O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo” (Jorge L. Borges)
Nosso cotidiano tem sentido? É possível revivificar o cotidiano?
Permanece algum fogo sob as cinzas do cotidiano? Há lugar para o risco, para a ousadia?
No interior do Brasil, onde o fogão a lenha é ainda comum, as pessoas tem o
hábito de enterrar, à noite, as brasas entre as cinzas, e assim manter vivo o fogo até à manhã seguinte. Em lugar de limpar completamente o fogão, conservam-se as brasas incandescentes debaixo de camadas de cinza para poder acender o fogo rapidamente no dia seguinte. A preocupação principal é, pois, não deixar que o fogo do dia anterior se apague completamente ao final da jornada. Pelo contrário, as brasas escondidas debaixo da cinza durante a longa e escura noite ficam bem protegidas para que o fogo possa voltar de novo à vida com as primeiras luzes da manhã. O velho fogo não morre, mas conserva o seu calor, a fim de estar preparado para acender o novo fogo. Este processo de preservar o propósito e a energia, o calor e a luz na obscuridade, é santificante. O que chamamos morte, final e perda em nossas vidas – quando uma coisa se transforma em outra – pode entender-se melhor como conservação das brasas, como a negativa em esfriar-se. Cair na conta disso nos estremece profundamente. Todos e cada um de nós que vivemos hoje somos portadores do novo fogo. Cada um de nós é sua vida. Para vislumbrar o amanhã, o que temos de fazer é olhar para nós mesmos e perguntar-nos: “brota uma energia profunda no nosso coração? Percebe-se nele o desejo de um compromisso com o Evangelho? Aí há lugar para a audácia, a coragem, o fogo novo...? Ou se apagou o antigo fogo? É a vida agora simplesmente questão de suportar os dias e agir por inércia ou ela é lugar da criatividade, do risco...?
O cotidiano é tempo de ousadia, é tempo de viver a virtude do risco.
E o risco é a essência de uma vida espiritual integrada. O risco exige insegurança, exige uma aposta audaz por aquilo que se deseja mas que ainda é incerto. No risco caminhamos com Deus como nosso único e seguro companheiro. Não é um caminho fácil de seguir, mas não há outro se queremos que a vida cotidi-ana seja autêntica, se queremos reavivar o fogo a partir da chama de nosso passado. O risco fortalece, revitaliza, faz fluir a adrenalina através da corrente sanguínea de nossa vida, faz com que de novo mereça a pena viver a vida. O risco, paradoxalmente, faz com que a vida volte e ser vida. O novo sempre vem e sempre nos surpreende. A verdadeira questão é se permanece ainda suficiente fogo debaixo das cinzas para suscitar a energia necessária a fim de tornar nossa vivência cristã mais autêntica. - “Falamos do lugar que o risco ocupa na vida espiritual”, disseram os discípulos. E o mestre Zen lhes contou a história dos camponeses que eram levados todos os meses em um avião de carga para trabalhar numa auto-estrada da Birmânia. O vôo era demorado e o trabalho cansativo e aqueles homens, enquanto eram levados de um lugar para outro, jogavam cartas. Mas, como não tinham dinheiro para apostar, decidiram que aquele que perdesse teria que saltar do avião sem pára-quedas. - “Por que? Isso é terrível!”- disseram horrorizados os discípulos. - “Sim, é terrível!”- respondeu o mestre, - “mas, certamente, fazia com que o jogo fosse mais emo- cionante”.
Textos bíblicos: Gen. 12,1-9 Mc. 4,35-41
Na oração: Você sabe identificar onde está seu medo de mudar?
Quantas vezes você ficou se apegando a uma situa- ção insatisfatória, desconfortável, apenas porque não quis correr o risco de se ver em uma nova experiência? * Que colocarias em risco sobre a mesa para fazer o jogo mais emocionante? * Não há nada na vida que tenha mais sentido que apostar nossas vidas. De fato, não é essa a razão primeira pela qual os discípulos se fazem discípulos?