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ANO I - NÚMERO I FEVEREIRO - 2019

BOLETIM 3X22
1822 1922 2022

APRESENTAÇÃO
3X22: REALIZAÇÕES

ENTREVISTA
INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
COM JOÃO PAULO G. PIMENTA

CONTEXTO
A SEMANA DE ARTE MODERNA
E O CONTEXTO DO FESTIVAL
MODERNISTA DE 1922

ARGUMENTO
NÃO CAUSE UM ACIDENTE

edição
MANIFESTO
CARTA-MANIFESTO TRESVEZENTISTA

MANIFESTOS DE 1822

MANIFESTO ANTROPÓFAGO
nós precisamos

DE VOCÊ!
A Redacção do BOLETIM 3X22, a fim de cultivar
a pluralidade em suas publicações e estimular a pro-
dução cultural, busca por feituras externas e indepen-
dentes para divulgar em suas páginas. Para a próxi-
ma edição, procura-se material relacionado ao tema
NACIONALIDADE.
Se você quer divulgar artigos, ensaios, poesias, crô-
nicas, fotografias, pinturas ou qualquer outro tipo de
produção científica, literária e/ou artística com um
formato que permita sua publicação em nossas pági-
nas, envie um e-mail com o assunto “Nacionalidade
- seu nome” para o endereço 3vezes22@gmail.com

Com amor,
A Redacção
Trechos do Manifesto Dadaísta, de Tristan Tzara (1918).
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor Vahan Agopyan
Vice-Reitor Antonio Carlos Hernandes

PRÓ-REITORIA DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA


Pró-Reitora Maria Aparecida de Andrade Moreira Machado
Pró-Reitora Adjunta Margarida Maria Krohling Kunsch

Diretor Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron


Vice-Diretor Alexandre Macchione Saes

COORDENADOR
Alexandre Macchione Saes

EQUIPE 3 VEZES 22
Alaine Lizandra
Andressa Villagra
EDIÇÃO, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Giovane Direnzi
Equipe 3 VEZES 22
Marina da Silva
Norberto de Assis
Thaís Freitas
AGRADECIMENTOS

ARTE João Paulo Garrido Pimenta

Alaine Lizandra (ilustrações) Cecilia Helena de Salles Oliveira


Giovane Direnzi (colagens, ilustrações) André Luis Rodrigues

O BOLETIM 3X22, enquanto canal de comunicação do projeto 3 vezes 22, pretende difundir suas reflexões
acerca da história, cultura e produção artística do Brasil, passando principalmente pelos períodos da Inde-
pendência e do Modernismo para, a partir daí, pensar sobre os dias atuais e o futuro do país. As opiniões
expressas nos textos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores.
Todo material incluído nesta revista tem a autorização dos autores ou de seus representantes legais. Qual-
quer parte dos textos da publicação pode ser reproduzida, desde que citados autor e fonte.

Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin:


Rua da Biblioteca, 21, Cidade Universitária, São Paulo, SP CEP 05508-065
bbm.usp.br/publicacoes EMAIL bbm@usp.br TEL: 11 2648-0310 / 11 3091 - 1154
A
o completar o bicentenário da tória” estabeleceu um novo panteão por
Independência e o centenário meio da seleção de personagens, de even-
da Semana de Arte Moder- tos e de conceitos que, se por um lado
na no ano de 2022, abre-se a iluminaram uma determinada versão da
oportunidade para refletir e redimensio- História do Brasil, por outro obscurece-
nar a história da nossa formação - do Esta- ram narrativas e personagens. O entrecru-
do e da Sociedade, assim como da cultura zamento das narrativas históricas de 1822
histórica brasileira. O projeto 3 vezes 22 e 1922 supõe também enfrentar a dialéti-
não é apenas a celebração de duas datas ca entre memória e esquecimento, para
canônicas, mas uma tentativa de entre- que seja possível revelar personagens,
cruzar as temporalidades da Independên- acontecimentos e processos obliterados.
cia (1822), do Modernismo (1922) e da Compreender a formação dos cânones e
história contemporânea (2022). As duas dos panteões em sua plena historicidade
efemérides provocam uma reflexão não e temporalidade é refletir também sobre
somente sobre a constituição do país no a pertinência de suas permanências, as-
plano político, mas também sobre as iden- sim como de eleger novos personagens,
tidades de pertencimento da sociedade. acontecimentos e sentidos para a Inde-
A Independência, como acontecimento, pendência e o Modernismo.
conjuga-se com o processo mais amplo de O projeto 3 vezes 22, nesse sentido, pre-
formação do Estado nacional, materiali- tende promover o confronto de três vinte
zado pela soberania política, econômica e e dois: o da Independência, o da Semana
cultural, além da perspectiva de uma afir- de Arte Moderna e aquele que nossa ge-
mação da singularidade nacional perante ração vivenciará. A reflexão crítica media-
as demais nações. Como sabemos, no da pelos desafios do presente contempla-
caso brasileiro a emancipação política não rá o legado deixado pelas narrativas sobre
coincidiu com a afirmação da nacionali- o movimento modernista, revisitando o
dade. Como alertou Sérgio Buarque de patrimônio cultural acumulado trazendo
Holanda, a nação precedeu o nacionalis- à tona as zonas de sombra dos “tempos
mo, não constituindo um desdobramento renegados”. A Biblioteca Brasiliana Guita
natural do último: a construção de heróis, e José Mindlin possui um acervo valioso
de símbolos e, inclusive, da própria nar- para auscultar territórios de pesquisa bi-
rativa de uma história nacional deu-se ao bliográfica e documental ainda pouco pal-
longo dos séculos XIX e XX. Numa certa milhados. Rever essas duas datas a par-
perspectiva, o modernismo esteve imbri- tir dos desafios do tempo presente será
cado com os dilemas culturais suscitados nosso principal intento. Assim, o projeto
pela ruptura colonial. 3 vezes 22 vale-se do rico material con-
A geração modernista encampou a tarefa servado na BBM para encontrar nos do-
de refletir sobre esse momento decisivo, cumentos, nos livros e nas interpretações,
rompendo com a tradição estética legada dominantes ou não, de nossa historiogra-
do romantismo e produzindo uma in- fia elementos que possam contribuir para
fluente, duradoura e nova interpretação a análise de nossa história, projetando
da história do Brasil. Mas, como toda nar- questões que norteiem perspectivas de
rativa sobre o passado, a “reescrita da his- análise dos desafios contemporâneos.
_APRESENTAÇÃO
3X22: REALIZAÇÕES,
por Alexandre Macchione Saes 06

_ENTREVISTA
INDEPENDÊNCIA DO BRASIL,
entrevista com João Paulo Garrido Pimenta 10

_CONTEXTO
A SEMANA DE ARTE MODERNA E O CONTEXTO
DO FESTIVAL MODERNISTA DE 1922,
por André Luis Rodrigues 20

_MANIFESTOS
MANIFESTOS DE 1822: POLÍTICA E MEMÓRIA,
por Cecilia Helena de Salles Oliveira 27

MANIFESTO ANTROPÓFAGO: A PRIMEIRA FASE


DO MODERNISMO EM SEU ÁPICE,
por Giovane Direnzi 30

_ARGUMENTO
NÃO CAUSE UM ACIDENTE,
por Norberto de Assis 36
3X22: REALIZAÇÕES
Por Alexandre Macchione Saes

O
projeto 3 vezes 22 foi estabe- pendência e do movimento modernista
lecido a partir de uma propos- nos remetiam a conceitos como soberania,
ta do Conselho Deliberativo modernidade, nacionalidade, entre outros,
da Biblioteca Brasiliana Guita ficava evidente que o resgate do passado
e José Mindlin (BBM), para que a insti- oferecia a oportunidade de estabelecer
tuição iniciasse desde 2017 uma reflexão um olhar crítico sobre o nosso presente.
sobre duas datas comemorativas que se Nascia assim o título do projeto, 3 vezes
aproximavam: o Bicentenário da Indepen- 22, articulando os três vinte e dois – 1822,
dência e o Centenário da Semana de Arte 1922 e 2022 – numa única ideia que foi
Moderna. A leitura era de que antecipar a sintetizada pelo logo elaborado por Osi
organização de atividades dedicadas às da- Nascimento.
tas poderia viabilizar um espaço para cons- Os primeiros eventos ocorreram na sala
truir material e reflexão suficientemente Villa Lobos da BBM, ainda no final de
oxigenados para fugir de solenidades de 2017. O seminário “A Hora e Vez de Clari-
caráter mais protocolar. ce Lispector”, coordenado por Erwin Tor-
O primeiro desafio foi estabelecer um pro- ralbo Gimenez, contou com intervenções
jeto que pudesse articular a Independên- em torno dos quarenta anos da publicação
cia, a Semana de Arte Moderna e o desejo do livro da autora, A Hora da Estrela. O
do Conselho Deliberativo de extrapolar o seminário “1817: Pernambuco, o Brasil o
sentido daqueles marcos do passado para Mundo” abordou o bicentenário da revo-
avaliar os desafios que se colocam à nossa lução pernambucana; já o seminário “25
sociedade do século XXI. Considerando Anos de História dos Índios no Brasil:
que as experiências do processo de Inde- Balanços e Perspectivas da História Indí-

6 Boletim 3X22
Logo do projeto 3X22
elaborado por
Osi Nascimento

1 2

Cartazes produzidos por Sílvia


Voss dos eventos realizados
pelo BBM (Figuras 1, 2 e 3) e
SESC (Figura 4) através do
3X22

3 4

Manifesto
gena” partiu da comemoração do jubileu atuais da historiografia sobre a Indepen-
de prata do livro História dos Índios no dência.
Brasil, de Manuela Carneiro da Cunha, re- Outra relevante parceria foi estabelecida
sultando em três dias de intensos debates com o Instituto CPFL, por meio de um
com mais de uma dezena de interveções. Módulo sobre a Semana de Arte Moderna
No primeiro semestre de 2018 outros dois no Café-Filosófico: “Semana de 22: Histó-
eventos foram realizados na USP. O semi- ria e Reverberações”, que abordou três ex-
nário “Liberdade de Imprensa? A Aven- pressões centrais do modernismo (as artes
tura dos Primeiros Redatores da Província visuais, a literatura e a música) buscando
do Maranhão” abordou um olhar regional resgatar o legado daquela geração para re-
pouco estudado sobre o processo de In- fletir sobre as questões contemporâneos.
dependência do Brasil, demonstrando que
Até 2022, outras atividades serão realizadas.
não existiu um movimento homogêneo de
As parcerias com SESC e Instituto CPFL
emancipação do país. E, com apoio do De-
serão mantidas, assim como iniciaremos
partamento de História da USP, em maio
a publicação de materiais resultantes dos
ocorreu o Seminário “História e Historio-
eventos já realizados. Novos seminários
grafia do Trabalho Escravo no Brasil”, que
serão elaborados, como o Seminário “O
propôs debates em torno de temáticas clás-
Lado Oposto e os Outros Lados”, entre os
sicas da historiografia do trabalho escravo
dias 25 e 28 de Fevereiro de 2019 no Cen-
no Brasil.
tro de Pesquisa e Formação do SESC, e o
Para além dos eventos realizados na USP, Seminário “Oliveira Lima e a Longa (His-
o projeto 3 vezes 22 estabeleceu parcerias tória) da Independência”, nos dias 10 e 11
com duas instituições. Com o SESC reali- de setembro de 2019 que terá a Biblioteca
zamos uma colaboração fundamental du- Oliveira Lima, da Universidade Católica
rante o ano de 2018. Por meio do Centro da América de Washington (EUA) como
de Pesquisa e Formação, realizamos três parceira. Adicionalmente lançamos o Bo-
ciclos de seminários e um curso, abrangen- letim 3X22, espaço para a divulgação das
do os mais diversos temas pertinentes às atividades do projeto, como também para
três datas. O primeiro seminário foi o “Se- a reflexão sobre temas transversais relacio-
mana 22: Olhares Críticos”, realizado em nadas às três datas, assim como entrevistas
fevereiro e coordenador por Marcos Anto- em vídeo com especialistas que possam es-
nio de Moraes. Ao longo do ano também timular a disseminação das temáticas para
foram realizados os seminários “Afeto e além de um público universitário.
Convicção: Uma Homenagem a Antonio
Candido” e “O Destino Não-Manifesto:
Projetos de Universidade Para o Brasil em
Três Tempos 1822/1922/2022”, este últi-
mo coordenado por Iris Kantor. O curso
oferecido no SESC, por sua vez, abordou
a temática da Independência. Coordenado
pelos professores Cecília Helena de Salles
Alexandre Macchione Saes é Vice-diretor da BBM,
Oliveira e João Paulo Pimenta, “Saberes, Professor e Coordenador do curso de Economia da
Representações e Mitos Sobre a Indepen- FEA/USP e Professor do Programa de Pós-Graduação
dência” foi realizado em oito encontros em História Econômica da FFLCH/USP.
que problematizaram temáticas bastante

8 Boletim 3X22
f CARTA-MANIFESTO

Carxs,

Tresvezvintidois é mais que sessenteiseis. É nascida no fundo


do mato-virgem, filha do medo da noite. Já na meninice fez coi-
sas de sarapantar! É Gaya, mãe autônoma do mar do Nordeste,
dos montes do Sudeste e do céu do Mundo Todo. Tresvezvin-
tidois que pariu e nos uniu, antes que o raio que nos parta, do
patriarca Zeus, nos partir

Socialmente

Economicamente

Filosoficamente

f
...

Manifesto
ENTREVISTA

INDEPENDÊNCIA
DO BRASIL
Com João Paulo G. Pimenta

D
ocente do Departamento de História da Faculdade de Filoso-
fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Pau-
lo, o Prof. João Paulo Garrido Pimenta concedeu ao Boletim
3X22 uma entrevista na qual explora a Independência do Bra-
sil e narra, passando por detalhes muitas vezes esquecidos pelos livros
didáticos, a trajetória política do Brasil-Colônia e seus principais perso-
nagens. Desde seu sentido e causas, até seus diferentes efeitos em terri-
tório nacional, a entrevista esclarece e até mesmo desmistifica o que foi a
Independência no país.

10 Boletim 3X22
3X22: Em linhas gerais, o que foi a inde- operação política que é feito para evitá-lo.
pendência no Brasil e como ela ocorreu? A Família Real Portuguesa, na época, tinha
João Paulo G. Pimenta: Ocorrida no co- à sua frente o príncipe regente D. João,
meço do século XIX, a Independência foi que só viria a ser o Rei D. João VI pos-
um processo histórico de separação políti- teriormente, e a Rainha D. Maria I, que
ca entre Portugal e Brasil da maior impor- é impedida de reinar por ser considerada
tância. No fim do século XVIII e no co- mentalmente incapacitada. Então, desde o
meço do XIX, o Brasil era constituído por final do século XVIII, quem governa para
um grupo de colônias de unidade muito valer esse Império Português é um prínci-
frágil. Não havia um país unificado chama- pe regente. Dessa forma, o príncipe regen-
do Brasil, mas um conjunto de territórios te, a rainha e toda a Corte, com seus prin-
portugueses na América, assim como na cipais ministros e funcionários, fogem para
Ásia e na África, que juntos formavam o o Brasil com a proteção britânica. Essa de-
Império Português. cisão é uma estratégia política e um cálculo
A Independência significou a separação de difícil de ser feito devido às circunstâncias
uma parte desses territórios – os territórios urgentes e dramáticas de quando é realiza-
do Brasil – que passou a formar um novo do. Uma parte dessa comitiva vai para Sal-
Estado e uma nova Nação. O importante vador e a outra vai para o Rio de Janeiro.
processo de separação, que ainda nos traz Mais tarde, em 1808, aqueles reúnem-se a
efeitos diretos e indiretos, tem relações estes no Rio de Janeiro.
com a situação do Império Português já Acontece, a partir daí, um reforço da uni-
no século XVIII. No entanto, não há ne- dade do Império Português. A família real
nhum movimento político neste momento permanece no Brasil – algo que é inédito
que esteja preparando diretamente essa se- na história dos impérios: em toda a hu-
paração entre Portugal e Brasil. manidade nunca tinha ocorrido de uma
Quando o Brasil se separa no século XIX, ex-colônia tornar-se a sede do Império.
cria-se uma unidade que não tinha sido Além disso, o Brasil deixa de ser colônia,
pensada antes. Quais são, então, os acon- tendo, no entanto, uma relação ambígua
tecimentos principais desse processo? com Portugal.
A maioria dos estudiosos começa a enten- Em paralelo com a vinda da Corte Real
der o seu início por volta de 1807, ano para o Brasil, o Império Britânico protege
em que a Família Real Portuguesa preci- o Império Português e continua a guerra
sa sair de Portugal por conta da iminente na Europa contra a França, até que, em
invasão napoleônica e se transferir para 1814, a França é finalmente vencida. A
aquelas que eram consideradas suas mais derrota do Império Francês coloca uma
importantes colônias no começo do sécu- grande pergunta para a política da época: a
lo XIX: as colônias do Brasil. Com sua Corte Portuguesa, que tinha vindo ao Bra-
vinda ao Brasil, a Família Real Portuguesa sil para fugir da guerra e preservar sua uni-
evita uma guerra direta contra a França de dade como império, vai voltar à Portugal?
Napoleão e seu exército, que invade Por- O problema aqui é que existiam interesses
tugal ainda em 1807 e é uma ameaça mui- políticos e econômicos fortes pela perma-
to grave. A ameaça de desaparecimento nência da Corte na América, do mesmo
da Monarquia Portuguesa era um risco modo que havia também para a volta dela
evidente e a vinda para o Brasil foi uma à Europa. Então, o ano de 1808, apesar de

Manifesto 11
criar de imediato um reforço do Império, 3X22: Podemos falar de uma só Indepen-
cria também fissuras e problemas dentro dência no Brasil?
desse Império Português que não existiam J.P.: O Brasil não era uma unidade antes
antes. A Corte se vê, então, dividida. da Independência, era uma diversidade e
A Corte permaneceu no Brasil e isso au- pluralidade de territórios portugueses com
mentou o descontentamento de portugue- relações muito desiguais entre si, em que
ses de Portugal, que queriam seu retorno. existiam partes mais e menos próximas, as-
Finalmente, em 1820, esses descontentes sim como contatos mais e menos frequen-
fazem uma revolução que implica uma li- tes de umas regiões com as outras. Como
mitação dos poderes do agora Rei D. João não havia essa unidade do Brasil antes da
VI. Independência, a consequência lógica é
que o processo de separação entre Portu-
gal e Brasil não se fez de modo igual em
todas as partes.
Existem muitas variações regionais dessa
Independência do Brasil e é muito impor-
É a partir dessa revolução, a tante que quem queira saber ou pensar
algo sobre ela, ou se dispor até a eventual-
revolução constitucionalista mente estudá-la, não reduza seu processo
Portuguesa de 1820, que os a uma única região: não tome o que acon-
teceu em um ponto específico como se
grupos que ficam no Brasil fosse uma tradução perfeita do que acon-
e que defendem a perma- teceu em outras partes. Temos que enten-
der que, durante os séculos XVI, XVII e
nência do rei e de sua Corte XVIII, essas regiões diversas das Colônias
surgem com um projeto Portuguesas do Brasil tinham perfis pró-
prios: algumas eram mais antigas e outras
de separação política entre eram mais recentes.
Brasil e Portugal, mesmo Pernambuco, por exemplo, foi colonizado
já no início do século XVI, com base na
depois de eles voltarem à cana-de-açúcar. O mesmo pode se dizer
Portugal em 1821. da Bahia. Já a colonização de Minas Ge-
rais começa do final do século XVII para
o começo do século XVIII com base na
mineração, assim como a região do atual
Centro-Oeste. A região amazônica tam-
bém tem suas formas econômicas próprias
Portanto, verifica-se que não havia esse desde o século XVI.
projeto de separação antes de 1822, muito Todas essas assimetrias do processo colo-
menos antes de 1808. São os acontecimen- nizador português na América terão con-
tos entre 1808 e 1822 que vão criando uma sequências no processo de independência
alternativa política que não existia antes. do Brasil. A ideia de Independência co-
meça a surgir, a partir de 1808, mas vai se
intensificando a partir de 1815 e com uma

12 Boletim 3X22
Aclamação do Rei Dom João VI no
Rio de Janeiro, 1839. Debret, Jean
Baptiste. Acervo da Biblioteca
Brasiliana Guita e José Mindlin.

Manifesto
força bem clara a partir de 1820, podendo, representam a dificuldade de se obter una-
então, se tornar uma realidade. Nesse mo- nimidade em torno do Império do Brasil
mento existem regiões do Brasil que são que estava surgindo em 1822.
mais próximas geograficamente e politica- Um adendo: ninguém leva muito a sério,
mente de Portugal, e outras regiões que o entre os especialistas, o marco de 7 de se-
são do Rio de Janeiro, que é o centro do tembro, que é o marco tradicional da In-
processo emancipatório. dependência e que até hoje corresponde
Há, portanto, muita dissidência no Brasil, ao feriado cívico nacional brasileiro. Alí
projetos alternativos e intensa discordân- deve ter acontecido algo, mas aconteceram
cia. Assim, vemos que quando a Inde- coisas mais importantes para o processo,
pendência é formalizada entre setembro entre outubro e dezembro de 1822, como
e dezembro de 1822, esse processo que a aclamação de D. Pedro I como Impera-
aconteceu não é adotado unanimemente dor e sua coroação.
por todos os grupos políticos e econômi- Até hoje, os modos de se pensar a Inde-
cos do Brasil: existem setores que querem pendência do Brasil variam dependendo
se manter unidos ao Império Português, o das regiões do país. Basta lembrar que o
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algar- 7 de setembro, que é hoje esse grande fe-
ves. Eles pensam, e com razão, a perma- riado cívico nacional brasileiro, não tem
nência junto ao corpo político português. correspondência no estado da Bahia – lá o
feriado é 2 de julho, que diz respeito a 2 de
julho de 1823, a data considerada como de
adesão final da província da Bahia ao Im-
pério do Brasil. Existem memórias e tradi-
O processo de ções locais, ênfases locais e até mesmo em
pesquisas acadêmicas sobre o processo de
Independência do Brasil estado para estado.
é caracterizado por muita Não houve uma única Independência, mas
sim um processo que tomou uma varieda-
desavença política, por de de lugares, unificando estes em torno
projetos alternativos e do Império do Brasil a partir de 1822.
Mas, ao contrário do que muitos pensam,
inclusive por guerras. esse processo teve muitas lutas, desavenças
e episódios violentos. É importante que se
diga isso porque o brasileiro incorpora um
mito de que o Brasil é um país pacato, que
os brasileiros não são chegados à violên-
cia, que há um caráter nacional pacífico e
Existem guerras em províncias como o conciliador. Isso é um mito e uma distor-
Pará, o Maranhão, o Piauí, a Bahia e a ção grave de uma história empanturrada
Província Cisplatina, que até então era par- de episódios extremamente violentos que
te do Reino Unido Português. Há guerras persistem até hoje. É claro que o Brasil é
em todas essas partes e muitas alternativas um país violento e é lógico que a sociedade
em outras províncias, como em Pernambu- brasileira o é, como também era no episó-
co. Assim, essas guerras de Independência dio de formação do Brasil a partir de 1822.
são episódios violentos e dramáticos que

14 Boletim 3X22
3X22: Quais foram as consequências a unidade. Precisou criar um aparato estatal,
curto e longo prazo da Independência no institucional e inclusive um aparato jurídi-
Brasil? co - daí a promulgação da primeira Cons-
J.P.: A curto prazo, a Independência sepa- tituição Brasileira, em 1824; da formação
rou o Brasil de Portugal. Ela deu início a do primeiro Parlamento, que começou a
um processo de formação de um Estado trabalhar em 1826; da criação de um siste-
que não existia, começou a criar institui- ma tributário nacional; de um sistema de
ções deste que não existiam anteriormente representação político-eleitoral nacional;
e começou a modificar a forma pela qual criação de um exército nacional… Nada
os portugueses do Brasil se reconheciam disso existia na época.
como uma nação. O que eu quero dizer: A Independência não fez nada disso de
antes de 1822, no século XIX, não haviam repente, mas a curto prazo precisou lidar
indivíduos que se consideravam brasileiros com todos esses problemas. Se o Brasil
como uma forma de correspondência a agora não é mais parte do Reino Unido
uma sociedade ou uma comunidade polí- Português, e se ele é algo em si mesmo,
tica. Não havia o que nós chamamos hoje então é necessário dotar esse algo em si
de brasileiros e de nação brasileira. Essa é mesmo do seu correspondente aparato
uma criação da Independência. institucional e do seu correspondente apa-
Então, nos séculos XVI, XVII e XVIII rato identitário.
existiam muitas formas de ser português, Ora, essas consequências imediatas, en-
e essas formas correspondem à própria tão, nos conduzem a consequências de
diversidade interna do Império Português. mais longo prazo, consequências que são
Tem um português da Bahia, o baiense, o sentidas até hoje e que deveriam ser do
de São Paulo, o paulista; no século XVIII conhecimento de todo brasileiro, porque
surgem os portugueses de Minas Gerais, os diz de onde o Brasil vem. Quais são es-
filhos das minas, porque o mineiro - essa sas consequências de longo prazo? A con-
terminologia “eiro”, como em brasileiro, se solidação de Em estado, de uma nação e
referia a uma prática comercial - era aquele de uma identidade brasileira que foram
que praticava a mineração. Até existia a pa- criados pela Independência, ainda que
lavra brasileiro, mas ela se referia a aqueles não tenham sido criados abruptamente.
que comercializavam produtos do Brasil. Repito: tem a ver com a história anterior
A identidade nacional era portuguesa, com do Império Português, sobretudo no sé-
variações. E lógico: essa identidade nacio- culo XVIII e no começo do século XIX.
nal era distribuída de forma desigual, de Assim, é importante ter em mente todos
acordo com as hierarquias da época. Um esses elementos que hoje dizem respeito a
escravo não seria reconhecido como parte existência de um Estado: o brasileiro tem
dessa nação porque não era efetivamente que obedecer às leis do Brasil; o brasileiro
integrado a esse corpo português. Ele tinha está obrigado a votar para a composição do
uma outra condição social e portanto era Poder Executivo e do Poder Legislativo do
excluído dessa nacionalidade. Brasil; todo brasileiro, do sexo masculino,
Assim, a curto prazo, a Independência que complete dezoito anos é obrigado a se
precisou criar uma unidade que não exis- oferecer ao serviço militar; e assim sucessi-
tia antes. Ela precisou impor à força que vamente -, tudo isso começou a ser criado
algumas províncias fizessem parte dessa pela Independência do Brasil.

Manifesto 15
Aclamação de Dom Pedro II: no
Rio de Janeiro dia 7 de Abril de
1831, 1839. Debret, Jean Baptis-
te. Acervo da Biblioteca Brasilia-
na Guita e José Mindlin.

Boletim 3X22
tava crescendo no Brasil e quando ocorre
a Independência, esse comércio continua
a crescer.
Hoje nós somos herdeiros de muitas des-
E se hoje o brasilei- sas coisas que ocorreram na colonização
ro se reconhece como e que foram mantidas, aumentadas e re-
criadas quando surgiu o Estado Nacional
brasileiro diante de Brasileiro. Vivemos as mazelas, por exem-
estrangeiros, se ele tem a plo, da herança do nosso passado escra-
vista. Nada disso, no entanto, impede que
oportunidade de sair do nós apreciemos a profundidade de outras
país, se ele está mobilizado coisas que aconteceram. A formação de
um Estado, de uma nação e de uma iden-
emocionalmente e/ou tidade nacional que não existiam antes é
mais que suficiente para que nós caracte-
profissionalmente por rizemos essa como uma das revoluções da
competições esportivas, nossa história. Inclusive, porque não existe
nenhuma revolução na história que tenha
tudo isso se deve a essa mudado todas as coisas de uma sociedade.
mudança de identidade: a As revoluções são sempre movimentos de
mudança parciais e segmentados.
criação de uma nacionali-
dade brasileira.

São efeitos duradouros, importantíssimos


desse processo histórico, dessa história do
século XIX. Isso é, inclusive, suficiente
para que caracterizemos a Independência
do Brasil como um processo revolucioná-
rio. A palavra parece estranha, por conta
dessa mitologia que insiste que o Brasil
é um país onde tudo ocorre de cima pra
baixo, onde as coisas são sempre na base
da conciliação, onde elas perduram - e
de fato, muitas coisas perduram a muito
tempo, como a desigualdade social e a
concentração de renda. A Independência
não mexeu fundamentalmente com es-
ses aspectos. A Independência, inclusive, João Paulo Garrido Pimenta é Livre-docente em His-
tória do Brasil Colonial, Professor e Chefe do Departa-
manteve e reforçou a escravidão no Brasil. mento de História da FFLCH/USP.
O comércio de escravos no século XIX es-

Manifesto 17
Boletim 3X22
f
II

Tresvezvintidois é clamor pelo diálogo em tempos de autover-


dade. É a filha democrática que não foge à luta e tampouco dos
debates. É o teatro da realidade disposto e exposto fora do zap-
zap. E por isso é também uma ode ao burguês revolucionário,
ao índio de carnaval e ao intelecto inaplicável

Ah, Ciranda

Cirandinha

Vamos todos

Cirandar!

f
Manifesto
A SEMANA DE ARTE MODERNA
e o contexto do festival modernista de 1922

Por André Luis Rodrigues

A
inauguração do Theatro Muni- “O Guarani”, de Carlos Gomes. Assim,
cipal de São Paulo em 1911, um mesmo as pessoas mais simples que cir-
belo edifício erguido no Morro do culavam pelo Viaduto do Chá, pelas ruas
Chá, na região central, em estilo arquitetô- Coronel Xavier de Toledo e Barão de Ita-
nico inspirado na Ópera de Paris, tinha le- petininga, e pela Esplanada do Teatro, que
vado ao primeiro congestionamento de au- depois receberia o nome de Praça Ramos
tomóveis na cidade, índice tanto da riqueza de Azevedo, ou trabalhavam nas cercanias
e pujança da capital paulista, propiciadas até o começo da noite não devem ter se
pela produção cafeeira e pela incipiente mostrado muito surpresas com a entra-
industrialização, uma e outra movidas pelo da no Municipal de homens e mulheres
trabalho de brasileiros e imigrantes, como elegantemente vestidos, que pareciam vir
dos conhecidos efeitos “colaterais” desse para mais uma atração da temporada lírica
desenvolvimento num ritmo que então po- ou musical.
dia ser chamado de alucinante. Esses habitués, por seu turno, não pode-
Em fevereiro de 1922, o luxo e o brilho riam ficar mais chocados diante do que
do imponente teatro deviam estar prati- viam e ouviam lá dentro, por mais que o
camente intactos, ainda que estivesse já nome dado ao festival sugerisse que iriam
incorporado à paisagem da cidade e, ao ver e ouvir o novo: Semana de Arte Mo-
longo desses pouco mais de dez anos, ti- derna. Ainda que até hoje não seja ponto
vesse recebido muitos espetáculos como o pacífico, a ideia teria partido do pintor Di
da abertura, cujo programa incluía a ópera Cavalcanti, como uma grande oportuni-

20 Boletim 3X22
dade – no ano em que se comemorava o um epígono qualquer, inspirado num dos
Centenário da Independência – de apre- grandes poetas parnasianos, como Olavo
sentar a arte nova concebida ou produzida Bilac ou Alberto de Oliveira, não tinham
por jovens pintores, escultores, arquitetos, como não se horrorizar ao ouvirem os po-
compositores e escritores, e ao mesmo emas de Pauliceia Desvairada declamados
tempo chacoalhar o marasmo da produ- no palco por Mário de Andrade. Aqueles
ção artística acadêmica e convencional, que consideravam grandes artistas os imi-
que insistia em não acertar o passo com tadores de Pedro Américo ou Victor Mei-
as transformações – para o bem e para o relles não podiam deixar de se escandali-
mal – que se davam em todos os setores da zar diante dos quadros de Anita Malfatti,
vida humana, no Brasil, embora com mais como “A Mulher de Cabelos Verdes” ou
vagar, e no mundo todo. “A Estudanta Russa”, expostos no saguão
Ao ser informado da proposta, o escritor do teatro, juntamente com obras de Di Ca-
e diplomata Graça Aranha a acolheu com valcanti, Vicente do Rego Monteiro, Vic-
grande entusiasmo. Interessados nesse en- tor Brecheret e outros jovens artistas. Os
volvimento antes por conta do prestígio amantes da música de Carlos Gomes, ao
do escritor mais velho que por sua obra e ouvirem as composições de Heitor Villa-
ideias, de fato pouco avançadas, os primei- -Lobos executadas no palco, só podiam
ros modernistas não demorariam a rom- reagir com exasperação.
per com o autor de Canaã. Mas seria por Nem mesmo obras relativamente conven-
seu intermédio que o evento obteria apoio cionais ou exposições teóricas escapavam
e patrocínio de homens poderosos, mem- da fúria da audiência. Oswald de Andrade,
bros das famílias mais tradicionais de São que em 1924 lançaria o Manifesto da Poe-
Paulo, cuja riqueza estava ligada ao café, sia Pau Brasil, mal conseguiu ler um trecho
como é o caso de Paulo Prado, historia- de seu romance Os Condenados, que ele
dor e intelectual refinado, para Mário de mesmo afirmará muitos anos depois “nada
Andrade o “fautor verdadeiro da Semana tinha de excessivamente moderno ou revo-
de Arte Moderna”. Graça Aranha viria ain- lucionário”. O público vaiou, pateou, asso-
da a proferir a conferência de abertura, “A biou e gritou durante toda a leitura. Mário,
emoção estética na arte moderna”. por sua vez, proferiu uma conferência so-
Assim, nas noites de 13, 15 e 17 de feve- bre artes plásticas na escadaria do teatro,
reiro (segunda, quarta e sexta-feira), no in- “cercado de anônimos que [lhe] caçoavam
terior do já venerável Theatro Municipal, e ofendiam a valer”.
a arte dos então chamados futuristas era A imprensa ecoava a aversão do público.
apresentada ao público, que em grande Obras de artistas que hoje admiramos
parte expressava – por meio de vaias, asso- eram motivo de chacota e deboche, sendo
bios, pateadas, latidos e cacarejos – o seu definidas por um jornalista da época como
descontentamento, irritação ou desprezo “ceroplastia [arte de moldar em cera] cari-
diante do que viam e ouviam. cata de pinceladas a esmo, uma touça de
O exorbitante dessas manifestações não sons atacados de pulgões melódicos e um
encontrava explicação apenas no fato de carrilhão de palavras que se assemelham
terem pago ingresso para um espetáculo aos rumores infernais de uma banda ale-
que parecia não estar à altura do esperado. mã” (Oliveira Castro, n’A Gazeta). Menotti
Aqueles que julgavam genial a poesia de del Picchia (quase sempre com o pseudô-

Manifesto 21
nimo Hélios), Mário de Andrade e Oswald definiria boa parte das obras expostas seria
de Andrade não deixavam esses ataques “pós-impressionista”. Quanto às demais,
sem resposta, em artigos tão virulentos e em larga medida se dividiriam entre obras
derrisórios como os de seus detratores. românticas e obras calcadas num cubismo
Na defesa de uma expressão coloquial e “não digerido e inautêntico”.
inventiva, recorriam com frequência a uma Como sugere o exemplo de Oswald, com
linguagem não menos pomposa e grandi- a literatura não parece ter sido muito dife-
loquente que a de seus inimigos. rente. Vários escritores e poetas que parti-
A despeito de todo o escândalo e animosi- ciparam da Semana pareciam mais moder-
dade, a Semana foi caracterizada por uma nistas nas ideias, no discurso e na atitude
mistura entre o verdadeiramente moderno polêmica do que na criação literária. A des-
e o moderno ma non tropo, não muito di- peito de tentativas de renovação por parte
ferente do que se deu num episódio reve- de alguns escritores nos anos precedentes,
lador ocorrido em 1917 e contado muitos só Mário de Andrade havia escrito um livro
anos depois por Mário de Andrade. Arre- de poemas realmente inovador, que logo
batado pela exposição de Anita Malfatti, seria publicado. Os demais, com uma ou
violentamente criticada por Monteiro Lo- outra exceção – como Manuel Bandeira,
bato, o futuro autor de Macunaíma acabou que não esteve presente na Semana, mas
compondo um poema sobre o quadro “O teve o seu provocativo poema “Os Sapos”
Homem Amarelo”, não em versos livres e declamado por Ronald de Carvalho, vindo
de feitio moderno, como seria de se espe- do Rio de Janeiro com outros artistas –,
rar, mas nos moldes de um soneto rigoro- produziam então obras que formalmente
samente parnasiano. não se distinguiam muito da estética parna-
No caso da música, peças de Villa-Lobos, siana ou simbolista, mesmo que tematica-
ainda que predominantes no programa, mente vinculadas à modernidade.
foram executadas ao lado de partituras do A confusão entre o velho e o novo, entre o
compositor impressionista francês Claude desejo de inovação e a impossibilidade de
Debussy. A plateia, por sua vez, insistia se libertar inteiramente do passado, parece
para que a grande pianista Guiomar No- encontrar uma paródia numa das anedotas
vaes tocasse o romântico Chopin. Como mais conhecidas e saborosas da Semana,
mostra José Miguel Wisnik, em O Coro em torno da entrada de Villa-Lobos no
dos Contrários: a Música em Torno da Se- palco do teatro, vestido a rigor, com um
mana de 22, mesmo o que foi apresentado pé em sapato social e o outro em chinelo,
de Villa-Lobos na Semana não era ainda devido a um calo ou a uma infecção, o que
significativo do “modernismo” do compo- muitos acabaram interpretando como um
sitor, embora constituísse etapa importan- gesto “futurista”...
te para o desenvolvimento de sua música Se é assim de fato, porque a Semana de 22
nesse sentido, o que só se daria depois de tornou-se tão célebre e continua a ser con-
1922. siderada por muitos um evento decisivo
Com relação à pintura, como mostra Ara- nos rumos da arte e da literatura no Brasil?
cy Amaral, num livro que se tornou indis- Talvez antes de mais nada porque veio a
pensável para o estudo das artes desse pe- adquirir um caráter simbólico de renova-
ríodo, Artes plásticas na Semana de 22, em ção, do desejo de mudança, do imperati-
lugar de “futurista” a tendência que melhor vo de ruptura com a tradição. Esse anseio

22 Boletim 3X22
surge, é verdade, alguns anos antes da blico e da crítica. Mesmo sem obter uma
Semana, a partir do contato dos primei- completa unanimidade, em poucos anos
ros modernistas com a arte e artistas dos os jovens modernistas sairiam vencedores
movimentos de vanguarda europeus do da peleja contra os conservadores ou pas-
início do século XX, como o Futurismo, o sadistas.
Cubismo e o Expressionismo. O próprio A Semana de Arte Moderna foi assim um
nacionalismo não se desvincula dessa fa- momento propiciador da abertura para a
ceta internacionalista do modernismo bra- criação de obras genuinamente inovado-
sileiro, pois o voltar os olhos para o que ras, não apenas nos temas, mas também
era nosso foi também em alguma medida ou especialmente nos procedimentos
inspirado nesses movimentos. formais. Como dirá Mário de Andrade
Com a exposição de Anita Malfatti, em em 1942, na famosa conferência sobre
1917, e a descoberta da escultura de Vic- o movimento modernista, uma das gran-
tor Brecheret pelos jovens “futuristas” de des conquistas dos jovens que realizaram
São Paulo, em 1920, os artistas e escritores a Semana de Arte Moderna foi “o direito
brasileiros que buscavam novos caminhos permanente à pesquisa estética”. Quanto
se aproximam, mas é com a Semana – e à atuação social e política do escritor e do
também com os “salões modernistas” – artista, à tarefa de trazer para a sua obra o
que estreitam ainda mais os laços (em que país em toda a sua multiplicidade e com-
pese a separação que logo iria se dar em plexidade, seus problemas e contradições,
pelo menos dois grupos antagônicos, na e ao desempenho de um papel mais cons-
arte e na política) e a convivência torna-se trutivo, teríamos de esperar ainda alguns
mais frequente e intensa. anos. Na literatura, isso se deu a partir de
Nesse contexto, a arte e a literatura iam 1930 não somente, mas também porque
sendo arejadas e enriquecidas pelo humor os modernistas da fase heroica haviam por
e pelo riso, por formas e expressões popu- assim dizer preparado o terreno nos anos
lares, pela figuração de regiões e paisagens que se seguiram à Semana, ao realizarem o
do país até então esquecidas, ao mesmo trabalho de destruição dos esquemas e fór-
tempo que tomavam um rumo mais con- mulas obsoletos, e conquistarem a duras
sonante com a modernidade, o que levou penas a tão valiosa liberdade de criação.
à criação de obras caracterizadas pela in-
ventividade, pela descontinuidade, pela
dissonância, pela simultaneidade, pelo an-
ti-ilusionismo. Nesse convívio e diálogo fe-
cundo, revistas e manifestos iam surgindo
e desaparecendo para dar lugar a outros
mais novos e eventualmente mais radicais.
A polêmica, por sua vez, daria ainda maior
destaque a essa produção (é de então a
conhecida e paradoxal expressão “a con-
sagração da vaia”) e, se por algum tempo
continuaria sendo duramente criticada por André Luis Rodrigues é Professor de Literatura
muitos, ganharia aos poucos a admiração Brasileira no curso de Letras da FFLCH/USP.
e o reconhecimento de boa parte do pú-

Manifesto 23
Boletim 3X22
S
urgido nos países de língua francesa no final do século XVI, o gê-
nero textual que hoje conhecemos por manifesto era uma declara-
ção pública sobre os princípios e conduta de um ou mais políticos.
Mais tarde, no século XVII, o gênero expandiu suas fronteiras e
passou a ser utilizado por outras línguas como declarações de atos po-
líticos oficiais. Do século XVII até a primeira metade do século XIX,
os manifestos pertenceram inteiramente ao campo político e tiveram por
função publicizar decisões e fatos. Devido a confrontos religiosos e sociais
da primeira época moderna, os manifestos passaram a ser escritos não
só por autoridades políticas, mas também por civis e grupos religiosos.
Durante o período jacobino da Revolução Francesa, o gênero tornou-
-se ferramenta e canal para que grupos radicais reivindicassem exigências
urgentes de mudanças sociais. Neste momento, o manifesto ganhou um
papel de “documento revolucionário”.
Em 1848, o mais famoso e importante dos manifestos, O Manifesto do
Partido Comunista, foi escrito por Karl Marx e Friedrich Engels. O ma-
nifesto comunista, como é conhecido, foi uma encomenda do partido
comunista alemão para mobilizar os trabalhadores fabris do século XIX
adotando por isso uma forma direta, clara e acessível para que todos pu-
dessem compreendê-lo. A estrutura redacional do texto, considerado
uma das maiores obras da modernidade, tornou-se modelo para outros
manifestos.
Na segunda metade do século XIX, grupos artísticos e literários apropria-
ram-se do formato e, no século XX, o gênero manifesto tornou-se parte
integral da poética de diversas escolas artísticas e literárias de vanguarda,
auxiliando a legitimação desses movimentos.
Deste modo, o manifesto e suas variações são documentos históricos, re-
gistros e ecos da voz política, civil, artística e/ou literária de uma determi-
nada organização sociocultural. É, portanto, uma ferramenta de imensa
relevância na investigação e na compreensão da história do pensamento
e do mundo.
Dentre a extensa gama de manifestos compostos durante a história do
Brasil, escolhemos dois que acreditamos refletir de maneira plena seus
respectivos contextos. A seguir, discutimos os manifestos de 1822, assi-
nados pelo Príncipe Regente D. Pedro, e o Manifesto Antropófago, do
modernista Oswald de Andrade.
Pedro I, Imperador do Brasil
1798-1834. Manifesto de S.A.R.
o Principe Regente Constitu-
cional e Defensor Perpetuo do
Reino do Brasil aos povos deste
Reino. 1822, p. 01.

Boletim 3X22
MANIFESTOS DE 1822:
política e memória

Por Cecilia Helena de Salles Oliveira

N
a bibliografia que trata do mo- Procurador geral da Província do Rio de
vimento de Independência do Janeiro junto ao governo de D. Pedro e
Brasil, os Manifestos assina- um dos redatores do periódico Revérbe-
dos pelo Príncipe Regente D. ro Constitucional Fluminense (set./1821
Pedro, datados de 1 e 6 de agosto de 1822, - out./1822). Ele procurava esclarecer as
são geralmente interpretados como me- razões pelas quais o Regente assumia a
didas preparatórias do rompimento com condução de uma “guerra” contra as Cor-
o Reino de Portugal. Eles articulam-se ao tes reunidas em Lisboa, reivindicando a le-
decreto de 3 de junho, que convocou uma gitimidade de ações, a exemplo do “Fico”,
Assembleia legislativa dos representantes que afrontavam medidas de legisladores
provinciais, e à posterior declaração de 7 eleitos pela nação portuguesa e declarada-
de setembro, ambos daquele mesmo ano. mente mostravam a autonomia plena com
Entretanto, o conteúdo desses documen- a qual a Corte fluminense se propunha a
tos, os destinatários para os quais foram governar o Reino americano.
dirigidos e, sobretudo, o contexto em que O Manifesto de 6 de agosto, atribuído a
foram escritos remetem aos contornos da José Bonifácio de Andrada e Silva, na
luta política em curso, particularmente, no época um dos ministros mais influentes
Rio de Janeiro. do governo de D. Pedro, foi dirigido às
O Manifesto de 1 de agosto estava endere- “nações amigas”, notadamente Grã-Bre-
çado aos “povos do Brasil”, e sua autoria tanha, França e Áustria. Seu objetivo era
foi atribuída a Joaquim Gonçalves Ledo, sublinhar que, frente às ameaças impetra-

Manifesto 27
das pelas Cortes de Lisboa à soberania do Portugal foi provocada pelas Cortes, pro-
Reino do Brasil, o governo de D. Pedro, pondo-se que o governo de D. Pedro não
herdeiro da Coroa portuguesa, teria sido fez mais do que defender sua autoridade,
obrigado a adotar medidas para garantir delegada por D. João VI, para garantir a
a “independência política” do Reino e a liberdade das províncias e dos “povos” que
existência de um centro comum de poder o apoiavam. No Manifesto de 1º de agosto
que articulasse as províncias, bem como estão reconhecidos os princípios revolu-
preservasse relações de comércio e ami- cionários que resultaram nas Cortes e nas
zade com todas as nações. Essas medidas bases constitucionais discutidas em Lis-
deveriam durar até o desfecho dos confli- boa, mantendo-se abertos os caminhos de
tos de interesse motivados pela atuação de uma possível conciliação, desde que Brasil
um “partido” que, de dentro das Cortes, e Portugal estivessem no mesmo patamar
pretendia “recolonizar” o Brasil. de soberania e direitos. Já o Manifesto de
Apesar de semelhantes do ponto de vista 6 de agosto foi sublinhada a oposição en-
do tema principal que abordavam – as de- tre “colônia” e “metrópole”, antagonismo
liberações legislativas das Cortes de Lisboa visto como incontornável e inaceitável,
para o Reino do Brasil e suas províncias – encobrindo-se o fato de que os conflitos
os documentos divergem na interpretação não só foram desencadeados simultanea-
sobre o encaminhamento dos confrontos mente nos dois lados do Atlântico, como
que cindiam a “nação portuguesa”. também eram decorrências da reorganiza-
Ambos foram divulgados quando se reali- ção do Império português a partir da re-
zava, ao menos na Corte e nas províncias volução liberal de 1820. Nesse sentido, é
de São Paulo e Minas Gerais, a campanha possível considerar que, mesmo contendo
para a eleição dos deputados à Assembleia algumas expressões atenuantes da virulên-
recém-convocada, o que conflagrava ainda cia com a qual foi redigido, o documento
mais o debate e as contradições entre pro- de 6 de agosto constitui notória declaração
postas de divergentes grupos de pressão. da separação de Portugal, repercutindo
Também entre os meses de junho e julho argumentos que sustentavam o projeto de
de 1822 verificou-se um acirramento das erguer-se na América um Império consti-
críticas às Cortes em Lisboa, seja por meio tucional.
da imprensa, seja por meio dos governos
da Corte e de algumas províncias mais ali-
nhadas ao projeto de separação de Portu-
gal e de organização de uma monarquia
capitaneada por D. Pedro. Além disso, mi-
nistros e secretários do governo no Rio de
Janeiro passaram a combater abertamente
os setores sociais que na Corte e nas pro-
víncias resistiam ao rompimento, levanta-
vam suspeitas sobre o constitucionalismo
do Príncipe e, sobretudo, questionavam a
inevitabilidade de um governo monárqui- Cecília Helena de Salles Oliveira é Professora titu-
lar sênior no Museu Paulista da Universidade de São
co no Brasil. Paulo e Professora do Programa de Pós-Graduação
As duas narrativas registram a memória em História Social da USP.
segundo a qual a separação entre Brasil e

28 Boletim 3X22
Aclamação de D. Pedro I. Im-
perador do Brasil: no campo
de Santana, no Rio de Janeiro,
1839. Debret, Jean Baptiste.
Acervo da Biblioteca Brasiliana
Guita e José Mindlin.

Manifesto
O MANIFESTO ANTROPÓFAGO:
a primeira fase do Modernismo em seu ápice

Por Giovane Direnzi

O
modernismo brasileiro surge cosmopolitano articulado aos seus valo-
no bojo de uma crítica à tra- res nativos, e daí por uma nova noção de
dição conservadora e à sua nacionalismo, Oswald e seus parceiros
estética; nasce de um deslum- modernistas, além de se esforçarem para
bre com os avanços da cidade grande e de romper com o passado, embarcaram em
uma forte influência dos intelectuais, ar- uma profunda busca pelo que Alfredo
tistas e cientistas europeus que, entre os Bosi chama de um Brasil adormecido.
séculos XIX e XX, promovem uma onda Em 1924 no jornal Correio da Manhã,
de valorização das cantigas, danças, mitos Oswald publica seu Manifesto Pau-Brasil,
e outras tradições nativas de países africa- enfatizando a necessidade de se compor
nos, asiáticos e americanos e que ressaltam uma arte baseada nas características do
neste momento a importância de os países povo brasileiro, reivindicando uma lingua-
reconhecerem os valores da própria cultu- gem natural e se opondo aos bacharelis-
ra - sobretudo os que foram submetidos a mos e pedantismos, mas ainda prezando
fortes processos de colonização. por um processo de assimilação que, em-
É neste contexto que, segundo Paulo bora crítico, seja de certa forma harmo-
Prado no prefácio de Poesia Pau-Brasil, nioso entre a tradição primitiva e a latina
“Oswald de Andrade, numa viagem a Pa- (herança européia).
ris, do alto de um atelier da Place Clichy Em maio de 1928, por sua vez, na pri-
– umbigo do mundo – descobriu, des- meira edição da Revista de Antropofagia,
lumbrado, a sua própria terra”. Tomado Oswald publica o Manifesto Antropófago,
pela inquietude desse internacionalismo encabeçando o movimento antropofágico,

30 Boletim 3X22
Manifesto Antropófago. Andrade,
Oswald de. Revista de Antropofagia,
P. 3, 1928. Disponível para consulta
online no acervo digital da Bibliote-
ca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Manifesto
Manifesto Antropófago (trecho).
Andrade, Oswald de. Revista de
Antropofagia, P. 7, 1928. Disponível
para consulta online no acervo digi-
tal da Biblioteca Brasiliana Guita e
José Mindlin.
ápice da primeira fase do modernismo. Brasil e as consequências do processo co-
As ideias do manifesto são explicitamen- lonial, a antropofagia estabelece um hori-
te aproximadas às teorias de Freud, Marx zonte utópico. No manifesto, Oswald cria
e Rousseau e, embora siga a linguagem um passado em que o matriarcado comu-
metafórica e repleta de aforismos de seu nista substitui o sistema burguês patriarcal
antecessor, Pau-Brasil, tem um tom muito e despreza o processo civilizatório exerci-
mais político e radical que aquele. Oswald do pelo europeu sobre o índio selvagem e
não fala mais da assimilação harmoniosa antropófago. Em seus parágrafos, o pro-
entre externo e interno, mas da deglutição cesso colonial aparece sob o símbolo da
crítica das influências; da consciência do catequese que, além de ser o rito de inicia-
que é ingerido e de como a indigestão cul- ção cristã, invoca todos os valores, tabus e
tural arruina o organismo nacional. moralismos que vêm como sua consequ-
Antropofagia, do grego anthropo (ho- ência, desde o patriarcado destrutivo até a
mem) + phagía (comer), é o ato de se co- negação da sexualidade e o hábito de an-
mer carne humana, mas de maneira ritual dar vestido. Ao negá-la e certificar em seu
e não enquanto hábito alimentar, o que o manifesto que nunca fomos sujeitos a isto,
difere do canibalismo. A antropofagia era Oswald assinala a ineficácia do processo
praticada por comunidades que acredi- e garante que, apesar de sermos suposta-
tavam que, ao ingerir a carne do inimigo mente civilizados, no fundo o antropófago
capturado, obtinham-se as suas virtudes. pagão tupi-africano ainda vive em nosso
Existem relatos de comunidades indíge- íntimo e será resgatado pelo modernismo
nas antropofágicas que habitaram o terri- mais cedo ou mais tarde.
tório brasileiro por volta do século XVI. É importante ressaltar, no entanto, que
A ideia de usar a metáfora da antropofa- Oswald não prega a pura e simples opo-
gia para intitular o movimento e seu ma- sição à civilização moderna industrial.
nifesto partiu da pintura Abaporu (1928), Crê que é graças a alguns dos benefícios
de Tarsila do Amaral. O título, sugestão proporcionados por ela que é possível a
do poeta Raul Bopp, vem do tupi Aba existência de formas primitivas, mas que,
(homem) + Pora (gente) + ú (comer), ou por outro lado, somente a antropofagia é
seja, o homem que come gente. No ano capaz de enxergar os elementos positivos
seguinte, Tarsila pintaria ainda Antropofa- dessa civilização, descartando o que não
gia (1929), onde faria a junção de Abapo- serve e promovendo, enfim, o que chama
ru com a anterior A Negra (1923). de “Revolução Caraíba”.
A figura do antropófago (o canibal pe-
cador e condenado pelo moralismo re-
ligioso), segundo Benedito Nunes em A
Antropofagia ao Alcance de Todos, é pa-
rente do bom selvagem de Rousseau, o
primitivo socializado que consegue viver
em equilíbrio entre a cultura e a natureza,
contrabalanceando a piedade e o amor
próprio, uma vez que em sua sociedade
não há nem propriedade privada, nem Giovane Direnzi é graduando em Letras pela FFLCH/
concentração do poder do Estado. USP
Dessa forma, além de criticar a história do

Manifesto 33
Plínio Salgado, junto com outros autores brasilei-
ros famosos no começo do século XX, assinou o
Manifesto Nhengaçu verdeamarelo. A ideia era
buscar uma identidade nacional. Plínio e compa-
nhia buscavam uma arte que não sofresse qualquer
influência de fora, além de criticar fortemente o
que chamavam de literatura passadista e metrifica-
da. O grupo sugeriu a criação de uma nova literatu-
ra, adequada ao momento histórico e que exaltasse
o que havia de mais autêntico no Brasil, chegando
a um nacionalismo radical.

Manifesto escrito por Mário de Andrade, A Escrava


Que Não É Isaura foi lançado ainda no fervor do
movimento modernista. Nesta obra, o autor paulis-
ta advogou por uma forma poética ligada ao cotidia-
no e feita sem metrificação, apenas em versos livres.
Mário, aqui, defendia que a arte não deveria ter um
tema específico e privilegiado; ela deveria estar fora
da “Torre de Marfim” acadêmica.
O Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de
Andrade, teve uma importância tremenda para o
movimento modernista brasileiro. Oswald pre-
tendia com ele mostrar uma nova forma de arte
que buscasse as origens nacionais brasileiras, pro-
movendo o resgate de várias etnias renegadas ou
estereotipadas pela arte nacional, como os indíge-
nas, e uma produção original autêntica ao devorar
os elementos das vanguardas européias.

No Prefácio de Paulicéia Desvairada, o Prefácio


Interessantíssimo, Mário procura desvincular a
sua literatura das correntes naturalistas e par-
nasianas, que eram aquelas que dominavam a
cena intelectual desde o século XIX. Procurava,
sobretudo, criticar o academicismo e inovar ar-
tisticamente. Marco da literatura no começo do
século XX, esse texto é considerado um mani-
festo, e, até mesmo, um manual da arte moder-
na brasileira.
ARGUMENTO

NÃO CAUSE UM ACIDENTE


Por Norberto de Assis

N
ão é só olhando pra frente que nalismo, por exemplo, era algo que tanto
supomos o futuro. Na verda- o movimento da independência, quanto
de, olhar para trás se faz tão os modernistas da Semana de 22 reivin-
importante quanto. Como no dicavam e que, ainda hoje, reivindicamos.
trânsito, para não causar um acidente, de- Porém, devemos ver estas datas com res-
vemos olhar sempre no retrovisor. Enten- ponsabilidade: 1822 foi uma data em seu
der que se não houver uma reflexão sobre contexto, isto é, estava inserida em deter-
tudo aquilo que acertamos ou erramos no minada época e sociedade. O que víamos
passado, não se terá expectativa alguma como nacional, ou o que víamos como re-
para o futuro; não se terá experiência para presentação, ou como literatura e ciência,
saber se o que estamos fazendo terá dife- mudaram. Não podemos cair na tentação
rença. de utilizarmos os termos tal como eram.
Entenda-se aqui que não é simplesmen- A marcha da história continua, autores
te acreditar que a história se repetirá da devem sempre ser revisitados, por isso
mesma maneira; quem fizer isso, não está são clássicos. O que não deve acontecer é
fazendo um bom uso dela. Deve-se apren- vermos essas figuras como inquestionáveis
der que todos os eventos importantes no ou sem algum senso crítico. É claro que
mundo acontecem uma só vez. Dado isso, temos apego por elas; todavia, é besteira
temas e questões não se esgotam (acredi- acreditar que elas são inteiramente váli-
te), aqueles que estavam em voga em 1822 das como um dia já foram. De maneira
e em 1922 ainda são importantes. O nacio- similar, é como acreditamos ver os atores

36 Boletim 3X22
políticos do passado: Mário de Andra- que você talvez nunca tenha parado para
de possuía um projeto de Brasil atrás de pensar; de uma forma que traga alternati-
sua poesia; contudo, ele não poderia pre- vas para algo diferente. Não idolatramos
ver o que viria a acontecer, estava preso figuras; contudo, nós as respeitamos. É
às amarras do seu tempo. Macunaíma é dessa forma que se procura novos resulta-
extremamente genial, só que igualmente, dos, novos futuros que nem eu e você ima-
não dá para achar que aquele indígena ginamos. Seguindo a metáfora: um olho
“sem caráter” representa o Brasil como deve ficar ao volante sempre, mas o outro
ele é hoje. Outro exemplo: sabe aquela deve ficar no retrovisor. O mesmo dize-
famosa tela “Independência ou Morte?”, mos para o Brasil: olhe para frente, mas
que ficou marcada como o símbolo da In- também olhe para trás; respeite os que já
dependência, intocável, incorruptível? Re- foram, mas não os pense como intocáveis.
conhecemos que é uma arte incrível e que Pense que a história pode não acontecer
tem muita importância em nossa história, do mesmo modo que um dia já foi, mas
mas ela também esconde um processo não cause um acidente por acreditar nis-
de construção do Brasil que hoje não se so. Está na hora de olharmos mais para o
aplica. Pensar na tela de Pedro Américo passado, o tempo é propício, mas é hora
teimando que a Independência foi real- também de parar de se pautar naqueles
mente daquela maneira é fazer uma gran- velhos ídolos que já não nos servem mais.
de injustiça com a própria história que
queremos preservar.
Acreditamos, sobretudo, que a história
possui uma tarefa social. Olhar para trás
deve ser um olhar consciente e crítico, e
olhar para frente deve ser feito da mesma
maneira. O papel que se pode exercer
com base nisso pode evitar grandes equí-
vocos. Estamos falando aqui de experi-
ência e expectativa, pontos que são com-
plementares. A expectativa (essa visão de
um mundo futuro) só acontece quando
possuímos alguma experiência (uma visão
de mundo adquirida). Voltamos sempre
ao passado para pensar um possível futu-
ro. Aqui está o ponto chave: a expectativa
nem sempre se concretiza, e nem precisa,
e por isso é “possível”, não “destinada”.
O ideal é procurarmos experiências para
formular expectativas sobre esse possível
futuro - sem medo de errar, sem medo de
tentar.
É o que pretendemos, leitor. Entendemos
possuir um trabalho que possa levar você Norberto de Assis é graduando em Ciências Sociais
pela FFLCH/USP
a temas, nesses períodos, de uma forma

Manifesto 37
CONTEÚDO EXTRA AUDIOVISUAL
Como o manifesto também é antropofágico com o homem atual, ele
se desmembra em uma produção audiovisual. Além dos boletins,
o 3 vezes 22 publicará uma série de entrevistas com especialistas
em Independência, Modernismo e Contemporaneidade. Discutin-
do a história da economia no Brasil, a Independência e suas repre-
sentações, nossos primeiros convidados são Alexandre Macchione
Saes, João Paulo Garrido Pimenta e Cecília Helena Salles de Oli-
veira. Utilize o QR Code abaixo com um leitor para smartphone e
acesse o canal da BBM no Youtube:

38 Boletim 3X22
f III

Trezvezvintidois é convite pro repensatório. É vaca ruminando


o tempo todo: novidade possível de se encontrar atualizado no
ultra-passado sem vestir as velhas roupas que já não nos servem
mais. Não dá espaço pra nada que seja duro – verdade-absoluta
ou muro, se é que há distinção. Tudo aqui é feito mole, mole,
pra morder sem dentadura E sem ditadura.

E ALERTA!:

Não sofre de protanopia: vê bem todo o sangue derramado que


há no lugar do verde pacífico da mata dos velhos contos de mito.
Trezvezvintidois estará de olho no grito falso das margens do
Ipiranga
Estará de olho no coaxar do Theatro Mvnicipal
E estará de olho nas Fake News.
Com amor,

f A Redacção.

Manifesto
REFERÊNCIAS
Imagens
Capa e Página 30: BRY, Theodore de. “Os Filhos de Pindorama”. Rio de Janeiro, Brasil. Antes de 1562. Acervo
particular.
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org.br/obra5894/a-proclamacao-da-independencia. Acesso em: 08 de fev. 2019.
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-estudante-russa. Acesso em: 08 de fev. 2019
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Brasileiras. São Paulo, Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra3005/
retrato-de-d-pedro-i. Acesso em: 08 de fev. 2019.
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Manifesto
bBM
B-3X22 N°01

www.bbm.usp.br

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