Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
ABSTRACT: If only the epigraph of Ofélia, meu cachimbo e o mar would enable us to
analyze the updating of a historical-literary memory, there is much more to observe in this
shot story, such as what concerns the production and the functions of a self-historical memory
on the discourse of the narrator. We recall Pierre Achard’s notes on the implicits of discourse
and the processes of regularization and repetition; Michel Foucault’s notes on the utopia and
heterotopia; and Michel Pechêux’s notes on the memory seeking to evince how memory,
through a seeming process of repetition, operates the updating and denial of already-said
elements. As the narrator rememorates his history and that of his family, we notice historical-
familial and mythic-maritime memories interweave, pointing towards a comforting function
that tends to register itself as an event possible to be re-established on the immediate exterior
of the characters. This by means of heterotopia inscribed in their reminiscences, on their
bodies or in objects, but always aiming to evidence memory as a sort of aid from absences
and impossibilities. We also notice the exterior and heterogeneous constitution of the subject-
narrator and his memory, as well as its procedures of discoursive updating. Those erupt as
breaches on the discourse, gradually causing, through the mediation of an other-interlocutor,
the demerit of all memorial heterotopia, displacing the narrator’s memory to an all-utopia
territory, where its function will become that of highlighting the opacity of what is silenced,
no longer finding place in memory.
KEYWORDS: Murilo Rubião. Memory. Discourse.
opacidades semânticas que possibilitam, conforme Barthes (2015, p. 16), “com a língua,
trapacear a língua”, impulsionando-a para além das forças reguladoras do significado. Enfim,
objetivamos analisar formas de organização discursiva que permitem – e, novamente, Barthes
– “instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas”
(BARTHES, 2015, p. 29).
1 Para nos posicionarmos o mais possível no espaço imediato do discurso que analisamos, o narrador
constituirá nosso sujeito discursivo. Já o autor corresponderá a uma função (FOUCAULT, 2006a) que pode
ser considerada a posteriori dos discursos vinculados às personagens, função que não privilegiaremos tanto
no presente texto. Por expediente, após repousarem as palavras na página, as consideraremos autônomas em
relação ao sujeito que ali as colocou.
ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, v. 13, n. 2, ago-dez. 2017
70
Após considerar que uma mesma sequência de significantes (“os sons emitidos pelas
naves”) pode compor, no discurso memorial de distintos sujeitos, distintos signos, a memória
mítico-marítima é recolocada em movimento, agora com um índice referente a representações
culturais associadas à figura do marinheiro, a taberna2, aqui, mais particularmente, as inglesas.
2 Remetemos, a cargo de exemplo, a The Long Voyage Home, filme de 1940, dirigido por John Ford, em que
as cenas dos marujos em seus recessos em terra transcorrem quase unicamente no espaço das tabernas nas
imediações portuárias.
ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, v. 13, n. 2, ago-dez. 2017
73
Contudo, o elo estabelecido é considerado estranho pelo narrador, e não nos é possível senão
sugerir que essa estranheza paire na relação de necessidade entre a reminiscência e a inscrição
nacional específica, e não em uma não-conectabilidade entre os “sons emitidos pelas naves” e
a representação menos específica de uma taberna qualquer, constituindo uma contestação de
um dos índices culturalmente dispersos da memória mítico-marítima (o que, no entanto, não
seria menos aceitável quando falamos do funcionamento dos discursos): aqui, sem imanências
sondáveis, se indagada com maior insistência, a materialidade histórico-linguística não se
oferece a nós mais do que em opacidade.
Logo adiante, uma segunda voz exterior é inserida e explicitada, em sucessão não
apenas espacial, como também temática em relação à passagem anterior: “O botequineiro, que
ostenta no corpo diversas tatuagens – todas alusivas a amores passados –, diz que são ‘artes de
rabo de saia’” (RUBIÃO, 2010, p. 39-40). A figura do botequineiro (que parafrasearemos,
doravante, como taberneiro) também é índice da rede de implícitos discursivos referente às
práticas e aos atores da navegação, assim como um corpo coberto de tatuagens é
representação também regular nesses discursos, bem como os amores efêmeros abandonados
a cada porto (os “amores passados”)3. Este último sentido tenderá a melhor sedimentar-se por
meio da próxima fala do narrador, permanecendo apenas possível até o presente momento da
leitura.
Convocado o taberneiro, o narrador então comenta acerca das “artes de rabo de saia”,
materializando uma nova representação vinculada aos marinheiros: “marinheiro velho se
lembra de mulher somente para ter saudades do mar” (RUBIÃO, 2010, p. 40). Com essa
materialização, colabora para a associação entre os “amores passados” e os amores portuários
e efêmeros, valendo-se, no entanto, de um novo índice cultural (a “saudade do mar”4) para
possibilitar a expansão de um implícito regularizado na voz discursiva de um sujeito outro,
agindo à semelhança da força de desregularização apontada por Pêcheux (1999, p. 53). E
valendo-se para tal de uma paráfrase interveniente sob a forma de um comentário posterior,
comportamento concordante também com Achard (1999, p. 15-16), quando esse menciona
que a regularização do sentido é uma atividade vinculada à enunciação e a forças que agem na
posterioridade dos significantes. Assim, nos defrontamos simultaneamente com o exterior
3 Podemos encontrar um conjunto semântico de elementos bastante afim aos que nos referimos, por exemplo,
nas estrofes iniciais da canção Minha história, de Chico Buarque.
4 Que localizaremos, por exemplo, em algumas passagens de O velho e o mar, de Ernest Hemingway, ou em
peças de fado, como numa leitura literal (não-metafórica) d’O navio, do grupo Madredeus, ou numa leitura a
contrario de É doce morrer no mar, de Dorival Caymmi.
ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, v. 13, n. 2, ago-dez. 2017
74
5 Remetemos também a uma versão distinta desse ensaio, As heterotopias, no volume O corpo utópico; As
heterotopias (FOUCAULT, 2013).
ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, v. 13, n. 2, ago-dez. 2017
75
É de interesse destacar que, aqui, a voz memorial do narrador movimenta aqui uma
multiplicidade inominada de vozes (notemos a indefinição dos sujeitos discursivos de
“contavam”), realizando a (re)produção discursiva da(s) memória(s) dessas vozes. Conta-se
um caso já transcorrido mas não localizado temporalmente, o que notamos pela mobilização
dos tempos pretéritos junto a índices discursivos como “certa vez”, “quando”, “depois de”,
respondendo o conjunto pela inscrição do relato em uma cronologia indefinida e não
veridificável.
Adiante, o narrador, reporta-se a implícitos de uma memória histórico-política-social
referente à inscrição do tráfico negreiro no Brasil Colônia derradeiro, reportando-se também,
sem referência explícita, aos agentes múltiplos da abolição: “Com a abolição da escravatura,
José Henrique retirou-se para uma fazenda” (RUBIÃO, 2010, p. 41). Isso se dá em conjunção
com um trecho anterior (“Do meu bisavô também roubaram o mar”), no qual estão presentes e
ausentes aqueles que o “roubaram”. Então, tendo em vista esse “roubo”, nosso sujeito
discursivo invocará uma outra figuração heterotópica da memória:
Em alguns momentos, no embalo da nostalgia, decidia-se a retornar ao
comando de uma nave qualquer. Agitado, compulsava mapas, ou pegava
uma velha roda de leme e ia para o alto de um morro para simular ordens de
comando.
Depois, os altos cumes da Mantiqueira, escondendo-lhe o oceano, e a certeza
de que jamais comandaria navios negreiros, faziam com que ele retornasse à
rede.
Raramente de bom humor, apenas sentia-se feliz quando, de porta-voz em
punho, comandava subordinados imaginários. (RUBIÃO, 2010, p. 41)
Examinar mapas; manipular uma roda de leme simulando, do alto, como ao topo da
proa de uma nave, ordens de comando; coordenar subordinados imaginados, valendo-se de
um porta-voz6 para tal: por meio desses rituais específicos, vinculados a objetos presentes na
atividade naval, todos correspondentes às práticas de capitaneio, uma função da memória se
exerce em dois atos: de início, a percepção de que o real imediato não corresponde ao espaço
imaginado (de um passado irrecuperável), passando pelo contraste entre o ritual de memória e
o espaço que já não o aceita, ao menos, não como um ritual dotado de sua funcionalidade
anterior (tornada inacessível); em seguida, nesse espaço hostil aos desejos, é o devaneio
intermediado pelos objetos (e “apenas” ele) que permite o acesso à felicidade momentânea,
que consola, enfim, perante a realidade não-correspondente ao(s) desejo(s). Os objetos, aqui, à
semelhança das tatuagens às quais já nos atentamos, agem como espacialidades heterotópicas
ao alocar / invocar / possibilitar invocar um espaço memorial intangível ao alcance das mãos.
A recuperação memorial por intermédio de objetos e dos rituais de memória conforme
observados acima, será retomada quando o narrador se refere também a seu avô e a seu pai:
Já o meu avô que nascera em Minas contentava-se em fazer barcos de
madeira e colecionar estampas de navios. Desculpava-se frequentemente de
não ter seguido a vocação ancestral, repetindo o velho José Henrique:
— Mar? Só em navio negreiro.
Talvez desculpasse seu horror por qualquer espécie de água: em seus oitenta
anos de vida conheceu somente a que o padre lhe ministrou na cerimônia de
batismo.
Ante o exemplo paterno, meu pai jamais externou o desejo de ser navegador,
nem tampouco abusou dos banhos. (RUBIÃO, 2010, p. 42)
6 Instrumento de forma semelhante à da trombeta, utilizado para a ampliação da voz de quem o utiliza.
ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, v. 13, n. 2, ago-dez. 2017
79
memória familiar relacionada àquela “vocação ancestral” – até o momento, e também adiante,
permanecendo relacionada a um único antepassado – do que reminiscências experienciais
subjetivas. Esse efeito de sentido é suscitado pela última sentença do primeiro parágrafo, em
conjunção com o discurso direto que a segue. Então, um duplo movimento ocorre para
contribuir ao processo de descrédito anteriormente iniciado: do avô, nosso narrador relata
“seu horror por qualquer espécie de água”, e do pai, a ausência de manifestações do “desejo
de ser navegador”, além de uma sugerida aversão por água, relacionando ambos elementos ao
exemplo do avô.
Na sequência, observaremos a reinscrição do discurso no espaço imediato (“este
porto”), além de uma explicitação de que nosso narrador reconhece a intangibilidade do
“sonho marinheiro” para seus antepassados, intangibilidade que, como viemos destacando, é
apresentada de modo crescente ao longo do conto: “Todavia os insucessos navais de minha
família não evitaram que eu viesse para este porto e chegasse um dia a passar fome”
(RUBIÃO, 2010, p. 42). No que diz respeito aos “insucessos navais” da família, atentemos ao
fato de que o bisavô passa pela experiência naval e é dela apartado, enquanto o avô e o pai
sequer o fazem, sendo destacados seus “insucessos” mediante um discurso cujo horizonte visa
a navegação como realização quase obrigatória de uma potência ancestral, discurso que
também é exterior ao discurso de ambos acerca da matéria (de fato, a voz de ambos é, a rigor,
sempre mediada pela voz do narrador). Do avô, nos é dito que ainda reconhece a validade
desse discurso e dessa “vocação ancestral”, manipulando um já-dito (“Mar? Só em navio
negreiro”), e ressignificando-o como operador de esquiva perante a temida realização da
vocação. Já do pai, conforme sua disposição no discurso do narrador, não conheceremos nada
além de que “jamais externou o desejo de ser navegador”.
A partir daí, nos é narrado como o sujeito discursivo, naquele porto ao qual veio,
conhece Alzira, sua futura esposa:
Devo esclarecer que não a pedi em casamento por causa de sua fortuna e
ainda menos pela sua beleza um tanto equívoca: tinha a cara de tainha e o
odor de lagostas. Foi pelo odor e não pelo rosto que a escolhi para minha
mulher.
O nosso casamento durou pouco mais de um ano e terminou com a morte de
Alzira, intoxicada por umas sardinhas deterioradas que ela comera no jantar.
(RUBIÃO, 2010, p. 42)
esperado, ao afirmar que “deve esclarecer” suas razões. O corpo da esposa, localizável e
tangível, permite, como nos casos anteriores, a recuperação memorial de um espaço (já-
)intangível: novamente, o espaço das águas marinhas.
Quanto ao relato da morte de sua esposa, ele estrutura-se de modo paralelo ao breve
relato da morte do pai do narrador: “Esperei que meu pai fizesse sua última viagem, que,
aliás, por pouco não foi marítima – morreu engasgado com uma espinha de peixe – para ir
morar no litoral” (RUBIÃO, 2010, p. 40). Se do segundo acontecimento, percebemos a
repetição e atualização de sentidos para o léxico “viagem”, do conjunto formado pelos dois
acontecimentos podemos apontar a gestação de certos índices discursivos de ironia
(manifestadamente, as duas mortes vinculadas ao consumo alimentício de peixes7), em que o
mar, figurando como unidade temática, responde indiretamente, por acontecimentos-limite na
vida do sujeito discursivo.
Afigura-nos que, nesse conto, tantas espacialidades heterotópicas engendradas pela
memória, sempre alcançando uma função consoladora (compreendida como a recuperação
virtual do que é irrecuperável fisicamente), apontam para uma constituição heterotópica da
própria memória como acontecimento discursivo. Adotaremos esse pressuposto para, a partir
dele, depreender do trecho seguinte o ápice do processo de descrédito da(s) memória(s) de
nosso narrador.
Na sequência final do conto, ao notar-se interpelado gestualmente por Ofélia, leremos
de nosso sujeito discursivo:
vou reiniciar a mesma história do mar, interrompida instantes atrás, porém
me detenho diante do seu olhar desaprovador. Sei que ela espera por uma
das minhas habituais fantasias e me revolto com a sua incompreensão.
— Não, Ofélia. Você podia ser mais tolerante com os meus inofensivos
devaneios. Neste lugarejo, espremido entre montanhas, sem divertimentos,
detestando caçadas e tendo herdado a vocação de meu bisavô marinheiro…
Sinto que não fui convincente e insisto com mais vigor:
— Ele existiu, juro.
Vendo que ela deixou de prestar atenção no que estou falando, desisto:
— Perdoe-me, Ofélia, não sei porque insisto em proceder desta maneira.
Mas gostaria tanto se aquele meu bisavô marinheiro tivesse existido.
(RUBIÃO, 2010, p. 42-43)
7 Por que não nos lembrarmos do ditado popular que diz: “O peixe morre pela boca”?
ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, v. 13, n. 2, ago-dez. 2017
81
Neste ponto, podemos mencionar uma dupla função paradoxal da utopia. Conforme
Jacques Rancière (2015, p. 61), ela
é o não-lugar, o ponto extremo de uma reconfiguração polêmica do sensível,
que rompe com as categorias da evidência. Mas também é a configuração de
um bom lugar, de uma partilha não polêmica do universo sensível, onde o
que se faz, se vê e se diz se ajustam perfeitamente.
A memória, desta maneira, como em nossa epígrafe, nos possibilitaria viver no frágil
tempo presente, justamente produzindo-o, mas, para tal, negando que ele se fundamente – ao
menos como discurso – em si próprio. Daí a potência utópica da memória agir sobre o real, de
modo análogo ao que Rancière (2015, p. 59) atribui aos enunciados literários: a memória
define “modelos de palavra ou de ação, mas também regimes de intensidade visível”; ela traça
“mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos do ser, modos
do fazer e modos do dizer”; ela define “variações das intensidades sensíveis, das percepções e
capacidades dos corpos”. É assim que, como os discursos literários, nossas memórias,
apropriando-se de nossos corpos
cavam distâncias, abrem derivações, modificam as maneiras, as velocidades
e os trajetos segundo os quais [nossos corpos] aderem a uma condição,
reagem a situações, reconhecem suas imagens. Reconfiguram o mapa do
sensível confundindo a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos
ciclos naturais da produção, reprodução e submissão. (RANCIÈRE, 2015, p.
59)
REFERÊNCIAS
ACHARD, Pierre. Memória e produção discursiva do sentido. In: ______ et al. Papel da Memória.
Campinas: Pontes, 1999. p. 11-21.
BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França.
17.reimp. São Paulo: Editora Cultrix, 2015.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2
de dezembro de 1970. 24.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. (Leituras filosóficas)
______. O corpo utópico; As heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
______. O que é um Autor? In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2.ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006a. p. 264-298. (Ditos e escritos; III)
______. Outros espaços. In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2.ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006b. p. 411-22. (Ditos e escritos; III)
GAMA-KHALIL, Marisa Martins. As práticas de subjetivação nos espaços d’O Conto da Ilha
Desconhecida. In: MILANEZ, Nilton; SANTOS, Janaina de Jesus (orgs.). Análise do discurso:
sujeito, lugares e olhares. São Carlos: Claraluz, 2009. p. 63-74.
NOSTALGIA DE LA LUZ. Direção: Patricio Guzmán. Produção: Renata Sachse. França;
Alemanha; Chile: Atacama Productions; Blinker Filmproduktion y WDR; Cronomedia, 2010.
1 DVD. Cor. (90min)
PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da Memória. Campinas:
Pontes, 1999. p. 49-57.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2.ed. 3.reimp. São Paulo: EXO
experimental org.; Editora 34, 2015.
RUBIÃO, Murilo. Ofélia, meu cachimbo e o mar. In: ______. Obra completa. 8.reimp. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 39-43.