em 1968, após uma crise em que chegou a pensar em suicídio, segundo
narrou em sua autobiografia:

Me sentia infeliz e precisava de um pouco de paz. É por isso que, quando


tinha 26 anos, entrei para a Igreja Protestante, como membro da Assembleia
de Deus. Minha opção religiosa me ofereceu tranquilidade para refletir e
tomar decisões. O que necessitava realmente era encontrar fundamento nas
coisas que estavam fora do meu controle – o que significa ter fé. Qualquer
religião pode gerar este tipo de sentimento. No meu caso, aconteceu na Igreja
Evangélica. Outras pessoas encontram o mesmo tipo de apoio no Candomblé,
na Umbanda, no Catolicismo ou em qualquer outra religião. 735

Se alguns cristãos racionalizaram a relação da fé com a militância em


termos de imanência e transcendência, Benedita da Silva o fez como uma relação
entre as dimensões da subjetividade e coletividade, o que não deixou de criar
problemas para ela em relação à Assembleia de Deus: ―A igreja preencheu o meu
vazio espiritual, mas não meu lado político. A política social daquela igreja é
muito fechada. Por isso, nunca deixei de trabalhar com outros segmentos
religiosos‖.736 Seu trabalho comunitário junto às CEBs e, posteriormente, à
Pastoral da Favela formou o capital político que a levou a candidatar-se vereadora
pelo PT na primeira eleição disputada pelo partido em 1982. Foi a única
candidatura eleita pela legenda para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, o que
teria limitado a atuação política:

Como fui a única eleita, pensei que o PT fosse usar meu mandato para
desenvolver seu trabalho no Rio. Mas o partido não entendia que a bancada
era dele! Acho que era uma dificuldade de lidar com o próprio poder, de
perceber que os candidatos eleitos continuavam a ser militantes‖.737

Estava isolada no partido e prestes a romper com a igreja, o que aconteceu


no ano em que assumiu o mandato, 15 anos depois da conversão, mas,

735
Autobiografia de Benedita da Silva, depoimentos editados por MENDONÇA, Maisa;
BENJAMIN, Medea. Benedita. Rio de Janeiro: Mauad, 1997, p. 96.
736
Ibidem.
737
MENDONÇA, Maisa; BENJAMIN. Benedita. Rio de Janeiro: Mauad, Medea. 1997, p. 66.
309

aparentemente, não por uma razão política e sim ligada à restrição imposta ao
casamento com um homem que não pertencia à igreja Assembleia de Deus. A
decisão de sair da Assembleia de Deus não significou uma ruptura com o
protestantismo, mas uma transição para outra fração do segmento religioso, mais
próxima ao diálogo com as esquerdas: ―Era importante pra mim casar na igreja e
por isso entrei em contato com o pastor Mozart Noronha, da Igreja Presbiteriana
Independente. Ele e o Lysâneas Maciel me deram apoio e orientação espiritual, e
foi naquela igreja que me casei‖.738Benedita da Silva também se aproximou do
movimento de Missão Integral no final dos anos 1980, mais precisamente, na
primeira eleição direta para presidente em 1989, no qual o PT apresentou a
candidatura de Luís Inácio Lula da Silva. Em 1991, participou do I Fórum
Nacional de Discussão e Entendimento entre Evangélicos e Partidos Progressistas
(imagem abaixo), que pavimentou caminhos de diálogo entre setores protestantes
e o partido.739
Imagem 6 – Fórum Evangélicos com Partidos Políticos

738
MENDONÇA, Maisa; BENJAMIN. Benedita. Rio de Janeiro: Mauad, Medea. 1997, p. 98.
739
Sobre o Fórum, Benedita da Silva também comentou: ―participaram mais de trezentas pessoas,
incluindo pastores, líderes religiosos e políticos. Foram dois dias de reflexões críticas de ambas as
partes, que contribuíram de forma madura para um estreitamento entre os dois segmentos. Uma
discussão importante se referiu à forma com que os setores conservadores da Igreja Protestante
vêm se inserindo na América Latina‖. MENDONÇA, Maisa; BENJAMIN. Benedita. Rio de
Janeiro: Mauad, Medea. 1997, p. 100.
310

A candidatura de Benedita da Silva à prefeitura do Rio de Janeiro em 1992


estreitaria ainda mais os laços entre evangélicos e petistas no cenário carioca, mas
não diminuiria a tensão entre religião e política: ―na igreja, eu era malvista porque
eu era do PT. No PT eu era malvista porque era da Igreja Evangélica. Para a
igreja, eu era uma radical comunista e para o PT eu era uma radical direitista‖.740
Por isso mesmo, ela afirma ter fundido as duas identidades, ―digo que sou
PTcostal‖.741O que explica a relação de Benedita com as tendências internas do
partido, conforme depoimento ao livro de memórias de militantes petistas:

Aí eu fui entendendo o que era tendência, fui entendendo uma série de coisas.
[...] Eu não fui para outro movimento que senão o do Lula. Eu digo: ―Ele é
igual a mim. Eu vou por aqui, porque aqui vai sair alguma coisa‖. Mas era
difícil, para você entender, para você passar uma proposta. Aí nós
começamos a disputar, e a coisa foi ficando acirrada. ―Ah, não, quem vai sair
delegado é fulano, é sicrano, porque vai chegar lá na frente, vai fazer
intervenção‖. Eu disse: ―Não, eu também tenho que falar. O melhor
intelectual é o que fala e todo mundo entende, e não aquele que fala e as
pessoas não entendem. Então eu vou falar. Senão o meu pessoal não vai
entender‖. Então, começar a fazer esse tipo de ocupação desses espaços. Só
faltou voarem cadeiras na Assembleia Legislativa no dia em que eu, Lúcia
Arruda, Lélia Gonzalez, Liszt Vieira defendemos: Assembleia Nacional
742
Constituinte. Lá atrás o pessoal gritava: ―MR-8, MR-8‖.

Benedita era, portanto, uma ex-participante do catolicismo popular,


convertida ao pentecostalismo, identificando-se com o ―grupo de Lula‖ enquanto
era acusada de advogar as teses do MR-8. Algumas trajetórias protestantes
próximas ou ligadas à esquerda lidaram com ambiguidades de acordo com o lugar
ocupado no campo religioso ou no campo político. Poderia ser considerado
conservador no partido por ser religioso e ser considerado herege na igreja por ser
de esquerda, como narrou Lysâneas Maciel: ―A igreja me acusava de terrorista,
subversivo, e os grupos de esquerda me chamavam de burguês religioso. Nunca
neguei minhas convicções evangélicas, sempre as tive comigo‖.743Walter Pinheiro
(1959-) relatou experiência análoga no início do PT na Bahia:

740
BENEDITA DA SILVA. Entrevista. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FORTES, Alexandre.
(Org.) Muitos caminhos, uma estrela: memórias de militantes do PT. São Paulo: Editora Perseu
Abramo, 2008, p. 299-300.
741
MENDONÇA, Maisa; BENJAMIN. Benedita. Rio de Janeiro: Mauad, Medea. 1997, p. 99.
742
BENEDITA DA SILVA. Entrevista. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FORTES, Alexandre.
(Org.). Muitos caminhos, uma estrela: memórias de militantes do PT. São Paulo: Editora Perseu
Abramo, 2008, p. 299-300.
743
MACIEL, Lysâneas. Lysâneas Maciel (depoimento, 1998). Rio de Janeiro, CPDOC/ALERJ,
2003.
311

Foi a fase de fundação do PT, final dos anos 1970 e início dos anos 1980,
onde dentro do PT eu comecei a viver um período inusitado. O PT me
discriminava por eu ter uma opção de fé e a minha igreja me discriminava
por eu ter uma opção política. 744

Criado numa família batista, Walter Pinheiro participou desde a infância e a


adolescência das organizações internas da igreja e das atividades esportivas e
culturais da juventude. Mesmo antes da filiação partidária, encontrou resistência
na comunidade religiosa à sua participação no movimento estudantil. Fez parte do
grêmio na Escola Técnica, o que não o afastava das atividades evangelísticas,
pois, de acordo com seu depoimento, ele fazia parte ao mesmo tempo do núcleo
de evangelização da juventude batista. Isso não diminuiu os conflitos: ―os debates
na classe de jovens já eram mais acalorados‖, disse, referindo-se à divisão etária e
por classes em uma das principais atividades de formação religiosa da igreja, a
Escola Bíblica Dominical (EBD). Entrou para o movimento sindical depois de
tornar-se funcionário da TELEBAHIA. Ingressou no Sindicato dos Telefônicos
(SINTTEL) e fez parte da fundação da CUT na Bahia, exercendo o cargo de
secretário-geral da entidade no Estado e integrando a direção nacional da central
sindical.745 Para Walter Pinheiro, foi a fase mais difícil do enfrentamento na
igreja:

Eu tinha uma relação com o movimento sindical e dentro da igreja havia um


questionamento enorme, até porque tinham pessoas na igreja que
trabalhavam na TELEBAHIA também, então, você tinha uma forma de
chegar, na estrutura do mundo do trabalho. É muito comum as pessoas
cobrarem porque é que eu, um sujeito que frequentava uma igreja, era o
mesmo sujeito que liderava as greves.746

Disputou a primeira eleição em 1986, candidatando-se a deputado estadual,


mas não foi eleito. Em 1992, elegeu-se pela primeira vez para a Câmara
Municipal de Salvador, tornando-se o líder da bancada do Partido dos

744
PINHEIRO, Walter. Entrevista concedida ao Centro de Pesquisas da Religião (CPR/UEFS),
escrita por Rafael Cardoso. 18/09/2011. Atualmente, Walter Pinheiro exerce o mandato de
Senador da República pelo Partido dos Trabalhadores.
745
―Coordenou o Movimento Nacional em Defesa do Serviço Público e das Estatais e foi o
responsável pela primeira experiência de federação sindical independente, com a construção da
Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações (FITTEL), assumindo sua
coordenação-geral‖.
Informações extraídas no site: <http://www.ptnosenado.org.br/bancada/nordeste/biografias/walter-
pinheiro> Acesso em: 21 out. 2015.
746
PINHEIRO, Walter. Entrevista concedida ao Centro de Pesquisas da Religião (CPR/UEFS),
escrita por Rafael Cardoso. 18/09/2011.
312

Trabalhadores. Para enfrentar a tensão entre religião e política na igreja e no


partido articulou-se com lideranças do movimento de Missão Integral. Uma das
iniciativas desta articulação foi a criação do Movimento Evangélico Progressista
(MEP) no final dos anos 1980.

Essa contradição ia cada vez mais crescendo ao ponto de todo mundo chegar
na igreja ou às vezes chegava pra minha mãe e dizer: ―Olha! Seu filho está
num partido que é do diabo!‖ E dentro do PT, o pessoal dizia: ―Ah, você tá
vindo pra cá, aqui ninguém crê em Jesus, nem em negócio de Deus‖. Então
eu passei um período muito difícil, que é o período de você vencer essas
barreiras, tanto no partido e na política, quanto na igreja. E foi exatamente
essa experiência que me fez buscar parceiros e outros elementos em outros
lugares para a gente construir alguns movimentos.747

Entre as referências de ―parceiros e outros elementos em outros lugares‖,


citadas pelo entrevistado, estavam os nomes de Robinson Cavalcanti e Paul
Freston, evangélicos formados em Ciência Política e ligados ao movimento de
Missão Integral, atuantes junto à FTL e a ABU. Os propósitos principais desses
movimentos, do qual o MEP foi a expressão mais organizada, era romper com a
noção, por um lado, de que uma pessoa que pertencia a uma igreja evangélica era
necessariamente conservadora e, por outro, de que um evangélico não poderia
participar de partidos e movimentos de esquerda ou proponentes de
transformações radicais em nome do igualitarismo social. Como Robinson
Cavalcanti escreveu em 1990: ―No momento estamos organizando o Movimento
Evangélico Progressista (MEP), de apoio e estímulo à militância evangélica nos
sindicatos, entidades comunitárias e partidos de opção socialista democrática‖.748
O MEP, tema do próximo capítulo, foi uma resposta ao que era entendido pelo
movimento de Missão Integral como uma ausência de formação e participação
política dos evangélicos. Foi também uma reação aos escândalos associados à
Bancada Evangélica na Assembleia Nacional Constituinte de 1986-1987.749
Houve outra experiência protestante que não poderia ser identificada nem
com a ausência de formação, nem com uma participação política limitada ao

747
Ibidem.
748
Texto apresentado na consulta Teologia e Vida, alusiva aos 20 anos da FTL, realizada em
Quito, Equador, em dezembro de 1990. Publicado no Boletim Teológico, 5 (4), mar, 1991 p.33.
749
O Movimento Evangélico Progressista (MEP) se institucionalizou em 1990 como um grupo de
reflexão, formação e arregimentação política de evangélicos posicionados à esquerda do campo
político. Realizava eventos com evangélicos que militavam em movimentos, sindicatos e partidos,
ou com formação acadêmica em Ciências Humanas dedicados ao debate sobre política. A inserção
do MEP nas eleições é objeto de análise do próximo capítulo.
313

poder parlamentar. E mesmo no parlamento, essa outra inserção protestante


significou um contraponto ao modelo evangélico de fazer política que se tornou
hegemônico a partir dos anos 1980.

Na contramão da Bancada Evangélica: a dissidência protestante vai ao


Parlamento

A participação política dos protestantes não é uma novidade dos anos 1980.
Eles fazem política desde a inserção das primeiras denominações no país, quando
contaram com a colaboração ou a simpatia de forças liberais e anticlericais no
Império, ao mesmo tempo em que a maioria do protestantismo conciliava ou não
se pronunciava contra a escravidão. Na história republicana, em períodos de
transição e crise política, mobilizadores dos interesses das forças sociais, houve
vozes e movimentos no seio do protestantismo conclamando os fiéis a romperem
com a ética individualista de esperar que a conversão dos indivíduos
transformasse a sociedade. Propostas que tentavam superar o dualismo
predominante no discurso evangélico de separação entre a igreja e o mundo, e
tentavam incentivar os crentes a participar da política ou a ver nela um campo
possível da vocação cristã. Num balanço da presença dos protestantes na política
partidária antes da abertura política, Paul Freston destacou o predomínio de uma
atuação liberal, progressista ou à esquerda do campo político:

De 1933 a 1986, a classe política protestante a nível federal esteve, em


média, um pouco à esquerda da classe política nacional. Guaracy Silveira
elegeu-se pelo PSB e pelo PTB. Nos anos 50, predominou o trabalhismo. Na
ditadura, houve ligeira tendência proporcional para a oposição.750

Até a eleição para a Assembleia Constituinte, em 1986, o incentivo à


participação evangélica na política ou a crítica ao discurso que a considerava
como mundana ou demoníaca, em oposição ao que era sagrado e cristão, foi feito
principalmente pelo Protestantismo Ecumênico, o que nunca impediu

750
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 107.
314

candidaturas evangélicas autônomas a esta tendência.751 A novidade da abertura


política foi que o pentecostalismo e os setores fundamentalistas do protestantismo
histórico começaram a disputar este discurso de incentivo à participação
evangélica na política para outro projeto de inserção cristã na esfera pública. O
movimento de Missão Integral disputou este cenário a partir das repercussões
negativas da atuação da Bancada Evangélica na Constituinte.
Divergências à parte de identidade cristã e visão da política, ecumênicos,
fundamentalistas e evangelicais convergiram nos anos 1980 para a promoção da
participação política do segmento religioso. O equilíbrio de forças, entretanto,
pendeu cada vez mais favoravelmente ao pentecostalismo, com bases religiosas
mais amplas, com estratégias políticas de ocupação do Estado mais organizadas e
com maior inserção nos meios de comunicação. Isso mudou o que até então fora o
perfil dos parlamentares evangélicos:

Inverte-se a tendência do período anterior de estar ligeiramente à esquerda da


média do Congresso. A nova classe política evangélica pratica um
nomadismo partidário ainda maior do que a média nacional. Muitos mudam
para partidos pequenos, geralmente considerados fisiológicos.752

Durante a Constituinte de 1987, um grupo de parlamentares evangélicos, em


sua maioria pentecostais, decidiu recriar a Confederação Evangélica do Brasil
(CEB), extinta na década anterior e formada anteriormente por igrejas do
protestantismo histórico. O objetivo era criar uma entidade de representação
pública diante do Governo, mostrando a força do segmento religioso que naquele
momento elegera a terceira maior bancada do Congresso.
Somados, os evangélicos elegeram 34 parlamentares, distribuídos por
famílias denominacionais em: Assembleia de Deus (13), Batistas (8),
Presbiterianos (5), Quadrangular (2), Congregacional (1), Adventista (1), Igreja
Universal do Reino de Deus (1), Cristã Evangélica (1), Luterano (1), Igreja de
Cristo (1).753Estavam, porém, divididos em dois grupos: o maior deles com 26

751
No campo pentecostal, um bom exemplo pode ser visto no trabalho: SILVA, Igor José Trabuco
da. Meu Reino não é deste mundo: a Assembleia de Deus e a política em Feira de Santana (1972-
1990). Dissertação (Mestrado em História Social) – UFBA, Salvador, 2009.
752
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 47.
753
Nos anexos, apresento uma tabela com nomes, igrejas, partidos, estado, subcomissão na
Câmara e nota atribuída pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP). A
tabela, bem como as informações discutidas no texto sobre a Bancada Evangélica, foi consultada
315

parlamentares, convergiu com o bloco político conservador do Congresso, o


Centrão; o segundo, com apenas 8 parlamentares, não participava da nova CEB,
seguia as orientações partidárias e um perfil de atuação mais próximo das
esquerdas ou das reinvindicações de entidades populares, de classe ou minorias.
A expressão ―Bancada Evangélica‖ era imprecisa, mas não é possível
afirmar que a sua existência tenha sido um ―mito‖ em função da heterogeneidade
política e religiosa dos Constituintes evangélicos. Ela foi inicialmente utilizada
primeiro pelo grupo majoritário, defensor do princípio ―irmão vota em irmão‖,
como um modo de afirmar o crescimento evangélico e o poder do segmento
religioso de decidir os rumos do país. Após as barganhas políticas e econômicas
por cargos, verbas, concessões públicas de rádio e TV, em troca do apoio ao
Governo, a expressão passou a ser utilizada pela imprensa, as esquerdas e os
setores protestantes progressistas como sinônimo de lobby corporativo,
especialmente associado à corrupção política e à hipocrisia religiosa.
Os escândalos e a repercussão negativa contribuíam para que os protestantes
dissidentes da bancada e os setores evangélicos concorrentes da nova CEB
assumissem a condição de críticos legítimos e assim fossem reconhecidos pelos
inconformados com a ―Santa Fisiologia‖, conforme evidenciou o Jornal do Brasil:

O desembaraçado fisiologismo praticado em nome de Deus pelo grupo de


deputados organizados em torno da Confederação Evangélica do Brasil vem
provocando uma crescente reação nos meios protestantes, sobretudo entre as
igrejas históricas. A maioria das mais importantes dessas igrejas contesta não
apenas os métodos, mas a própria legalidade da Confederação. O Conselho
Nacional das Igrejas Cristãs (CONIC), que reúne as igrejas protestantes
históricas e a Igreja Católica, iniciou consulta entre seus integrantes e deverá
emitir uma declaração de condenação à nova versão da CEB. 754

O crescimento pentecostal, tornando-se a vertente numericamente mais


expressiva do cristianismo evangélico, secundarizou o conjunto de denominações
do protestantismo histórico, também conhecidas como ―tradicionais". A reativada
CEB e os evangélicos do Centrão eram dirigidos por protestantes históricos,
respectivamente, o diácono batista Enoc Vieira (PFL-MA) e o pastor

nos livros que descreviam os perfis Constituintes, principalmente: RODRIGUES, Leôncio


Martins. Quem é quem na Constituinte: uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São
Paulo, OES-Maltese, 1987 e DIAP; e Quem foi quem na Constituinte: nas questões de interesse
dos trabalhadores. São Paulo: Oboré, 1988. A análise fundamental sobre os Constituintes
evangélicos continua sendo: FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao
Impeachment. Tese (Doutorado em Sociologia) – Unicamp, Campinas, 1993.
754
JORNAL DO BRASIL. Santa Fisiologia. 07/08/1988.
316

congregacional Daso Coimbra (PMDB-RJ), mas eram protagonizados pelas


lideranças pentecostais, principalmente da Assembleia de Deus, a maior
denominação evangélica do Brasil em número de fiéis e com mais parlamentares
eleitos. Se entre os anos 1950 e 1960 a polaridade ―ecumenismo progressista
versus fundamentalismo conservador‖ se dava basicamente nas denominações
históricas, depois da abertura política e da transição democrática ela foi
perpassada pela polaridade ―históricos versus pentecostais‖, com evidente
predomínio pentecostal. A matéria anteriormente citada, continuou descrevendo a
disputa do campo religioso em torno da Bancada Evangélica:

As igrejas protestantes tradicionais vêm se preocupando sobretudo com a


atuação da CEB, que age em nome de todas as igrejas evangélicas do país,
embora seja reconhecida quase somente pelas igrejas pentecostais, o ramo do
protestantismo que enfatiza a iluminação dos crentes pelo Espírito Santo. A
recriação da Confederação apanhou as igrejas protestantes históricas de
surpresa. À revelia delas, um grupo de deputados pentecostais, reativou a
entidade em junho passado e desde então eles vêm se empenhando mais no
trabalho de conseguir verbas do governo do que na consolidação da entidade
junto ao universo crente.755

Na análise da atuação parlamentar religiosa na Assembleia Nacional


Constituinte, Antonio Flavio Pierucci abordou os principais temas que
aproximaram uma ―bancada evangélica‖ dos projetos políticos defendidos pelo
Centrão: condenação ao aborto e à união civil homossexual, defesa do nome de
Deus na Constituição, defesa da propriedade privada, contra a reforma agrária em
terras produtivas ou de pequenos produtores. Um elemento que aproximava os
evangélicos que formaram uma bancada política confessional na Constituinte dos
interesses da direita e demais forças conservadoras, era o anticomunismo
alimentado nas igrejas e na sociedade durante a Ditadura Militar e na Guerra Fria,
bem como a defesa do voto corporativo em benefício das instituições religiosas.756
Pierucci chamou a atenção para a existência de uma ―esquerda evangélica‖,
caracterizando-se o posicionamento alternativo desses evangélicos pelas suas
755
JORNAL DO BRASIL. Santa Fisiologia. 07/08/1988.
756
Sobre o anticomunismo evangélico pode-se consultar o trabalho ALMEIDA, Luciene Silva de.
O comunismo é o ópio do povo: representações dos batistas sobre o comunismo, o ecumenismo e o
governo militar na Bahia. Dissertação (Mestrado em História) –UEFS, Feira de Santana, 2011.
Sobre o voto corporativo pode-se consultar o livro SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão: os
evangélicos, a constituinte e a Bíblia. Brasília: Pergaminho, 1986; e o estudo acadêmico
SANTOS, Adriana Martins dos. A construção do Reino: a Igreja Universal e as instituições
políticas soteropolitanas (1980-2002). Dissertação (Mestrado em História Social) – UFBA,
Salvador, 2009.
317

inserções em partidos de oposição e de esquerda e pelo diálogo com os


movimentos sociais, que os levaram a defender propostas mais
―progressistas‖.757Mas a expressão ―esquerda evangélica‖ não era corrente durante
a Constituinte. A imprensa utilizou expressões como ―ovelhas desgarradas‖,
―rebeldes‖ e ―dissidentes‖ para qualificar esses parlamentares. A única
unanimidade entre a Bancada Evangélica e os dissidentes era o voto contrário à
pena de morte. Nos demais temas havia divisão:

Os principais líderes da comunidade evangélica dentro da Constituinte são os


deputados Daso Coimbra (PMDB-RJ) e Fausto Rocha (PFL-SP). Daso, que
funciona como uma espécie de coordenador do grupo, defendia no início dos
trabalhos constituintes que os parlamentares evangélicos se limitassem a uma
atuação comportamental ética, dirigindo sua atenção apenas para as questões
da área social, da família e dos costumes, e pregava contra posicionamentos
políticos radicais em questões como reforma agrária, anistia e monopólio de
minérios.
- Isso é pregar a alienação, sustentada por uma visão teológica ultrapassada,
que cuida da salvação individual via catalogação de pecados, protesta o
rebelde Lysâneas Maciel.758

Na ―catalogação de pecados‖ que pautava a ―atuação comportamental ética‖


da Bancada Evangélica, estavam o ―homossexualismo‖ (como se referiam à
homossexualidade) e o ―aborto‖. Para evitar que ambos fossem admitidos na
Constituição, os evangélicos conservadores disputavam a participação nas
Comissões pertinentes aos temas ―da área social, da família e dos costumes‖:

Com maioria somando forças à direita, os parlamentares evangélicos armam


estratégia de atuação para derrotar integralmente os ―relatórios progressistas
e irreais‖ do senador José Paulo Bisol (PMDB-RS) e do deputado Arthur da
Távola (PMDB-RJ), das comissões da Soberania e da Família; Educação;
Cultura; Esporte; e de Ciência, Tecnologia e Comunicação. Exatamente essas
comissões foram escolhidas como foco prioritário da atenção dos evangélicos
que, distribuídos pelas subcomissões, têm 12 representantes em cada uma
delas‖.759

Essas comissões eram disputadas também pelos protestantes que ―trabalham


em sentido contrário à pregação dos princípios rígidos da facção majoritária do
grupo‖. Não obstante, esses que andavam na ―contramão‖ convergiam na
exclusão do aborto como tema da Constituinte, pois defendiam que ―a questão do

757
PIERUCCI, Antonio Flavio. A realidade social das religiões no Brasil: religião, sociedade e
política. São Paulo: Hucitec, 1996.
758
JORNAL DO BRASIL. Santa Fisiologia. 07/08/1988.
759
JORNAL DO BRASIL. Aborto e pena de morte unem grupo de 34 evangélicos. 05/06/1987.
318

aborto é tema de legislação ordinária e não deverá ser incluída entre os princípios
constitucionais‖.760 Em geral, eram favoráveis à descriminalização, mas
pretendiam transferir o debate para outra esfera jurídica que não fosse a
Constituição, cabendo apenas não incompatibilizar o direito da mulher à
interrupção da gravidez com os princípios consagrados na nova Carta Magna do
país. A dificuldade com o tema do aborto não era apenas uma ―Questão de honra
evangélica‖ já que:

a luta pela proibição do aborto tem aliados fortes entre os parlamentares


católicos de centro e direita, alcançando até mesmo representantes ilustres da
bancada feminina como Rita Camata (PMDB-ES), Sandra Cavalcanti (PFL-
RJ), que somam forças à adventista Eunice Michelis (PFL-AM) contra o
suave avanço já incluído no relatório do senador Bisol, que reza: a vida intra-
uterina, inseparável do corpo que a concebeu, é responsabilidade da mulher,
comporta expectativa de direitos e será protegida por lei‖.761

Apesar de ressaltar que a direita e a esquerda podem combinar com


diferentes pautas no campo dos direitos individuais, Norberto Bobbio observou
que ―Geralmente, a refutação do aborto faz parte de programas políticos da
direita. A esquerda é preponderamente abortista‖, pois ―a tendência abortista teve
enormeincremento ao se difundir a partir das reivindicações feministas, que foram
favorecidas pelos partidos de esquerda‖.762Paul Freston, analisando os
Constituintes evangélicos, concluiu que: ―Há uma forte correlação entre a
dissidência progressista e a oposição ao controle legislativo do aborto‖.763Isso
criava dificuldades aos evangélicos que participavam das esquerdas, fosse diante
dos partidos quando eram contra, ou diante das igrejas, quando eram a favor.764
A oposição da maioria da Bancada Evangélica ao aborto e à
homossexualidade fazia parte de uma identidade política do protestantismo
conservador que emergiu entre o final dos anos 1970 e a inserção dos pentecostais

760
Ibidem.
761
Ibidem.
762
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção
política.Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. UNESP, 1995, p. 43.
763
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 77.
764
O jornal da Assembleia de Deus Mensageiro da Paz questionou Benedita da Silva, que se
declarava pessoalmente contrária à prática do aborto, mas a favor da sua descriminalização: ―O
curioso é que tal propositura procede de alguém que supostamente estaria na Constituinte para
lutar contra toda sorte de discriminações, menos, evidentemente, a discriminação contra os bebês
cujos pais não teriam a menor condição financeira e emocional‖. Mensageiro da Paz, janeiro de
1988, p. 7.
319

na Constituinte. Não mais a negação da política como algo mundano, mas a


definição de um terreno de atuação na política. Segundo Benjamim Cowan, esta
identidade forjou uma nova direita que reivindicava a defesa da moral e dos bons
costumes em contraposição à dissolução moral ou à crise de valores da família,
associadas invariavelmente ao ideário de esquerda e aos movimentos de minorias.
De acordo com o autor:

Realmente, o fato de que os evangélicos do Brasil forjaram uma Nova


Direitatem muito a ver com o momento, em torno de uma década, em que os
evangélicos entraram na política e com o fato de que as vertentes
conservadoras, apreendendo a moralidade e os discursos de crise moral como
“nosso terreno”, avançaram rapidamente em direção ao chão legislativo. À
medida em que, no final dos anos 1970 e 1980, o abandono do apoliticismo
desdobrou-se, evangélicos moralmente conservadores dominaram a estreia
dos políticos que se autoidentificavam como crentes. 765

O terreno da moralidade se tornou o campo privilegiado do


conservadorismo evangélico, mas não era indiferente ao progressismo protestante.
Na discussão de temas familiares, a Bancada Evangélica preconizava ―o respeito
do Estado à família, também naturalmente constituída, com a manutenção da
possibilidade do divórcio‖.766Para os setores ―progressistas‖ do protestantismo, a
homossexualidade estava na esfera da escolha individual e nesse campo da opção
ela era relativamente aceita em comparação com os evangélicos mais
conservadores.767Isso aparece nas propostas de mandato do candidato ao Governo
do Rio de Janeiro pelo PT em 1982, Lysâneas Maciel: ―por entender o
homossexualismo como uma opção, é contra a sua discriminação‖.768
Se nos temas da família e do comportamento, as divergências – existentes –
não eram tão acentuadas ou eram tangenciadas como problemas secundários em

765
COWAN, Benjamim. Homossexualidade, ideologia e ―subversão‖ no Regime Militar. In.
GREEN, James N.; QUINALHA, Renan. Ditadura e homossexualidade: repressão, resistência e a
busca da verdade. São Carlos: EDUFSCAR, 2014, p. 109.
766
JORNAL DO BRASIL. Aborto e pena de morte unem grupo de 34 evangélicos. 05/06/1987.
767
―Na fase das comissões, houve grande discussão em torno da proposta de incluir ‗identidade
sexual‘ na lista de características pelas quais ninguém seria prejudicado. Benedita da Silva
patrocinou emenda do movimento homossexual Triângulo Rosa, a favor de ‗orientação sexual‘.
Segundo ela, o objetivo era garantir a livre manifestação da sexualidade sem prejuízo para a
cidadania. Salatiel Carvalho replicou que seria o primeiro passo para a legalização de casamentos
homossexuais. José Fernandes propôs ―desvio sexual‖. A questão foi omitida do projeto final.
Numa última tentativa de incluí-la na fase de votações em plenário, foi derrotada: apenas 28% dos
constituintes presentes a apoiaram, sendo que somente 7% dos protestantes o fizeram‖. In:
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 78-79.
768
JORNAL DO BRASIL. Lysâneas Maciel. 17/04/1982.
320

comparação com outras pautas, quando o assunto era a relação dos evangélicos
com o Governo e das igrejas com o Estado durante a Constituinte, o conflito entre
a Bancada Evangélica e a dissidência protestante era explícito e capaz de interferir
na definição dos votos, na possibilidade da estratégia adotada pelos religiosos ser
mais ou menos orientada pelos partidos ou outras considerações políticas e
institucionais. Um exemplo foi a votação da duração do mandato presidencial de
José Sarney (1930-).
Ex-líder da ARENA, partido do Governo durante a Ditadura, Sarney
transferiu-se do PDS para o PMDB às vésperas da eleição indireta no Colégio
Eleitoral, marcada para janeiro de 1985. Compôs a chapa de oposição ao Governo
como vice-presidente ao lado de Tancredo Neves, candidato à Presidência. Com a
vitória nas eleições e a morte de Tancredo antes da posse, assumiu a Presidência
da República prometendo consolidar a transição democrática, instituindo a
Assembleia Nacional Constituinte e garantindo eleições diretas para a escolha do
sucessor. Com mandato previsto de quatro anos, estabeleceu negociações pela
ampliação para mais um ano, usando como principal moeda de troca a liberação
de verbas e concessões públicas de emissoras de rádio e TV. Um dos segmentos
mais beneficiados foi, justamente, os políticos articulados na CEB e integrantes da
Bancada Evangélica:

Nunca evangélicos rezaram tanto por um presidente católico como agora;


nunca o Presidente José Sarney – assíduo frequentador de missas – leu tanto
a bíblia como nos últimos meses. E pela primeira vez caiu dinheiro do céu,
como a benção do Presidente: CZ$ 108,5 milhões, doados a fundo perdido
para a Confederação Evangélica do Brasil – entidade desativada há 20 anos,
que ressurge como ―órgão de ação comunitária, sem fins lucrativos‖, sob o
comando de 20 constituintes. Tudo pelo bem-estar das almas e por uma graça
difícil: o mandato de cinco anos.769

A liberação de oito milhões e meio de Cruzados Novos (moeda corrente)


para a compra do terreno destinado à sede da Confederação e mais cem milhões
em convênio para a assistência a pessoas carentes levantaram as primeiras
suspeitas. Diante de muitas evidências orçamentárias e políticas, os argumentos
da Bancada Evangélica para justificar o recebimento de verbas e o apoio a Sarney
eram descritos de maneira jocosa pela imprensa:

769
JORNAL DO BRASIL. Evangélicos adeptos dos cinco anos têm CZ$ 108 milhões de Sarney.
30/11/1987.
321

Em nome de Deus os deputados juram que o dinheiro é para o povo, sem


nenhum compromisso com o Governo. Garantem por Cristo que o fato de
todos eles defenderem o presidencialismo e cinco anos de mandato para
Sarney é uma mera coincidência. Há até quem diga que as frequentes
peregrinações do grupo ao Palácio da Alvorada e aos órgãos públicos não
passam de uma missão espiritual. – Vamos ao palácio para orar com o
Presidente, ler a Bíblia e levar nossa palavra de fé e conforto. O Presidente
nos disse que precisava de apoio, mas não pediu nada. Dissemos a ele que, se
pudéssemos ajudar ficaríamos satisfeitos – diz o Deputado Enoc Vieira (PFL-
AM), diácono batista, diretor da Confederação e amigo pessoal de Sarney. 770

Tão logo os acordos foram expostos ao público, os dissidentes da bancada


se pronunciaram. O Deputado batista Nelson Aguiar(PDT) classificou o
clientelismo evangélico como resultado do corporativismo de parlamentares sem
projetos político-partidários, pois, segundo ele: ―já que não podem negociar em
nome dos partidos, estão usando uma entidade religiosa como instrumento
político, em troca de cargos e vantagens‖, o que considerava ―um absurdo‖,
porque: ―não foram eleitos para isso nem estão autorizados a usar a comunidade
evangélica para fazer esse tipo de barganha‖.771 E se a Bancada Evangélica votou
a favor da prorrogação do mandato de Sarney para cinco anos, os dissidentes
votaram todos contra a proposta, defendendo o mandato de quatro anos. Um dos
votos dissidentes, o de Celso Dourado (PMDB), foi uma mudança de última hora,
no dia da votação, justificada pelo parlamentar como uma orientação do
Governador da Bahia, Waldir Pires (1926-), à bancada estadual de oposição.
Porém, a despeito de maior obediência partidária entre as ―ovelhas desgarradas‖
da Bancada Evangélica - filiadas ao PMDB, PDT e PT –, certamente os
escândalos dos irmãos governistas contribuíram para votarem em bloco e exporem
o voto dissidente.
Para compreender do que e de quem dissidiavam, é necessário conhecer os
dissidentes. Infelizmente os limites do trabalho exigiram a escolha de alguns
nomes, recaindo a opção sobre Lysâneas Maciel (PDT-RJ), Celso Dourado
(PMDB-BA), Bendita da Silva (PT-RJ), Nelson Aguiar (PDT-ES). Pesquisas
futuras sobre as demais trajetórias, analisando a formação religiosa e política, os
discursos e a atuação parlamentar podem trazer novas contribuições ao

770
Ibidem.
771
JORNAL DO BRASIL. Evangélicos adeptos dos cinco anos têm CZ$ 108 milhões de Sarney.
30/11/1987.
322

conhecimento da inserção política dos evangélicos depois da Ditadura Militar.


Dentre os nomes escolhidos, alguns pertenceram anteriormente ao grupo de
parlamentares do partido oficial de oposição à Ditadura Militar que repercutia as
críticas civis mais contundentes ao regime e articulava propostas de aceleração da
abertura política; os ―autênticos do MDB‖, a exemplo dos presbiterianos Lysâneas
Maciel e Celso Dourado.772 Outros estavam descobrindo a política partidária na
década de 1980 ou exerciam mandato federal pela primeira vez, como a petista
Benedita da Silva, membro da Assembleia de Deus e o batista Nelson Aguiar.
Lysâneas era de uma tradicional família udenista e sobrinho do ex-
governador de Minas Gerais, Olegário Maciel. Fez parte do Centro Acadêmico
Cândido de Oliveira (CACO) da Faculdade Nacional de Direito, na qual se
formou advogado em 1950, e filiou-se à UDN. A preferência política não era a
única semelhança com o pai, já que ambos eram protestantes e se tornaram
pastores. Política e religião também aproximaram Lysâneas Maciel de Aurélio
Vianna (1914-2003), que também era protestante e udenista nos anos 1950, mas
na década seguinte foi Senador e candidato ao Governo do antigo Estado da
Guanabara pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em 1965, Lysâneas
coordenou o financiamento da campanha de Aurélio Vianna ao Governo estadual.
Ambos fariam parte da bancada do MDB no Congresso após a instituição do
bipartidarismo.773
Como advogado, Lysâneas Maciel dedicou-se à defesa de trabalhadores e
das lideranças sindicais, desde os anos 1950, e de presos políticos e parlamentares
de oposição cassados depois do golpe de 1964. Em 1966, candidatou-se à Câmara
Federal no lugar de Márcio Moreira Alves (1936-2009), cuja candidatura foi
impugnada. Mesmo após a justiça restituir a candidatura do parlamentar cassado,
Lysâneas continuou exercendo o mandato. Eleito mais uma vez nas eleições de
1970, tornou-se um dos articuladores do grupo ―Autênticos do MDB‖, ao lado de
Francisco Pinto (1930-2008) e Marcos Freire (1931-1987), que se posicionava à
esquerda do próprio partido de oposição consentida pelo regime. Depois de
criticar na tribuna os mecanismos políticos que garantiam a eleição indireta dos

772
Sobre o grupo autêntico: NADER, Ana Beatriz. Autênticos do MDB, semeadores da
democracia: historia oral de vida política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
773
Informações biográficas contidas em: GUIMARÃES, Hebe. Lysâneas Maciel. Série Perfis
Parlamentares. Brasília: Câmara dos Depurados, Edições Câmara, 2008.
323

generais presidentes, foi indicado pelo grupo ―Autênticos‖, a ser vice de Ulysses
Guimarães na antecandidatura à Presidência da República nas eleições de 1974,
mas acabou preterido pelo partido que escolheu Barbosa Lima Sobrinho (1897-
2000).
No início do novo mandato, em 1975, Lysâneas defendeu ―que fosse
constituída, como prioridade, uma comissão parlamentar de inquérito para apurar
as violações dos direitos humanos‖. Durante os esclarecimentos do líder do
governo na Câmara, José Bonifácio, sobre as denúncias de violações: ―criticou a
maneira jocosa com que o líder arenista vinha conduzindo o assunto utilizando-se
para isso de sua velha habilidade mineira‖ acrescentando que ―o líder da maioria
deveria saber que não há habeas corpus para prisioneiros políticos e que o
problema principal para o MDB, inicialmente, era a localização dos
desaparecidos‖.774 Era uma crítica contundente ao líder do governo que um mês
antes comentou sobre Lysâneas: ―Trata-se de um dos deputados mais
intransigentes e radicais do Partido oposicionista, mas é, também, um homem
sincero e parlamentar de primeira categoria, na linha em que ele se propôs a
seguir‖, não sem frisar: ―Acho que ele está errado com relação ao país, e,
sobretudo, com relação ao governo‖.775 Durante aquela legislatura, Lysâneas
presidiu a Comissão de Minas e Energia da Câmara na qual fez intransigente
defesa do monopólio estatal dos recursos minerais do país contra concessões para
empresas estrangeiras776, até ter o mandato cassado em 1976.
A cassação do mandato de Lysâneas Maciel foi antecedida da utilização do
AI-5 para cassar os mandatos de outros dois parlamentares oposicionistas, ambos
do grupo ―Autênticos‖ do Rio Grande do Sul, Amaury Muller e Nair Rosseti.
Contra a medida, Lysâneas Maciel protestou:

Na dramática conjuntura em que vivemos, estes atos deixam claro e evidente


que o sistema após a utilização por mais de 12 anos de um mecanismo
repressor dos mais bárbaros da história do país, confessa às vésperas das
eleições, que a força é a única maneira de se manter no poder.777
774
JORNAL DO BRASIL. CPI. 01/02/1975, p. 4.
775
JORNAL DO BRASIL. Elogios a Lysâneas. 14/01/1975, p. 3.
776
―O presidente da Comissão das Minas e Energia da Câmara, Deputado Lysâneas Maciel (MDB-
RJ) discorda do Senador da Arena [Luís Cavalcanti] e afirma que não existem diferenças entre
esses contratos e os acordos de concessão. Segundo ele, ocorre, no momento uma ‗nova investida‘
contra o monopólio estatal‖. JORNAL DO BRASIL. Senador sugere amplo debate sobre o
petróleo. 25/02/1975.
777
JORNAL DO BRASIL. Deputado acusa ação repressora. 31/03/1976
324

Continuando o discurso, o parlamentar ressaltou ainda que:

As medidas ostensivas e veladas demonstram que não podemos ser


parlamentares e muito menos oposição; o recrudescimento das medidas
arbitrárias não é acidental, nem visa apenas aos nossos bravos companheiros
do Rio Grande do Sul; pretende-se, dentro desse clima de opressão, de
violência e arbítrio, reduzir a situação política do país à expressão de um
partido hegemônico, que admite o Governo militar, e uma oposição
manipulável e comprometida a um ponto insuportável de subserviência e
medo.778

Lysâneas terminou o seu discurso no plenário do Congresso lamentando


que: ―estamos nos acostumando com o desaparecimento de brasileiros, sua
tortura, sua morte presumida, homens que não se conformam com a injustiça e
colocaram seus talentos e suas vidas a serviço dos seus compatriotas‖.779 O
discurso foi o estopim para a cassação de Lysâneas, que já havia sido denunciado
por indicar um militante comunista a ingressar no MDB. A nota de cassação dizia:

O Presidente da República, ouvindo o Conselho de Segurança Nacional,


assinou decreto cassando o mandato eletivo do Deputado federal Lysâneas
Maciel e suspendendo-lhe os direitos políticos por 10 anos. Na sessão da
Câmara dos Deputados, realizada no dia 30 de março, recém-findo, o citado
ex-parlamentar - cuja atuação, dentro e fora do Congresso, sempre se
caracterizou por contestação à Revolução – proferiu violento discurso,
repetindo graves ofensas ao governo, ao regime vigente. 780
Na tribuna da Câmara Federal, Lysâneas protestou mais uma vez, agora
contra a própria cassação: ―Meus parâmetros, cassado ou não, são os interesses do
povo brasileiro‖. Mesmo após desligarem o som dos microfones, continuou:
―Somos deputados e senadores mas não somos parlamentares, pois este congresso
tem consciência de que está contracenando, porque vivemos numa farsa‖. Aos
arenistas que pediam aparte, declarou: ―Não permitirei que assassinos e
torturadores me aparteiem‖. A extensa matéria do Jornal do Brasil (JB) sobre a
cassação do parlamentar emedebista informou que:

O Sr. Lysâneas Maciel recusou-se a atender a sugestão de alguns


correligionários para que se asilasse em embaixada, sob a alegação de que
―eu não tenho compromissos com esquemas insurrecionais. A minha luta é
institucional e clara. Não me asilo‖781.

778
Ibidem.
779
Ibidem.
780
JORNAL DO BRASIL. Ato 5 cassa o mandato de Lysâneas Maciel. 02/04/1976, p. 4.
781
JORNAL DO BRASIL. Geisel aplica o AI-5 e cassa Lysâneas Maciel. 02/04/1976.
325

Depois da cassação, Lysâneas Maciel seguiria para Genebra, para trabalhar


na Comissão de Justiça e Serviço do Conselho Mundial de Igrejas. Em nome do
CMI, dirigiu os trabalhos da Consulta Participação das igrejas em programas e
projetos de desenvolvimento, realizada em Itaici-SP no ano de 1980. Uma
característica das lideranças ecumênicas que militavam em duas frentes, a
religiosa e a política, era o entendimento de que o ecumenismo eficaz só era
possível nas bases, a superação do sectarismo e da fragmentação religiosa pelo
engajamento em agendas sociais comuns. Entendimento que não deixava de ser
uma crítica ao ecumenismo das cúpulas eclesiásticas, preocupadas em conciliar
divergências teológicas, como declarou Lysâneas Maciel no evento em Itaici:

As dificuldades de aproximação entre diferentes denominações religiosas


estavam relacionadas com a tentativa de acertar discursos. Isto se mostrou
ineficaz e, para muitos, intransponível conforme demonstrado em algumas à
agenda anotada enviada a todos os participantes.
As realizações ecumênicas mais importantes do nosso tempo foram
conseguidas através daqueles grupos que encetaram uma luta concreta pelos
oprimidos. Uma vez mais se confirma que uma luta maior e mais
significativa diminui as diferenças superficiais entre credos e concepções.
Por outro lado, cumpre observar que os grupos que tentaram resolver o
problema apenas através de conversas e consultas, conseguiram, no máximo,
realizar ―casamentos ecumênicos‖. E isto era considerado avanço e superação
de dificuldades.782

Tanto o político quanto a referida Consulta foram motivos de vigilância da


―comunidade de informação e segurança‖ da Ditadura, conforme demonstrou
André de Souza Brito ao analisar o olhar dessa comunidade sobre a atuação do
Conselho Mundial de Igrejas no Brasil:

A análise do evento de Itaici feita pelo funcionário da Divisão de Segurança e


Informação do Ministério dos Transportes (DSI/MT) seguiu aquela mesma
linha de afirmar que ―aumenta, cada vez mais, a ação do Conselho Mundial
de Igrejas‖ e afirma que o organismo estaria ―dominado e atuando em favor
das esquerdas, em ação conjunta com o ‗Clero Progressista‘ da Igreja
Católica‖. Acerca daquele religioso e político do CMI que dirigiu o evento, o
analista afirmou que se tratava do ―comunista e Pastor da Igreja
Presbiteriana, Lysâneas Maciel, ex-deputado punido por AI-5‖, o qual
continuava ―atuando na política e no protestantismo a favor do Movimento
Comunista Internacional(MCI).783
782
CADERNOS DO CEDI. MACIEL, Lysâneas. Desenvolvimento com Justiça. Nº 8. Rio de
Janeiro, Centro de Documentação e Informação, 1981. p. 8.
783
BRITO, Souza André. Cristianismo ateu: o movimento ecumênico nas malhas da repressão
militar do Brasil, 1964-1985. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2014, p. 201.
326

Naquele mesmo ano, Lysâneas participou da disputa pela legenda histórica


do trabalhismo, o PTB, compondo a Executiva Nacional do novo partido, o PDT,
ao lado de Leonel Brizola, Darcy Ribeiro (ex-ministro de Jango), Abdias
Nascimento (escritor e militante negro), Carmem Leite de Castro (socióloga e
militante feminista), Sebastião Nery (jornalista), Francisco Delprat (Presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro) e ex-parlamentares federais e
estaduais de oposição.784 No evento de lançamento do PDT, Lysâneas discursou
em prol de um partido que contribuísse com a organização popular e atribuiu o
favorecimento da justiça à Ivete Vargas na disputa pelo PTB ao temor da
associação da sigla com o nome de Brizola. De acordo com o Jornal do Brasil
(JB):

Depois do discurso de mais de uma hora do Sr. Leonel Brizola, a palavra foi
dada ao ex-Deputado Lysâneas Maciel. A plateia ouviu atenta o seu discurso
no qual ele defendia a necessidade de o Partido se organizar, sobretudo, nas
suas bases populares. [...] Apesar de lembrar que, em hipótese nenhuma,
estava fazendo ―o culto à personalidade de Brizola‖, o ex-Deputado Lysâneas
Maciel disse que o ex-Governador era motivo de preocupação do Governo
que, então, tratou de lhe tirar a sigla PTB: ―Ele [...] – disse o Sr. Lysâneas –
pode nos tirar a sigla, mas não pode impedir a organização popular‖. 785

O ex-Deputado, em nome do grupo brizolista que formava a Executiva


Nacional Provisória do PTB, já havia explicado, numa entrevista coletiva no
Palácio Tiradentes, que não haveria negociação com Ivete Vargas pela legenda
porque ―ela não decide nada. O negócio teria que ser com o Golbery, pois ele é
que está por trás do movimento que essa senhora desencadeou‖, e havia defendido
que―o TSE deveria transferir ao eleitorado a decisão em torno da disputa pela
propriedade da sigla do Partido Trabalhista Brasileiro‖. Era favorável à formação
de um novo partido, caso fossem derrotados na disputa pelo PTB, mas rejeitava a
proposta de recriar o antigo Partido Socialista Brasileiro (PSB) porque:

Uma proposta socialista, no entender do ex-parlamentar carioca, deve ser o


final de todo um processo de participação popular e não o começo. Não
chegou a considerar a proposta do PTB a ideal, mas salienta que ela, no
momento, é a que mais se aproxima dos interesses populares. 786

784
JORNAL DO BRASIL. 11/06/1980, p. 4.
785
JORNAL DO BRASIL. Organização Popular. 19/05/1980.
786
JORNAL DO BRASIL. Lysâneas quer disputa decidida pelas urnas. 08/04/1980.
327

E qual era a proposta do grupo brizolista do PTB, que originou o Partido


Democrático Trabalhista, de cujo manifesto Lysâneas Maciel era um dos
signatários? O manifesto do PDT assumia a retomada ―das lutas nacionais e
populares pelas reformas de base em razão da qual foi deposto o Governo
constitucional de João Goulart‖.787 Para José Roberto Cabrera, autor de Os
caminhos da rosa: um estudo sobre a social-democracia no Brasil, o novo partido
assumia-se popular, nacionalista e democrático. Reivindicava, mais do que os
demais partidos nascentes, a memória de João Goulart e do trabalhismo pré-1964.
Permeando a concepção de democracia do partido, o manifesto consagrava ―dois
princípios fundamentais, o da igualdade e o da participação‖, advogando que ―A
democracia só é real quando materializa ao nível das relações econômicas, sociais,
políticas e culturais, os interesses e as aspirações fundamentais das grandes
maiorias.‖788
Antes de ser eleito para a Assembleia Nacional Constituinte pelo PDT,
Lysâneas Maciel disputou as eleições de 1982 ao Governo do Rio de Janeiro pelo
PT, concorrendo, entre outros, com o candidato do PDT Leonel Brizola. Entre o
ano de criação dos dois partidos (1980) e o primeiro pleito eleitoral que
disputaram (1982) ocorreram as negociações para que Lysâneas Maciel se
transferisse do partido de Brizola para o de Lula. Na Convenção Estadual do PT
no Rio de Janeiro em 1981, na qual foi um dos mais aplaudidos, o ex-Deputado já
era considerado o ―nome preferido por largas parcelas do Partido, para uma
candidatura ao Governo do Estado, embora esteja no PDT‖.789 Durante todo o ano
houve notícias de que havia ―um movimento aparentemente majoritário no PT, em
favor da candidatura do ex-Deputado Lysâneas Maciel do PDT ao Governo do
Estado‖.790 No final do ano já era quase uma certeza que Lysâneas poderia ir para
o PT.791Em depoimento ao livro Autênticos do MDB: história oral de vida

787
Apud. CABRERA, José Roberto. Os caminhos da rosa: um estudo sobre a social-democracia no
Brasil. Dissertação (de Mestrado) – Unicamp, Campinas,1995, p. 67.
788
CABRERA, José Roberto. Os caminhos da rosa: um estudo sobre a social-democracia no
Brasil. Dissertação (de Mestrado) – Unicamp, Campinas, 1995, p. 69.
789
JORNAL DO BRASIL. Hinos, sambas. 07/09/1981.
790
JORNAL DO BRASIL. 07/09/1981.
791
―A informação foi dada pelo presidente regional do Partido dos Trabalhadores. Deputado José
Eudes, que lembrou o bom relacionamento do ex-Deputado Lysâneas Maciel que dirige no
momento o PDT fluminense, com Luís Inácio da Silva, o Lula. Lysâneas, cassado em 1976, não se
sente realmente confortável no PDT. Seus contatos com o PT, iniciados quando das reuniões de
São Bernardo do Campo, em São Paulo, não foram interrompidos nos últimos dois anos. No PDT,
o ex-líder do MDB, cassado no cargo, tentou implantar os conceitos do Partido aberto, mas não
328

política, de Ana Beatriz Nader, Lysâneas Maciel explicou as razões para aceitar o
convite do Partido dos Trabalhadores:

O PT era uma proposta nova, limpa, cheia de esperança. O PDT tinha aqueles
três defeitos que eu citei [o caudilhismo, o peleguismo e a manipulação
populista] – porque os defeitos do Brizola são os defeitos do PDT; ele é quem
manda, ele é quem dá o tom e não admite que se faça restrição. Eu dizia:
―Mas assim não é possível, vamos apoiar beltrano, sicrano‖. Ele não queria,
então eu vi que o ambiente não estava bom. Quando surgiu uma proposta
nova, repito, limpa, cheia de esperança, me interessei [...] eu entrei para o PT
com a condição de não ser candidato a governador [do Rio de Janeiro] e de
eles não atacarem o Brizola e os companheiros que eu considerava. 792

Esta avaliação positiva do PT foi publicada em 1998, quando se formou


uma chapa com Lula e Brizola para as eleições presidenciais daquele ano, e
devem ser situadas neste contexto. O dirigente estadual do Partido, José Eudes,
declarou em 1981 que Lysâneas entrava para o PT ―como soldado, mas tem
patente de general‖. A filiação foi realizada na sala de Grandes Comissões do
Palácio Tiradentes no Rio de Janeiro, com a presença do presidente nacional do
PT, Lula, que foi ao Rio apenas para a cerimônia pública do novo
correligionário.793 Ao discursar, Lula saldou o novo filiado:
Aqui você não será tratado como um homem que entrou hoje no partido, nem
você será visto por nós como um cara que entrou depois que a coisa estava
criada. Nós temos certeza de que a sua participação política no Congresso
Nacional, nos movimentos populares, ao longo de sua vida, contribuiu para
que a gente pudesse fazer esse partido, mesmo você não estando filiado a ele.
E quem você pode se considerar fundador deste partido, você pode se
considerar companheiro.794

Pesou na escolha do novo partido a mediação de Clodovis Boff (1944-) e


Apolônio de Carvalho (1912-2005) nas reuniões entre Lysâneas e dirigentes
cariocas do PT.795 Uma vez confirmado no novo partido, restava a confirmação
como candidato ao Governo do Rio. Ela aconteceu durante a Convenção do PT

conseguiu levar muito longe as suas ideias, porque os conceitos e as regras da agremiação que
adotou, numa primeira etapa, são traçados de maneira unitária pelo ex-Governador Leonel
Brizola‖. JORNAL DO BRASIL. Lysâneas pode ir para o PT. 10/10/1981.
792
MACIEL, Lysâneas. Apud NADER, Ana Beatriz. Autênticos do MDB, semeadores da
democracia: história oral de vida política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 50.
793
Lula assiste hoje à filiação de Lysâneas. Jornal do Brasil, 13/10/1981.
794
Transcrito do documento elaborado pela Assessoria de Imprensa da Coordenação Eleitoral do
PT para o lançamento da candidatura de Lysâneas ao Governo do Rio de Janeiro (Arquivo da
família Maciel). apud GUIMARÃES, Hebe. Lysâneas Maciel. Série Perfis Parlamentares. Brasília:
Câmara dos Depurados, Edições Câmara, 2008. p. 81
795
A relação de Lysâneas com o CEDI sugere também uma intermediação do Protestantismo
Ecumênico nessa transferência, uma vez que a entidade se aproximou do PT e do PDT no Rio de
Janeiro.
329

em fevereiro de 1982, numa eleição interna entre Lysâneas Maciel, que obteve
322 votos, e José Emídio, que obteve 63. O mecânico Waldemar da Silva foi
escolhido para compor a chapa como Vice-Governador e o ex-líder estudantil
Wladimir Palmeira foi escolhido como candidato ao Senado. Os debates durante a
Convenção giraram em torno do perfil das candidaturas, com o setor ―obreirista‖
apoiando o operário José Emídio e criticando a escolha de Lysâneas Maciel. Um
dos líderes ―obreiristas‖ foi enfático: ―Eu denuncio o aspecto autocrático e
autoritário dessa indicação. Não houve discussão nasbases, mas sim uma indução
na comissão executiva para essa indicação‖, discursou Luis Paulo Gianini,
questionando em seguida:

Que chapa é essa do Partido dos Trabalhadores em que 75% representa a


classe média e somente 25% representa o operário? – Perguntou.
Acrescentou que houve ―um privilégio da cultura‖ e que, a seu ver, cabia
―aos companheiros Tenório [Luís Roberto Tenório, médico e candidato a
suplente de senador na chapa vitoriosa]4, Lysâneas e Wladimir, assessorar a
classe operária no que ela precisar‖.796

Definido o resultado, a convenção fez esforços pela unidade partidária, em


defesa da candidatura escolhida. Lysâneas Maciel discursou valorizando o debate
interno, quando:
Afirmou ainda que optou pelo PT há poucos meses por considerá-lo o
instrumento mais adequado para a consolidação democrática e abertura de
espaço para a participação popular. ―E não me enganei: o próprio processo de
escolha, com alguns desdobramentos desnecessários, mostrou que o PT está
inovando a maneira de fazer política neste país‖.797

Durante as eleições, o candidato do PT tentou desvincular sua condição


social de profissional liberal de classe média ao plano de Governo a ser
apresentado no debate político. O programa deveria ser representativo dos anseios
dos setores populares que o partido pretendia mobilizar, por isso propunha como
primeiro ato administrativo a criação da Secretaria Estadual de Trabalho, a
nomeação de um operário para conduzir a pasta e a formação de Conselhos
Populares para assessorar os governos estadual e municipais, definindo as
prioridades das políticas públicas.

796
JORNAL DO BRASIL. Lysâneas derrota obreirista e é candidato do PT no Rio. 08/02/1982.
797
JORNAL DO BRASIL. Lysâneas derrota obreirista e é candidato do PT no Rio. 08/02/1982.
330

O programa apresentado foi definido em três eixos: ―A melhoria das


condições de vida dos trabalhadores, o fortalecimento das lutas populares e a
garantia de novos espaços de liberdade‖, que seriam concretizados obedecendo-se
a dois princípios ―o redirecionamento do orçamento estadual priorizando áreas
carentes e a decisão sobre questões prioritárias só depois de consultar as bases‖.798
Pretendia reformular o aparato de segurança do Estado e realizar uma ampliação
do número de defensores públicos, com o propósito de melhorar ―as condições de
defesa do povo oprimido, o estabelecimento de formas de controle popular sobre
ofuncionamento dos órgãos de Justiça e segurança e a criação de um Conselho
dos Direitos Humanos independente do Estado‖.799
Conforme descreveu HebeGuimarães: ―De nada adiantaram as condições
por ele estabelecidas para sua filiação ao PT‖. Um critério das eleições de 1982
incompatibilizaria as expectativas do novo filiado com a legenda: o voto
vinculado, que prescrevia que os partidos deveriam apresentar candidatos para
todos os cargos eletivos. Assim:

Lysâneas ―vai para o sacrifício‖. Ele quer mesmo é voltar ao Congresso, sua
alma mater. Tem consciência de que está a trocar uma eleição garantida para
deputado federal, pelo PT, por uma derrota certa para governador do Estado
do Rio de Janeiro, mas, como na altura o voto era vinculado, o partido
necessitava de um candidato a governador para não prejudicar a eleição de
deputados federais e estaduais. Lysâneas é o nome mais conhecido do PT no
Rio e, certamente por este motivo, sua candidatura ao executivo estadual é
exigida pela direção partidária regional. 800

Na reta final da campanha, a candidatura de Brizola vai se definindo como a


maior alternativa de vitória da oposição, e tanto Lysâneas quanto o CEDI passam
a apoiar nos bastidores a candidatura majoritária do PDT, vitoriosa ao término do
pleito. Terminadas as eleições, Lysâneas demonstrou decepção com as condições
da campanha e a falta de apoio do Partido: ―O PT não me deu quase nenhum voto
novo, tive praticamente os mesmos votos que me elegeram para a Câmara dos
Deputados em 1974‖.801 Além do mais, desconfortável com o não cumprimento

798
JORNAL DO BRASIL. Lysâneas Maciel. 17/04/1982, p. 4.
799
JORNAL DO BRASIL. Lysâneas pretende criar cargo para operário em seu Governo.
14/02/1982.
800
GUIMARÃES, Hebe. Lysâneas Maciel. Série Perfis Parlamentares. Brasília: Câmara dos
Depurados, Edições Câmara, 2008, p. 81
801
JORNAL DO BRASIL. Notas. 14/03/1982.
331

dos acordos iniciais com o Partido, que o instrumentalizou por causa do voto
vinculado, abandonou a legenda e retornou ao PDT dois anos depois.
Não obstante, pesquisas de opinião demonstravam um dado fundamental da
campanha petista: ―Lysâneas Maciel, do PT, é o único candidato que exibe um
alto potencial de voto ideológico: de seus 2,2% de eleitores, 54, 5% preferem-no
por ser filiado ao Partido de Lula‖.802 Outro dado ressaltado foi a influência da
filiação religiosa do candidato: ―Lysâneas, um pastor presbiteriano, detém, ainda,
uma faixa de 4,5% de adeptos da sua religião‖.803 O aspecto religioso, aliás, seria
destacado pela imprensa uma vez mais por causa de sua atuação parlamentar
diferente da maioria dos evangélicos eleitos para a Assembleia Nacional
Constituinte (1986-1987). Seu nome foi associado a outros considerados
dissidentes da Bancada Evangélica. De acordo com o Jornal do Brasil (JB):

As divergências fizeram surgir uma dissidência comandada pelo deputado


Lysâneas Maciel, que tentou sem sucesso arrastar a bancada em sentido
contrário, com maior envolvimento em defesa das questões de interesse
popular. Juntamente com Lysâneas, abandonaram as reuniões do grupo os
deputados Celso Dourado (PMDB-BA, da Igreja Presbiteriana), Benedita da
Silva (PT-RJ, da Assembleia de Deus), Edésio Frias (PDT-RJ, Batista), José
Fernandes (PDT-AM, Assembleia de Deus), Jose Viana (PMDB-RO,
também da Assembleia de Deus), Lézio Sathier (PMDB-ES, da Igreja
Presbiteriana) e Nelson Aguiar (PMDB-ES, Batista).804

Com o mesmo passado emedebista e a mesma filiação religiosa de


Lysâneas, mas filiado a outro partido, estava o pastor presbiteriano Celso
Dourado, integrante da bancada baiana do PMDB. Celso Dourado formou-se em
Teologia no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas (1953-1957), quando
foi aluno de Richard Shaull, contemporâneo de Rubem Alves e João Dias de
Araújo. Ordenado pastor na cidade de Campo Formoso-BA, foi eleito vereador
pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962. Naquele mesmo ano,
participou da Conferência do Nordeste e foi um dos proponentes do documento
intitulado ―Pronunciamento Social‖ aprovado pelo Supremo Concílio da Igreja
Presbiteriana do Brasil. O discurso progressista era, então, muito influente nas
igrejas protestantes, provocando o debate sobre a responsabilidade social cristã

802
Ibidem.
803
Ibidem.
804
JORNAL DO BRASIL. O déficit ora no Planalto. 07/08/1988.
332

diante dos problemas sociais, o que explica a aprovação do Pronunciamento


Social pela IPB, conforme sugeriu Elizete da Silva:

Certamente que uma conjuntura interna favorável e a hegemonia do grupo


progressista no conclave presbiterial, permitiu a aprovação desse documento.
Convém destacar que foi uma proposição do Presbitério de Campo Formoso,
Bahia, onde pastoreava o Reverendo Celso Dourado, vereador pelo PTB,
nesse período.805

O documento não gozou de longevidade no seio da IPB, pois a correlação


de forças entre os setores progressistas e conservadores pendeu cada vez mais
para a posição antiecumênica e distante do paradigma de responsabilidade social
até então adotado pela UCEB, CEB e ISAL. Antes mesmo do golpe, ocorreram na
IPB expurgos em seminários, cassação de pastorados e presbitérios, alcançando
inclusive Celso Dourado e o presbitério de Campo Formoso. Em maio de 1962 o
editorial do jornal Brasil Presbiteriano preconizava que ―em Cristo temos a
solução de todos os problemas, a começar dos básicos‖, o que era, conforme
observou Márcio Vilela, uma crítica ―às preocupações de setores da Igreja
Presbiteriana do Brasil que viam nas reformas de base a possibilidade de
transformação da realidade social do país‖.806 Após o golpe, a proximidade da
cúpula da igreja com o regime se aprofundou, não apenas na legitimação religiosa
através do discurso anticomunista e de obediência à ordem instituída, mas também
na denúncia de elementos internos da igreja considerados subversivos.
Evidenciando essa aproximação, alguns membros da IPB ocuparam cargos
importantes no Governo, a exemplo de Geremias Fontes, nomeado interventor no
Estado do Rio de Janeiro, e da família Gueiros, de onde saiu o redator do AI-2,
Nehemias Gueiros (1907-1980) e o interventor do Estado de Pernambuco,Eraldo
Gueiros (1912-1983). Instituído o bipartidarismo, muitos se filiam ao partido de
sustentação do regime, a ARENA. Em seu livro de memórias sobre as
perseguições ao setor ecumênico da IPB, João Dias de Araújo escreveu:

Entre as igrejas evangélicas do Brasil, a Presbiteriana foi a mais envolvida e a


mais comprometida com a revolução de 1964 por causa das ligações dessa

805
SILVA, Elizete da. Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira. Feira de Santana: UEFS
Editora, 2010, P. 128.
806
VILELA, Márcio Ananias Ferreira. Discursos e práticas da Igreja Presbiteriana do Brasil
durante as décadas de 1960 e 1970: diálogos entre religião e política. Tese (Doutorado em
História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014, p. 97.
333

igreja com a classe média e por causa do prestígio que ela gozava nos meios
políticos e militar.807

Entre os presbiterianos que continuaram no ecumenismo e criaram, em


1978, a Federação Nacional de Igrejas Presbiterianas (FENIP), dissidência da
IPB, estava Celso Dourado. A FENIP foi o embrião da nova vertente do
presbiterianismo, a ecumênica Igreja Presbiteriana Unida (IPU). O documento
―Pronunciamento Social‖, aprovado em 1962 e,posteriormente,renegado pela IPB,
foi assumido pela IPU. Mas não foi apenas no campo religioso que Celso Dourado
dissidiou do presbiterianismo conservador. Voltando às lides partidárias, fundou o
Diretório do MDB em Irecê-BA, em 1976.808 No Partido, fez parte do grupo
―Autênticos‖ e nas eleições de 1978 na Bahia, fez campanha coletiva para
―despersonalizar a propaganda‖, como explicava a reportagem do Jornal do Brasil
(JB): ―eles não pedem votos apenas para si, mas para todos os candidatos do
grupo, enquanto recomendam que não se vote em emedebista conivente com o
Governo‖.809Continuando a cobertura daquela eleição, o JB prognosticava que ―o
MDB crescerá mais do que a ARENA‖, destacando que ―o aumento de suas
bancadas se dará através da eleição de candidatos que irão engrossar o bloco dos
‗autênticos‘ na Assembleia e na Câmara‖. As expectativas também eram positivas
para a oposição na Bahia:

A nova força das eleições na Bahia será representada pelos chamados


―candidatos populares‖ do MDB, que realizam seu trabalho conjuntamente
abrigados numa ―frente de campanha‖. Esses candidatos, pela primeira vez
na história do MDB baiano, têm amplas possibilidades de serem maioria nas
bancadas estadual e federal.810

As expectativas não se confirmaram e da ―frente de campanha‖ integrada


por Celso Dourado, apenas dois dos seis candidatos se elegeram: Francisco Pinto
e Elquisson Soares (1940-). Àquela altura, o pastor já ocupava o cargo de diretor
do Colégio 2 de Julho, vinculado ao setor ecumênico do presbiterianismo em
Salvador. De acordo com o ex-Deputado petista Zilton Rocha (1944-), que
trabalhou no Colégio a partir de 1979:

807
ARAÚJO, João Dias de. Inquisição sem fogueiras: a história sombria da Igreja Presbiteriana do
Brasil. 3ª. Edição. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p. 95.
808
JORNAL DO BRASIL. 19/01/1976. 1º Caderno, p. 12.
809
JORNAL DO BRASIL. Despersonalização. 08/10/1978, p. 8.
810
JORNAL DO BRASIL. Apesar de tudo, eleições. 05/08/1978, p. 2.
334

O 2 de Julho era considerado o colégio onde o alunado mais respirava


liberdade. O grêmio tinha sua própria sala, onde os jovens pichavam as
paredes com suas palavras de ordem. Detalhe que pode parecer insignificante
hoje, mas um sobrinho meu, que estudava em outro colégio à época, me disse
que ficou com inveja dos colegas do 2 de Julho. Seu colégio sequer tinha
grêmio, quanto mais uma sala própria e com liberdade para pichar, colar
cartazes etc. Não era à toa, portanto, que os jovens egressos de lá se
destacavam nas Universidades como estudantes que já levavam
questionamentos e brigavam pelos seus direitos de cidadania.811

Foi como professor e diretor do Colégio 2 de Julho que Celso Dourado


contribuiu para encontros políticos e eventos das esquerdas e oposições civis à
Ditadura, a exemplo do II Congresso Nacional pela Anistia ocorrido em Salvador
nos dias 15 a 18 de novembro de 1979. O Presidente do Comitê Brasileiro pela
Anistia (CBA) na Bahia, responsável pela organização e abertura do Congresso,
era o militante católico Joviniano Soares de Carvalho Neto, que numa coletânea
recente sobre a Ditadura na Bahia descreveu a pluralidade política do evento,
citando os diferentes lugares e personalidades em que as atividades foram
realizadas. Destacando a contribuição do educandário protestante para abertura do
evento, ressaltou a contribuição do diretor: ―O Colégio 2 de Julho tinha como
diretor o Pastor Celso Dourado, de posição libertária e socialista‖.812 Zilton Rocha
também enfatizou o papel de Celso Dourado e do Colégio 2 de Julho durante a
abertura:

Primeiro, com a Lei da Anistia, foi o 2 de Julho que abriu suas portas,
cedendo o auditório para recepcionar os exilados políticos que voltavam dos
mais diferentes países. Os cabelos brancos esvoaçantes de Diógenes Arruda
Câmara, Elza Monnerat, o lendário Carlos Prestes, dentre tantos outros, se
abraçando entre risos e lágrimas pela emoção do encontro e da alegria de o
povo brasileiro ter imposto a anistia ao regime militar. Esse momento quem
propiciou foi o 2 de Julho. Depois veio o 1º de Maio, que foi proibido pelos
donos do poder no momento, de ser realizado no Campo Grande. Novamente
foi o 2 de Julho que franqueou seu campo de futebol para que o ato fosse
realizado. Veio a campanha pelas Diretas Já! Quem hospedou o então
senador gaúcho, Paulo Brossard, que veio fazer um debate sobre o tema em
Salvador? Foi o Colégio 2 de Julho. Pois bem, o personagem que era mentor
desses acontecimentos e pela colocação do velho 2 de Julho no epicentro das

811
Celso Dourado oitentão. Depoimento de Zilton Rocha ao blog comemorativo dos 80 anos de
Celso Dourado, 2012. Endereço: <http://celsodourado80anos.blogspot.com.br/2012/08/celso-
dourado-oitentao.html> Acesso em: 21 out. 2015.
812
CARVALHO NETO, Joviniano Soares de. O II Congresso da Anistia: momentos de resistência
e definições. In: ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro. Ditadura Militar na Bahia: novos
olhares, novos objetos, novos horizontes. Salvador: EDUFBA, 2009. p 266.
335

questões de ordem política e social na cidade do Salvador era o seu diretor,


reverendo e professor Celso Dourado.813

Nas eleições de 1986, Celso Dourado coordenou a campanha de Waldir


Pires (PMDB), eleito governador da Bahia, derrotando o candidato Josaphat
Marinho (PFL), apoiado pelo então governador João Durval (PDS) e por Antônio
Carlos Magalhães (ACM), Ministro das Comunicações. Em 1986, Celso Dourado
retornou ao parlamento eleito Deputado Constituinte pelo PMDB e identificado
pela imprensa com o bloco de esquerda do partido, como em nota do JB:

A participação da esquerda na bancada federal do estado, abrange desde os


comunistas até adeptos do ―socialismo democrático‖, passando pela chamada
esquerda independente. Os comunistas são cinco: Haroldo Lima e Lídice da
Mata, do PC do B, Fernando Santana do PCB, Abigail Feitosa, filiada ao
PMDB e adepta da dissidência comunista de Luís Carlos Prestes; e
Domingos Leonelli, também filiado ao PMDB. Adeptos do ―socialismo
democrático‖ são Jorge Hage Sobrinho, Jorge Viana, Nestor Duarte Neto,
Virgildásio Sena, Mário Lima e Marcelo Cordeiro, todos do PMDB, pelo
qual se elegeu também Celso Dourado, pastor protestante e qualificado como
da ―esquerda cristã‖. 814

Na Assembleia Nacional Constituinte, o pastor da esquerda cristã do PMDB


tornou-se o titular na Comissão de Sistematização, responsável por elaborar o
texto a ser apreciado pelos congressistas nas votações. Integrou ainda a Comissão
Especial incumbida de apreciar o projeto do deputado batista Nelson Aguiar
(PDT) que criava o Estatuto da Criança e do Adolescente, Comissão da qual
também fez parte a Constituinte petista e membro da Assembleia de Deus,
Benedita da Silva.
A candidatura de Benedita da Silva à Constituinte foi destoante não apenas
dos partidos tradicionais, mas do perfil de um partido que se pretendia dos
trabalhadores e com uma nova cultura política de participação popular. Antes de
participar da Constituinte, a petista foi eleita vereadora do Rio de Janeiro nas
eleições de 1982, mas como Zwinglio Mota Dias afirmou e a polêmica dos
―obreiristas‖ com Lysâneas confirmou, o PT no Rio de Janeiro estava muito
identificado com a classe média e universitária. Isso pode ter limitado o alcance

813
Celso Dourado oitentão. Depoimento de Zilton Rocha, 2012.
http://celsodourado80anos.blogspot.com.br/2012/08/celso-dourado-oitentao.html
814
JORNAL DO BRASIL. PMDB faz na Bahia 22 dos 39 Constituintes. 01/12/1986, p. 2.
336

do mandato ou frustrado expectativas, conforme depoimento de Zwinglio Mota


Dias:

Teve uma candidatura populista que foi a da Bené [Benedita da Silva], a


gente apoiou, trabalhando, não oficialmente, mas militantes do CEDI
apoiaram, porque tinha todas as características de que seria uma novidade.
Não foi, mas a gente achava que ia ser.815

Como vereadora do Rio de Janeiro contou com a assessoria da militante dos


movimentos negro e feminista Lélia Gonzalez. Seus mandatos na Câmara
Municipal carioca e no Congresso Nacional estiveram associados às identidades
que ela capitalizou nas campanhas e que faziam parte da sua trajetória de vida:
mulher, negra, pobre e favelada. Foi a primeira parlamentar com este perfil nos
espaços legislativos mencionados e no exercício dos mandatos empenhou-se nas
demandas sociais das minorias, principalmente das mulheres pobres:

Meus maiores problemas como deputada surgiram quando comecei a discutir


questões que não se referiam somente aos direitos da mulher, como a reforma
agrária e os direitos dos trabalhadores em geral. Então, no momento em que
percebi esse bloqueio, passei a discutir a mulher e a reforma agrária, a mulher
e os direitos trabalhistas, a mulher e tudo o mais. Não podia deixar que
limitassem minha atuação e não fui eleita para cuidar somente de assuntos
ligados à família. Precisei usar de certas estratégias para não deixar que as
pessoas folclorizassem minha presença no Congresso Nacional. 816

A participação de Benedita da Silva nas mobilizações de movimentos de


mulheres e negros no campo político influenciou suas posições na Constituinte,
mas ganharam maior repercussão nas eleições presidenciais de 1989, assunto
discutido no próximo capítulo. Sua identidade religiosa também seria usada pelo
PT como estratégia de aproximação com os evangélicos, mas também serviu para
que a Deputada entrasse em conflito com a Bancada Evangélica durante a
Constituinte, como no debate entre ela e Enoc Vieira sobre a duração do mandato
de Sarney:

- Meu apoio ao presidente é uma questão de preceito bíblico. A Bíblia diz


que toda autoridade emana de Deus e deve ser respeitada. Por isso acho que
devemos respeitar os seis anos de mandato do Presidente Sarney – argumenta
o Deputado Enoc Vieira, que no dia da votação do mandato foi o primeiro a

815
Movimento Pró-PT. Manifesto. 10/02/1980. Benedita da Silva declarou no livro de memórias
petistas que os boatos de uma possível transferência dela ao PDT foram recorrentes.
816
Autobiografia de Benedita da Silva. Depoimentos editados por MENDONÇA, Maisa;
BENJAMIN, Medea. Benedita. Rio de Janeiro: Mauad, 1997, p. 75, 76.
337

chegar ao Congresso, às 06:00 h, para se inscrever como suplente na


Comissão de Sistematização e votar pelos cinco anos. Teve azar: nesse dia,
todos os titulares compareceram.
- Eu, hein? Mesmo que essa autoridade mate a gente de fome? Estão se
esquecendo de ler a última frase, que diz: ―toda autoridade constituída vem
de Deus para fazer o bem e a justiça‖, o que não é o caso – protesta a
Deputada Benedita da Silva, uma das primeiras a se insurgir contra o bloco
dos evangélicos. Para rezar, tudo bem, mas meu partido é o PT e é dentro
dele que luto pelos evangélicos.817

Celso Dourado (PMDB) e Lysâneas Maciel (PDT), ambos ligados ao


Protestantismo Ecumênico, e Benedita da Silva (PT), formada politicamente em
movimentos populares ligados às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e
convertida à denominação pentecostal Assembleia de Deus, se destacaram no
bloco da esquerda na Assembleia Nacional Constituinte. Tiveram uma atuação
mais identificada com a orientação partidária do que com interesses corporativos
de instituições religiosas e muitas vezes denunciavam o fisiologismo da Bancada
Evangélica. Lysâneas Maciel notabilizou-se na época por inflamados discursos
em defesa da soberania da Assembleia Constituinte diante das Forças Armadas,
do Governo Sarney e dos lobbys partidários. Em discurso de outubro de 1987,
proferiu:

O que quero deixar claro é que a conjuntura exige maior fidelidade às lutas
populares do que a sinuosas articulações para não irritar os poderes
constituídos, fardados ou não. Ainda mais, se não atentarmos para estes fatos,
estamos correndo o risco de não produzir uma Constituição ao menos
razoável, porque demos maior atenção aos mecanismos internos das lutas
partidárias do que aos interesses reais do povo brasileiro em sua grande
maioria.818

Celso Dourado, Lysâneas Maciel, e Benedita da Silva, repercutiam no


plenário os posicionamentos e reivindicações de entidades e agentes cristãos que
atuavam em movimentos e pastorais sociais. Em 1988, a Igreja Presbiteriana
Unida (IPU) enviou um telegrama ao então governador da Bahia, Waldir Pires
(PMDB), e aos parlamentares supracitados, relatando as ameaças de morte feitas
por grileiros e latifundiários ao Reverendo José Moreira Cardoso que atuava em
defesa da propriedade da terra de famílias em Sítio do Mato, terras doadas pela

817
JORNAL DO BRASIL. Evangélicos adeptos dos cinco anos têm CZ$ 108 milhões de Sarney.
30/11/1987.
818
MACIEL, Lysâneas. Projetos e discursos. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, outubro
de 1987, Quinta-Feira 1, p. 5343.
338

Missão Presbiteriana do Brasil Central. O telegrama foi publicado no informativo


Traço de União da IPU:
IGREJA PRESBITERIANA UNIDA DO BRASIL PREOCUPADA COM
AMEAÇAS CONTÍNUAS DE GRILEIROS CONTRA VIDA NOSSO
ASSESSOR AÇÃO SOCIAL REVERENDO JOSÉ MOREIRA CARDOSO
QUE LUTA PELOS DIREITOS DEZENAS FAMÍLIAS SÍTIO DO MATO
COM ESCRITURAS LEGAIS RECONHECIDAS TRIBUNAL FEDERAL
RECURSOS VG APELA VOSSO RECONHECIDO SENSO JUSTIÇA
AFIM SALVAGUARDAR NÃO SOMENTE VIDA REVERENDO JOSÉ
MOREIRA CARDOSO COMO TAMBÉM DIREITOS ADQUIRIDOS
DEZENAS FAMÍLIAS VALE SÃO FRANCISCO PT

A resposta veio logo:


ACUSO RECEBIMENTO TELEGRAMA NO QUAL V.SAS.
DEMONSTRAM PREOCUPAÇÃO QUANTO A AMEAÇAS CONTRA
VIDA REVERENDO JOSÉ MOREIRA CARDOSO ASSESSOR IGREJA
PRESBITERIANA UNIDA DO BRASIL ET COMUNICO-LHES QUE
DETERMINEI AOS ÓRGÃOS COMPETENTES GOVERNO ESTADUAL
ADOÇÃO IMEDIATAS PROVIDÊNCIAS SENTIDO DAR SEGURANÇA
REFERIDO RELIGIOSO ET APURAR DENÚNCIA EM SUA
TOTALIDADE PT ATENCIOSAMENTE WALDIR PIRES
GOVERNADOR DA BAHIA.

Telegramas foram também enviados aos Deputados Federais Celso Dourado,


Benedita da Silva e Lysâneas Maciel.
Instamos para que pessoas, igrejas e outros grupos enviem telegramas
também:
GOVERNADOR WALDIR PIRES
PALÁCIO DO GOVERNO
SALVADOR-BA.819

No dia 02/09/1987, Lysâneas Maciel fez a leitura em plenário de um


documento entregue ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte pelo
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) no dia anterior. Após a leitura,
Celso Dourado pediu um aparte e comentou a diferença do tipo de
pronunciamento feito pelo CONIC dos pronunciamentos de outras formas
vigentes de relação das igrejas com o Estado:

Li o documento e fiquei muito satisfeito, porque a igreja não foi ao Palácio


do Planalto pedir nada, não foi ao Palácio buscar benefícios para as
instituições religiosas, mas foi levar uma mensagem profética, chamando a
atenção para a situação difícil que o País enfrenta neste momento. A
violência, as injustiças sociais, os desencontros políticos, as fragilidades das
instituições, o perigo de termos novamente esta planta frágil da democracia
prejudicada pela ação deletéria dos inimigos da liberdade, da prática da
justiça. É bom saber que a igreja, nesta hora, pretende colocar o seu
relacionamento com o Estado em outros termos, porque ela tem uma grande
responsabilidade. Durante algum tempo a igreja esteve sob o amparo do

819
TRAÇO-DE-UNIÃO. Boletim da Secretaria Geral da Igreja Presbiteriana Unida. Ano I, n° 2,
página 1, junho de 1988.
339

Estado; então, na hora de construir o edifício, a Igreja ia pedir à prefeitura, ou


ao Governo do Estado, ou ao Governo Federal, auxílio; [...] Era a
preocupação de conseguir uma rádio para a igreja, de conseguir a televisão
para a igreja, de conseguir alguma coisa para fortalecer, para tornar a igreja
também um poder forte. Hoje, a igreja tem que se compenetrar que ela é,
sobretudo, a serva do povo, ela está aí para servir, como o Estado deve estar
aí para servir. Então a igreja precisa estar numa posição segura, de levar a sua
palavra de crítica, de alerta, de cobrança, e o documento tem este sentido. 820

As críticas às aproximações clientelistas entre Igreja e Estado eram dirigidas


à Bancada Evangélica, que negociava o apoio às propostas do Governo em troca
de concessões de rádio e televisão e emendas parlamentares para suas instituições
religiosas. Era uma crítica também ao tipo de debate que interessava a esta
bancada, ligada aos temas da sexualidade, dos direitos reprodutivos e da liberdade
religiosa, sem maiores vínculos com demandas mais amplas de segmentos sociais
desfavorecidos. Se os parlamentares repercutiam o posicionamento do CONIC e
do movimento ecumênico, estes também respaldaram a atuação dos parlamentares
na Constituinte, como foi noticiado pelo JB:

Desfazer a imagem de que os evangélicos estão contra os avanços sociais,


devido aos votos da maioria dos parlamentares protestantes na Constituinte, é
uma das preocupações dos representantes brasileiros na reunião do Conselho
Mundial de Igrejas, que começa hoje, em Salvador, com participação de 26
países. O representante brasileiro no CMI, Enilson Rocha Santos, afirmou
que esses parlamentares não expressam o pensamento das comunidades
protestantes ―que certamente saberão avaliar o comportamento deles e
responder através do voto‖. Citando como exemplo os deputados Lysâneas
Maciel (PDT-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ) e Celso Dourado (PMDB-BA),
o representante do CMI disse que esses parlamentares ―são exemplo de que
nem todos os evangélicos votaram com atraso na Constituinte‖.821

Em muitos pronunciamentos, tanto Lysâneas Maciel e Celso Dourado


quanto Benedita da Silva, quando mencionavam os cristãos evolvidos nas lutas
populares, faziam questão de pontuar: ―católicos e protestantes‖. Fazia parte de
uma disputa política com outras forças religiosas dos setores progressistas: a
lembrança era um modo de dar ressonância ao Protestantismo Ecumênico e
disputar a memória sobre o engajamento cristão na abertura política. As disputas
aconteciam no campo político e também no campo religioso, não apenas entre os
protestantes à direita e à esquerda, mas também entre aqueles que faziam parte de
um mesmo bloco político e, ao mesmo tempo, pertenciam a tendências
820
DOURADO, Celso. Projetos e Discursos. Diário da Assembleia Nacional Constituinte.
Outubro de 1987, Quinta-Feira 3, p. 5136.
821
JORNAL DO BRASIL. Protestantes. 04/10/1988.
340

evangélicas concorrentes. Apesar disso, minoritários no Congresso, os


protestantes progressistas atuariam no parlamento à margem da autoproclamada
Bancada Evangélica, e estariam também em outras trincheiras nas eleições
seguintes à Constituição.
Capítulo VII
Ser evangélico na esquerda: da Constituinte às eleições presidenciais

Os pobres sempre tereis convosco – está


resolvido, então, se os pobres sempre
tereis convosco, vamos estar com os
pobres. Mas, o problema é que a questão
da pobreza passa pela questão política e aí
é o seguinte: qual o projeto político com o
qual nós vamos nos identificar? E a
desgraça, até agora, é que os protestantes
têm se identificado com o projeto do
capital, não com o projeto do trabalho.
Paulo Ayres Mattos.822

Os evangélicos e a participação política: pentecostalismo, ecumenismo e


Missão Integral

O processo de abertura política coincide com o crescimento dos grupos


pentecostais, não apenas em número de membros, superando as outras expressões
do protestantismo, mas também em visibilidade e presença na esfera pública.
Conforme observou Adriana Martins Santos:

Do final do século XIX aos primeiros decênios do século XX, os evangélicos


representavam cerca de 1% da população brasileira. Os pentecostais
chegaram ao início do século passado e cresceram lentamente até o final da
década de 1960, atingindo 4,8 milhões de pessoas. O grande salto se deu nos
anos 1970, com o surgimento dos grupos neopentecostais. O censo de 1980
registrou 7,8 milhões, o de 1991, 13 milhões, e o de 2000, 26,1 milhões. Esse
crescimento vertiginoso deu margens à criação de uma representação política
proporcional a sua nova posição na sociedade.823 (SANTOS, 2009, p.147).

As interpretações teológicas, sociológicas e políticas sobre o


pentecostalismo, feitas à época, repercutiam o conflito de projetos concorrentes no

822
MATTOS, Paulo Ayres. Os metodistas e a questão social. Comunicações do ISER, Ano 3, nº 9,
agosto de 1984, p. 23
823
SANTOS, Adriana Martins. A construção do Reino: a Igreja Universal e as instituições
políticas soteropolitanas (1980-2002). Dissertação (Mestrado em História Social) – UFBA,
Salvador, 2009, p. 147.
341

modo de ser igreja e de participar da política, a aceitabilidade desses projetos


pelos setores hegemônicos do campo religioso e político, e os vínculos
institucionais e sociais desses projetos. Este conflito se desdobrou em formulações
de agendas políticas para a participação evangélica, tanto as apresentadas pelos
críticos da inserção pentecostal na política quanto pelos seus entusiastas. Analisei
algumas publicações sobre o tema ―religião e política‖ que proliferaram na década
de 1980 em decorrência da ampliação do segmento evangélico na sociedade
brasileira, dentre elasProtestantismo e política, do CEDI (1981)824,Irmão vota em
irmão,de Josué Sylvestre (1985)825, Cristianismo e Política,de Robinson
Cavalcanti (1985)826.
As agendas propostas foram perpassadas pelas tendências ecumênica,
fundamentalista e evangelical, mas deve-se evitar interpretá-las como
essencialismos que determinavam o modo de agirdos fiéis e considerar outras
influências sociais e religiosas.No livro Os evangélicos em casa, na igreja e na
política, Leandro Piquet Carneiro estabeleceu uma tipologia das igrejas
evangélicas a partir de dois critérios: ―o grau de autonomia das igrejas locais e a
centralidade do carisma na vida da igreja‖,827 que condicionariam o tipo de
participação dos fiéis na vida eclesial e influenciariam o exercício da cidadania.
Quanto ao primeiro critério, o autor considerou que ―O grau de autonomia
das igrejas locais indica o tipo de relação que a comunidade eclesial local mantém
com organizações nacionais e internacionais‖, enquanto o segundo foi definido
como ―uma forma peculiar de poder, na qual a autoridade não se encontra baseada
na tradição ou na racionalidade legal‖, ressaltando que ―Igrejas nas quais a
autoridade de suas lideranças religiosas é derivada principalmente da capacidade
extraordinária conferida por dons excepcionais, tendem a restringir fortemente a
participação dos fiéis na vida eclesial‖.828
Em outras palavras, para o autor supracitado, o modelo de participação
interna das igrejas, sua autonomia em relação às organizações nacionais ou
824
TEMPO E PRESENÇA ESPECIAL. DIAS, Zwinglio Mota; FERNANDES, Rubem César.
Protestantismo e política. Rio de Janeiro: CEDI, 1981.
825
SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão: os evangélicos, a constituinte e a Bíblia. Brasília:
Pergaminho, 1986.
826
CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e política: teoria bíblica e prática histórica. São Paulo:
Nascente, 1985.
827
FERNANDES, Rubem (Org.). Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na
igreja. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 185.
828
FERNANDES, Rubem (Org.). 1998, p. 185-186.
342

internacionais (Concílios, Ministérios, Convenções, Missões, etc.) e a margem


concreta de interferência nos assuntos eclesiásticos diante do carisma dos líderes,
são variáveis importantes para compreender como os evangélicos atuam tanto no
campo religioso quanto político. O que está em questão não é a validade dos tipos
de ―contextos denominacionais‖ elencados por Leandro Piquet Carneiro829, mas a
preocupação em perceber as igrejas como espaços que formam os sujeitos
religiosos não apenas a partir dos seus conteúdos teológicos, doutrinários e
litúrgicos, mas também das suas formas administrativas e associativas.
Numa perspectiva mais abrangente, importaria compreender como a
dinâmica interna da vida eclesial se relaciona com as relações sociais dos
indivíduos em todas as suas dimensões (trabalho, moradia, escolaridade, família,
geração, cor, gênero e sexualidade). Para isso, servi-me comparativamente das
conclusões de pesquisas que se debruçaram sobre as influências recíprocas entre
experiências religiosas e condições sociais. Oportunos, neste sentido, foram os
processos eleitorais e os censos institucionais que mensuraram a presença e o
impacto do crescimento evangélico durante a abertura e a transição
democrática.Ambos, censos institucionais e processos eleitorais, ajudam a
entender as publicações nas quais ecumênicos, fundamentalistas e evangelicais
formularam agendas políticas para o protestantismo.
Os ecumênicos eram, no início da década de 1980, muito otimistas em
relação às CEBs e às pastorais populares, não apenas como elementos de
renovação do catolicismo, mas de abertura para um convívio de protestantes e
católicos em movimentos de base. Este entusiasmo foi periodicamente
confrontado pelas dificuldades de influenciar a maioria dos fiéis das igrejas e a
maior parte das denominações, que se tornaram bases políticas das vertentes mais
conservadoras do meio evangélico.
A revistaTempo & Presença dedicou um número especial ao tema
Protestantismo e Política, com um texto de Zwinglio MotaDias analisando a
pastoral protestante e a experiência do CEDI, e outro de Rubem César Fernandes

829
Os tipos seriam: 1) Não carismático, com moderada autonomia local e participativo (históricos
e batistas), 2) Carismático, com moderada autonomia local e moderadamente participativo
(Assembleia de Deus), 3) Carismático, descentralizado e participativo (históricas renovadas), 4)
Carismático, descentralizado e moderadamente participativo (pequenas igrejas pentecostais), 5)
Carismático, centralizado e não participativo (IURD). FERNANDES, Rubem (Org.). Novo
nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja. Rio de Janeiro:1998, p. 186-188.
343

debatendo fissuras no campo conservador protestante entre um ―fundamentalismo


de direita‖ e um ―fundamentalismo de esquerda‖. Zwinglio tentou analisar os
impasses do protestantismo diante das transformações da sociedade e das
inovações católicas. Seu texto ainda reproduzia um sentimento de estranhamento
entre protestantismo e cultura brasileira, centrava-se basicamente no
protestantismo histórico, chamado por ele de ―tradicional‖, não contemplando, por
delimitação própria, um olhar sobre o pentecostalismo. Neste sentido, o texto de
Zwinglio advertia sobre os riscos de se tomar a pastoral católica como medida
para uma crítica ao protestantismo:

Entendemos e concordamos que o protestantismo está sendo desafiado pela


prática eclesial dos setores populares do catolicismo e que é – a partir dessas
novas condensações sociais que se vão cristalizando no marco católico – que
as igrejas protestantes irão se definir daqui por diante. E isto pelo fato de que
a identidade do protestantismo brasileiro se construiu e se consolidou
historicamente por oposição à identidade católica. Isto marcou
profundamente as comunidades protestantes. Não importa sua cor
denominacional. O não levar isso a sério frustrou rotundamente os
―ecumenistas‖ da década de 60. Assim, parece-nos que as análises até agora
feitas da prática protestante têm pecado de certa miopia pelo fato de
realizarem-se através das lentes propiciadas pela ―igreja popular‖ católica. 830

Apontando fatores externos e internos às igrejas protestantes que


explicavam as dificuldades de renovação do protestantismo tradicional e a
ineficiência do seu discurso ético-político para responder aos desafios da situação
histórica do país, Zwinglio concluía que as possibilidades inovadoras não
decorriam apenas da influência do que acontecia no catolicismo ou do desafio que
o pentecostalismo lançava à pastoral tradicional do protestantismo, mas também
―por força da própria situação histórica que vivem seus membros‖ que os leva―a
questionar o receituário doutrinário moralista e desligado da realidade concreta
que estão vivendo‖831,em suma:

São as próprias condições históricas das lutas populares que estão colocando
questões para os setores mais empobrecidos de suas igrejas. E estes estão
reagindo e justificando sua participação no processo de mobilização e
organização populares com os elementos mais positivos de sua prática
religiosa. É verdade que num ritmo muito diferente e num tipo de prática que

830
TEMPO E PRESENÇA ESPECIAL. DIAS, Zwinglio Mota. Reflexões em torno da questão da
Pastoral Protestante e a Experiência Acumulada pelo CEDI até aqui. Protestantismo e política.
Rio de Janeiro, CEDI, 1981, p. 9.
831
DIAS, Zwinglio Mota, 1981, p. 12.
344

nem sempre está abertamente ligada a sua vivência religiosa. Pelo menos
aparentemente.832

No outro texto, Rubem César Fernandes tentava mostrar que os conflitos


entre setores evangélicos não eram perpassados apenas por divergências
teológicas ou éticas, mas também aos vínculos que o conservadorismo protestante
possuía com a política.O autor tentava responder à pergunta sobre as
possibilidades de combinação entre uma visão de mundo conservadora com uma
ação política progressista, chegando à conclusão que:

É somente nos compêndios de sociologia que encontramos tipologias capazes


de mapear o pensamento moderno em visões de mundo e em políticas
nitidamente distintas e compreensivas. Na história, ao invés, tendências
filosóficas e teológicas as mais variadas encontram-se com diversas posições
políticas, em combinações recorrentes que parecem ser multiplicáveis por um
número indefinido.833

Citando o exemplo norte-americano, mas certamente preocupado com o


quadro brasileiro, mostrava a polarização política que ocorria, não mais entre
setores ―liberais‖ e ―conservadores‖ na teologia, mas entre o que considerava
frações do campo conservador, ou seja, fundamentalistas e evangélicos
(evangelicais no Brasil):

A ascensão dos fundamentalistas e evangélicos no cenário religioso norte-


americano foi acompanhada de uma diferenciação interna, destacando-se
tendências mais ou menos liberais e uma ala nitidamente "radical" ou de
"esquerda". O fato de que a última eleição para a Presidência foi disputada
por dois candidatos que apelavam para o espírito religioso fundamentalista,
sendo um liberal e outro conservador, é indicativo não só da nova
importância desta corrente no panorama ideológico daquele país, como
também da sua diferenciação interna. Os setores de esquerda desenvolveram-
se sobretudo nos meios universitários (seminários, faculdades evangélicas,
movimentos estudantis cristãos).834

Nenhum dos autores fez recomendações práticas à ação política evangélica.


Neste sentido, só é possível perceber uma agenda nos seus textos comparando
seus diagnósticos e prognósticos sobre o protestantismo na sociedade brasileira.
Para Zwinglio, as igrejas protestantes, eram, até aquele momento (1981), uma

832
Ibidem.
833
TEMPO E PRESENÇA ESPECIAL. FERNANDES, Rubem César. Fundamentalismo à direita
e à esquerda. Protestantismo e política. Rio de Janeiro, CEDI, 1981, p. 51.
834
FERNANDES, Rubem César, 1981, p. 51.
345

―subcultura religiosa com enorme capacidade de contenção do potencial de


transformação social dos setores por elas atingidos‖.835 O autor atribuiu a
influência do pentecostalismo no protestantismo tradicional à incapacidade da
pastoral protestante responder às demandas populares, embora criticasse uma
leitura favorável ao pentecostalismofeita a partir do seu caráter ―popular‖. Isso
transparece na projeção que o texto faz para a presença protestante:

Cada vez mais a falta de respostas convincentes aos problemas gerados pela
expansão dos conflitos sociais está colocando o protestantismo tradicional
sob a influência cada vez mais determinante do pentecostalismo. Entretanto
não se trata de uma subjugação pura e simples de uma expressão do
protestantismo por outra considerada mais "autóctone" e mais "popular". O
pentecostalismo também recebeu e recebe forte influência das igrejas
protestantes tradicionais e o resultado deste encontro que já começa a ter
visibilidade social é uma espécie de "pororoca teológica", conhecida nos
meios protestantes como Movimento Carismático que atravessa as barreiras
denominacionais e que determinará, ao que parece, a identidade protestante
nacional em futuro bem próximo. 836

A projeção não estava muito distante do que ocorreu pouco depois, quando
as expressões carismáticas do protestantismo se tornaram a principal força do
segmento evangélico, numérica e politicamente. Esta ascensão já estava
configurada no momento da escrita do texto, com o surgimento do
neopentecostalismo no final da década anterior e a expansão das dissidências
―renovadas‖ (carismáticas) do protestantismo histórico. Tinham surgido até ali,
igrejas renovadas entre presbiterianos, metodistas e batistas. Por outro lado, a
ausência de recomendações práticas à ação política evangélica na publicação do
CEDI dedicado ao tema Protestantismo e políticaestava relacionada ao perfil
sociológico das igrejas protestantes históricas, mesmo em suas frações
ecumênicas. Paul Freston, ao caracterizá-lo, escreveu:

Membros (e sobretudo líderes) mais de classe média; vida comunitária menos


intensa; menos controle sobre a vida dos membros; treinamento mais formal
para os pastores; mais aceitação da integração social dos fiéis enquanto
cidadãos; aceitação da ideologia liberal-democrática do cidadão autônomo,
que vota segundo sua consciência. 837

835
DIAS, Zwinglio Mota, 1981, p. 12.
836
DIAS, Zwinglio Mota, 1981, p. 12.
837
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 46.
346

Embora fosse possível situar os diagnósticos e prognósticos de Zwinglio


Mota Dias e Rubem César Fernandes nos compromissos institucionais e políticos
que ambos assumiam a partir do CEDI, o Protestantismo Ecumênico que
representavam era mais eloquente em definir o que não deveria ser feito do que
em estabelecer diretrizes institucionais ou político partidárias.A política partidária
era um tema interdito na maioria das igrejas, como o próprio editorial da
publicação assumia e os livros analisados a seguir também reconheciam, fosse por
concepções religiosas ou pelas circunstâncias históricas, o que nunca significou
ausência evangélica da política institucional. Em comparação com as igrejas
históricas, o perfil sociológico da maioria das igrejas pentecostaisera bem distinto,
como descreveu Paul Freston:

Membros das classes mais populares; treinamento mais prático (não


acadêmico) para os pastores; vida comunitária e atividade evangelística
intensas; forte exigência de consenso teológico; controle mais rigoroso sobre
o comportamento e o tempo dos membros; ênfase na separação do ―mundo‖ e
limites para a participação autônoma do membro na vida social e,
principalmente, na vida política.838

Igualmente distintas eram as implicações da combinação desse perfil


sociológico com o discurso fundamentalista e o processo de abertura política. Os
pentecostais adentraram os anos finais da Ditadura rompendo o padrão então
predominante de participação política do segmento evangélico e formulando
diretrizes para esta participação. De acordo com Adriana Martins Santos:

A partir das eleições de 1986, o que se observou foi a modificação deste


quadro, com a eleição dos ―políticos de Cristo‖ para servir aos interesses dos
grupos religiosos. Este ―novo modelo político‖ se tornou predominante entre
os evangélicos na década de 1990. Neste processo destacaram-se dois grupos,
a Igreja Pentecostal Assembleia de Deus e a Igreja Universal do Reino Deus,
que foram as principais responsáveis pela substituição do bordão ―crente não
se mete em política‖ pelo ―irmão vota em irmão‖ e pela criação de novas
práticas e representações em torno desta relação que sempre foi complexa
entre Estado e Igreja.839

838
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 46.
839
SANTOS, Adriana Martins. A construção do Reino: a Igreja Universal e as instituições
políticas soteropolitanas (1980-2002). Dissertação (Mestrado em História Social) – UFBA,
Salvador, 2009, p. 148.
347

O livro paradigmático dessa inflexão foi publicado cinco anos depois do


número especial do CEDI sobre o tema e intitulava-seIrmão vota em irmão
(1986). O autor, Josué Sylvestre, erauma liderança da Assembleia de Deus e
assessor no Senado.840 Sua denominação era a maior igreja pentecostal e
protestante em número de fiéis e foi a que mais elegeu parlamentares para a
Assembleia Nacional Constituinte (13) e para casas legislativas em âmbito
municipal, estadual e federal. O crescimento numérico do pentecostalismo, que se
tornou a fração majoritária do protestantismo, o habilitou a mobilizar suas bases
para a disputa política visando definir os rumos da sociedade brasileira, tal como
outros segmentos sociais e movimentos políticos estavam fazendo. A expressão
―irmão vota em irmão‖, de certa forma, era uma versão religiosa de outras
mobilizações identitárias que estavam em curso durante a discussão e formação da
Constituinte. Outras como ―trabalhador vota em trabalhador‖ ou, como dizia a
propaganda petista, ―quem bate cartão não vota em patrão‖, mesmo possuindo
significados políticos diferentes, apelavam para a mesma retórica de
identificação.841

O livro tinha o objetivo de incentivar a participação evangélica na política,


mostrando como ela interferia na vida das igrejas, por favorecer ou prejudicar a
liberdade religiosa e a expansão da fé. A política também deixava de ser vista
como uma atividade demoníaca ou mundana, como era concebida no senso
comum evangélico, para ser vista como uma atividade aberta ao testemunho
cristão. Por isso, diante da expansão evangélica, não cabia mais reproduzir o
discurso de que o crente não deve se meter na política, pois:

insistir nesta tese nos dias atuais é fazer a vontade do maligno, que não deseja
ver a influência benéfica de grande número de políticos crentes alterando,
como sal, a atuação de pecado das nossas cúpulas dirigentes. Deus permitiu o
progresso evidente do evangelismo nacional e, como força preponderante no

840
SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão: os evangélicos, a constituinte e a Bíblia. Brasília,
Pergaminho, 1986. Além deste livro, o pastor assembleiano publicou Os evangélicos, a
Constituinte e as Eleições Municipais (1988) e Problemas do Brasil à luz da Bíblia (1995).
841
Nas eleições de 1982, ―Panfletos de campanha de vários candidatos em todo o país traziam um
‗Recado do Lula‘: ‗Quem bate cartão, não vota em patrão‘, acompanhado pelo fac-símile da
assinatura do presidente nacional do PT‖. COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital: crise
do Marxismo e mudanças nos projetos políticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). São
Paulo: Xamã; Feira de Santana: UEFS Editora, 2012, p.70.
348

conjunto da sociedade, é preciso começar a ser o ―sal da terra‖ e não apenas


842
―luz do mundo‖.

Josué Sylvestre utilizava a Bíblia para legitimar suas posições e orientar os


evangélicos sobre o que estava em jogo nas disputas pelo poder político e no
processo de elaboração da nova carta constitucional. Além do incentivo à
participação política, outro elemento comum entre o livro Irmão vota em irmão e
os demais livros aqui analisados era a necessidade de apontar as implicações
práticas e materiais da mensagem cristã, não obstante todos se referirem a uma
dimensão espiritual do ―Reino de Deus‖ inalcançável para as realizações
humanas. A diferença entre as abordagens ecumênica, fundamentalista e
evangelical era quanto aos compromissos políticos assumidos a partir dessa
compreensão e o alcance social da ação política evangélica defendida em cada
caso. Josué Sylvestre se referiu à complementariedade entre ser ―luz do mundo‖
(espiritual) e ―sal da terra‖ (material):

As duas partes se completam: luz do mundo para indicar o caminho


espiritual, a salvação, o passaporte para a vida eterna com Cristo; sal da terra
para alterar a sociedade pecaminosa em que vivemos, transformando as
estruturas apodrecidas, modificando as situações de injustiça, dando pão a
quem tem fome, roupa a quem está despido, abrigo a quem está ao relento,
vida digna a quem está na sarjeta.843

Como demonstrou Adriana Martins Santos, este e os demaislivrosdo líder


assembleiano se tornaram representativos da nova cultura política evangélica por
estabelecer um modelo de formação de ―políticos de Cristo‖ ou candidatos
oficiais de igrejas, com recomendações sobre a arregimentação dos votos e as
estratégias de campanha. Modelo que segundo a autora foi aprofundado, com
novas recomendações, pelo Bispo Rodrigues (1957-), da Igreja Universal do
Reino de Deus, na década de 1990.844Não bastava apoiar candidatos,
independente de filiação religiosa ou partidária, que ajudassem as igrejas, era

842
SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão: os evangélicos, a constituinte e a Bíblia. Brasília:
Pergaminho, 1986, p. 36.
843
SYLVESTRE, Josué, Irmão vota em irmão: os evangélicos, a constituinte e a Bíblia. Brasília:
Pergaminho, 1986, p. 52.
844
Os livros do Bispo Rodrigues analisado pela autora são posteriores ao recorte desta pesquisa: A
Igreja e o Social e A Igreja e a política, ambos de 1998. Porém, antes disso, ele já era o articulador
político da IURD através da imprensa denominacional.
349

fundamental eleger políticos patrocinados pelas estruturas denominacionais,


submetidos aos interesses da comunidade religiosa ou ao discurso de suas
lideranças, em outras palavras ―os domésticos da fé‖, como recomendava o texto
bíblico apropriado ao interesse pentecostal. Caso houvesse desencontro entre a
bancada parlamentar e seus representados, a ameaça de boicote ao mandato ou a
candidaturas seguintes servia de mecanismo de controle. Para reforçar o discurso
de identificação, os signos da fé, as saudações religiosas, os títulos eclesiásticos e
a referência à Bíblia passaram a ser utilizados maciçamente nas campanhas
eleitorais, nas propagandas impressas, radiofônicas e televisivas.

Se antes de 1986 eram basicamente os protestantes históricos, em sua


maioria leigos ou lideranças licenciadas, que se tornavam políticos, a partir da
Constituinte serão os pentecostais, com grande número de pastores, que irão
ocupar os mandatos políticos. Na apropriação da Bíblia, citada como Palavra de
Deus para demarcar sua normatividade, os evangélicos se identificavam como ―o
povo de Deus‖ e a igreja como o novo Israel, eleito para uma nova aliança.
Transfigurava-se uma identidade étnico-religiosa em identidade político-religiosa
que legitimava a ocupação de espaços na esfera pública.

A repercussão da atuação evangélica na Constituinte foi negativa, com uma


sucessão de escândalos explorados pela imprensa e condenados por outras frações
do protestantismo. Uma delas, os evangélicos da Missão Integral, vinculados às
igrejas do protestantismo histórico, tateavam entre a condenação da Bancada
Evangélica e a recusa em associar-se ao ecumenismo. Neste processo de dupla
diferenciação, como ocorrera com a teologia, as principais referências políticas do
movimento saíram da FTL e da ABU. Um veículo de divulgação importante do
debate político junto ao segmento evangélico foi o periódico Ultimato. Entre 1968
e 1975, oUltimato existiu como jornal, e de 1976 aos dias atuais, como revista. Às
vésperas da Constituinte, o periódico incorporou intelectuais da Missão Integral
que impulsionaram o debate político, como esclareceu Elben Lens César:

A presença do cientista político Robinson Cavalcanti, membro da comissão


internacional que produziu os documentos Evangelização social e O
evangelho e a cultura para a Conferência de Lausanne e, mais tarde, do
sociólogo Paul Freston no corpo de colaboradores, abriu caminho para que a
revista abraçasse, com mais determinação e freqüência, essa outra área da
Missão Integral da igreja. A estréia de Robinson deu-se com a entrevista
350

Constituinte, protestantismo brasileiro e participação política,publicada na


edição de outubro de 1985. A colaboração de Paul Freston começou com a
845
publicação do artigo O cristão pode ser marxista? (dezembro de 1988).

Os cientistas sociais e políticos de origem evangélica Paul Freston e


Robinson Cavalcanti foram intelectuais importantes na aproximação dos
evangélicos com as esquerdas. Além de escreverem em periódicos evangélicos e
organizarem eventos e entidades de formação política do segmento religioso,
esses intelectuais atuavam nas universidades e junto aos partidos. Através da
revista Ultimato, estes autores se tornaram os principais porta-vozes das críticas
do movimento de Missão Integral ao discurso apolítico ou ao corporativismo
pentecostal, sobretudo, durante a Constituinte. Essa contribuição resultou na
criação do Movimento Evangélico Progressista (MEP), que começou durante a
campanha de 1989, se institucionalizou em 1990 e contava com uma coluna na
revista Ultimato.

Cristianismo e política: uma referência evangélica para a esquerda


cristã

O MEP não foi, entretanto, o primeiro movimento político-religioso do qual


Robinson Cavalcanti fez parte. Antes, havia contribuído com a construção do
Movimento Cristão Democrático de Centro (MCDC), criado em Recife-PE no ano
de 1978, que tinha no boletim Presença e identidade seu veículo de debate e
divulgação. As semelhanças e diferenças entre o MCDC (1978) e o MEP (1990)
podem ser interpretadas tanto a partir da trajetória intelectual e política de
Robinson Cavalcanti, quanto a partir da interação entre o protestantismo e a
política no processo de abertura. Uma ponte entre ambas pode ser encontrada no
livro Cristianismo e política, publicado em 1985. Para melhor analisar o livro, é
necessário, porém, situá-lo na biografia de Robinson Cavalcanti.
Criado no catolicismo na paróquia rural da cidade de União dos Palmares
(AL), Robinson Cavalcanti era filho de pai espírita, vereador e presidente do
sindicato do comércio varejista, e de mãe católica, pertencente a uma família de
845
CÉSAR, Elben M. Lens (Org.). Cartas à Ultimato (1969-2008): Uma radiografia do
cristianismo brasileiro. Viçosa-MG, Ultimato, 2008, p. 69.
351

políticos liberais. A conversão ao protestantismo ocorreu durante os estudos no


Colégio Presbiteriano XV de Novembro, em Garanhuns-PE, aos 15 anos (1959).
A primeira filiação ao protestantismo foi na Igreja Evangélica Luterana do Brasil
(IELB), fundada por uma missão de Missouri-EUA, de viés
fundamentalista.846Aos 18 anos (1962) ingressou simultaneamente nos cursos de
Ciências Sociais,da Universidade dos Jesuítas (UNICAP), e Direito, da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em depoimento ao Boletim
Teológico da FTL sobre a própria trajetória, Robinson Cavalcanti destacou o
aprendizado nos dois espaços:

Com os jesuítas, estudei a Doutrina Social da igreja, particularmente as


encíclicas sociais pontificiais, sofrendo a influência do Humanismo Integral,
de Jacques Maritain, e do Solidarismo, de Emmanuel Mounier. Na
universidade pública,conheci o positivismo, o marxismo e o pensamento de
Max Weber.847

Eram os anos 1960, momento político conturbado, de crise política e


pressão de setores conservadores e empresariais ao governo de João Goulart.
Tempos de Guerra Fria, de acusação de ―comunismo‖ às propostas de ampliação
da participação política e de direitos sociais, de mobilização na cidade e no
campo, de greves e Ligas Camponesas, das reformas de base como projeto que
aproximava os setores mais moderados das esquerdas, e do anticomunismo como
discurso que unificava os opositores de Jango. Nas palavras do biografado, eram
tempos em que se viveu: ―a euforia e a decepção com a Revolução Cubana, o
Concílio Vaticano II, a efervescência socialista seguida do golpe militar no Brasil,
a guerra do Vietnam, a Primavera de Praga, o Maio de 1968 em Paris, etc.‖848 A
década acirrou os conflitos entre os ecumênicos e os evangelicais, manifestos na
rejeição de Robinson Cavalcanti ao movimento da juventude ecumênica:

Conheço o liberalismo teológico de esquerda de grupos de jovens


universitários ecumênicos, experiência traumática para mim, pela arrogância
intelectual daqueles, sua intolerância e sua falta de reverência em relação ao
sagrado. Eu vivia a dicotomia e a ambiguidade do bom moço da igreja, sem

846
A outra vertente do luteranismo brasileiro, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil
(IECLB), fundada por imigrantes alemães no sul do país nas primeiras décadas do século XIX,
tornou-se, na segunda metade do século XX, uma das denominações mais próximas do movimento
ecumênico.
847
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 30-31.
848
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 31.
352

―maus costumes‖, enquanto vivia uma intensa militância cultural e política


em círculos católicos romanos e seculares. 849

Como analisado no segundo capítulo, a acusação de ―liberalismo teológico‖


era imprecisa, pois poderia significar muito mais uma atitude diante da igreja, da
Bíblia e do comportamento cristão, do que uma adesão à chamada Teologia
Liberal. A palavra ―Liberal‖ era, no campo religioso, uma acusação muitas vezes
equivalente a ―subversivo‖ no campo político. O próprio Robinson Cavalcanti
admitiria, ao falar da filiação à Igreja Anglicana, que ―é menos mal ser
consideradoum conservador numa igreja liberal, do que ser considerado um
liberal numa igreja conservadora. A gente sofre, mas sobrevive.‖850 Porém, ao
acusar três décadas depois os ―grupos de jovens universitários ecumênicos‖ –
numa menção clara à ACA e à UCEB – de ―liberalismo teológico de esquerda‖,
Robinson Cavalcanti demonstrou-se mais próximo do fundamentalismo, do que
da teologia latino-americana que nasceu do movimento de ISAL entre os
protestantes e de Medelín entre os católicos. Eram tempos em que muitos
buscavam conciliar pertencimento religioso e posicionamento político. Os
evangelicais criaram dois espaços nos quais Robinson Cavalcanti se integrou: a
Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE) e a Fraternidade
Teológica Latino-americana (FTL), lócus de elaboração da Teologia da Missão
Integral:

O espaço-síntese que buscava apareceu com grande impacto em minha vida


com a Aliança Bíblica Universitária (ABU), o movimento brasileiro de
estudantes evangélicos, ligado à Comunidade Internacional de Estudantes
Evangélicos (IFES): vida devocional, estudo bíblico, disciplina intelectual,
abertura ao contemporâneo e à problemática sócio-política.851

Durante dez anos Robinson Cavalcanti foi ―obreiro de tempo parcial‖ da


ABU, contribuindo com eventos e formação de lideranças. De acordo com seu
depoimento, uma influência decisiva: ―Seus acampamentos, seminários de
capacitação e a itinerância interdenominacional do seu ministério foram a minha
principal fonte de inspiração teológica, de uma teologia do caminho‖.852 Em

849
Ibidem.
850
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 30-31.
851
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 31.
852
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 30-31.
353

seguida ao período de trabalho como obreiro da ABU, atuou na organização da


FTL e participou de comissões teológicas de evangelização e de ética social no
movimento de Lausanne, iniciado em 1974. Em resumo dos vínculos teológicos e
paraeclesiásticos, descreveu:

O movimento estudantil (ABU) foi a ponte para a Fraternidade Teológica


Latino-Americana, na pré-consulta de julho de 1969, em São Paulo, e na
primeira Consulta Continental, em Cochabamba, Bolívia, em dezembro
daquele ano. Por sete anos estive no Comitê Executivo da Fraternidade,
assim como no Comitê Executivo do Segundo Congresso Latino-Americano
de Evangelização (CLADE II), em Huampaní, Peru, em 1979. A FTL foi a
ponte para Lausanne, onde fui membro de sua comissão de convocação e
membro substituto da Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial
(LCWE), assim como para a Aliança Evangélica Mundial, onde por quatro
anos participei da Comissão Teológica, na subunidade Ética e Sociedade.
Estive, também, como segundo vice-presidente da executiva fundadora da
Confraternidade Evangélica Latino-Americana (CONELA).853

Em 1985, foi ordenado sacerdote na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil,


na qual permaneceu até o fim da vida.854 Se esses dados completam o quadro
religioso de Robinson Cavalcanti, não dão conta do quadro político,
principalmente da transição do MCDC (1978) ao MEP (1990). A motivação para
o primeiro foi descrita no depoimento ao Boletim Teológico: ―A ditadura militar
do Brasil assinalava uma crise irreversível no ano de 1978‖. O MCDC, então, foi
criado para ―preparar e mobilizar o povo protestante para a transição
democrática‖. Seu lema era ―Por um país governado por homens governados por
Deus‖ e era composto por ―democrata-cristãos, social-democratas e liberal-
progressistas‖.855
A carta de princípios do movimento teria inspirado, segundo Robinson
Cavalcanti, a Declaração de Jarabacoa, documento produzido por uma consulta
da FTL sobre religião e política na República Dominicana no ano de 1980. Quais
foram as intervenções do MCDC no campo político durante seus cinco anos de
existência (1978-1983), além da carta de princípios e do boletim Presença e
identidade? ―Muitos dos ex-integrantes do MCDC estão atualmente na militância
partidária e sindical‖.856 O leque de opções da inserção partidária dos integrantes

853
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 30-31.
854
―no anglicanismo encontrei a síntese possível entre minha herança católica e minha fé
reformada‖, escreveu.Boletim Teológico, 5(14), mar./1991. p. 30-31.
855
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 32.
856
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 32.
354

do MCDC contemplou basicamente quatro partidos. Uma ―tendência social-


cristã‖ formada por jovens católicos que ingressou no Partido Popular (PP) de
Tancredo Neves ―com a visão de uma transição negociada possível da ditadura
para a democracia‖. A mudança dessa tendência social cristã para o PMDB teria
ocorrido porque as ―mudanças na legislação eleitoral dos militares nos levaram a
fechar as portas do partido e voltar à frente ampla de oposição‖.857 Outra ala,
liderada pelo sociólogo batista Luís Paulino, tentou fundar o Partido Democrata
Cristão (PDC), mas depois ingressou no Partido Democrático Trabalhista (PDT),
liderado por Leonel Brizola. Por fim, no início dos anos 1980 e próximo ao final
da existência do MCDC, surgiu uma ―ala de opção de esquerda, inclusive de
militância no PT‖, uma opção ―vagamente definida como ‗socialismo
democrático‘, definido como um ‗modelo social sem nenhuma forma de
opressão‘.‖858
A geografia das tendências do MCDC que se integraram aos partidos indica
uma composição nordeste-católica (PP-PMDB), sudeste-protestante (PDT) e sul-
ecumênica (PT). Atuando como articulador, Robinson Cavalcanti era um
protestante na primeira tendência que no final da década de 1980 se integrou à
terceira. Resumindo o quadro político de sua trajetória, ele descreveu os anos
1980 como uma década de ―intensa militância política‖:

Candidato a deputado estadual em 1982, membro do Diretório Municipal do


PMDB (1982-1984), assessor do prefeito de Recife (1986-1988), participante
da campanha pelas eleições presidenciais Diretas Já (1984), coordenador de
comitês evangélicos de apoio à candidatos da Frente Popular (liberais
progressistas, socialistas, e comunistas) em duas eleições municipais, duas
eleições estaduais e nas eleições presidenciais de 1989, na comissão
interpartidária e na coordenação do comitê evangélico de apoio a Luis Inácio
Lula da Silva para Presidente da República.859

Embora Cristianismo e política tenha sido publicado em 1985, o texto do


prefácio data de 1983, último ano de existência do MCDC, e faz menção ao 500º
aniversário de Martinho Lutero celebrado naquele ano. O subtítulo ―teoria bíblica
e prática histórica‖ indicava o roteiro da obra. A primeira parte foi dedicada a uma
abordagem cristã da política na Bíblia (Antigo e Novo Testamento), valorizando a

857
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 30-31.
858
CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e política: teoria bíblica e prática histórica. São Paulo:
Nascente, 1985, p. 218.
859
BOLETIM TEOLÓGICO, 5(14), mar./1991. p. 32.
355

ética social da lei mosaica, dos profetas, de Jesus e dos apóstolos. A segunda parte
foi dedicada à ação política da igreja cristã ao longo da história, numa abordagem
orientada pela Ciência Política, mas sem perder a perspectiva da ética religiosa,
uma vez que o livro era dedicado a ―pastores, seminaristas, estudantes
universitários, oficiais das igrejas, cada cristão preocupado com a missão da
igreja‖. O autor se apresentou como ―um interessado em Ciência Política que
teima em ser cristão‖ e ao livro como uma tentativa de ―quebrar o gelo‖ do debate
sobre religião e política no seio das igrejas evangélicas. Para isso ele contava com
conhecimento teórico e experiência em movimentos evangélicos e políticos.860
Na abordagem da ―prática histórica‖, valorizou-se o pensamento social de
alguns pensadores e movimentos cristãos: 1) Os chamados ―Pais da Igreja‖, 2)
São Tomaz de Aquino, 3) A Reforma Protestante (luterana, calvinista, anabatista,
puritana), 4) O Evangelho Social; e do que o autor chamou de ―Evangelho
Integral‖, elencando personalidades muito distintas, ao longo do século XX, cujas
semelhanças estavam no modo como a fé e a política se fundiram numa atitude
contestadora do status quo e proponente de um igualitarismo social.
Ao elencar essas personalidades, Robinson Cavalcanti pretendia criar uma
genealogia de ―santos políticos‖ para o movimento de Missão Integral, uma
memória de protestantes radicais ou críticos, capaz de respaldar uma inserção
alternativa do protestantismo na esfera pública, deslegitimando tanto o
absenteísmo político quanto o apoio evangélico à ordem instituída. Entre os
exemplos citados nessa ―hagiografia protestante‖ estavam: Abraham Kuyper
(1937-1920), Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), Martin Luther King Jr. (1929-
1968), Mike Hatfield, Jimmy Carter (1924-), (ligados à ação política), com
referências marginais a Billy Graham(1918-), John Stott (1921-2011), Stanley
Mooneyham (1926-1991), Keith Phillips (ligados à evangelização e à ação social).
A parte histórica do livro terminou abordando a prática política dos cristãos,
católicos e protestantes, na sociedade brasileira, destacando a hegemonia católica,
a presença protestante e a relação de ambas com a Ditadura Militar e a abertura.
No último capítulo, Robinson Cavalcanti expôs algumas propostas para a ação
política dos cristãos diante de temas da Ciência Política, como: a natureza do

860
―Nele procuramos incorporar os anos de pesquisa científica, de ministério estudantil, de
militância partidária, de frequência aos eventos internacionalmente marcantes para os evangélicos,
notadamente na área da ética social‖. CAVALCANTI, 1985, p. 12.
356

Estado e dos regimes políticos, os sistemas econômicos, divisão em direita,


esquerda e centro, propostas de democracia. Por fim, o apêndice apresentou a
Carta de Princípios do MCDC (1978) como ―modelo ou exemplo de uma maneira
cristã de pensar o político‖.861
O estudo teológico (teoria bíblica) e histórico (prática histórica) do
cristianismo político tinha naquele momento um objetivo principal: compreender
o que parecia ser uma ausência protestante na política e as causas dela. No
primeiro caso, a ausência era entendida como a sub-representação política de uma
presença social e cultural cada vez significativa e diversificada das comunidades
evangélicas:

À nossa presença física e representação numérica não corresponde igual


peso, influência, impacto na vida nacional. Nossa comunidade tem vivido,
maiormente, voltada para dentro de si mesma, suas atividades, programações,
alegrias e tristezas, endocentrada, como uma sub-cultura, numa consciência
de minoria. Passado o tempo da discriminação que nos era imposta, optamos
por um auto-isolamento, construindo, em paredes mentais, a realidade nefasta
de um ―gueto‖. A esse isolamento, corresponde uma diminuição da
possibilidade de influenciar a sociedade com nossas ideias.862

As causas estariam no ―desconhecimento da História da Igreja‖,


principalmente quanto ao ―comportamento político dos evangélicos em outras
terras e outros tempos‖. Pesariam também um determinado modo de leitura da
Bíblia, predominante nas igrejas, em que os textos bíblicos ―referentes ao social e
ao político‖ são espiritualizados ―em deturpação ao seu sentido original‖. O
desconhecimento da história e a leitura despolitizada da Bíblia se manifestava,
segundo o autor, nas duas atitudes predominantes do segmento evangélico em
relação à política: ―a) A política é mundana, não sendo, portanto, lugar para os
crentes; b) Não adianta fazer coisa alguma; devemos pregar o evangelho e
aguardar o retorno do Senhor‖.863 A demonização da política faria parte de um
maniqueísmo no qual os elementos mais influentes da vida social eram relegados
como perigosos, reduzindo a capacidade dos evangélicos de impactar cultural e
politicamente a sociedade:

861
CAVALCANTI, Robinson.1985. p. 13.
862
CAVALCANTI, Robinson.1985. p. 15.
863
CAVALCANTI, Robinson.1985, p. 16.
357

Certas áreas da atividade humana seriam consideradas ―más‖, território


privado do Inimigo, aonde não devemos ir, sob pena de inevitável derrota.
Algumas dessas áreas: as artes, os esportes, os meios de comunicação, a
política, são justamente as mais importantes em termos de influência para a
sociedade como um todo.
Por ignorância, preconceito ou medo, entregamos de mão beijada o ―filé do
mundo‖ a Satanás e nos retraímos para as áreas menos desafiantes. Estamos
nos concentrando nas profissões técnicas, executivas e liberais, não
contribuindo, de modo criativo, à formação da inteligência nacional. Raros,
solitários, incompreendidos, impotentes, são os que se aventuram à
Sociologia, à Antropologia, à Ciência Política, à Filosofia, às expressões
artísticas e literárias.864

Essa mentalidade de gueto, como o autor a descreveu, alimentava uma


atitude equivocadamente orgulhosa de ser ―apolítica‖. Negando, entretanto, a
existência do ―apolítico‖, Robinson Cavalcanti atribuiu a ele outros significados
negativos: ―apartidário, não-engajado, alienado‖, indicando que a opção
―apolítica‖ tinha consequências concretas:

Ser ―apolítico‖ não é deixar de tomar posição. Ser ―apolítico‖ já é uma


posição em si. Uma opção para fora. Uma opção pelo não ser. Uma opção
por omissão. A omissão é um ―voto‖, permanente e reiterado, em favor ou
contra medidas, governantes, partidos ou regimes. O ―voto por omissão‖ é
tão responsável, tão culpado, quanto o voto consciente. 865

Uma vez que o discurso apolítico era muito frequente nas igrejas, muitas
vezes em nome da crítica ao que a política possuía de conflituosa e antiética, o
autor chamou a atenção para a natureza política da própria igreja, tanto como
forma de governo quanto como disputas pessoais ou de grupos pelo poder:

Não há lugar mais político do que uma igreja. O que são os sistemas
episcopal, presbiteriano e congregacional, do que formas eclesiásticas de
governo? O que fazemos quando elegemos um pastor ou excluímos um
membro? Onde encontraríamos tão representadas as fraquezas humanas, o
orgulho e a inveja, a luta pelo poder, as ―queimações‖ e os ―conchavos‖, as
tendências e os partidos (de Paulo... de Apolo...)?866

O livro era um manifesto de despertamento político às comunidades


evangélicas. Por isso, utilizou de muitas estratégias para confrontar os crentes.
Uma das estratégias foi descrever os tipos de sujeitos políticos existentes numa
sociedade, que se dividiriam basicamente em: alienados, conscientizados e

864
Ibidem.
865
CAVALCANTI, Robinson.1985, p. 18.
866
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 19.
358

engajados, sendo que estes últimos eram os mais valorizados como ―uma parcela
dos conscientizados que procura conduzir os acontecimentos‖, acrescentando:

Um país politicamente desenvolvido terá uma parcela diminuta de sua


população alienada, um percentual majoritário de conscientizados e um
número significativo de engajados, que representam os diversos segmentos
do povo, e onde haja canais estáveis de acesso e participação.867

O caminho que estava sendo indicado era o do protagonismo político, a


assunção do engajamento a partir de uma identidade cristã consciente da história
da igreja e do que o autor entendia ser a perspectiva bíblica. Só uma ―parcela de
conscientizados‖ que procurasse ―conduzir os acontecimentos‖ poderia superar os
pecados da presença política dos evangélicos na abertura, que seriam: 1) ―Um
despreparo científico e ético‖, 2) ―um individualismo de atuação‖, 3) ―um
descompromisso com a comunidade de fé‖, 4) ―uma ausência de uma análise
crítica global dos problemas e dos projetos alternativos‖, 5) ―imediatismo
assistencialista e clientelístico‖. Estes pecados resultavam na ausência de uma
identidade ou contribuição política própria dos evangélicos, deixando-os ―a
reboque dos diversos líderes, partidos e ideologias, tanto à direita quanto à
esquerda‖.868 Os cristãos ―esclarecidos‖ deveriam ―se fazer presentes‖ e
demonstrar interesse em:

gerir a coisa pública (res publica), não só para assegurar o seu direito e
cumprir suas obrigações (e os de sua família, de sua igreja, de sua categoria
profissional, etc.), mas para permeá-la de valores que redundem em maior
benefício para todos e cada um. É o que a Bíblia nos ensina e o que a História
atesta.869

Qual seria, então, a contribuição própria que os protestantes poderiam


apresentar? No que se basearia a atuação da vanguarda cristã, dos santos políticos,
dos engajados evangélicos? Há no livro tanto orientações religiosas quanto
políticas. As primeiras podem ser percebidas na análise que Robinson Cavalcanti
fez dos textos bíblicos e da história da igreja, enquanto as segundas podem ser
percebidas no perfil dos cristãos engajados que ele citou e na comparação que fez
entre projetos políticos concorrentes no passado e no presente. Desautorizando

867
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 20.
868
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 17.
869
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 20.
359

discursos religiosos de legitimação às desigualdades, apontou para o que teria sido


o propósito divino na criação do mundo:

não haveria na terra desigualdades sociais, exploração, guerra, mas harmonia


e justiça. Uma terra sem estratificação social ou fronteiras nacionais. A terra
de Deus era uma terra para os homens, com todos nela trabalhando e dela
usufruindo, sem egoísmos privativistas. 870

A única estratificação social reconhecida como parte dos propósitos da


criação seria, para o autor, entre homens e mulheres, pois: ―a liderança desse
mundo era destinada, principalmente, a pessoas do sexo masculino, tendo a
mulher, emdignidade, ativa participação cooperadora‖.871 Num processo de
abertura política negociada pelo alto, em que não faltavam por parte das
esquerdas, críticas ao pragmatismo político ou desconfiança às vinculações de
classe dos dirigentes do processo, não admira que um proponente de um
movimento cristão de centro, filiado ao PP e depois ao PMDB, buscasse legitimar
biblicamente a realpolitik como caminho de promoção da justiça. Foi o que fez ao
interpretar a história de José e de Moisés no Egito:

Não se pode julgar a vida dos indivíduos e das nações por fatos isolados, e
sem levar em conta os planos de Deus. Vergonhoso o “colaboracionismo” de
José? Garantiu a sobrevivência dos seus para algo mais digno no futuro.
Condenável a educação de Moisés na côrte de Faraó? Preparou um
estadista, um líder, para uma missão maior. Tudo isso nos conduz ao Êxodo,
à libertação, à derrota dos opressores, ao Mar Vermelho, ao Sinai, ao maná,
à Canaã.872

Fundamental para o autor era a inspiração religiosa da justiça política.


Comentando os meios de amparo aos pobres na Lei Mosaica ressaltou que: ―O
povo da ‗reforma agrária‘ e do Jubileu era o povo da Arca e do Sacrifício. A
legitimidade do modelo era religiosa e se fazia a partir da fé‖. A justiça era, assim,
um conceito ao mesmo tempo sociológico e teológico, uma mediação entre
ideologias políticas e valores religiosos, que servia para legitimar um projeto
socializante sem aderir plenamente a um modelo estatista: ―a justiça era o alvo
número um, pela democratização da propriedade, em consequência de seus
resultados econômicos, e não pelo coletivismo ou estatização‖. A presença

870
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 23.
871
Ibidem.
872
CAVALCANTI, Robinson.1985, p. 24-25.
360

política a partir de uma identidade religiosa imbuída de igualitarismo era a


reafirmação, ao seu tempo e modo, de uma longa tradição já analisada: o
Socialismo Cristão. Crítica ao capitalismo, rejeição do comunismo marxista e a
construção de uma terceira via, socialista e cristã, conforme síntese de Robinson
Cavalcanti:

Condicionados pelos modelos econômicos de nosso tempo, estamos distantes


do modelo de Deus, com a consciência anestesiada, cheia de racionalização
(falsas desculpas), driblando os textos bíblicos incômodos, gozando ou
almejando privilégios às custas da exploração do próximo, entrando na ―roda
viva‖ da grosseria e desumanizante competitividade ou, quando rejeitamos
esses males, aspiramos, como alternativas, outros caminhos seculares,
materialistas.873

O profetismo também foi valorizado no livro como uma atitude crítica ao


poder religioso e político. A referência aos profetas era uma projeção do papel que
as igrejas e os cristãos deveriam assumir na política:
a mensagem do profeta procura corrigir os desvios, adequando o
comportamento público e privado, de governantes e governados, aos
estatutos divinos, advertindo dos perigos que poderão advir com a infração.
No campo das relações internacionais e das estruturas sócio-econômicas-
culturais internas, essa mensagem tem uma dimensão acentuadamente
política874.

Numa reconstituição das lições que poderiam ser aprendidas do Antigo


Testamento, a ação política foi assumida como uma vocação da qual depende o
bem comum, pois ―As decisões que atingem a todos são aquelas tomadas pelo
poder político (detentor de coercibilidade)‖. A política é ―uma ação solidária, que
implica na participação de todos‖ e para a qual Deus chama ―pessoas de distintas
origens, situação social e nível de instrução‖.875 O autor não recomendava o
exercício do poder político stricto sensu aos líderes religiosos, a quem caberia
outro papel:

Ao líder religioso não cabe executar a tarefa política, mas exortar e orientar
com autoridade os governantes, quando estes pecam em sua vida pessoal ou
quando atuam em prejuízo do povo. Para que isso ocorra, é necessário que os
líderes religiosos se mantenham informados imparcialmente do que ocorre na
esfera política, que sejam independentes em seu comportamento. 876

873
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 29.
874
CAVALCANTI, Robinson.1985, p. 37.
875
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 49.
876
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 50.
361

Pela importância que possui no discurso cristão, as interpretações sobre


Jesus são quase sempre as mais inclinadas à polêmica política e religiosa. Não foi
diferente em Cristianismo e política, já que as críticas do autor aos
fundamentalistas e aos teólogos da libertação perpassam todo o tópico A política
de Jesus, mas podem ser resumidas no trecho a seguir:

Aqueles que enxergam em Jesus Cristo apenas, ou principalmente, o


libertador dos pobres e oprimidos, enfatizando a encarnação e a historicidade,
minimizam (ou implicitamente negam) a divindade e o propósito
soteriológico; os que pregam a cruz, o túmulo e o novo nascimento, mas se
esquecem, obscurecem, minimizam ou espiritualizam o conteúdo sócio-
econômico da mensagem e a solidariedade do Evangelho encarnado,
minimizam (ou implicitamente negam) a humanidade do Senhor e suas
implicações.877

O modo como Jesus se relacionou com os grupos religiosos e as lideranças


políticas foi utilizado como parâmetro para julgar os partidos ou comportamentos
políticos e os projetos que representam:

Jesus não optou pelo caminho dos essênios, isolando-se do mundo e de seus
problemas; não aprovou o caminho dos saduceus e sua negação de verdades
da fé e da moral como preço de uma situação privilegiada; não se
impressionou com o puritanismo dos fariseus; foi firme e independente diante
dos herodianos, e aos zelotes, apontou o caminho da paz. Nenhum partido
humano é detentor de toda a verdade, ao ponto de merecer o apoio
incondicional de Deus.878

Para não prolongar os comentários sobre como a leitura dos textos bíblicos
estava imbuída do debate político, cito apenas um último exemplo, do tópico ―A
política da igreja‖, que apontou os limites da partilha dos bensnas comunidades
cristãs do primeiro século, conforme narrou o livro de Atos dos Apóstolos.
Robinson Cavalcanti reproduziu a mesma diferenciação que Rosa Luxemburgofez
em O socialismo e as igrejas (1905), entre o socialismo dos marxistas e o
socialismo dos cristãos primitivos:

O modelo fracassou, porque era um comunismo de bens e consumo e não de


bens e produção. Quando todos acabaram de comer o que era de todos, todos
ficaram com fome (justamente numa época adversa), dependendo da caridade
dos irmãos de outras igrejas, que continuavam trabalhando. 879

877
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 62.
878
CAVALCANTI, Robinson.1985, p. 65.
879
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 69.
362

Robinson Cavalcanti e o Movimento Cristão Democrático de Centro


(MCDC) tinham uma agenda política para o país? O nome do movimento e os
propósitos do livro Cristianismo e política demonstram que sim. Primeiro, essa
agenda poderia ser descrita como um projeto de democracia liberal e de economia
social de mercado, ambas orientadas pela Doutrina Social Cristã, que consiste
num ―corpo de pensamento político cristão‖, baseado ―nas Escrituras Sagradas e
leva em consideração a experiência e o pensamento histórico do cristianismo‖.880
O Centro era definido como ―todo movimento visando o fortalecimento da
democracia e do pluralismo‖ – evitando-se extremismos historicamente
associados à direita e à esquerda – e que se ―acerca do social sem privilegiar
nenhum marco teórico‖.881 Não era entendido nem como terceira via nem como
neutralidade, mas como um arco democrático do qual poderia se aproximar tanto
uma direita liberal-conservadora quanto uma esquerda socialista, social-democrata
e trabalhista. Nesta concepção, quanto mais distantes do Centro, mais próximos de
projetos autoritários e fascistas. Na economia ―valoriza-se especialmente a
empresa nacional de pequeno e médio porte, as propriedades comunitárias, e nas
empresas maiores, a participação de todos os que as constituem em sua gestão e
em seus resultados‖.882 Na Carta de Princípios do MCDC, são apresentados como
fatores necessários à convivência social: a) solidariedade, b) liberdade, c)
autoridade, d) justiça, e) trabalho, f) propriedade privada. Esta última descrita em
termos muito próximos à Doutrina Social da igreja:

de direito natural, garantia contra o arbítrio do Estado e a opressão dos


privilegiados, a todos assegurada, como realização última do trabalho e
garantia de liberdade, segundo intrínseca destinação e função social, que a
legitima‖.883

Reproduzindo uma apologia do protestantismo edesconsiderandooutros


fatores sociais e políticos, o autor afirmava a contribuição protestante para a
democracia, palavra cujo conteúdo estava em disputa naquele momento:

é um fato histórico que os cristãos evangélicos são grandemente responsáveis


pela existência e desenvolvimento da Democracia. Esta tem se estabelecido

880
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 251.
881
CAVALCANTI, Robinson.1985, p. 238.
882
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 328.
883
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 248.
363

de modo mais estável em países de formação evangélica do que nos de


qualquer confissão religiosa.884

Termino a análise do pensamento político de Robinson Cavalcanti com o


programa que ele propôs para a ação cristã na política. Ao mesmo tempo que
negava um modelo corporativista de ―candidatos de igreja‖, criticava uma atuação
política evangélica individualista, sem qualquer ligação com a identidade
religiosa. Era necessário pensar a igreja como um lugar de formação política, mas
ao mesmo tempo defender uma forma de fazer política capaz de promover a
justiça, no sentido do Socialismo Cristão, tanto no sistema político quanto no
econômico.
A função da igreja seria ―preparar os seus líderes e os seus liderados para
um exercício responsável da cidadania, apoiando, particularmente, aqueles
vocacionados para o exercício da função pública‖.885 Com essa identidade, a
presença se daria na participação ―em partidos políticos, sindicatos e associações
profissionais‖, de acordo com o momento histórico, pois ―Algumas vezes a
conjuntura irá exigir a criação de um partido cristão ou um sindicato cristão; em
outras, a criação de setores cristãos nas organizações seculares‖.886 Seja em
organizações confessionais ou seculares, a participação deveria ser qualificada,
devendo o cristão:

manter sua identidade, evitando aqueles que defendem uma proposta


totalitária ou autoritária, ou que tenham entre seus associados, setores com
explícita opção pelos extremos, os que são comprometidos com a
manutenção de um estado de coisas injustas ou com soluções revolucionárias
violentas, mas se acercando dos que mais se identifiquem, pelo programa e
pela ação, com os postulados da Doutrina Social Cristã. 887

Entre 1978 e 1983, momento de abertura política no País e emergência de


diferentes projetos de sociedade, o MCDC propunha uma ação política dos
cristãos na construção de uma sociedade nova. Algumas opções deveriam ser
assumidas:

pela paz, contra a violência; pela liberdade, contra a opressão; pela justiça,
contra a exploração; pela solidariedade para com os oprimidos, contra o

884
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 252.
885
CAVALCANTI, Robinson.1985, p. 243.
886
Ibidem.
887
CAVALCANTI, Robinson. 1985, p. 249.
364

egoísmo da riqueza e do poder; pela esperança, contra o desespero; pelos


valores espirituais, contra o materialismo. 888

Aos ecos da síntese produzida por Robinson Cavalcanti e pelo MCDC irão
se somar a produção de outro intelectual do movimento de Missão Integral e de
outro movimento evangélico de formação política, respectivamente: Paul Freston
e o Movimento Evangélico Progressista (MEP). Paul Freston desenvolveu
pesquisas sobre a participação evangélica na política brasileira, escreveu livros e
artigos sobre a relação dos cristãos com o marxismo, as esquerdas e a participação
política. O livro Marxismo e fé cristã: o desafio mútuo foi uma obra coletiva
organizada por ele no ano da primeira eleição direta para Presidente da República
após duas décadas de Ditadura Militar (1989), disputada no segundo turno por um
candidato do Partido dos Trabalhadores, que fora constituído, entre outras forças
políticas, pelo Socialismo Cristão e a intelectualidade marxista. Depois de
mencionar ―o despreparo dos cristãos evangélicos no Brasil para o encontro com o
marxismo‖, comentou em seguida que:

Esse encontro necessariamente acontece para todos os evangélicos que


estudam as ciências sociais, a história, a filosofia, a economia, o serviço
social e outras áreas acadêmicas. Acontece também para todos que se
interessam e se envolvem em assuntos de ética social e em atividades
políticas. Esse encontro é dificultado, para os evangélicos, não só pela
ignorância do marxismo, mas pela sua ignorância da própria fé cristã, ou seja,
da cosmovisão bíblica, da antropologia bíblica, da visão cristã da história. 889

Também publicado em ano eleitoral, o livro Evangélicos na política


brasileira: história ambígua e desafio ético (1994), era um resumo da tese de
doutorado defendida em 1993, mas adaptado ao mercado editorial evangélico,
apresentando uma intervenção no campo político e religioso e já citando o MEP
como uma contribuição fundamental para qualificar a participação política
evangélica. Buscava equilibrar críticas à atuação da Bancada Evangélica com a
legitimação da participação dos evangélicos na política, posicionando-se diante
dos concorrentes religiosos – ecumênicos, católicos e fundamentalistas – e
políticos:

888
CARTA DE PRINCÍPIOS DO MCDC. In: CAVALCANTI, Robinson.1985, p. 255.
889
FRESTON, Paul. Marxismo e fé cristã: o desafio mútuo. São Paulo-SP, ABU, 1989, p 6.
365

Muitos fenômenos que acontecem hoje nas igrejas evangélicas sempre


aconteceram, mas fora do meio evangélico. Frente a esses fenômenos, é
necessário ser crítico, mas não se desesperar. Por um lado, devemos evitar
críticas elitistas; melhor o pluralismo ―aberrante‖ do que o monopólio
religioso estéril e sufocante. Ademais, devemos comparar as formas
populares de religião evangélica com as outras opções religiosas ao alcance
do pobre, e não com algum ideal somente acessível a outras classes ou
890
imaginado por sonhadores.[Grifo do autor]

Tentava situar os problemas éticos da inserção pentecostal na política,


denunciados pela imprensa, na prática corrente do sistema político, pois:―A classe
política evangélica se parece muito com a classe política em geral. Nossos
políticosnão são os grandes vilões da história, mas certamente também não são o
sal da terra e a resposta para o Brasil‖.891 A ausência de formação política dos
fiéis por parte das igrejas foi identificada como uma deficiência a ser superada
para enfrentar o desafio ético da participação:

O grande desafio hoje é o desafio ético. Não que os problemas éticos não
existissem antes, mas pelo menos não apareciam tanto. No momento de
chegar à visibilidade pública, as deficiências foram como que projetadas num
enorme telão. O problema ético reflete as fraquezas das próprias igrejas. Os
escândalos não são basicamente individuais. São deficiências de ensino e de
892
modelos de liderança.

Paul Freston não via com maus olhos o crescimento pentecostal nem a sua
representatividade no campo político. Para ele, o fenômeno era uma expressão do
alargamento do campo democrático, com a inclusão de novos atores políticos, e
de diversificação do campo religioso,atendendo a demandas que as demais ofertas
religiosas não assimilavam nem davam conta. Porém, uma crítica especial foi
direcionada ao projeto, alimentado sobretudo entre pentecostais, de eleger um
presidente evangélico, usando como advertência o exemplo de países como o Peru
e a Guatemala. A crítica também se dirigia às concepções religiosas que
embasavam esse projeto de poder, como a Teologia da Prosperidade (TP).

890
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 14.
891
FRESTON, Paul. 1994, p. 137.
892
Ibidem.
366

O primeiro presidente evangélico eleito num país latino-americano, José


Serrano, da Guatemala, adepto das correntes que discutimos aqui,
caracterizou-se na presidência pelo amor à pompa e às mordomias. Um
presidente evangélico eleito pela TP terá pouco fôlego ético para resistir às
893
tentações de enriquecimento pessoal e desfrute de regalias.

Sabendo que a identidade evangélica era muito condicionada pelo


anticatolicismo, comparava o projeto de poder pentecostal, baseado na Teologia
da Prosperidade, com a Igreja Católica medieval,convocando os evangélicos a
outra perspectiva política: “nossa preocupação tem de ser com a promoção do
Evangelho e não com a promoção dos evangélicos. A confusão entre instituição
eclesiástica e Reino de Deus, típica da igreja medieval, se repete entre nós‖.894 As
analogias bíblicas também não faltaram, incluindo a identificação dos evangélicos
com a nação de Israel, ―o povo de Deus‖, feita, porém, para criticar o triunfalismo
da posse do poder: ―Se a atuação dos evangélicos na política não for
qualitativamente diferente da cultura política, então a demanda por uma
representação evangélica não será diferente da demanda de Israel por um rei –
para ser igual aos pagãos‖.895O desafio ético, portanto, era aprender com erros
recentes dos evangélicos no Brasil e no continente para criar uma nova cultura
política. Mais do que as outras agendas formuladas para o protestantismo, Paul
Freston incluía os pentecostais nesse processo de mudança:

É preciso um processo longo de mudança da cultura política evangélica,


através do ensino da ética bíblico-política e o incentivo a que evangélicos
realmente vocacionados entrem na política, dando-lhes o apoio teológico e
pastoral necessário. Penso aqui especialmente nos pentecostais. O surgimento
de uma grande comunidade pentecostal trouxe muitos benefícios, mas a
entrada da cúpula pentecostal na política não. Há, porém, outra possibilidade:
a entrada de pentecostais comuns na política, com sua fé e seus valores, sem
preocupações institucionais. Fica o desafio aos pastores pentecostais de
incentivar isso. Afinal, a solução para problemas políticos é sempre política.
A solução para a má política é a boa política, e para a má espiritualidade é a
896
boa espiritualidade.

893
FRESTON, Paul. 1994, p. 140.
894
FRESTON, Paul, 1994.p. 141-142.
895
FRESTON, Paul, 1994, p. 142.
896
FRESTON, Paul, 1994, p. 147.
367

Ao abordar o movimento pentecostal, os teólogos da Missão Integral se


distanciaram das críticas ao pentecostalismo como uma nova estratégia do
imperialismo, uma patologia social (consequência das desigualdades) ou, quando
muito, uma religiosidade ingênua, geradora de alienação política e desmobilização
popular. O Boletim Teológico da FTL sintetizou em uma das edições o
entendimento que o movimento de Missão Integral tinha do pentecostalismo:

O crescimento do pentecostalismo nos grandes centros urbanos da América


Latina e o avanço do movimento carismático entre protestantes e católicos
impõe muitas perguntas novas. Como está o Espírito soprando hoje? As
categorias teológicas tradicionais são suficientes para discernir estes tempos?
No que concerne a isso, as Teologias da Libertação aplicam seu conceito das
origens sociais da religião e o modo em que a religião, como força social,
pode ser manipulada com finalidades políticas. O mesmo é válido para a
religiosidade popular. Mas para nós, evangélicos, um conjunto totalmente
897
novo de perguntas se abre.

O movimento de Missão Integral se posicionou frente ao pentecostalismo


em três perspectivas: teológica, sociológica e política. No primeiro caso,
criticando crenças consideradas alienantes, fundamentalistas e negadoras da
concepção ―integral‖ da missão da igreja. No segundo, valorizando o
pentecostalismo como uma experiência popular da identidade evangélica,
formadora de lideranças nos grupos subalternos e com muito poder de
organização autônoma, sem tutela do Estado ou forças institucionalizadas. No
terceiro, propondo uma agenda social para o pentecostalismo que aproveitasse
suas potencialidades sociológicas para uma ação transformadora ao invés de
corporativista e voltada para o domínio evangélico. As expectativas do
movimento de Missão Integral de que o pentecostalismo pudesse cumprir este
papel duraram apenas até as eleições de 1994.

A cartilha do Movimento Evangélico Progressista (MEP) era uma


condensação das ideias de Robinson Cavalcanti e Paul Freston, com alguns
trechos extraídos tanto dos livros quanto de artigos da revistaUltimato ou do
Boletim Teológicoda FTL, acrescidas da contribuição de outros autores a cada

897
BOLETIM TEOLÓGICO FTL-B, São Leopoldo, 2 (5): 1985, p. 46.
368

nova edição.898O texto de apresentação da entidade na cartilha era permanente e


definia o significado de cada palavra da sigla:

Movimento, porque é uma associação informal e suprapartidária. O MEP não


é vinculado a partido político, não é subordinado a nenhuma organização
religiosa e não se filia a nenhuma corrente ideológica.

Evangélico, porque é conservador e ortodoxo na teologia, afirmando a


autoridade bíblica e a importância da evangelização, conversão e oração. O
MEP busca os princípios de Deus, na Bíblia, para nortear as suas ações e
ajudar a cada cristão a ser de fato luz, neste mundo, e sal, nesta terra.

Progressista, porque é comprometido com mudanças sociais. O MEP


trabalha pela justiça em defesa dos mais carentes, pela integridade cristã e
pelo rigor ético. Admitimos que esse trabalho, exige de nós um esforço de
transformação, que nos afasta de alguns grupos e nos aproxima de outros.
Também nos leva a confrontar os políticos que se dizem evangélicos, mas
votam contra a vontade de Deus, prejudicando toda a sociedade por razões
quaisquer.899

Dos livros de Robinson Cavalcanti, a cartilha do MEP extraía a crítica ao


absenteísmo político, a negação do sujeito apolítico e a classificação dos
posicionamentos em: a) engajados, b) conscientizados, c) omissos, d) alienados.
No último tipoestariam apenas aqueles que ―não têm capacidade para tomar
consciência dos problemas relacionados à vida pública‖, como exemplo ―os
doentes mentais que de fato não são alienados, nem omissos, pela falta de
condições mentais para posicionarem-se politicamente‖.900 Dos livros de Paul
Freston, a cartilha compartilhava a crítica aos erros evangélicos na política que
poderiam prejudicar a missão religiosa das igrejas, pois:

Se nós, os evangélicos, não abrirmos os olhos, seremos um dos segmentos


mais moralmente desprezíveis da sociedade. Há uma desmoralização dos
evangélicos em geral. É preciso fazer um ―protesto profético‖ contra a
corrupção evangélica! Exercitemos uma ―cidadania evangélica‖, isto é,
sejamos responsáveis pelo que acontece em nosso meio. Não podemos nos
omitir quando os implicados forem de denominação diferente da nossa
(somos todos conhecidos como evangélicos). Também não devemos dizer
que ―a nossa igreja local continua igual, e o que os ‗chefões‘ fazem lá em

898
Na edição de 2010, constava na ―Bibliografia Geral‖ os livros de Robinson Cavalcanti,
Cristianismo e política (1985) e A utopia possível: em busca de um cristianismo integral (1994), e
de Paul Freston, Fé bíblica e realidade brasileira (1992) e Evangélicos na política brasileira
(1994).
899
CARTILHA DO MEP, 2010, p. 4.
900
CARTILHA DO MEP, 2010, p. 9. Este texto também se encontra em Cristianismo e política.
369

cima não nos afetará‖. A médio prazo, a desmoralização dos evangélicos


afetará a receptividade à nossa mensagem e prejudicará os esforços para
manter nossos filhos na igreja.901

A cartilha fazia seis recomendações práticas para a realização desse


―protesto profético‖ contra os ―políticos de Cristo‖:

a) escrever cartas a revistas evangélicas, repudiando o comportamento deles


e dos líderes eclesiásticos que os apoiam;

b) manifestar-se junto aos órgãos representativos do povo evangélico,


envolvidos ou não em escândalos;

c) pedir aos seus líderes denominacionais que se manifestem;

d) protestar junto às cúpulas responsáveis pela (re)eleição dos corruptos


(mesmo que sejam de outra denominação), pois elas também são culpadas e
prejudicam toda a comunidade evangélica;

e) se você pertence a uma denominação envolvida, exigir uma troca de


líderes e mudança de estrutura eclesiástica;

f) escrever à imprensa secular, deixando claro que há um movimento de


bases evangélicas que se envergonha do que acontece. 902

A cartilha também fazia recomendações às igrejas para o cumprimento das


suas responsabilidades públicas, que seriam a) intercessória, b) profética, c)
didática. As igrejas deveriam, respectivamente: orar pelo País, seu povo e suas
autoridades; criticar a corrupção religiosa e secular; ―posicionar-se diante de
idéias e ações que contrariem a vontade de Deus‖; educar os fiéis para a vida
pública, ―preparar os seus líderes e os seus liderados para um exercício
responsável da cidadania‖ e apoiar ―aqueles vocacionados para o exercício da
função política, em sindicatos, em associações de moradores e associações
profissionais‖.903Essas recomendações eram herdeiras das preocupações do
MCDC e do livro Cristianismo e política com a ―presença‖ e a ―identidade‖
evangélica na política. Quanto à presença, negava-se o corporativismo dos
―políticos de Cristo‖ e do ―irmão vota em irmão‖, rejeitando o modelo do

901
CARTILHA DO MEP, 2010, p. 22. Este texto também se encontra em Evangélicos na Política
Brasileira.
902
CARTILHA DO MEP, 2010, p. 22-23.
903
CARTILHA DO MEP, 2010, p. 16.
370

―candidato oficial da igreja‖, assim como a manifestação de preferência da igreja


a determinada candidatura ou grupo político. Ao contrário:

A igreja deve sempre se esforçar para evitar tomar posições político-


partidárias, porque cristãos que pensam soluções diferentes para os
problemas sociais e políticos podem – e devem – adorar juntos. Uma tomada
de posição partidária causa divisão e termina por afastar uma parcela dos
membros.904

Em relação à identidade, havia a preocupação com uma atuação muito


autônoma do político evangélico em relação às igrejas ou o abandono das
demandas evangélicas pelos políticos eleitos com o apoio do segmento religioso.
Dessa forma, advertia-se que:

Se por um lado a igreja deve evitar posições partidárias como instituição, por
outro, devemos reconhecer que a ação isolada de um membro não tem muito
significado. Uma presença organizada dos cristãos deve ser feita em
conjunto, pela criação de grupos e movimentos. Essa ação deve ser feita entre
irmãos para preservar uma identidade, e provocando não só uma Reflexão
como também uma Ação política consequente.[grifo nosso]905

A circulação dos textos de Robinson Cavalcanti e Paul Freston nas


publicações evangélicas, principalmente a revista Ultimato, bem como a
participação desses intelectuais junto a universitários cristãos, conferiu aos
mesmos um importante protagonismonas aproximações entre segmentos
evangélicos teologicamente conservadores com partidos e movimentos políticos
―progressistas‖, definidos pelo MEP como aqueles que compreendiam ―o
desenvolvimento de nosso país como um processo (que não é rápido) que
combina crescimento econômico, igualdade social, liberdade política e equilíbrio
ecológico.‖906 O modo como essas aproximações ocorreram entre as eleições de
1989 e 1994 definiram uma direita e uma esquerda evangélica.

904
Ibidem.
905
Ibidem.
906
COLUNAS DO MEP, Ultimato, 1994, p. 131.
371

Eleições presidenciais: os evangélicos à direita e à esquerda

A seção de cartas dos leitores da revista Ultimato é um bom indício das


disputas internas que delineavam uma ―direita‖ e uma ―esquerda‖ evangélica,
especialmente em resposta aos artigos sobre temas políticos escritos por Robinson
Cavalcanti e Paul Freston. Como exemplo, duas respostas diferentes a um artigo
publicado após as eleições de 1989 intitulado Com medo de ser feliz: a vitória da
ignorância, do egoísmo e da mentira:

Desta vez o pastor Robinson Cavalcanti, com toda sua ciência e letras, foi,
nem podemos dizer longe demais e sim baixo demais. Porque agora, além
de seu poder de isentar pecados, ele se manifesta poderoso para conferir a
Lula o dom de nos fazer felizes. Pior é que agora ele vai ser muito infeliz
porque venceu Collor. Pior mesmo, porque ele, um ministro de Deus,
condiciona a sua felicidade (e a nossa) a este ou aquele governante político.
Robinson mostra-se mais preocupado com questões políticas e teorias
humanas do que com Deus. Deveria receber salário não da igreja, mas do
PT, pelo qual tanto milita.
Gláucia M. Mota P. Ribeiro. Passa Quatro, MG.
Robinson Cavalcanti não ―colloriu‖. Ainda bem que ele teve coragem.
Afinal, não é muito fácil, em um meio onde é ―pecado‖ votar na ―esquerda‖
e ―divino‖ votar no atual sistema. Mas a seção de cartas do Ultimato de
fevereiro veio ―collorida‖ em sua maior parte. Isso em resposta ao artigo Os
evangélicos e a sucessão presidencial. […] É imprudente dizer que
comunismo não é de Deus e afirmar que o capitalismo crê em Deus. E vice-
versa. Se o Brasil é mais crente que a União Soviética, onde estão os
resultados? Onde estão as obras de fé brasileiras e de seus governantes?
Não seria a hora de admitirmos que o Brasil teme a Deus coisíssima
nenhuma?
Pastor Neemias Pontes. Teresópolis, RJ.

No artigoOs evangélicos e a sucessão presidencial escrito no primeiro turno


das eleições presidenciais, Robinson Cavalcanti recomendava aos evangélicos
votarem em candidatos que não tivessem apoiado o governo dos militares durante
a ditadura nem trabalhado para esses governos, recomendando o voto para as
candidaturas ―limpas‖ naquele pleito: Lula, Brizola, Covas, Ulysses, Freire. Daí o
comentário da leitora sobre o poder de Robinson Cavalcanti ―isentar de pecado‖,
referindo-se ao critério do articulista para recomendar o voto. Já o artigo
Com medo de ser feliz: a vitória da ignorância, do egoísmo e da mentira fazia
referência ao slogan ―Sem medo de ser feliz‖ da candidatura de Lula, derrotada na
eleição. O autor atribuía ignorância, egoísmo e mentira à campanha deFernando
Collor (1949-) e o medo ao voto evangélico que contribuiu para sua vitória, o que
teria ocorrido menos por divergências programáticas e mais por temores sociais e
372

religiosos, relativos à liberdade religiosa, ao anticomunismo e aos temas da


sexualidade e dos direitos reprodutivos. A resposta da leitora, sugerindo que ele
recebesse dinheiro do PT e não da igreja, pois era um militante do partido e não
da fé, correspondia à filiação partidária do Bispo anglicano, pois no final da
década de 1980, Robinson Cavalcanti ―Liderou o Movimento Evangélico Pró-
Lula, integrou os ―notáveis‖ da transição da Frente Brasil Popular, e entrou no
PT‖.907Explicando a opção de trocar o PMDB pelo PT, Robinson Cavalcanti
escreveu:

O papel da frente ampla do PMDB se esgotou. Agora é o momento para


propostas e programas de reorganização nacional, de opções pela justiça e de
oposição ao desastre neoliberal conservador. Por isso o pastor, professor
universitário e militante político se prepara para mudar de carteira, para o
Partido dos Trabalhadores.908

Paul Freston, que fez parte do comitê inter-religioso da campanha de Lula


em 1989, juntamente com Robinson Cavalcanti, ressaltou os fundamentos dos
temores evangélicos à candidatura petista:

Existia, portanto, um grau de manipulação consciente nos boatos de


perseguição religiosa. Mas é verdade que também havia um receio genuíno
por parte de muitos. A candidatura de Lula parecia uma aliança católico-
comunista, devido à presença das Comunidades Eclesiais de Base. As
acusações de que o crescimento evangélico constitui uma invasão de seitas
financiadas pelos Estados Unidos geralmente vêm de dois lugares: da
esquerda secular e da Igreja Católica. Não é de admirar que uma suposta
aliança deles parecesse ameaçadora a muitos pentecostais. 909
Os temores sobre a liberdade religiosa não eram totalmente infundados, do
ponto de vista evangélico, pois como observou Ziel Machado:

Apesar de nenhum governo socialista eleito democraticamente ter perseguido


a religião, este temor não deve ser desconsiderado, pois a crítica de que a
expansão evangélica é uma ameaça à brasilidade e de que se tratava de uma
invasão de seitas tuteladas pelos Estados Unidos da América, foi lugar
comum tanto no catolicismo como nos partidos de esquerda.910

907
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Unicamp, Capinas, 1993, p. 276.
908
Texto apresentado na consulta Teologia e Vida, alusiva aos 20 anos da FTL, realizada em
Quito, Equador, em dezembro de 1990. Publicado no Boletim Teológico, 5 (4), mar, 1991 p.33.
909
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 92.
910
MACHADO, Ziel. Sim a Deus, Sim à Vida: evangélicos redescobrem sua cidadania. Rio de
Janeiro: Novos Diálogos, 2011, p. 67.
373

Diferentes segmentos sociais estavam sendo mobilizados pelas campanhas e


isso deu origem a comitês evangélicos em prol das candidaturas dos
presidenciáveis. Antes do primeiro turno, Iris Resende (1933-)era um forte
candidato nas igrejas, apontado por lideranças do segmento religioso como a
possibilidade de eleger um presidente evangélico para o país. Ministro da
Agricultura do governo Sarney desde 1986, sua fé era considerada pelos crentes
como a causa dos bons resultados na produção agropecuária. Membro da Igreja
Cristã Presbiteriana, mas com vínculos familiares com as igrejas renovadas e
carismáticas, foi eleito governador de Goiás, o primeiro protestante a ser eleito
por voto popular ao cargo de governador. Sua candidatura era dada como certa,
contava com o apoio das principais denominações pentecostais e tinha poucas
restrições nas igrejas do protestantismo histórico.
Josué Sylvestre comparou Iris Resende a José, responsável por armazenar os
alimentos de épocas fartas para abastecer as épocas de carência e fome no
Egito.911 A razão disso estava nas safras recordes e sucessivas, comemoradas pelo
ministro com cultos de ação de graças, na presença do Presidente da República e
de lideranças evangélicas. Nas palavras do autor de Irmão vota em irmão, isso
acontecia porque Iris Resende ―não se envergonha do Evangelho‖. 912 Formou-se
um movimento evangélico em defesa da sua candidatura, mas esta precisava ser
aprovada pelo PMDB. A escolha do partido não recaiu sobre Iris, mas sobre
Ulysses Guimarães (1916-1992). Frustrada a primeira opção, os evangélicos pró-
Iris teriam que escolher entre opções não evangélicas.
No primeiro turno das eleições se destacaram movimentos evangélicos a
favor das candidaturas de Fernando Collor, Lula e Brizola. Outros candidatos
receberam apoio, mas não contaram com a criação de comitês ou estratégias
eficientes de divulgação da campanha entre os evangélicos. A Igreja Universal do
Reino de Deus foi a denominação que mais se destacou na oposição à candidatura
de Lula, tanto através do periódico impresso Folha Universal, quanto nos
programas da emissora de televisão adquirida em 1989, a Rede Record. O Bispo

911
De acordo com a narrativa bíblica de Gêneses 41, José interpretou os sonhos do Faraó em que
apareciam vacas gordas e magras como o prenúncio de que haveria uma época de fartura, seguida
de uma época de carência, cabendo a ação providente de armazenar no tempo das vacas gordas
para abastecer o tempo das vacas magras.
912
SYLVESTRE, Josué. Os evangélicos e as eleições municipais. Brasília, Pergaminho,1988, p.
70.
374

Edir Macedo (1945-) legitimou a candidatura de Fernando Collor no segundo


turno apelando para a revelação: ―Após orar e pedir a Deus que indicasse uma
pessoa, o Espírito Santo nos convenceu de que Fernando Collor de Mello era o
escolhido‖.913O candidato petista foi chamado de ―Diabo barbudo‖, associando às
―forças do mal‖ e ao ―comunismo ateu‖. De acordo com Adriana Martins Santos:

Nas eleições de 1989, Luís Inácio da Silva foi acusado pela Igreja Universal
do Reino Deus, ora de ser um representante dos interesses católicos (mais
especificamente, dos grupos ligados à Teologia da Libertação) ou de ser um
ateu convicto que ao chegar ao poder acabaria com as igrejas no Brasil.914

A IURD não estava sozinha. A Igreja do Evangelho Quadrangular orientou


seus fiéis no primeiro turno a não votaram nos candidatos de esquerda, elencando
entre esses: Roberto Freire (1945-) PCB), Lula (PT), Brizola (PDT) e Mário
Covas (1930-2001) PSDB). Os candidatos se movimentavam para conseguir a
adesão dos evangélicos. O jornal Folha de São Paulo noticiou:

Reunido com um grupo de pastores, Collor ouviu de um deles, Maurício


Silva, que os evangélicos do Brasil (cerca de 30 milhões, segundo Maurício)
"temiam a vitória nas eleições da esquerda terrorista, como aconteceu em São
Paulo", com a eleição de Luiza Erundina. "Deus nos livre do comunismo
mais uma vez", comandou Doriel de Oliveira, diante dedois mil crentes de
mãos erguidas.915

Enquanto a Igreja Católica hesitava em emitir um posicionamento que


sugerisse apoio a alguma candidatura,916 os evangélicos se movimentavam com
desenvoltura no cenário eleitoral e punham em movimento os comitês de
campanha dos candidatos.917Ulysses Guimarães se reuniu com pastores da
Assembleia de Deus em São Paulo, enquanto Roberto Freire e os dirigentes mais
próximos da campanha faziam questão de negar o ateísmo do PCB: ―Em São
Paulo, vários líderes das Assembleias de Deus são ligados ao PCB.‗Mais de 90%

913
JORNAL DO BRASIL, 03/12/1989.
914
SANTOS, Adriana Martins. A construção do Reino: a Igreja Universal e as instituições
políticas soteropolitanas (1980-2002). Dissertação (Mestrado em História Social) – UFBA,
Salvador, 2009, p. 152.
915
FOLHA DE SÃO PAULO, 21/7/89.
916
O DIA. 21/7/89. CNBB quer evitar apoio oficial da igreja ao PT. 18/7/89.
917
ACONTECEU NO MUNDO EVANGÉLICO. Candidatos buscam apoio de evangélicos. nº 76,
maio/junho 1989, p. 7.
375

da militância é religiosa.A figura típica do materialistaestá em desuso‘, afirma um


dirigente do partido‖.918
Em contrapartida, o Colégio Episcopal da Igreja Metodista, órgão máximo
da denominação, emitiu um pronunciamento oficial sobre as eleições no qual
comparou os projetos políticos em disputa, dividindo-os em dois grupos. O
primeiro, constituído por candidatos neoliberais que ―representam os interesses
empresariais locais e estrangeiros, defendem a não interferência do governo
federal na vida econômica, a abertura da economia ao capital externo, combatendo
por outro lado medidas governamentais de cunho social, exceto em áreas
restritas‖. O segundo grupo seria ―Expresso por candidatos que representam os
interesses dos assalariados e dos setores marginalizados economicamente na
sociedade‖, candidaturas que: ―defendem reformas administrativas que incluem
uma efetiva moralização da coisa pública, apoiam políticas redistributivas como a
reforma fundiária no campo e políticas sociais governamentais mais abrangentes‖.
Além do posicionamento nas eleições, os Bispos sugeriram que ―metodistas
ingressem também nos partidos identificados com as causas populares e que
atuem conscientemente em seu interior‖.919 Nenhuma denominação emitiu
pronunciamento similar aos metodistas, apesar da ―corrida de pronunciamentos‖
nas entidades religiosas, sinal da mobilização da sociedade naquela que era a
primeira campanha eleitoral para presidente após 25 anos do golpe de 1964.
A música da campanha de Lula conclamava os eleitores a votarem ―Sem
medo de ser feliz‖ e afirmava a importância de dar ―meu primeiro voto pra fazer,
brilhar nossa estrela‖, certamente um apelo ao voto do eleitorado jovem. No
mesmo caminho, o movimento ecumênico incentivava a participação no processo
eleitoral como um momento importante de retomada das liberdades democráticas
e da cultura política participativa, como noticiou o jornal evangélico do CEDI:

O recente Encontro de Lideranças Femininas Evangélicas realizado em São


Paulo reconheceu que se torna urgente promover um processo de tomada de
consciência entre a juventude das igrejas para que se capacitem para o
exercício do voto, especialmente os adolescentes maiores de 16 anos,
conforme as novas disposições constitucionais.

918
ACONTECEU NO MUNDO EVANGÉLICO. Ulysses reúne-se com pastores da Assembleia
de Deus; Partido Comunista Brasileiro não é rejeitado pela igreja, nº. 78, agosto de 1989, p. 10.
919
ACONTECEU NO MUNDO EVANGÉLICO. Igreja Metodista se posiciona sobre as eleições.
n.º 80, outubro de 1989, p. 10.
376

Como primeiro passo deste processo, o Grupo Ecumênico de Mulheres


redigiu um texto-convite como sugestão aigrejas, no sentido de estimular
seus jovens a se envolverem nesse processo eleitoral. O texto traz os
seguintes dizeres: ―Jovem, é chegada a hora! As eleições presidenciais se
aproximam. Se você tem 16 anos, poderá votar pela primeira vez. E para
presidente! Você já tem seu Título Eleitoral? O prazo final para providenciá-
lo é 6 de agosto. Mexa-se. Vá ao Cartório Eleitoral levando a Cédula de
Identidade ou a Certidão de nascimento. Dê um ‗toque‘ para a sua turma.
920
Afinal ‗quem sabe faz a hora, não espera acontecer‘.‖

No primeiro turno, as pesquisas entre lideranças evangélicas,


majoritariamente pentecostais, apontavam a vantagem dos candidatos de centro e
direita.921A principal iniciativa do Protestantismo Ecumênico na eleição de 1989
foi a Consulta sobre a Dívida Externa convocada pela rede CONIC, CESE e
CEDI, com a presença de teólogos e teólogas da libertação e os presidenciáveis
Lula, Brizola e Mário Covas. Celso Lessa representou o Ulysses Guimarães,
também convidado, mas ausente ao evento.

Imagem 7 – Consulta Dívida Externa e Igrejas

920
ACONTECEU NO MUNDO EVANGÉLICO. Despertando os jovens para o exercício do voto.
n.º 77, julho de 1989, p. 4.
921
ACONTECEU NO MUNDO EVANGÉLICO. Voto evangélico tende a favorecer candidatos
de centro. n.º 77, julho de 1989, p. 3.
377

Entre os presidenciáveis, Lula defendeu a suspensão da dívida e a utilização


do dinheiro em políticas públicas, Brizola defendeu a auditoria e uma articulação
internacional que expusesse a dependência causada pelo endividamento dos países
pobres às grandes potências, enquanto Mário Covas propôs a compra de títulos da
dívida por um mecanismo internacional que reduzisse os custos do
endividamento, uma securitização da dívida. A dissidência parlamentar evangélica
– Lysâneas Maciel, Benedita da Silva e Celso Dourado – discutiu a dívida em
função da Constituição, aprovada um ano antes. Entre os teólogos, se
pronunciaram Milton Schwantes, Hugo Assmann (1933-2008), Walter Altmann
(1941-) e Zwinglio Mota Dias, além da provocação inicial feita por Franz
Hinkelammert (1931-):

Elemento marcante na consulta foram as reflexões teológicas, coordenadas


pelo teólogo e economista Franz Hinkelammert. Destacou a importância de
se desvelar dos projetos econômicos, os elementos de sua legitimação
teológica. Mostrou como na concepção burguesa as leis do mercado são
apresentadas como leis da História e os sacrifícios de suas vítimas como
necessidades históricas. Essa mistificação exige dos cristãos uma posição
frente às vítimas. A não necessidade de sacrificar vítimas, segundo
Hinkelammert, deve ser o critério de verdade de qualquer teoria.922

A Consulta produziu o documento: Somos co-responsáveis pelos destinos


da nação e o CEDI editou no mesmo ano um livro sobre o tema, com a posição de

922
TEMPO E PRESENÇA. Igrejas e dívida externa. Maio de 1989, p. 24.
378

vários teólogos e teólogas, entidades ecumênicas, igrejas e fóruns internacionais


sobre a dívida externa.923No segundo turno, o deputado estadual pelo PTB de São
Paulo e pastor da Quadrangular, Daniel Marins, enviou cerca de dois milhões de
cópias de uma carta intitulada ―10 razões para não votarmos em Lula‖,
adjetivando o candidato petista de ―esquerdista radical‖, propenso ou
condescendente com as propostas de luta armada e cerceador da liberdade
religiosa. Recomendava o voto em Collor, alegando que se tratava de ―um homem
culto, honrado, patriota, estadista e de princípios cristãos‖.924A Assembleia de
Deus também se movimentou, como confessou em 1992 o então presidente da
Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, José Wellington (1934-):

Não podemos negar, quem elegeu Collor foram os evangélicos. A vitória dele
veio da Assembleia de Deus. Se ele reconhece ou deixa de reconhecer, eu
nunca disse isso pra ele, jamais vou cobrar isso dele, porque eu fiz de livre e
espontânea vontade. Quando nós vimos que o Lula ia ganhar, e ia mesmo,
então a Assembleia de Deus se movimentou no Brasil inteiro. Onde eu não
pude ir pessoalmente, fiz por telefone, liguei para o Brasil inteiro dizendo, ―a
situação é essa, assim, assim‖.925

O pastor Manoel Ferreira (1932-), de outra corrente da Assembleia de Deus


(Ministério Madureira), também criticou a candidatura de Lula, evidenciando
mais uma vez o anticomunismo como elemento mobilizador da oposição
evangélica:

O programa de Lula é doido, calcado na Albânia. É um programa


stalinista. A Albânia é um país que não permite nem a presença de
cristãos, quanto mais de cristianismo. O programa de Lula é
totalmente inviável e vai jogar o país no comunismo.926

O comunismo despertava vários medos sociais e era concebido menos como


―modo de produção‖ da economia e mais como ―modo de gestão‖ do Estado por
um partido de esquerda. Os governos comunistas ao longo da história eram
citados como exemplos de regimes restritivos às liberdades individuais e
associados ao totalitarismo.Esta cartografia dos medos sociais desenhada pelo

923
CEDI. Dívida externa e igrejas: uma visão ecumênica, 1989. Da teologia protestante da
libertação, o livro contém textos de Elsa Tamez, Julio de Santa Ana e Hugo Assmann. Das redes
do Protestantismo Ecumênico, contém declarações do CMI, CESE e CONIC.
924
JORNAL DO BRASIL, 03/12/1989.
925
Apud PIERUCCI, Antonio Flavio. A realidade social das religiões no Brasil: religião,
sociedade e política. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 101.
926
ESTADO DE MINAS, 10/12/1989.
379

discurso anticomunista apareceu na representação construída sobre Lula e o PT.


Criticando a campanha de Collor, Paulo César Coutinho, membro da equipe de
campanha de Lula, escreveu no Jornal do Brasil:

Fugindo da discussão política dos programas partidários, Collor empreende


na mídia uma guerra ideológica de baixo nível, visando instaurar o pânico do
terrorismo eletrônico. Quer impor ao candidato popular o rótulo de violência
que ele, Collor, exerce. É a carcomida propaganda anticomunista, nesta era
de abertura internacional. Enquanto Gorbachev visita o Papa, anuncia com
Bush a Nova Era e o Leste Europeu promove eleições livres, Hitler renasce
no Brasil! Lançam panfletos falsos em Brasília pregando a luta armada e
assinam Juventude Petista. É o cheque falso ideológico. Dizendo-se do PT,
927
vistoriam casas de classe média, falando em desapropriações.

No discurso religioso, o ateísmo era um componente identificador do


comunismo e do ideário de esquerda.A acusação de ateísmo estava imbuída de
concepções moralistas sobre a descrença. Um ateu não era apenas um não
religioso, mas um inimigo da religião, alguém que não estava sob a autoridade de
Deus e, portanto, não era confiável eticamente, o que foi contestado por Paulo
César Coutinho: ―Chamam-nos de ateus, como se isso fosse crime. (Como disse
Dom Hélder Câmara sobre Roberto Freire: ‗há religiosos indignos e ateus da
maior dignidade‘)‖.928
Os temores evangélicos, principalmente pentecostais, não se baseavam
apenas em representações anticomunistas de longa duração ou suspeitas plausíveis
aos governos de esquerda, mas também em interesses que poderiam ser
prejudicados com as mudanças no modo de gerir o Estado prometidas pelo
candidato petista. Interesses não apenas religiosos, como a total e irrestrita
garantia de liberdade religiosa, mas também relativos às concessões de rádio e
televisão, que foram negociadas pela Bancada Evangélica durante a Constituinte e
estavam em negociação naquela eleição, como ficaria evidente desde o início do
governo eleito. A subcomissão mais povoada de constituintes evangélicos foi a de
Ciência, Tecnologia e Comunicação, conforme tabela 5 (ver anexo). O jornal
Contexto Pastoral denunciou as barganhas dos ―políticos de Cristo‖ por emissoras

927
JORNAL DO BRASIL. 11/11/1989, p. 2.
928
JORNAL DO BRASIL. 11/11/1989, p. 2.
380

de rádio e TV. Em 1995, publicou duas matérias de capa: TV Templo: mídia e


proselitismo religioso e O lobby da fé.929
A defesa da liberdade religiosa cobria uma gama variada de motivações e
interesses evangélicos, desde a evangelização de povos tradicionais (com direito à
difusão da Bíblia nas línguas indígenas) até o acesso aos meios de comunicação,
passando por isenções fiscais e reconhecimento de utilidade pública para igrejas e
instituições evangélicas. Temia-se que um governo de esquerda restringisse o
alcance das atividades religiosas e também promovesse valores contrários à
moralidade conservadora das igrejas.
A defesa da ―moral e dos bons costumes‖, que representou um dos discursos
legitimadores da ditadura, se apresentavacomo intrínseca à liberdade religiosa,
assim como a relação entre subversão comunista e dissolução moral foi uma das
associações do imaginário anticomunista que serviu para unificar diferentes
medos sociais mesmo após o fim do regime.930Os boatos nas igrejas contra
Lulanas eleições de 1989 foram mencionados na cobertura da imprensa. O Jornal
do Brasil publicou uma nota que informava a preocupação do PT em contestá-los.
A desconstrução da campanha negativa passava pela valorização da candidatura
de Benedita da Silva, evangélica e pentecostal da Assembleia de Deus:

―Estão espalhando por aí que vamos acabar com as igrejas dos crentes, mas
todos precisam saber que nós sempre defendemos a liberdade religiosa‖,
argumentava Lula. O que poderia parecer uma explicação fora de propósito,
ganhava sentido quando se conhecia a sua origem. Sindicalistas da região
relataram a Lula, alarmados, que começava a correr na região a notícia de que
o candidato do PT, assim que tomasse posse, acabaria com os cultos
protestantes no país. A preocupação é tão grande que os petistas planejam
colocar a deputada Benedita da Silva, que é evangélica, dando essa
explicação no horário eleitoral gratuito. 931

O nome de Benedita foi recorrentemente utilizado como estratégia de defesa


dos boatos, como no artigo de Paulo César Coutinho criticando a campanha de
Collor no mesmo jornal: ―Assustam os evangélicos, anunciando que vamos fechar
seus templos! Nossa deputada federal e militante negra, Benedita da Silva, ficaria

929
CONTEXTO PASTORAL. TV Templo: mídia e proselitismo religioso. setembro/outubro de
1995, nº 25 e CONTEXTO PASTORAL. O lobby da fé, novembro/dezembro de 1995, nº 29.
930
Sobre as associações entre comunismo e dissolução moral durante a ditadura e a abertura
política, pode-se consultar: COWAN, Benjamim. Homossexualidade, ideologia e ―subversão‖ no
Regime Militar. In. GREEN, James N.; QUINALHA, Renan. Ditadura e homossexualidade:
repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EDUFSCAR, 2014.
931
JORNAL DO BRASIL. 24/11/1989, p. 4.
381

sem ter onde rezar‖.932Porém, descontruir boatos durante uma campanha eleitoral
não era tarefa para apenas uma pessoa, nem era suficiente para legitimar a
candidatura petista ou fazer frente às demais alternativas eleitorais. Foram criados
18 comitês evangélicos pró-Lula, a maioria deles organizados por evangélicos do
protestantismo histórico, associados ao ecumenismo, à Teologia da Libertação ou
à Missão Integral, embora houvesse apoios desvinculados de referências
teológicas, doutrinárias ou eclesiais. Com exceção do Rio de Janeiro, a adesão
pentecostal à campanha petista foi incipiente. No cenário carioca, o PT contou
com os setores populares evangélicos que apoiaram Brizola no primeiro turno.
Um dos apoiadores pentecostais de Lula no Rio de Janeiro foi o pastor da
Assembleia de Deus Silas Malafaia (1958-), que ―criticou aqueles que usavam de
boatos de que Lula era marxista e iria acabar com as igrejas‖.933Foi lançado um
―Manifesto de evangélicos em apoio à candidatura da Frente Brasil Popular‖,
publicado pelo jornal Aconteceu no mundo evangélico:

Estamos convencidos de que somente uma candidatura realmente popular,


respaldada por uma frente tão ampla de grupos e movimentos populares e
apoiada por expressões de todos os segmentos sociais, incluindo grandes
setores das igrejas cristãs, será capaz de proporcionar as mudanças inadiáveis
e urgentes que o Brasil exige. As igrejas evangélicas, como instituições
eclesiásticas, não têm e não podem ter candidato oficial. A manipulação que
se tem feito de que a família evangélica está comprometida organicamente
com qualquer candidato não corresponde à verdade. A insinuação de que os
evangélicos já fizeram opção ideológica por aqueles que representam e
defendem o atual sistema econômico e político, injusto e discriminador,
carece de fundamento e é repudiada como instrumento eleitoreiro para iludir
as classes populares.934

Se para o Partido dos Trabalhadores, Benedita servia como exemplo de


respeito à liberdade religiosa por ser evangélica, entre os evangélicos ela servia de
exemplo de progressismo político por ser de esquerda e representar as minorias.
Como ocorrera na Constituinte, na campanha de 1989 ela se colocava
representando a mulher, a população negra e os pobres moradores das periferias,
mas procurava vincular suas identidades sociais e religiosas ao projeto do PT,
como mostrou uma matéria em que criticava o candidato Antônio Pedreira (PPB):

932
JORNAL DO BRASIL. 11/11/1989, p. 2.
933
PIERUCCI, Antonio Flavio. A realidade social das religiões no Brasil: religião, sociedade e
política. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 97.
934
ACONTECEU NO MUNDO EVANGÉLICO. Manifesto de evangélicos em apoio à
candidatura da Frente Brasil Popular. p. 10. nº 81, novembro de 1989.
382

A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) disse ontem em Porto Alegre que o


candidato do PPB, Antônio Pedreira ―não tem expressão política nem
respaldo no Movimento Negro‖ para ser o representante da raça negra na
sucessão presidencial, como vem se apresentando no horário gratuito de rádio
e televisão. Benedita acrescenta que apesar de ser negro e evangélico como
ela, ―o voto não pode ser confiado a um candidato pela cor da sua pele ou da
sua religião, e sim pelos compromissos assumidos por um partido‖. Ela
afirmou que o candidato do PPB nunca participou de manifestações do
Movimento Negro.935

Era uma disputa pela representatividade política dos negros entre


evangélicos. Em uma caminhada das mulheres que apoiavam a candidatura de
Lula, ao lado de outras lideranças femininas do partido e das feministas Rose
Marie Muraro e Lélia Gonzalez (sua assessora), discursou: ―Lula é o candidato
das mulheres. A sua é a única campanha que tem respeito pela mulher e não fica
só no discurso‖.936Apesar disso, as publicações feministas que acompanhavam
com entusiasmo a atuação política de Benedita da Silva raramente mencionavam
sua filiação religiosa, ao passo que valorizavam seus posicionamentos políticos e
criticavam a Bancada Evangélica.
Os convites a Benedita da Silva para atividades do movimento negro e dos
movimentos de mulheres não eram menores que os convites para participar de
encontros religiosos. Um deles, durante a campanha de 1989, partiu da Igreja
Batista Nazareth em Salvador, comunidade ecumênica protestante que estava
muito ligada a quadros políticos das esquerdas na Bahia, particularmente do PT,
conforme narrou o pastor Djalma Torres:

Com o engajamento da igreja na Teologia da Libertação, particularmente, eu


me envolvi bastante. Com a criação do ITEBA, a gente teve que fazer uma
opção política, e a opção política foi feita, primeiro, com a determinação de
não filiação por parte do pastor. Se alguém da igreja quisesse poderia se filiar
a qualquer partido, mas eu como pastor não me filiaria a nenhum partido.
Mas, naturalmente, a nossa caminhada foi em direção ao PT. E aí nós nos
envolvemos nas campanhas de Lula. Na primeira campanha, na segunda, em
todas as campanhas de Lula para presidente.937

O pastor assumiuna entrevista suas relações de amizade com Emiliano José


(1946-), Zezéu Ribeiro (1949-), Nelson Peregrino (1960-) e Walter Pinheiro,
políticos do PT baiano. Seu irmão, Paulo Torres, também foi candidato a
deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores na Bahia em 1990, mas não
935
JORNAL DO BRASIL. Pedreira. 28/10/1989, p. 2.
936
JORNAL DO BRASIL. Passeata de mulheres dá apoio a Lula. 08/11/1989, p. 5.
937
TORRES, Djalma. Entrevista ao autor, Alagoinhas-BA, 20/04/2015.
383

conseguiu se eleger.A Igreja Batista Nazareth sediou eventos do MEP, contando


com a participação de políticos petistas e o pastor Djalma Torres foi convidado
como palestrante da entidade em eventos ocorridos tanto na Bahia quanto em
outros estados.Em Salvador, as reuniões do MEP começaram na residência de
Walter Pinheiro, que contava com o apoio de evangélicos do Protestantismo
Ecumênico ou da Missão Integral.
Outra entidade importante para o movimento de Missão Integral,
preocupada com a representação dos evangélicos diante da opinião pública após
os escândalos da Bancada Evangélica na Constituinte e no apoio à eleição de
Collor foi a Associação Evangélica Brasileira (AEVB), criada em 1991 e liderada
por Caio Fábio. A entidade publicou nas campanhas eleitorais o Decálogo do voto
ético, do qual destaco dois princípios, que representavam respectivamente a crítica
ao corporativismo religioso na política e à difamação de um candidato para
indução do voto em outro:

VI. Nenhum cristão deve se sentir obrigado a votar em um candidato pelo


simples fato de ele se confessar cristão evangélico. Antes disso, os
evangélicos devem discernir se os candidatos ditos cristãos são pessoas
lúcidas e comprometidas com as causas de justiça e da verdade. E mais: é
fundamental que o candidato evangélico queira se eleger para propósitos
maiores do que apenas defender os interesses imediatos de um grupo
religioso ou de uma denominação evangélica. É óbvio que a igreja tem
interesses que passam também pela dimensão política. Todavia, é mesquinho
e pequeno demais pretender eleger alguém apenas para defender interesses
restritos às causas temporais da igreja. Um político evangélico tem que ser,
sobretudo, um evangélico na política e não apenas um "despachante" de
igrejas.
[...]
VIII. Os eleitores evangélicos devem votar para Presidente da República,
sobretudo, baseados em programas de governo, e não apenas em função de
"boatos" do tipo: "O candidato tal é ateu"; ou: "O fulano vai fechar as
igrejas"; ou: "O sicrano não vai dar nada para os evangélicos"; ou ainda: "O
beltrano é bom porque dará muito para os evangélicos". É bom saber que a
Constituição do país não dá a quem quer que seja o poder de limitar a
liberdade religiosa de qualquer grupo. Além disso, é válido observar que
aqueles que espalham tais boatos, quase sempre, têm a intenção de induzir os
votos dos eleitores assustados e impressionados, na direção de um candidato
com o qual estejam comprometidos. 938

O decálogo ainda criticava práticas clientelistas entre a Igreja e o Estado e a


transformação das igrejas em currais eleitorais de partidos ou candidatos. Dos dois
princípios acima citados, o último era uma clara referência aos discursos da

938
Associação Evangélica Brasileira (AEVB). Voto Ético. Para a leitura completa do Decálogo
consultar: <http://www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=04118> Acesso em: 20 out. 2015.
384

maioria evangélica contra a candidatura de Lula no segundo turno das eleições de


1989. A AEVB publicou um documento sobre o Impeachment de Collor em 1992
e organizou o ―Fórum evangélico com os presidenciáveis‖ no Rio de Janeiro em
1994. No mesmo ano realizou duas conferências nacionais: ―Ética evangélica e
eleições‖ e ―A Igreja Evangélica na Virada do Milênio‖.939O Decálogo do voto
ético foi adaptado pelas cartilhas do MEP como sugestões para os evangélicos
evitarem ser enganados nas eleições. Ao todo foram dez sugestões, das quais
destaco quatro, mais explícitas na crítica aos ―políticos de Cristo‖:

Procure saber quem está financiando a candidatura.


Trabalhe para saber que as eleições sejam decididas pela população votante e
não pela mídia.
Negue seu voto a políticos profissionais.
Evite iludir-se com a ideologia de que irmão vota em irmão.
Vote em quem tem mensagem profética para pregar e obras de justiça a
realizar.940

O MEP atuava em duas frentes: nos partidos, em defesa dos evangélicos –


seu potencial político e sua identidade religiosa; e nas igrejas, em defesa de
políticas emancipatórias e democráticas, que configuravam o que entendiam por
―progressista‖:

Junto aos partidos progressistas, o MEP procura mostrar a importância da


comunidade evangélica, como grande segmento da população que tem
contribuições importantes (teóricas e práticas) para a transformação do país.
Nas eleições, o MEP procurará convencer as denominações a deixarem seus
membros livres, sem endosso oficial de determinado candidato nem proibição
oficial de outros. Investirá em desfazer os boatos, totalmente fora de
propósito, de que determinados candidatos perseguirão a igreja evangélica. 941

Uma vez que o termo ―progressista‖ não delimitava claramente as


preferências partidárias, os momentos de polarização política eram propícios para
definições. De acordo com o depoimento de Marcos Monteiro, o segundo turno
das eleições de 1989 serviram de parâmetro para o progressismo evangélico:

Robinson tinha uma capacidade muito grande de criar siglas e deixar os


outros se virarem com as siglas, então uma das melhores siglas que o
Robinson criou foi o Movimento Evangélico Progressista, que realmente foi

939
Informações no site: <http://www2.uol.com.br/bibliaworld/aevb/voto.htm>
940
CARTILHA DO MEP, 2010, p. 19-21.
941
FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba:
Encontrão Editora, 1994, p. 117.
385

marcante em termos de qualidade, a melhor qualidade do debate evangélico


estava sendo providenciado pelo Movimento Evangélico Progressista. O
Robinson tinha uma coisa simples de definir quem poderia participar do
MEP, era quem no segundo turno tinha apoiado Lula.No primeiro turno, tudo
bem, não tinha problemas, você podia ser disso, daquilo, daquilo outro, mas
se no segundo turno, se você apoiou Lula você era, podia ser do Movimento
Evangélico Progressista.942

Nas eleições de 1994 aconteceram rearranjos na relação entre os protestantes


e as esquerdas. No campo político, o fim da URSS e do socialismo no leste
europeu provocou mudanças significativas no pensamento de esquerda.
Analisando a crise do marxismo como um deslocamento de intelectuais e
militantes na luta de classes, e não como crise do ―paradigma marxista‖, Eurelino
Coelho sinalizou para uma alternância de posições nas esquerdas:

A história da sua crise mais recente é, portanto, parte da história recente das
sociedades nas quais os ex-marxistas atuavam como intelectuais e militantes.
O que tinha sido alguma forma de presença, tornava-se agora uma
pronunciada ausência. Posições antes ocupadas por sujeitos identificados
com o marxismo (partidos políticos, sindicatos, editorias, movimentos
culturais e sociais) tornaram-se lugares de elaboração e difusão de outros
projetos e ideias, muitas vezes ocupados pelas mesmas pessoas. A ruptura
destes militantes e intelectuais com o marxismo implicou diretamente em
abandonar ou, no mínimo, relegar a um plano secundário os grandes temas
aportados pelo marxismo nos circuitos culturais e políticos (como classes e
luta de classes, exploração e mais-valia, fetichismo da mercadoria,
revolução). [Grifo do autor]943

No campo religioso, a Teologia da Libertação sentiu sobre si os abalos da


queda do muro de Berlim e da repressão do Vaticano sobre a Igreja Popular, o
CEDI se fragmentou em diferentes ONGs e as entidades de representação
evangélica criadas pelo movimento de Missão Integral competiam com o poder
político alcançado pela Bancada Evangélica, hegemonizada pela IURD e sua
plataforma midiática (Rede Record e afiliadas, emissoras de rádio, gravadora,
imprensa escrita).Neste momento, o evangelicalismo mobilizou novamente o
igualitarismo religioso como uma esperança em busca de expressão política,
conforme a cartilha do MEP sugeriu:

A grande atração do marxismo clássico era dizer que logo ali, depois da
curva, a história chegaria num paraíso. Oferecia acima de tudo uma

942
MONTEIRO, Marcos. Entrevista ao autor, Feira de Santana-BA, Setembro/2014.
943
COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital: crise do Marxismo e mudanças nos projetos
pPolíticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). São Paulo: Xamã; Feira de Santana: UEFS
Editora, 2012, p. 27.
386

esperança. Hoje essa esperança ruiu. No entanto, continuamos percebendo a


injustiça reinar. E não basta percebê-la, é necessário vislumbrar a
possibilidade real de uma sociedade mais justa. Diante disso, procura-se uma
ética não só para a política, como também para fundamentar a esperança de
um mundo mais justo. Ante este quadro, os partidos, já tendo abandonado o
ateísmo dogmático e a ideologia antidemocrática, tendem, a abrir-se para
novos grupos éticos de transformação social. Essa é a grande oportunidade
dos evangélicos levantarem a bandeira da esperança cristãe servirem de
exemplo de transformação das estruturas.[grifos originais]944

Se nas eleições de 1989 houve uma contrapropaganda petista em relação aos


boatos nas igrejas, nas eleições de 1994 o partido foi mais proativo em relação ao
eleitorado evangélico. A campanha de Lula foi a primeira a criar um comitê
evangélico e a direcionar uma comunicação específica para o segmento religioso
durante a campanha. O impeachment de Collor parecia validar a crítica à
propaganda anticomunista que o elegeu, enquanto o PT tornava-se mais aceitável
ao eleitorado conservador ao adotar o discurso da cidadania e da ética na política,
em detrimento de um programa com identidade classista e operária. Uma
mudança ocorrida tanto nos grupos dirigentes, quanto nas bases sociais do
partido.945

Nem católico, nem marxista: a afirmação de uma esquerda evangélica

O caminho estava aberto para um novo papel dos evangélicos na campanha.


O intervalo entre as duas eleições presidenciais foi o período em que os
intelectuais da Missão Integral publicaram o maior número de livros e artigos
sobre os evangélicos na política. O livro Cristianismo e políticade Robinson
Cavalcanti foi publicado em sucessivas edições, com algumas revisões e
acréscimos que colocavam em pauta não mais a social-democracia, mas o
―socialismo democrático‖.

944
CARTILHA DO MEP. A importância do MEP no contexto político. p. 25.
945
―Em primeiro lugar, teria se dado uma moderação de suas bases sociais (especialmente do
sindicalismo progressista, agora com menores margens de ação, mais desmobilizado e com forte
incidência de setores médios), assim como uma mudança da composição social e moderação de
sua militância (em boa parte devido à crescente participação em governos locais e em
parlamentos). Na sequência, consolidou-se a hegemonia dos moderados na direção partidária, por
serem agora hegemônicos no partido como um todo. Só então se efetivou a maior autonomização
da direção e de seus líderes principais, um mandato que eles receberam das bases – ao ponto de
poderem comandar com liberdade as campanhas nacionais e realizar amplas alianças‖. SILVA,
Fabricio Pereira da. Vitórias na crise. Trajetórias das esquerdas latino-americanas
contemporâneas. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009, p.
32-33.
387

No artigo Os trabalhadores e os evangélicos, escrito para a revista do Partido


dos Trabalhadores (PT) Teoria & Debate,antes das eleições presidenciais de 1994,
Paul Freston atribuiu peso decisivo ao voto evangélico na eleição de Collor e
apontou os limites do PT e de Lula para atrair o eleitorado protestante. Um dos
erros que a campanha petista de 1989 teria cometido, segundo o autor, foi não ter
dado espaço maior ao Movimento Evangélico Pró-Lula na coligação Frente Brasil
Popular. As disputas do campo religioso foram reproduzidas no PT e interferiram
na visibilidade da identidade evangélica durante a campanha, como ilustrou a
mudança de estratégia do primeiro para o segundo turno:

O Movimento Evangélico Pró-Lula, por sua vez, teve dificuldade para criar
impacto. Só conseguiu aparecer uma vez na propaganda televisiva. Esta
aparição, apesar de breve, teve amplo efeito, atingindo muitos membros de
igrejas cujos líderes não admitiam o voto em Lula. Mas foi com dificuldade
que o movimento obteve essa participação nos comícios e nos programas de
rádio e televisão. No segundo turno, o Movimento Evangélico não apareceu
mais no programa televisivo; em seu lugar havia o recém-formado Comitê
Inter-religioso Pró-Lula. Para maximizar o voto evangélico a estratégia foi
contraproducente. O pronunciamento de um grupo ―inter-religioso‖
dificilmente sensibilizará os pentecostais.946

A crítica ao caráter contraproducente do Comitê Inter-religioso era a


reivindicação de um lugar para o evangelicalismo na militância petista, em
contraposição tanto à presença católica quanto à protestante ecumênica. A
preocupação com uma identidade ―especificamente evangélica‖ não era uma
novidade nos posicionamentos do autor e antecederam as eleições de 1989.
Durante os anos 1980, o crescimento da influência da Teologia da Libertação e
dos grupos católicos na ABU levou a um debate interno sobre a identidade
evangélica ou ecumênica da entidade. No Congresso de 1984, Paul Freston
defendeu que os estatutos preservassem o termo ―evangélico‖na definição da
entidade e que os membros católicos deveriam optar entre a liderança na ABU ou
a permanência na Igreja Católica. Dieter Brepohl, questionou o posicionamento
exclusivista e sugeriu que tanto a Igreja Católica quanto as igrejas protestantes
fossem consideradas ―campos de missão‖do movimento de juventude cristão.947
Os depoimentos de Paul Freston sobre os conflitos na ABU revelam disputas entre

946
TEORIA & DEBATE. FRESTON, Paul. Sociedade: Os trabalhadores e os evangélicos. N.º 25.
junho/julho/agosto. 1994, p. 3.
947
FRESTON, Paul apud QUADROS, Eduardo Gusmão de. Evangélicos e mundo estudantil: uma
história da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (1957-1987). Novos Diálogos, Rio de Janeiro,
2011, p. 93-96.
388

a Missão Integral e a Teologia da Libertação, como a relativização das


expectativas que os protestantes progressistas nutriam com as CEBs e a Igreja
Popular no catolicismo:

havia muito romantismo com relação à Igreja Católica, o que os anos se


encarregaram de desmistificar. Como tudo era novo, assim recente, se
imaginava que isso pudesse operar mudanças muito maiores… então uma
frase que se dizia bastante nesses debates na ABU era de que a Igreja
Protestante tem a doutrina correta e a Igreja Católica a prática correta.948

Estavam em jogo os compromissos políticos e os vínculos partidários


assumidos pelos campos protestante e católico ligados à Teologia da Libertação
ou à Missão Integral. O Congresso da ABU em 1986 representou um momento de
reposicionamento da entidade no campo religioso e político. De acordo com
Eduardo Quadros:

O tema central do Congresso de 1986 teve como inspiração o livro bíblico de


Neemias. Este livro trata da reconstrução dos muros de Jerusalém. Os estudos
proferidos pelo assessor Paul Freston estavam voltados para a reconstrução
do Movimento. As idéias predominantes no conclave eram que a experiência
política teria trazido conflitos estranhos ao ideal da entidade, afinal de
direita e de esquerda não seriam termos apropriados para referência aos
irmãos.[Grifo do autor]949

É dentro dessa trajetória do autor que devemos situar sua intervenção na


revista do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 1994. O artigo foi perpassado
pela defesa do caráter popular do pentecostalismo e da afirmação de elementos
sociológicos positivos na experiência protestante. Denunciava o preterimento aos
evangélicos nas fileiras do partido e nas campanhas eleitorais como
ideologicamente injustificado, endereçando a crítica ao privilégio católico:

Os evangélicos representam hoje cerca de 15% dos brasileiros, sendo a


religião que mais cresce entre os trabalhadores. Sua relação com o PT vem
muitas vezes sendo dificultada pelos privilégios que os seus adeptos apontam
serem concedidos aos católicos.950

948
QUADROS, Eduardo Gusmão de. 2011, p. 83.
949
QUADROS, Eduardo Gusmão de. 2011, p. 9.
950
TEORIA & DEBATE. FRESTON, Paul. Sociedade: Os trabalhadores e os evangélicos. N.º 25.
junho/julho/agosto. 1994, p. 1
389

A valorização sociológica do pentecostalismo, numa crítica ao modo como a


intelectualidade marxista lidava com o popular, servia à competição do campo
religioso dentro do partido. De acordo com o articulista:

Os pentecostais não têm boa imagem pública: o desprezo que não é de ―bom
tom‖ dirigido a outros fenômenos religiosos populares ainda se dirige aos
pentecostais. Mas é preciso superar o preconceito e perceber a novidade
sociológica e potencial político. Seria trágico se o partido que se chama ―dos
trabalhadores‖ enxergasse a religião que mais cresce entre os pobres com
uma visão elitista das principais instâncias formadoras de opinião e fosse
incapaz de compreender esse fenômeno genuinamente popular. 951

Não era apenas o significado de ―popular‖ e de ―trabalhadores‖ que estava em


discussão, mas também o de democracia, uma vez que o Partido dos
Trabalhadores se definia, nos documentos partidários, como proponente do
―socialismo democrático‖.952Por isso, eram reafirmadas as afinidades do
protestantismo com a democracia:

O fato de que a religião que mais cresce é institucionalmente dividida e opera


no formato pluralista é bom para a democracia. Os evangélicos não votam em
bloco, nem dentro de determinada igreja. Mesmo os pentecostais nem sempre
acatam a orientação política dos pastores, pois (ao contrário da Umbanda) a
lealdade é mais com a doutrina e com a comunidade do que com o pastor. De
fato, em todas as igrejas há um pluralismo político, posições de esquerda
sempre tiveram seus defensores, principalmente nas igrejas históricas. 953

O artigo fazia uma avaliação das eleições de 1989 projetando os desafios das
eleições de 1994. A diversidade atribuídaao protestantismo servia para relativizar
a fama de conservadorismo político, que o próprio autor, entretanto, reconhecia
como merecida:

Nas eleições de 1989, as lideranças das igrejas adotaram um leque de


posições, desde a campanha aberta por Collor (Universal) até a declaração de
princípios mais à esquerda do que a CNBB (metodista), passando pelo
apoliticismo (Congregação Cristã), conservadorismo velado (Presbiteriana do
Brasil) e opção tucana mal disfarçada (Presbiteriana Independente). Não há

951
Ibidem.
952
Analisando documentos históricos do Partido dos Trabalhadores – dos documentos
preparatórios à fundação do partido até as eleições de 1994 – Marco Antônio Brandão concluiu
que houve uma articulação entre os conceitos de ―democracia‖ e ―socialismo‖ na construção da
identidade petista e na proposta partidária de construção de uma ordem social anticapitalista
fundamentada nesses princípios associados. BRANDÃO, Marco Antônio. O socialismo
democrático do Partido dos Trabalhadores: a história de uma utopia (1979-1994). São Paulo:
Annablume, FAPESP, 2003, p. 48-61.
953
TEORIA & DEBATE. FRESTON, Paul. Sociedade: Os trabalhadores e os evangélicos. N.º 25.
junho/julho/agosto. 1994, p. 2.
390

entidade como a CNBB que possa falar em nome dos evangélicos; todas as
tentativas de uni-los politicamente esbarram no princípio protestante da
autogestão. Por mais que cresçam nunca poderão estabelecer uma
―cristandade evangélica‖.954

A interpretação adequada do passado recente era vista como um instrumento


fundamental para ―transformar a política evangélica‖. Nesse sentido, o artigo
destacava ao mesmo tempo os erros da primeira campanha e os dados positivos da
participação política evangélica na eleição, quando afirmava, por exemplo, que:

Apesar da indiferença da Frente, provavelmente houve mais votos para Lula


nas igrejas evangélicas do que nas CEBs. Fica evidente que a Frente investiu
pouco no voto evangélico e, às vezes, investiu em setores que poucas chances
955
teriam de criar um impacto.

As expectativas para as eleições de 1994 eram grandes, em função da


institucionalização do MEP e do surgimento da AEVB, expressões de que:

O progresso da esquerda evangélica, embora deficiente, vai desfazendo


associações negativas. A nova Associação Evangélica Brasileira (AEVB)
também ajuda: sua cartilha eleitoral desautoriza a aliança com candidatos que
caracterizou várias igrejas pentecostais em 1989, sobretudo baseada em
956
boatos de perseguição religiosa.

Para avançar no diálogo com o segmento religioso, o partido deveria ―saber


responder a certas preocupações constantes de líderes pentecostais‖, dentre as
quais:

Liberdade religiosa (direito não só de culto, mas de propaganda e expansão);


política de comunicações (acesso ao uso e à posse de mídia); aborto
(oposição à libertação); homossexualismo (não reconhecimento legal da
união homossexual); educação religiosa (manutenção da instrução opcional
nas escolas públicas); missões indígenas (sobretudo direito de tradução e
distribuição de Bíblias). Algumas dessas preocupações podem parecer
exóticas ou estreitas; mas quando compreendidas, são enquadráveis de
alguma forma numa política democrática que reconheça o pluralismo
existente na base da sociedade, evitando que os líderes de grandes igrejas
957
populares convertam-se em opositores abertos de um governo Lula.

954
Ibidem.
955
TEORIA & DEBATE. FRESTON, Paul. Sociedade: Os trabalhadores e os evangélicos. N.º 25.
junho/julho/agosto. 1994, p. 3-4.
956
Ibidem.
957
TEORIA & DEBATE. FRESTON, Paul. Sociedade: Os trabalhadores e os evangélicos. N.º 25.
junho/julho/agosto. 1994, p. 4.
391

Algumas sugestões foram dadas pelo Comitê Evangélico Pró-Lula para


responder a essas questões. No tema da liberdade religiosa foi sugerido ao
programa do candidato ―a defesa da mais ampla liberdade religiosa e o respeito às
iniciativas da cidadania tanto na organização quanto na propaganda de suas
crenças‖. Na política de comunicações foi sugerido que ―As concessões
obedecerão a critérios e procedimentos democráticos e pluralistas do ponto de
vista político, social religioso e regional‖, enquanto para a elaboração da lei que
regulamentaria as missões entre os povos indígenas foi proposto a participação
―dos representantes das várias confissões religiosas que desenvolvem atividades
junto aos povos indígenas, dando à política indigenista do Governo Democrático e
Popular um caráter pluralista tanto social quanto religioso‖.958Sobre a
homossexualidade não houve sugestões ao programa do partido, mas essa era uma
das ―preocupações dos líderes pentecostais‖ às quais o PT deveria ―saber
responder‖. No prefácio ao livro Homossexualidade (1989), de Lísias Castilho,
publicado pela ABU, Paul Freston referendava uma obra que reproduzia os
mesmos julgamentos teológicos da ―psicologia cristã‖ analisada no quinto
capítulo desta tese:

Dentro e fora das igrejas cristãs as interpretações e atitudes diante das


questões homossexuais são variadas, muitas vezes conflitantes, obrigando
seus defensores a entrincheirar-se em suas posições, sem examinarem
devidamente os dados relevantes que as várias disciplinas fornecem. Este
livro, que surge como significativa contribuição ao debate, notabiliza-se
particularmente por duas razões: é obra nacional, escrita por um cristão
evangélico; tem uma dimensão interdisciplinar, integrando um leque
invejável de enfoques.959

Mais do que sugestiva, a intervenção no debate partidário em ano eleitoral


era a inserção de uma fração evangélica no campo das esquerdaspós-1989 e um
indicio de que a abertura do PT para novos segmentos sociais, forças políticas e
correntes ideológicas era uma expressão das mudanças ocorridas na sociedade e
no partido. Duas perguntas correspondiam aos dilemas da eleição de 1994: como

958
Ibidem.
959
FRESTON, Paul. Prefácio. In. CASTILHO, Lísias. Homossexualidade. São Paulo: ABU
Editora, p. 9. Um exemplo dos julgamentos teológicos de Lísias Castilho encontra-se no trecho:
―Diante de Deus, o homossexualismo constitui uma abominação, uma condição inaceitável
enquanto prática. Deus não condena a preferência homossexual de uma pessoa, que por ela não
pode ser responsabilizada, mas sim a maneira como dela se utiliza‖. Aos cristãos homossexuais, o
autor recomendou o arrependimento e o tratamento psicológico, aos não cristãos, desejou que a
igreja pregasse ‗o Cristo que liberta e que salva, também do homossexualismo‘.‖ (p. 68-69)
392

os evangélicos, sobretudo pentecostais, se comportariam num governo de


esquerda? Quais os entraves nos partidos de esquerda, especialmente o PT, para
aproximar-se das igrejas? À primeira pergunta o artigo respondia citando os
exemplos da relação dos pentecostais com o governo Allende e com a revolução
da Nicarágua. Na experiência chilena, os fiéis pentecostais teriam sido mais
favoráveis ao governo deposto do que seus pastores ―e até mais do que seus
vizinhos não pentecostais‖, enquanto no governo sandinista da Nicarágua, os
pentecostais teriam crescido muito e manifestado apoio à revolução.960Citando um
estudo sobre esta última experiência, comentou:

Como religião dos pobres marginalizados, sua relação com a revolução é


indireta, sem intenções políticas explícitas. Enquanto a relação daTeologia da
Libertação com a revolução é principalmente ideológica, a dos evangélicos é
sociológica. Reestrutura a vida dos mais pobres, combatendo a cultura do
desespero e abrindo a possibilidade da participação revolucionária em vez da
marginalidade. Ao todo, conclui o estudo, os evangélicos cresceram e não
impediram o processo sandinista.961

O próprio Paul Freston publicou pela editora da ABU,em 1985,o livro Cuba e
Nicarágua: uma análise dos processos revolucionários, no qual enfatizou que, se
houve participação evangélica na oposição ao governo sandinista (―os contras‖),
especialmente por parte de igrejas e instituições ligadas às missões norte-
americanas, a legitimação à revolução não foi menos importante. No mais, os
evangélicos não teriam sido protagonistas da oposição, mas representavam bases
sociais significativas de apoio ao governo. Quanto aos entraves no PT para uma
aproximação com os evangélicos, Paul Freston escreveu:

Relacionar-se com os evangélicos é um desafio para o PT. Há o fator


histórico: o partido resultou da confluência de vertentes católicas e
secularistas. Há o fator sociológico: o partido estruturou-se nos setores
―organizados‖ da sociedade; muitos dos pobres ―não organizados‖ estão nas
igrejas pentecostais. O PT é capaz de ver estas como formas autênticas de
962
organização dos pobres?

960
Sobre os pentecostais no governo Allende, o artigo citou como referência: TENNEKES, Juan.
El movimiento pentecostal en la sociedade chilena de Juan Tennekes. Sobre os pentecostais
durante a revolução sandinista, citou Thanks to God and the revolution de Roger Lancaster.
961
TEORIA & DEBATE. FRESTON, Paul. Sociedade: Os trabalhadores e os evangélicos. N.º 25.
junho/julho/agosto. 1994, p. 2.
962
Ibidem.
393

As dificuldades eram extensivas a outros partidos considerados como


―progressistas‖, pois: ―Hoje, os maiores obstáculos para essa aproximação talvez
estejam nos partidos, não na comunidade evangélica‖, e a razão disso era que
―Alguns ainda vêem os evangélicos no partido como uma tendência, ou como
oportunidades, ou como politicamente inconsequentes‖.963Será que não havia
motivos para considerar os evangélicos no partido como uma ―tendência‖? Como
outros segmentos da oposição à ditadura, a exemplo da esquerda católica, também
os Protestantes Ecumênicos e de Missão Integral enxergaram no Partido dos
Trabalhadores um espaço de militância política do Socialismo Cristão. Os
―igrejeiros‖ do PT, católicos e protestantes, uniram-se a intelectuais, antigos
quadros das esquerdas, movimento estudantil, sindical, de minorias, Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) e parlamentares da oposição na criação de uma via
partidária de construção do socialismo ou de participação popular na política. Por
isso, diante das acusações de ateísmo e ameaça à liberdade religiosa dirigidas ao
partido pelos adversários políticos ou pelo conservadorismo religioso, reafirmava-
se a identidade do PT com as CEBs e a Teologia da Libertação.
No artigo para o Jornal do Brasil durante as eleições de 1989, Paulo César
Coutinho escreveu: ―O PT caminha ao lado da igreja progressista. Cristo pode
estar sentado no céu à direita de Deus Pai, mas na Terra está de pé à esquerda
junto do povo oprimido‖.964Era uma subversão política da linguagem religiosa,
pois como observou Norberto Bobbio:

exatamente porque os dois termos descrevem uma antítese, a conotação


positiva de um implica necessariamente a conotação negativa do outro. Saber
qual dos dois é o axiologicamente positivo e qual o axiologicamente negativo
não depende do significado descritivo, mas dos opostos juízos de valor que
são dados às coisas descritas. O que comporta uma notável consequência no
uso de ―direita‖ e ―esquerda‖ na linguagem política e em outras linguagens,
nas quais, a começar pela linguagem religiosa, ―direita‖ tem sempre uma
conotação positiva e esquerda, sempre uma conotação negativa.965

Por outro lado, em 1994,Paul Freston defendeu que as críticas de setores


internos do Partido dos Trabalhadores aos protestantes não deveriam ser
motivadas pela tentativa de monopolizar o ―cristianismo de esquerda‖, e que não

963
Ibidem.
964
JORNAL DO BRASIL. 11/11/1989, p. 2.
965
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política.
Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. UNESP, 1995, p. 70.
394

deveria haver um critério "teológico" de confiabilidade "ideológica" – a Teologia


da Libertação como critério do ideal ―socialista‖ – e fez um alerta:“A esquerda
evangélica tem discurso e cara próprios (diferentes da esquerda secular ou
católica) e é bom que continue a tê-los, sob pena de se afastar de suas bases
religiosas e perder seu potencial político”.966
Um setor do protestantismo passava a assumir-se ―esquerda evangélica‖ e
reivindicava uma identidade distinta da esquerda marxista e da esquerda
ecumênica. Compreendia o próprio potencial a partir da capacidade de diálogo
com ―suas bases políticas‖. Tentava convencer o partido de esquerda com maior
peso político a aceitá-la como interlocutora entre os evangélicos e conseguia
espaço na principal publicação deste partido para apresentar uma agenda
política.Era a afirmação da Missão Integral como alternativa à Teologia da
Libertação e a valorização do MEP como instrumento de formação política dos
evangélicos e de mobilização do Socialismo Cristão no PT. Era também um
indício das transformações programáticas do próprio partido, que se abria para
novas forças políticas e eleitorais.967
Qual era a visão do Protestantismo Ecumênico sobre o movimento de Missão
Integral? Zwinglio Mota Dias e Mozart Noronha, em seus depoimentos a este
trabalho, demonstraram que havia certo distanciamento e muitas vezes
desconfiança com relação a estes setores. Perguntado sobre se teve alguma relação
com o MEP, Mozart Noronha respondeu que não, apesar de ter sido convidado.
Ao justificar sua recusa, disse:

Eu não gosto desse rótulo evangélico. A minha militância é bem no social, no


partido, e logo assumo o PT, assumo o PSOL, assumi o MES, né? 968 Então,
essa questão de evangélico pra isso, evangélico pra aquilo, eu não entro
nessa não. Não faço parte, não gosto, sou convidado, mas não assisto, não
participo. Eu acho que a palavra ―evangélico‖ está muito desgastada e tudo,

966
TEORIA & DEBATE. FRESTON, Paul. Sociedade: Os trabalhadores e os evangélicos. N.º 25.
junho/julho/agosto. 1994, p. 5.
967
―Os deslocamentos do grupo majoritário redefiniam a dinâmica das relações internas do partido
em cada conjuntura e a história dessas relações é marcada por crises, alianças, expulsões, cisões.
Mas agora, em fins de 1994, a Articulação assumia, pela primeira vez de modo coletivo e
explícito, a intenção de alterar o próprio conteúdo do projeto. A ideia de que seria preciso
inaugurar uma nova era na história do PT tornava-se dominante entre os dirigentes da corrente que
sempre se apresentou como guardiã do petismo autêntico‖. COELHO, Eurelino. Uma esquerda
para o capital: crise do marxismo e mudanças nos projetos políticos dos grupos dirigentes do PT
(1979-1998). São Paulo: Xamã; Feira de Santana: UEFS Editora, 2012, p.183-185.
968
Atualmente, Mozart Noronha é militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e integra a
corrente interna do partido Movimento Esquerda Socialista (MES).
395

né? Por conta dessa proliferação de igrejas evangélicas. Então eu não


participo. Neste sentido eu não participo desse movimento inter-religioso,
dessas coisas assim eu também não participo, digo pra você que pra mim, a
coisa passa muito pela questão de classe.969

É preciso considerar as interferências do presente nesta memória. Há uma


tradição no protestantismo histórico, de origem imigrante ou missionária, de
secundarização do termo ―evangélico‖ como nomeação à identidade protestante
que faz parte das disputas do campo religioso, mas como o próprio depoente
afirmou o desgaste em função ―dessa proliferação de igrejas evangélicas‖ deve ter
contribuído para a recusa em participar de movimentos políticos confessionais. A
opção por militar politicamente apenas no terreno secular o afastou também do
ecumenismo eclesiástico e do diálogo inter-religioso, por defender que o
ecumenismo, como solidariedade entre as confissões de fé que formam a
diversidade religiosa da sociedade, deve acontecer principalmente no campo
social e político.
Zwinglio Mota Dias falou a partir de um lugar inverso ao de Mozart
Noronha no campo político e religioso. Optou pela Teologia e o pastorado por
influência de Rubem Alves, que foi seu professor no Instituto Presbiteriano
Gammon, em Lavras-MG nos anos 1960. Mesmo assumindo-se de esquerda em
toda a sua trajetória, declarou nunca ter sido um militante político stricto senso,
filiado a tendências e partidos. Sua militância se deu basicamente na igreja e nas
entidades do movimento ecumênico, como: UCEB, ISAL e CEDI. Por tudo isso, a
posição teológica e a perspectiva hermenêutica de leitura da Bíblia tiveram mais
peso na sua crítica ao movimento de Missão Integral:

A gente acompanhava. A gente tomava conhecimento, mas a gente não


gostava. A gente achava que não era por aí. Porque, na medida em que a
Missão Integral tem uma fundamentação teológica ultraconservadora, não
fazia sentido. A gente era mesmo de uma linha mais clara. Teologicamente a
gente estava na esquerda também.970

A participação política dos Protestantes Ecumênicos e de Missão Integral


envolveu opções diversificadas de atuação. Os aspectos convergentes se
manifestaram principalmente em oposição à atuação política de determinados
grupos pentecostais e ao fundamentalismo. Organizaram entidades de serviço, de

969
NORONHA, Mozart. Entrevista concedida ao autor. Rio de Janeiro. 11/07/2011.
970
DIAS, Zwinglio Mota. Entrevista ao autor. Rio de Janeiro, 31/05/2013.
396

assessoria a movimentos e pastorais sociais, ONGs, fóruns e publicações de


debates dos problemas sociais, grupos de estudos bíblicos e ministérios de arte
cristã contextualizada. Participaram do sindicalismo, do movimento estudantil,
dos movimentos de minorias, de comitês pró-Anistia e pró-Diretas e se filiaram
aos partidos de esquerda, deoposição ou que consideravam progressistas –
principalmente: PT, PDT, PMDB, PSDB – entre 1980 e 1994. Estas inserções
dependeram muito da resposta teológica e prática ao marxismo elaborada pela
Teologia da Libertação e pela Missão Integral e dos esforços de contextualizar o
protestantismo à realidade brasileira e latino-americana.
Os processos eleitorais pós-Constituinte foram momentos importantes de
explicitação das disputas políticas no seio do protestantismo. A formação de
comitês evangélicos em prol de candidaturas ―progressistas‖em 1989 e em 1994, a
produção de material de formação política pelo MEP (Boletim) e pela AEVB
(Decálogo do voto ético), a atuação na juventude e no meio teológico através da
ABUB e da FTL, e a presença de intelectuais desses segmentos no debate
partidário das esquerdas, serviram para que setores do movimento de Missão
Integral se apresentassem no campo político reivindicando o reconhecimento de
uma identidade de esquerda muito particular: uma esquerda evangélica.
397

Considerações finais

A elaboração de uma teologia latino-americana, contextualizada na situação


social e política do continente, com uma visão crítica aos dualismos do discurso
religioso – corpo e alma, sagrado e profano, espiritual e material – e proponente
de uma ética de responsabilidade social para a igreja foi o ponto de partida para
segmentos do protestantismo se engajarem em movimentos revolucionários, na
oposição a regimes autoritários, na defesa dos direitos humanos e em lutas sociais
emancipatórias, aproximando-se de partidos e movimentos de esquerda, ou de
minorias militantes no período analisado.
Se o ponto de partida possuiu elementos convergentes, o caminho
apresentou uma bifurcação do protestantismo em tendências que relacionaram de
maneiras distintas o poder simbólico e o poder político, a ortodoxia ou
heterodoxia religiosa com o progressismo e o conservadorismo político. De um
lado, o Protestantismo Ecumênico contribuiu com o cristianismo da libertação e
sua expressão teológica, a Teologia da Libertação, rompendo definitivamente com
o fundamentalismo religioso e abrindo possibilidades de diálogo ou atuação à
esquerda do campo político. De outro, o movimento de Missão Integral e sua
expressão teológica, a Teologia da Missão Integral, dividiu os setores
conservadores do protestantismo em uma ala fundamentalista, majoritária, e outra
evangelical, distinção reivindicada principalmente por esta última. Entre os
ecumênicos, alguns classificaram essa divisão do campo conservador em
―fundamentalismo de direita‖ e ―fundamentalismo de esquerda‖ em função dos
vínculos políticos que o movimento de Missão Integral favoreceu em momentos
de maior polarização política.
As duas vertentes protestantes organizaram redes institucionais de serviço,
evangelização, formação de lideranças e representação do segmento evangélico.
No movimento ecumênico, se destacaram entre os anos 1950 e 1970: a União
Cristã de Estudantes Brasileiros (UCEB), a Confederação Evangélica Brasileira
(CEB) e a junta missionária Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL). Dos
anos 1970 a 1990, cumpriram o papel de arregimentação e intervenção dos
ecumênicos: o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), o
Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER) e a Coordenadoria Ecumênica de
Serviços (CESE), formando uma rede que contou com o apoio do Conselho
398

Mundial de Igrejas (CMI) e outras agências ecumênicas internacionais de


financiamento. No evangelicalismo, se destacaram a Aliança Bíblica Universitária
(ABU), a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), a Visão Nacional de
Evangelização (VINDE) e a Visão Mundial. Todas partilhando a herança do
Congresso de Lausanne (1974) e responsáveis pela difusão da Teologia da Missão
Integral no Brasil. Recepção tardia em relação ao surgimento no evangelicalismo
continental (1969-1974), principalmente através de eventos como o Congresso da
ABU (1976), o Congresso Brasileiro de Evangelização (1983) e o Congresso
Nordestino de Evangelização (1988).
Uma minoria do movimento de Missão Integral se aproximou da Teologia
da Libertação e do ecumenismo, assim como protagonistas do movimento
ecumênico tiveram livre trânsito nas redes e publicações do evangelicalismo.
Porém, o que prevaleceu entre os dois segmentos foi o estranhamento e a
divergência, que se manifestava em relação aos compromissos políticos
assumidos ou quanto à omissão diante de temas considerados tabus no campo
religioso. Diferenças regionais também repercutiram na interação dos
participantes das redes ecumênicas e evangelicais com as ideias teológicas e
políticas, a exemplo da tensão entre a FTL nordestina e a nacional, ou das disputas
de memória e protagonismo no seio do movimento ecumênico.
A partir dos anos 1970, o ecumenismo e a Missão Integral se defrontaram
com outras experiências que reconfiguraram as sociabilidades religiosas, a
vivência da fé cristã e a interação das igrejas com o espaço público. Entre essas
experiências, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e o neopentecostalismo
colocaram em novos termos os conflitos que, desde os anos 1950, se tornaram
evidentes no protestantismo e que se manifestavam no vocabulário dos fiéis como
disputas entre uma ala ―espiritualista‖ e uma ala ―social‖, entre ―conservadores‖ e
―progressistas‖, ―fundamentalistas‖ e ―modernistas‖, ―históricos‖ e
―pentecostais‖, ―tradicionais‖ e ―liberais‖. A esse vocabulário se somaria, da
ditadura à transição democrática, as dicotomias políticas: ―a favor do regime‖
versus ―oposição‖, direita e esquerda.
A relação dos setores protestantes com as esquerdas e os movimentos de
minorias foram mediadas pelas versões brasileiras do Socialismo Cristão, que
encontraram na Teologia da Libertação e da Missão Integral suas expressões mais
elaboradas. As respostas cristãs à situação social de desigualdade e à interpretação
399

marxista da realidade brasileira, influenciaram nas propostas de hermenêutica


bíblica, eclesiologia e na filiação a partidos e movimentos de esquerda. Se no
campo político se falava de ―novos movimentos sociais‖, no campo religioso se
falava em ―novos modos de ser igreja‖. O marxismo foi interpretado como um
desafio ético à mensagem evangélica e como herdeiro político dos cristianismos
radicais ao longo da história. Isso contribuiu, inclusive, para que a militância
religiosa fosse integrada ou transferida para a militância política, e em alguns
casos para a secularização de cristãos engajados que se desligaram das igrejas e
mesmo da religião. A tradição de dissidência do protestantismo se encontrou com
a não menos tradicional cissiparidade das tendências marxistas e foi comum a
participação evangélica nas diferentes organizações da esquerda durante a
Ditadura Militar.
Como ocorreu com as esquerdas não religiosas, o Socialismo Cristão teve
que responder ou se posicionar diante de outros desafios além da ditadura e das
desigualdades de classe. Nas décadas de 1970 a 1990, os movimentos feminista,
negro e gay, colocaram no cenário das lutas sociais novos paradigmas teóricos,
novas identidades políticas e militâncias. O feminismo cristão, existente desde o
século XIX, se reinventou neste período, propondo repensar as estruturas cristãs,
as práticas religiosas e os saberes teológicos. Levou para as igrejas toda a
discussão feminista sobre a dominação patriarcal e o poder feminino,
reivindicando uma leitura bíblica a partir da mulher e uma pastoral comunitária
com equidade entre mulheres e homens.
No seio do movimento ecumênico surgiu a Teologia Feminista Latino-
americana da Libertação, dialogando com o feminismo acadêmico e militante,
tanto os mais próximos dos referenciais marxistas quanto os mais críticos à
subjugação da ―questão da mulher‖ à ―questão de classe‖. Os livros de entrevistas
organizados por Elsa Tamez com teólogos e teólogas da libertação sobre a
mulher, respectivamente em 1988 e 1989, evidenciaram as descobertas e os
limites dessa teologia. No movimento de Missão Integral, o diálogo com o
feminismo foi mais tímido e tardio. Foram publicados alguns livros sobre ―as
mulheres na Bíblia‖ ou sobre ―o papel da mulher no Reino de Deus‖ ainda nos
anos 1980, que tentavam abrir brechas no discurso conservador e nas estruturas
das igrejas, mas sem assumir explicitamente o feminismo como militância, como
fizeram as mulheres da Teologia da Libertação. O principal avanço no debate
400

sobre a mulher no evangelicalismo se deu nas consultas da FTL na década


seguinte. Comum aos dois movimentos protestantes, a defesa da ordenação
feminina aos ministérios eclesiásticos e a presença efetiva de mulheres no
pastorado cresceu significativamente no período analisado.
O combate ao racismo nos dois setores protestantes não produziu uma
Teologia Negra equivalente ao que ocorreu nos EUA, nem contou com uma
expressão teológica representativa da militância antirracista, como ocorreu no
feminismo cristão com a elaboração de uma Teologia Feminista. Ainda assim, o
movimento negro também questionou a subordinação da ―questão racial‖ à luta de
classes, colocou a especificidade da experiência dos negros, criticou o papel da
Bíblia e das igrejas na legitimação da escravidão e do preconceito à negritude,
incluindo a discriminação da vivência religiosa de herança africana no país. Todo
esse processo colocou em discussão o racismo dentro das igrejas, impulsionando
leituras bíblicas a partir do negro e a formação de militâncias negras nas
denominações. Surgiram programas de combate ao racismo e entidades
evangélicas sobre o tema, matrizes de um movimento negro evangélico. A
publicação da pesquisa sobre ―o negro evangélico‖ do ISER em 1985, a criação da
Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (CENACORA) em 1986
e o centenário da abolição da escravatura em 1988, foram marcos importantes da
militância negra protestante. Um dado importante sobre a pesquisa do ISER foi a
constatação da menor presença de negros nas igrejas que eram mais ativas no
movimento ecumênico e no progressismo religioso.
Se a militância negra evangélica não se fez acompanhar do surgimento de
uma Teologia Negra, a militância gay foi praticamente inexistente no
protestantismo brasileiro, mesmo nos setores mais progressistas, antes dos anos
2000. Nas publicações do movimento ecumênico não encontrei posicionamentos
em defesa da ―causa gay‖, mas também não houve posicionamentos
condenatórios, ao menos explícita e publicamente. Esse silêncio era a expressão
dos tabus e moralismos presentes no movimento ecumênico, mas, comparado a
outras posições religiosas, representou também uma margem de tolerância. Foi
dentro do movimento ecumênico, dialogando com a Teologia da Libertação, que
uma Teologia Gay começou a ser pensada uma década depois do limite
cronológico desta pesquisa. No movimento de Missão Integral, a condenação foi a
tônica, ainda que com variações na contundência ou na moderação das críticas ao
401

―homossexualismo‖, como nomeavam essa vivência da sexualidade. Mesmo


evangelicais que se posicionavam à esquerda no campo político, utilizavam
informações da medicina e passagens bíblicas para classificar a homossexualidade
como um pecado, desvio ou doença. Argumentos teológicos e científicos eram
fundidos numa ―psicologia cristã‖, dando origem a uma entidade representativa
desse discurso e a um conjunto de publicações sobre a homossexualidade e o
movimento gay. Não obstante, o silêncio ou a condenação não eram
exclusivamente protestantes, pois a não aceitação da homossexualidade esteve
presente na medicina, na academia, no senso comum e na esquerda até a última
década contemplada neste trabalho.
A emergência dos movimentos de minorias não foi a única novidade nos
processos de distensão, abertura e transição democrática. O crescimento do
sindicalismo entre 1978 e 1980, a campanha da anistia em 1979, o fim do
bipartidarismo e a criação de novos partidos em 1980, as eleições de 1982, a
campanha das DiretasJá em 1984, a Assembleia Nacional Constituinte em 1987 e
as eleições presidenciais de 1989 e 1994, impactaram o campo religioso e as
filiações políticas dos setores ecumênico e evangelical do protestantismo. O CEDI
concentrou as articulações mais efetivas do Protestantismo Ecumênico diante
dessas mudanças, apresentando-se como um interlocutor fundamental do campo
das oposições e das esquerdas.
A diferenciação entre oposição e esquerda, limitada ao debate entre as
organizações clandestinas antes da abertura, se tornou pública e mobilizou de
maneira autônoma projetos políticos que se encontravam sob uma bandeira
comum de enfrentamento à ditadura. Com o surgimento das novas legendas, o
pertencimento de protestantes aos partidos de esquerda provocou resistência tanto
nas igrejas quanto nos partidos. A conciliação entre a militância política e a
identidade religiosa, que parecia óbvia no campo conservador, tinha que ser
recorrentemente explicada no campo progressista. A explicação mais comum era
que a esquerda fornecia as ferramentas de compreensão e transformação da
realidade, enquanto o cristianismo fornecia o senso de justiça e a esperança que
serviam de motivação para o agir. A militância na esquerda era vista como uma
expressão política da esperança religiosa.
O fim da Ditadura Militar coincidiu com um novo sujeito no campo
religioso e político: a Bancada Evangélica. Esta frente parlamentar religiosa, que
402

se estabeleceu definitivamente na política nacional, foi constituída


majoritariamente por grupos pentecostais, não aderentes ao ecumenismo ou ao
evangelicalismo. Os pentecostais eram, até o início dos anos 1980, recalcitrantes
quanto à participação política, ao menos da maneira organizada e corporativa que
adotaram a partir de então. A atuação da Bancada Evangélica em 1987, a terceira
maior do Congresso, pautou-se por uma perspectiva religiosa fundamentalista e
um fisiologismo político que reforçou o bloco conservador da Constituinte, o
Centrão. À parte desta bancada, um grupo de parlamentares evangélicos, ligados
ao movimento ecumênico ou às forças de esquerda dentro do Congresso, atuaram
em duas frentes: contra a Bancada Evangélica e contra o Centrão. Dissidência que
foi valorizada pela imprensa e pelas redes institucionais do ecumenismo e do
evangelicalismo.
A presença da Bancada Evangélica no cenário político, com essa atuação
conservadora e fisiológica, não surgiu do nada, nem foi tributária apenas do apelo
da Constituinte a diferentes segmentos da população, mas decorreu do incentivo à
participação política dos evangélicos por parte das diferentes tendências
protestantes. Se os ecumênicos e os evangelicais se pronunciaram entre os anos
1960 e 1980 sobre a necessidade de pensar a missão da igreja como uma ação
profética de denúncia das injustiças e de responsabilidade social dos cristãos, do
final dos anos 1970 ao início dos anos 1990, os pentecostais começaram a
perceber a força política que o crescimento numérico representava e a buscar
meios de utilizar esse potencial para ocupar a esfera pública de maneira
organizada. O pentecostalismo se tornou o maior segmento do protestantismo e
passou a hegemonizar o uso da identidade ―evangélica‖. A participação política
do movimento de Missão Integral é que foi tardia em relação às outras duas
tendências, o fundamentalismo e o ecumenismo, e surgiu como resposta aos
escândalos associados à Bancada Evangélica. Representou a tentativa de
arregimentar setores progressistas nas igrejas protestantes, incluindo pentecostais,
para criar uma referência positiva de participação política entre os evangélicos e
perante a opinião pública.
As eleições de 1989 e 1994 foram os momentos mais propícios para o
movimento de Missão Integral se apresentar aos partidos e às igrejas, defendendo,
respectivamente, que a esquerda não precisava suspeitar da participação
evangélica e que um evangélico poderia militar na esquerda. Essa dupla militância
403

foi ainda mais visível em relação ao Partido dos Trabalhadores (PT), constituído,
entre outras forças, por setores da esquerda cristã, fosse o Protestantismo
Ecumênico ou a Igreja Popular. Estavam em disputa tanto a esquerda quanto os
evangélicos, e os intelectuais do movimento de Missão Integral se tornaram
interlocutores de ambos, tentando abrir caminho no que parecia ser uma coalizão
de católicos e marxistas dentro do PT.
As mudanças na própria esquerda após a queda do muro de Berlim
contribuíram para que novos segmentos sociais e forças políticas fossem
incorporadas ao Partido dos Trabalhadores. A derrota nas eleições de 1989, para a
qual concorreu o voto evangélico, e o fim do socialismo no leste europeu, que se
seguiu àquele ano, deslocaram a prática e o discurso petista de defesa da
autonomia dos trabalhadores na construção de uma alternativa socialista e
democrática ao capitalismo, para a defesa da cidadania, da inclusão social e da
ética nas eleições de 1994, ainda à esquerda dos demais partidos.
A referência teológica dos protestantes representados no Movimento
Evangélico Progressista (MEP) e na Associação Evangélica Brasileira (AEVB),
ambos dos anos 1990, era a Missão Integral, diferente, portanto, dos vínculos que
o Protestantismo Ecumênico possuía com a Teologia da Libertação e que esta,
hegemonicamente católica, tinha com o marxismo. Nas eleições de 1994, um
núcleo desse setor protestante se afirmava explicitamente como uma ―esquerda
evangélica‖, expressão que só se tornou corrente para classificar o progressismo
protestante a partir da atuação dos intelectuais do movimento de Missão Integral.
A afirmação dessa ―esquerda evangélica‖ marcava uma disputa no campo político,
tentando desvincular do marxismo e da Teologia da Libertação, o pertencimento à
esquerda. Marcava também uma disputa no campo religioso, rejeitando a
identificação dos evangélicos com o fundamentalismo e sua representação
parlamentar. Este processo não representou a exclusão do Protestantismo
Ecumênico nos partidos de esquerda e movimentos de minorias, mas colocou em
evidência a disputa pela identidade evangélica à direita e à esquerda, pelo
fundamentalismo e pelo evangelicalismo.
A história da esquerda cristã durante a Ditadura Militar e na democracia
recente, sua relação com o marxismo, os partidos de esquerda e minorias
militantes, não pode ser contada sem a contribuição do Protestantismo Ecumênico
e daMissão Integral. Ao mesmo tempo, a história do ecumenismo e do
404

evangelicalismo não pode ser contada sem os caminhos e vicissitudes das


esquerdas e minorias durante a ditadura e a democracia recente, nem consideradas
equivalentes na relação que estabeleceram com elas. Durante a Ditadura Militar, o
Protestantismo Ecumênico esteve mais próximo dos referenciais marxistas, das
inovações teológicas europeias e norte-americanas e das minorias militantes, o
que possibilitou filiações mais objetivas aos partidos e movimentos. Suas
formulações teológicas, hermenêuticas e eclesiológicas também se posicionavam
à esquerda do evangelicalismo. Este, por sua vez, foi mais enfático na afirmação
de uma esquerda confessante após o fim da ditadura, disputando, ao mesmo
tempo, o pertencimento aos evangélicos e às esquerdas, mobilizando mais do que
os ecumênicos, o progressismo religioso nas eleições presidenciais.
A contribuição do Protestantismo Ecumênico e do movimento de Missão
Integral à esquerda cristã no Brasil tem sido uma experiência marginalizada pelos
padrões vigentes de participação política do segmento evangélico, submetendo o
protestantismo a uma interpretação homogeneizadora pela mídia, a academia e o
senso comum, ao mesmo tempo que produz no próprio meio evangélico um
horizonte limitado de perspectivas. Embora as pesquisas sobre a presença
evangélica no Brasil estejam crescendo a cada dia, abordando os mais variados
temas a partir de concepções teóricas e metodológicas as mais diversas, há
temáticas que apenas começam a ser investigadas.
A presença evangélica no cenário político atual, disputando e sendo
disputada por diferentes correntes ideológicas e sociais, aproxima o olhar dos
historiadores para as diferentes formas de interação entre política e religião na
sociedade brasileira a partir do protestantismo. Não menos importante, a presença
do Partido dos Trabalhadores no governo do Estado brasileiro também direciona a
atenção dos pesquisadores para o entendimento da construção histórica desse
partido que adquiriu um papel influente nos destinos da sociedade brasileira atual
e da qual o protestantismo progressista fez parte.
Tentar compreender as tendências protestantes que contribuíram para a
formação de uma esquerda cristã no Brasil e a inserção dessa esquerda cristã em
partidos e movimentos, é considerar a influência recíproca entre as disputas
políticas, as clivagens sociais e os conflitos religiosos aos quais os evangélicos se
vincularam historicamente no Brasil. Diante do protagonismo religioso e político
dos evangélicos na atualidade, e da hegemonia fundamentalista e corporativista
405

desse protagonismo, torna-se fundamental para repensar os rumos da nossa


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425

ANEXO

Tabela V – Bancada Evangélica: informações religiosas e políticas.

Constituintes evangélicos: informações religiosas e políticas


Parlamentar Igreja Estado Partido Subcomissão Nota do
DIAP
Antônio de Assembleia de Goiás PMDB Educação, 3,25
Jesus Deus cultura,
esportes
Costa Ferreira Assembleia de Maranhão PFL Direitos e 7,0
Deus garantias
individuais
Eliel Assembleia de Pará PMDB Família, 3,75
Rodrigues Deus menor, idoso
João de Deus Assembleia de Rio Grande do PTB Família, 6,0
Deus Sul menor, idoso
José Viana Assembleia de Rondônia PMDB Direitos e 4,25
Deus garantias
individuais
Manoel Assembleia de São Paulo PMDB Sistematização 7,25
Moreira Deus
Mateus Insen Assembleia de Paraná PMDB Família, 0,75
Deus menor, idoso
Milton Assembleia de Bahia PMDB Nacionalidade, 3,75
Barbosa Deus soberania e
relações
internacionais
Orlando Assembleia de Santa Catarina PFL Direitos 1,00
Pacheco Deus políticos,
direitos
coletivos e
garantias
Salatiel Assembleia de Pernambuco PFL Negros, 6,75
Carvalho Deus populações
indígenas,
pessoas
deficientes e
minorias
Sotero Cunha Assembleia de Rio de Janeiro PDC Família, 4,75
Deus menor, idoso
Benedita da Assembleia de Rio de PT Negros, 10
Silva Deus Janeiro populações
indígenas,
pessoas
deficientes e
minorias
José Fernandes Assembleia de Amazonas PDT Direitos e 6,25
Deus garantias
individuais
Arolde de Batista Rio de Janeiro PFL Ciência e 0,75
Oliveira Tecnologia, e
Comunicação
(presidente)
Edvaldo Batista Maranhão PFL Não consta 00
Holanda
Enoch Vieira Batista Maranhão PFL Poder 0,50
Executivo
426

Eraldo Tinoco Batista Bahia PFL Família, 0,25


menor, idoso
(relator)
Fausto Rocha Batista São Paulo PFL Ciência e 0,50
Tecnologia, e
Comunicação
Roberto Vital Batista Minas Gerais PMDB Ciência e 4,0
Renovada Tecnologia, e
Comunicação
Nelson Aguiar Batista Espírito PDT Família, 9,50
Santo menor, idoso
(presidente)
Edésio Frias Batista Rio de PDT Município e 10
Janeiro Regiões
Levy Dias Presbiteriana Mato Grosso PFL Direitos dos 1,25
Independente do Sul Trabalhadores
e Servidores
Públicos
Rubem Presbiteriana Acre PMDB Poder 1,00
Branquinho Legislativo
Lézio Sathler Presbiteriana Minas Gerais PMDB Orçamento e 7,00
fiscalização
financeira
Celso Presbiteriana Bahia PMDB Sistematização 9,75
Dourado Unida
Lysâneas Presbiteriana Rio de PDT Direitos 9,75
Maciel Unida Janeiro políticos,
direitos
coletivos e
garantias
Mário de Quadrangular Minas Gerais PMDB Garantia da 3,50
Oliveira Constituição,
Reformas e
emendas
Jayme Paliarin Quadrangular São Paulo PTB Direitos 7,75
políticos,
direitos
coletivos e
garantias
Daso Coimbra Congregacional Rio de Janeiro PMDB Defesa do 1,25
Estado, da
sociedade e da
sua segurança
Noberto Luterano Rio Grande do PMDB Não consta 7,0
Schwantes Sul
Naphtali Alves Cristã Goiás PMDB Orçamento e 5,50
Evangélica fiscalização
financeira
Gidel Dantas Igreja de Cristo Ceará PDC Questão urbana 5,25
e transporte
Roberto Universal Rio de Janeiro PTB Ciência e 5,75
Augusto Tecnologia, e
Comunicação
Eunice Adventista Amazonas PFL Família, 1,50
Michiles menor, idoso

Obs. Em negrito, os parlamentares de oposição ou de esquerda, dissidentes da


Bancada Evangélica, que foram bem avaliados

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