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O mais recente trabalho científico e filosófico de António Damásio começa com uma
declaração de interesses: desta vez escreve um livro em que as ideias que vai entregar
ao leitor são o alvo e não quer rodeios que o distraiam. Ou seja, a espessura do volume
é menor, o foco nas ideias mais apertado e só recorre a ilustrações quatro vezes,
quando as explicações o exigem. Há outra diferença, a de uma toada poética percorrer
muito de Sentir & Saber - A Caminho da Consciência. São 46 capítulos breves, Um
Epílogo - não o Epílogo - e um prólogo, em que confessa o facto de existir em si alguma
frustração com a receção dos conhecimentos: "Não era uma frustração mortal nem me
preocupava muito, mas desagradava-me quando perguntava a um leitor por uma certa
ideia e verificava que ele, tendo lido imensas páginas, não tinha apreendido aquela que
eu queria passar." De modo que Sentir & Saber surge num livro mais pequeno: "Está
muito na moda as pessoas quererem livros pequenos porque têm pouco tempo para
ler, tanto assim que achei ser uma ótima oportunidade para fazer um livro poético
sobre aquilo que me interessa. De modo a que o leitor possa chegar ao fim de cada uma
das 46 peças e ter espaços em branco que o levem a parar e a sentir-se obrigado a
refletir um pouco sobre o que se passou."
A palavra "poético" vai aparecendo na entrevista e é impossível não questionar essa
intencionalidade que a leitura já mostrara através de uma sensação frequente, a de
que o pensamento científico resvalava para um nível poético. Foi intencional? "Sim.
Gosto muito de poesia e sinto uma inveja enorme dos meus amigos poetas que podem
escrever meia página e dizer coisas muito importantes. Há aí algo que me interessa
enquanto estilo, mesmo que duvide de que vá repetir este registo no próximo livro.
Decerto, voltarei às centenas de páginas e perderei este aspeto mais económico",
afirma. "Aliás, é mais fácil escrever muito do que pouco, porque o trabalho de redução
é extremamente difícil", acrescenta, rematando com a experiência de um colega que
dizia:"Não tenho tempo para escrever tão curto."
Se António Damásio considera o livro poético, pergunta-se porque coloca lá para o fim
alguns diagramas, como é o caso das estruturas principais do tronco cerebral. Tudo o
que era simples até aí é destruído com quatro imagens... "É uma decisão que é preciso
tomar a certa altura porque uma coisa é explicar sem diagramas, equações ou
descrições químicas, outra coisa é explicar com um pouco mais de pormenor para que
seja possível aos leitores compreender que não é só uma questão de palavras e de
suposições sobre o que se passa dentro do cérebro; é importante que compreendam o
conhecimento sobre a estrutura anatómica e como tudo se inter-relaciona e funciona.
Podemos ser simpáticos e tentar simplificar quando se fala das grandes ideias, no
entanto, ao querer mostrar que não são só hipóteses mas realidades que têm que ver
com anatomia, fisiologia, química e física, nessa altura precisamos mesmo de
diagramas. Afinal, os livros que eu escrevo não são de divulgação científica."
Quanto ao legado...
... não gosto de responder a perguntas como essa porque nos fazem parecer pomposos
e muito conscientes daquilo que se está a fazer, o que me parece uma má atitude. No
entanto, objetivamente, julgo que tenho feito uma contribuição no que respeita ao
papel do corpo relativamente ao cérebro na construção daquilo que é a nossa mente. E
esse é um tema importante, no qual tenho vindo a fazer contribuições desde o tempo
de O Erro de Descartes - um livro sobre o qual já passam 26 anos - e que trazem para o
campo da ciência a importância daquilo que é o corpo e, evidentemente, da vida dentro
desse corpo. Aliás, com o tremendo sucesso do que hoje se chama a neurociência, a
preocupação dominante tem sido o cérebro, propriamente dito. Questiono se o cérebro
é capaz de resolver todos os problemas que existem em torno do que é a mente
humana. Para perceber o que é a mente, necessita-se de entender o que se passa com
o cérebro, mas, muito antes disso, compreender o que se passa com o corpo, vivo e
inteligente. Diria que esta é a resposta completa à pergunta.
Refere frequentemente neste livro o conceito "detetar". Acha que essa capacidade
pode ser perdida com a medicina do futuro?
Essa capacidade de detetar corresponde ao inglês detect, mas a palavra que nos dá
mais amplitude é sensing, porque tem que ver com sensores - mas não com
sentimentos. Uma coisa é ter sensing outra é ter feeling. No que respeita a "detetar",
que é um aspeto fundamental da vida, à medida que caminhamos para uma robótica
mais complexa irá ser necessário que os robôs tenham não só uma capacidade de
"detetar", que alguns já podem ter, mas também de sentir, no sentido mais biológico
do termo. No último capítulo explico o que vai de facto acontecer, que iremos ter robôs
mais como nós desde que se lhes introduza a vulnerabilidade.
Não é um contrassenso?
Pode parecer paradoxal, porque quando se pensa na inteligência artificial o que vem à
ideia é que são criaturas absolutamente invulneráveis, feitas de aço e de plástico em
vez da nossa pobre carne humana. À primeira vista pode parecer uma asneira introduzir
vulnerabilidade numa coisa que é robusta, no entanto, só a introduzindo teremos a
possibilidade de fazer qualquer coisa de mais rico em matéria das reações que esse
"organismo" poderá tomar.
Alerta para o facto de uma teoria que ignore o sistema nervoso para justificar a
mente e a consciência estar condenada ao fracasso, mas, diz, uma teoria que dependa
exclusivamente do sistema nervoso está também condenada a falhar. Enquanto
cientista, como é viver num equilíbrio investigatório?
Sem dúvida que essa é uma das ideias principais deste livro - como já era no anterior,
A Estranha Ordem das Coisas -, a de que a vida começa antes do cérebro. Neste
momento é muito comum que estejamos constantemente a ser bombardeados com
novos factos e ideias sobre o cérebro, daí que as pessoas acabem por se convencer de
que aquilo que é a sua inteligência vem do cérebro. Isso é um disparate e é
completamente errado dizer que a inteligência vem do cérebro. A nossa inteligência é
complementada pelo cérebro! Porque a nossa inteligência começou há biliões de anos
com a própria vida e tem vindo a desenvolver-se com processos que antecedem o
aparecimento dos sistemas nervosos. Em inglês, tenho no livro uma frase que é
assim: "Brains are an after thought of nature", traduzindo: "Os cérebros são o último
pensamento da natureza." O que quer dizer que a natureza pode funcionar
perfeitamente sem cérebros, contudo o que os cérebros lhe trouxeram foi um melhor
funcionamento. Portanto, a razão por que temos cérebros - e mente e consciência e
raciocínio - é porque nos ajuda a viver melhor. Ajuda a vida e permite a vida com a
grande complexidade como é a dos seres humanos. Não esquecer que, antes de existir
essa grande complexidade, já havia vida, inteligência e funcionamento.
Daí que dê como título ao primeiro capítulo "No início não foi o verbo", contrariando
a abertura do Evangelho de João?
Claro, só podia ser assim. A frase clássica é bíblica e tem que ver com a maneira como
os seres humanos de há alguns milhares de anos descrevem a sua própria situação.
Evidentemente, eles confrontavam-se com a sua realidade e a palavra, como forma de
descrever fenómenos diversos, era o modo principal. Hoje, sabemos que temos milhões
de anos de evolução, que começaram e mantiveram-se com a inteligência - mas não
havia nem cérebro, nem mente, nem capacidade verbal; portanto, é muito importante
afirmar que no início não foi o verbo. Trata-se de uma leitura perfeitamente aceitável,
mas devemos entendê-la como uma leitura parcial, que é a sua realidade.
Choca o leitor, e vamos à página 3, quando compara o ser humano aos seres
unicelulares ; que nos diferenciamos por ter uma inteligência baseada no raciocínio e
na criatividade mas somos iguais no aspeto de uma competência não explícita como
acontece com as bactérias. Somos assim tão iguais?
Somos iguais e não somos. Nessa característica somos, mas depois existem todas as
outras que vieram juntar-se a essa e que nos dão uma capacidade extraordinária. Não
podemos fazer a comparação entre o ser humano e uma bactéria, pois um tem
inteligência, capacidade de criação e uma autonomia completamente diferentes, mas
ao mesmo tempo devemos reconhecer que a humilde bactéria tem vida, tem de a
regular e confronta-se com o problema de se alimentar, de se defender do excesso de
frio ou de calor... Uma vez que há vida, existe uma complexidade e uma novidade
extraordinárias e é isso que se encontra na bactéria e em nós. Não é que os seres
humanos devam ficar ofendidos por serem comparados a uma bactéria, é um pouco ao
contrário, pois devemos reconhecer que aquilo que a bactéria tem é um aspeto
fundamental para o que nós somos e deve ser respeitada se não quisermos que dê
cabo de nós. Seria bom que pudéssemos fazer isso com os vírus, o que não é neste
momento de todo possível como se vê com a pandemia com que nos confrontamos.
Afirma que "os vírus continuam a ser uma das principais fontes de humilhação na
ciência e na medicina". A rapidez com que foram criadas várias vacinas determina o
fim próximo dessa humilhação ou há situações que o homem não poderá ultrapassar?
Não é o fim da humilhação de todo, a vacina vai ser uma resposta temporária, muito
boa porque não temos maneira de sair desta situação de outra forma. Aliás, existem
duas maneiras de sair: uma, se todas as pessoas ficarem imunes por terem vírus - o que
provocaria uma mortandade horrível devido a uma boa percentagem de pessoas que
têm complicações graves poderem morrer; a segunda, as vacinas - que não resolvem o
problema mas vão melhorá-lo de imediato. Há neste caso um enorme progresso, mas
falta verificar a eficácia das vacinas.
© Orlando Almeida / Global Imagens