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Cristianismo
Gabriel Perissé
Doutor em Educação pela FEUSP
Coord. Pedagógico do Instituto Paulista de Ensino e Pesquisa (IPEP)
perisse@uol.com.br
(Étienne Gilson)
(Guimarães Rosa)
Sempre que o cristianismo foi fiel a si mesmo, ou melhor ainda, sempre que os
cristãos foram fiéis a Cristo (e portanto a si mesmos!), a consciência do que seja a
nossa condição de pessoas mostrou-se fundamental para viver, conviver, e para, de algum modo,
saborear antecipadamente a vida eterna, ou a ―vida perdurável‖, como prefere dizer o mesmo
Julián Marías.
Ser pessoa é ser alguém, e não algo, e não coisa, e não mero elemento de um grupo
qualquer, mesmo que esse grupo defenda propostas religiosas ou até mesmo se defina como
um movimento cristão ou católico.
É claro que o cristianismo tem muito a declarar, e muito declarou e muito há de declarar
sobre o mundo, sobre a sociedade, sobre a cultura, sobre a ética, sobre o trabalho, sobre a
sexualidade, sobre os temas que interessam a todos. O cristianismo, além de abordar os
grandes temas, as grandes preocupações, pode também pensar e nos fazer pensar sobre
questões e aspectos secundários da vida. Contudo, se não olhar essas questões e esses
aspectos à luz do que é decisivo, suas declarações, sobre o que quer que seja, perdem
originalidade e não haverá diferença significativa entre uma reflexão cristã sobre o trabalho,
sobre a morte, sobre a educação, sobre a política ou sobre a ecologia, e uma declaração de
outro tipo, religiosa ou não.
A pessoa é livre
“De que me serve fugir
de morte, dor e perigo,
se me eu levo comigo?”
Em primeiro lugar: a pessoa é um ser livre. Deus correu o risco de criar um ser passível
de rebelar-se, um ser capaz de recusar a existência dAquele que lhe ofereceu a existência. A
vontade do Pai se faz no céu de maneira absoluta, mas é preciso pedir e lutar para que se
faça aqui na terra.
O receio de alguns pensadores e líderes cristãos, ainda em nosso tempo, está em que o
homem caia na tentação de uma liberdade sem vínculos com o passado, com as tradições,
com a ordem estabelecida, com as instituições e com a verdade. O receio está em que o
cristão se torne sartreano, identifique a liberdade com o seu próprio ser, e se considere
condenado à liberdade. O receio é de que o cristão pense que a liberdade, mais do que uma
perfeição aplicável à faculdade da vontade, como afirma a filo escolástica, seja uma qualidade
do ser humano em sua totalidade. O receio é de que a liberdade seja absolutizada, ―libertada‖
da lei, do dever, do dogma. Há o receio de que o cristão se torne nietzscheano e que, na
busca da liberdade como um bem absoluto, negue a metafísica clássica, ataque o mundo dos
valores criados pelos ―medíocres‖, ridicularize a ascese cristã criada pelos ―ressentidos‖.
Contudo, a liberdade humana consiste em que cada pessoa seja fiel ao dever, ao
exercício (à ascese) de construir-se para o futuro, isto é, ao compromisso entusiasmante de
inventar uma santidade pessoal dentro do grande caminho de seguimento de Cristo. O
cristianismo é uma religião libertadora porque valoriza o estilo de cada pessoa na busca da
santidade. Este é o objetivo exclusivo do cristianismo: libertar a liberdade humana e dar a
cada um espaço de sobra, condições de sobra e energia de sobra para realizar-se plenamente
como pessoa. A salvação consiste em libertar o homem da morte e de muitas outras
escravidões que o matam pouco a pouco, que o desvirtuam de sua vocação para a felicidade,
de seu compromisso com a felicidade.
As injustiças não são fruto do destino. Nascem de livres decisões de pessoas concretas
que se encontram presas por uma visão (ou por uma cegueira...) antropológica e existencial
deformada e deformante. Fazer o bem, igualmente, não se faz por acaso, por inadvertência
ou por mero hábito. É preciso exercer a liberdade, escolher continuamente, aderir dia após
dia a esse bem que se quer realizar.
Uma liberdade que se livra do amor é uma liberdade destrutiva. A liberdade desvinculada
da verdade do amor é superficial e aparente. João Paulo II esclarece: ―Ainda hoje, depois de 2
mil anos, Cristo continua a aparecer-nos como aquele que traz ao homem a liberdade
baseada na verdade, como aquele que liberta o homem daquilo que limita, diminui e como
que espedaça essa liberdade nas próprias raízes, na alma do homem, no seu coração e na sua
consciência.‖ [2]
Em termos práticos, a pessoa libertada pela liberdade cristã liberta-se das ansiedades e
tormentos que nos perseguem ao longo da vida.
―Não procureis o que comer ou o que beber, e não fiqueis assim como que suspensos‖, diz
Cristo (Lc 12, 29). No texto latino: ―et nolite solliciti esse‖ — não fiquem assim tão agitados,
tão preocupados, tão ansiosos, tão nervosos, tão inquietos. Há uma expressão latina,
sollicitae opes, cujo significado é: as riquezas que nos deixam tensos...
Libertando-se de, o cristão liberta-se para. Sua liberdade consiste em unir-se ao Ser
pessoal por excelência, ao próprio Deus, e ver seus pensamentos, atos e palavras orientados
suavemente pela força do amor.
A pessoa é criativa
“Ó morte impiedosa,
Tu és feroz e inclemente!
Ninguém pode evitá-la.
Vences os czares e os príncipes,
Não poupas nem o rico nem o pobre.”
(Sêneca)
Ser otimista é acreditar e, por conseqüência, imaginar que podemos fazer o milagre,
transformando a dor insuportável em uma nova realidade. Os fatos são os fatos. As coisas
são as coisas. O veneno envenena. Há situações que infernizam a nossa vida. Mas as pessoas
são perfectíveis, e são criativas, e podem, imaginando uma nova realidade, reunir condições
(recebendo a ―força do Alto‖) para contribuir na renovação espiritual e material da face da
terra. Ser criativo é surpreender. É ―virar o jogo‖, mesmo que seja na última hora, mesmo que
tudo aponte para a frustração e a derrota.
Em Mc 16, 17-18, Cristo desenha o perfil da pessoa criativa. Em nome de Cristo, uma
pessoa pode exorcizar a sociedade do mal. O cristão pode comunicar-se com todos,
fazendo-se entender pelas pessoas mais difíceis e complicadas. O cristão pode dominar as
circunstâncias que lhe sugerem cumplicidades espúrias. O batizado em Cristo pode
sobreviver em contato com os elementos mortíferos da cultura. Aquele que foi mergulhado
no sangue de Cristo pode curar os seus irmãos, os homens.
A pessoa é pessoa porque pode inovar radicalmente. Pode renovar e renovar-se. Pode
abrir possibilidades onde só enxergamos impossibilidades. Pode criar, mesmo quando o
desejo maior é desistir.
Há um poema de José Paulo Paes — Ivan Ilitch, 1958 [3] — relato e retrato de uma vida
frustrada, impessoal e sem graça:
Trrrim, bocejo,
Roupão, chinelos,
Gilete, escova,
Água, sabão,
Café com pão,
Chapéu, gravata,
Beijo, automóvel,
Adeus, adeus.
Gente, trânsito,
Sol, bom-dia,
Escritório,
Relatório,
Telefones,
Almoço, arroto,
Contas, desgosto,
Adeus, adeus.
Clube, vento,
Grama, tênis,
Ducha, alento,
Bar, escândalos,
Pedro, Paulo,
Mulher de Pedro,
Mulher de Paulo,
Adeus, adeus.
Lar, esposa,
Filhos, pijama,
Janta, living,
Jornal, cismares,
Tricô, vagares,
Hiato, ausências,
Bocejo, escada,
Adeus, adeus.
Quarto, cama,
Glândulas, êxtase,
Dois em um,
Dois em nada,
Dever cumprido,
Luz apagada,
Adeus, adeus.
Horas, dias,
Meses, anos,
Cãs, enganos,
Desenganos,
Vácuo, náusea,
Indiferença,
Cipreste, olvido,
Há Deus? adeus.
O título refere-se a um dos textos mais cruéis da literatura universal: a novela de Tolstói
A morte de Ivan Ilitch, que Vladimir Nabokov dizia ser a obra ―mais artística, mais perfeita e
de mais sofisticada realização‖ [4] desse autor.
A angústia, a solidão, o ódio, o pavor diante da morte. A morte não pode ser detida. Ivan
Ilitch, por sua condição de homem comum, decente, sem grandes arroubos filosóficos, sem
grandes preocupações éticas ou religiosas, torna-se o protótipo de todos os homens: ―Somos
quase todos Ivan Ilitch, na nossa eficiência especializada, na superficialidade com que
passamos sobre os problemas fundamentais, na indiferença em relação à dor, à verdade, à
precariedade da vida. Quando essa estrutura depara com a doença, a morte e o egoísmo dos
outros — não discursivamente mas num encontro frente a frente — sobrevém a angústia, o
desespero, o poço sem fundo do sofrimento total.‖ [5]
O modo como Ivan Ilitch se aproxima da morte é o resultado da própria vida sem vida
que ele levou a vida inteira. Num processo de fuga de si mesmo, de auto-negação mais ou
menos voluntária, Ivan é obrigado a olhar-se no espelho da dor e do desespero. A morte,
abismo negro para o qual todos caminhamos com maior ou menor consciência, abre-se
diante do personagem, que começa a perceber, diante do inexorável, a futilidade de sua
existência, a falsidade de suas conquistas.
Tolstói era um obcecado pela morte, ―todo el problema de sus cavilaciones giraba en
torno a la pregunta de si la muerte es un fenómeno con sentido o no‖, [7] e defendia a tese de
que, na hora em que uma pessoa aprende a pensar, passa a pensar sempre na morte, mesmo
quando está pensando em outras coisas.
A vida vazia do homem, seja ele um burocrata na Rússia do século XIX, seja ele um
escriturário brasileiro em 1958, como no poema de José Paulo Paes, seja ele um de nós, no
início do século XXI, possui o vazio [8] de quem não não refletiu radicalmente e por isso ainda
não descobriu a sua condição de pessoa, realidade que confere sentido à vida e, portanto, à
morte.
O criador da Logoterapia, Viktor Frankl, relata que certa vez foi ministrar uma palestra
num presídio norte-americano e lá soube de um homem chamado Aaron Mitchell, condenado
à morte, que na manhã do dia seguinte seria executado na câmara de gás. Pediram ao Dr.
Frankl que lhe dirigisse algumas palavras. O problema é que só poderia comunicar-se com
ele por intermédio de um microfone, de modo que todos os demais presidiários o ouviriam
também:
―Imaginem a situação e a minha vergonha diante desse pedido. Mas eu tinha de dizer alguma
coisa ao condenado, e acabei improvisando mais ou menos estas palavras — ‗Sr. Mitchell, de
alguma forma penso que posso compreender a sua situação. Afinal, também eu vivi alguns
anos à sombra da câmara de gás. Mas, acredite em mim, mesmo naquela situação não
duvidei em momento algum do sentido incondicionado da vida. Ou a vida tem um sentido, e
então ela o retém mesmo que vivamos um tempo relativamente curto; ou, se não o tiver, não
o ganharia mesmo que vivamos toda a eternidade. Até uma vida falhada, cujo passado
parece totalmente destituído de sentido, pode ainda ser preenchida de forma retroativa pela
maneira como tomamos posição diante de nós mesmos e nos transcendemos a nós próprios
nessa tomada de posição.‘
―A seguir, contei-lhe a história da morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, que torna tudo muito mais
claro do que eu poderia fazê-lo. Tenho indícios de que fui compreendido, e não só por ele.‖
[9]
Significativo que a história da morte de Ivan Ilitch tenha tornado tudo muito mais claro. É
que nesta novela toca-se a brutalidade de uma vida despersonalizada, por mais
profissionalmente decente que tenha sido, por mais politicamente correta que tenha sido, por
mais aprovada que tenha sido pelos critérios sociais. E como é luminosa para as consciências
a descoberta de que, embora não possamos fazer um novo começo, ao fazermos um novo
fim recriamos a vida toda, descobrimos e conferimos um sentido até mesmo àquilo que não
tinha sentido.
―Veio-lhe à mente que poderia ser verdade aquilo que lhe parecera antes uma
impossibilidade absoluta, ou seja, que a sua existência tivesse sido vivida do modo contrário
como deveria ter sido. Veio-lhe à mente que, enquanto lutava para conquistar aquilo que as
pessoas mais altamente colocadas consideravam bom e correto, as veleidades quase
imperceptíveis que sentia e imediatamente repelia talvez fossem justamente as verdadeiras,
e tudo o mais fosse apenas mentira. Os seus deveres profissionais, a sua vida bem
organizada, a sua família, e esses interesses da sociedade, tudo isto talvez não passasse de
mentira. Tentava ainda, diante de si mesmo, defender tudo o que fez, mas de repente sentiu
a fragilidade daquilo que defendia. Não havia mais nada a defender.
―‗Mas se isto é assim‘, disse ele consigo, ‗e se eu deixo a vida com o sentimento de ter
desperdiçado e destruído tudo o que me foi dado, e se não posso mais corrigi-lo, o que vai
ser de mim então?‘‖
O hoje menos conhecido Gustavo Corção (já se foi o tempo em que citá-lo, para elogiar
ou criticar, atraía ódios e amores) transcrevia em seu Lições de Abismo [11] um trecho da
novela de Tolstói. O personagem de Corção é um homem comum, com um nome comum,
José Maria, um professor que descobre estar com leucemia, e nos últimos meses de vida
escreve num diário suas reflexões.
―Conhecia Caio, porventura, o cheiro daquela bola de couro com que Vánia brincava? Beijava
Caio, como Vánia, a mão de sua mãe? Ouvia acaso o ruge-ruge do vestido de seda quando
ela passava? Fora ele, ainda, que levantara na escola a questão dos pastéis? Ah! E amara ele,
Caio, como Vánia tinha amado? Ou como Vánia, não, como Ivan Ilitch, seria ele capaz de
presidir uma sessão do tribunal?
―Caio é com efeito mortal, e é justo que morra. Mas eu, Vánia, Ivan Ilitch, com todos os meus
pensamentos, com todos os meus sentimentos, sou outra coisa, completamente outra, e
parece-me impossível que deva morrer. Seria horrível demais. Se eu tivesse de morrer (como
Caio), bem havia de saber; uma voz interior dizia-mo. Mas nunca me disse ela tal coisa. Eu, e
cada um de meus colegas de lógica, compreendemos muito bem que havia um abismo entre
Caio e nós. E eis que agora... Não! É impossível. E contudo assim é. Mas como? Como
compreender isto?‖ [12]
O personagem de Corção relê com um frio no estômago esse trecho que, no passado,
lera com a tranqüilidade de quem, como qualquer ser humano normal, se sentia imortal. Revê
a luta de Ivan para desvencilhar-se de qualquer identificação com Caio. José Maria, por sua
vez, lutará para desvencilhar-se de qualquer identificação com Ivan, ou com o Sócrates dos
tratados de lógica luso-brasileiros:
―Todo homem é mortal. Sócrates é homem, logo, Sócrates é mortal‖. ―Sócrates‖, ―homem‖ e
―mortal‖ são conceitos. ―Sócrates é mortal‖ e ―Sócrates é homem‖ são juízos. O raciocínio é a
progressão do pensamento que se dá entre as premissas ―Todo homem é mortal‖, ―Sócrates
é homem‖, e a serena conclusão: ―Sócrates é mortal‖.
E nós também olharemos para Caio, Sócrates, José Maria, e para os próprios Corção e
Tolstói como seres reais ou imaginários, seres lógicos ou ilógicos, como seres que morreram,
mas com os quais não podemos nos identificar, não queremos e não vamos jamais nos
identificar, sobretudo nesse ponto em que todos os humanos nos encontramos, como diz,
com um certo cinismo, Luis Fernando Verissimo:
Seja a literatura, a filo, a lógica, a medicina ou a biologia, seja a tv, a nossa experiência
cotidiana ou o senso comum, sejam as piadas de bar ou os provérbios de todos os tempos e
das mais díspares culturas, tudo nos comunica o fato incontestável: a indesejada das gentes
chegará para cada um de nós, ainda que no momento em que menos esperarmos — ―Mors
certa, hora incerta‖, segundo o adágio latino —, ainda que nos recusemos a admitir que
chegará mais cedo do que imaginamos.
No último momento, Ivan Ilitch aceitou a realidade da morte, e não só como um estóico
a aceitaria, mas como uma pessoa, pura e simplesmente, dando à morte uma razão de ser na
sua vida, vendo na morte um novo caminho e não o fim de todos os caminhos. Mais do que
assimilar a idéia da morte, assimilou uma realidade, e descobriu novas realidades nessa
realidade. Agora o silogismo se inverte: eu sou mortal, logo, todos somos mortais, e todos,
como eu, merecem compaixão, compreensão. Porque a morte de uma pessoa é um momento
sagrado, é o momento da grande revelação, é a hora em que a pessoa se vê a si mesma, sem
mentiras, sem subterfúgios, momento em que é chamada a dar os últimos retoques e a
assinar a obra de sua própria vida.
A certeza da morte deve (ou deveria) dar-nos a urgência dessa descoberta: a morte pode
ser transformada e transformadora. Se a morte, para os animais — diz uma criança, segundo
Pedro Bloch — é ―o gato que saiu do gato e só ficou o corpo do gato‖ [14] , a morte humana é
quando o corpo começa a sair de nossa vida (ou quando começamos a ser expulsos da nossa
instalação corpórea) e a pessoa, por assim dizer, entra em si mesma, torna-se, mais do que
nunca, o que foi chamada a ser.
E o poema de José Paulo Paes que deixamos páginas atrás? Este termina com uma
pergunta e uma resposta ambíguas: ―Há Deus? adeus‖.
Adeus é uma fórmula de despedida nascida de uma antiga frase cristã, ―a Deus te
encomendo‖, que também deu origem aos adiós, addio, adieu etc. das outras línguas
românicas. Uma despedida em forma de oração, com a qual os que se despedem demonstram
confiar numa verdade: Deus protegerá a ambos. Se Deus existe, somos pessoas e, portanto,
somos seres com um destino, não estamos desamparados. Deus existe? Se Ele existe (se a
Vida existe), podemos continuar existindo, como se pode deduzir de outro poema, este de
Manuel Bandeira, quando se refere à morte em A Mário de Andrade Ausente:
“[...]
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida!
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.” [16]
Ivan Ilitch, à beira da morte inevitável, despede-se da família, conforme conta a esposa
no dia do enterro, a um dos amigos do marido que perguntara se ele, em meio aos
tormentos, tinha se mantido consciente até o fim: ―Sim — murmurou a viúva —, até o último
instante. Disse-nos adeus quinze minutos antes de morrer, e ainda pediu que levássemos
Volódia para fora do quarto.‖ [17]
Nossa força é nossa fraqueza. O fato de nos agarrarmos à idéia da imortalidade deve-se
a um motivo que mal podemos descrever e que por vezes nós mesmos consideramos ilusório,
presunçoso e até arrogante: o de, contra todas as evidências, nos sentirmos imortais.
Sentimo-nos imortais porque constatamos a nossa capacidade de criar, de transformar o
mundo, de agir livremente, e como que nos revoltamos contra a lógica ilógica (e injusta) de,
sendo criadores, sendo livres, pagarmos o tributo da morte.
Por outro lado, viver de costas para a realidade da morte é realmente viver no engano,
no auto-engano. A morte acabará por vir, lenta ou súbita, violenta ou indolor, mais cedo ou
mais tarde, ―morrida‖ ou ―matada‖ como diz o povo, e seremos desenganados pelos médicos,
enterrados pelos parentes e amigos, lembrados durante alguns anos e, ao longo das décadas,
finalmente esquecidos por todos os viventes, a não ser que nos transformemos em mitos
mundiais ou coisa parecida. Seremos totalmente devorados pela morte implacável. Ou não?
Conta-se aquela piada — dois gêmeos no útero materno, e um pergunta para o outro:
―Será que existe vida depois do parto?‖
A morte dos outros, dos amigos, dos familiares, mas sobretudo a inevitabilidade de
minha morte é como que uma bofetada que me faz querer defender uma possível e desejável
capacidade de viver depois da deterioração corporal. Não é uma bofetada na humanidade
nem na idéia abstrata de vida. É uma bofetada em mim. Por que devo morrer, eu que não
quero morrer?
Minha condição de pessoa significa que posso e devo subsistir em mim mesmo, que eu
desejo, que eu aspiro, que eu anseio no mais fundo de minhas entranhas permanecer vivo, e
vivo em plenitude. Em outras palavras, tudo isso que faz de mim um não-objeto, tudo o que
faz de mim alguém, tudo o que faz de mim superior aos meus instintos: o meu querer, o meu
agir, o meu criar, o meu amar, o meu saber apontam para a infinitude, para a não-morte.
Cada um dos meus atos exprime e ao mesmo tempo constrói (ou, eventualmente, desvirtua) a
minha dignidade de ser livre, criativo e aberto à transcendência, aberto e desejoso de
desintegrar a morte. [18]
No entanto, como pessoa humana, posso preferir aquilo que a muitos outros parece
inútil, mas que é, à luz de critérios não estritamente pragmáticos, o mais útil para a minha
realização pessoal, para a minha contribuição para a vida social e até mesmo para a minha
realização post-mortem. Um exemplo simples. Um rapaz carioca, desde o 15 anos, queria
estudar astronomia, mas seu pai se opunha: ―ninguém vai te pagar pra contar estrelas!‖ Esse
rapaz se chama Marcelo Gleiser. Para satisfazer o pai, cursou dois anos de engenharia
química, mas ―minha cabeça não era para engenharia‖. Transferiu-se para o curso de física e
se formou em 1981. Fez mestrado e depois, na Inglaterra, um brilhante doutorado. Hoje é
professor titular numa das universidades mais conceituadas do EUA. Diz ele: ―Acredito que só
iremos fazer muito bem aquilo que realmente queremos fazer. Escolher uma profissão
‗viável‘, que não seja realmente desejada, pode até dar certo, mas é um compromisso
arriscado com a vida.‖ [19]
Sem perceber talvez o alcance do que disse, Marcelo Gleiser tocou num tema muito mais
vital do que poderia imaginar. Pomos em risco a nossa vida, a nossa felicidade perdurável,
quando traímos o nosso mais profundo querer. Se a sua vocação era contar estrelas e dançar
com o universo, colocaria em risco o seu amor à vida se obedecesse a uma outra voz que não
aquela, se não fosse fiel ao chamado que as estrelas lhe faziam. Sua vida se tornaria inviável e
possivelmente insuportável se desobedecesse à sua vontade de ouvir e contar estrelas,
vontade que não era sua apenas, mas lhe foi como que suscitada pela próprias estrelas!
O cristianismo me diz que posso autotranscender-me, que posso ir além do que já sou e
do que já possuo. O cristianismo me propõe novos objetivos, novos sentidos e novas
conquistas. E não diz isso à humanidade, ao gênero humano, diz isso a mim, dirige-se a este
―eu‖ que sou eu. Se, refletindo sozinho, não vejo uma razão razoável para não prosseguir vivo
depois de minha morte, se eu me rebelo contra essa morte aterrorizante, o cristianismo apóia
o meu desejo e diz que, se as pessoas ressuscitarão, prefiguradas que foram na pessoa de
Cristo Ressuscitado, eu, que sou uma pessoa, também ressuscitarei.
O cristianismo é uma religião baseada no olhar para uma pessoa. Olhar para Cristo é
olhar para uma pessoa criativa e crítica, possuidora de um delicado e complexo equilíbrio
físico, afetivo, psíquico e espiritual. Sua mensagem é uma profunda revelação sobre nós
mesmos. Ser como Cristo (ser o próprio Cristo é, em essência, o que o cristianismo define
como santidade) consiste em, de maneira pessoal, retomar sua forma de agir, seu profundo
conhecimento da realidade humana, seu comportamento salvífico, sua visão abrangente e
integradora, sua atenção em fazer e dar a conhecer a vontade do Pai, consiste em retomar sua
forma de analisar sentimentos, dados intelectuais, decisões e ações. Ser como Cristo é ver as
possibilidades e alternativas de transformação daquilo que precisa mudar. É amar
profundamente a Deus, a si mesmo e ao próximo, e entender que mudar o coração é o
primeiro passo para dar a qualquer outra realidade um novo sentido, inclusive à nossa morte.
Neste contexto, a morte deixa de ser o fim e se transforma numa fronteira, deixa de ser
um muro e se torna uma passagem, deixa de ser um abismo e se torna uma ponte. Se é
evidente que sofreremos uma morte biológica, não é tão evidente que a pessoa que eu sou
morrerá com o corpo que vai cair e apodrecer. O cristianismo afirma que eu não morrerei
para sempre.
A morte faz parte do meu drama pessoal, da minha biografia. Mas posso interpretar
minha morte como um ponto de partida (terminus a quo) e não mais como um ponto de
chegada (terminus ad quem).
Enquanto Ivan Ilitch encarou a morte como um ponto de chegada, como um fim
absoluto, manteve-se cada vez mais tenso, mais infeliz, e o ódio que sentia por todos e por si
mesmo era a reação lógica de quem se encontrava violentamente frustrado, violentamente
castrado, violentamente agredido em sua mais profunda dignidade.
―E, subitamente, percebeu com toda a clareza que aquilo que o atormentava e oprimia
começava a dissipar-se, a escoar para fora, por ambos os lados, por dez lados, por todos os
lados: ‗Eles me dão pena, é preciso fazer com que não sofram. Preciso libertá-los e libertar a
mim mesmo desses tormentos. Como isto é bom e como é simples‘, pensou. ‗Mas... e a dor?
O que fazer dela?‘, perguntou em seu íntimo. ‗Pois bem, para onde você foi? Ei, onde está
você, minha dor?‘
―‗Ah, sim, lá está ela. Muito bem, que fique. E a morte? Onde está?‘
―Procurou o seu habitual terror da morte e não o encontrou mais. ‗Onde ela está? Que
morte?‘ Já não sentia nenhum medo, porque também a morte desaparecera.
―Tudo isso, para ele, aconteceu num único instante, e a significação desse instante não se
alterou mais. Mas para os que o rodeavam ali, a agonia durou ainda duas horas. Algo
borbulhava-lhe no peito; seu corpo descarnado estremecia. Depois, pouco a pouco, o
borbulhar e o rouquejar tornaram-se mais e mais espaçados.
―Ivan Ilitch ouviu essas palavras e repetiu-as em seu espírito: ‗Acabou a morte. Ela não existe
mais‘.‖
Para Sartre, ―a morte é sempre inoportuna‖. Para o cristão, a morte é a oportunidade por
excelência. Não vai aqui nenhuma morbidez. A morte é a oportunidade, como foi para Ivan
Ilitch, de ter (ou de reafirmar) as atitudes decisivas, de dizer as palavras decisivas e
transformadoras. Perante a morte, Ivan pensou nos outros. Conseguiu olhar para os outros
com olhos humanos. Conseguiu pedir perdão, ainda que a palavra ―perdão‖ tenha saído de
outra forma dos seus lábios.
Tolstói faz ainda uma outra significativa brincadeira verbal na última página da sua
novela:
‗Acabou!‘ (Koncheno!), disse alguém por cima dele.‖ Alguém por cima dele?
―Prof. Jahn sugere que esta palavra dita sobre Ivan Ilitch de algum modo vincula-se ao
contexto bíblico. Cristo, do alto da cruz, diz: ―Está tudo consumado!‖ Na tradução oficial
para o russo, a palavra usada é Sovershilos e não Koncheno. A primeira tem um impacto
semântico profundamente diferente, indicando a morte no Calvário como a realização plena
dos planos de Deus. Já Koncheno indica um fim abrupto, destituído de beleza poética. O
leitor contemporâneo de Tolstói, inserido na tradição espiritual russa, não percebia a
referência bíblica, a não ser que estivesse muito familiarizado com o modo pessoal como o
autor interpretava o Evangelho. De fato, a tradução que Tolstói faz dos textos evangélicos é
despojada, deles retirando todo o poder retórico e poético, sobretudo no que diz respeito à
Ressurreição, ponto crucial da teologia cristã.
―Poderíamos pensar também que a expressão ‗alguém por cima dele‘ refere-se a uma
imagem mística: Cristo, no alto da cruz, acima da cama do moribundo, dizendo: ‗Está tudo
consumado...‘. Tal imagem, porém, é enganadora. Não ouso corroborar uma exata
equivalência. Se esse ―alguém por cima dele‖ pode ter um conteúdo religioso, e Tolstói sabe
disso, pode também ser algo muito simples como haver de fato uma outra pessoa em pé,
um criado, um médico, reclinado sobre o leito de morte de Ivan Ilitch.
―Esta é a dissimulada ambigüidade com que Tolstói encerra o seu texto. Se Cristo tivesse
dito ‗Está tudo acabado!‘, a mensagem da Tradição cristã tornar-se-ia irremediavelmente
outra. Uma vez que Tolstói sabia ser muito difícil que os leitores russos do seu tempo
fizessem tal associação entre o texto literário e o texto bíblico, podemos concluir que usou a
expressão Koncheno! com a malícia de quem faz uma brincadeira secreta, e dessa
brincadeira faz a pedra angular oculta da sua novela.‖ [21]
Notas:
[1] Julián Marías. A perspectiva cristã. São Paulo, Martins Fontes, 2000, pág. 111.
[2] O Redentor do Homem, 12.
[3] Os melhores poemas de José Paulo Paes (seleção Davi Arrigucci Jr.). São Paulo, Global, 1998, págs. 109-110.
[4] Vladimir Nabokov. ―The Death of Ivan Ilych‖, em: Lectures on Russian Literature, New York, Harcourt Brace
Jovanovich, pág. 238.
[5] Luiz Carlos Lisboa. ―Nota sobre o Ivã Ilicth‖, em A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro, Alhambra, 1981, pág. 6.
[6] Esta passagem do livro de Tolstói é uma composição elaborada a partir de três traduções brasileiras: de Gulnara
Lobato de Morais Pereira (São Paulo, Saraiva, 1963), de Joaquim Cardoso Marques e Manuel Borges (Rio de Janeiro,
Alhambra, 1981) e de Boris Chnaiderman (Rio de Janeiro, Ediouro, 1997). As citações do texto serão feitas aqui a
partir desta última edição. No caso desta, pág. 112.
[7] Max Weber. La ciencia como profesión – La política como profesión. Madrid, Espasa Calpe, 2001, pág. 67
[8] Um artigo no jornal argentino El Clarín com o título Italia: como no tienen dinero, simulan salir de vacaciones
pero se encierran en su casa ilustra esse vazio: Llenan su heladera con productos congelados para no tener que
salir de su casa en mucho tiempo y para que los niños no se pongan de mal humor, compran videojuegos y libros.
Apagan el teléfono celular y conectan el fijo al contestador... Esos son tan sólo algunos de los trucos que tres
millones de italianos usan para engañar a su entorno: les dicen a sus amigos que se van de vacaciones pero en
realidad se quedan en casa por falta de dinero. Los datos surgen de un informe de la asociación de psicólogos "Help
me" titulado ―Vacaciones topo‖.
―La causa de este comportamiento asumido por tantos italianos sería la crisis económica y una depresión del poder
adquisitivo, frente a modelos que no dejan de proponer la imagen del turismo de consumo a cualquier costo‖
afirmó Massimo Cicogna, psicoantropólogo y presidente del Ipsa (Instituto Internacional de Estudios
Interdisciplinarios) y miembro de la asociación "Help me". Esa parece ser la razón de tantos trucos y mentiras, que
intentan impedir que amigos y compañeros de trabajo se enteren de la cruel verdad.
Y la imaginación no tiene límites. Se entregan las plantas a los vecinos para que las rieguen y algunos, incluso,
compran un aparato de rayos ultravioletas para estar bronceados al "regreso". Otros, compran por Internet
souvenirs del lugar al que supuestamente viajaron. El informe agrega que un 19 por ciento de los italianos se
quedará en casa este verano, aunque no siempre la falta de dinero es la causa. Algunos solteros no tienen con
quién viajar. "Muchas relaciones son muy superficiales", comenta el psicólogo. "Cuando uno busca a alguien para
viajar, no encuentra a nadie". (Em: http://www.clarin.com/diario/2003/08/06/t-600678.htm)
[9] Vicktor E. Frankl. Sede de sentido. São Paulo, Quadrante, págs. 42-43.
[10] Leon Tolstói. A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, págs. 107-108.
[11] É conhecida a observação de Oswald de Andrade a respeito deste romance: ―Depois de Machado de Assis,
aparece enfim um romancista entre nós‖, quando este livro foi publicado, em 1950.
[12] Gustavo Corção. Lições de abismo. Rio de Janeiro, Círculo do Livro, 1976, págs. 35-36.
[13] Jornal do Brasil, 12/08/2001.
[14] Pedro Bloch. Dicionário de humor infantil. Rio de Janeiro, Ediouro, pág. 113.
[15] Vinicius de Moraes. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, pág. 223.
[16] Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. 11a ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1986, pág. 174.
[17] Leon Tolstói. Op. cit., pág. 17.
[18] Só para mencionar um caso recente e significativo. Por ocasião do falecimento de Roberto Marinho, os jornais
lembraram que um dos homens mais poderosos do Brasil no século XX usava a conjunção ―se‖ quando, nas
reuniões com os filhos e executivos das Organizações Globo, referia-se a si mesmo: ―Se algum dia eu vier a faltar‖.
(Veja-se, por exemplo, em: http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2003/08/07/ger017.html)
[19] Em Revista Veja. Edição especial nº 24, ano 36, Agosto de 2003, pág. 67.
[20] Leon Tolstói. Op. cit., pág. 112-114.
[21] Veja o ensaio ―Comic Devices in The Death of Ivan Ilich‖, de James L. Rice, que pode ser encontrado em:
http://babel.uoregon.edu/complit/jamesrice.pdf.
[22] Gilbert Chesterton. Doze tipos. Rio de Janeiro, Topbooks, 1993, pág. 127.
Fonte: hottopos