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AUGUSTO DE FRANCO

Vida humana e convivência social nos novos


mundos altamente conectados do terceiro milênio
2
3
Augusto de Franco (2011)

Edição preliminar para fins promocionais.

Sem revisão.

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Coda

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Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui (*).

1
Fluzz é o fluxo que não pode ser aprisionado por qualquer mainframe.
Porque fluzz é do metabolismo da rede. Ah!, sim, redes são fluições.

Fluzz evoca o curso constante que não se expressa e que não pode
ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado de fora” do abismo:
onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não há espaço nem
tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É de lá que
aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos.

2
Muitos mundos, isso mesmo. Não existe um mundo que se possa
dizer o mundo, a não ser por efeito de hierarquização.

Pensar e falar do mundo é tentar impingir um só mundo. Pois os


mundos são muitos. Um só mundo é uma invenção do broadcasting.
Broadcasting – um para muitos – é, obviamente, centralização, quer
dizer, hierarquia. Tirem as TVs e as rádios, os jornais e revistas, as
agências de notícias, talvez o cinema e não sobrará mais um só
mundo. Sem o broadcasting já teremos múltiplos mundos: cada qual

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configurado pelas nossas conexões. Com a internet esses mundos se
multiplicam velozmente, mas não por difusão e sim por interconexão.
Desse ponto de vista, interconnected networks (internet) é, na
verdade, interconnected worlds. E fluzz é o vento que varre esses
inumeráveis interworlds.

No mundo hierárquico, não há interface para fluzz. Mas quando fluzz


for do regime dos múltiplos mundos interconectados, esses mundos
serão os novos Highly Connected Worlds do terceiro milênio.

3
Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio, vida
humana e convivência social se aproximarão a ponto de revelar os
“tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente
humanos. Todos compreenderemos a nossa natureza de “gholas
sociais”.

Os tanques onde somos formados como pessoas são clusters,


“regiões” da rede social a que estamos mais imediatamente
conectados.

Um tipo especial de ghola: não um clone de um indivíduo, mas um


“clone” de uma configuração de pessoas. Toda pessoa, como dizia
Novalis (1798), é uma pequena sociedade; quer dizer, pessoa já é
rede! Pessoa é um ente cultural que replica uma configuração. É um
ghola social.

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Não há nada a fazer. Deixem fluzz soprar para ver o que acontece.
(Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de
dizer, pois fluzz já é o sopro).

Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz
soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para

7
que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que
nação, para que Estado?

Oh! É claro que todas essas instituições perdurarão: como


remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se
prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões,
escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será,
afinal, o que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores
que “rodam” na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo
dos fluxos.

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Enquanto isso, porém, crescem subterraneamente as hifas, por toda
parte. Os alicerces das organizações hierárquicas vão sendo corroídos
e seu muros, antes paredes opacas para se proteger do outro, vão
agora virando “membranas sociais”, permeáveis à interação e
vulneráveis ao outro-imprevisível. Pessoas conectadas com pessoas
vão tecendo articulações que estilhaçam o mundo-único-imposto em
miríades de pedaços, não pelo combate, mas pela formação de redes.
E outras identidades – mais-fluzz – vão surgindo nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio.

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Para o mundo único broadcast que remanesce o terceiro milênio
ainda não começou. Grandes “verdades” do final século 20 não foram
ainda revistas, conquanto não faltem evidências de seu
envelhecimento. Três exemplos eloqüentes:

 O mundo virou uma aldeia global? Não. Está virando miríades


de aldeias globais.

 Pensar globalmente e agir localmente? Não. Pensar e agir


glocalmente!

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 Sustentabilidade é resguardar recursos para as futuras
gerações? Não. É aprender a fluir com o curso...

7
Os que continuam aprisionados no mundo único dos séculos passados
ainda não lograram perceber o que está em gestação neste período.
A revelia dos cegos “líderes mundiais” e além da compreensão dos
analistas de governos e corporações, grandes movimentos
subterrâneos estão em curso neste momento. De modo molecular,
distribuído e conectado de sorte a formar um feixe intenso de fluxos
– fluzz –, estão se articulando e se expressando glocalmente
experiências inovadoras que tendem a alterar na raiz a estrutura e a
dinâmica das sociosferas. Eis alguns exemplos fulcrais do que está
emergindo:

 Não-Escolas: comunidades de aprendizagem (homescooling e,


sobretudo, communityschooling, cada vez mais na linha de
unschooling) em rede, sem currículo e sem professor e aluno.

 Não-Igrejas: formas pós-religiosas de espiritualidade, livres


das ordenações das burocracias sacerdotais.

 Não-Partidos: redes de interação política (pública) exercitando


a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos
cidadãos.

 Não-Estados-nações: cidades inovadoras – como redes de


comunidades – que assumem a governança do seu próprio
desenvolvimento em rota de autonomia crescente em relação
aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios.

 Não-Empresas-hierárquicas: redes de stakeholders –


demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e
não pode paredes opacas – como novas comunidades de
negócios do mundo que já se anuncia.

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8
Nada disso está sendo percebido pelos mantenedores do velho
mundo que são, invariavelmente, “net-avoids”, ou seja, aqueles que
desconfiam das redes quando não deveriam fazê-lo, posto que
justamente em uma época de transição para uma sociedade em rede.
E estes são, quase sempre, hierarcas. Não conseguem ver o que está
ocorrendo porque, do lugar onde operam, objetivamente, contra os
novos mundos que estão emergindo, a mudança não pode mesmo
aparecer. Alguns exemplos dessas categorias – que freqüentemente
se misturam e incidem em alguma combinação particular sobre um
mesmo indivíduo “vitorioso” (segundo os critérios do milênio
pretérito) – merecem ser destacados: os ensinadores ou burocratas
sacerdotais do conhecimento, os codificadores de doutrinas, os
aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os
fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos.

9
A resiliência dessas velhas funções, agenciadoras de um tipo de
mundo (erigido para exterminar outros mundos) que teima em não
desaparecer, não está conseguindo impedir o surgimento de novos
papéis sociais que antecipam uma nova época.

Caminhando fora dos trilhos estabelecidos, emergem a cada dia


novos atores do mundo glocalizado. Sim, eles já estão entre nós. Não
são conhecidos porquanto não são pessoas que ficaram famosas
segundo o que até então era considerado indicador de sucesso: pelo
seu poder, pela sua riqueza ou pelo seu conhecimento atestado por
títulos. Quem são? Ora são os múltiplos anônimos conectados,
habitantes de uma diversidade incrível de Highly Connected Worlds,
que não foram produzidos por broadcasting. São como aquele
personagem do romance Distraction de Bruce Sterling (1998) que,
para se identificar, afirmou: “Não temos raízes. Somos pessoas da
rede. Temos antenas”.

Tais papéis inéditos que estão sendo produzidos pela (ou em) rede
são também múltiplos. Por enquanto só conseguimos divisar alguns.

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Três exemplos marcantes são os hubs, os inovadores e os
netweavers.

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A despeito do fato, incontestável, de a dinâmica global da interação
entre as velhas instâncias organizativas ter mudado, anunciando a
emersão de uma verdadeira sociedade-rede, um novo padrão de
organização distribuído não logrou se materializar no interior e no
entorno das organizações empresariais, governamentais e sociais,
que continuaram ainda se estruturando de modo centralizado ou
hierárquico. Ou seja, o muro que caiu em 1989, caiu para o mundo
construído pelo broadcasting como um único mundo, sob o efeito das
poderosas forças da globalização (sobretudo da globalização das
telecomunicações e da globalização dos mercados), mas não chegou
a se localizar nas organizações realmente existentes em todos os
setores. A mudança continuou acontecendo, mas os novos (e
múltiplos) Highly Connected Worlds como que "cresceram
escondidos" nesta época de mudança e não apareceram ainda à luz
do dia, de sorte a consumar o que poderíamos chamar de uma
mudança de época. Esses "mundos-bebês" estão agora em gestação.

Os fenômenos acompanhantes desse glocal swarming serão


surpreendentes. Alguns já começaram a se manifestar: uma
tendência acentuada à desobediência dentro das organizações
hierárquicas, a incapacidade dessas organizações de inovar no ritmo
exigido pelas mudanças contemporâneas (ou melhor, de se estruturar
para inovar permanentemente) e - o que é mais drástico - as perdas
irreversíveis de oportunidades e condições de sustentabilidade para
as organizações fechadas que não forem capazes iniciar a transição
do seu padrão piramidal para um padrão de rede.

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Bem-vindos aos novos mundos-fluzz.

11
Esqueçam suas velhas idéias e práticas de comando e controle.
Abram mão de suas noções-século-20 de participação. E se livrem da
compulsão de gerir o conhecimento ou organizar conteúdos para os
outros (ou juntamente com eles). Preparem-se para entrar no
multiverso das interações.

Nos mundos-fluzz não é o conteúdo do que flui pelas conexões da


rede a variável fundamental para explicar o que acontece(rá) e sim o
modo-de-interagir e suas características, como a freqüência, as
reverberações, os loopings, as configurações de fluxos que se
constelam a cada instante, os espalhamentos e aglomeramentos
(clustering), os enxameamentos (swarming) que irrompem, as curvas
de distribuição das variações aleatórias introduzidas pela imitação
(cloning) que produzem ordem emergente (a partir da interação), as
contrações na extensão característica de caminho (crunch) dentro de
cada cluster...

Em vez de tentarem organizar a auto-organização, construam


interfaces para conversar com a rede-mãe, aquela que existe
independentemente de nossos esforços conectivos voluntários e que,
para usar uma imagem do Tao, é como o espírito do vale, suave e
multífluo, [como] a mulher misteriosa que age sem esforço ao se
deixar varrer pelo sopro, ao ser permeável ao fluxo que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe: fluzz.

Oh!, sim, redes são fluições. Este livro é sobre redes.

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Sumário

Coda (5)

Tudo é fluzz | 0 (21)

No “lado de dentro” do abismo | 1 (25)

No multiverso das interações | A fonte que só existe enquanto fluzz só pode


ser conhecida enquanto interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela
(28)

Mundos que se descobrem em rede | O social não é o conjunto das pessoas,


mas o que está entre elas (30)

É o social, estúpido! | As redes sociais não surgiram com as novas


tecnologias de informação e comunicação (35)

O nome está dizendo: redes sociais | Redes sociais são pessoas interagindo,
não ferramentas (37)

É comunicação, não informação | Redes sociais não são redes de


informação (39)

É interação, não participação | Redes sociais são ambientes de interação,


não de participação (43)

Padrões, não conjuntos | Os fenômenos que ocorrem em uma rede não


dependem das características intrínsecas dos seus nodos (48)

Conhecimento é relação social | O conhecimento presente em uma rede não


é um objeto, um conteúdo que possa ser arquivado e gerenciado top down
(50)

A chefia é contra a liderança | Hierarquia não é o mesmo que liderança (52)

Nenhuma hierarquia é natural | A escassez que gera hierarquia é aquela


introduzida artificialmente pelo modo de regulação (54)

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Poder é uma medida de não-rede | Centralização (hierarquização) não é o
mesmo que clusterização (55)

Autoregulação significa sem-administração | Em redes distribuídas não se


pode diferenciar papéis ex ante à interação (57)

Pessoas, não indivíduos | Não podem existir pessoas (seres humanos) sem
redes sociais (59)

As redes sociais já são a mudança | As redes sociais distribuídas não são


instrumentos para realizar a mudança: elas já são a mudança (60)

Aranhas não podem gerar estrelas-do-mar | É inútil erigir uma hierarquia


para realizar a transição de uma organização hierárquica para uma
organização em rede (61)

No “lado de fora” do abismo | Ficamos do “lado de fora” do abismo quando


nos protegemos da interação (63)

Inumeráveis interworlds| 2 (65)

Highly Connected Worlds | Seu mundo-fluzz é sua timeline (68)

Interworlds | A nova internet – interconnected networks – são os


incontáveis interconnected worlds (71)

Pessoa já é rede | 3 (75)

Gholas sociais | Um ghola não é um borg (79)

Pessoas são portas | “Toda pessoa é uma nova porta que se abre para
outros mundos” (81)

Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos | 4 (83)

Deformando a rede-mãe | Na ausência do poder as redes tendem a


permanecer distribuídas (86)

14
Perturbações no campo social | A nuvem que envolve-e-se-move-com uma
pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no campo
social (91)

Destruidores de mundos | Persistimos erigindo organizações que não são


interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe (94)

Hifas por toda parte | 5 (97)

A perfuração dos muros | Quando a porosidade aumentar, os muros vão


começar a ruir (100)

A construção de “membranas sociais” | Deixar a interação pervadir um


sistema não significa propriamente fazer, mas – ao contrário – não-fazer:
não-proibir, não-selecionar caminhos... (102)

O terceiro milênio já começou? | 6 (105)

Miríades de aldeias globais | Não é que haja uma rede cobrindo o mundo. É
que mundos são redes (109)

Pensar e agir glocalmente | Não pode haver um pensar global: seriam


pensares, e eles seriam tantos quantos os locais onde foram pensados
(112)

Aprender a fluir com o curso | A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la


(como quem estoca recursos) para prorrogar a sua durabilidade, é uma
idéia contra-fluzz (115)

Alterando a estrutura das sociosferas | 7 (119)

Aprendizagem, não ensino | As escolas foram urdidas para nos proteger da


experiência da livre aprendizagem (122)

Autodidatismo, não heterodidatismo | Eu busco o conhecimento que me


interessa do meu próprio jeito (124)

Alterdidatismo, não heterodidatismo | “Eu guardo o meu conhecimento nos


meus amigos” (128)

15
Não-escolas: a escola é a rede | Nós produzimos nosso conhecimento
comunitariamente (em rede) (132)

Matar a escola = matar o Buda | Quando o mestre está preparado, o


discípulo desaparece (134)

Espiritualidade, não religião | Formas pós-religiosas de espiritualidade,


livres das ordenações das burocracias sacerdotais (140)

Quem disse que os deuses não existem? | Os deuses das religiões foram
problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as religiões
que os construíram (143)

Ecclésias, não ordens sacerdotais | Seus irmãos e irmãs estão espalhados


em múltiplos mundos. Para achá-los você tem que remover o firewall e
expor-se à interação (149)

Não há uma ordem pré-existente | A ordem está sempre sendo criada no


presente da interação (151)

Não-igrejas: porque não existe mais caminho | O objetivo é ser pessoa,


nada além disso (155)

Máquinas para privatizar a política | Os partidos são artifícios para nos


proteger da experiência de política pública (157)

Autocratizando a democracia | É um absurdo pactuar que o acesso ao


público só se dê a partir da guerra entre organizações privadas (160)

Não-partidos | Redes de interação política (pública) exercitando a


democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos (163)

Estado | Um delírio de raiz belicista (166)

A nação como comunidade imaginária | A nação não é uma comunidade


concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo inventada e
patrocinada pelo Estado e seus aparatos (168)

A falência da forma Estado-nação | A maior parte dos Estados-nações não


deu certo (174)

O reflorescimento das cidades | Cidades transnacionais, cidades-pólo


tecnológicas, redes de cidades e cidades-redes (177)

16
As cidades na glocalização | Estados são artifícios para proteger as pessoas
da experiência do localismo cosmopolita (179)

Comunitarização | As novas Atenas serão milhões de comunidades (183)

Cidades inovadoras, não-Estados-nações | Cidades inovadoras – como


redes de comunidades – em rota de autonomia crescente em relação aos
governos centrais que tinham-nas por seus domínios (186)

Negócios em rede | Administrar pessoas como forma de conduzí-las a gerar


valor para se apropriar de um sobrevalor, é uma função social própria de
uma época de baixa conectividade social (189)

Apaches, não aztecas | A empresa hierárquica foi criada para proteger as


pessoas da experiência de empreender (192)

Não-empresas-hierárquicas | Redes de stakeholders – demarcadas do meio


por membranas (permeáveis ao fluxo) e não por paredes opacas – são as
novas comunidades de negócios dos mundos que já se anunciam (196)

O fim do trabalho | Boa parte do que chamamos de trabalho se exercerá


como divertimento, jogos, creative games (199)

Reprogramando sociosferas | Basta que você se dedique a “fazer” redes


para inocular um virus nos programas verticalizadores (202)

Os mantenedores do velho mundo | 8 (205)

Ensinadores | Os primeiros ensinadores – os sacerdotes – ensinavam para


reproduzir (ou multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio
estamento (208)

Mestres e gurus | Todos são mestres uns dos outros enquanto se polinizam
mutuamente (213)

Codificadores de doutrinas | Eles produzem narrativas para que você veja o


mundo a partir da sua ótica, quer dizer, para que você não veja os múltiplos
mundos existentes (215)

Aprisionadores de corpos | O fundamental para os aprisionadores de corpos


é manter seus trabalhadores fora do caos criativo (217)

17
Construtores de pirâmides | O indivíduo não é o átomo social; para ser
social, é preciso ser molécula (219)

Fabricantes de guerras | O único inimigo que existe é o fazedor de inimigos


(222)

Condutores de rebanhos | O modo intransitivo de fluição que gera o


fenômeno da popularidade do líder de massas é uma sociopatia (223)

Eles já estão entre nós | 9 (227)

Mentiras pregadas em nome da ciência | Os sobreviventes não são


selecionados por seu sucesso evolutivo (231)

Os indicadores de sucesso | Destacar-se dos demais, triunfar, vencer na


vida, subir ao pódio onde cabem apenas alguns poucos (236)

Hubs | Qualquer iniciativa na rede social que não conte com seus principais
hubs encontrará mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe (239)

Inovadores | Em mundos altamente conectados um inovador também tende


a cumprir um papel social mais relevante do que o dos colecionadores de
diplomas (241)

Netweavers | Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse


assim, não poderiam ser seres políticos (243)

Netweaver howto | Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do


seu H4ck3r Howto. Entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um
N3tw34v3r Howto (245)

Eles já estão entre nós | Nos Highly Connected Worlds o que vale são suas
antenas (253)

Mundos-bebês em gestação | 10 (259)

Não global, glocal swarming | Um mundo mais-fluzz quer dizer muitos


mundos-fluzz (263)

Desobedeça | Uma inspiração para o netweaving (265)

18
Inove permanentemente | Colocar-se em processo de inovação permanente
é viver em processo de Ítaca (ou em processo de fluzz) (274)

Saia já do seu quadrado | “Cada um no seu quadrado, cada um no seu


quadrado (4x) / Eu disse: Ado a-ado cada um no seu quadrado/ Ado a-ado
cada um no seu quadrado” (276)

Inicie agora a transição | Nos já descobrimos a “fórmula”: é a rede


distribuída (284)

Afinal, redes são apenas (múltiplos) caminhos | “Ah, sim, isso é


evidentemente óbvio (289)”

Bem-vindos aos novos mundos-fluzz | 11 (291)

Quebrando as cadeias | Mundos sociais criam-se a si mesmos à medida que


se desenvolvem = fluzz (296)

Clustering | Deixando as forças do aglomeramento atuarem (298)

Swarming | Deixando o enxameamento agir (300)

Cloning | Deixando a imitação exercer seu papel (302)

Crunching | Deixando os mundos se contrairem (305)

Conversando com a rede-mãe | Você só precisa construir interfaces (307)

Pulando no abismo | Não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos


quando colhidos por fluzz (309)

Notas e referências (313)

Bibliografia (347)

19
20
0
Tudo é fluzz

Tudo flui como um rio.


Crátilo (c. 500 a. E. C., em um insight heraclítico, talvez)

Twiver.
200 milhões de timelines (em 2010) fluindo no twitter-river.
(A partir de 21/03/2006)

Fluzz é o Buzz que o Google não fez; e nem poderia fazer.


De uma conversa do autor com Marcelo Estraviz (2010) (1)

21
Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui.

Tudo que flui é fluzz. Pronto. Qualquer outra definição seria diminutiva.
Qualquer outra explicação aprisionaria a imaginação criadora. Para ler este
livro é necessário soltar a imaginação que cria múltiplos sentidos. Para
escrever também (sim, esta é uma escritura de imaginação, não de
análise). Foi necessário até inventar palavra que não existe. Como disse o
poeta Manoel de Barros (pela boca do Bugre Felisdônio), “as coisas que não
existem são mais bonitas” (2).

Sim, fluzz é uma nova palavra substantiva. A substância mesmo,


entretanto, muda a cada momento. Como? Não sabemos. Então este é uma
espécie de “Livro das Ignorãças”, que vai avançando em círculos, ou em
espiral, como nós, os humanos, quando caminhamos às cegas (3). Por isso,
cada capítulo imita os anteriores e clona (no sentido grego, original, do
termo) o que já veio: do galho nasce um broto, e outro, e outro – como
filosofemas, não argumentos formais. Entrementes, porém, a imaginação
salta vôo: Manoel de Barros (novamente ele, mas agora pela sua própria
boca) diria que “todas as coisas... [aqui] já estão comprometidas com aves”
(4).

O impagável Ben Jonson havia advertido que “não se cunha uma nova
palavra sem correr um grande risco, porque, se for bem aceita, os louvores
serão moderados; se for rejeitada, o desprezo é certo”. Isso foi lembrado
por Arthur Koestler (1967), quando, no seu (extraordinário) O fantasma da
máquina, criou a palavra hólon (5). Fluzz tem algo de hólon, se deixarmos
de olhar a máquina, a estrutura fixa, e começarmos a acompanhar o
fantasma que desliza pelos seus desvãos (the ghost-in). Por isso, como ele,
vamos correr o risco. Vamos seguir o risco. Vamos voar com a ave. Vamos
fluir com o curso.

22
Mas fluzz também é um novo adjetivo e assim será aplicado. Não se pode
dizer que uma coisa seja não-fluzz. Tudo é fluzz, em alguma medida. Mais-
fluzz, todavia, é o que está sujeito à mais-interatividade.

Mais interatividade, porém, não significa necessariamente interagir mais –


com mais freqüência, com mais pessoas – e sim estar mais aberto à
interação. O que tem mais interatividade? O que está mais vulnerável ao
outro-imprevisível.

Mais interatividade é, por isso, o que causa menos anisotropias no espaço-


tempo dos fluxos e, em conseqüência, menos deformações no campo social.
Ou seja, redes. Redes mais distribuídas do que centralizadas.

Atenção. Vai começar. Tudo que fluzz flui. Fluzz agora é verbo.

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24
1
No “lado de dentro” do abismo

O Tao flui sem cessar... abismo!


Sun-Tzu em Tao-Te King (IV)

A fonte só pode ser pensada enquanto flui.


(Die Quelle kann nur gedacht werden, insofern sie fließt)

Johann Wolfgang von Goethe em Poesia e Verdade (1811)

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Fluzz é o fluxo, que não pode ser aprisionado por qualquer
mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da rede. Ah!, sim, redes
são fluições.

Fluzz evoca o curso constante que não se expressa e que não pode
ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado de fora” do abismo:
onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não há espaço nem
tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É de lá que
aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos.

O erudito Gershom Scholem (que ficou mais conhecido nos meios


acadêmicos – tão laicos quanto pouco ilustrados – em virtude de sua bela
amizade com Walter Benjamin), no seu monumental estudo sobre o
misticismo judaico, Major Trends in Jewish Mysticism (1941) (1),
comentando a formidável abstração que os cabalistas do século 13
denominaram Ein-Sof (o nada primordial do qual emana a “seiva” que
percorre a “árvore” numérica que constitui a estrutura do universo, criando,
formando e produzindo a existência), lança mão de uma metáfora
luminosa: ele “é – diz – o abismo que se torna visível nas fendas da
existência”. E relata em seguida que “alguns cabalistas que desenvolveram
esta idéia, por exemplo, Rabi Iossef ben-Shalom de Barcelona (1300),
sustentam que em toda transformação da realidade, em toda mudança da
forma, ou toda vez que o status de uma coisa é alterado, o abismo do nada
é cruzado e por um fugaz momento místico torna-se visível. Nada pode
mudar sem entrar em contato com esta região do Ser absoluto puro que os
místicos chamam de Nada”.

Realmente impressionante. Sem pretender elaborar alguma teosofia das


redes, podemos fazer agora um paralelo meramente literário e apenas
evocativo de uma imagem para efeitos heurísticos. Esse mundo oculto dos
cabalistas provençais, catalães e castelhanos e, depois, safeditas (o mundo
– ou árvore – das Sefirot) é como se fosse o mundo das fluições (o espaço-

26
tempo dos fluxos) onde as redes sociais existem, o multiverso das conexões
também ocultas que produzem o que chamamos de ‘social’.

Há fendas. Há um abismo que não se deixa ver a menos no instante fugaz


em que uma fenda se abre. E nada pode mudar na estrutura e na dinâmica
do mundo (manifesto, vamos dizer assim – ou produzido) sem que haja
uma mudança correspondente nas configurações daquele mundo oculto, ou
seja, nos fluxos que o caracterizam ou no ritmo da fluição. Seria algo mais
ou menos assim, para lançar mão de uma metáfora menos esotérica – mas
não tanto – usada pelos físicos contemporâneos, como a vibração de uma
corda ou de uma membrana.

Mas, não! Ainda não é bem isso. Há fendas, sim, mas por trás das fendas
não há uma ordem implícita, pré-existente em alguma esfera oculta: a
ordem está sempre sendo criada no presente da interação!

Que fendas seriam essas? Onde estaria esse abismo?

Abismo. Fenda. Quando a fenda se abre, “vemos” fluzz. Mas o que vemos
quando “vemos” fluzz?

Espiar de fora para dentro do abismo nada-revela (e esse, por incrível que
não-pareça, é um dos sentidos daquele nada primordial: porque no princípio
era a rede). Nada se pode ver a não ser que se mergulhe na fluição, como
fez o sufi Mojud, “O homem cuja história era inexplicável” (2); quando
perguntado de que maneira havia alcançado tanta sabedoria, ele não-
explicou dizendo assim: “Eu me atirei num rio... [e] simplesmente deixei”.

Goethe (1821) terminou com o seguinte verso o poema Eins und Alles,
“tudo deve cair no nada, se quiser persistir em ser” (3). Tem que pular
dentro – se abismar – para ver.

27
No multiverso das interações

A fonte que só existe enquanto fluzz só pode ser conhecida enquanto


interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela

No princípio era a rede. Mas o mundo das redes não é um mundo: é um


multiverso de interações. Multiverso das interações significa, como disse
Heráclito, que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”; ou, talvez
corrigindo antecipatoriamente seu “discípulo” Crátilo, que “descemos e não
descemos nos mesmos rios”.

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interações que
se constelam e se desfazem, intermitentemente.

Na verdade, quem se move é essa rede que nos envolve, como aquele “rio
que deflui silencioso dentro da noite” no verso de Manuel Bandeira (1948)
(4). Como aquele rio que corre no “lado de dentro” do abismo.

O ritmo da fluição está implicado no modo de interagir. Diferentemente do


que se pensava, não é o conteúdo do que flui a variável fundamental para
explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modo-de-interagir e suas
características.

Quanto mais distribuída for a topologia de uma rede, mais-fluzz ela será.
Quer dizer, mais interatividade haverá. E mais evidentes serão essas
características (invisíveis do “lado de fora” do abismo) do seu modo-de-
interagir.

Conhecer as redes é interpretar modos-de-interagir (reconhecendo


padrões). O que só se pode conseguir interagindo (estabelecendo
conexões). Eis o principal fundamento de uma teoria do conhecimento fluzz
– que é também uma teoria conectivista da aprendizagem e uma teoria da
ação comunicativa por acoplamento estrutural e coordenação de
coordenações (Maturana e Varela). Com efeito, Francisco Varela (1984)
escreveu que “não há informação transmitida na comunicação. A
comunicação ocorre toda vez em que há coordenação comportamental em
um domínio de acoplamento estrutural... cada pessoa diz o que diz e ouve o
que ouve segundo sua própria determinação estrutural... O fenômeno da
comunicação não depende do que se fornece, e sim do que acontece com o

28
receptor” (5). Na verdade, depende do que acontece com os interagentes. A
comunicação vareliana é uma interação: se A se comunica com B, significa
que B muda com A, que muda com B, que muda novamente com A, que
muda outra vez com B... e assim por diante, recorrentemente, como em
uma coreografia. Mas tudo isso “multiplicado” pelo número de nodos em
interação, pois que se trata sempre de um multi-acoplamento, não ocorre
aos pares, mas entre todos os que compõem cada um dos muitos mundos
que se configuram.

Goethe – em um insight heraclítico – escreveu que “a fonte só pode ser


pensada enquanto flui” (6). Alguém é nodo de uma rede nisi quatenus
interage. A fonte que só existe enquanto flui (fluzz) só pode ser conhecida
enquanto interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela.

Bem, isso muda tudo.

29
Mundos que se descobrem em rede

O social não é o conjunto das pessoas, mas o que está entre elas

A grande novidade do tempo em que vivemos não é o surgimento de uma


sociedade em rede (que, de resto, sempre existiu desde que existem seres
humanos em interação), mas a generalização do entendimento de que
sociedade = rede social.

Na verdade, não existe nada como ‘a’ sociedade: as sociedades são sempre
configurações concretas e particulares que, olhadas de certo ponto de vista,
revelam seres humanos em interação; quer dizer, a compreensão do social
surge quando se constela a percepção de que não existem unidades
humanas separadas. De que o social não é o conjunto das pessoas, mas o
que está entre elas. E de que cada mundo social é também (um modo de
ser) humano. A medida que esses mundos sociais vão se descobrindo em
rede, como se diz, “as fichas vão caindo”. Vários aspectos surpreendentes
dessa descoberta já podem ser registrados. O primeiro deles é que redes
mais distribuídas do que centralizas são possíveis, sim, no “mundo real”.

As redes sociais viraram moda nos últimos anos. Sites de relacionamento e


serviços de emissão e troca de mensagens na Internet como, dentre
centenas de outros, MySpace, Facebook, Orkut e Twitter, que se
autodenominaram (ou foram denominados) – impropriamente – ‘redes
sociais’, proliferaram na primeira década do século 21, registrando milhões
de pessoas.

É fácil. Em geral não demora nem cinco minutos. Então muitos desses
milhões de usuários de tais serviços acreditaram na conversa e acharam
que, pelo fato de terem feito login e senha em um ou em vários desses
sites, estavam “participando de redes sociais”.

Fosse lá alguém dizer-lhes que redes sociais não são redes digitais ou
virtuais, mas, como o nome está dizendo, são sociais mesmo: um novo
padrão de organização, mais distribuído do que centralizado.

As pessoas não entendiam as redes, antes de qualquer coisa porque não


sabiam a diferença entre descentralizado e distribuído. Não percebiam que
descentralizado não é sem centro e sim com muitos centros. Sem centro é
distribuído.

30
Fig. 1 | Diagramas de Paul Baran

A figura acima mostra os famosos diagramas de Paul Baran (1964) (7).


Note-se que os nodos estão no mesmo lugar, o que muda nos três
desenhos é a topologia, a configuração dos fluxos.

A maioria das pessoas que se registraram nas tais “redes sociais”,


entretanto, nunca tinha ouvido falar disso. De milhões de pessoas
registradas em sites de relacionamento e plataformas interativas, quantas,
na hora de elaborar um texto, vídeo ou programa, organizar um evento,
implementar ou executar um projeto, produzir algum bem, vender algum
produto ou prestar um serviço, atuavam em rede? E quantas abriram mão
de dirigir, participar ou trabalhar em alguma organização hierárquica (quer
dizer, mais centralizada do que distribuída)?

Mesmo os que já tinham ouvido falar das redes sociais como novo padrão
de organização distribuído – mesmo estes – tentavam escapar dessa
evidência aproveitando a profusão dos sites de relacionamento e
plataformas interativas na Internet. A maioria fazia um blog ou se
registrava em alguma "rede social" e pronto: de vez em quando ia lá,
postava um texto, um vídeo ou um comentário e dizia que "pertencia" a
uma (ou várias) rede(s). No restante do tempo, porém, essas pessoas
continuavam estudando, trabalhando, produzindo ou prestando serviços em
organizações hierárquicas (fosse uma burocracia escolar ou acadêmica, uma

31
empresa, uma organização não-governamental ou uma instituição estatal).
Havia exceções, é claro. Mas, na maior parte dos casos, era assim.

Inclusive acadêmicos, militantes sociais e consultores que falavam tanto em


redes sociais, por algum motivo tinham imensa dificuldade de articulá-las.
Provavelmente porque não conseguiam experimentá-las. Bastava ver como
essas pessoas se relacionavam com as outras pessoas que lhe eram
próximas: será que elas participavam de redes nos seus locais de moradia,
estudo, trabalho, lazer ou em torno de seus temas de interesse?

Em suma, as pessoas tendiam (e, em grande parte ainda tendem) a se


organizar – reproduzindo o que é de praxe - segundo um padrão de
organização centralizado ou multicentralizado. Para manter centralizações e
filtros que caracterizam uma organização hierárquica, os mais inteligentes
em geral argumentavam que “tem que haver uma transição”, ou que “uma
organização em rede distribuída (em um mundo como o nosso) é uma
utopia”. E argumentava assim inclusive boa parte dos que investigavam as
redes sociais e publicavam sobre o assunto.

Com o surgimento de novos mundos-fluzz, as coisas, entretanto, começam


a se passar de outro jeito. A idéia de que redes sociais (mais distribuídas do
que centralizadas) não são possíveis no “mundo real” (seja lá o que se
entende por isso) como forma de (auto) organização da ação coletiva, foi
sendo abandonada. Essa idéia, como se sabe, está baseada no velho
preconceito de que nada que agregue uma pluralidade de seres humanos
poderia funcionar sem administração (baseada em comando-e-controle),
sem organização (a partir de modelos de ordem aplicados top down), sem
liderança (ou melhor, monoliderança).

Foi ficando cada vez mais claro que, em qualquer lugar, pode-se “fazer
redes”. Sim, em qualquer lugar: na vizinhança, na empresa, na ONG,
entidade ou organização da sociedade civil, em um órgão governamental et
coetera. Pouco importa se a estrutura dessas localidades ou organizações é
vertical, hierárquica, centralizada: as pessoas que estão lá não são e não há
como impedir que elas se conectem horizontalmente, de modo distribuído,
umas com as outras. E não importa se todas as pessoas não estiverem
dispostas a fazer isso. E não importa se a maioria das pessoas em cada
uma dessas territorialidades ou organizações for contra isso. A partir de três
pessoas já é possível começar uma rede distribuída. Fazendo isso,
articulando uma rede distribuída, cria-se uma “zona autônoma” (em relação
ao poder centralizado). Se for uma rede distribuída (a rigor, mais distribuída
do que centralizada), coisas surpreendentes começarão a acontecer (na
medida do grau de distribuição e de conectividade alcançados). Uma nova

32
fenomenologia certamente acompanhará a nova topologia. Pode-se apostar
que isso fará diferença. E que a diferença será notável.

Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio começa a


brotar a consciência de que fazer rede é fazer amigos. Amigos políticos, no
sentido original, grego, do termo ‘político’, que se refere à interação e à
inserção na comunidade política; i. e., à polis – que não era a cidade-Estado
e sim a koinonia política (como assinalou Hannah Arendt em “A condição
humana” (1958): “a polis não era Atenas, e sim os atenienses”) (8). Isso é
uma subversão completa das identidades organizacionais abstratas,
construídas top down para alocar uma pessoa em um degrau da escada.
Para que ela pise na cabeça de quem está no degrau de baixo e tente
ultrapassar quem está no degrau de cima, agarrando-se a ele e puxando-o
para baixo, como fazem os caranguejos em uma lata...

Essa é a grande descoberta da democracia como movimento de


desconstituição de autocracia, instaurada na experiência local dos gregos
para evitar a volta da tirania dos Psistrátidas (que, como qualquer poder
vertical, se baseava na inimizade política). Tratava-se de preservar a
liberdade. Mas como escreveu a mesma Arendt, em “A questão da guerra”
(1959): [para os gregos] “a liberdade... é um atributo do modo como os
seres humanos se organizam e nada mais” (9). Dizendo de outra maneira
(e pulando algumas passagens da argumentação): a falta de liberdade é
uma função direta dos superávits de ordem top down.

Antes era mais difícil reconhecer isso: todas as organizações verticais se


baseiam na inimizade política: quanto mais centralizadas, mais “se
alimentam” de inimizade e de seus bad feelings acompanhantes, como a
desconfiança. Ora, é isso que torna imperativa a necessidade de controle e,
por decorrência, a exigência de obediência.

Fazer amigos é uma subversão de todos os mecanismos de comando-e-


controle. Fazer amigos que se conectam em rede distribuída dentro de uma
organização hierárquica vai desabilitando ou corrompendo os scripts dos
programas verticalizadores que rodam nessa organização. Redes
distribuídas, mesmo com pequeno número de nodos, funcionam, assim,
dentro de uma organização hierárquica, como espécies de vírus; ou melhor,
de anti-virus (pois em relação à rede-mãe – aquela rede que existe
independentemente de nossos esforços conectivos voluntários, à rede que
existe desde que existam seres humanos que se relacionam entre si – são
os programas verticalizadores que devem ser encarados como vírus).

33
Trata-se de uma infecção antiga, resistente, resiliente, que permanece na
medida em que nós nos transformamos em vetores de contaminação por
meio de nossas formas de relacionamento. Cada piramidezinha que
construímos, nos espaços privados e públicos que habitamos, na nossa
família, escola, igreja, entidade, corporação, empresa, partido ou governo,
vai viabilizando a prorrogação da infestação do poder vertical. Pelo
contrário, cada rede que articulamos vai dificultando a propagação desse
vírus ou a replicação desse meme, por meio da criação de zonas
autônomas, mesmo que sejam temporárias (e são, como percebeu Hakim
Bey) (10), criando condições para que a confiança possa transitar (ou para
que o capital social possa fluir, se preferirmos usar essa metáfora), para
que a competição possa ser convertida em cooperação; enfim – em um
sentido ampliado do termo – para a manifestação da amizade (ou para
fazer “downloads” daquela emoção que Maturana (11) chamou... vejam só!,
de amor, mas a palavra parece ser forte demais – um verdadeiro escândalo
– e acaba chocando as pessoas que se imaginam preocupadas com coisas
“mais sérias”.

Mas não se trata de converter as almas por meio do proselitismo, do


discurso ético normativo, exalçando as vantagens da cooperação sobre a
competição, como imaginavam os adeptos das concepções 2.0. Trata-se de
adotar padrões de organização que viabilizem a conversão de competição
em cooperação. Parodiando Arendt, “a cooperação... é um atributo do modo
como os seres humanos se organizam e nada mais”. Se nos organizamos
segundo um padrão de rede distribuída, isso começa a ocorrer
“naturalmente”; quer dizer, é uma fenomenologia que se manifesta em
função da topologia (e não das boas intenções dos sujeitos). Uma
organização hierárquica de seres animados pelas melhores intenções,
cheios de amor-prá-dar, não se constitui como um ambiente favorável à
cooperação. Em outras palavras, o capital social de uma organização
rigidamente centralizada será sempre próximo de zero, mesmo que tal
organização seja composta por clones de Francisco de Assis ou por réplicas
perfeitas de Mohandas Ghandi.

Essas descobertas foram conseqüências da formidável irrupção-fluzz que


começou a alterar radicalmente nossos flowscapes conceituais e
organizacionais. Mas tem mais.

34
É o social, estúpido!

As redes sociais não surgiram com as novas tecnologias de informação e


comunicação

Quando Marshall McLuhan afirmou, em uma palestra proferida em 1974,


que “é o ambiente que muda as pessoas, não a tecnologia” ainda não
haviam surgido constructs – como o de capital social como rede social –
capazes de justificar adequadamente tal afirmação (12). Como se sabe, a
idéia de que capital social nada mais é do que rede social, ainda que tenha
sido formulada em 1961, por Jane Jacobs, ficou praticamente desconhecida
por mais de duas décadas (13). Os esforços pioneiros de Coleman (1988)
(14) não resgataram essa descoberta surpreendente, segundo a qual a
influência do ambiente depende de padrões conformados pela interação (e a
própria natureza do que chamamos de ambiente nada mais é do que a de
um “campo”, em um sentido deslizado daquele em que a palavra é
empregada em física: como campo de forças).

Mas a hipótese de McLuhan revelou-se correta e pode ser justificada desse


ponto de vista (e talvez só assim possa ser justificada). O ambiente muda
as pessoas porque o comportamento individual é sempre função, em
alguma medida, das relações entre as pessoas. E, além disso, porque as
próprias pessoas se constituem, como tais, na interação (um indivíduo
isolado da espécie humana, se pudesse subsistir, não poderia ser uma
pessoa).

Conquanto ainda esteja bastante difundida a idéia de que redes são um


novo tipo de organização surgida com as novas tecnologias de informação e
comunicação (TICs), tal idéia vem se revelando inconsistente, sobretudo
porque deixa de ver o fundamental: redes são um padrão de organização
que pode ser ensaiado com diferentes mídias e tecnologias (até com sinais
de fumaça, tambores, conversações presenciais, cartas escritas à mão em
papel e transportadas à cavalo et coetera).

Ou seja, é o social que determina comportamentos, não o tecnológico.


Pode-se usar tecnologias interativas de um modo que não altere em nada
ou quase nada os padrões de interação. Por exemplo, computadores
conectados à internet na maioria das escolas não viabilizam, por si só,
mudanças no padrão de interação entre os alunos, que continuam
organizados como rebanho, cada qual com sua supermáquina conectada,
mas todos virados para um professor que centraliza a rede.

35
Na formulação, a várias mãos, da Declaração de Independência dos Estados
Unidos (1776), a tecnologia utilizada (midia) foi a carta escrita em papel, o
cavaleiro (carteiro) e o cavalo, mas o padrão de interação foi, ao que tudo
indica, o de rede distribuída. Hoje, mais de dois séculos depois, o processo
de elaboração de uma diretiva estratégica no Pentágono, a despeito de usar
sofisticados meios de comunicação interativos, revela um padrão de
interação centralizado.

Ao contrário do que parece, as redes sociais não surgiram com as novas


tecnologias de informação e comunicação. Ainda que tecnologias mais
interativas em tempo real (ou sem-distância) possam facilitar a adoção de
padrões mais distribuídos do que centralizados de organização – e possam,
além disso, acelerar a interação – é o modo como as pessoas interagem
(social) e não o recurso (tecnológico) que determina o comportamento
coletivo. A fenomenologia é sempre função da topologia, seja qual for a
tecnologia empregada.

Acelerando a interação, entretanto, alguns fenômenos que só seriam


perceptíveis em linhas temporais muito longas, podem ser captados mais
rapidamente. É o caso do swarming de pessoas: enxameamentos cívicos
levando a grandes manifestações de massa podem ser observados, caso
haja possibilidade de conexão em tempo real (por telefone móvel ou e-mail,
por exemplo), em horas ou até minutos (15). Sem tais recursos
tecnológicos, esses fenômenos (ou seus similares ou correspondentes)
poderiam levar dias ou até anos para se engendrar. Mas isso não significa
que eles ocorrem por causa da tecnologia. Se as pessoas não puderem
interagir uma-a-uma (P2P), se não estiverem conectadas segundo um
padrão distribuído, de pouco adiantarão as mais avançadas tecnologias
interativas. O mesmo vale para outros fenômenos típicos das redes: eles
dependem do padrão de interação (dos graus de distribuição e
conectividade) e não das tecnologias (dos recursos, dos dispositivos, das
mídias).

36
O nome está dizendo: redes sociais

Redes sociais são pessoas interagindo, não ferramentas

Embora tenha se alastrado como uma praga a idéia de que as redes sociais
são a mesma coisa que as mídias sociais, redes digitais, ambientes virtuais,
sites de relacionamento (como Facebook ou Orkut) ou plataformas
interativas (como Ning ou Elgg), tal idéia se revelou equivocada, sobretudo
porque elide o fato de que redes sociais são pessoas interagindo, não
ferramentas.

Essa discussão ganhou força nos últimos tempos com a busca por
ferramentas digitais – plataformas interativas na Internet – mais adequadas
ao netweaving, quer dizer, para servir de instrumentos de articulação e
animação de redes sociais (16).

Três hipóteses surgiram para explicar por que as plataformas interativas


disponíveis, que foram desenvolvidas para a gestão de redes sociais (ou até
mesmo para serem, elas próprias, “redes sociais”) não eram boas
ferramentas de netweaving:

Em primeiro lugar porque seus desenvolvedores confundiam midias sociais


com redes sociais, tomavam a ferramenta (digital) pela rede (social),
quando, como vimos, redes sociais são pessoas (conectadas, interagindo),
não ferramentas!

Em segundo lugar porque, sob o influxo da chamada Web 2.0, as


plataformas disponíveis eram (e ainda são, em grande parte) baseadas na
participação (p-based) e não na interação (i-based). Assim, não se regiam
pela lógica das redes mais distribuídas do que centralizadas, quer dizer,
pela lógica da abundância (17), mas sim pelo regime da escassez (e ao
aceitarem tal condicionamento, de ter que funcionar em condições de
escassez quando já há abundância, reproduziam desnecessariamente
escassez, rendendo-se a um tipo de "economia política" onde a política é
um modo de regulação não-pluriárquico). Não é outro o motivo pelo qual
ativavam mecanismos de contagem de cliques, instituíam votações e
atribuições de preferências baseadas na soma aritmética, que significam
regulações majoritárias da inimizade política. Ora, isso ensejava a formação
de oligarquias participativas que tentavam organizar a auto-organização
(como ocorreu, por exemplo, na Wikipedia).

37
Em terceiro lugar - e como conseqüência do seu fundamento p-based - as
plataformas de articulação e animação de redes sociais (que já se
encaravam, algumas delas pelo menos, como se fossem as próprias redes
sociais), ainda estavam voltadas para organizar conteúdos (encarando,
inevitavelmente, o conhecimento como um objeto e não como uma relação
social). Esse é um problema porquanto a gestão do conteúdo, do
conhecimento-objeto, ao tentar traçar um caminho para os outros
acessarem tal conteúdo, cava sulcos para fazer escorrer por eles as coisas
que ainda virão (na e da interação), com isso repetindo passado e
trancando o futuro (como fazem, secularmente, as burocracias sacerdotais
do conhecimento, mais conhecidas pelo nome de escolas e não é por acaso
que boa parte dessas plataformas tenha sido pensada por professores ou
construída para atender a objetivos educacionais, entendidos como
objetivos de ensinagem e não de aprendizagem). Mas para uma plataforma
i-based - adequada ao propósito de servir de ferramenta para o netweaving
- não se trataria de pavimentar uma estrada para os outros percorrerem e
sim de possibilitar que cada um pudesse abrir seu próprio caminho (posto
que redes são múltiplos caminhos).

Ademais, ao contrário do que acreditavam os supostos especialistas em


redes sociais na Internet, não é o conteúdo do que flui a variável
fundamental para explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modo-de-
interagir.

Mas para compreender essas observações é necessário entender quais são,


afinal, as diferenças entre comunicação e informação e entre interação e
participação. São questões fundamentais porque, de certo modo, entende-
las é entender as redes.

38
É comunicação, não informação

Redes sociais não são redes de informação

Quando Norbert Wiener (1950) escreveu, em Cibernética e Sociedade, que


“um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal”, abriu uma
linha de reflexão segundo a qual todas as coisas – inclusive as pessoas,
que, segundo ele, não passam “de redemoinhos em um rio de água sempre
a correr” – são como que singularidades em um continuum, campo, tecido
ou espaço (18). A hipótese é fértil, inclusive pelo seu poder heurístico. Mais
do que isso, entretanto: é uma hipótese-fluzz.

Mas por essa porta aberta à imaginação criadora, também passou um


pensamento rastejante: como transmissão de mensagem evoca sempre
informação, uma visão de que tudo poderia ser reduzido, em última
instância, à informação, acabou se estabelecendo. Redes, pensadas mais
como redes de máquinas que trocam conteúdos entre si, foram assim
concebidas como redes de informação.

Uma das descobertas tão recentes quanto surpreendentes nesta ante-sala


da época-fluzz em que vivemos é que, ao contrário do que pensavam os
teóricos da informação, redes sociais não podem ser reduzidas à redes de
informação. Ainda que toda influência seja um padrão, ela não pode ser
reduzida a um código. É o padrão de interação que é relevante e não a
transmissão-recepção da mensagem entendida como um conteúdo de
arquivo.

Redes sociais são redes de comunicação, é óbvio. Mas ainda que o conceito
de informação seja bastante elástico, isso não é a mesma coisa que dizer
que elas são redes de informação. Redes são sistemas interativos e a
interação não é apenas uma transmissão-recepção de dados: se fosse assim
não haveria como distinguir uma rede social (pessoas interagindo) de uma
rede de máquinas (computadores conectados, por exemplo).

Ao tomar as redes sociais como redes de informação, imaginando que tudo


não passa de bytes transmitidos e recebidos, freqüentemente deixávamos
de ver que a comunicação modifica os sujeitos interagentes (e só acontece
quando tal modificação acontece). Humberto Maturana e Francisco Varela
explicaram isso muito bem em um box (ao que tudo indica atribuído ao
segundo) do livro A Árvore do Conhecimento (1984) intitulado “A metáfora
do tubo para a comunicação” (19):

39
“Nossa discussão nos levou a concluir que, biologicamente, não há
informação transmitida na comunicação. A comunicação ocorre toda
vez em que há coordenação comportamental em um domínio de
acoplamento estrutural. Tal conclusão só é chocante se continuarmos
adotando a metáfora mais corrente para a comunicação, popularizada
pelos meios de comunicação. É a metáfora do tubo, segundo a qual a
comunicação é algo gerado em um ponto, levado por um condutor
(ou tubo) e entregue ao outro extremo receptor. Portanto, há algo
que é comunicado e transmitido integralmente pelo veículo. Daí
estarmos acostumados a falar da informação contida em uma
imagem, objeto ou na palavra impressa. Segundo nossa análise, essa
metáfora é fundamentalmente falsa, porque supõe uma unidade não
determinada estruturalmente, em que as interações são instrutivas,
como se o que ocorre com um organismo em uma interação fosse
determinado pelo agente perturbador e não por sua dinâmica
estrutural. No entanto, é evidente no próprio dia-a-dia que a
comunicação não ocorre assim: cada pessoa diz o que diz e ouve o
que ouve segundo sua própria determinação estrutural. Da
perspectiva de um observador, sempre há ambigüidade em uma
interação comunicativa. O fenômeno da comunicação não depende do
que se fornece, e sim do que acontece com o receptor. E isso é muito
diferente de ‘transmitir informação’.”

Além disso, há características da interação que não se resumem àquela


transmissão-recepção de conteúdos evocada pelo uso corrente do conceito
de informação. Em uma rede social é como se as pessoas estivessem
emaranhadas e a modificação do estado de uma pessoa em-interação com
outra acaba alterando o estado dessa outra sem que, necessariamente,
tenha havido a transmissão voluntária (e, talvez nem mesmo involuntária)
de uma mensagem da primeira para a segunda. Por exemplo, uma pessoa
tende a se adaptar ao comportamento das outras, tende a imitar padrões
de comportamento reconhecidos nas outras e tende, inclusive, a cooperar
com elas (voluntária e gratuitamente). Uma pessoa pode ficar alegre ou
triste, saudável ou doente, esperançosa ou descrente, em função da
estrutura e da dinâmica desse emaranhado em que está imersa. Ao
contrário do que se acredita, nada disso depende diretamente de um
conteúdo transferido e recebido, intencionado na transmissão e interpretado
na recepção, mas é função de outras características do modo-de-interagir
como a freqüência e a recursividade, as reverberações e os loopings, os
laços de retroalimentação etc.

É mais ou menos como o que revelou a investigação de Deborah Gordon


(1999), professora de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou

40
durantes dezessete anos colônias de formigas no Arizona. Ela descobriu que
“a decisão de uma formiga quanto a uma tarefa é baseada em sua taxa de
interação”. Mas “o que produz o efeito é o padrão de interação, não um
sinal na própria interação. As formigas não dizem umas às outras o que
fazer por meio da transferência de mensagens. O sinal não está no contato,
ou na informação química trocada no contato. O sinal está no padrão de
contato” (20). Ou seja, não se trata de uma comunicação de conteúdo, de
um código, mas da freqüência e das circunstâncias em que se dão os
contatos.

Em uma rede estamos sofrendo a influência de um campo, mas tal


influência é sistêmica e o comportamento adotado por um agente
dificilmente pode ser atribuído à ação e muito menos à intenção única e
exclusiva de outro agente. Quer dizer, quando ficamos alegres em virtude
desse efeito sistêmico do campo em que estamos imersos (a rede) é como
se tal fato fosse inexplicável, o que significa apenas que não conseguimos
explicá-lo com base nos nossos esquemas explicativos habituais, focados
nos indivíduos e não na rede, apontando um sujeito particular que nos
sugestionou positivamente ou exerceu essa influência sobre nós de outra
forma conhecida. Mas não é assim que a coisa funciona.

Quando foi observado que os habitantes da famosa Roseto, na Pensilvânia,


se mostravam mais saudáveis, do ponto de vista cardiovascular, do que as
pessoas das comunidades vizinhas, muito semelhantes à Roseto, em vários
aspectos, isso não pôde ser atribuído a nenhum fator particular (genética,
alimentação, exercícios físicos, atenção à saúde preventiva ou cuidados
médicos), mas foi associado corretamente à comunidade. O mistério só foi
resolvido quando dois pesquisadores (Stewart Wolf e John Bruhn)
resolveram observar como as pessoas interagiam (“parando para conversar
na rua ou cozinhando umas para as outras nos quintais”). “Elas eram
saudáveis – conta Malcolm Gladwell (2008) – por causa do lugar onde
viviam, do mundo que haviam criado para si mesmas…” (21). Sim,
interação e lugar. Em outras palavras, conversações e comunidade. Em
outras palavras, ainda: rede social!

É claro que, a despeito do que foi dito aqui, ainda se pode afirmar que tudo
se reduz, em última instância, à informação: em qualquer interação, em
termos físicos, partículas mensageiras de um dos quatro campos de forças
se “deslocaram”, se espalharam ou se aglomeraram (o simples fato de ver
alguém, por exemplo, implica “deslocamentos” de bósons – no caso, de
fótons, partículas mensageiras do campo eletromagnético) e isso pode,
corretamente, ser interpretado como informação. Mas o significado da
palavra informação – tal como é tomado no dia-a-dia ou mesmo como às

41
vezes é usado pelos chamados “cientistas da informação” – não ajuda muito
a entender os fenômenos que acontecem nas redes sociais e que lhes são
próprios.

42
É interação, não participação

Redes sociais são ambientes de interação, não de participação

A afirmação só é válida, claro, para redes distribuídas, quer dizer, mais


distribuídas do que centralizadas. Quanto mais distribuída for a topologia de
uma rede, mais ela poderá ser i-based (interaction-based) e menos p-based
(participation-based). Tudo que fluzz é i-based, não p-based.

A palavra participação designa uma noção construída por fora da interação.


Participar é se tornar parte ou partícipe de algo que não foi reinventado no
instante mesmo em que uma configuração coletiva de interações se
estabeleceu, mas algo que foi (já estava) dado ex ante. Como se a gente
sempre participasse de algo “dos outros”. Não é por acaso que a expressão
'democracia participativa' foi aplicada para designar diversas formas de
arrebanhamento, inclusive uma variedade de experiências assembleísticas
adversariais, onde a tônica era a luta, a disputa por maioria ou hegemonia e
se praticava a política como “arte da guerra” lançando-se mão de modos de
regulação de conflitos que geram artificialmente escassez (como a votação,
o rodízio, a construção administrada de consenso e, inclusive, sob alguns
aspectos, o sorteio).

Mas isso não significa exatamente, como pode parecer à primeira vista, que
interagir, então, diga respeito somente à atuação em algo "nosso" enquanto
participar diga respeito à atuação em algo "dos outros".

Não, não é bem assim, a menos que esse "nosso", aqui, não seja tomado
em um sentido proprietário (como eufemismo, para dizer "meu") em
contraposição ao "dos outros" (“deles”). O "nosso" conformado na interação
não se pré-estabelece, não conforma uma identidade identificável com um
grupo determinado de agentes antes da interação, ao contrário do "nosso"
(na lógica coletiva de um "eu" organizacional já construído) quando esse
"nosso" foi instituído por um grupo que, ao fazê-lo, estabeleceu uma
fronteira (dentro ≠ fora) independentemente da interação fortuita que já
está acontecendo e que ainda virá. Neste caso, a organização será um
congelamento de fluxos, uma cristalização de uma situação pretérita, um
pedaço do passado cortado que se enxerta continuamente no presente para
manter as configurações que, em algum momento, atribuíram a
determinadas pessoas certos papéis que se quer reproduzir (essa é a triste
história da liderança, ou melhor, da monoliderança, dos líderes que, tendo

43
liderado algum dia, querem se prorrogar, eternizando uma constelação
passada para continuar liderando).

Assim, quando fazíamos uma organização ou lançávamos um movimento e


chamávamos uma pessoa para nela entrar ou a ele aderir, estávamos
chamando-a à participação. Estávamos abrindo a (nossa) fronteira para que
o outro pudesse entrar. Em uma rede (mais distribuída do que
centralizada), as fronteiras são sempre mais membranas do que paredes
opacas, não precisam ser abertas, não se estabelecem antes da interação e
todos os que estão em-interação estão sempre "dentro" (aliás, estar
"dentro", neste caso, é sinônimo de estar interagindo, mesmo que alguém
só tenha começado ontem e os demais há anos). Estarão “dentro” também
os que ainda virão, quando passarem a interagir, sem a necessidade de
serem recrutados, provados, aprovados, admitidos e iniciados pelos que já
estão.

A diferença parece sutil, mas é brutal no que diz respeito ao funcionamento


orgânico. O participacionismo (que contaminou a chamada Web 2.0)
instituiu modos de regulação que produzem artificialmente escassez (e,
portanto, centralizam a rede, gerando oligarquias participativas compostas
pelos que mais participam, pelos que são mais votados ou preferidos de
alguma forma – mais ouvidos, mais lidos, mais comentados, mais
adicionados, mais seguidos –, os quais acabam adquirindo mais privilégios
ou autorizações regulatórias do que os outros). Formam-se neste caso inner
circles, instâncias mais estratégicas do que as demais (os outros clusters e
as pessoas comuns, não-destacadas da “massa”), que passam, estas
últimas, para efeitos práticos, a serem consideradas táticas (para os
propósitos dos estrategistas, dos que possuem mais atribuições): e não é a
toa que os membros do “círculo externo” freqüentemente são chamados de
“público”, “usuários”, (meros) “participantes”, com permissões mais
restritas e poderes regulatórios diminutivos (22).

Em um sistema-fluzz, baseado na interação, a regulação é pluriárquica,


quer dizer, é sempre feita com base na lógica da abundância: ou seja, as
definições dependem das iniciativas das pessoas que queiram tomá-las ou a
elas queiram aderir, jamais impondo-se, o que pensam alguns, aos demais
(por critérios de maioria ou preferência verificada). Assim, em um sistema
baseado na interação, nunca se decide nada em nome do sistema (a
organização em rede), ninguém fala por ele, ninguém pode representá-lo ou
receber alguma delegação do coletivo (porque, na ausência de
representação, esse “eu = ele” coletivo não pode expressar-se (por
hipóstase) como um ser de vontade ou que seja capaz de acatar qualquer
vontade, ainda que fosse a vontade de todos). E não há deliberação porque

44
não há necessidade de deliberar nada por alguém ou contra alguém ou a
favor de alguém (que tivesse que delegar ou alienar seu poder a outrem).

Em uma organização i-based, nunca se fala em nome da organização,


nunca se promove nada por ela e nem mesmo seus fundadores podem
empenhar, emprestar, parceirizar a sua marca para coisa alguma, ainda
que seja para propor uma atividade totalmente dentro do escopo da
organização. Em outras palavras, não há um ativo organizacional que possa
ser apropriado (nem mesmo como patrimônio simbólico) por alguém em
particular, porque as dinâmicas pluriárquicas não permitem.

Dessarte, não há um "nós" organizacional que estabeleça uma fronteira


entre os "de dentro" e os "de fora". Todos que estão fora podem entrar.
Todos os que estão dentro podem sair (e podem voltar a qualquer
momento; e sair de novo, quantas vezes quiserem). Entrar não significa
pertencimento a algum corpo separado do meio por fronteiras
impermeáveis, nem adesão (ou profissão de fé) a algum codex e sair não
significa discordância, “racha”, deserção, traição, divórcio ou qualquer tipo
de ruptura. E quem compõe tal organização afinal? Ora, quem nela quiser
se conectar e interagir, aqui-e-agora. Quem saiu não é mais, mas não
porque tenha se desligado e sim porque não está interagindo. Quem não
entrou não é ainda, mas não porque não tenha sido aprovado e aceito e sim
porque, igualmente, não está interagindo.

Porque rede é fluição. Nodo de uma rede é tudo o que nela interage. Essa
foi a grande descoberta-fluzz do tempo vindouro que está vindo.

É certo que, mesmo nas redes mais distribuídas do que centralizadas, a


freqüência e outras características da interação, vão ensejando a formação
de laços internos de confiança, de sorte que nem todos são iguais no que
tange ao que correntemente se chama de liderança. Algumas pessoas
podem ter oportunidades de serem mais avaliadas pelas outras e até de
obterem uma adesão maior às suas iniciativas do que as outras, em virtude
da sua interação, quer dizer, do seu modo-de-interagir e do seu, vá lá,
histórico de interação (mas não de qualquer atribuição diferencial que
tenham recebido de fora ou de cima ou mesmo em virtude da adoção de
modos de regulação geradores de escassez que recompensem algum
esforço de participação voltado a "ganhar" as demais pessoas, conquistando
hegemonia ou maioria). Nas redes (mais distribuídas do que centralizadas)
não se quer regular a inimizade política e sim deixar que a amizade política
auto-regule o funcionamento do sistema. Não há um corpo docente, uma
burocracia coordenadora e, nem mesmo, um time ou equipe de facilitadores
(cuja formação seja baseada em critérios de mérito ou conhecimento,

45
antiguidade, popularidade ou outra característica qualquer que não possa
ser verificada e checada intermitentemente na interação).

Esse é o motivo pelo qual nas redes sociais (mais distribuídas do que
centralizadas) não se deve (e enquanto elas forem mais distribuídas que
centralizadas, não se pode) montar uma patota dirigente, coordenadora,
facilitadora ou erigir uma igrejinha de mediadores. A construção de um
“nós” organizacional infenso à interação ou protegido contra a
imprevisibilidade da interação para manter sua identidade ou integridade
(e, supostamente, para assegurar – como guardiães – que a organização
não se desvie de seus propósitos, não viole seus princípios e não fuja do
seu escopo), ao gerar uma identidade compartilhada por alguns “mais
iguais” que outros, centraliza a rede, deixando-a à mercê do
participacionismo; quando não de coisa pior.

Sim, é difícil não tentar organizar a auto-organização. E é dificílimo não


tentar reunir alguns para, como se diz, “colocar um pouco de ordem na
casa”. Mas aqui vale aquela frase brilhante de Frank Herbert, uma pérola
garimpada em “O Messias de Duna” (1969): “Não reunir é a derradeira
ordenação” (23). Para quê re-unir o que já está unido = conectado
(interagindo)? E se é assim, por que reunir apenas alguns para organizar
mais, quando se pode ensejar a ordenação emergente de muitos mais?

A tentação de estabelecer uma fronteira opaca, o medo de se deixar abrigar


(ou de se proteger do “mundo externo”, do outro, em geral das outras
organizações) apenas por uma membrana (permeável aos fluxos e,
portanto, vulnerável à interação) assolou constantemente as (pessoas das)
organizações, mesmo aquelas que queriam transitar para um padrão de
rede distribuída.

Talvez isso tenha ocorrido, em parte, em virtude de uma confusão entre


interação e troca de conteúdo. Boa parte das pessoas que tratavam do
assunto, inclusive das que se dedicam a investigar ou experimentar redes
sociais, confundia interação com troca de informação e gestão de conteúdo
(sobretudo tomando por conteúdo conhecimento). Como imaginavam, essas
pessoas, – com certa razão – que o conhecimento é cumulativo, queriam
bolar uma, como se diz?, “arquitetura da informação”, urdir schemas
classificatórios, desenhar árvores para mapear relações (que ainda não se
efetivaram) e organizar os escaninhos para depositar o conhecimento que ia
sendo construído coletivamente. Na falta de mecanismos de busca
semântica, queriam “colocar as coisas nos lugares certos” para facilitar a
navegação dos demais. Mas ao fazerem isso, animados pela boa intenção
de organizar o (acesso ao) conhecimento para os demais, acabavam

46
erigindo uma escola (como ocorre, de certo modo, com uma parte dos que
adotam plataformas wikis e plataformas ditas educacionais), quer dizer,
uma burocracia do ensinamento, inevitavelmente centralizada.

Tudo isso era assim até que começou a procura por mecanismos que
dessem conta do formigueiro e não das formigas: como se sabe, é o
formigueiro que se reproduz (como padrão), não as formigas. Por isso a
comparação com o formigueiro, que causa repugnância a alguns (que
alegam que as formigas não têm consciência e não podem fazer escolhas
racionais) não é despropositada. A pesquisadora Deborah Gordon (1999)
descobriu que o formigueiro é i-based, ou seja, que além de nele não haver
nada que se possa chamar de administração, a auto-organização é feita a
partir da freqüência e de outras características da interação das formigas
entre si e com o seu ecossistema e não de algum conteúdo que elas tenham
trocado entre si (nem mesmo se tal conteúdo fosse uma substância
química, como se supunha) (24).

47
Padrões, não conjuntos

Os fenômenos que ocorrem em uma rede não dependem das características


intrínsecas dos seus nodos.

Padrões, não conjuntos. Quem quer entender redes deveria começar


refletindo sobre a frase do físico Marc Buchanan (2007), em O átomo social
(25):

“Diamantes não brilham por que os átomos que os constituem


brilham, mas devido ao modo como estes átomos se agrupam em um
determinado padrão. O mais importante é freqüentemente o padrão e
não as partes, e isto também acontece com as pessoas”.

A idéia de que a fenomenologia de uma rede é função das características de


seus nodos (das suas idéias, conhecimentos, habilidades, valores ou
preferências) ainda faz parte de uma herança cultural não-fluzz difícil de ser
questionada. Dizer que a fenomenologia de uma rede é função da sua
topologia é um verdadeiro choque para essa cultura que encara as
sociedades humanas como coleções de indivíduos e não como sistema de
relações entre pessoas, como configurações de fluxos ou interações.

Sim, rede = interação. O comportamento coletivo não depende dos


propósitos dos indivíduos conectados (ou de suas outras características,
individualizáveis). Ele é função dos graus de distribuição e conectividade (ou
interatividade) da rede.

Mas por que demoramos tanto para perceber isso? Talvez porque, enquanto
olhávamos os nodos (as árvores), deixávamos de ver a rede (a floresta, ou
melhor, não propriamente o conjunto das árvores, mas as relações que
constituem o ecossistema sem o qual as árvores – nem algumas poucas,
nem muitas milhares – podem existir). Talvez porque fomos induzidos a
fazer a busca errada: enquanto procurávamos um conteúdo não podíamos
mesmo encontrar um padrão de interação. Talvez porque, influenciados
pela máquina econômica construída pelo pensamento hobbesiano-
darwiniano, enquanto tentávamos prever o comportamento coletivo a partir
das preferências individuais, escapava-nos aquilo que exatamente faz do
sistema algo mais do que a soma de suas partes: o social. Fixávamo-nos
em objetos capturáveis, não em relações, não em fluxos. Fluzz, para nós,
permanecia escondido.

48
Conjuntos de nodos são apenas conjuntos de nodos. Não são redes. A
representação estática chamada grafo, disseminada pela SNA (Análise de
Redes Sociais) não ajuda muito a compreensão da rede: pontos (vértices)
ligados por traços (arestas) passam uma imagem abaixo de sofrível daquele
emaranhado dinâmico de interações que constitui a essência do que
chamamos de rede, sempre fluindo e alterando sua configuração. Ademais,
os nodos não são propriamente pontos de partida nem de chegada de
mensagens, como se fossem estações ligadas por estradas por onde algum
objeto ou conteúdo vai transitar. Eles também são caminhos. Aliás, nas
redes sociais, os nodos não existem como tais (como pessoas) sem os
outros nodos a ele ligados, constituindo-se, portanto, cada um em relação
aos demais, como caminhos de constituição disso que chamamos de ‘eu’ e
de ‘outro’.

Assim, não é o conteúdo do que flui pelas suas conexões que pode
determinar o comportamento de uma rede. É o fluxo geral que perpassa
esse tecido ou campo, cujas singularidades chamamos de nodos, que
consubstancia o que chamamos de rede. Esse fluxo geral não tem nada a
ver com mensagens contidas em sinais emitidos ou recebidos: são padrões,
modos-de-interagir. Se há uma mensagem (um conceito mais informacional
do que comunicacional), esses padrões é que são a mensagem.

49
Conhecimento é relação social

O conhecimento presente em uma rede não é um objeto, um conteúdo que


possa ser arquivado e gerenciado top down

A idéia de capturar objetos para colocá-los na máquina, a idéia de salvar


(arquivar) configurações do passado, constituiu o caminho para a
construção de conhecimento nas sociedades pré-fluzz. As teorias do
conhecimento pressupostas por essa idéia podiam ser, na melhor das
hipóteses, construtivistas, mas não podiam ser conectivistas. Não é por
acaso que construtivismo gerava escolas (burocracias do ensinamento)
enquanto que conectivismo vai gerando inevitavelmente não-escolas (redes
de aprendizagem).

A idéia de construção do conhecimento – de depositar “tijolo por tijolo num


desenho lógico”, como diz a canção (26) – decorre de uma epistemologia
não-fluzz. Essa idéia, ao se aplicar, requer uma espécie de congelamento de
fluxo (ou de materialização do passado) para ir combinando objetos, como
em uma espécie de lego. Ela permitiu a ereção de aberrações como os
knowledge management systems, originalmente pensados para abastecer
de informações estratégicas o topo de pirâmides. Era compatível, portanto,
com estruturas centralizadas e não com redes distribuídas.

Mas o conhecimento presente em uma rede mais distribuída do que


centralizada não pode ser gerido top down, simplesmente porque não há
um nodo ou cluster capaz de capturá-lo com antecedência, domesticá-lo ou
codificá-lo (transformando-o em ensino) para facilitar o acesso a ele dos
demais. É um conhecimento-fluzz, quer dizer, é uma relação social, móvel e
sempre em mutação. Como no sistema imunológico dos mamíferos e de
outros animais, é um conhecimento que está distribuído por toda a rede.
Um nodo interagente conhece porquanto (e enquanto) está interagindo e
não porque foi alocado em uma posição para receber uma instrução de
outrem (escola). É um conhecimento novo a cada vez. Como naquele rio
heraclítico, ninguém pode aprendê-lo mais de uma vez.

É por isso que as plataformas hierárquicas de transmissão do conhecimento


foram estruturadas para avaliar e validar o conhecimento ensinado e não o
conhecimento aprendido. E é por isso que todas elas exigem tribunais
epistemológicos, corpos (docentes) de guardiães do passado (que são
sempre coaguladores: sacerdotes, professores, doutores, mestres e outros

50
titulados) encarregados de dizer quais conhecimentos podem ou não
transitar.

A chamada “arquitetura de informação” das plataformas digitais p-based


segue o mesmo caminho. Tudo se resume a abrir caixinhas para depositar e
salvar conteúdos, escaninhos para coagular, guardar e ordenar o passado
com o intuito declarado de facilitar a busca futura, quando, na verdade, seu
objetivo é outro: selecionar e pavimentar caminhos para o futuro que sejam
produzidos pela dependência da trajetória (ou pela repetição de passado).

51
A chefia é contra a liderança

Hierarquia não é o mesmo que liderança

Toda hierarquia se erige pela materialização e repetição de passado. Na


tradicionalidade, essa operação (de ereção de hierarquias) legitimava-se
pela unção ou delegação proveniente de alguma instância extra-humana
(divina), que se transferia pelo “sangue” (ou pela genética: as linhas
sucessórias parentais, familiares, da nobreza: os herdeiros carregavam o
múnus originário, que podia ser delegado, em graus subordinados, a quem
a eles se submetesse). Era um objeto (como se os superiores possuíssem
um estoque de “células-tronco” para construir o “corpo” hierárquico) (27). A
própria palavra hierarquia (hieros + arché) designava esse poder sagrado.

Na modernidade, tentou-se substituir tal legado legitimatório pelo


reconhecimento de determinadas características intrínsecas do sujeito que
lhe confeririam a capacidade de exercer poder sobre os outros: sua vocação
administrativa ou seu carisma, sua gravitatem ou sua liderança.

Essas “explicações” impediam a percepção de que hierarquia é sinônimo de


centralização. Olhavam sempre para o indivíduo que, em virtude de ter sido
escolhido (the chosen one) ou por força de suas qualidades inatas ou
adquiridas (pelo “sangue” ou no “berço”), tinha o dever ou o direito de
mandar nos outros (sim, em última instância era disso que se tratava), mas
não olhavam para a rede, para a configuração do emaranhado de conexões
em que o chefe ou líder se inseria.

A liderança considerada por essas justificativas não é aquela que emerge


espontaneamente na rede, quando alguém toma uma iniciativa que é
seguida por outros, em circunstâncias sempre temporárias, mas a
“liderança” que se quer permanente de alguém que, tendo liderado algum
dia, tenta congelar a configuração que permitiu essa eventualidade para
enxertá-la continuamente no presente de sorte a poder liderar para sempre,
em todas as circunstâncias. Isto é: monoliderança, na verdade o contrário
da liderança, a qual, como fenômeno emergente, é sempre multiliderança
(possibilidade, aberta a qualquer um, de liderar em determinadas
circunstâncias fortuitas).

A liderança é fluzz, ela flui como um rio. Os líderes que se sucedem,


aparecem, desaparecem e reaparecem como “remoinhos num rio de água
sempre a correr” (para usar a bela imagem de Wiener) (28). A

52
monoliderança – na verdade uma justificativa para a centralização e para a
chefia – é sempre uma tentativa de represar o curso.

Redes mais distribuídas do que centralizadas (caracterizadas pela


abundância de caminhos) são ambientes favoráveis à emergência da
multiliderança. A monoliderança – do líder providencial e permanente, a
prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades – constitui-
se, porém, contra a liderança e só pode se constituir assim em estruturas
mais centralizadas do que distribuídas, ou seja, em estruturas onde foi
introduzida a escassez de caminhos.

53
Nenhuma hierarquia é natural

A escassez que gera hierarquia é aquela introduzida artificialmente pelo


modo de regulação

A hipótese de que foi a escassez (natural, de recursos) que gerou a


hierarquia e que, assim, a hierarquia tenha brotado espontaneamente do
caos, foi tão sedutora para alguns quanto enganosa para todos. Até hoje
ainda há os que se põem a promover um deslizamento (para o natural) do
conceito (social) de hierarquia, com base na suposta evidência de que ela é
encontrada em toda parte – do mundo físico (e. g., sistemas
termodinâmicos) ao mundo biológico (e. g., sistemas vivos aninhados) – e
que isso seria uma prova de que a hierarquia é natural e, dessarte, também
naturalmente se manifestaria no mundo social.

Mas a escassez que gera hierarquia é introduzida artificialmente, sempre


pela supressão de caminhos. Não há uma escassez em si. O conceito é
relacional: escassez, quando há, é sempre em relação a algo ou alguém que
carece de determinados recursos em determinado ambiente. Ao fluir com o
curso, ao se deixar levar pela “vida nômade das coisas” (uma boa definição
de fluzz), tal escassez não se configura. A escassez só surge com o
represamento do rio.

Nos sistemas naturais não pode haver o conceito de escassez porque não
há um indivíduo que reclame uma necessidade contra o ecossistema na
medida em que cada parte do ecossistema se insere na lógica da
abundância que regula o sistema. Nos sistemas sociais (ou anti-sociais,
seria melhor dizer), a escassez é introduzida pelo modo de regulação de
conflitos. Toda vez que se regula conflitos de modo autocrático, gera-se
escassez que permite a ereção de estruturas hierárquicas. E toda vez que
se erige um sistema hierárquico pela eliminação de caminhos, geram-se
modos de regulação não-pluriárquicos que se mantêm pela reprodução da
escassez.

54
Poder é uma medida de não-rede

Centralização (hierarquização) não é o mesmo que clusterização

Também era muito comum a confusão entre hierarquização (que é uma


centralização) e clusterização (ou aglomeramento provocado pela dinâmica
de uma rede). Isso dificultava a compreensão do fenômeno do poder nas
redes sociais. Desse ponto de vista, aliás, seria o exato contrário: o poder
não surge da clusterização e sim – juntamente com a exclusão de nodos e a
obstrução de fluxos – do desatalhamento (supressão dos atalhos) entre
clusters (aglomerados).

O poder (como poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra sua
vontade, como, ao fim e ao cabo, se manifesta qualquer poder) é uma
medida de não-rede (em termos de rede distribuída); quer dizer, é uma
medida direta do grau de centralização (ou uma medida inversa do grau de
distribuição) de uma rede. Ele ocorre (ou sobrevém) não quando os nodos
se aglomeram em função da sua interação e sim, ao contrário, quando
impedimos que tal aglomeramento se dê livremente (em virtude da
dinâmica da interação), mas colocamos obstáculos, construímos cancelas ou
selecionamos caminhos por onde ela (a interação) deve passar: sejam
muros, cercas, paredes, escadas, portas e fechaduras, ou firewalls. Todo
poder nasce de um impedimento imposto à livre fluição. Todo poder é uma
introdução artificial (uma fabricação) de escassez de caminhos. Todo poder
é uma tentativa de evitar a abundância de caminhos. Todo poder –
necessariamente hierárquico – é uma reação à distribuição (29).

A tendência nas redes sociais mais distribuídas do que centralizadas é que


os clusters não fiquem isolados, mas interligados, interagindo entre si.
Simplesmente porque eles acabarão, mais cedo ou mais tarde, fazendo isso
– desde que não se o impeça. Fundamentalmente, porque eles podem fazer
isso!

A clusterização em redes sociais tende a aumentar à medida que essas


redes vão aumentando seu grau de distribuição e conectividade (quer dizer,
de interatividade). Esse é um indicador da transição para a sociedade em
rede, na qual vão se alterando as configurações congeladas pelas
fortíssimas centralizações impostas pelo sistema de equilíbrio competitivo
entre menos de duas centenas de Estados-nações em um mundo de quase
7 bilhões de habitantes. Em termos políticos (ou geopolíticos), a
clusterização sócio-territorial que conforma e dá identidade a miríades de

55
novas comunidades (de aprendizagem, de projeto e de prática – clusters de
convivência enfim) é uma expressão do localismo cosmopolita que floresce
à medida em que a globalização do local encontra a localização do global.
Isso está na origem dos Highly Connected Words que emergem em uma
época-fluzz.

56
Autoregulação significa sem-administração

Em redes distribuídas não se pode diferenciar papéis ex ante à interação

A idéia de que qualquer organização exige diferenciação de papéis pré-


definíveis foi aceita como um axioma universal na administração. Em alguns
casos citavam-se exemplos retirados da biosfera para mostrar que se trata
de uma verdade evidente por si mesma (por exemplo, freqüentemente
ainda se dá o exemplo das formigas, que já nasceriam com funções
especializadas: forrageiras, operárias, soldados – conquanto essa crença já
tenha sido desmascarada pela ciência).

Não é por acaso que as teorias da administração sejam teorias de comando-


e-controle. A administração, qualquer administração, é sempre uma
administração da escassez. É uma espécie de economia política aplicada. Só
há necessidade de administrar um sistema se esse sistema foi construído a
partir da seleção de caminhos para normatizar o fluxo: por aqui pode
passar, por ali não pode; para chegar aqui tem que vir por ali, para sair lá
tem que passar por aqui. Ora, é mesmo impossível fazer isso sem comando
e controle.

O fluxo quer fluir. Fluirá por onde houver caminho. Para proibir a livre
fluição é preciso obstruir caminhos, derrubar pontes, fechar atalhos entre
clusters (nas organizações hierárquicas isso acontece inclusive pela
segregação espacial dos seus membros, alocados em andares diferentes de
um prédio fechado pela introdução de muros, cercas, cancelas, roletas,
elevadores programados, cartões magnéticos com permissões exclusivas,
que abrem algumas portas e outras não, ou pelas permissões diferenciadas
conferidas aos usuários para acessar sites, baixar programas, enviar ou
receber mensagens, interagir em plataformas etc.). Tudo comando-e-
controle.

Redes distribuídas são estruturas sem-administração, que se regulam por


emergência (quanto mais distribuídas o forem). Nas novas organizações-
fluzz, mais distribuídas do que centralizadas, os papéis ou funções se
definem e redefinem continuamente a partir da interação. Uma pessoa que
se dedicava às relações institucionais de uma empresa passará a fazer parte
da concepção de seus produtos; outra, encarregada do relacionamento com
os clientes, será chamada a compor um think tank de inovação. Mais do que
isso, com a perfuração dos muros que separavam a organização de grande
parte dos seus stakeholders, consumidores também contribuirão para o

57
processo produtivo, acionistas se oferecerão para compartilhar a gestão e
as comunidades afetadas de alguma forma pela atuação de uma empresa
assumirão solidariamente riscos e oportunidades associados ao
empreendimento. E isso é apenas o começo.

Nessas circunstâncias não pode haver um departamento capaz de impor, de


antemão e de cima para baixo, os caminhos que devem ser seguidos pelos
fluxos que atravessam todos os demais departamentos de uma
organização. Aliás, antigos departamentos serão substituídos,
crescentemente, por instâncias surgidas da clusterização. Múltiplas
lideranças se revezarão no netweaving de todos os processos. O velho
indivíduo, substituível peça da máquina (por outro indivíduo substituível),
vai sendo substituído pela pessoa, insubstituível porquanto única naquilo
que faz, do jeito que faz, enquanto nodo da rede em que interage.

58
Pessoas, não indivíduos

Não podem existir pessoas (seres humanos) sem redes sociais

Foi (e ainda está) muito difundida a idéia de que redes sociais são formadas
a partir de escolhas racionais feitas pelos indivíduos. Segundo essa idéia as
redes seriam voluntariamente construídas com propósitos definidos e
baseados nos interesses dos indivíduos. Quem pensava assim,
evidentemente, avaliava que podem existir seres humanos sem redes, quer
dizer, que primeiro existem os indivíduos (já plenamente humanos) para,
depois, se esses indivíduos resolverem se conectar, só então surgirem as
redes sociais.

Nos novos mundos-fluzz, entretanto, o conceito de indivíduo – uma


caracterização biológica ou uma abstração econômica e estatística – tende a
perder sentido para dar lugar à pessoa, que é, afinal, quem existe de fato
como ser humano concreto.

Mas pessoa já é rede. Ninguém nasce com tal condição, não basta ser um
indivíduo da espécie, em termos biológicos, para ser humano. Dizer que,
para os seres humanos, no princípio era a rede, significa dizer que é
necessário “nascer” (com-viver) em uma rede (social) para se tornar
humano. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição
a partir do relacionamento com seres (que já foram) humanizados.

Redes sociais não são redes de indivíduos de uma espécie biológica, nem
redes de outras entidades abstratas que possam ser identificadas
indistintamente, numeradas e somadas para qualquer efeito (como, por
exemplo, os habitantes, os consumidores, os contribuintes, os eleitores),
mas redes de pessoas. Não existem as redes dos pensionistas do sistema
previdenciário, dos mutuários do sistema habitacional ou dos torcedores de
determinado clube esportivo (a não ser quando interagem em torcidas
organizadas), assim como não existe a sociedade composta pelos que estão
na fila para comprar ingressos para um torneio. As redes (sociais) não
somam suas partes (individuais) porque elas não são propriamente
constituídas por essas partes, mas pelas relações que se efetivam, pela
configuração móvel das interações que se processam ou pelo emaranhado
que se trama a cada instante.

59
As redes sociais já são a mudança

As redes sociais distribuídas não são instrumentos para realizar a mudança:


elas já são a mudança

Também era muito comum a idéia de que as redes são uma espécie de
instrumento para se fazer alguma coisa. Quando o assunto entrou na moda,
as pessoas acharam que estavam diante de uma nova forma de organização
recentemente descoberta e queriam logo usar as redes com algum objetivo
instrumental, ainda quando desejassem colocá-las a serviço de uma causa
que, a seu ver, não poderia ser mais nobre: a grande transformação social.

Mas a emergência da concepção-fluzz de que, na sociedade, não há o que


transformar, é realmente surpreendente. Trata-se, para cada sociedade, de
ser o que é – ou seria, se não houvesse obstrução de fluxos, exclusão de
nodos ou desatalhamento de clusters.

Dizendo de outro modo: trata-se, para as redes sociais, de serem o que


podem ser. Uma rede social não pode ser nada mais do que uma rede
distribuída. Os caminhos que seguirá dependerão da sua dinâmica, dos
fenômenos particulares que nela ocorrerão a partir da livre interação. Toda
tentativa de predeterminar esses caminhos é, na verdade, uma tentativa de
impedir que a rede escolha seus caminhos. O que vai acontecer depois vai
acontecer depois e não pode ser determinado por quem está antes.

Por isso se diz que as redes sociais distribuídas não são instrumentos para
realizar a mudança: elas já são a mudança.

Isso vai contra o modelo transformacional da mudança próprio das


estruturas de comando-e-controle que queriam levar as sociedades
humanas para algum futuro pré-concebido. Quando se pensava assim, tudo
virava instrumento para pré-determinar caminhos e isso, por si só, já
introduzia escassez de caminhos e centralização (hierarquia) bloqueando a
única mudança que poderia fazer a diferença (ao instalar a dinâmica da
inovação permanente): a mudança de hierarquia para rede.

60
Aranhas não podem gerar estrelas-do-mar

É inútil erigir uma hierarquia para realizar a transição de uma organização


hierárquica para uma organização em rede

No velho mundo fracamente conectado dos milênios passados erigia-se


sempre uma hierarquia para realizar qualquer mudança social, assim no
que era chamado de ‘a sociedade’ como em qualquer organização
particular. Diante dos sinais de que a estrutura e a dinâmica das sociedades
estavam adquirindo, cada vez mais, as características de uma rede, os
chefes de organizações hierárquicas começaram a tentar fazer
reengenharias para se adequar à mudança. O primeiro impulso foi o de
controlar as redes sociais (em geral confundidas com as mídias sociais) para
usá-las de acordo com seus velhos propósitos: para ter mais influência,
para ter mais votos, para vender mais, para extrair mais sobrevalor dos
funcionários, para derrotar mais facilmente a concorrência ou os inimigos.
Isso, entretanto, não aumentou a capacidade de adaptação das
organizações hierárquicas porque o problema não estava em descobrir uma
nova combinação dos seus recursos materiais e organizacionais, humanos e
sociais e sim na sua própria natureza de organização hierárquica.

Novos departamentos hierárquicos encarregados de adequar a organização


às novas possibilidades que iam se tornando disponíveis em uma sociedade
em rede (nuvens de computação, plataformas interativas, trabalho remoto,
marketing viral, sistemas de co-working e co-creation voltados à inovação,
peer production, crowdsourcing etc.) não foram capazes de atingir o
coração do problema, que é o seguinte: em uma sociedade em rede as
organizações também devem ser redes. Porque o problema é: como fazer a
transição de pirâmide (mainframe) para rede (network)?

Mas é inútil erigir uma hierarquia para realizar a transição de uma


organização piramidal para uma organização em rede. Aranhas não podem
gerar estrelas-do-mar, para usar as boas metáforas de Brafman e
Beckstrom (2006) (30). Deveria ser óbvio, tautológico ou quase. Se
queremos redes devemos articular redes, não erigir hierarquias. Semente
de rede é rede. Desistam os que pretendem fazer isso: uma hierarquia não
pode gerar uma rede.

A manutenção das hierarquias não ocorre em função de qualquer


discordância consciente das redes por parte dos agentes de um sistema
hierárquico. Uma vez erigidas, as hierarquias tendem a se manter e

61
reproduzir por força de circularidades inerentes às suas interações
recorrentes. É uma espécie de mecanismo de segurança do sistema contra
sua dissolução. É uma maneira de se proteger do caos representado pela
ausência de ordem top down. É uma forma de ficar do “lado de fora” do
abismo, posto que cair no abismo é o maior temor de toda estrutura mais
centralizada do que distribuída.

62
No “lado de fora” do abismo

Ficamos do “lado de fora” do abismo quando nos protegemos da interação

Cair no abismo é entrar naquela região desconhecida onde novos padrões


são continuamente gerados. É ser colhido pela corrente alucinante na qual
fluzz vai quebrando as circularidades inerentes aos padrões conversacionais
ou interativos que se prorrogam (e que só se prorrogam enquanto tais
circularidades se mantêm).

Quando nos abrimos à interação com o outro-imprevisível despencamos no


abismo. Quando erigimos fronteiras opacas, que nos separam dos outros,
evitamos a queda e ficamos do “lado de fora” do abismo. Nos “salvamos”
protegendo-nos da interação.

Aí, é claro, reproduzimos o velho mundo. Sim, o velho mundo é um


conjunto de arquivos salvados: os mesmos programas são postos a rodar,
continuamente. Enquanto protegidos da livre interação, esses programas
não se modificam.

Todas as tentativas políticas e espirituais de mudar o mundo e reformar o


ser humano basearam-se na instauração de uma nova ordem, seja a ordem
“descoberta” pela observação de supostas leis da história, seja a ordem
revelada por alguma instância extra-humana. Todas, de certo modo,
demonizavam o caos e tinham horror à queda no abismo. Todas queriam
nos salvar mantendo-nos seguros no “lado de fora” do abismo. Ofereciam-
nos, como compensação pela aventura perdida, a segurança de regras que
disciplinam a interação.

Líderes, condutores, reformadores, sempre apelaram para nossa


consciência, acreditando que a mudança se daria quando alcançássemos
determinada visão, vivêssemos uma experiência extraordinária ou nos
convencêssemos individual e coletivamente de certas realidades. Esses
salvadores, via de regra ligados a estruturas hierárquicas (fossem partidos,
corporações, igrejas, escolas de pensamento, ordens, congregações, seitas,
sociedades ou fraternidades) queriam nos inserir nessas estruturas
centralizadas, sob a justificativa de que era necessário reunir condições
favoráveis, recursos de monta, grandes contingentes de filiados, eleitores,
seguidores ou adeptos, para poder implementar a mudança que
anunciavam.

63
Entretanto, os agentes de um sistema hierárquico, pensem ou acreditem no
que quiserem, são sempre agentes da manutenção e reprodução do
sistema. Não é mudando (ou “fazendo”) suas cabeças, incutindo novos
valores, disseminando novas crenças, que vamos conseguir realizar a
transição do padrão centralizado para o padrão de organização em rede
(mais distribuído do que centralizado). Todo proselitismo é inútil nessa
matéria. Não se trata de convencimento, nem mesmo de consciência. Eles
não podem mudar seu comportamento enquanto não mudarem o modo
como se relacionam com os demais agentes. E esse modo de se relacionar
não pode mudar enquanto permanecerem como válidas apenas certas
configurações de caminhos pelos quais a organização hierárquica se
constitui disciplinando a interação.

Para libertar a interação desses constrangimentos é necessário quebrar as


rotinas, violar as fronteiras e pular as cancelas internas e externas, tomar
iniciativas que não foram planejadas pelos chefes ou inspiradas pelos
líderes, esquivar-se do seu comando, livrar-se de sua influência, colocando-
se fora da possibilidade de controle; enfim... é necessário desobedecer!
(30).

Obediência é sempre manutenção de uma ordem. Desobediência é sempre


introdução de des-ordem. Em uma organização hierárquica desobediência é,
simplesmente, fazer redes (mais distribuídas do que centralizadas). Sim, o
único caminho para a rede é a rede.

É paradoxal porque, como redes são múltiplos caminhos, esse único


caminho já são múltiplos caminhos; ou seja, qualquer rede distribuída é
caminho.

Enquanto esperamos uma grande mudança no mundo a partir da mudança


de consciência de seus agentes, o mundo único persiste. Persistia, enquanto
se conseguia impedir o surgimento de outros mundos em rede. Agora,
porém, isso já não é mais possível.

64
2
Inumeráveis interworlds

E naquele instante ele viu o planeta inteiro: cada vila, cada cidade,
cada metrópole, os lugares desertos e os lugares plantados.
Todas as formas que se chocavam em sua visão traziam
relacionamentos específicos de elementos interiores e exteriores.
Ele via as estruturas da sociedade imperial refletidas
nas estruturas físicas de seus planetas e de suas comunidades.
Como um gigantesco desdobramento dentro dele,
ele via nessa revelação o que ela devia ser:
uma janela para as partes invisíveis da sociedade.
Percebendo isso, notou que todo sistema devia possuir tal janela.
Mesmo o sistema representado por ele mesmo e o universo.
Começou a perscrutar as janelas, como um voyeur cósmico.
Frank Herbert em Os filhos de Duna (1976)

65
Muitos mundos, isso mesmo. Não existe um mundo que se possa
dizer o mundo, a não ser por efeito de hierarquização.

Pensar e falar do mundo é tentar impingir um só mundo. Pois os


mundos são muitos. Um só mundo é uma invenção do broadcasting.
Broadcasting – um para muitos – é, obviamente, centralização, quer
dizer, hierarquia. Tirem as TVs e as rádios, os jornais e revistas, as
agências de notícias, talvez o cinema e não sobrará mais um só
mundo. Sem o broadcasting já teremos múltiplos mundos: cada qual
configurado pelas nossas conexões. Com a internet esses mundos se
multiplicam velozmente, mas não por difusão e sim por interconexão.
Desse ponto de vista, interconnected networks (internet) é, na
verdade, interconnected worlds. E fluzz é o vento que varre esses
inumeráveis interworlds.

No mundo hierárquico, não há interface para fluzz. Mas quando fluzz


for do regime dos múltiplos mundos interconectados, esses mundos
serão os novos Highly Connected Worlds do terceiro milênio.

Pense em um mundo sem TV e rádio, sem jornais e revistas, sem agências


de notícias, sem editoras e distribuidoras de livros de domínio privado e
sem cinema. Não, não estamos propondo uma volta à Idade Média.
Teremos telefone, Internet, redes P2P, redes Mesh e qualquer mídia
(sobretudo interativa) não baseada no padrão um-para-muitos (incluído
spaming). Neste caso não haverá mais um (mesmo) mundo para todos.
Sem o broadcasting esvai-se a ilusão de um mesmo mundo para todos em
termos sociais. Ficará claro que cada um tem o seu (próprio) mundo (em
termos sociais). Mas ninguém estará aprisionado no seu mundo, pois
poderá se conectar com outros mundos (os mundos das outras pessoas).
Teremos uma rede de mundos: muitos mundos interconectados. Quanto
maior a interatividade de uma rede de mundos, mais-fluzz ele – o mundo
social configurado por essa rede – será.

66
Mas... atenção! Quanto mais-fluzz for um mundo, menor (não em termos
geográficos ou populacionais e sim em termos sociais) ele será. Mundos
grandes, nesse sentido, quer dizer, com altos graus de separação, são
mundos menos-fluzz. A interatividade reduz o tamanho do mundo e isso
não é uma função do número de seus elementos (pessoas e aglomerados
de pessoas) e sim dos seus graus de distribuição e conectividade.

Onde fluzz está mais “ativo”, os mundos se contraem. Há um


amassamento. Small-world networks são efeitos de crunching (um
neologismo cunhado a partir da palavra crunch).

Não havendo um mundo isolado dos demais, o tamanho do mundo de cada


um será função do “vento” (fluzz) que varre seus interworlds. Os
interworlds serão inumeráveis; portanto, a rigor, o mundo de cada um é,
potencialmente, uma série de inumeráveis mundos em interação. Sim, tudo
depende da interatividade. O que significa dizer que não depende da
capacidade ou do esforço de cada um de se fazer ver por muitos. Assim,
nos novos Highly Connected Worlds, gente famosa (poderosa, rica, super
certificada ou titulada, admirada por qualquer outra qualidade intrínseca
massivamente reconhecida ou atribuída externamente à interação), tende a
não ser mais tão relevante. Com isso vai também por água abaixo essa
desastrosa idéia de sucesso, que predominou nos séculos passados,
baseada na capacidade de alguém de se destacar dos demais.

Impelido por fluzz, ninguém se deixará desvalorizar facilmente no circo


global montado para selecionar (e apresentar apenas) algumas atrações e
para polarizar sobre elas a atenção dos demais. Cada qual pode ser a
atração no seu próprio mundo e nos mundos conectados a esse mundo.
Uma aldeia global montada para subordinar os vários mundos a apenas
alguns, dando a impressão de que só estes últimos existem, está com os
dias contados. Teremos inumeráveis aldeias globais.

67
Highly Connected Worlds

Seu mundo-fluzz é sua timeline

O estilhaçamento do mundo único é uma mudança de época jamais


presenciada pelas chamadas civilizações (patriarcais, guerreiras, quer dizer,
hierárquicas). Os padrões de vida e convivência social estão mudando. Isso
significa que você também está mudando. Porque estão mudando seus
relacionamentos recorrentes: sim, seu mundo-fluzz é sua timeline. Não, por
certo, a timeline do Twitter, mas aquela que rola no espaço-tempo dos
fluxos e que não pode ser captada por quaisquer das ferramentas digitais p-
based disponíveis.

Essa mudança é a rede. À medida que aumenta a interatividade da rede na


qual você está imerso, fenômenos surpreendentes começam a acontecer.
Com a queda brusca dos graus de separação, chegará rapidamente o dia
em que você chamará um taxi em uma cidade de dez milhões de habitantes
e o motorista dirá: “O senhor não é o Steven Strogatz, que investiga redes
sociais e que descobriu que o mundo está ficando pequeno mais
rapidamente do que imaginávamos?”.

Isso, é claro, se você for de fato o Steven Strogatz. Mas, de certo modo, se
você é o motorista que se relaciona (ou que se relaciona com quem se
relaciona, ou que se relaciona com quem se relaciona com quem se
relaciona) com Steven Strogatz, sobretudo se ele (ou quem se relaciona
com ele) está na sua timeline e você (ou quem se relaciona com você) na
dele, você será um pouco Steven Strogatz (na medida inversa do seu grau
de separação dele): eis o ponto! Tal mudança vai muito além do que
imaginávamos porque você está fazendo parte de um organismo capaz de
inteligência e, quem sabe, de outros atributos ou qualidades que sequer
conseguimos imaginar.

Os Highly Connected Worlds tendem a ser organismos humanos coletivos.


Atenção: superorganismos humanos, não organismos super-humanos! Eles
são os campos para o nascimento do ‘indivíduo social’. Steven Strogatz fará
parte de você e você fará parte dele porque ambos farão parte de um
mesmo organismo, não em termos metafóricos, como quando usávamos a
palavra ‘organismo’ para designar o que imaginávamos que fosse ‘a
sociedade’. Não. Trata-se de um organismo mesmo. E humano.

68
O indivíduo social está nascendo agora. Mas ele já estava presente, como
prefiguração, desde o início, quando se constituíram os primeiros seres
humanos. Para lembrar a bela Canción Tonta de García Lorca (1924), nós,
os humanos, só o éramos enquanto estávamos “bordados en la almohada”
da rede-mãe (1).

O indivíduo-social não pôde se consumar como humanidade enquanto algo


estava impedindo: a escassez de conexões, uma escassez artificialmente
introduzida por modos de regulação não-pluriárquicos. Fluzz não podia
passar. Mas fluzz é empowerfulness. Se fluzz não pode soprar o corpo não
se vivifica.

Essa mudança, todavia, é diferente – e única – em cada mundo. Não, não é


sempre a mesma coisa. Depende de “onde” (ou como) o fluxo (o)corre.
Manoel de Barros (1993) inventou “que um rio que flui entre dois jacintos
carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos” (2). Pois é. No
limite, você fará seu mundo. Quer dizer, você (ou você e sua timeline – o
que tende a ser a mesma coisa) será o mundo e os mundos serão tantos
quanto as identidades coletivas que forem usinadas por fluzz.

Isso significa que os Highly Connected Worlds tendem a ser inumeráveis,


assim como serão inumeráveis os interworlds, miríades de interfaces
conectando miríades de mundos e “explodindo como uma ramada de
neurônios”, para lembrar um artigo seminal de Pierre Lèvy (1998) (3).

Em termos tecnológico-sociais, o grande desafio hoje, ao contrário do que


reza a metafísica que esse Mark Zuckerberg – o chefe do Facebook – quer
nos empulhar – para torná-la, a sua plataforma proprietária única, a própria
rede e não mais uma ferramenta –, é construir os inumeráveis interworlds
que serão as novas internets.

O Facebook tem mais de 500 milhões de usuários? É ruim. Seria melhor ter
500 mil plataformas com mil usuários cada uma, conversando entre si...
Tudo que não precisamos agora é reeditar a ilusão hierárquica de um
mundo único. Uma sociedade em rede é uma configuração de miríades de
Highly Connected Worlds interagentes. Essa é a única mudança
verdadeiramente sustentável: tudo que é sustentável tem o padrão de rede
porque rede é redundância de processos e abundância (diversidade) de
caminhos.

A mudança-que-é-a-rede é fractal, não unitária. A mudança não é a


emergência de muitos mundos locais (que, de resto, sempre existiram),
mas os múltiplos caminhos (que não puderam existir nas civilizações

69
hierárquicas) entre o local e o global. E ela não se consumará sem essas
“zonas de transição” que são interworlds.

70
Interworlds

A nova internet – interconnected networks – são os incontáveis


interconnected worlds

Começa assim: não uma Internet: miríades de internets. Bem, agora já


está melhorando. Mas, como? Não estamos correndo o risco de perder
todas as referências – e, com isso, o sentido – com esse estilhaçamento?

A preocupação com a fragmentação é uma herança típica de um mundo


pouco-fluzz. A totalidade não está dada, tem que ser consumada. E serão
sempre totalidades, no plural. Eins und Alles.

Que se dane se você não terá mais uma grande narrativa, um esquema
explicativo geral. Não havendo um mundo (único), para que precisamos
disso? Por certo, você fica incomodado com a fragmentação desses
inumeráveis mundos que se fazem e liquefazem. Mas esse seu mal-estar
baumaniano (de Zygmunt Bauman) é pura falta de Pó de Flu (aquele “Floo
Powder” inventado por Ignatia Wildsmith, da série Harry Potter de J. K.
Rowling, usado para conexão à Rede do Flu); ou seja, é falta de interworlds.
Trata-se de referenciar o bem-estar na (fluição da) relação, não na (solidez
da) coisa.

Ainda existem vários obstáculos à uma comunicação, por assim dizer,


“isotropicamente distribuída” (capaz de manter as mesmas propriedades em
todas as direções): a centralização da rede em servidores, provedores,
roteadores, cabos, satélites, torres, mainframes transceptores de ondas
eletromagnéticas, geradores de energia, resfriadores, protocolos de
reconhecimento, trânsito e integração de mensagens; a variedade de
línguas e a falta de tradutores-transdutores universais móveis que operem
em tempo real; a falta de programas de busca inteligente e de criação de
ambientes favoráveis à emergência de conteúdo novo por combinação não-
humana (polinização mútua) de mensagens; a separação entre os
dispositivos tecnológicos e o corpo humano; e a insuficiente interação entre
pessoas e não-pessoas (desde a comunicação com outros seres sencientes
ou coletivamente inteligentes, animados e inanimados, até a parceria
simbiótica com uma variedade de seres vivos).

Para começar: fluzz é obstruído pela centralização das comunicações (pela


difusão centralizada um-para-muitos chamada broadcasting), mas também
pela Internet descentralizada. O grande desafio hoje é construir os

71
interworlds que são as novas internets. Trata-se de um desafio ao mesmo
tempo social e tecnológico.

Rolou por décadas uma discussão fora de lugar sobre as ameaças da


tecnologia. Muitas pessoas tinham medo de que a tecnologia fosse nos
dominar, nos afastar das outras pessoas, prejudicar nossa saúde física ou
mental ou, até mesmo, inviabilizar a vida humana no planeta.

Mas, em termos sociais, não há nenhum problema com a tecnologia. O


problema é com a tecnologia que introduz artificialmente escassez
centralizando a rede social e ensejando o controle.

Por certo, os sistemas de dominação não teriam podido se manter sem o


controle dos insumos básicos: a terra, a água, os alimentos e as fontes de
energia. Mas a escassez foi introduzida por um tipo determinado de
tecnologia urbana, hidráulica e agrícola: sem essa escassez (programada,
em certa medida) de recursos sobrevivenciais, esses sistemas de
dominação não teriam podido se reproduzir.

Assim, durante milênios fomos submetidos a tecnologias que viabilizavam o


controle. Por exemplo, o modelo hidráulico redistribuidor de água em canais
de irrigação, construídos e controlados pela tecnologia faraônica, criava o
perigo ao adensar povoamentos em locais de risco, em uma proporção que
ia muito além daquela exercida pela natural atração das terras mais férteis.
O objetivo era o controle. Se o povo não vivesse sob a ameaça (do perigo),
como poderia ser recompensado pela sua aquiescência, sendo salvo do
perigo? E como poderia ser castigado por sua desobediência à ordem, sendo
abandonado ao perigo? (4)

Agora precisamos de tecnologia para viabilizar e acelerar a distribuição da


rede social. Quanto menor a possibilidade de comando-e-controle, mais-
fluzz será essa tecnologia. Isso vale para tudo: energia e matéria, átomos e
bits. E vale também para a comunicação.

Assim como fluzz é obstruído pela centralização das comunicações e pela


Internet descentralizada, ele também é obstruído por todas as separações:
desde aquelas impostas pela barreira da língua (que separa pessoas que
falam idiomas diferentes), passando pela busca burra (que separa quem
procura de quem gera conhecimento), pelos dispositivos tecnológicos
interativos separados do corpo humano e, inclusive, no limite, pela
separação entre pessoas e não-pessoas.

72
A barreira da língua é uma das principais remanescências do mundo único
hierárquico. É curioso que, mesmo tendo sido imposto um mundo único,
persistam várias línguas (cerca de 7 mil idiomas). Isso porque o mundo
único não é monocentralizado e sim multicentralizado (ou descentralizado)
em algumas identidades imaginárias (que chamamos de nações, povos ou
culturas sócio-territoriais, dominados hoje por menos de duas centenas de
Estados).

A metáfora bíblica sobre isso é esclarecedora. Na mesma Babel – não em


várias – as pessoas não podiam se comunicar umas com as outras. Não era
um problema de saber interpretar um código, de falar a mesma língua. O
que houve em Babel foi a impossibilidade de um conversar, não porque as
pessoas falassem vários idiomas e sim porque não conseguiam coordenar
mutuamente suas atitudes (o linguagear, na expressão de Maturana, que
pressupõe e exige cooperação) e, desse modo, não se entendiam (sem um
acoplamento estrutural não pode haver comunicação). É a pirâmide (a
topologia centralizada da rede social babeliana) que impede esse (assim
como qualquer outro) conversar. Tal problema só tem solução social, não
tecnológica.

A solução para Babel é a rede social distribuída. No entanto, o problema da


remanescência de várias línguas, entendidas como idiomas, como códigos
que podem ser traduzidos, tem solução tecnológica. Dispositivos móveis
com programas de tradução simultânea, capazes de receber e emitir dados
e voz, são partes (por aproximação, assimilação ou simbiose) dessas
interfaces complexas que chamamos de interworlds.

A falta de programas i-based de navegação inteligente, da busca


(semântica) à polinização (criativa, ensejadora de múltiplos significados),
também é um obstáculo à interação entre os mundos. Mas tal desafio pode
ser superado caso não se insista em recriar monstruosos sistemas de
gerenciamento do conhecimento (top down) e em arquivar significados
únicos de modo centralizado (como faz, por exemplo, a Wikipedia).

Repetindo: toda tecnologia é bem-vinda, inclusive aquela que modifica os


corpos humanos, desde que possibilite mais distribuição. Há muito tempo
estamos modificando nossos corpos: tomamos inibidores seletivos da
recaptação da serotonina (e. g., fluoxetina) e da fosfodiesterase-5 (e. g.,
sildenafila), injetamos insulina transgênica, fazemos implantes (dentários,
auditivos e inclusive de chips capazes de devolver a visão), inserimos
nanopartículas para corrigir rugas na pele, usamos próteses de todo tipo e
instalamos órgãos ou partes de órgãos internos artificiais. Por que não

73
poderíamos inserir em nossos corpos outros dispositivos capazes de ampliar
e acelerar a comunicação?

Pode-se argumentar que não temos como saber se, no longo prazo, tudo
isso prejudicará a saúde. Mas também não temos como atestar isso em
relação à maioria dos medicamentos que tomamos ou das intervenções
médicas que realizamos. Todas essas substâncias e procedimentos, em
certa medida, provocam doenças ou desencadeiam novos padrões de saúde
ou ensejam novos reequilíbrios saúde-doença. Sim, saúde não é ausência
de doenças, mas a estabilidade relativa de um sistema que, se estiver vivo,
estará necessariamente afastado do equilíbrio, convivendo, portanto, com
alterações que convencionamos chamar de doenças (e que só são
chamadas assim do ponto de vista de um padrão de saúde, baseado em
indicadores cujos parâmetros de normalidade são variáveis com época,
lugar, cultura, conhecimento). Só seres inanimados estão livres de doenças
(ainda que as infestações de vírus em seres cibernéticos também possam
vir, coerentemente, a ser encaradas como doenças).

Por outro lado, do ponto de vista biológico, já existe a parceria simbiótica


do corpo humano com outros seres vivos. Somos, na verdade, colônias de
bactérias, comunidades de microorganismos. Somos os planetas onde vive
boa parte dos seres vivos. Tal parceria está presente no interior de nossa
unidade vital: a célula nucleada é o resultado da associação com um
procarionte que passou a compor o novo organismo por endossimbiose.

Mas todas as tecnologias que podem apoiar, vamos dizer assim, o


surgimento das múltiplas internets distribuídas, não são, elas próprias, os
interworlds que conectam os mundos em rede aqui chamados de Highly
Connected Worlds. Esses interworlds são sociais – fundamentalmente, são
redes sociais – não dispositivos tecnológicos. Ou seja, no limite, os
interworlds são pessoas.

74
3
Pessoa já é rede

Toda pessoa é uma pequena sociedade.


Novalis em Pólen (1798)

Não passamos de remoinhos num rio de água sempre a correr.


Não somos material que subsista,
mas padrões que se perpetuam a si próprios.
Norbert Wiener em Cibernética e sociedade (1950)

Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas.


(“Umuntu ngumuntu ngabantu”: Máxima Zulu)

Todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas.


http://twitter.com/augustodefranco (08/07/10)

Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos.
John Guare em "Six degrees of separation"
Peça de teatro na Broadway (1990)

75
Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio, vida
humana e convivência social se aproximarão a ponto de revelar os
“tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente
humanos. Todos compreenderemos a nossa natureza de “gholas
sociais”.

Os tanques onde somos formados como pessoas são clusters,


“regiões” da rede social a que estamos mais imediatamente
conectados.

Um tipo especial de ghola: não um clone de um indivíduo, mas um


“clone” de uma configuração de pessoas. Toda pessoa, como dizia
Novalis (1798), é uma pequena sociedade; quer dizer, pessoa já é
rede! Pessoa é um ente cultural que replica uma configuração. É um
ghola social.

Em um mundo fracamente conectado, os caminhos são individuais. Cada


pessoa vive sua vida, faz suas escolhas, estabelece suas rotinas e toma
suas iniciativas sob a influência das demais, é claro, mas como se fosse
uma unidade separada. Convive, por certo, com as demais, mas essa
convivência é vivida como distinta daquela outra vida, que seria a sua
própria vida. Pode viver a ilusão de que vive sua vida, fazendo suas
escolhas, estabelecendo suas rotinas e tomando suas iniciativas de modo
autônomo. Pode alimentar a crença de que já surgiu no mundo como
pessoa, quer em virtude de uma instância super-humana que assim a tenha
criado, quer por força da genética (o “sangue”) e das experiências
particulares pelas quais passou logo após seu nascimento (o “berço”).

Em mundos altamente conectados tende a se esvair essa separação entre


vida humana e convivência social. Nossas escolhas racionais raramente são
nossas: reproduzimos padrões, imitamos comportamentos e cooperamos
com outras pessoas sem ter feito individualmente e conscientemente tais
escolhas. Adotamos princípios, escolhemos carreiras, compramos produtos

76
e priorizamos atividades em função do que fazem as pessoas que se
relacionam conosco ou que estão ligadas a nós em algum grau próximo de
separação, muitas vezes pessoas que nem conhecemos (como os amigos
dos amigos de nossos amigos).

Vivemos então, cada vez mais, a vida do nosso mundo constituído pela
convivência e não apenas a nossa vida individual. Isso ocorre na razão
direta da interatividade do mundo em que estamos imersos. O fluxo da
nossa timeline pode chegar a atingir tal intensidade ou densidade que, no
limite, não podemos mais afirmar inequivocamente que há um eu que
deseja, julga, raciocina, escolhe e almeja de forma autônoma em relação à
nuvem de conexões que nos envolve. Ao mesmo tempo, sentimos e
sabemos que continuamos sendo uma pessoa, única, totalmente
diferenciada. Mas ao viver a nossa vida (a vida humana única dessa pessoa
que somos), vivemos, na verdade, a convivência (social, também única,
desse mundo construído pelo emaranhado de conexões onde estamos
fluindo e que nos constitui como seres propriamente humanos).

O social passa ser o modo de ser humano nas redes com alta tramatura dos
novos mundos-fluzz. Em outras palavras, passamos a constituir um
organismo humano “maior” do que nós. Passamos a compartilhar muitas
vidas, com tudo o que isso compreende: memórias, sonhos, reflexões de
multidões de pessoas, que ficam distribuídas por todo esse superorganismo
humano. Podemos, como nunca antes, ter acesso imediato a um conjunto
enorme de informações e, muito mais do que isso, podemos gerar
conhecimentos novos com uma velocidade espantosa e com uma
inteligência tipicamente humana (não de máquinas, computadores ou
alienígenas), porém assustadoramente “superior” a que experimentamos
em todos os milênios pretéritos.

E tudo isso pode ocorrer sem a necessidade de termos consciência


(individual) do que está se passando. Ao viver a vida da rede, apenas
vivemos a convivência: não precisamos mais tentar capturá-la e introjetá-
la, circunscrevê-la ou mandalizá-la para conferir-lhe a condição de
totalidade, erigindo um grande poder interior de confirmação para nos
completar da falta dos outros e nos orientar nos relacionamentos com eles.
Tal necessidade havia enquanto podia haver a ilusão da existência do
indivíduo separado de outros indivíduos; ou quando um (ainda) não era
muitos. Toda consciência é consciência da separação, inclusive a
consciência da unidade, da totalidade, ou da unidade na totalidade, é uma
resposta à separação. No abismo em que estamos despencando ao entrar
em fluzz, não há propriamente isso que chamávamos de consciência.

77
Como epígrafe de um dos capítulos de "Os filhos de Duna", o escritor de
ficção Frank Herbert (1976) colocou na boca de Harq al-Ada, cronista do
Jihad Butleriano (a guerra ludista contra as máquinas inteligentes) (1):

"O pressuposto de que todo um sistema pode ser levado a funcionar


melhor através da abordagem de seus elementos conscientes revela
uma perigosa ignorância. Essa tem sido freqüentemente a abordagem
ignorante daqueles que chamam a si mesmos de cientistas e
tecnólogos".

78
Gholas sociais

Um ghola não é um borg

No universo ficcional de Duna, obra monumental de Frank Herbert (1965-


1985), os tanques axlotl são mulheres tleilaxu que sofreram um coma
cerebral químico induzido, a par de outras intervenções genéticas, para
servir como usinas de gholas (espécies de clones de uma pessoa morta a
partir de seu material genético). Os Tleilaxu (ou Bene Tleilax) são uma
sociedade fechada de religiosos muito avançados tecnologicamente.

No entanto, os gholas são réplicas que não manifestam automaticamente as


qualidades dos originais. Para tanto eles devem passar por um processo
longo de aprendizagem e devem viver certas experiências (sobretudo de
relacionamento íntimo com seus treinadores) para despertar suas
habilidades.

A leitura das diversas camadas da escritura de Herbert (literal, alegórica ou


metafórica, simbólica etc.) permite um paralelo (meramente evocativo e
para efeitos heurísticos) entre o processo biológico-cultural de clonagem e
aprendizagem de um ghola e o processo social de geração de uma pessoa
(que seria, então, uma espécie de “ghola social”).

Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos


seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres que já
foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento. De sorte
que não somos humanos apenas por força da genética, da reprodução ou da
hereditariedade biológica (que replicamos como indivíduos da espécie
homo) e sim em virtude da rede social em que com-vivemos, cuja
configuração particular replicamos como pessoas, ou seja, “gholas sociais”.
Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição a partir
do relacionamento com seres humanizados. Somos (enquanto entes
culturais) filhos da rede social. E não podemos ser humanos sem esse tipo
de relacionamento. Como reza a máxima Zulu, “uma pessoa é uma pessoa
através de outras pessoas”.

Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é
tão importante dizer isso?

No universo ficcional de Star Trek os Borgs são uma “raça” alienígena de


ciborgues, humanóides de várias espécies assimilados e melhorados com a

79
injeção de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que alteram
sua anatomia e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas habilidades
mentais e físicas.

Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras civilizações,


aos quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas variações, a
seguinte litania:

“Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou.


Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa.
Resistir é inútil”.

Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de
distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos
substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura
fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico
absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível sem
o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a
Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O
objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular
sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é
“aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”.

Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo modo


qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização
centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg.

Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não
é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no
dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a
seguinte:

Nós somos gholas sociais. Novas possibilidades de existência, até


agora desconhecidas de todos nós, estão sendo abertas. Nossas
qualidades biológico-culturais estão se combinando em novos padrões
sociais. É só preciso deixar-ir.

A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras


configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas no
espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de
humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são
feitas de todas as outras pessoas.

80
Pessoas são portas

“Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos”

Pessoas são portas. Abrem caminhos. Na verdade, são caminhos. Atalhos


entre clusters. Pontes. É sempre por meio de uma pessoa que podemos
interagir com quem está em outros mundos.

Isso significa que os interworlds são realmente as pessoas, não um novo


ambiente tecnológico, mas um novo ambiente social com novos recursos
tecnológicos. Esta é uma típica compreensão-fluzz: pessoa não é o
individual e sim o social. Surpreendentemente, em mundos altamente
conectados as novas internets são... as pessoas!

Não, não é somente uma imagem poética. É uma nova compreensão das
potencialidades humanas. Pessoas interagindo são seres humanos. A partir
de certo grau de interatividade, são organismos sociais, quer dizer,
superorganismos humanos.

Quando a tecnologia fornecer os meios para manter as pessoas


continuamente conectadas e para acelerar a interação, ela o fará a partir
dessa possibilidade social. Aliás, foi assim que nasceu a velha Internet:
como percebeu Castells, sua estrutura interativa só foi projetada assim
porque as pessoas que a projetaram a projetaram assim (2). E as pessoas
que projetaram a Internet só a projetaram assim – com possibilidade de
interatividade – porque havia tal possibilidade social. Da mesma forma
estão nascendo as novas internets: seja com o aperfeiçoamento dos
dispositivos móveis interativos, seja com implantes bio-eletrônicos ou
cibernéticos, enquanto a topologia da rede for mais distribuída do que
centralizada não produziremos borgs, mas gholas-sociais.

Há sempre um risco. O risco de ser borg. A fronteira entre um borg e um


ghola-social é móvel, nebulosa e quase sempre invisível. A hierarquia
produz borgs. As redes humanas distribuídas geram gholas-sociais. Mas a
maioria dos padrões de interação se configura no intervalo entre
centralização máxima e distribuição máxima.

Evitar o risco é refugiar-se na vida individual, escolhendo racionalmente as


interações, sendo seletivo nos relacionamentos, fechando-se ao outro. Esse
é o fracasso de todas as chamadas “pessoas de sucesso”. Fecham-se à
interação com o outro-imprevisível e, ao fazer isso, a despeito de serem

81
muito conhecidas, obstruem conexões com a nuvem que as envolvem,
desatalham clusters (ao se recusarem a servir como pontes), excluem
outras pessoas do seu espaço de vida e simultaneamente se excluem de
outros mundos, isolando-se do superorganismo humano e deixando de
contar com uma parte (justamente aquela parte inusitada, que os
marqueteiros, os políticos profissionais e os psicólogos sociais tanto
procuram e não conseguem encontrar) das imensas potencialidades do
social.

São raríssimas as pessoas de sucesso que se deixam abordar por qualquer


um do povo. Seus endereços, e-mails e telefones são mantidos em sigilo.
Seus ambientes de trabalho são protegidos por porteiros, agentes de
segurança, secretários e assessores. Seus sites e blogs são fechados à
comentários ou mediados. Sua participação nas mídias sociais é sempre
para usá-las como broadcast, para fazer relações públicas e propaganda de
si-mesmas (para ficarem mais famosas e auferirem os benefícios
econômicos, sociais e políticos conferidos diferencialmente a quem alcançou
tal condição).

Isso acaba se manifestando no que acreditam que seja sua vida pessoal,
como indivíduos, supostamente autônomos, tão importantes que não
podem ficar vulneráveis aos paparazzi do relacionamento. Como
conseqüência começam a desenvolver aquela sociopatia mais conhecida
pelo nome de fama. Na verdade ficam doentes por defict de interatividade.

Quem não quer ser porta, não acha caminhos. O sucesso é o melhor
caminho para perder caminhos. A perda de caminhos é também uma
medida de não-rede, ou seja, uma expressão do poder. A contraparte de
querer ser muito importante é a falta de importância para a rede (e não
importa para nada se essas pessoas de sucesso têm milhares ou milhões de
followers nas mídias sociais mais freqüentadas ou se seu blog tem milhares
ou milhões de pageviews).

E o risco? Bem, nos Highly Connected Worlds a pessoa é compelida a correr


o risco, a fluir com o curso. Não pode se proteger, se sedentarizar em seu
mundo, se agarrar às coisas para tentar permanecer como é ou a ser mais-
do-mesmo (do que já é) em vez de surfar nos interworlds, navegar, ser
nômade, fluzz.

“Se não posso achar o caminho farei um”, escreveu Sêneca (3). Nos novos
mundos-fluzz, seria o caso de dizer: como não há caminho, serei um (uma
porta para outros mundos).

82
4
Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos

Os deuses eram ventos.


Arturjotaef em Numância (2010)

Ama-gi é uma palavra suméria para expressar alforria...


Traduzida literalmente significa “retorno à mãe”
- na medida em que os ex-escravos
eram “devolvidos às suas mães (i. e., libertados)”.
Acredita-se ser a primeira expressão escrita do conceito de liberdade.
Wikipedia (2010)

Vulcanos têm “sete sentidos”,


que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos humanos
e um sexto sentido animal,
que é “a habilidade de sentir a presença
de distúrbio em campos magnéticos”.
Walter Robinson (Ritoku, pessoa-zen) citando Gene Roddemberry (1979)
em Morte e Renascimento de uma Mente Vulcana (2008)

83
Não há nada a fazer. Deixem fluzz soprar para ver o que acontece.
(Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de
dizer, pois fluzz já é o sopro).

Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz
soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para
que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que
nação, para que Estado?

Oh! É claro que todas essas instituições perdurarão: como


remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se
prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões,
escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será,
afinal, o que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores
que “rodam” na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo
dos fluxos.

O cordobés Lucius Annaeus Sêneca (c. 3 a. E. C. – 65) escreveu que “se um


homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável”
(1). Mas é o contrário. Pouco importa onde está Ítaca. É o vento, soprando
livre sobre a superfície das águas, que constitui o não-caminho (ou
desconstitui todos os caminhos).

Como cantou Konstantinos Kaváfis, “se partires um dia rumo a Ítaca, faz
votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras... Melhor muitos
anos levares de jornada e fundeares na ilha, velho enfim, rico de quanto
ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela
viagem deu-te Ítaca... Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e
agora sabes o que significam Ítacas” (2).

Manobrando o leme para seguir uma rota já traçada não há como viver em
processo de Ítaca. É preciso deixar-se ao sabor do vento.

84
Quando o sopro não percorre livremente os mundos é porque houve
direcionamento de fluxo. Pré-cursos foram estabelecidos. Velas foram
orientadas para capturar e condicionar o vento. Em geral isso é feito por
essas intervenções antrópicas resultantes do congelamento de fluxos que
chamamos de instituições (hierárquicas): escolas, ensino, religiões, igrejas,
corporações, partidos, nações, Estados. São artifícios para exercer a Força,
ou seja, para impor caminhos.

A pergunta é: quando fluzz soprar, para que forçar? Por isso se diz: não há
nada a fazer (quando fluzz soprar). Não há nada a fazer significa que é
preciso deixar-ir. Ter um comportamento fluzz é deixar-ir. Fluzz não é a
força. Fluzz é o curso.

Impor caminhos é deformar um tecido, perturbar um campo. Se pessoas


interagindo com pessoas são redes, o tecido deformado é sempre uma rede
que se tornou mais centralizada ou menos distribuída. Se o campo social é
composto pelo emaranhado de conexões, a perturbação é sempre um
desemaranhar, de sorte que alguns mundos perderão contato com outros;
ou melhor, deixarão de estar sujeitos às mesmas interações. Se isso
acontece é porque interworlds foram aniquilados.

Quando forçamos um caminho exterminamos mundos (para nós, é claro –


mas o que dá no mesmo, se não podemos mais interagir com eles).
Perdemos então as oportunidades – de que fala o belo poema de Kaváfis –
de “entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e
belas mercancias adquirir” ou de peregrinar naquelas “muitas cidades do
Egito... para aprender” (3).

85
Deformando a rede-mãe

Na ausência do poder as redes tendem a permanecer distribuídas

A investigação das redes sociais leva-nos a uma nova hipótese


antropológica: uma outra visão da natureza humana (seja lá o que isso for),
que se afasta do que foi concebido como Homo economicus, para se
aproximar – como sugeriram Christakis e Fowler – do que eles chamaram
de Homo dictyous (do latim homo, “humano”, e do grego dicty, “rede”) (4).

Indivíduos biológicos da espécie humana se tornam Homo dictyous (seres


humanos), quando interagem. Mas quando interagem constituem rede.
Logo, sem essa rede não podemos ser humanos.

Em outras palavras: se, como pessoas, já somos rede – do contrário não


poderia haver a realidade biológico-cultural que chamamos de ‘ser humano’
– então, para nós, humanos, no princípio era a rede. Isso significa que
somos “filhos” da rede. Logo, podemos dizer que a rede é a nossa “mãe”.
Ou seja, que existe uma rede-mãe.

A interpretação que revela tal sentido é alegórica ou metafórica. Mas a


metáfora da rede-mãe pode revelar mais coisas do que imaginamos. Ela
sugere que, deixados a si mesmos, os humanos farão (ou melhor, serão)
redes em vez de se engalfinharem em uma guerra de todos contra todos
transformando sua vida em uma realidade “solitária, miserável, sórdida,
brutal e curta”, como queria o agourento Hobbes (1651) (5).

Os pensadores e os economistas que cunharam e trabalharam com a


concepção do homo economicus simplesmente partiram desse fundamento
hobbesiano para reificar a existência da abstração chamada indivíduo.
Trata-se de uma visão da natureza humana – na verdade quase uma tara –
baseada no egoísmo, para a qual, como escreveu Hobbes, na ausência de
“um poder que domestique os homens... não há sociedade; e o que é pior
do que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta” (6).
Vivendo nesse “mundo cão brutal em que a preocupação com o bem-estar
dos outros não existe” (7) existiria, entretanto, paradoxalmente, o indivíduo
enquanto unidade isolada dos outros indivíduos. Evidentemente, diante de
tantos atos gratuitos de colaboração que praticamos e presenciamos no dia-
a-dia, essa construção intelectual só pode se revelar uma perversão. Daí a
tara individualista, tão freqüente e inadequadamente denominada de
liberalismo (econômico).

86
Não há nenhuma evidência científica de que os seres humanos
abandonados à sua própria sorte (como se pudesse haver outra sorte...)
poriam fim à sua convivência. As evidências apontam justamente o
contrário. Não havendo motivo para guerrear, as pessoas – seguindo o
fluxo da vida – viveriam sua convivência – ou seja, viveriam em rede. Como
disse Lynn Margulis (1986): “A vida não se apossa do globo pelo combate,
mas sim pela formação de redes” (8).

A alegação de Hobbes de que é o poder que evita a destruição coletiva deve


ser invertida. Quando há poder, aí sim, é porque houve motivo para
guerrear e a convivência fica ameaçada.

Na ausência de um poder que as domestique (para insistir na expressão de


Hobbes), pessoas interagindo com pessoas tendem a configurar redes
distribuídas em pequenos grupos, só não o fazendo, em grupos maiores,
em virtude da falta de condições biológicas ou tecnológicas de interatividade
ampliada e à distância. Não haveria motivo para obstruírem fluxos,
separarem clusters ou excluírem nodos dessas redes (que é, exatamente, o
que faz o poder), a menos que queiramos lançar mão de uma hipótese
religiosa para vaticinar que o homem é inerentemente competitivo (ou em
parte competitivo, por sua própria natureza – seja lá o que isso for). Tal
hipótese é absurda neste contexto porque pressupõe que possam existir
seres humanos (entes biológico-culturais) como entes (biológicos) isolados.

Mas não existe no ser humano nenhum atributo cultural (comportamental)


que se possa dizer inerente. A “natureza” do Homo dictyous – se é que se
pode afirmar que exista uma ‘natureza da cultura’ – é relacional.

Todo poder acarreta anisotropias no espaço-tempo dos fluxos


(verticalizando a rede). E é por isso que o poder se define como uma
medida de não-rede (em termos de rede distribuída) (9). Na ausência do
poder (centralização) a rede tende a permanecer distribuída. Podemos dizer
que o bios (Basic Input-Output System) pré-gravado lá no firmware da
rede-mãe não é um programa verticalizador (centralizador) pelo simples
motivo de que não há qualquer razão para sê-lo. Nesse caso, o que precisa
ser explicado é o processo de centralização, não o estado de distribuição.
São os obstáculos colocados à livre convivência que precisam ser
justificados, não a convivência.

Por certo a rede-mãe não permanece com topologia distribuída na presença


de programas verticalizadores. Aqui é um daqueles casos – mais comuns do
que se pensa – em que o software modifica o hardware (como quando

87
aprendemos uma língua e alteramos para tanto nossas conexões
neuronais).

Programas verticalizadores deformam a rede-mãe, sejam programas


meméticos (como os que chamamos de deuses – quando lhes atribuímos
atributos super-humanos), sejam programas organizacionais (que rodam
comandos de ordem, hierarquia, disciplina e obediência – como escolas,
igrejas, partidos, corporações, Estados e outras instituições assemelhadas
com todos os seus aparatos).

No interior e no entorno dessas organizações hierárquicas o campo social é


profundamente perturbado. O espaço-tempo dos fluxos é deformado
obrigando as fluições a percorrerem caminhos estranhos. A interação é
disciplinada sem qualquer outra razão que a de manter tais estruturas
monstruosas funcionando e se reproduzindo. A imagem da Fig. 2 é
aterrorizante. Lembra à primeira vista aquelas naves de alienígenas
predadores do filme de Roland Emmerich (1996) Independence Day. Talvez
não por acaso: organizações hierárquicas de seres humanos geram seres
não-humanos. Mas se trata apenas de uma outra maneira de representar o
diagrama (B) de Paul Baran (1964) já exposto aqui na Fig. 1.

Fig. 2 | Organograma de uma organização hierárquica

Se o fluxo deixar de ser aprisionado, orientado, conduzido, compelido a


escorrer pelas valetas cavadas para pré-traçar caminhos (eliminando outros

88
caminhos), a rede-mãe volta à sua topologia distribuída. É curioso que a
primeira expressão escrita do conceito de liberdade – a palavra suméria
Ama-gi – signifique literalmente “retorno à mãe”.

Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola?
Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz
soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para
que nação, para que Estado?

Um sinal de que fluzz está soprando é que tais instituições estão se


misturando e se confundindo, quer dizer, está ficando cada vez mais claro
que elas são aspectos das mesmas deformações ou do mesmo tronco de
programas verticalizadores que “rodam” na rede social provocando
anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.

É assim que as perturbações no campo social que geram religiões revelam-


se as mesmas que geram nações. De sorte que, nos múltiplos mundos
altamente conectados que estão emergindo, os nômades optarão por essa
ou aquela nação por mera preferência individual, como há bastante tempo
já fazemos com as religiões que professamos quando nos convertemos
depois de adultos. Alguém preferirá ser brasileiro por simpatia ou por outras
razões afetivas, empáticas ou culturais; outro, por razões análogas,
preferirá se identificar com uma região ou cidade: será californiano ou
cidadão-cultural de Lyon.

Da mesma forma, ao renunciar a igrejas muitas pessoas retirarão também


seus filhos das escolas (compreendendo que as duas coisas são – na
condição de centros de deformação da rede-mãe ou de fontes de
perturbação no campo social – basicamente a mesma coisa). O movimento
do homeschooling já começou e avançará para o communityschooling (na
linha do unschooling). Comunidades de aprendizagem em rede tendem a
florescer e se multiplicar nos Highly Connected Worlds substituindo as
atuais burocracias do ensinamento (chamadas de escolas).

Ainda: Estados (nacionais) dividirão com corporações (transnacionais) o


controle dos fluxos econômicos e políticos mundiais globalizados e essa
pulverização (dos 193 exemplares atuais do modelo europeu de Estado-
nação – um anacrônico fruto da guerra, da paz de Westfalia – para milhares
de centros com autonomia crescente), dará margem à configuração de
novos modelos glocais de governança baseados no localismo cosmopolita de
miríades de cidades como redes de comunidades interdependentes.

89
É claro que todas as velhas instituições perdurarão vestigialmente, como
remanescências do mundo único. Não serão destruídas, simplesmente se
tornarão inadequadas por não suportarem a fluição de alta intensidade que
atravessará os interworlds dos mundos altamente conectados do terceiro
milênio.

90
Perturbações no campo social

A nuvem que envolve-e-se-move-com uma pessoa conectada tem a


capacidade de “sentir” perturbações no campo social

Walter Robinson (2008), também conhecido por Ritoku – um zen-budista


que dá aulas de filosofia na Universidade de Indiana – escrevendo “Morte e
Renascimento de uma Mente Vulcana” (10), observa que “Vulcanos têm
“sete sentidos”, que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos humanos e
um sexto sentido animal, que é “a habilidade de sentir a presença de
distúrbio em campos magnéticos” (11).

A metáfora, se não cai como uma luva, serve aos propósitos da presente
digressão. Por certo, admitir a hipótese e trabalhar com o modelo de
perturbações no campo social pode ser mais fácil do que sentir essas
perturbações. Não é preciso ir muito longe para saber se um campo social
foi deformado: basta entrar em uma organização hierárquica; por exemplo,
basta visitar uma instituição estatal ou uma grande empresa para constatar
com que intensidade o “campo gravitacional” em torno dos chefes modifica
a estrutura do espaço (no caso, do espaço-tempo dos fluxos). Os fluxos se
abismam nesses buracos negros. Eles são sumidouros, engolidouros,
alçapões de fluxos.

Tão forte às vezes é a gravitatem dos hierarcas que a deformação do campo


social sob sua influência alcança até mesmo os stakeholders externos da
organização, transbordando para seu entorno. É por isso que uma grande
empresa ou corporação, em uma pequena localidade na qual não existam
outras organizações de mesmo porte, em vez de – como se acreditava –
impulsionar seu desenvolvimento, faz o contrário: extermina o capital social
local (quer dizer, centraliza a rede social). Existem exemplos à farta.

Nas organizações altamente centralizadas, as pessoas perdem a capacidade


de ser elas mesmas (à medida que cresce sua porção-borg diminui a sua
dimensão de pessoa, quer dizer, sua porção ghola-social). Vestem sempre
uma espécie de farda; mesmo nas organizações civis que não usam
uniformes elas se uniformizam interiormente. E até exteriormente: não raro
preferem roupas que escondem o corpo e os tons de cinza para o vestuário.
No exercício continuado da servidão voluntária, autolimitam suas
potencialidades escondendo-se na penumbra das rotinas e optando por não
se aventurar na claridade do ato inédito. Fazem tudo – sobretudo o que

91
delas não é explicitamente exigido, eis o ponto! – para se submeter ao
sistema e aos seus chefes.

E há uma reverência indevida, uma espécie de sujeição, quase uma


genuflexão psicológica quando alguém se dirige a algumas dessas
encarnações de Dario (aquele monstro Darayavahush, um rei-borg que,
após perpetrar um golpe de Estado, dominou os persas entre 521 e 486 a.
E. C. exigindo-lhes prosternação física à sua passagem).

Ésquilo (427 a. E. C.), em Os Persas – talvez a primeira obra escrita em que


se menciona a democracia dos atenienses como realidade oposta a
daqueles povos que têm um senhor – descreve bem a deformação do
campo social sob o domínio da sombra de Dario (12). O regime monstruoso
não tinha, ao contrário do que se propagou, grandes vantagens militares.
Os persas foram rechaçados pelos irreverentes, insolentes e mais livres
atenienses e seus aliados na planície de Maratona (em 490). Sim, mas o
que é realmente monstruoso é que tal programa (que poderia ser chamado,
em homenagem a Ésquilo, de A Sombra de Dario) – instalado quase três
milênios antes de Dario – continue a rodar... quase três milênios depois!

Todavia, essas deformações já começam a ser sentidas. Um sexto sentido


humano-social está surgindo nos Highly Connected Worlds. Não é
propriamente um sentido individual. A nuvem que envolve-e-se-move-com
uma pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no campo
social. Uma rede altamente distribuída rechaçará de pronto, mesmo que
seus membros não tenham consciência disso, quaisquer tentativas de
comando-e-controle. Eis porque burocratas sacerdotais do conhecimento ou
ensinadores, codificadores de doutrinas, aprisionadores de corpos,
construtores de pirâmides, fabricantes de guerras e condutores de rebanhos
não se dão muito bem em redes sociais distribuídas e, nem mesmo, nas
mídias sociais, quer dizer, nas plataformas interativas que são utilizadas
como ferramentas de netweaving dessas redes. Porque são, todos,
netavoids.

Esta é uma das razões – até agora muito pouco compreendida – pelas quais
o comando-e-controle, além de não poder se exercer, também não se faz
necessário em uma rede distribuída (na medida, é claro, do seu grau de
distribuição). Dizer que o emaranhado “sente” quer dizer que ele detecta
distorções. Mais do que isso: primeiro ele encapsula e depois acaba
metabolizando as fontes de perturbações que causam anisotropias no
espaço-tempo dos fluxos. E são esses incríveis seres sociais que chamamos
de pessoas que sentem isso: ainda quando não saibam explicar os motivos
dessa sensação, elas (as pessoas) percebem que “alguma coisa está

92
errada” quando aparece um daqueles netavoids, ou um arrivista (ou mesmo
um troll, nas mídias sociais).

É a rede-mãe se defendendo. Mas ela nem sempre consegue fazer isso.

93
Destruidores de mundos

Persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para


conversar com a rede-mãe

Darayavahush é um destruidor de mundos. Joseph Campbell diria que ele


representa “uma força monstruosa, a força do Império, que se baseia na
intenção de conquistar e comandar” (13). Como aquele Darth Vader do
primeiro episódio da série que veio à luz – Uma Nova Esperança (1977) –,
na decifração de Joseph Campbell (1988), ele não é uma pessoa. É um
programa malicioso que se instalou na rede. Um programa verticalizador.

Não, não estamos tratando propriamente da figura histórica de Dario, o


homem que governou a Pérsia. Todos os hierarcas – inclusive o próprio
Dario – replicam o mesmo padrão Darth Vader porque estão emaranhados
em configurações deformadas da rede-mãe, com deformações semelhantes.
Qualquer um, inserido em sistemas com tais configurações, manifestará –
em alguma medida – características de Darayavahush. E será em alguma
medida destruidor de mundos. Na verdade, aniquilará interfaces
(interworlds) estreitando o fluxo das interações, impedindo que pessoas se
conectem livremente com pessoas. É por isso que organizações hierárquicas
têm tanta dificuldade de gerar pessoas.

Sim, gerar pessoa é um processo contínuo que não se dá no nascimento e


nem apenas logo após o nascimento, mas prossegue por toda a vida (a
com-vida, quer dizer, aquela ‘vida social’ que se realiza quando vivemos a
convivência). É algo assim como o que certas tradições espirituais
chamaram de formação da alma humana: um veículo para “atravessar a
morte” (em vez de tentar evitá-la, querendo ser imortal: o motivo da
criação dos deuses à imagem e semelhança dos hierarcas) aceitando o fluxo
transformador da vida.

Para continuar com o paralelo, se a alma humana é formada com a energia


da compaixão, obtida nos atos gratuitos de valorizar a vida, compartilhar o
alimento, aliviar os sofrimentos e promover a liberdade, Darth Vader não
tem alma porque, ao invés de formá-la, criou um veículo-substituto para
escapar de fluzz: sua nave-simulacro é feita com a energia da violência,
obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, se apoderar dos recursos
vitais, infligir sofrimentos e, sobretudo, eliminar caminhos (pela imposição
da ordem).

94
Nas organizações hierárquicas, um processo intermitente de
despersonalização é posto em marcha quando obstruímos fluxos,
separamos clusters e excluímos nodos. O resultado de tal processo poderia
ser interpretado, lançando-se mão de nossa metáfora, como uma perda de
contato com a rede-mãe. É por isso que nossas organizações de todos os
setores têm tanta dificuldade de contar com (a adesão voluntária das)
pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não
participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a visão,
a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então como
incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está na
deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não conseguem
explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe entrar em um
espaço já configurado de uma determinada maneira. Não querem
‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos termos
estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios termos.
Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são interfaces
adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque continuamos criando
obstáculos à livre conversação entre pessoas.

Pessoas conversam com pessoas. Redes conversam com redes.


Organizações hierárquicas não podem conversar com redes.

Organizações hierárquicas (ou com alto grau de centralização) têm imensas


dificuldades de provocar mudanças sociais no ambiente onde estão imersas.
A rede social que existe independentemente de nossos esforços conectivos
– ou que existiria se tais esforços não fossem verticalizadores; quer dizer, o
que chamamos aqui de rede-mãe – não recebe bem a influência dessas
organizações e continua funcionando mais ou menos como se nada tivesse
acontecido.

É o que ocorre quando ouvimos relatos de organizações sociais


profundamente dedicadas ao trabalho comunitário. Seus dirigentes
reportam que estão lutando há anos, com grande afinco, em uma
determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus esforços
não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as relações não
mudam, parece que tudo continua como d’antes...

Se formos analisar as circunstâncias da atuação dessas organizações de


base, veremos que elas terão um alto grau de centralização (ou um grau de
enredamento insuficiente). É um problema de comunicação. A rede social
que existe de fato naquela localidade não está reconhecendo as mensagens
emitidas pela organização. É muito provável que essa organização esteja
estruturada e funcione como uma pequena fortaleza, um castelinho, uma

95
igrejinha... É muito provável que ela faça parte da ‘nova burocracia das
ONGs’, ou seja, que tenha dono, chefe, diretoria – às vezes até familiar –
com baixíssimo grau de rotatividade (menor ainda do que o dos partidos e
organizações corporativas). É muito provável que seus chefes queiram se
eternizar no poder (no caso, um micro-poder, é verdade, mas todo poder
hierárquico, vertical, seja grande ou pequeno, se comporta mais ou menos
da mesma maneira, sempre a partir do poder de excluir o outro...) porque
precisem (ou imaginem que precisem) auferir o crédito ou obter o
reconhecimento social pela sua atuação.

Se essa organização que não consegue boa comunicação com a rede-mãe


for uma corporação ou partido, será bem pior. Ela estará estruturada a
partir de um impulso privatizante, seja com base no interesse econômico,
seja com base no interesse político de um grupo particular que quer
manobrar o coletivo maior em prol de sua própria satisfação. A rede social
não-deformada é sempre pública. Mas as interfaces hierárquicas que
construímos para conversar com ela ou para tentar manipulá-la são sempre
privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar a
privatização, como aquela velha crença de que existem interesses privados
que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de se
universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando
satisfeitos.

Só há uma maneira de conseguir uma boa comunicação com “a matriz”.


Copiando-a o mais fielmente que conseguirmos; ou seja, construindo
interfaces – redes voluntárias – com o maior grau de distribuição que for
possível. Quanto mais distribuídas forem as redes que construirmos para
copiar a rede-mãe melhor será a comunicação com ela.

Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo ficará cada
vez mais difícil recrutar, arrebanhar, enquadrar ou aprisionar pessoas em
organizações erigidas com base na seleção de caminhos válidos (ou na
normatização de caminhos inválidos). Desde que tenham essa possibilidade,
as pessoas perfurarão os muros, abrirão continuamente seus próprios
caminhos mutantes e – na sua jornada para Ítaca – peregrinarão para
aprender naquelas “muitas cidades do Egito...”

96
5
Hifas por toda parte

Toda rede miceliana é um clone fúngico,


o filho distante de uma única linhagem genética.
Acima do solo, os fungos produzem esporos que flutuam no ar,
alguns dos quais você está inalando neste momento.
Quando pousam, os esporos crescem onde quer que seja possível.
Fazendo brotar redes tubulares, as hifas, no substrato úmido,
novamente os fungos produzem quantidades copiosas de esporos,
os quais se disseminam, espalhando sua estranha carne...
Lynn Margulis e Dorion Sagan em O que é vida? (1998)

Jericó estava rigorosamente fechada por causa dos israelitas.


Ninguém saía e ninguém entrava... O Senhor disse então a Josué:
“No sétimo dia rodeareis a cidade sete vezes,
e os sacerdotes tocarão as trombetas.
Quando derem um toque prolongado, quando ouvirdes
o som da trombeta, todo o povo lançará um grande grito;
o muro da cidade virá abaixo, o povo subirá, cada um à sua frente”.
Josué 6: 1-5

97
Enquanto isso, porém, crescem subterraneamente as hifas, por toda
parte. Os alicerces das organizações hierárquicas vão sendo corroídos
e seu muros, antes paredes opacas para se proteger do outro, vão
agora virando “membranas sociais”, permeáveis à interação e
vulneráveis ao outro-imprevisível. Pessoas conectadas com pessoas
vão tecendo articulações que estilhaçam o mundo-único-imposto em
miríades de pedaços, não pelo combate, mas pela formação de redes.
E outras identidades – mais-fluzz – vão surgindo nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio.

Não se decepcione: provavelmente você não vai ver nada mesmo! As hifas
crescem, em geral, abaixo do solo. Os esporos espalham-se pelo ar, mas
são tão pequenos que a gente nem percebe.

Quando você notar as conseqüências, aí não adiantará mais se desesperar.


Pois se o processo, por enquanto, ainda é lento e invisível (em parte
“aéreo”, em parte “subterrâneo”), seus desfechos poderão ser bem
concretos e fulminantes nos mundos em que ocorrerem.

Nos Highly Connected Worlds não há como fechar nada. Trancar, chavear,
cerrar as fronteiras, isolar por meio de paredes opacas não é a solução para
manter a identidade ou preservar a integridade de nenhum aglomerado.
Quando os fluxos aumentam de intensidade, os muros não conseguem mais
contê-los.

Parece que a vida “sabia” disso: tanto é assim que não encerrou seu
“átomo” (a célula) em nenhuma estrutura fechada, separando-o do meio
com paredes opacas: antes, construiu membranas – uma interface de
sustentabilidade, um convite à conexão. Um convite ao sexo, já que
estamos agora explorando um paralelo biológico: nos fungos – que são
“organismos realmente fractais”, como percebeu a bióloga Lynn Margulis
(1998) – o ato sexual (chamado de conjugação) é uma conexão (1).

98
Muros caindo por toda parte anunciarão “membranas sociais” surgindo por
toda parte. Ou não: o que não virar “membrana social” será escombro.

O que as hifas – esses filamentos ou tubos finos que formam a estrutura


em rede dos fungos – têm a ver com isso? Ora, tudo. Pois são elas (ou o
processo espelhado, em termos biológicos, pela clonagem fúngica) que
estão operando tal mudança.

99
A perfuração dos muros

Quando a porosidade aumentar, os muros vão começar a ruir

Eis como paredes opacas vão se tornando inadequadas para conter o fluxo:
elas vão sendo perfuradas por hifas. Essa possibilidade existe
concretamente desde que os subordinados em uma organização hierárquica
não podem mais ser proibidos de se conectar com quem está do lado de
fora do muro pelas polícias corporativas (os departamentos de segurança,
os departamentos de pessoal e, inclusive – e hoje principalmente –, os
departamentos de tecnologia da informação).

O aprisionamento de corpos e sua contenção física em prédios fechados,


com salas e andares isolados um dos outros, controlados por portarias ou
por barreiras eletrônicas que não deixam passar quem não tem o código
válido no seu cartão magnético funcional, já não resistem adequadamente a
aglomeração física não-prevista pelos protocolos de segurança; por
exemplo, dos amigos que se encontram após o expediente em bares,
restaurantes, shoppings e em suas próprias casas, ou até mesmo dos
fumantes que são obrigado a se encontrar na rua, do lado de fora das
sedes, por imposição legal. E muito menos é capaz de resistir à
comunicação à distância, por celular, e-mail, pelos programas de
mensagens e comunicação instantânea ou pelos sites de relacionamento na
Internet.

É inútil proibir e não há como manter uma vigilância eficaz. Os


departamentos de tecnologia da informação (TI) podem tentar barrar (como
ainda insistem em fazer) o acesso às chamadas mídias sociais e aos vários
serviços de comunicação web na sua própria rede de computadores, mas
qualquer um que tenha um celular (3G, equivalente ou sucedâneo), ou
melhor, um dispositivo móvel de interação conectado à Internet ou
conectável a outros dispositivos por rádio (incluindo bluetooth quando seu
alcance for ampliado) já pode – ao mesmo tempo em que trabalha (ou finge
que trabalha) em uma empresa fechada – desenvolver outros projetos
conjuntos com pessoas de outras empresas fechadas, inclusive
concorrentes (2).

Tudo isso aumenta a porosidade dos muros. À medida que a porosidade


aumentar, os muros vão começar a ruir.

100
Só então as organizações fechadas se darão conta de que estão
irremediavelmente vulneráveis à interação e correrão desesperadas atrás
das membranas. Aí já poderá ser tarde: uma membrana é um dispositivo
ultracomplexo, que só pode ser construído pela dinâmica de um organismo
vivo em interação com o meio, com outros organismos e partes de
organismos. Uma empresa que não aprendeu a se desenvolver conversando
com as outras empresas por medo de perder mercado ou de ter roubadas
as suas inovações ou seus funcionários, não conseguirá, da noite para o dia,
fazer uma reengenharia de suas, por assim dizer, boundary conditions. Uma
corporação que insistiu em manter intranets mesmo depois de ter sido
inventada a Internet, dificilmente estará preparada para operar, em tempo
hábil, tal mudança.

101
A construção de “membranas sociais”

Deixar a interação pervadir um sistema não significa propriamente fazer,


mas – ao contrário – não-fazer: não-proibir, não-selecionar caminhos...

A derruição dos muros não esperará que os sacerdotes toquem as


trombetas em Jericó (se bem que na saga bíblica de Josué foi o grito em
uníssono do povo que derrubou as muralhas que trancavam a cidade). De
qualquer modo, não há mais tempo para aprender a construir verdadeiras
membranas. Na verdade, membranas não podem ser construídas, stricto
sensu, como um ato voluntário de alguém que segue uma planta, um
projeto, um esquema. As membranas são “construídas” pela interação
biológica, elas surgem em função da autopoese: da produção contínua da
vida por ela mesma.

No caso das membranas celulares (plasmalemas), sua estrutura e


funcionamento complexos dependem da dinâmica de rede, de redes dentro
de redes, com canais protéicos (proteínas de transporte – espécies de
atalhos entre clusters) que atravessam suas camadas, passando por
numerosos arranjos moleculares (3) até chegar, na interface com o
citoplasma, a um emaranhado de “hifas” composto por filamentos e
microtúbulos de citoesqueleto... tudo isso fluindo (imerso em fluido
extracelular). E tudo isso com a função de ser uma porta seletiva que a
célula usa para captar os elementos do meio exterior que são necessários
ao seu metabolismo e para liberar as substâncias que a célula produz e que
devem ser enviadas para o exterior (excreções que devem ser libertadas e
secreções que ativam várias funções de seus, por assim dizer, “stakeholders
externos”).

Esse produto de bilhões de anos de evolução biológica funciona, é claro,


como um sistema não-hierárquico, sem-administração, auto-organizado
para permitir o que chamamos de vida e não pode ser substituído por
cancelas corporativas que sigam protocolos alfandegários burros,
destinados a disciplinar a interação.

Seria inútil simular, nas organizações que voluntariamente construímos,


mecanismos semelhantes às membranas celulares. E nem seria o caso de
tentar fazê-lo, abusando do paralelo biológico. O que se deve captar aqui é
o padrão, não reproduzir o mecanismo ou simular o organismo. E o padrão
é o padrão de interação em rede.

102
“Membranas sociais”, seja o que forem (e como forem), serão sempre redes
(mais distribuídas do que centralizadas), interfaces. A única solução-fluzz
parece ser articular comunidades móveis (no ecossistema composto pelos
stakeholders da organização) e deixar a interação configurar tais interfaces,
esperando que elas cumpram funções equivalentes, no mundo social, às
que são desempenhadas pelas membranas celulares no mundo biológico.

Na verdade, ao estabelecer contornos, estabelece-se a estrutura e a


dinâmica do que está dentro dos contornos. Membranas são o que são (e
como são) porque os meios que elas conectam são o que são (e como são).
Mas tais meios são, eles próprios, constituídos pela interação, quer dizer,
não se constituem como tais antes da interação. A membrana é um sistema
complexo porque é, simultaneamente, uma interseção de conjuntos, uma
zona de transição entre um ser e os outros seres nos quais se insere (ou,
mais genericamente, com os quais interage), uma forma de ligação ou uma
espécie de conjunção.

Ainda não sabemos muito sobre membranas e, sobretudo, sobre


“membranas sociais”. Algumas coisas, porém, já sabemos. Sabemos, por
exemplo, que deixar a interação pervadir um sistema não significa
propriamente fazer, mas – ao contrário – não-fazer: não-proibir, não-
selecionar caminhos (estabelecendo apenas alguns caminhos, proclamando-
os como válidos e exterminando todos os demais caminhos, decretando-os
inválidos); fundamentalmente, não gerar artificialmente escassez (4).

Sabemos também que as interfaces devem ser sociais stricto sensu e não
organizacionais (em termos das teorias da administração baseadas em
comando-e-controle). Ou seja, devem ser baseadas na livre conversação
entre pessoas e na sua espontânea clusterização e não na designação, ex
ante à interação, de caixinhas departamentais para alocar essas pessoas.
Simples assim? É, mas a conversação é algo bem mais complexo do que
parece. E os novos procedimentos e mecanismos, os novos processos de
netweaving e as novas tecnologias interativas que inventamos para
viabilizar e potencializar a conversação, alteram completamente o
multiverso das interações que chamamos de social.

“Membranas sociais” são interworlds. Ao constituí-las multiplicamos os


mundos, dando origem – se quisermos fazer uma comparação quantitativa
para efeitos ilustrativos – a bilhões de organizações (em vez de milhões que
existem atualmente). Uma mesma pessoa participará de muitas
organizações, comporá numerosas empresas, entidades, movimentos,
enfim, redes – pois tudo isso é válido, claro, na medida em que tudo for
rede. Para tanto, não será necessário fazer quase nada adicionalmente ao

103
que já se faz hoje. Bastará não proibir a conexão, não querer disciplinar a
interação.

Um bom exemplo, hoje, são as plataformas interativas digitais, chamadas


de “redes sociais”. A quantas “redes sociais’” alguém pertence (ou seja, em
quantas mídias sociais está registrado)? O número é grande e só tende a
crescer.

Os emaranhados se adensarão a tal ponto, as timelines ficarão tão


caudalosas, que as identidades organizacionais não se manterão por muito
tempo. Despencaremos da escala de décadas e anos (que é a vida média da
imensa maioria das organizações que ainda temos) para a escala de meses
e dias (ou, quem sabe, de horas e minutos).

Não é bem como disse Andi Warhol (1968) – “no futuro todo mundo será
famoso por quinze minutos” – mas é parecido (5). Não é bem como ele
disse porque ninguém será muito famoso, no sentido de visto por todo
mundo, porque não haverá mais o mundo único forjado pelo broadcasting.
Mas é parecido porque no futuro (um conceito que também será
aposentado, de vez que não haverá mais um futuro único, um mesmo
futuro para todos), as organizações serão sempre transitórias, estarão
sempre fluindo para configurarem outras organizações e uma mesma
configuração não poderá perdurar por muito tempo.

É assim porque redes são móveis. Novamente as mídias sociais oferecem


uma boa imagem do que ocorre. Sites de relacionamento e plataformas
interativas nunca são as mesmas ao longo do tempo e a velocidade com
que mudam (em anos, dias ou horas) é função da sua interatividade. O
exemplo mais flagrante é o twiver (as centenas de milhões – que logo serão
bilhões, se considerarmos os sucedâneos do Twitter – de timelines fluindo
no twitter-river).

Onde e quando tudo isso vai acontecer? Vai acontecer nos Highly Connected
Worlds do terceiro milênio. Para aqueles mundos que já estão no terceiro
milênio.

104
6
O terceiro milênio já começou?

À velocidade da luz não existe futuro previsível...


Não há, literalmente, futuro possível.
Você já está ali, no momento que chama de situação.
É por isso que em nossa época não existem objetivos...
Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem ter aonde ir.
Marshall McLuhan em palestra na Universidade York, em Toronto (1979)

Quem me dera
Ao menos uma vez
Explicar o que ninguém
Consegue entender
Que o que aconteceu
Ainda está por vir
E o futuro não é mais
Como era antigamente.
Renato Russo na canção Índios (1986)

O futuro como teleologia universal,


como esperança igual para todos, morreu.
E a decomposição não pode ressuscitá-lo.
Em seu lugar, temos uma multiplicidade de futuros sintéticos,
construídos por cada comunidade real para si e à sua medida.
David de Ugarte em Los futuros que vienen (2010)

105
Para o mundo único broadcast que remanesce o terceiro milênio
ainda não começou. Grandes “verdades” do final século 20 não foram
ainda revistas, conquanto não faltem evidências de seu
envelhecimento. Três exemplos eloqüentes:

 O mundo virou uma aldeia global? Não. Está virando miríades


de aldeias globais.

 Pensar globalmente e agir localmente? Não. Pensar e agir


glocalmente!

 Sustentabilidade é resguardar recursos para as futuras


gerações? Não. É aprender a fluir com o curso...

Mundo. Tempo. A ilusão do mundo único é a ilusão do tempo único. Se os


mundos são vários, o tempo de cada mundo é diferente. Por certo, o
broadcasting sintoniza, ou melhor, uniformiza. Mas não iguala, em cada
mundo, o ritmo da fluição que transforma futuro em passado.

Se freqüentemente temos a impressão de que o terceiro milênio ainda não


começou – já que as promessas de uma Nova Era que foram a ele
associadas não se realizaram – surge a pergunta: quando então ele vai
começar? Ora, levando-se em conta a existência de vários mundos, a
pergunta não tem sentido. Quando? – em um multiverso – sempre quer
dizer: para quem?

Um ano antes da sua morte, em palestra na Universidade York, em Toronto,


McLuhan (1979) disse que “à velocidade da luz não existe futuro previsível”.
E foi além: “Não há, literalmente, futuro possível. Você já está ali, no
momento que chama de situação. É por isso que em nossa época não
existem objetivos... Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem ter
aonde ir” (1). Talvez McLuhan tenha antevisto ou pressentido a interação
em tempo real ou sem distância nos novos mundos-fluzz quando apontou a

106
“velocidade da luz” como fator que impossibilita o futuro. Mas a questão
não é que não exista futuro possível e sim que não é mais possível, nos
novos mundos altamente conectados que estão emergindo, um mesmo
futuro.

Não há um futuro universal porque não há um universo em termos sociais,


como acreditaram as narrativas iluministas. Como observou David de
Ugarte (2010), com a desconstituição “dos sujeitos com os quais se
compunha a narração histórica: as classes, as nações, os grupos de
interesse, o marco do mercado... morre esse futuro que se pretendia ‘o’
futuro” (2). Mas a questão é que todas essas narrativas pressupunham um
mesmo mundo e tentavam explicar a constituição dos sujeitos em função de
expectativas imaginadas a partir dessa abstração totalizante em que
acreditavam.

Dependendo do mundo em que se convive, “o que aconteceu [em alguns


mundos] ainda está por vir” em outros e para quem já vive no multiverso
dos Highly Connected Worlds “o futuro não é mais como era antigamente”,
como cantou Renato Russo (1986) (3). Com o estilhaçamento do mundo
único, o futuro também se esporaliza.

Não há mais uma saída (aliás, quando houve, não foi propriamente uma
saída senão uma permanência, um confinamento em um mundo, para
manter esse mundo contra os outros mundos possíveis). As tentativas de
transformar o mundo herdeiras do iluminismo universalista eram tentativas
contra-multiversalistas de mudá-lo para mantê-lo (como mundo único) ou
então para substituí-lo por outro mundo (também único).

Um outro mundo é possível – bradam os militantes anti-globalização que


continuam habitando o século passado. Mas um outro mundo não é mais
possível. E, se fosse, não seria desejável. Outros mundos – isto sim, no
plural – são possíveis. A saída é a entrada em outros mundos. É a libertação
deste mundo único no qual você foi aprisionado. É a sua desistência de
procurar um líder para lhe arrebanhar e guiar nessa caminhada: você (esse
complexo ser social que é a sua pessoa) é a saída, ou melhor, a porta de
entrada para outros mundos.

Para quem já entrou no terceiro milênio soam anacrônicas boa parte das
verdades consideradas progressistas e politicamente corretas do século
passado, voltadas à mudar o mundo (quer dizer, a preservar o mundo
único), como – para citar apenas algumas como exemplo – a de que o
mundo ia virar uma aldeia global, a de que era preciso pensar globalmente
para agir localmente, a de que sustentabilidade era resguardar ou poupar

107
recursos para as futuras gerações. A despeito dos generalizados consensos
que se formaram em torno dessas idéias, elas são, todas, regressivas – isto
é: contra-fluzz – posto que nascidas do pavor da imprevisibilidade da
interação.

108
Miríades de aldeias globais

Não é que haja uma rede cobrindo o mundo. É que mundos são redes

Tom Wolfe (2003), na introdução da coletânea de palestras e entrevistas de


Marshall McLuhan, publicadas postumamente no volume intitulado
Undestanding me, escreveu sobre a euforia, que “beirava o espiritual”, dos
visionários do ciberespaço no Vale do Silício dos anos 90: “eles diziam a
todo mundo no Vale que o que estavam fazendo era muito mais do que
desenvolver computadores e criar um novo meio de comunicação
maravilhoso, a Internet. Muito mais. A Força estava com eles. Estavam
tecendo sobre a Terra uma rede inconsútil que tornaria insignificantes todas
as fronteiras nacionais e divisões raciais, transformando literalmente a
natureza da besta humana”. Esses visionários foram inspirados, segundo
Wolfe, “por um literato canadense que morreu quinze anos antes que a
Internet viesse a existir. Seu nome, desconhecido fora do Canadá até a
publicação do livro Para entender os meios de comunicação, em 1964, era
Marshall McLuhan” (4).

McLuhan ficou famoso pela previsão de que “o mundo estava se tornando


rapidamente uma ‘aldeia global’ como resultado da difusão da rede
inconsútil da televisão por toda a Terra” (5). No entanto, Wolfe teve argúcia
suficiente para perceber que havia uma visão espiritual de futuro por trás
das suas predições. A nova era anunciada – na qual todos estariam,
segundo o próprio McLuhan, “irrevogavelmente envolvidos uns com os
outros e seriam responsáveis uns pelos outros” – era algo mais sublime do
que uma simples utopia secular. Segundo McLuhan, “o conceito cristão de
corpo místico, de todos os homens como membros do corpo de Cristo – isto
se torna tecnologicamente um fato sob as condições eletrônicas” (6).

Wolfe identifica aí a influência decisiva de Teilhard de Chardin sobre


McLuhan. Embora tenha falecido em 1955, antes mesmo da difusão da
televisão por todo mundo e quando os computadores ainda eram
paquidermes enjaulados em grandes centros de pesquisas e mega-
empresas, Chardin (1955) percebeu que a tecnologia estava criando um
“sistema nervoso para a humanidade, uma membrana única, organizada,
inteiriça sobre a Terra”, uma “estupenda máquina pensante” (7). Teilhard
de Chardin escreveu que “a era da civilização terminou e a da civilização
unificada está começando” (8) Essa membrana inteiriça (que Chardin
chamava de noosfera) – conclui Tom Wolfe – era, naturalmente, a ‘rede

109
inconsútil’ de McLuhan. E essa ‘civilização unificada’ era a sua ‘aldeia
global’.

Interessantíssima a sacada da membrana envolvendo a Terra (mais pelo


paralelo com uma membrana). Recentemente Don Tapscott (2006) encarou
a Internet como uma pele que cobre o planeta (9). Mas há um problema
com a idéia de que essa membrana seria “inteiriça”. Sim, todo problema foi
a idéia de alguma coisa “unificada” – termo que Chardin não só afirmou
como quis enfatizar. A unificação – se é que a palavra seria adequada – não
é unitária, porém fractal. Pois o mundo não virou, não está virando, nem
vai virar uma aldeia global, mas miríades de aldeias globais.

A emergência da sociedade-rede vem acompanhada de um processo de


globalização do local e, simultaneamente, de localização do global. O futuro
mundo das redes distribuídas – se vier – não será, como previa McLuhan,
uma aldeia global, senão miríades de aldeias globais. A aldeia global
midiática (e “molar”), de Marshall McLuhan, sugere o mundo virando um
local. A sociedade-rede (“molecular”) – percebida por Levy, Guéhenno,
Castells e vários outros — sugere cada local virando o mundo, fractalmente.
Não o local separado, por certo, mas o local conectado que tende a virar o
mundo todo, desde que a conexão local-global passou a ser uma
possibilidade (10).

Em outras palavras: o mundo das redes distribuídas não vem como um


mundo único. Não é que haja uma rede (ou várias redes) cobrindo o
mundo. É que mundos são redes.

A idéia de um mundo único – ao contrário do que vaticinaram à farta os


prosélitos da Nova Era e continuam propagando militantes ambientalistas e
espiritualistas – é regressiva. Para que haja um mundo único em termos
sociais é necessário centralizar a rede (mantendo instâncias centralizadas
de difusão um-para-muitos). Para que haja um mundo único em termos
políticos também é necessário centralizar a rede (construindo
monstruosidades como um Estado planetário ou um governo mundial). Para
que haja um mundo único em termos de consciência unificada (noosféricos
como queria Chardin), seria preciso admitir a existência de algum ente
sobrehumano, seja um deus ou uma consciência coletiva (que fosse capaz
de ser consciente de si mesma e, neste caso, não seria humana).

Um superorganismo coletivo está nascendo, sim, mas trata-se de um


superorganismo humano – um simbionte social –, não de um organismo
superhumano. Sua inteligência se compõe por emergência, a partir da
interação e não pode ser instalada em qualquer mainframe. É uma

110
inteligência tipicamente humana e não extra-humana, de um deus, de um
alienígena, de uma máquina ou da Matrix. Se esse superorganismo for
capaz de algo como uma consciência, também se tratará de uma
consciência humana composta por emergência e não de uma
superconsciência, de um olho que tudo vê e se vê ou sabe que está vendo.
Nem o velho deus hebraico (segundo a interpretação mais arguta do
esoterismo judaico) possuía tal consciência, de vez que foi levado a criar o
mundo para poder se ver no espelho da sua criação.

O modelo é autoregulacional. Assim como não há uma instância


centralizada de regulação da biosfera, assim também não pode haver uma
instância centralizada de regulação de uma sociosfera, até porque não pode
existir apenas uma sociosfera. As conexões P2P (quando o “P” significa
“pessoa”) que compõem as sociosferas não centralizam; pelo contrário,
distribuem.

Os visionários do ciberespaço, herdeiros do sonho mcluhiano da aldeia


global (segundo Tom Wolfe), acreditando que a Força estava com eles,
usaram-na para construir seus mainframes: seus programas e produtos
proprietários, suas caixas-pretas para trancar – esconder dos outros em vez
de compartilhar – os algoritmos que inventavam, seus bunkers
organizativos e suas fortunas pessoais.

Todavia, há uma diferença entre o que fizeram Vinton Cerf e Robert Kahn
(1975) com o Protocolo TCP/IP, Tim Berners-Lee e Robert Cailliau (1990)
com a World Wide Web, Linus Torvalds (1991) e a multidão com o Linux e
Rob McColl (1995) e a multidão com o Apache, e o que fizeram Bill Gates e
Paul Allen com a Microsoft (1975) e o Windows (1985), Steve Jobs e Steve
Wozniak com a Apple (1976) e o Mac OS (1984), Larry Page e Sergey Brin
(e Eric Shmidt) (1998) com o Google, Mark Zuckerberg e Dustin Moskovitz
(2004) com o Facebook e Evan Willians e Biz Stone (e Jack Dorsey) (2006)
com o Twitter. Estamos verificando agora em que medida eles estavam no
contra-fluzz ou com-fluzz, o curso que não pode ser aprisionado por
qualquer mainframe.

111
Pensar e agir glocalmente

Não pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles seriam tantos
quantos os locais onde foram pensados

Think Global, Act Global. A frase “pensar globalmente, agir localmente” já


foi atribuída ou reivindicada – de 1915 a 1989 – por mais de dez pessoas,
desde a urbanista Patrick Geddes, passando pelo microbiologista René
Dubos, pelo teólogo Jacques Ellul e pelo futurologista Buckminster Fuller,
até chegar a Harlan Cleveland.

Tanta disputa pela fórmula ou tanta vontade de atribuir ou reivindicar a sua


paternidade, revela, é óbvio, uma concordância generalizada com a síntese
que ela pretende representar. Mas revela também uma compreensão
pouco-fluzz do mundo. Não há uma esfera global que, uma vez percebida
por inteiro ou entendida em sua totalidade, forneça elementos para orientar
a ação local.

Ninguém percebe ou entende alguma coisa fora de um local e se este local


puder se conectar a outros locais, ele então já é global (um local que foi
globalizado). Na verdade, global é uma abstração para indicar a
possibilidade de conexão com outros locais, não uma instância autônoma
concreta. Se estivermos usando a expressão global para falar da Terra,
então estamos falando de um local (o planeta: um global que só existirá
concretamente se for localizado).

Do ponto de vista da rede social, local é um cluster, não uma porção do


planeta físico. Desse ponto de vista, o local não está dado de antemão, mas
é constituído pela interação dos que o reconhecem como um local. Um local
em interação com outros locais é uma realidade glocal, que se constitui
quando a globalização do local encontra a localização do global. Essa é
apenas outra maneira de falar da conexão local-global, ou seja, da
interação entre diversos locais.

Os muitos mundos interagentes são realidades glocais. Se estão brotando,


como vimos, inumeráveis interworlds, então se trata de pensar e agir
glocalmente, não de pensar globalmente e agir localmente (ou vice-versa).
Em suma, não pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles
seriam tantos quantos os locais onde foram pensados. Se for, entretanto,
resultado da interação com os outros locais, todo pensar será glocal e toda
ação também será glocal.

112
Não, não é a mesma coisa. Não é um jogo de palavras. Não pode haver um
pensar global – nem no sentido da percepção de uma esfera inteiriça ou
unificada (como queria Teilhard de Chardin) ou da percepção da aldeia
global (como queria Marshall McLuhan), nem mesmo no sentido de uma
percepção totalizante ou holística – porque isso pressupõe uma apreensão
por cima ou por fora da interação. A aldeia global de McLuhan será local,
está claro, mas nunca um único e mesmo local (pois local já pressupõe
muitos locais, cada qual – aí sim – único; do contrário desconstitui-se o
próprio conceito de local). Quem a perceber estará expressando a
percepção do emaranhado de conexões no qual está envolvido. Como os
emaranhados são diversos, cada percepção será também diversa. Teremos
tantas aldeias globais quanto os mundos a partir dos quais elas são vistas
como resultado de configurações particulares de interação. Ou seja,
teremos miríades de aldeias globais.

Não é a toa que a visão de McLuhan beire o espiritual (como percebeu


indiretamente Tom Wolfe) ou esteja na fronteira entre ciência e religião,
como a visão de Chardin. A rigor ela pressupõe um ser capaz de exercer a
supervisão de todas as interações, alguém, portanto, não-humano; ou algo
como uma consciência coletiva que conseguisse apreender a totalidade,
uma superconsciência ou uma consciência do que há de comum a todas as
consciências. Mas se existisse um deus ex-machina quem teria acesso a
ele: os sacerdotes? E se existisse uma consciência coletiva com
características de uma Unimatrix One, quem conseguiria vê-la e receber
seus “comunicados”: os borgs?

Há aqui uma confusão de conceitos, um deslizamento epistemológico para o


qual contribuiu o ambientalismo – essa espécie de religião laica de nossos
dias – ao apelar para ações locais que teriam o condão de salvar o planeta
(supostamente ‘o’ global). Como se existissem diretivas globais a ser
materializadas por diversas implementações locais. Mas quem emitiria tais
diretivas, já que ninguém vive no global? Os representantes dos locais?
Ora, mas neste caso sua percepção ou seu entendimento só poderiam ter
surgido nos diversos locais em que eles vivem e convivem e, portanto,
seriam locais (não globais). Além disso, como e por quem seriam escolhidos
tais representantes? Nunca surgiram respostas aceitáveis para essas
perguntas.

Por outro lado, o que seria o planeta? A geosfera e a biosfera? E as


socioesferas? A pergunta sobre as socioesferas (no plural) é relevante, pois
a combinação de expressões locais de vida e convivência social – por mais
numerosas que fossem – não poderia gerar nem ‘o’, nem ‘um’, global. No
limite teríamos, no início da segunda década deste século, sete bilhões de

113
expressões locais, que poderiam se combinar de trilhões de maneiras
diferentes; na verdade tais combinações seriam, por assim dizer,
praticamente inumeráveis.

Sim, mundos são redes. Senão o que seriam? A população do planeta? Mas
população é um dado estatístico, um número. A soma dos indivíduos da
espécie biológica homo não significa nada em termos humanos. E não se
pode somar pessoas.

114
Aprender a fluir com o curso

A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (como quem estoca recursos)


para prorrogar a sua durabilidade, é uma idéia contra-fluzz

O ambientalismo – ainda preso às subculturas do platonismo que


pontificaram no século 20 – difundiu uma idéia de sustentabilidade segundo
a qual o uso dos recursos naturais deve suprir as necessidades da geração
presente sem afetar a possibilidade das gerações futuras de suprir as suas.

O crédito por tal definição – que apareceu no Relatório Brundtland (1987) –


ainda é muito disputado, se bem que sua autoria seja geralmente atribuída
ao ecologista Lester Brown. O significativo é que ela foi aceita como um
consenso universal e foi tomada, axiomaticamente, como uma verdade
evidente por si mesma, passando a idéia – pouco-fluzz - de que a
sustentabilidade é uma espécie de poupança: tratar-se-ia, para efeitos
práticos, de resguardar recursos para as futuras gerações.

O ambientalismo reduziu assim a sustentabilidade à sua dimensão


ambiental, o que – até certo ponto – é explicável: foi observando os
sistemas vivos (organismos, partes de organismos e ecossistemas) que
percebemos um padrão de autoregulação e adaptação às mudanças, uma
capacidade desses sistemas de mudar de acordo com a mudança das
circunstâncias conservando, porém, a sua organização interna.

Mas em vez de se concentrar no padrão e tentar descobrir como reinventá-


lo em nossas atividades humanas e organizações sociais, o ambientalismo
imaginou que tudo se arranjaria a partir da compreensão do funcionamento
dos ecossistemas. Não seria então o aprendizado coletivo, resultante da
experimentação de novas formas de organização e convivência com as
diferenças humanas, como resposta aos desafios de conservar a adaptação
a um ambiente que muda continuamente – ou seja: o aprender a fluir com
o curso –, que tornaria nossas sociedades mais sustentáveis e sim uma
consciência que surgiria pelo conhecimento da natureza e se imporia como
novo padrão ético universal. Eis um novo platonismo que, como qualquer
platonismo, despreza a política, ou seja, a interação entre os humanos ou
as redes sociais.

No entanto, a mais forte evidência que temos sobre a sustentabilidade –


proveniente, aliás, da observação sistemática dos sistemas vivos – é a de
que tudo que é sustentável tem o padrão de rede (11). Ou seja, a de que só

115
sistemas dinâmicos complexos que adquiriram características adaptativas –
apresentando a estrutura de rede distribuída – podem ser sustentáveis.

Se foi observando os ecossistemas que logramos captar as características


de um sistema sustentável, isso não deveria ter levado a uma visão
reducionista da questão, que disseminou uma crença segundo a qual o que
está em risco é apenas a vida como realidade biológica e tentando dirigir
todas as nossas iniciativas de sustentabilidade para, supostamente, “salvar
o planeta”.

Sobre isso, a pergunta fundamental foi feita recentemente por Humberto


Maturana (2010) e seus colaboradores: o que queremos mesmo sustentar
(do latim sustentare: defender, favorecer, apoiar, conservar, cuidar) (12)?

A vida (em termos biológicos) é de suprema importância, é a única


realidade realmente sustentável que conhecemos, mas ela já vem se
arranjando há uns quatro bilhões de anos sem a nossa, digamos,
inestimável ajuda. Seria preciso ver então o que mais queremos sustentar,
de preferência aquilo que de fato depende de nós.

Ocorre que, por meio do que chamamos de social, estamos construindo


mundos humanos, que têm como base o mundo natural, mas que não são
conseqüências do mundo natural. A tentativa humana de humanizar o
mundo ou, para usar uma expressão poética, de humanizar a “alma do
mundo” por meio do social, é uma espécie de “segunda criação”. Para quem
pensa assim, a vida (o simbionte natural) é um valor principal, mas não o
único: certos padrões de convivência social, além da vida (biológica) ―
como a cooperação ampliada socialmente ou a vida em comunidade, as
redes voluntárias de interação em prol da invenção de futuros comuns ou
compartilhados e a democracia na base da sociedade e no cotidiano das
pessoas ― também constituem valores inegociáveis, quer dizer, valores que
não podem ser trocados pelo primeiro. De nada adiantaria, desse ponto de
vista, trocar a livre convivência pela sobrevivência sob um império milenar
de “seres superiores” (como o IV Reich, por exemplo).

Surpreendentemente, aquilo que devemos preservar é, justamente, o que


pode nos preservar como sociedade tipicamente humana. Cooperação,
voluntariado, redes e democracia (em suma, tudo o que produz, relaciona-
se ou constitui o que foi chamado de capital social) são os elementos da
nova criação humana ― e humanizante ― do mundo (o simbionte social),
que lograram se configurar como padrões de convivência social e que vale
realmente a pena preservar. E são esses os elementos que podem garantir

116
a sustentabilidade das sociedades humanas e das organizações que as
compõem (13).

Eis a razão pela qual a sustentabilidade das sociedades humanas não pode
ser alcançada apenas com a adoção de princípios ecológicos (como querem
os defensores ambientalistas ou ecologistas da sustentabilidade, ainda
afeitos a uma visão pré-fluzz de que existe algo como uma consciência
capaz de mudar comportamentos), porque, no caso das sociedades, trata-
se de outros mundos (humano-sociais) que têm como base o mundo
natural, mas que não são conseqüências dele.

A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (como quem estoca recursos)


para prorrogar sua durabilidade (outra confusão ao definir sustentabilidade,
que foi muito comum no velho mundo fracamente conectado) é uma idéia
contra-fluzz. Sustentabilidade não é durar para sempre. Nada dura para
sempre. E a espécie humana também não durará. Ao que tudo indica
desaparecerá bem antes da biosfera (pelo menos a biosfera deste planeta,
a única que conhecemos por enquanto). Mas a própria biosfera (da Terra e,
se houver, de outros lugares do universo) também desaparecerá. O sol
deixará de ser uma estrela amarela em 5 bilhões de anos (com 4 bilhões de
anos a nossa biosfera já esgotou quase a metade do seu tempo de vida). A
Via Láctea está em rota de colisão com a galáxia de Andrômeda, a 125
quilômetros por segundo e o desastre ocorrerá nos próximos 10 bilhões de
anos. Este universo, surgido no Big Bang, será extinto no Big Crunch ou
virará um cemitério gelado se sua expansão não for revertida.

Enquanto isso, nem mesmo a vida, nem a convivência social, permanecerão


como são – ou desaparecerão prematuramente! Mas poderão ser
sustentáveis na medida em que aprenderem a fluir com o curso, quer dizer,
a mudar em congruência dinâmica e recíproca com a mudança das
circunstâncias. Sim, sustentável não é o que permanece como é (ou está),
mas o que muda continuamente para continuar sendo (o que pode vir-a-
ser).

Se um ente ou processo durar (como é), certamente não será sustentável.


Se não aceitar a morte, se buscar uma maneira de se esquivar do fluxo
transformador da vida, nada poderá ser sustentável. Se não aceitar o fluxo
transformador da convivência social nenhum dos mundos que co-criamos
poderá ser sustentável.

Tais mundos sociais que constituímos quando vivemos a nossa convivência


não serão sustentáveis na medida em que quisermos permanecer no “lado
de fora” do abismo. Esse horror ao caos que caracteriza todas as

117
organizações hierárquicas nada mais é do que o medo de perder uma
ordem pregressa ao se abandonar à livre-interação.

118
7
Alterando a estrutura das sociosferas

Aqui estamos, engatinhando pelas frestas


entre as paredes da Igreja, do Estado,
da Escola e da Empresa,
todos os monolitos paranóicos.
Hakim Bey em Caos (1984)

O melhor da religião é que ela produz hereges.


Ernst Bloch em O ateísmo no cristianismo (1968)

119
Os que continuam aprisionados no mundo único dos séculos passados
ainda não lograram perceber o que está em gestação neste período.
A revelia dos cegos “líderes mundiais” e além da compreensão dos
analistas de governos e corporações, grandes movimentos
subterrâneos estão em curso neste momento. De modo molecular,
distribuído e conectado de sorte a formar um feixe intenso de fluxos
– fluzz –, estão se articulando e se expressando glocalmente
experiências inovadoras que tendem a alterar na raiz a estrutura e a
dinâmica das sociosferas. Eis alguns exemplos fulcrais do que está
emergindo:

 Não-Escolas: comunidades de aprendizagem (homescooling e,


sobretudo, communityschooling, cada vez mais na linha de
unschooling) em rede, sem currículo e sem professor e aluno.

 Não-Igrejas: formas pós-religiosas de espiritualidade, livres


das ordenações das burocracias sacerdotais.

 Não-Partidos: redes de interação política (pública) exercitando


a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos
cidadãos.

 Não-Estados-nações: cidades inovadoras – como redes de


comunidades – que assumem a governança do seu próprio
desenvolvimento em rota de autonomia crescente em relação
aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios.

 Não-Empresas-hierárquicas: redes de stakeholders –


demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e
não pode paredes opacas – como novas comunidades de
negócios do mundo que já se anuncia.

120
Fascinante! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas:
construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho mundo;
sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da interação,
para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do caos...

As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre


aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da
experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger
das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano.
Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo
cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da
experiência de empreender.

Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são
corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram
religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos...
Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as pessoas
da experiência de fluzz!

Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e


aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os scripts
dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que, na
verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.

Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-


Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com tal
florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo
radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis revoluções
épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários líderes heróicos,
senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas por pessoas
comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais fomos
poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não
experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser
replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como
escreveu Hakim Bey (1984) – engatinhando pelas frestas entre as paredes
da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos
paranóicos”.

121
Aprendizagem, não ensino

As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre


aprendizagem

- Psiu! Cale a boca. Comporte-se! Pare de conversar. Para de perguntar. Em


vez de conversação, silêncio. A quem é inferior (ignorante) cabe apenas
ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi, é e sempre será escola: um
artifício para proteger os alunos da experiência de fluzz.

Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias do


ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à busca e ao
compartilhamento do conhecimento. São hierarquias sacerdotais cujo
principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de reproduzir atitudes de
disciplina e obediência. Não são ambientes favoráveis à emergência de
dinâmicas interativas, mas à imposição de relações intransitivas. Estruturas
centralizadas, baseadas na separação de corpos: docente (hierarquia-
ensinante) x discente (massa-ensinada).

A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal, escolas são


construções que aprisionam crianças e jovens em salas fechadas, obrigados
a sentar enfileirados, como gado confinado ou frangos de granja; pior: nas
“salas de aula” ficam alguns – a maioria – olhando para a nuca dos outros.
São campos de concentração e adestramento, onde o aluno tem de saltar
obstáculos, vencer as provas. São prisões temporárias em que se tem de
cumprir a pena, pagar a dívida. Não é por acaso que a maior recompensa
na escola é passar de ano. Ano após ano. Até sair. - Ufa! Livre afinal.

Por que construímos tal aberração?

Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da


aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem;
donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino.

Mas ao que tudo indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo,
contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode
até aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um
perigo para alguma estrutura de poder.

Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é


ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de)

122
estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na rede
social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros. Precisa
mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado, funcional
para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E alguém
recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e tais
funcionalidades). Eis a tradição!

Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A


primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma
estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há
ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento).

Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até
bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda
dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada:
os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido,
como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na
separação de corpos entre docentes e discentes.

O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um


ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não há
um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do
aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser
qualquer coisa. Não está predeterminado. Eis a diferença! Eis o ponto! A
aprendizagem é sempre uma invenção. A ensinagem é uma reprodução.
Mas como escreveu o poeta Manoel de Barros (1986) no Livro sobre Nada:
“Tudo que não invento é falso” (1).

O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato


separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente,
como instrumentos de reprodução de programas centralizadores
(verticalizadores) que foram instalados para verticalizar (centralizar) a
rede-mãe.

As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre


aprendizagem. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um perigo para a
reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo
tipo. Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um
reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento-
ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a
que foi submetido. Mas como twittou Pierre Lévy (2010), as universidades
não têm mais o monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes
tentar reter em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma.

123
Autodidatismo, não heterodidatismo

Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito

Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos


condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É assim
que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo: quando
pudermos dizer: eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio
jeito.

Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem


humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos
educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar
com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo).
O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um
aprendente (2).

Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida,


autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma
criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e
publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata.

Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e


reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que
alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam,
também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque
aumenta a freqüência com que, conhecendo uma diversidade cada vez
maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer
que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será
necessário.

Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet e noções rudimentares
de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais
(como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito
mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua
idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino
altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o que leu), escrever,
aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática na solução de
problemas cotidianos e... banda larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é
terrível para os que querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê-
las executar certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que

124
querem formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos
alheios.

Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas


vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens provêem da idéia
de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a burocracia
sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se destacar dos
demais – quando o desejável seria que se aproximassem deles – os “sábios”
precisam que a sociedade continue burra.

Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem organiza


o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em querer organizar
o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo).

Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a


necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus
mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de
cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por
algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda
entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é
claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a
dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem,
assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução
da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da
urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos
currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por
exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de
conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de
determinado padrão organizacional.

Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o


conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado,
protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for
compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com
outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de
valor (e é isto, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos
aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos
necessária uma infra-estrutura hard instalada para produzir conhecimento
(e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as
experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing).

Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando


também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o

125
conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão.
Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não
classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a
pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo
classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar e
a encontraremos para você”.

É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são feitas em
mecanismos fechados que não permitem que o usuário redefina ou
modifique os algoritmos de acordo com suas percepções e necessidades.
Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais programável e cada vez
mais semântica (3).

A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para
“organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que vai
dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um centro de
comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o que elas
devem conhecer.

Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de sociedade


que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas estruturas e
pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas sociosferas que estão
florescendo. Nesses mundos altamente conectados toda a gestão de
organizações (inclusive a gestão do conhecimento) é regulada por meio de
outros processos em rede.

O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o


indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon
social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas
características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos,
uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. A
pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo,
como série de relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em
um ambiente educativo entendido como ambiente de aprendizagem.

Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a


coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga em
uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo.
Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto
de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição do
seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto
pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é
necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo

126
seguida pelo candidato.

Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos


interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma pessoa.
Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os
especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez
horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do
exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso
estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por
uma corporação que tem autorização exclusiva para acessar e licença oficial
para interpretar tais dados.

Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao invés de
aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar
diretamente a wikipedia de cada um – o arquivo-vivo que contém as
definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os
trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de conhecimento
e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se associe ao autor
daquela wikipedia. Ponto final.

127
Alterdidatismo, não heterodidatismo

“Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”

De certo ponto de vista, nos Highly Connected Worlds qualquer um vai


sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental, como
vimos, é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na
transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na disponibilização
de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem. Os que
se metem a organizar processos educativos para os outros deveriam
começar perguntando o que é necessário para que uma pessoa e uma
comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de aprendizagem.

Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto


ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente humana
(quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): estabelecer conexões;
reconhecer padrões; e linguagear e conversar (no sentido que Humberto
Maturana confere a essas noções) (4).

A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa


ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então
listar as ferramentas de auto-aprendizagem ou “alfabetizações” (em um
sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e
escrever e interpretar o que leu); e as outras “alfabetizações”, como, por
exemplo, em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em
inglês ou espanhol); matemática (dominar as operações matemáticas
elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana);
lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos
simples); digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas
digitais de inserção, articulação e animação de redes).

Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas contemporâneas


da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode caminhar sozinho; ou
seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em função de suas opções
pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de formação e compartilhá-
los com suas redes de aprendizagem. Esses são os requisitos para o
autodidatismo.

No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor,


ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender está
intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a

128
escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se
poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o
ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a expansão dessa
rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos).

O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) talvez


requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização em
sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o
empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável
local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em um sentido
deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de
relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes
sociais distribuídas). Mas essas “alfabetizações” não são temas curriculares
ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas compartilhadas de
aprendizagem.

Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para a
vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, inclusive o
ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos
currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de
aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender essas
coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las,
experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives
geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem).

É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se torna


um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse aprender-
fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos passam a ser
agentes comunitários de educação.

Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que qualquer


um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do alterdidatismo) que,
a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se dizendo a mesma coisa:
que o heterodidatismo no qual se baseiam os sistemas de ensino é uma
muleta que deve ser abandonada.

Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos


condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É
assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo: quando
pudermos dizer: eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos.

A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A


escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é alguém

129
que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social em que
vive.

Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar


oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação
comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se
libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será
alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente.

Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter


condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade
para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e
de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do
processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, de tudo
isso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a
valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar
homologias entre configurações recorrentes de interação que caracterizam
clusters (e, conseqüentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar
oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir e
disseminar informações e conseguir não somente trabalhar em grupo, mas
fazer amigos e viver e atuar em comunidade.

De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a convivência


ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a educação para o
empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a sustentabilidade, não
comparece nos currículos das escolas. Não pode ser por acaso. Isso talvez
corrobore a constatação de que a escola é uma das instituições que mais
resistem ao surgimento da sociedade- rede.

Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas


são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que
decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de
aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua
capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a
educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos
mesmos motivos, processos e programas educacionais extra-escolares são
duramente combatidos pelas corporações de professores, que argumentam
– sem se darem conta de que, com isso, estão apenas revelando seu
caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de
leigos...

No entanto, neste momento estão sendo elaboraradas e testadas


metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn

130
from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my
friends” - Karen Stephenson) baseadas na idéia de cidade educadora
reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem. Novas
práticas estão surgindo a partir de experiências voltadas ao estímulo ao
autodidatismo, adaptadas às novas formas de interação educativa extra-
escolares, como o homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém
na linha do unschooling. Novas teorias da aprendizagem, como o
conectivismo, estão tentando mostrar como as redes sociais devem
constituir o padrão de organização das novas comunidades de
aprendizagem capazes de disseminar e empregar ferramentas de auto-
aprendizagem e de comum-aprendizagem (5).

131
Não-escolas: a escola é a rede

Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede)

Nos Highly Connected Worlds a educação não pode ser mais nada disso que
andaram falando nos últimos quatro séculos do mundo único. Simplesmente
porque não haverá ‘a’ educação.

O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito


totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o
conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não pode
existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de
processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade
de sociosferas.

O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença


de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada
que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como a
Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos.

Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando a


geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social) for
libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade terminará.
A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A
escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando
pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente
(em rede). Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-
convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados nem
ensinadores. Porque todos seremos aprendentes.

Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas “sociedades


desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich (6). A sociedade sem
escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola, desde que
ficasse claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos falando das
comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede.

Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistados na


sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade de
massa vai dando lugar à sociedade em rede, são as próprias sociosferas
(glocais) que educam, por meio das comunidades (clusters) que
necessariamente se formam em seu seio.

132
Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de
aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale para
tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação formal.
Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e investigação, as
sociedades filosóficas e os grupos criativos que usinam novas idéias e
inauguram novas maneiras de pensar (a escola na sua acepção de think
tank).

133
Matar a escola = matar o Buda

Quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece

É difícil entender a natureza de uma não-escola. No mundo único as


pessoas buscavam um sistema produtor de respostas capazes de fazer
sentido global para elas. Eram atraídas por religiões, igrejas e seitas
(religiosas e laicas), sociedades filosóficas e escolas de pensamento
(mesmo aquelas que, baseadas na conversação, se intitulavam
comunidades). Elas forneciam a proteção contra a pergunta-disruptiva por
meio de uma meta-explicação coerente, a segurança de uma grande
narrativa totalizante ou de esquemas explicativos gerais que permitiam que
alguém se identificasse e comungasse com outros que palmilhavam o
mesmo caminho e tivesse, assim, uma justificativa ética para se fechar à
interação com o outro-imprevisível. Mas tudo isso é escola!

É muito difícil não construir um esquema organizador para as conversas


mantidas por qualquer grupo. Mas a tarefa em uma não-escola não é criar
uma espécie de wikipedia, nem mesmo uma contextopedia, com os
significados que foram sendo construídos via consenso-administrado a partir
do debate ou da conversação. Não há significados gerais universais. Não há
significados sempre válidos para os mesmos contextos (inclusive porque, a
rigor, nunca se repetem "mesmos contextos"). Há significâncias atribuídas
por sujeitos em interação e válidas para os momentos de interação em que
tais sujeitos estão envolvidos. São significados-fluzz, que mudam
continuamente com o fluxo e o máximo que podemos fazer é mapear as
relações entre esses significados mutantes. Sim, reconheçamos que não é
fácil para nós aceitar o presente, não é fácil resistir à tentação de arquivar o
passado em caixinhas, sobretudo se as plataformas que utilizamos são p-
based (baseadas em participação) e não i-based (baseadas em interação).

Mas já não se trata mais de sistematizar conteúdos ou de interpretar e


sintetizar respostas cognatas ou convergentes. Trata-se agora apenas de
linkar para facilitar a busca. Quem organiza o conhecimento é a busca.
Quem produz (novo) conhecimento (como relação sempre inédita, não
como conteúdo arquivável) não é a gestão, mas a interação.

Na configuração de novos ambientes interativos de produção de


conhecimento não deve haver "progresso", no sentido de constituição de
um corpo coerente, que vai se tornando cada vez mais redondo e polido
(até que a epistemologia consiga espelhar a ontologia). Não se trata de

134
construir um códex, uma doutrina, um ensinamento, uma teoria explicativa
de tudo, uma nova plataforma de visão de mundo. Isso é o que diferencia
as novas escolas-não-escolas dos mundos altamente conectados, de uma
escola, quer dizer, de uma igreja (7).

Sim, as escolas como centros de pensamento também são igrejas. Elas


surgem quando criamos programas de separação entre os de dentro e os de
fora a partir de um conteúdo, de uma mensagem, de uma doutrina, de um
conjunto de idéias que alguns compartilham e outros não. Se fizermos isso,
erigiremos uma escola; quer dizer, uma igreja.

Se você junta os que compartilham qualquer corpo de idéias (mesmo que


sejam idéias tão heterodoxas e libertárias como estas que estão sendo
expostas aqui e agora) e, a partir daí, constrói um coletivo, você está
fazendo uma escola. Não importa o que você pense, valorize, fale ou
pregue: você ensina, quer dizer, escorre por um sulco já cavado pelo
ensinamento!

Há uma coerência interna e há completude em boa parte das escolas de


pensamento que floresceram nos milênios passados. É como um mundo que
foi construído (e ninguém se engane: há sabedoria nesse mundo; a questão
é que sabedoria não pode ser um critério aceitável para validar sistemas
hierárquicos). E ocorre que existem múltiplos mundos. Se você exige que
uma pessoa viva na coerência do mundo que você construiu como condição
para se deixar alterar por essa pessoa (ou seja, interagir com ela), então
você não está realmente aberto à interação (com o outro-imprevisível):
você quer participação dos outros no seu espaço, o que é uma forma de
exigir (sem aparentemente fazer qualquer exigência formal) que os outros
vivam na mesma coerência em que você vive. Mas essa é a definição de
seita, de escola.

Não é um problema de comunicação, de adaptar a linguagem ou adotar


uma postura tática para se fazer entender pelos "de fora". Nada disso. O
problema aqui é a rede (ou melhor, a falta dela)

Esse comportamento em geral não é intencionalmente constituído e


reproduzido. Ele é uma decorrência do padrão de organização adotado. Faça
uma rede aberta de conversações e ele se esfuma; ou seja, a escola
desaparece para surgir em seu lugar uma rede de livre aprendizagem.
Assim como desaparecerá o codex, o corpo doutrinário referêncial único: ou
seja, o legado fundante da escola de pensamento desaparecerá para dar
lugar a miríades de construções conceituais por ele inspiradas.

135
O problema é que toda ereção de um sistema implica uma armadilha. Você
fica rodando dentro dele. E para dialogar com as pessoas que vivem nele,
você também precisa também rodar dentro dele. A palavra "rodar", aqui, é
empregada no sentido contemporâneo de "rodar um programa" (software).
Sim, porque o sistema sobre o qual falamos, é um programa de atribuições
de significados e, mais do que isso, de construção dos processos
particulares pelos quais se atribui significados. Para interagir com quem
está dentro do sistema você precisa se plugar e "carregar" o programa (em
você). Ao carregar o programa, você carrega também sua linguagem
(script) e, além disso, seu linguageado e, às vezes, até mesmo seu gestual.

Pode-se retrucar que isso ocorre, em maior ou menor medida, com


qualquer construção conceitual que apresente os critérios epistemológicos
de coerência interna e completude. É verdade. Mas quando o sistema valida
seus argumentos internamente, estando os critérios de validação tão
implicados no que se quer validar e vice-versa (ou seja, estando a
epistemologia tão fundida à ontologia), a verificabilidade fica subordinada
(sub-ordenada) pela explicação auto-referente. É por isso que, em ciência,
não se pode abrir mão do critério da verificabilidade, que deve ter o mesmo
status epistemológico dos critérios da coerência interna e da completude (as
quais, sozinhas, não bastam). Assim, os resultados de uma explicação
devem sempre poder ser verificados por sujeitos que adotam outros
esquemas explicativos.

Um bom exemplo de escola de pensamento é a escola freudiana nos seus


primórdios. Uma pessoa deve poder verificar os efeitos do que a explicação
freudiana atribui a determinado complexo sem ter que adotar a explicação
freudiana. Se sou obrigado a me tornar freudiano para perceber os
fenômenos psíquicos que poderiam ocorrer com quaisquer seres humanos
independentemente da explicação freudiana (e da existência de Freud),
então estou preso a um sistema incapaz de interagir com outras explicações
(externas às circularidades freudianas). E corro o risco de recair no
dogmatismo dos primeiros freudianos: uma pessoa deve poder contestar a
existência de um complexo sem ser acusada de estar fazendo isso
justamente por estar possuída por tal complexo. Em alguma medida, isso
ocorre com todos os sistemas auto-referentes, sobretudo na sua "primeira-
infância".

Eric Raymond (2001), no Hacker Howto (8) aconselhava o estudo do Zen


aos hackers, sem dúvida um formidável software de desconstituição de
certezas, compartilháveis por uma ou várias comunidades. Talvez seja o
caso, porém, de voltar ao Tao, para limar as aderências doutrinárias que o

136
Zen adquiriu: ao se fundir ao budismo foram introduzidos conteúdos... Sim,
continua sendo o Zen, mas só depois de você matar o Buda.

Qualquer comunidade de pensamento precisa matar o seu fundador (que é,


inclusive, a melhor forma de amá-lo). Quando esse fundador é uma pessoa,
precisa se livrar das aderências de um modo-de-argumentar, de uma
autêntica maneira particular de pensar, falar e escrever que fazia sentido
para aquele ser humano unique que a fundou. E o passo seguinte dessa
ação de amar tão profundamente o fundador ao ponto de matá-lo é não
constituir um grupo proprietário em torno de suas idéias, de abrir mão de
erigir um corpo docente (uma escola) a partir de um corpo teórico para
propagar um ensinamento que possa ser diferencialmente ministrado por
"representantes autorizados", ainda que tudo isso seja – o que será pior –
chancelado pelo próprio fundador. Isso é uma condição de contorno opaca
quando precisamos de membranas.

Não afirmamos que se deva matar o fundador apenas no sentido de matar a


sua imagem idealizada e introjetada, tal como alguns interpretam o lema
killing the buddha (como disse a pessoa-zen Lin Chi: “Se o Buda cruzar seu
caminho, mate-o”). Trata-se de desabilitar um programa verticalizador que
roda na rede gerando instituições que congelam fluxos. Trata-se de 'matar
a escola' (no caso, constituída sobre um legado de pensamento
transformado em ensinamento).

Não tem nada a ver com querer ver morto algum fundador por achar que
ele já está caduco ou ultrapassado. É o contrário. Quando se diz "matar o
Buda" isso significa uma admiração suprema pelo Buda, como prefiguração
do Buda que está-em-devir em cada um de nós e que só vai despertar
quando o Buda que está fora desaparecer como referência (externa porém
introjetada em uma espécie de falsa conniunctio). Mas, particularmente, no
contexto desta discussão, significa matar a escola como ordenação do
ensinamento abrindo possibilidades de formação de múltiplas comunidades
de aprendizagem para além do círculo restrito dos que se matriculam em
um curso ou seguem um programa privando da convivência de um grupo
determinado.

Ocorre que com a acelerada emergência, agora, dos Highly Connected


Worlds, vida humana e convivência social tendem a se aproximar a ponto
de revelar ou deixar entrever um superorganismo humano. Isso nos obriga
a mudar nossas interpretações. E é um choque para as chamadas tradições
espirituais (todas estas são artifícios para administrar espiritualidades
conformes ao mundo patriarcal e não por acaso são baseadas nas escolhas
do indivíduo, são ministradas por escolas - burocracias sacerdotais do

137
ensinamento - e mantêm a relação mestre-discípulo). Agora será preciso
mostrar que quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece e,
portanto, chegar à condição de mestre é chegar à condição do aprendente:
aquele que matou o mestre não apenas quando matou a imagem idealizada
do mestre dentro de si (introjetada), mas quando matou a escola. E tudo
isso para quê? Ora, para que o Buda morto não renasça nas mãos dos que
o mataram.

Em outras palavras, não há como construir a base ideológica (ou de


mundivisão) para uma grande narrativa em uma época em que não cabem
mais os esquemas totalizantes de apreensão do mundo e de interação com
o mundo. Não é mais possível a existência de uma (única) matriz ética para
a humanidade. Em uma época em as redes cobrem o planeta como uma
pele e em que, por um processo fractal, uma pluralidade de mentes globais
está surgindo, não se trata mais de forjar um grupo para usinar um modelo
e espalhá-lo e sim de surfar nas ondas interativas que estão fertilizando os
diversos modelos que emergem de uma diversidade de comunidades de
prática, de aprendizagem e de projeto que estão brotando e submetendo
seus programas à esse tipo de polinização complexa. Essa visão é chave
para não irmos parar de volta em algum lugar do passado: o processo é
fractal! Não é possível salvar o mundo de uma vez: só é possível salvá-lo
um instante de cada vez... (9) Mesmo porque não existe mais um mundo:
os mundos já são – e serão, cada vez mais – múltiplos.

Sim, não estamos mais na época do anúncio de uma nova proposta que, se
abraçada por muitos no seu refletir-agir, vai supostamente salvar o planeta
(harmonizar biosfera com antroposfera), redimir a humanidade ou nos levar
para um porvir radiante. Não sabemos qual é o futuro. Sobretudo porque
esse futuro (um futuro), felizmente, morreu. Não podemos pretender levar
ninguém para lugar algum. A época em que vivemos é a época da
desistência (10). A hora que vivemos é, portanto, a hora de abrir mão
dessas pretensões de conduzir povos, orientar nações, mobilizar pessoas
em torno de um objetivo comum para transformar a sociedade (e ‘a’
sociedade, como vimos, é uma abstração regressiva).

Fomos contaminados por um padrão transformacional de mudança e


queremos então transformar a sociedade. Mas... transformar para chegar
aonde? E transformar o quê? E transformar em quê? E transformar por quê?

Atravessados por essa pulsão transformacionista, legiões de militantes que


continuam habitando os séculos passados vivem querendo fazer mudanças
(que eles não podem, honestamente, saber quais são) em nome de uma
causa. Mas é inútil. As mudanças em sistemas complexos (e as sociedades

138
humanas são sistemas complexos) ocorrem, em boa parte,
espontaneamente (se entendermos por isso que ocorrem em virtude de
fluições que não alcançamos compreender e determinar). Estamos lidando
com uma ordem de fenômenos que não podemos manejar (e é bom para a
liberdade – para a livre aprendizagem humana – que não possamos fazer
isso). A livre aprendizagem humana só pode ocorrer em redes de
aprendizagem, quando nos libertarmos das escolas.

Se quisermos uma rede de aprendizagem – i. e., uma não-escola – não


podemos constituir um grupo que saia pelo mundo propagando um legado
baseado nas idéias de algum fundador. Para ser uma rede, o legado tem
que ser open, para poder ser desenvolvido, alterado, modificado, sem
necessidade de ordenação ou chancela. Para poder ser rede a membrana
deve deixar entrar e sair outros conteúdos dentro do escopo estabelecido
(posto que se será uma rede voluntariamente construída haverá um escopo
delimitado e algumas regras ou acordos de convivência, mas isso nada tem
a ver com a adesão a um conteúdo substantivo). Sempre sem exigências, é
claro. Mas sabendo que sem interagir com o outro imprevisível, com aquele
que não planejamos interagir, não pode haver rede (social distribuída).

Em suma, uma escola deve ser uma não-escola para ser rede. Não basta
fluir na sintonia interna dos que acolhem o outro que reconhecem como
desejoso de conservar o que querem conservar, do lugar onde estão, desde
que esse conservar seja referente a um compartilhar um determinado
conteúdo. Dizendo a mesma coisa de outra forma, não é o desejo (dos
sujeitos) de conservar determinado corpo teórico, nem mesmo o desejo de
conservar um modo de convivência explicitável e explicável (pelos sujeitos)
que constitui a comunidade humana (ou a rede). A rede acontece quando
você interage. Tudo que podemos fazer para ensejar a interação é evitar a
produção artificial de escassez (é mais um não-fazer). Não adianta
sistematizar conteúdos e esperar que, sintonizando-se com tais conteúdos,
as pessoas passarão a conviver em rede. Isso ainda está no terreno do
proselitismo (uma dimensão de ensino, de propagação de ensinamento, não
de aprendizagem).

As regras ou acordos de convivência estabelecidos por uma rede


voluntariamente construída não são o mesmo que a adesão a um conteúdo
substantivo (e, portanto, ninguém pode ser expulso de uma não-escola por
estar em desacordo ou dessintonia com um conteúdo e ninguém terá como
condição para ser admitido estar de acordo com tal conteúdo, como fazem
as religiões, as seitas iniciáticas e as escolas de pensamento, inclusive as
escolas budistas que aconselham matar o Buda).

139
Espiritualidade, não religião

Formas pós-religiosas de espiritualidade, livres das ordenações das


burocracias sacerdotais

Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo, formas pós-
religiosas de espiritualidade vão florescer. Elas serão mais-fluzz, quer dizer,
mais expressões do curso que flui nas relações entre os humanos e dos
humanos com o seu habitat do que tentativas de sintonia com um todo
cósmico extra-humano. Elas serão espiritualidades consumáveis na
interatividade ("terrestres" no sentido de serem realizáveis sem produzir
anisotropias no espaço-tempo dos fluxos).

Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que religião, prá que igreja?

Humberto Maturana (1993) reinterpretou a origem das crenças místicas que


estão na base das experiências que dão significado à vida humana a partir
da hipótese de que havia (ou poderia e, então, poderá novamente haver)
uma "espiritualidade" inerentemente terrestre (como a que apresentavam
supostamente as sociedades agricultoras-coletoras incidentes na Europa
pré-patriarcal) (11).

O relevante nesse esforço de modificação do passado (quer dizer, de


modificação do passado que só não-passou porque continua dentro da
nossa mente, ou melhor, continua se propagando através da cultura, dos
programas que "rodam" na rede social e por isso se replicam) é que essa
"espiritualidade" ou experiência mística não gerou propriamente religiões.

A visão de Maturana sobre o que chamamos de religião é precisa: "uma


religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes
como o único correto e plenamente verdadeiro" (12).

Com efeito, para ele,

"No processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indo-


europeus criaram uma fronteira de negação de todas as conversações
místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma distinção
entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e
falsas. No âmbito espiritual, realizaram a praxis de exclusão e
negação que, operacionalmente, constitui as religiões como domínios
culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma

140
comunidade pelos defensores da verdade ou das "crenças"
verdadeiras... [Quando se forma uma comunidade de crentes] o
corpo de crenças adotadas pelos novos crentes - qualquer que seja
sua complexidade e riqueza - não constitui uma religião. Isso só
ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas crenças
revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual eles se
apropriaram por meio da negação de outras crenças... A apropriação
de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta como verdade
universal constitui o ponto de partida ou de nascimento de uma
religião" (13).

Se Maturana pode imaginar uma matriz assim, projetando-a no passado,


também podemos fazer o mesmo, projetando-a no futuro. No mundo que
criou, Maturana está absolutamente certo do ponto de vista dos novos
mundos que quisermos co-criar.

A dimensão mística (ou espiritual) faz parte de qualquer cultura que se


possa chamar propriamente de humana. Como bem define Maturana, "a
experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si
mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações
de existência... depende da rede de conversações em que ela está imersa, e
na qual vive a pessoa que tem essa experiência" (14).

Não há, portanto, qualquer problema com a espiritualidade. O problema é


com a religião. Não precisamos para nada de uma pós-espiritualidade e sim
de novas formas (pós-religiosas) de espiritualidade.

Podemos erigir igrejas, em um sentido amplo do termo (tão amplo que


abarque até mesmo as escolas), sem ter religião (e podemos, ainda,
codificar religiões laicas). Mas igreja, stricto sensu, só surge realmente
quando erigimos um corpo separado de intérpretes, ou seja, uma
burocracia sacerdotal que, por algum motivo, seja ordenada para fazer
alguma intermediação entre o leigo (o não ordenado) e a revelação ou a
fonte prístina da doutrina codificada (como nas religiões baseadas em
escrituras).

Todas as chamadas tradições espirituais que surgiram na civilização


patriarcal são míticas-sacerdotais-hierárquicas-autocráticas. E não é a toa
que se possa falar de uma tradição: há um fundo comum a todas elas.
Todas - não apenas as templárias - replicam anisotropias no espaço-tempo
dos fluxos (privilegiando, de alguma forma, a direção vertical).

141
As doutrinas da tradição verticalizaram o mundo "povoando” todo o
universo simbólico - ou aquilo que foi chamado de "mundo da psique" - com
formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos social que
mantenha as mesmas propriedades em todas as direções, mas, pelo
contrário, que privilegiam a direção vertical. Não é por outro motivo que
achamos que deus está em cima e que o céu está em cima; o caminho
evolutivo é sempre pensado como uma subida e o regressivo como uma
descida. São camadas e camadas de interpretações simbólicas, depositadas
uma sobre a outra, milênio após milênio.

Basta entrar em um templo de qualquer ordem espiritual tradicional para se


perceber com que profundidade o universo simbólico está marcado pela
direção vertical. Nessas construções – sobretudo da tradição ocidental,
herdeira do simbolismo templário babilônico, i. e., sumério – o caminho que
nos conduz para deus, representado em geral por um triângulo, passa entre
as duas colunas que se elevam do piso plano. E então encontramos o
triângulo com o vértice para cima, sobre o quadrado, o pentagrama
verticalmente orientado e muitas outras "orientações" que "norteiam" o
desenvolvimento dos rituais e das práticas mágicas. O conteúdo ideológico
que esses símbolos encarnam está inegavelmente associado à idéia de um
poder vertical, do qual a pirâmide é o mais expressivo exemplo. E há ainda
as escadas, muitas escadas, introduzidas por primeiro pelos templos
sumérios - os zigurates: pirâmides feitas de escadas, com degraus
representando graus de subida; ou de descida.

Se houver uma mística (ou espiritualidade) não-patriarcal (nem matriarcal,


é óbvio) ela será terrestre (horizontal, ou melhor, multidirecional). Toma-se
aqui "terrestre" como isotrópico (nada de privilegiar a direção vertical: as
fluições devem manter as mesmas propriedades em todas as direções).
Ora, isso casa perfeitamente com a idéia de “formas pós-religiosas de
espiritualidade” (uma feliz expressão de William Irwin Thompson) (15).
Essas formas também não podem ser codificadas como doutrinas e nem
servir de base para a ereção de igrejas (de qualquer tipo, stricto ou lato
sensu). É a espiritualidade da vida cotidiana, da pessoa comum, do
conectado a uma rede de conversações, do livre-interagente (não
exatamente do participante) com o outro-imprevisível (e, portanto, aberta
ao compartilhamento fortuito e não fechada no cluster dos que professam a
mesma fé).

142
Quem disse que os deuses não existem?

Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos e


autocráticos como as religiões que os construíram

Os problemas com as igrejas (e religiões) erigidas no contra-fluzz não têm


nada a ver com os deuses. Têm a ver, isto sim, com os deuses das igrejas
(e das religiões). Deuses existem desde que existe sociedade humana,
muito antes de erigirmos igrejas e constituirmos religiões. E igrejas e
religiões seriam – e foram, e são, e serão – sempre problemas (para a
rede-mãe), mesmo sem quaisquer deuses.

“Quem mandou dizer ao povo que os deuses não existem?” A pergunta teria
sido feita – em tom de reprimenda – por Robespierre aos seus
correligionários. Mas se isso não for uma lenda, se ele fez realmente tal
pergunta, foi movido por maus motivos: não lançar desesperança sobre as
massas... Faz parte da mentalidade de comando-e-controle. Agora, porém,
podemos refazer a pergunta de outra forma: quem disse que os deuses não
existem?

Quanto mais investigamos as redes, mais evidências surgem de que os


deuses existem. Se não existissem, como explicar que tantas pessoas, ao
longo da história (e inclusive na pré-história), tenham pautado seus
comportamentos em sintonia ou obediência ao que acreditavam ser a
natureza, a essência ou os ditames divinos? Eles existem, sim, como
modelos mentais, quer dizer, sociais (16).

Os deuses, se já não se pode acreditar que sejam criadores do cosmos


natural, sem dúvida são criadores de cosmos sociais. Eles são matrizes de
programas que rodam na rede social. Congregam modelos do que será
constelado no espaço-tempo dos fluxos e do que virará fenômeno social e,
até, do que se codificará como norma, do que se congelará como instituição
e do que se materializará como cidade, rua, praça. Sim, Zeus Agoraios
estava de fato presente naquela praça do mercado da velha Atenas
chamada Ágora. Mas o que significa dizer isso?

Até a democracia nascente – laica por essência – tinha lá os seus deuses:


por exemplo, o Zeus Agoraios e a deusa Peitho. Mas quando os gregos do
século de Péricles invocam Zeus Agoraios eles conferem às conversações
entre os homens livres na praça do mercado (o espaço público nascente) o
caráter de algo digno de ser abençoado e protegido por um deus, abrindo

143
uma brecha na tradição centralizadora (hierarquizante) segundo a qual os
deuses tratavam desigualmente os humanos, ungindo os hierarcas e seus
representantes (reis e sacerdotes) para conferir-lhes a autorização (divina)
de exercer o poder sobre os demais e guiá-los por algum caminho. Quando
os gregos invocam Peitho, a persuação deificada, eles confrontam a idéia
autocrática de que a política era uma continuação da guerra por outros
meios. Como escreveu Hannah Arendt (c. 1950) (17):

“No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro


caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em
torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens
livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política’ — ou seja,
aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos
negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em
torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o
conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo
de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem
violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em
contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por
completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre
os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo,
com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas,
com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘a
política’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida
necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os
quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo.
Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e
obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da
persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego”.

Os deuses da democracia grega eram deuses da conversação, quer dizer,


deuses-fluzz, deuses da interação. É claro que havia um âmbito a-político e
não democrático na Grécia e, assim, havia também outros deuses
hierárquicos e autocráticos (por exemplo, todos os deuses associados à
guerra e à jornada do herói, aos vaticínios e ao destino).

Mas como? Se a democracia é laica, por que teria ela seus deuses? Pois é.
Laico não quer dizer propriamente ateu (sem deus) e sim sem religião
(institucionalizada); ou seja, ser laico significa não fazer parte da burocracia
sacerdotal instituída para intermediar a relação do homem com a divindade,
isto é: para separar o ser humano da divindade; ou, como disse Jung, para
proteger o homem da experiência de deus, abrindo sulcos para fazer
escorrer por eles as coisas que ainda virão; ou ainda – o que é a mesma

144
coisa – pavimentando com a crença um caminho para o futuro (e
conseqüentemente, eliminando outros caminhos, reduzindo nosso estoque
de futuros possíveis, exterminando mundos).

Não, não há nenhum problema com os deuses. Os deuses das religiões


foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as
religiões que os adotaram (na verdade, que os construíram para seus
propósitos). A questão relevante agora não é a de saber se existem ou não
existem deuses (uma controvérsia tola), mas a de saber em que medida
algum deus (um programa capaz de rodar na rede-mãe e de ensejar algum
tipo de experiência mística ou espiritual, permitindo que uma pessoa viva a
si mesmo como componente integral de um domínio mais amplo de
relações de existência) favorece a reprodução de uma sociedade hierárquica
ou a emersão de uma sociedade-em-rede.

Os deuses pré-patriarcais foram naturais e não geraram religiões. Os


deuses patriarcais foram sobrenaturais e geraram, estes sim, instituições
hierárquicas: escolas (e ensino), igrejas (e religiões) e, sobretudo, Estados.
(Quem sabe os deuses pós-patriarcais serão sociais e não gerarão nenhum
desses tipos de deformações na rede-mãe – o que não significa, como
veremos adiante, que não possam inspirar novas formas mais interativas de
espiritualidade).

Não é por acaso que as primeiras formas de Estado erigidas nas cidades
antigas – as cidades-Estados da velha Mesopotâmia – tinham seus deuses.
Cada uma tinha lá o seu deus ou a sua deusa. Um eco empalidecido dessa
tradição são os nossos santos e santas padroeiros de cidades. Na
Antiguidade, porém, as cidades não eram apenas consagradas ou dedicadas
ao um deus ou deusa, senão que pertenciam aos deuses. Uruk e Ur eram
de Innana, Nippur e Lagash de Ninurta

A cidade-Estado-Templo sumeriana era uma habitação para um deus. Os


seres humanos viviam nelas de favor. E para trabalhar para os deuses, para
ser seus escravos (os feitores, é claro, eram os sacerdotes). Adorar (ter
uma devoção) era a mesma coisa – inclusive etimologicamente – que
trabalhar (a palavra hebraica ‘avod’, que pode ser traduzida por devoção,
adoração e também por trabalho, ecoa esse perverso sentido ancestral).

Os deuses em questão não eram os seres espiritualizados que foram


idealizados depois. Eram apenas os superiores. Sobre-humanos sim, porém
belicosos, intrigantes, genocidas, carnívoros... Está claro que eram – ou se
manifestavam como – programas verticalizadores do cosmos social. Não
eram sobre-humanos no sentido de serem mais perfeitos do que os

145
humanos e sim no sentido de que não eram humanos, sua “presença” não
era humanizante.

Depois, por algum motivo, eles se hospedaram no subsolo de nossa


consciência social (?), naquela região misteriosa que foi chamada de
inconsciente coletivo (!). Eles eram mais ou menos assim como os vírus que
hoje tentam invadir nossos websites. É curioso que alguns sistemas de
segurança anti-spam, lançando mão de um Teste de Turing reverso –
Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans
Apart (CAPTCHA) – sugestivamente perguntam: “Você é humano?” e então
mandam a gente copiar algumas letras com formatação desfigurada (coisa
que, por enquanto, os robôs virtuais ainda não conseguem fazer, só os
humanos). Nenhuma organização hierárquica passaria nesse teste!

Deuses sobre-humanos (ou não humanizados) levam necessariamente a


sistemas de dominação. Todo relacionamento vertical recorrente (estrutura
centralizada) materializa um sistema de dominação. Osho acertou em cheio
o coração do problema quando disse: “não tenho nenhum Deus; desse
modo, não tenho nenhum programa para você no qual você possa ser
transformado em um escravo”. Ele decifrou o enigma quando identificou os
deuses das religiões com um programa, um programa verticalizador.

Portanto, o problema não são os deuses e sim esses deuses criados à


imagem e semelhança dos hierarcas, que talvez os tenham criado assim ao
não aceitarem o fluxo transformador da vida, para tentar evitar a morte; e
ao não aceitarem fluzz – o fluxo transformador da convivência social –, para
tentar perenizar os mundos que construíram em detrimento de outros
mundos possíveis.

Sim, o problema são os deuses autocráticos, feitos à imagem e semelhança


dos sistemas de dominação. Esses deuses serão hierárquicos, por certo,
mas, do ponto de vista das redes distribuídas, não haveria nenhum
problema com deuses humanizados que não exigissem culto, obediência ou
subordinação (como Jesus de Nazareh, por exemplo, aquele judeu marginal
que humanizou IHVH, desde que não se tivesse tentado instrumentalizar
suas experiências de vida e convivência social para codificar doutrinas,
constituir religiões e erigir igrejas). Mas, como? Atribuir a uma pessoa, com
exclusividade, um caráter divino, como fizeram, por alguma razão, seus
primeiros discípulos, não seria um contra-senso nos mundos altamente
conectados em que cada pessoa é uma singularidade em um mesmo tecido
(social), possuidora, portanto, do mesmo status (humano) de todas as
outras? Ora, William Blake, um poeta – porque os poetas são pessoas-fluzz

146
– já resolveu essa questão para nós quando escreveu: “Jesus é o único
Deus. Assim como eu, assim como você”.

Desse mesmo ponto de vista, não haveria nenhum problema com deuses
pós-patriarcais que fossem sociais (como o que foi chamado de Espírito
Santo e que a comunidade dos amantes celebra dizendo: “Ele está no meio
de nós”) – para seguirmos a numinosa compreensão, manifestada algures
por Leo Jozef (Cardeal) Suenens, quando escreveu: “É precisam que sejam
muitos para ser Deus”.

Deuses divididos? Osíris foi – em uma de suas “não-vidas” – um deus


dividido, acorde às necessidades de descentralização da teocracia faraônica.
Deuses pós-religiosos serão fractalizados, acorde às contingências de
distribuição dos Highly Connected Worlds. Sim, os deuses se modificam
quando modificamos o hardware. E consequentemente muda também o que
chamamos de espiritualidade.

Em um mundo distribuído não pode haver culto organizado


centralizadamente (por igrejas). Libertada do culto (e das suas ordenações
religiosas), a espiritualidade também se distribui por todas as pessoas, cada
qual podendo livremente vivê-la de acordo com suas conexões. Cada
pessoa (que quiser) pode experimentá-la nas contingências do seu fluir, em
sintonia com as redes sociais em que está imersa; ou seja, convivendo-a.

No mundo único as pessoas viveram oprimidas por idéias totalizantes e


uniformizantes, fossem, por um lado, provenientes da crença religiosa em
um deus único (e incognoscível), fossem – pelo lado oposto – provenientes
da crença tola de que deus não existe, ditada por uma ciência promovida a
pansofia. Isso gerou um sem número de problemas, sobretudo psicológicos,
quando as pessoas passaram a reprimir sua espiritualidade por medo do
vexame e da reprovação dos bem-pensantes. Tal “verdade” supostamente
libertadora, revelada por uma ciência deslizada do seu escopo, baseada em
uma espécie de religião laica iluminista, era, na verdade, opressiva.
Libertadas desse bom-senso ateista as pessoas podem ter sua própria
experiência de deus (ou de qualquer ente ou processo que queiram escolher
para representar ou simbolizar um domínio mais amplo de relações de
existência no qual se sintam inseridas e possam viver tal inserção),
interagindo.

Tal inserção, é claro, também pode ser vivida sem conotação mística. Como
disse Ilya Prigogine (1986) em entrevista a Renée Weber, em Diálogos com
cientistas e sábios: “Pessoalmente, sinto que chegamos hoje à percepção de
estarmos entranhados no mundo como um todo. Estamos descobrindo um

147
vínculo sem recorrer a nenhum misticismo externo, estranho” (18). O que
diminuirá, nos Highly Connected Worlds, são as chances de vivermos esse
vínculo permanecendo do “lado de fora” do abismo, precavidos contra o
caos ou protegidos da interação.

Deuses interativos, porém, não estarão no futuro, como aquele da tradição


hebraica que não podia ser nomeado a não ser pela expressão Ehie Asher
Ehie – traduzível por “Eu serei o que serei” (o hebraico aceita) posto que
estava no futuro. Esse deus da utopia (e da profecia), do não-lugar (porque
o lugar do seu tempo nunca chega) – e refletindo sobre o qual o marxista
heterodoxo, materialista e ateu, Ernst Bloch (1968) em O ateísmo no
cristianismo, usinou a pérola: “Deus não existe, porém existirá” (19) – não
pode interagir com as pessoas e, assim, não pode ser um deus-fluzz; ou, o
que é a mesma coisa, não pode ensejar uma experiência mística ou
espiritual fluzz.

Formas pós-religiosas de espiritualidade serão predominantemente i-based


e, portanto, tenderão a ser vividas no presente (o que significa que não nos
jogarão naquela corrente alucinante da utopia e da profecia que tudo
arrasta para o futuro, alienando-nos do presente).

Tudo indica, porém, que as religiões (e as igrejas ou as ordens sacerdotais)


remanescerão por muito tempo ainda. Mas a despeito de continuarem
rodando na rede social, esses programas podem agora ser hackeados pelos
novos hereges que já estão no meio de nós. Sim, como disse Bloch, “o
melhor da religião é que ela produz hereges” (20).

148
Ecclésias, não ordens sacerdotais

Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-los


você tem que remover o firewall e expor-se à interação

Mas o que colocaremos no lugar das igrejas (e das religiões)? Ora, nada. O
velho mundo único já colocou muitas instituições para fazer as vezes de
igrejas: as escolas (e o ensino), os partidos (e as corporações), o Estado-
nação (e seus aparatos). Mutatis mutandis, todas essas funcionam mais ou
menos da mesma maneira, como ordens sacerdotais. E todas elas vão
continuar existindo, com uma estrutura e uma dinâmica parecidas com as
que têm hoje, para quem não entrar nos Highly Connected Worlds.

Mas quem assumir a condição de nômade, viajante dos interworlds, pode –


se quiser – fundar sua própria igreja-não-igreja. Nos mundos altamente
conectados ninguém pode impedir, nem conseguirá dissuadir, que as
pessoas fundem suas próprias não-igrejas. Elas não serão ordens
sacerdotais, por certo, mas poderão ser ecclesias, no sentido de
aglomerados dos que querem conviver sua espiritualidade, ou seja, dos que
querem compartilhar as formas semelhantes como vivem um domínio mais
amplo de relações de existência celebrando suas afinidades e amorosidades
mutuas. O número dessas novas igrejas-não-igrejas tende a aumentar.
Simplesmente porque – nos mundos em que se constituírem – também não
haverá tantas restrições de ordem moral e cultural para sua existência.

Ecclesias como assembléias de amantes, como redes (abertas) de


buscadores que se dispõem a polinizar mutuamente os modos pelos quais
vivem sua mística ou sua espiritualidade, vão proliferar no lugar de igrejas
como ordens sacerdotais (fechadas) que se proclamam o único caminho, a
única porta, a única esperança de salvação e que disputam entre si o tempo
todo oferecendo-nos um formidável (e deplorável) contra-exemplo de
fraternidade. As velhas igrejas – essas armadilhas construídas para
arrebanhar ovelhas e apascentá-las – continuarão existindo, é claro, mas
perderão relevância.

Na medida em que um superorganismo humano começa a se manifestar


nos mundos altamente conectados e que novos fenômenos – como o
clustering, o swarming, o clonning, o crunching e tantos outros que estão
implicados no que chamamos de inteligência coletiva (e, quem sabe, no que
ainda vamos chamar de emoção coletiva) – começam a irromper, haverá
um motivo adicional para compartilhar. Você pode preferir o olhar do

149
investigador que analisa tais fenômenos tentando manter os protocolos
científicos de isenção e objetividade. Mas você também pode simplesmente
viver e celebrar seu vínculo com essas novas ‘Entidades’ sociais – a palavra,
assim com maiúscula, foi usada por Jane Jacobs em 1961 (21) – que se
formam em uma dimensão mística. Se você buscava um domínio mais
amplo de relações de existência para dar sentido à sua vida e vivê-la em
sintonia com essa realidade (avaliada por você, não importa, como
transcendente ou imanente), ei-lo: o simbionte social!

O fundamental aqui é que não haja fechamento. Nos múltiplos mundos


interconectados estão outras pessoas que se sentem (e sentem a
transcendência ou a imanência) como você e podem se sintonizar com
você. Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para
achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação. Bem, ao
fazer isso é possível que mais cedo ou mais tarde você perceba que tudo foi
apenas um não-caminho. E descubra que seus irmãos e irmãs são todas as
pessoas que estão em todos os mundos.

Se você quiser fazer isso agora, possivelmente será encarado como herege.
Aos olhos do mundo único será um herege, assim como são hereges os que
abandonaram a escola, rejeitaram o ensino, rasgaram seus diplomas e
títulos e se transformaram em catalisadores de processos de aprendizagem
em comunidades livres de buscadores e polinizadores, estruturadas em
rede. Assim como são hereges os que, desistindo dos partidos, não
desistiram de fazer política (pública) nas suas localidades, na base da
sociedade e no cotidiano dos cidadãos. Assim como são hereges os que
renunciaram ao Estado-nação (e às suas pompas, e às suas glórias),
refugando também as noções regressivas de patriotismo e nacionalismo, e
viraram cidadãos transnacionais de suas glocalidades...

Os anunciadores de uma nova ordem não são hereges no sentido em que a


palavra está sendo usada aqui (quase aquele sentido em que Ernst Bloch
empregou-a ao dizer que “o melhor da religião é que ela produz hereges”).
São replicadores ou trancadores. No último meio século tivemos ondas e
ondas de supostos hereges vaticinando um mundo novo. No fundo, o porvir
radiante que anunciavam não era mais do que a revivescência de uma
ordem ancestral hierárquica.

150
Não há uma ordem pré-existente

A ordem está sempre sendo criada no presente da interação

O reflorescimento das idéias espiritualistas que ocorreu na New Age


provocou uma bateria de ondas que continuam até hoje quebrando nas
praias dos buscadores de todos os matizes, mais de quarenta anos depois
(se bem que, agora, já com intensidade bastante reduzida). As pessoas
que, nas mais diversas situações, procuravam um sentido para suas vidas,
tanto em experiências meditativas de recolhimento individual, quanto em
ensaios coletivos de novos padrões de convivência social, queriam, no
fundo, viver sua espiritualidade em uma época ainda pré-fluzz, mas que já
anunciava tempos vertiginosos, de alta interatividade. E saíam então para
todo lado em busca de novos caminhos, guias e mestres.

Grande parte desses exploradores, porém, não empreendia livremente ou


sem pré-conceitos suas buscas. Estavam impregnados das idéias –
assopradas e reforçadas pelos gurus que se apresentavam em profusão –
de “um novo reino de velhos magos”. Na base das mais diversas doutrinas,
seitas, sociedades e ordens espiritualistas e ocultistas que ofereciam
naquele mercado seus produtos e serviços, havia, entretanto, uma mesma
visão básica, a qual aderiam tanto físicos e biólogos de vanguarda
interessados no diálogo entre ciência e religião quanto roqueiros, quase
todos sem prestar muita atenção aos seus pressupostos: a idéia de que
havia uma ordem implícita (ou implicada) pré-existente em alguma esfera
da realidade, oculta ou não acessível imediatamente.

Eles queriam então ter acesso a essa ordem pura, queriam estabelecer uma
sintonia com esse modelo não-manifestado, queriam atingir estados
superiores de consciência para contemplar essa espécie de Unimatrix One e,
para tanto, lançavam mão dos mais variados exercícios reflexivos, técnicas
meditativas, rituais teúrgicos, práticas mágicas e processos de iniciação.

Ainda vivemos nas bordas dessas vagas, embora a New Age não tenha
acontecido segundo o que foi previsto. O mundo único não se reencantou
com o reflorescimento de espiritualidades ancestrais. Ainda bem. Porque o
que está acontecendo nos múltiplos mundos altamente conectados é muito,
muito mais profundo, mais abrangente e mais surpreendente do que tudo
que anunciaram os gurus da nova era.

151
Depois dos gurus, vieram alguns hereges dizendo: não há uma ordem; se
há, foi inventada por alguém e não quero me subordinar a ela. Os pioneiros
da Internet e os visionários do ciberespaço dos anos 90 foram impelidos por
esse vento libertário, em parte sob a influência de obras disruptivas como
TAZ – Zona Autônoma Temporária (22) e CAOS – Os panfletos do
Anarquismo Ontológico (23), dois escritos seminais de Hakim Bey (1985) e
dos romances de ficção científica Neuromancer (24) de William Gibson
(1984) e Ilhas na Rede (25) de Bruce Sterling (1988) que, entre outros,
deram origem aos cyberpunks. Talvez pouca gente suspeite disso, mas essa
influência foi decisiva para a criação das ferramentas interativas que
existem hoje (inclusive para a Internet e a World Wide Web), conquanto
não se possa dizer que ela tenha durado muito. Tais pioneiros e visionários,
em boa parte, logo entraram no contra-fluzz ao fecharem suas descobertas
(construindo programas proprietários e escondendo seus algoritmos) para
acumular suas fabulosas fortunas ou ao se deixarem contaminar pelas
idéias contraliberais que impulsionaram os movimentos antiglobalização no
dealbar dos anos 2000 sob a bandeira de que “um outro mundo é possível”.
Se um herege inventa a sua própria ordem e quer que as pessoas passem a
seguí-la – quer transformando-as em usuários cativos de seus produtos,
quer arrebanhando-as em seus movimentos supostamente transformadores
– aí já deixa de ser herege e passa a ser um sacerdote, um burocrata a
serviço da reprodução do sistema que criou.

No entanto, a despeito dessas ondas regressivas que apenas revelavam a


resiliência do velho mundo único, de suas estruturas e de suas dinâmicas, o
vento continuou a soprar.

Começaram a aparecer os que, rejeitando os títulos de mestre ou guru,


recomendavam simplesmente não-fazer nada. Já eram estes os precursores
dos novos mundos-fluzz. Porque quando se espia “do outro lado”, não se vê
ordem alguma – somente o nada, o abismo, fluzz. Fluzz significa que não
há uma ordem pre-existente em algum mundo invisível (da emanação, da
criação ou da formação). A ordem está sempre sendo criada no presente da
interação. É mais ou menos assim como imaginou Ilya Prigogine (1984),
destoando inclusive de outros cientistas envolvidos com tais especulações
(de David Bohn a Paul Davies, passando por Fritjof Capra): o universo é
criativo e “se cria à medida que avança” (26).

Novamente é o caso de dizer: bem, isso muda tudo.

Jack Kerouac e seus beatniks dos anos 50-60, Swami Satchidananda em


Woodstock, os hippies dos anos 70 e os “hippies” tardios dos 80, talvez
tenham pressentido isso, mas não podiam ter um entendimento do que

152
estava vindo. O próprio Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) e os cyberpunks
talvez tenham apenas sentido o sopro, sem chegarem a ver de onde (e para
onde) ele soprava. Pierre Levy (2000), em uma corajosa jornada
introspectiva, cujas notas estão no diário de bordo O fogo liberador (27)
(uma obra de inspiração heraclítica), empreendeu explorações em antigas
tradições espirituais (como o budismo e a cabala) para tentar captar-lhe o
sentido. Mas não havia sentido: “o vento sopra onde quer; você o escuta,
mas não pode dizer de onde vem, nem para onde vai” (Jo 3: 8).

Pessoas como Paul Baran (On distributed communications), Vinton Cerf


(TCP/IP), Tim Berners-Lee (WWW), Linus Torvalds (Linux) e Rob McColl
(Apache), embora aparentemente nunca tenham feito tais explorações,
contribuiram objetivamente para que hoje pudessemos reconfigurar a busca
(e talvez tenham causado um impacto mais profundo do que aqueles
provocados pelos empreendimentos proprietários fechados dos Gates, dos
Jobs, dos Pages, dos Stones e dos Zuckerbergs e de muitos outros
trancadores de códigos que vieram ou ainda virão).

Sim, reconfigurar a busca. Em mundos altamente conectados a busca não


existe sem a polinização. Não há um mainframe (como se fosse um
diretório de registros akashikos) onde você possar buscar respostas para
suas perguntas. Se houver, tais respostas não lhe servirão. Serão respostas
do passado que foi arquivado. Revelarão ordens pregressas. Conhecimento
morto. A busca, qualquer busca, inclusive a busca espiritual, é sempre uma
interação. Nos Highly Connected Worlds toda busca é P2P: no seu mundo e
nos interworlds pelos quais você está navegando. A mesma busca, quando
repetida, fornece respostas necessariamente diferentes. E deixa o rastro da
pergunta. De sorte que as respostas são, no limite, combinações das
perguntas que estão sendo feitas. Perguntas interagindo e se polinizando
mutuamente para criar ordens inéditas.

O buscador é um polinizador. É um criador de mundos. O buscador-


polinizador é uma pessoa-fluzz. Uma pessoa-fluzz é mais ou menos o que
deveria ser uma pessoa-zen nas condições de um mundo de alta
interatividade. Mas enquanto víamos a pessoa-zen como um indivíduo-no-
caminho (conquanto ela não fosse isso realmente, posto que a descoberta-
zen é a descoberta do ‘não-caminho’), a pessoa-fluzz não pode ser vista
assim: ela é enxame. O enxame muda continuamente sua configuração, o
que significa que os caminhos também mudam continuamente com a
interação: o que era caminho em um momento já não é mais no momento
seguinte. A pessoa, como disse Protágoras (c. 430 a. E. C.) – ou a ele se
atribui – “é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são,

153
das coisas que não são, enquanto não são”. Assim seja (ou não-seja). Let it
be (ou not to be – o que é a mesma coisa).

Os hereges nômades que já experimentam esses novos padrões de


interação viajando pelos interworlds e “audaciosamente indo onde ninguém
jamais esteve” começam a gritar para os que teimam em juntar e colar os
cacos de céu velho que estão despregando para prorrogar a vigência do
mundo único: “– Parem com isso! Não existem mestres. Não existem guias.
Não existe caminho”.

154
Não-igrejas: porque não existe mais caminho

O objetivo é ser pessoa, nada além disso

Fluzz também é: tudo está conectado. E se tudo está conectado por que os
seres humanos não estariam?

É como se todo o mundo percebido e sentido fosse internalizado por essa


interface (individual) com a mente (social) que chamamos de cérebro.
Assim também a rede social. A máxima de Novalis (1798) “cada ser
humano é uma pequena sociedade” (28) pode significar, por um lado, que
os humanos importam a estrutura da rede social a que estão conectados.
Algo se passa como se a rede fosse espelhada dentro da pessoa em
interação. As personalidades das pessoas conectadas são como que
simuladas internamente por um sujeito que, não raro, conversa com elas.
Essa imagem espelhada é atualizada toda vez que há interação. E há
espelhamento, é claro, porque há separação.

Eis, talvez, o motivo pelo qual nunca estamos realmente sozinhos. Há um


burburinho de fundo, permanentemente presente. Como borgs ouvimos, o
tempo todo, as “vozes da Coletividade”. Mas, diferentemente dos Borgs,
como “ghola social”, cada pessoa internaliza de um modo diferente, unique.
Sem essa imagem peculiar dos outros dentro de nós não podemos ser
pessoas, quer dizer, não podemos ser humanos. As imagens da “mesma”
rede são tantas quanto os seus nodos. Imagens de imagens, redes dentro
de redes. E o que se chama de ‘eu’ ou ‘você’ também são vários. Chegar a
um só (aquela individuação junguiana) é final de percurso, não condição de
partida.

Todavia nos novos mundos altamente conectados, o caminho da


individuação (não só aquele sobre o qual escreveu Jung, mas o caminho da
iluminação de todas as tradições espirituais hierárquicas) não pode mais ser
percorrido como uma jornada interior (no sentido psicológico-espiritual
individual). ‘Pessoa já é rede’ significa que eu e você compartilhamos o
mesmo indivíduo-social. Eu e você são variações de um mesmo substrato:
singularidades em um tecido. Mas significa também, paradoxalmente, que
‘eu sou um outro’, qualquer-outro, não apenas como complexo psicológico
(como representação interiorizada), mas na rede, como realidade social.

155
Nos mundos pouco conectados dos milênios pretéritos, trabalhava-se com
os materiais alquímicos das representações introjetadas, percorrendo-se
interiormente nebulosas estações arquetípicas em direção à totalidade. A
vida humana (do buscador) era, de certo modo, apartada da sua vida social
(do polinizador). O caminho era “pessoal” no sentido de individual e exigia
consciência, confirmação intermitente de que eu vi o que vi, senti o que
senti, pensei o que pensei, sei o que sei, passei o que passei, vivi o que
vivi... até me iluminar (ou não)! Mas isso só ocorre enquanto prevalece a
separação entre eu e o outro.

Entretanto, quando vida humana e convivência social se aproximam, novos


caminhos se abrem, continuamente. Aquele pelo qual procurávamos no
meio de nós (no sentido de no nosso interior) passa a estar entre nós. Uma
nova topologia distribuída dos caminhos espirituais elimina os caminhos
únicos (mesmo quando únicos para cada pessoa). Os caminhos são
múltiplos, inclusive para a mesma pessoa. O que significa dizer que não
existe mais caminho. Como captou o poeta: "Todos os caminhos, nenhum
caminho. Muitos caminhos, nenhum caminho. Nenhum caminho, a maldição
dos poetas" (29).

E não só os poetas percebem, mas também outras inquiring minds, de


exploradores heterodoxos, como a do físico David Bohm (1970-1992),
dedicado, nos últimos anos de sua vida, a compreender e promover a
interação que chamava de diálogo: ele chegou à conclusão de que “não
existe um ‘caminho’... no dialogo compartilhamos todas as trilhas e, por
fim, percebemos que nenhuma delas é fundamental. Percebemos o
significado de todos os caminhos e, portanto, chegamos ao ‘não-caminho’.
No fundo, todos os caminhos são os mesmos...” (30)

Se o objetivo é ser pessoa, nada além disso, qualquer relação humana é


caminho. A espiritualidade-fluzz não é percorrer uma trilha, completar um
percurso, mas deixar-se-ir ao encontro dos demais, abrindo as próprias
fronteiras ao outro-imprevisível. Ora, isso significa que você não precisa
mais de uma igreja – como cluster fechado dos que professam a mesma fé
(a fé de que estão no mesmo caminho) – quer dizer, de um partido.

156
Máquinas para privatizar a política

Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política


pública

No velho mundo fracamente conectado as pessoas erigiam corporações –


grupos privados hierarquizados – para fazer valer seus interesses.
Simplesmente parecia ser a coisa “lógica” a ser feita em um mundo regido
pela “lógica” da escassez. Assim também surgiram os partidos como um
tipo especial de corporação: eles foram constituídos para fazer prevalecer
os interesses de um grupo sobre os interesses de outros grupos e pessoas
com base em (ou tomando como pretexto) um programa, um conjunto de
idéias a partir das quais fosse possível conquistar e reter o poder para
tornar legítimo o exercício (ilegítimo do ponto de vista social, quer dizer, do
ponto de vista das redes sociais distribuídas) de comandar e controlar os
outros.

Partidos são organizações pro-estatais. Não é a toa que decalcam o padrão


de organização piramidal do Estado. Mas, ao contrário do que se pensa, os
partidos vieram antes do Estado e nesse sentido são também organizações
proto-estatais. Os primeiros partidos foram religiosos: as castas sacerdotais
que erigiram o Estado.

Sim, o Estado é, geneticamente, um ente privado. Estado como esfera


pública só surgiu (isso deveria ser uma obviedade, conquanto não soe como
tal) quando se constituiu uma esfera pública, com a invenção da
democracia. Antes disso – por três milênios ou mais – os Estados foram o
resultado da privatização dos assuntos comuns das cidades pelos
autocratas. E depois disso, por quase dois milênios, os Estados continuaram
sendo organizações privadas (só nos últimos dois ou três séculos eles se
constituiram, aqui e ali e, mesmo assim, em parte, como instâncias
públicas, mais ou menos democratizadas; embora continuassem infestados
por enclaves autocráticos privatizantes).

Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política


pública. São um modo político de nos proteger da experiência de fluzz. Para
tanto – em um regime de monopólio (nas ditaduras) ou de oligopólio (nas
democracias formais) – eles privatizam a política pública. Sua existência
legal indica que as pessoas, como tais, não precisam fazer política pública
no seu cotidiano e na base da sociedade (nas suas comunidades): alguém
fará tal política por elas! Mesmo nas democracias dos modernos entende-se

157
que as pessoas não devem fazer política pública, a menos que entrem em
um partido: uma espécie de agência de empregos estatais, uma
organização privada autorizada a disputar com outras organizações privadas
congêneres o acesso às instituições estatais reconhecidas legalmente como
públicas e, portanto, encarregada com exclusividade de fazer política
pública. Enxugando de toda literatura legitimatória as teorias liberais sobre
o papel dos partidos na democracia, o que sobra é mais ou menos isso aí.

Ora, por mais esforço que se faça para justificar esse acesso diferencial ao
exercício da política pública, parece óbvio que o sistema de partidos
privatiza a política. Ao se conferir aos partidos o condão de transformar
politics em policy, as pessoas viram automaticamente clientela do sistema.

As teorias liberais da democracia, é claro, não concordam com isso. Mas as


teorias liberais da democracia são próprias de um mundo de baixa
conectividade social, em que somente eram concebíveis as formas políticas
representativas de regulação de conflitos. Para os defensores dessas
teorias, só existem, basicamente, os indivíduos. E a democracia é, via de
regra, baseada em uma teoria das elites (mais Platão, menos Protágoras).
Sua análise é coerente com que eles pensam. E eles pensam mais ou
menos assim: é melhor o Estado-nação com todos seus enclaves
autocráticos – e, inclusive, é melhor o império – garantindo a ordem, do
que a barbárie da anarquia. No fundo essa é mais uma variação, em linha
direta, da visão hobbesiana. Abandonados à nossa própria sorte, sem
sermos domesticados por um poder acima de nós, nos engalfinharíamos em
uma guerra de todos contra todos. Então o Estado tem, para eles, um papel
civilizador (assim como, para alguns, também tem esse papel a religião:
pois se não houver um deus – dizem – tudo é permitido, tudo seria possível
em termos morais). O que se requer, apenas, é que esse Estado seja
legitimado pelos cidadãos em eleições limpas e períodicas e que os
governos eleitos respeitem as regras do direito (interpretadas também, é
claro, pelas tais “elites civilizadoras”).

Essa é a visão da democracia dos modernos na sua versão liberal, baseada


no indivíduo. Mas tal visão não está mais adequada aos mundos altamente
conectados que estão emergindo. Por muitas razões (dentre as quais a
principal é que o indivíduo é uma abstração) a democracia não pode ser o
resultado de um pacto feito e refeito continuamente pelos indivíduos que se
ilustraram e que se comprometeram a manter uma ordem capaz de garantir
aos (e exigir dos) demais indivíduos que eles continuem a conformar sua
liberdade aos limites impostos pelos sistemas de poder que formalmente
permanecerem legitimados por eleições e respeitarem as leis. Isso, é claro,
deve ser garantido, mas não para ser reproduzido indefinidamente como é e

158
sim para possibilitar que os cidadãos continuem - com liberdade -
inventando novas formas de regular seus conflitos.

Em mundos altamente conectados essa forma representativo-político-formal


da democracia (a democracia no sentido "fraco" do conceito: como sistema
de governo ou modo político de administração do Estado) deverá dar lugar
a novas formas mais substantivas e interativas (a democracia no sentido
"forte" do conceito, das pessoas que se associam para conviver em suas
comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem ou de projeto).

A democracia no sentido “forte” do conceito é uma democracia


+democratizada, que recupera a linha da "tradição" democrática – uma
imaginária linhagem-fluzz – que começa com o “think tank” de Péricles – do
qual “participava”, entre vários outros, Protágoras –, passa por Althusius
(1603), por Spinoza (1670-1677) e pelos reinventores da democracia dos
modernos, por Rosseau (1754-1762), por Jefferson (1776) e por aquele
“network da Filadélfia” que conectava os redatores americanos da
Declaração de Independência dos Estados Unidos e pelos Federalistas
(1787-1788), pelos autores europeus (desconhecidos) da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789), por Paine (1791), por Tocqueville
(1835-1856), por Thoreau (1849) e por Stuart Mill (1859-1861), até chegar
às formas radicais antecipadas pela primeira vez por Dewey (1927-1939): a
democracia na base da sociedade e no cotidiano do cidadão, a democracia
como expressão da vida comunitária (31). Esta última será uma espécie de
metabolismo das redes mais distribuídas do que centralizadas, algo assim
como uma pluriarquia.

É claro que os chamados cientistas políticos, em boa parte, não acreditam


nisso. O que não significa nada, de vez que não existe uma ciência política.
Se existisse uma ciência política, em qualquer medida para além de uma
ciência do estudo da política, não poderia haver democracia (pois neste
caso os governantes deveriam ser os cientistas e decairíamos na república
platônica dos sábios: uma autocracia). A despeito do que pensam os que
foram ordenados nas academias da modernidade para legitimar a política
realmente existente, há um argumento fatal contra suas (des)crenças: se a
democracia não pudesse ser reinventada novamente (pois ela já o foi uma
vez, pelos modernos) ela também não poderia ter sido inventada (pela
primeira vez, pelos atenienses).

159
Autocratizando a democracia

É um absurdo pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra


entre organizações privadas

A democracia foi a mais formidável antecipação de uma época-fluzz que já


ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção
fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido
para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo.

Na verdade as pessoas que inventaram a democracia não tinham a menor


consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo.
Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente,
abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram
uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há
milênios, em sociedades de predadores (e de senhores). Como já foi
mencionado aqui, não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a
democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela
tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que
têm um senhor.

Era tão improvável que isso acontecesse, na época que aconteceu, como foi
o surgimento e a continuidade da vida neste planeta, perigosamente
instável em virtude da composição atmosférica tão improvável que
alcançou. Com efeito, um gás instável (comburente), corrosivo e
extremamente venenoso como o oxigênio, que chegou a alcançar a
impressionante concentração de 20%, é uma loucura em qualquer planeta:
mas foi assim que o simbionte natural – essa surpreendente capa biosférica
que envolve a Terra – conseguiu respirar.

Do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não


se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de
qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de
qualquer corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que
nela se conformou um espaço público.

Isso significa que, geneticamente, a democracia é um projeto local e não


nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido
democrático”) não foi constituído para tentar converter os espartanos ou
qualquer outro povo da liga ateniense à democracia (e nem para empalmar
e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim

160
para realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano
do cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política.

Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um projeto


inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-Estado). Mas ela
só pode se materializar plenamente – como percebeu com toda a clareza
John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a
ver com um modo-de-vida compartilhado (32). E é mais o “metabolismo”
de uma comunidade de projeto do que o projeto de alguns interessados em
conduzir uma comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista
particulares ou para satisfazer seus interesses (outra definição de partido).

A democracia surgiu como uma experiência de redes de conversações em


um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo Estado (no caso,
representado pelos autocratas que governaram Atenas). Não teria surgido
sem a formação de uma rede local distribuída em Atenas e em outras
cidades que experimentaram a democracia. Quando surge, a democracia já
surge como movimento de desconstituição de autocracia e não como
modelo de sociedade ideal. As instituições democráticas foram criadas –
casuísticamente mesmo – para afastar qualquer risco de retorno ao poder
do tirano Psístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de
conversações em um espaço (que se tornou) público (33). Sim, público não
é um dado, não é uma condição inicial que possa ser estabelecida ou
decretada por alguma instância a partir ‘de cima’ (como uma norma
exarada ex ante pelo Estado-nação). Público é o resultado de um processo.
Só é público o que foi publicizado. Depois, é claro, pode-se pactuar
politicamente o resultado que se estabeleceu a partir do processo social,
gerando uma norma, sempre transitória, válida para o âmbito da instância
de governança vigente.

Mas não se pode pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da


guerra (ou da política como continuação da guerra por outros meios – o que
é mesma coisa) entre organizações privadas. Um pacto absurdo como esse
– baseado na perversa fórmule inversa de Clausewitz-Lenin (34) – é
contraditório nos seus termos e investe contra o próprio sentido de público.
Por isso, diga-se o que se quiser dizer, do ponto de vista da democracia
(uma realidade coeva à da esfera pública), partidos são instituições contra-
fluzz, regressivas na medida em que concorrem para autocratizar a
democracia.

Não é necessário argumentar muito para mostrar como tudo isso está no
contra-fluzz. Esse tipo de organização partidária e de regime partidocrático
a ela associado não tem muito a ver com a construção de uma governança

161
democrática e sim com a manutenção de uma governabilidade autocrática,
quer dizer, com a capacidade de manter as regras de uma luta, de um
combate permanente entre grupos privados, assegurando que o vencedor
tenha o direito de privatizar a esfera pública de modo a prorrogar o seu
poder sobre a sociedade (no fundo há sempre uma disputa pelo butim, na
base do spoil system). Tal como o Estado-nação, partidos são instituições
guerreiras: ainda quando não se dediquem ao conflito violento, operam a
política como arte da guerra, como uma continuação da guerra por outros
meios. Nesta exata medida, são organizações antidemocráticas. Só pessoas
tontas – e pelo visto destas há muitas – podem acreditar que o resultado
desse embate constante, dessa interação adversarial permanente,
conseguirá constituir um sentido público (35).

162
Não-partidos

Redes de interação política (pública) exercitando a democracia local na base


da sociedade e no cotidiano dos cidadãos

Nada deve impedir que pessoas se associem livremente para fazer política
pública. Se houver algo impedindo isso, então estamos em uma autocracia
ou em uma democracia formal de baixa intensidade, fortemente perturbada
pela presença de instituições hierárquicas que deformam o campo social.
Partidos são, obviamente, uma dessas instituições, conquanto não consigam
– na vigência de regimes democráticos formais – impedir totalmente que as
pessoas exerçam a política; não, pelo menos, nos âmbitos de suas redes de
relacionamento, nos círculos com graus de separação mais baixos.

Dentro de certos limites – impostos pelo grau de autocratização das


democracias realmente existentes na atualidade – é possível democratizar a
política na base da sociedade, inventando e experimentando novas formas
de interação política realmente inovadoras. Nas autocracias isso não é
possível, razão pela qual as democracias formais – com suas conhecidas
mazelas e limitações – são infinitamente preferíveis a todas as formas de
regimes autoritários, por mais que se lhes tentem louvar as supostas
virtudes sociais. Essa nova política possível, entretanto, será
necessariamente uma política pública, não de grupos privados de interesses
– ou não será de fato nova. Se tentarmos reeditar a disputa adversarial de
interesses de grupos privados, decairemos fatalmente na velha política
(36).

O simples fato de algumas pessoas já terem desistido dos partidos e


arregaçado as mangas para fazer o que acham que deve ser feito em suas
localidades – articulando redes de interação política (pública) e exercitando
a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos – já é
um sinal de que a dinâmica da sociosfera (em que convivem) está sendo
alterada.

Nos Highly Connected Worlds as pessoas (que quiserem) poderão constituir


não-partidos, comunidades políticas para tratar dos seus assuntos comuns,
regulando seus conflitos de modo cada vez mais democrático ou
pluriarquico. Isso significa que evitarão modos de regulação de conflitos que
produzam artificialmente escassez (como a votação, a construção
administrada de consenso, o rodízio e, até mesmo, o sorteio), guiando-se –
cada vez mais – pela “lógica da abundância”. É claro que isso só se aplica

163
em redes mais distribuídas do que centralizadas e na medida do grau de
distribuição e conectividade (quer dizer, de interatividade) dessas redes.

Dizendo a mesma coisa de outra maneira: se você não produz


artificialmente escassez quando se põe a regular qualquer conflito, produz
rede (distribuída); do contrário, produz hierarquia (centralização).

Os problemas que se estabelecem a partir de divergências de opinião são –


em grande parte – introduzidos artificialmente pelo modo-de-regulação. E
somente em estruturas hierárquicas tais problemas costumam se agigantar
a ponto de gerar conflitos realmente graves, capazes de ameaçar a
convivência. Porque nessas estruturas o que está em jogo não é a
funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos outros,
quer dizer, a capacidade de exigir obediência ou de comandar e controlar os
semelhantes.

Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se
estabelece pode ser pluriarquica. Uma pessoa propõe uma coisa. Ótimo.
Aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. E os que não
concordarem? Ora, os que não concordarem não devem aderir. E sempre
podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra coisa
aderirão a ela. E assim por diante.

Em redes distribuídas nunca se admite a votação como método de regular


majoritariamente qualquer dilema da ação coletiva. E quando houver
discordâncias de opiniões, como faremos? Ora, não faremos nada! Por que
deveríamos fazer alguma coisa? Viva a diversidade! Se você estabelece a
prevalência de qualquer coisa a partir da votação (ou de outros mecanismos
semelhantes de regulação de conflitos), cai em uma armadilha
centralizadora ou hierarquizante. Produz “de graça” escassez onde não
havia.

Vamos imaginar que exista alguém que não esteja muito contente com a
maneira como as coisas estão acontecendo em uma comunidade. O que
essa pessoa pode fazer, além de externar sua opinião e colocá-la em
debate? Ora, no limite, essa pessoa descontente pode configurar uma nova
rede, se inserir em outra comunidade, ir conviver em outro mundo. Como
os mundos são múltiplos, ela não está mais aprisionada e não precisa ficar
constrangida a permanecer no mesmo emaranhado onde não se sente
confortável.

Evidentemente a pluriarquia não pode ser adotada em organizações


centralizadas, erigidas no contra-fluzz, como as escolas, as igrejas, os

164
partidos e as corporações. Com mais razão ainda não pode vigir nos
Estados e seus aparatos, que – mais do que organizações hierárquicas –
são troncos geradores de programas centralizadores.

A despeito disso, porém, não-partidos tendem a florescer nos mundos


altamente conectados que estão emergindo. Ignorando solenemente as
restritivas disposições estatais e as crenças religiosas (sim, religiosas,
mesmo quando travestidas de científicas) em uma suposta competitividade
inerente ao ser humano difundidas pelas escolas e academias, pessoas vão
se conectando voluntariamente com pessoas para tratar cooperativamente
de seus assuntos comuns em todos os lugares, sobretudo nas vizinhanças –
conjuntos habitacionais, ruas, bairros – e nas comunidades de prática, de
aprendizagem e de projeto que se formam nas cidades inovadoras que não
querem mais permanecer eternamente na condição de instâncias
subordinadas ao Estado-nação.

165
Estado

Um delírio de raiz belicista

As preferências que levam alguém a querer morar ou trabalhar em


Barcelona, São Francisco, Curitiba, Milão ou Genebra, não são, em geral,
relacionadas às características das nações que abrigam essas cidades e sim
à dinâmica singular que cada uma delas apresenta. Quem optou por
Barcelona, certamente não optaria genericamente pela Espanha. Quem
gosta de viver em São Francisco, freqüentemente tem motivos muito claros
para não querer morar em outros lugares dos Estados Unidos.

Não é assim? Tanto faz morar em Curitiba ou Pernambuco, só porque


ambas estão no Brasil? Tanto faz morar em Milão ou Consenza, só porque
ambas estão na Itália? Tanto faz morar em Genebra ou Berna, só porque
ambas estão na Suíça? É claro que não! Há uma diferença de capital social
(ou seja, uma diferença de topologia e de conectividade, na estrutura e na
dinâmica, de suas redes sociais) entre essas cidades, que faz toda a
diferença em termos de condições e estilo de vida e convivência social.

O fato é que vivemos em cidades, moramos, estudamos, trabalhamos e nos


divertimos em localidades. Ninguém convive no país. A nação não é uma
comunidade concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo
inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos, inclusive pela
publicidade massiva das empresas estatais (que se enrolam nas bandeiras
nacionais para tentar estabelecer uma vantagem competitiva bypassando o
mercado ou para fazer propaganda dos governantes que nomearam seus
dirigentes). E a pátria (e o patriotismo), ou é a remanescência de um delírio
de raiz belicista (aquele mesmo que acompanhou a instalação desse fruto
da guerra chamado Estado-nação moderno) ou – para lembrar a já batida
sentença de Samuel Johnson (1709-1784) – é um refúgio de canalhas (37)
que se escondem por trás do nacionalismo para proteger seus interesses ou
levar vantagem sobre os concorrentes, em geral no campo econômico, por
certo, mas também no político.

Mas as profundas mudanças sociais que estão ocorrendo nas últimas


décadas estão criando condições favoráveis à independência das cidades do
ponto de vista do desenvolvimento local. Fala-se aqui – entenda-se bem –
das cidades como redes de múltiplas comunidades, e não propriamente das
instâncias locais do Estado (central ou regional), das prefeituras e das

166
outras instituições privatizadoras da política que querem “representá-las” ou
comandá-las.

O mundo humano-social, ao contrário do que pensam os governantes, não


é um conjunto de Estados, nações ou países. É uma configuração móvel e
complexa de infinidades de fluxos entre pessoas e grupos de pessoas,
agregadas, por sua vez, em múltiplos arranjos locais e setoriais: famílias,
vizinhanças, comunidades, cidades, regiões, organizações (dentre as quais,
algumas poucas – que não chegam a duas centenas – são Estados).

Depois que se generalizou a forma Estado-nação, as cidades passaram a ser


localidades de um país (devendo-se entender por isso que elas passaram a
ser instâncias subnacionais). Para todos os efeitos, são encaradas, pelos
aparatos estatais que comandam os países, como instâncias subordinadas
(ordenadas a partir de cima). E conquanto tenham alguma autonomia
formal, figurando como sujeitos de pactos federativos em muitas
Constituições modernas, as cidades são realmente subordinadas do ponto
de vista político, jurídico, fiscal, energético, econômico etc. Seu
funcionamento depende, em grande parte, de decisões tomadas sem a sua
participação. Normas, repasses de recursos e investimentos, são
determinados por outras instâncias, de cima e de fora. E na medida em que
tudo isso gera dependência, não interdependência, são construções contra-
fluzz.

167
A nação como comunidade imaginária

A nação não é uma comunidade concreta. É uma comunidade imaginária,


de certo modo inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos

As nações são apresentadas como grandes comunidades, no sentido alemão


seiscentista do termo, ou naquele sentido, que lhe atribuía Althusius
(1603), da grande comunidade territorial de herança (38) e não no sentido
que lhe atribuímos hoje, da pequena comunidade como cluster, de escolha
de uma (“porção” da) rede social para conformar um campo de convivência,
em uma atividade compartilhada, de prática, de aprendizagem ou de
projeto. Dewey (1927) em “O público e seus problemas”, faz uma correta
distinção entre a grande comunidade e a pequena comunidade do ponto de
vista da democracia (substantiva) como modo de vida comunitário. Não é
na grande comunidade (nação) que essa democracia pode se materializar
plenamente e sim na pequena comunidade local; para usar suas próprias
palavras: “a democracia há de começar em casa, e sua casa é a
comunidade vicinal” (39).

Essas grandes comunidades-nacionais são, é claro, instituições imaginárias.


Como tal são abstratas. Ninguém convive ou interage concretamente com a
população de um país. Ser brasileiro, italiano ou argentino não é, stricto
sensu, pertencer a uma comunidade concreta, porquanto, para os nossos
‘compatriotas’ (e essa palavra já é horrível), não estamos incluídos, como
pessoas, no seu modo-de-vida, quer dizer, não fomos voluntariamente
aceitos e acolhidos por eles no seu campo de convivência. Who cares?
Somente comunidades humanas podem incluir seres humanos, mas quem é
incluído é sempre a pessoa com suas peculiaridades e não o indivíduo como
um número em uma estatística ou uma variável censitária.

No entanto, para fazer parte da grande “comunidade” nacional basta nascer


naquele território delimitado como seu (a partir da conquista ou da guerra)
e, em geral, manter “laços de sangue” ou hereditários com os nacionais (ou
seja, trata-se do reconhecimento de uma herança genética, condição a
partir da qual – acredita-se, e não sem razão – a transmissão não-genética
de comportamentos que chamamos de cultura pode ser viabilizada,
inoculando-se tal cultura (como quem “carrega” um programa) nos novos
membros (descendentes dos nacionais), a partir da família e, em seguida,
da vizinhança, da escola, da igreja, das organizações sociais, das empresas
e das instituições nacionais estatais e não-estatais). Note-se que essa
identidade abstrata nacional é construída a partir de uma visão de passado:

168
origem comum (em geral forjada), raça (uma identificação inconsistente do
ponto de vista científico), língua, costumes, credos, cultura enfim e história
(escrita sempre da frente para trás) (40).

Percebe-se que não há aqui qualquer escolha humana. Não há acolhimento


(quer dizer, inclusão). Funciona mais ou menos assim como na propriedade
de um rebanho animal: as crias do gado pertencem automaticamente ao
dono da boiada, aumentam o número de cabeças do seu patrimônio. Pois
bem. No caso do pertencimento à grande “comunidade” nacional quem faz
às vezes do dono é o Estado-nação.

É o Estado que interpreta o que é a nação. É o Estado que delimita quem


pode ou não pode ser incluído na nação e estabelece condições de
pertencimento ou inclusão. Mas o Estado não é uma comunidade e sim um
sistema de organizações que gera programas verticalizadores (ou, talvez
melhor, do ponto de vista da rede social, o inverso: uma matriz de
programas verticalizadores que gera um sistema de instituições), cuja
função precípua é obstruir, separar e excluir. A partir do monopólio
legalizado da violência, é o Estado que diz: isso você não pode fazer; por tal
ou qual caminho você não pode trafegar sem autorização; aqui você não
pode entrar ou daqui você deve sair. Ponha-se na rua, quer dizer, fora do
meu território!

Não importa se, por exemplo, uma comunidade concreta de espanhóis


queira acolher um africano, incluindo-o no seu campo de convivência para a
realização de um projeto comum. Se o africano em questão não atender a
certas condições e não preencher certos requisitos ditados pelo Estado,
nada feito. E mesmo que cumpra todas as exigências, ele sempre será, aos
olhos do Estado-nação espanhol, um estrangeiro, ou seja, um estranho,
alguém que deve ser impedido de circular livremente, separado dos
“verdadeiros” espanhóis e excluído de certos direitos – o principal dos quais
o de pertencer plenamente à comunidade política que define os destinos
coletivos dos espanhóis. Sim, será um excluído político porque será – aos
olhos da autocrática realpolitik estatal – sempre alguém cujo modo-de-ser
ameaça, independentemente do que faz ou venha a fazer, simplesmente
por ser diferente, por ser um outro, o modo-de-ser estabelecido como
desejável pelo imaginário nacional historicamente construído pelo mega-
programa Estado e que é reinterpretado de tempos em tempos pelos
condomínios privados de agentes políticos – estes sim, bem concretos – que
assumem as funções de governo.

De certo ponto de vista, o que chamamos de Estado como fonte ou geratriz


de programas verticalizadores que “rodam” na rede social, faz parte da

169
ideologia dos governos. No que tange a função de legitimação dessa
ideologia, foi necessário promover uma fusão entre o Estado e a nação.
Sem isso o aparato hierárquico estatal não conseguiria infundir na grande
“comunidade” nacional as noções abstratas de identidade que alimentam o
aparato, para as quais o drive principal foi, invariavelmente, a guerra (que
permite a formação de identidade a partir do inimigo). Sim, os Estados –
qualquer Estado, inclusive a forma atual Estado-nação – são frutos da
guerra e se alimentam (internamente) do “estado de guerra” ou (na
fórmule inversa de Clausewitz-Lenin) da prática da política como uma
continuação da guerra por outros meios. São produtos, portanto, não da
cooperação (ou da amizade política) que supostamente aglutinaria a nação
– e de todo aquele blá-blá-blá da “vontade de viver juntos” – e sim da
competição (ou da inimizade política).

Por isso que todo Estado é hobbesiano. Todo Estado é fruto do realismo
político. Todo Estado é autocrático (inclusive naqueles que denominamos de
“Estados democráticos e de direito” os enclaves autocráticos são tão
onipresentes que a estrutura e a dinâmica da entidade como um todo não
podem acompanhar o comportamento democrático das sociedades que
dominam). Ao criarmos a identidade imaginária “Atenas” para colocá-la no
lugar da identidade concreta “os atenienses”, já não estamos mais no
campo da democracia e sim no da autocracia. E os próprios gregos do
século de Péricles fizeram isso, quando se comportaram de modo a-político
no enfrentamento violento com outras cidades-Estado da região.

Não é a toa que os governantes vivem apelando para um sentimento


nacional. Falam da França, da América ou do Brasil como se essas
“entidades” existissem e tivessem vontade própria, a fim de extrair o
combustível do “fervor patriótico” para se manter no poder, para reproduzir
o sistema de instituições estatais que quer impor sua legitimidade à
sociedade com o fito de torná-la seu dominium (ao modo feudal mesmo) e
para continuar produzindo inimizade no mundo.

Ora, você pode dizer: eu não quero “viver junto” com quem eu não quero,
apenas pelo fato de ser brasileiro, na medida em que isso signifique “não-
querer viver junto” com um inglês pelo fato de ele ser inglês (e não
brasileiro). Por que deveria? Quem disse que somos inimigos? A quem
interessa manter esse tipo de rivalidade subjetiva? Do ponto de vista
genético – a ciência biológica já mostrou – somos mesmo, todos nós, uma
única grande família. Do ponto de vista cultural parece claro, a não ser que
nos deixemos intoxicar pela estiolante ideologia multiculturalista, que
culturas que não se polinizam mutuamente – por meio de saudável
miscigenação – tendem a apodrecer.

170
Não existe um Brasil, mas milhares, talvez milhões. Stricto sensu a “nação
brasileira” não é, nem nunca será, uma comunidade e sim uma interação de
miríades de comunidades que falam a mesma língua (com vários sotaques e
regionalismos), têm alguns costumes parecidos (e muitos costumes locais
bem diferentes), várias histórias reais (e não apenas uma única narrativa,
como aquela que é ensinada nas escolas). A nação só é una do ponto de
vista das instituições estatais (por meio das quais se materializam os
poderes da República, as forças armadas, a moeda) e daquilo que
antigamente se chamava, de um jeito meio sem-jeito, de “aparelhos
ideológicos de Estado”. Além, é claro, do governo central, que precisa
espichar essa unidade para além da herança cultural.

Mas há uma idéia e, mais do que isso, uma prática de bando na raiz dessa
unidade. Como no surgimento da noção de cidadania (que nada tinha de
universal, pelo contrário), trata-se de proteger “os de dentro” contra “os de
fora”, impedir que eles – os outros – venham vender na nossa feira, que
concorram conosco em igualdade de condições, que adquiram nossas
terras, que roubem nossas riquezas naturais (que certamente o próprio
Deus nos concedeu, lavrando a escritura no cartório do céu: em nome do
Estado, é claro), que tomem nossos empregos, que exerçam plenamente a
cidadania política (disputando conosco o poder associado à representação).
Sim, é um sentimento de bando que se manifesta aqui, justificado pelo
pressuposto antropológico de que o ser humano, por inerentemente
competitivo, é hostil por natureza e que, portanto, os seres humanos,
deixados a si mesmos, como escreveu Hobbes (1651), engalfinhariam-se
em uma guerra de todos contra todos. Ah... A menos que haja um Estado
para impedir, entenda-se bem, não o conflito em si e a guerra, mas o
conflito no interior do próprio bando e a guerra entre “os de dentro”. Tudo
isso, é claro, para poder promover o conflito e a guerra com “os de fora”.
Foi assim que nasceu o Estado, e inclusive, como já foi assinalado, a forma
atual Estado-nação e a ordem internacional do equilíbrio competitivo.

Então, quando alguém fala do Brasil, ou em nome do Brasil, podemos


procurar que certamente vamos achar os interesses particularistas, bem
concretos, que se escondem sob essa “nacionalização” abstrata do discurso.
É alguém tentando se proteger do mercado. É alguém tentando proteger a
sua indústria ou o seu negócio. É alguém tentando se proteger da
concorrência comercial ou política. É alguém tentando proteger o seu
emprego. É alguém tentando proteger suas condições de vida. É alguém
tentando desqualificar os oponentes para ficar no poder. É alguém tentando
manter nas mãos do seu bando as instituições estatais que aparelhou. É
sempre alguém no contra-fluzz, tentando se proteger do outro.

171
“O Brasil” é um construct. Se somos brasileiros, na maior parte do tempo,
nos nossos trabalhos, nos nossos estudos e pesquisas, nos nossos
relacionamentos, “o Brasil” não gera preferências significativas (41).

Na aceitação da legitimidade do outro e na sua incorporação em nosso


espaço de vida, não deveríamos dar a mínima se uma pessoa é brasileira,
italiana, argentina, francesa ou norte-americana. Qualquer preferência,
baseada nesses critérios, para acolher ou rejeitar uma pessoa em uma
comunidade, é uma canalhice. Sim, nunca é demais repetir o dito de
Johnson: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Uma pessoa
decente não deveria se deixar drogar com esse tipo de ideologia que
obstrui, separa a exclui para atender a exigências hierárquicas que, ao fim e
ao cabo, são desumanizantes.

Nos últimos séculos o fervor patriótico que alimentava as “comunidades”


nacionais foi sendo obrigado a dividir espaço com o consumismo, apátrida
por natureza, internacionalizante, sim, mas não glocalizante. E não
necessariamente mais humanizante. Ocorre que o processo de globalização
(ou de planetarização) começou a quebrar as fronteiras nacionais (aquelas
que são vigiadas pelo Estado nacional) em todos os campos, ensejando que
culturas não-nacionais pudessem emergir das múltiplas interações cruzadas
de pessoas de diferentes nacionalidades. Praticamente nenhum Estado-
nação, nem mesmo o mais autocrático deles, consegue mais fechar suas
fronteiras, em termos culturais, isolando seu “rebanho” do resto do mundo.
A telefonia móvel e a Internet (a despeito daquele vergonhoso acordo do
Google com os ditadores chineses, que não deve ser esquecido, conquanto
o próprio Google tenha sido levado a revê-lo, muitos anos depois)
aceleraram esse processo. De sorte que existe hoje um contingente
crescente de pessoas que não estão nem aí para identidades nacionais e
que estão se inserindo em múltiplas comunidades transnacionais,
compostas por pessoas de várias nacionalidades, a partir de suas próprias
escolhas.

No segundo capítulo do seu excelente Transforming History intitulado


“Cultural History and Complex Dynamical Systems”, William Irwin
Thompson (2001), escreveu que “toda nossa matriz de identidade baseada
em uma cultura de desejo de compra econômica e fervor patriótico está
mudando para uma nova cultura planetária...”. Mas em seguida adverte que
“explosões reacionárias [atuando “como a Inquisição e a Contra-Reforma,
que procuraram travar e reverter as forças modernizadoras da Renascença
e da Reforma”] podem prejudicar muito e atrasar a transformação cultural
por séculos a fio” (42).

172
Pois é precisamente neste ponto de bifurcação que nos encontramos hoje.
Todavia, para além, talvez, do que avalia Thompson, não são apenas “o
fundamentalismo religioso e as reações terroristas nacionalistas da direita à
planetização” (43) que estão tentando enfrear a emergência de uma nova
identidade transcultural. Hoje o próprio conceito de nação, interpretado e
materializado por uma forma já decadente de Estado – o Estado-nação e as
ideologias nacionalistas nele inspiradas ou por ele infundidas na sociedade –
constitui um obstáculo à transição histórica atualmente em curso (cujo
sentido é a glocalização).

173
A falência da forma Estado-nação

A maior parte dos Estados-nações não deu certo

Do ponto de vista do ‘desenvolvimento como liberdade’ – para usar a feliz


expressão de Amartya Sen (2000) –, é forçoso reconhecer que a imensa
maioria dos Estados-nações do mundo não deu muito certo (44).

O chamado mundo desenvolvido restringe-se a uma lista que não chega a


três dezenas de países: quer se considere o desenvolvimento humano
medido pelo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, quer se
considere o desenvolvimento econômico, medido pelo CGI – Índice de
Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial, quer se considere o
desenvolvimento tecnológico e a sintonia com as inovações
contemporâneas, medido pelo IG – Índice de Globalização, da AT
Kearney/Foreign Policy. Desenvolvidos (nesses três sentidos) são os países
que apresentam IDH igual ou superior a 0,9, CGI maior ou igual a 4,6 e que
figuram nos primeiros vinte ou trinta lugares da lista do IG, daqueles que
têm ambientes mais favoráveis à inovação.

Um cruzamento desses três índices revela a lista – aborrecidamente


previsível – dos países que deram certo. Pasmem, mas são menos de 30!
Em ordem alfabética (em dados do final da década passada): Alemanha,
Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Espanha,
Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Hong Kong, Irlanda, Islândia,
Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino
Unido, Cingapura, Suécia e Suíça. (A essa lista poder-se-ia, com boa
vontade, acrescentar mais alguns, como, por exemplo – e entre outros –, a
República Checa, a Estônia, a Eslovênia e, na América Latina, o único
candidato de sempre: o Chile).

Significativamente, a imensa maioria dos países dessa lista dos mais


desenvolvidos tem regimes democráticos. Significativamente, também, não
figuram nessa lista dos mais desenvolvidos: i) países com regimes
ditatoriais, ainda que apresentem altos índices de crescimento econômico
(como China ou Angola); ii) protoditaduras (como Rússia ou Venezuela); e,
nem mesmo, iii) democracias formais parasitadas por regimes
neopopulistas manipuladores (como Argentina e outros países da América
Latina).

174
Em outras palavras, do ponto de vista do ‘desenvolvimento como liberdade’,
os Estados-nações existentes no mundo atual, em sua maioria, não são
instâncias benéficas.

Os números são assustadores. Mais da metade (50,5%) dos 193 países do


mundo ainda vive sob regimes ditatoriais ou protoditatoriais. Apenas 80
países (reunindo 49,5% da população mundial) apresentem democracias
formais (um cálculo com boa vontade, incluindo aquelas que são
parasitadas por regimes populistas ou neopopulistas manipuladores). Isso
significa que cerca de 3 bilhões e meio de pessoas não têm experiência de
democracia representativa – sim, a referência aqui é à democracia formal
mesmo – ou têm dessa democracia uma experiência muito limitada. Quase
quatro milhões de seres humanos (a maioria da humanidade) não têm
plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se desenvolver e
para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento das localidades
onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo “natural”, de
“evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como imaginam alguns
crédulos. Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos pela população. Em
2005, esse número tinha subido para 119 (45). Mas nos últimos anos o
crescimento da democracia e da liberdade política está sofrendo forte
desaceleração e isso não tem a ver somente com o requisito democrático da
eletividade, mas, sobretudo, com o da rotatividade (ou alternância), para
não falar dos outros princípios (como a liberdade, a publicidade, a
legalidade e a institucionalidade e, como conseqüência de todos esses, a
legitimidade).

O mais recente levantamento sobre o estado da democracia no mundo –


The Economist Intelligence Unit’s Index of Democracy 2010 – abarcando
167 países (Estados-nações), revelou que existem atualmente apenas 26
países com democracia plena (em termos formais), agregando 12,3% da
população mundial. E revelou também que esse número não está
aumentando; pelo contrário, a situação foi descrita como “democracy in
retreat” e “democracy in decline” (46).

Bem mais da metade dessas pessoas vivem em cidades que poderiam “dar
certo”, não fosse pelo fato de estarem subordinadas a Estados-nações que
sufocam seu desenvolvimento. Sim, 87% dos Estados-nações do globo não
podem ser considerados desenvolvidos dos pontos de vista humano, social
e científico-tecnológico. No entanto, nesses 168 países “atrasados” (por
assim dizer) e com poucas chances de se inserir adequadamente na
contemporaneidade, existem milhares de cidades promissoras, que
caminhariam celeremente para alcançar ótimas posições nos rankings da
inovação e da sustentabilidade, bastando para tanto, apenas, que

175
lograssem se libertar do jugo dos países – das estruturas centralizadoras
dos governos centrais e dos outros aparatos de controle e dominação dos
Estados-nações – que as estrangulam.

O fato é que o Estado-nação não é boa instância – e não é uma boa fórmula
política – do ponto de vista do desenvolvimento.

As cidades, pelo contrário, sempre o foram, pelo menos até agora. E não há
nenhuma razão pela qual as cidades devam continuar mantendo uma
atitude genuflexória em relação ao Estado-nação, a não ser a concentração
de poder nas instâncias nacionais, inclusive o poder de retaliação dos
governos e legislativos centrais. Os prefeitos, como se diz, andam de “pires
na mão” e ajoelham-se perante os executivos nacionais, em parte porque
dependem de recursos que foram centralizados pelas instâncias nacionais e,
em parte, porque têm medo de serem discriminados e perseguidos – o que,
convenha-se, é um motivo odioso e antidemocrático. Mas isso acontece
porquanto suas cidades não estão preparadas para enfrentar os desafios de
caminhar com as próprias pernas.

176
O reflorescimento das cidades

Cidades transnacionais, cidades-pólo tecnológicas, redes de cidades e


cidades-redes

Não é por acaso que as cidades sempre estiveram na ponta da inovação,


seja no aspecto social e político, como a Atenas no século de Péricles (ou,
mais amplamente, no período considerado democrático: 509-322 antes da
Era Comum), seja no aspecto econômico e científico-tecnológico, como
Bruges (no final do século 12), pólo da nascente ordem comercial moderna,
logo seguida por Veneza, que foi, talvez, o primeiro centro globalizado da
Europa (do final do século 14 até o ano de 1500), ou Antuérpia (na primeira
metade do século 16) e depois Gênova (na segunda metade), que se
tornaram centros financeiros, seguidas por Amsterdã (na passagem do
século 17 para o 18), ou por Londres, que se transformou na primeira
democracia de mercado e onde o valor agregado industrial, impulsionado
pelo vapor, ultrapassou, pela primeira vez na história, o da agricultura, ou
por Boston (no início do século 20), com a fabricação de máquinas,
passando a Nova Iorque que predominou durante quase todo o século
passado, com o uso generalizado da eletricidade e chegando, afinal, à
Califórnia atual, com Los Angeles e às cidades do Vale do Silício.

Hoje o dinamismo das cidades inovadoras já se vê por toda parte.


Freqüentemente não são mais os países (Estados-nações) que constituem
referências para o desenvolvimento e sim as cidades, sejam cidades
transnacionais (Barcelona, Milão, Lion, Roterdã), sejam cidades-pólo
tecnológicas (Omaha, Tulsa, Dublin e, talvez, Bangalore e Hyderabad, no
chamado terceiro mundo), sejam, por último, as coligações de numerosas
cidades em extensas regiões do planeta, que começam a adotar uma lógica
própria e diferente daquela do Estado-nação.

Na verdade, cidades que se afirmaram como unidades econômicas – não


necessariamente políticas – relativamente autônomas, já vêm surgindo ao
longo dos últimos séculos (como Veneza e outros centros mais ao norte da
Europa: e. g., Riga, Tallin e Danzig). São prefigurações do que Kenichi
Ohmae (2005) chamou de ‘Estado-região’, que constitui hoje o palco
privilegiado da economia global e que está levando a “um inevitável
enfraquecimento do Estado-nação em favor das regiões” (47).

Algumas dessas regiões, que tendem a substituir o Estado-nação, são


coligações de cidades (como a área metropolitana de Shutoken, formada

177
por Tóquio, Kanagawa, Chiba e Saitama, com um PNB de 1,5 trilhão de
dólares; ou a área de Osaka, com 770 bilhões, em dados de 2005). Parece
óbvio que essas regiões, que representam unidades econômicas mais
pujantes do que a imensa maioria das nações do mundo, figurando então
(2005) em terceiro e o sétimo lugares, respectivamente, no ranking
mundial, mais cedo ou mais tarde, entrarão em choque com o centralizado
sistema político do velho Estado-nação japonês, que não lhes permite uma
dose de autonomia correspondente ao seu peso econômico.

Ainda que algumas dessas regiões emergentes coincidam com pequenos


países (como Irlanda, Finlândia, Dinamarca, Suécia, Noruega e Cingapura),
em geral elas se formarão a partir do protagonismo de cidades e
desenharão uma nova configuração geopolítica do mundo. Ou seja, ao que
tudo indica, a estrutura e a dinâmica do Estado-nação não serão
preservadas, a não ser em alguns casos.

Mas quer falemos de Bangalore e Hyderabad, quer falemos de Dalian ou da


ilha de Hainan na China, ou, quem sabe, de Vancouver e da British
Columbia, da Grande São Paulo ou de Kyushu no Japão – mesmo em um
sentido predominantemente econômico quantitativo, como o empregado por
Ohmae – ainda estamos falando de cidades (ou de arranjos de cidades).

Sim, continuamos falando de cidades. E é por isso que, nos exemplos


colhidos na história e nas nossas tentativas de projeção para as próximas
décadas, não aparecem, em maioria, as capitais dos países, as localidades-
sedes dos seus governos centrais. Falamos de Milão e não da Itália (ou
Roma). Falamos de Bangalore e não da Índia (ou Nova Delhi). Os que falam
da Índia (e do Brasil e da Rússia e da China – repetindo a ilusória hipótese
dos BRICs, inventada por Jim O’Neill) são aqueles autores, professores,
consultores e policymarkers intoxicados de ideologia econômica e siderados
pelo crescimento (ou expansão, mudança quantitativa) e não pelo
desenvolvimento (mudança qualitativa). Com freqüência são também
pessoas que não se dão muito bem com a idéia de democracia.

178
As cidades na glocalização

Estados são artifícios para proteger as pessoas da experiência do localismo


cosmopolita

O reflorescimento das cidades – na verdade, das localidades em geral – é


uma das conseqüências do processo de glocalização atualmente em curso.
O mundo não está apenas se globalizando, mas também se localizando cada
vez mais. Isso quer dizer, em outras palavras, que o mundo único está
desparecendo para dar surgimento a muitos mundos.

E está havendo uma mudança social que favorece o florescimento das


localidades em geral – e das cidades em particular – como protagonistas do
desenvolvimento. Essa mudança, que está ocorrendo simultaneamente na
dimensão global e na dimensão local, está tornando inadequada,
insuficiente e impotente, a forma Estado-nação. O tão citado juízo do
sociólogo americano Daniel Bell parece ser definitivo: o velho Estado-nação
tornou-se não só pequeno demais para resolver os grandes problemas,
como também grande demais para resolver os pequenos.

Em outras palavras, as inovações (sociais, políticas, culturais e


tecnológicas) introduzidas com o atual processo de glocalização, têm
surgido simultaneamente na dimensão global (como resultado de mudanças
sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças
sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). Entretanto, o Estado-
nação tornou-se uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Ou
seja, a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local –
ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação, que, sentindo-
se ameaçada, está resistindo ferozmente para não ser desabilitada como
fulcro do sistema de governança. A primeira década do terceiro milênio
pode ser caracterizada como uma década de crise do Estado-nação e de
conseqüente recrudescimento do estatismo.

Os Estados-nações criarão, por certo, muitos obstáculos à emergência das


cidades como sujeitos autônomos do seu próprio desenvolvimento. Mas não
conseguirão resistir por muito tempo à convergência de múltiplos fatores
que estão preparando o seu declínio. Como previu Castells (1999), “as
estratégias do Estado-nação para aumentar a sua operacionalidade (através
da cooperação internacional) e para recuperar sua legitimidade (através da
descentralização local e regional) aprofundam sua crise, ao fazê-lo perder

179
poder, atribuições e autonomia em benefício dos níveis supranacional e
subnacional” (48).

Nenhum Estado hoje consegue mais se livrar dos conflitos com seus níveis
subnacionais, diante das exigências crescentes de mais autonomia local.
Mas a despeito de todos os conflitos políticos e fiscais entre diferentes níveis
de governo dentro de um mesmo Estado, que só tendem a se aprofundar e
generalizar nos próximos anos, nunca é demais repetir que se fala aqui das
cidades como redes de múltiplas comunidades interdependentes e não da
réplica Estatal montada nas cidades, da instância municipal do Estado ou do
governo local.

Os que preconizam o declínio do Estado-nação diante dos novos arranjos


locais ou regionais que emergem no mundo globalizado, fazem-no quase
sempre de um ponto de vista estrita ou predominantemente econômico. É o
caso, por exemplo, de Ohmae (entre outros). Mas é preciso ver que o
fenômeno da glocalização é mais abrangente e não pode ser plenamente
captado pelo olhar econômico. Estamos diante de mudança sociais mais
profundas, que dizem respeito aos padrões de vida e de convivência social e
não apenas diante de alterações na estrutura e na dinâmica do capital e do
capitalismo. O que está mudando não é somente o modo de produzir e
consumir e sim o modo de ser coletivamente. ‘Uma sociedade-rede está
emergindo’ – muitos repetem o dito, mas parecem não extrair dele todas as
conseqüências e essa surpreendente afirmação vai se tornando banal.

O problema com a visão econômica é que ela é reducionista. Imagina que a


configuração do mundo depende do modo de produção e, assim, se esforça
para antecipar a nova forma do capitalismo que virá (ou sobrevirá), mas se
esquece de perguntar sobre a nova forma de sociedade que emergirá. Isso
talvez seja uma evidência da resiliência da crença economicista de que
existe alguma coisa como uma “estrutura” econômica que determina, em
alguma medida ou instância, uma suposta “superestrutura” da sociedade.

Mas mercados não vêm de Marte. Constituem um tipo de agenciamento


operado por seres humanos, terráqueos mesmo, cujo comportamento
depende das interações que efetivam com outros seres humanos; ou seja,
tudo isso depende do “corpo” e do “metabolismo” da sociedade (i. e., de
sociosferas), vale dizer, da rede social.

Não é nas novas formas econômicas que vamos encontrar o “mapa” das
novas cidades. Esse “mapa” não poderá ser outra coisa senão as novas
configurações das redes que configuram a cidade-rede. Tivemos até agora
vários tipos de “mapas”, dos quais podemos citar alguns exemplos: as

180
cidades-assentamento “horizontais” que se formaram após o final do
período neolítico na Europa Antiga e no Oriente Médio (como Jericó, a
partir, talvez, do 6º milênio a. E. C.); as cidades-Estado da antiguidade (as
cidades monárquicas, muradas e fortificadas, que surgiram na Mesopotâmia
a partir do 4º milênio, como Uruk, Ur, Lagash etc., e que se replicaram no
período considerado civilizado); as cidades – burgos – organizadas em torno
do comércio nos períodos feudais; uma grande variedade de cidades
correspondentes aos Estados principescos e reais; até chegar às cidades
como instâncias subnacionais (ou domínios do Estado-nação). E tivemos
também algumas exceções, como Atenas – a polis do período democrático –
e outras poleis na Ática. São exceções porque a polis grega democrática
não era propriamente uma cidade-Estado semelhante às suas
contemporâneas e sim uma comunidade (koinonia) política. Por último, ao
que parece, teremos agora, no ocaso do Estado-nação, novos tipos de
cidades: as cidades-redes (e as redes de cidades configurando novas
regiões).

Ao que parece, não é muito útil tentar pegar no passado um modelo como
prefiguração para explicar o fenômeno atual da emergência da cidade-rede.
Assim como a globalização da época das navegações não diz muita coisa
sobre a globalização atual, também não teremos um novo venezianismo
(por exemplo, não tivemos um novo brugesismo – de Bruges – a não ser o
próprio venezianismo, o original, dos séculos 14 e 15). Não teremos novas
“ligas hanseáticas”, nem um neo-antuerpismo ou um neogenovismo; assim
como nenhum país ou região poderá cumprir no mundo atual o papel que
foi desempenhado, em suas épocas, por Amsterdã, Londres, Boston, Nova
Iorque ou Los Angeles e adjacências.

Por quê? As explicações são várias: porque a ordem comercial


contemporânea não tem mais mono-pólos (como foram Bruges e Veneza),
de vez que a globalização hoje é policêntrica; porque o capital financeiro
transnacional não exige mais centros fixos (como a Antuérpia ou a Gênova
do século 16); porque as chamadas democracias de mercado não precisam
estar mais ancoradas em impérios militares (como a Inglaterra dos séculos
18 e 19); porque as “máquinas que fabricam máquinas” da nova indústria
do conhecimento não requerem mais uma infra-estrutura tão pesada que só
possa ser reunida em uma localidade com alta capacidade hard instalada
(como Boston, nos Estados Unidos no início do século 20); porque o acesso
à eletricidade é praticamente universal (e a conexão banda larga segue o
mesmo caminho) e a energia e a inteligência não precisam estar mais
espacialmente tão concentradas (como estiveram em Nova Iorque ou em
Los Angeles e nas cidades do Vale do Silício durante o século 20).

181
Não é o mercado que determina. Não é o Estado que decide. São os
fenômenos que ocorrem na intimidade da sociedade e que têm a ver com o
grau de conectividade e de distribuição da rede social que acarretam a
estrutura e a dinâmica dos novos agrupamentos humanos que se
estabelecem sobre o território e, inclusive, daqueles que não estão
estabelecidos sobre um território (como os agrupamentos virtuais). É claro
que o mercado pode induzir e o Estado pode restringir (em geral colocando
obstruções) as fluições que configuram a forma e o funcionamento das
sociedades. Mas nenhum desses tipos de agenciamento pode determinar o
que acontece.

O problema do Estado – dos pontos de vista da democracia e do


desenvolvimento (ou da sustentabilidade) – não é que ele se assenta
territorialmente e sim que ele se constitui como um mainframe de
programas verticalizadores. A Matrix como mainframe, do filme dos irmãos
Wachowski, não precisava se assentar em um território determinado para
executar o seu papel verticalizador. Aliás, no filme, o centro de vida
alternativa e de resistência ao poder vertical – Zion – era territorialmente (e
mais do que isso, subterraneamente) situada, enquanto que a Matrix era
virtual, ou melhor, virtualizante...

O territorial não leva necessariamente à verticalização (ou centralização),


nem o virtual nos salva da dominação do poder vertical. Porque as
disposições que configuram o que se manifestará no mundo físico ou no
mundo virtual estão no espaço-tempo dos fluxos e não no espaço-tempo
físico ou no chamado mundo digital (49). Mas o agarramento ao território,
esse agrilhoamento tamásico contra-fluzz – posto que estabelecido para
tentar impedir a vida nômade das coisas – tem sido fonte, em grande parte,
do poder de separar os seres humanos: uma tentativa de matar no embrião
o simbionte social.

Os Estados foram erigidos para nos proteger da experiência do localismo


cosmopolita, uma experiência glocal. Sob seu domínio, uma pessoa não
pode ser cidadã do seu próprio mundo e não pode interagir livremente com
outros mundos. Não, ela deve ser aprisionada no mundo único que foi
territorialmente repartido por organizações erigidas em função da guerra e
separadas por fronteiras, fechadas e burras. Em geral não pode atravessar
essas fronteiras sem a permissão do poder estatal. Em uma parte dos
casos, o poder estatal não concede tal licença a seus súditos, trancafiando-
os no próprio território-penitenciária, como se tivessem sido condenados
por algum crime gravíssimo. Em outra parte dos casos, não deixa entrar (ou
cria toda sorte de empecilhos para a entrada) em seus territórios de certas
categorias de estrangeiros.

182
Comunitarização

As novas Atenas serão milhões de comunidades

Ecoando o Operating Manual for Spaceship Earth de Buckminster Fuller


(1968), McLuhan (1974) afirmou que “a espaçonave Terra não tem
passageiros, só tripulação” (50). Como poderíamos considerar alguém
“estrangeiro” se pertencemos todos à mesma família (em termos genéticos,
praticamente toda a população da Terra é prima em um grau inferior ao
50º), habitando um planeta tão minúsculo, no qual somos todos tripulantes
(quer dizer, todos nós somos o pessoal necessário para o bom
funcionamento da nave)?

Na modernidade, em um padrão descentralizado, 193 Estados-nações


impõem modelos autocráticos de governança baseados no equilíbrio
competitivo. A ilusão (e a impostura) de que sete bilhões de pessoas
possam ser administradas por menos de duzentas unidades centralizadas –
e, em grande parte (a maior parte) autocratizadas – é aceita como se fosse
normal. Como se fosse possível disciplinar toda a diversidade da interação
ensejada por bilhões de interworlds em duas centenas de organizações, em
sua ampla maioria, capengas, autoritárias e corruptas, controladas por
grupos privados que satisfazem seus interesses à custa do público, quando
não por sociopatas, ladrões e facínoras de todo tipo.

Tudo indica que não poderemos mais ser arrebanhados e aprisionados ou


dominados por 193 organizações hierárquicas, eivadas de enclaves
autocráticos resilientes – constituídos como barreiras, para tentar obstruir
fluzz –, como são os Estados nações da atualidade. Nem por algumas
dezenas ou centenas de milhares de Estados-locais (ou instâncias locais de
um Estado central) chamados de cidades (indevidamente, posto que a
cidade são sempre redes de comunidades). As novas Atenas serão milhões
de comunidades.

Comunitarização é a nova palavra de des(ordem), quer dizer, de uma nova


ordem emergente, bottom up. O reflorescimento das cidades é um sintoma
do fortalecimento das comunidades que as constituem. São essas
comunidades que comporão outras unidades celulares da nova arquitetura
de governança do mundo glocalizado. É por isso que as cidades (e as
coligações de cidades em novas regiões econômicas e geopolíticas) – e não
mais, em geral, os Estados-nações – são hoje instâncias intermediárias

183
nessa transição para outra etapa do sistema global, no rumo da efetivação
de uma verdadeira ecumene planetária.

Mas – repetindo o mantra – o modelo é fractal e não unitário. Isso significa


duas coisas. No plano global, uma ecumene planetária não poderá ser uma
réplica global do Estado-nação; nada assim tão monstruoso como um
governo mundial ou um parlamento mundial, que apenas transferiria, para
o seu interior, o modelo perverso de equilíbrio competitivo ainda reinante
no cenário internacional. Tal ecumene, não será uma administração, um
sistema executivo de comando-e-controle, nem mesmo uma grande
instância de representação baseada na alienação da autonomia das
localidades ou comunidades que a constituem. Ela se formará por
emergência, tal como ocorre na regulação da capa biosférica que envolve o
planeta (o simbionte natural). E, no plano local, a identidade da cidade-rede
também se forma por emergência, na sinergia de múltiplas identidades que,
ao se identificarem entre si, também se identificam com ela (ou parte dela)
por herança ou projeto compartilhado a posteriori, e não por uma decisão
consciente (e a priori) de algum centro diretor ou coordenador.

Cada cidade tem muitas comunidades (ou seja, em princípio, cada cidade
pode ter múltiplas identidades). Cada comunidade se desdobra, por sua
vez, em muitas outras comunidades (aumentando ainda mais a diversidade
das identidades). Isso poderia ser um problema, porque, a rigor, uma
comunidade nuclear de convivência cotidiana com grau máximo de
distribuição e conectividade, capaz de ensejar pleno relacionamento entre
todos os seus membros (e, conseqüentemente, usinar uma identidade
inequívoca) é uma rede muito pequena, não chegando, talvez, a duas
centenas de pessoas. Só não estamos diante de um problema insolúvel
porquanto há também muita superposição. Uma pessoa participa ao mesmo
tempo de várias comunidades desse tipo (familiar, funcional, de prática, de
aprendizagem, de projeto etc.) e não está condenada a conviver em um
único círculo restrito de relacionamentos. Assim, o padrão de interação é
complexo, dando margem à formação de circularidades inerentes que – se
compartilhadas por múltiplas redes urbanas – podem configurar a cidade-
rede.

Ademais, as cidades já existem, para além de eventos sócio-territoriais,


geograficamente localizados, como “regiões” do espaço-tempo dos fluxos.
Não se trata de fabricar novas cidades, seguindo um projeto, uma planta,
uma maquete. Toda vez que se tenta fazer isso, aliás, os resultados são
péssimos: criam-se arquiteturas verticalizadoras e dinâmicas
autocratizantes (como é o caso das chamadas “cidades-planejadas”, seja a
nova capital do Egito criada por Amenófis IV para o deus Aton ou Brasília),

184
para não falar do dispêndio desnecessário de recursos. Verdadeiras cidades
só passarão a existir (em termos sociológicos, por assim dizer), várias
décadas depois da instalação dessas experiências arquitetônicas e de
planejamento urbano de eternos “aprendizes de feiticeiros”, que retornam
de tempos em tempos. Padrões de comportamento social peculiares já se
reproduzem nas cidades por efeito de herança cultural, às vezes milenar e
isso não pode ser substituído por iniciativas conscientes de um número
limitado de planejadores urbanos, mesmo quando estão imbuídos das
melhores intenções.

Assim como não se trata de planejar novas cidades (como complexos


urbanos instalados ex ante à dinâmica social), também não se trata – na
recusa à verticalização do mundo imposta pelo Estado e à chamada
“sociedade de controle” – de urdir novas comunidades a partir de um plano
de um grupo privado. Grupos marginais, muitas vezes com forte potencial
transformador – pois que a inovação, na razão direta do grau de
conectividade e distribuição das redes sociais, costuma partir da periferia do
sistema e não do centro – surgem mesmo nos momentos de crise dos
velhos padrões de ordem.

Mas o que não se pode pretender é constituir comunidades desse tipo como
proposta política para estabelecer um caminho de mudança, forjando
estudadamente uma identidade e buscando ganhar almas por meio do
proselitismo ou da aplicação de outros programas proprietários.

Comunidades se formam a partir de identidades, é certo. Mas identidades


também são programas que “rodam” em redes sociais. Ora, programas que
podem favorecer a emergência das cidades como protagonistas do
desenvolvimento são programas de capital social. E capital social é um bem
público.

Em uma sociedade em rede não é privatizando capital social que vamos


conseguir contribuir para a emersão de uma nova esfera pública (social) nas
cidades ou localidades, capaz de substituir a limitada esfera pública atual,
contraída pela invasão dos programas proprietários do Estado-nação (que,
ao contrário do que se afirma, são privatizantes e quase sempre
desestimulam ao invés de induzir o desenvolvimento).

185
Cidades inovadoras, não-Estados-nações

Cidades inovadoras – como redes de comunidades – em rota de autonomia


crescente em relação aos governos centrais que tinham-nas por seus
domínios

Nas grandes transformações moleculares – aquelas que têm conseqüências


duradouras – o velho é substituído pelo novo não porque foi destruído, mas
porque se tornou obsoleto. Os velhos padrões nunca são eliminados de uma
vez ou para sempre, mas continuam existindo, como remanescências,
vestigialmente. Ao que tudo indica, os Estados-nações continuarão existindo
por muito tempo, assim como ainda existem hoje algumas comunidades de
herança (do tempo medieval) e velhas tribos indígenas primitivas (da era
paleolítica). Ao contrário do que previram os críticos da globalização,
apavorados ante a perspectiva de uma uniformização ou homogeneização
que seria imposta ao mundo inteiro, o cenário da glocalização é o de um
conjunto de mundos variados, que estarão não apenas em locais diversos,
mas também em tempos diferentes. Mas nessa nova configuração os
Estados-nações não terão mais o protagonismo, hoje quase único e
exclusivo, da governança do desenvolvimento, baseado nos monopólios da
regulação e da violência que ainda se esforçam por deter em suas mãos.
Sim, os Estados-nações continuarão existindo, mas já terão perdido o
monopólio da governança do desenvolvimento, pelo simples fato de que não
conseguirão mais impedir a emergência da inovação.

Na verdade, em uma sociedade em rede é muito difícil construir monopólios


de um novo fator cada vez mais decisivo nos processos de produção e de
regulação: o conhecimento. O conhecimento é um bem intangível que, se
for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e,
inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à
fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos
conhecimentos e aumenta de valor (aliás, é isso, precisamente, o que se
chama de inovação). Os Estados e as empresas tradicionais (sempre
associados nessa coligação que formou o capitalismo que conhecemos)
continuarão tentando aprisionar o conhecimento ou regulá-lo top dow a
partir das leis de patentes, do domínio privado sobre produtos do
conhecimento (como o direito autoral), do segredo e da falta de
transparência (ou accountability) e dos sistemas de ensino (as burocracias
escolares e as hierarquias sacerdotais que constituem as academias). Mas
não poderão mais evitar que novos conhecimentos se formem à margem
das instituições que regulam e à sua revelia. E, o que é mais importante,

186
não poderão mais competir com a produção em larga escala de
conhecimentos e, inclusive (uma conseqüência), de produtos comerciais –
como os chamados peer production e crowdsourcing – e com as outras
formas não-mercantis de inovação, como as que serão acionadas na
emergência das novas cidades.

Ainda que se constitua como instância autorizada de fabricação,


interpretação e aplicação das leis e ainda que continue detendo os
monopólios da regulação macro-econômica, da emissão de moeda e do uso
da violência, o velho Estado-nação ficará falando sozinho enquanto as
cidades inventam novas instituições e novos procedimentos adequados à
governança do seu próprio desenvolvimento. E isso ocorrerá não porque o
Estado-nação não queira mais barrar tais avanços e sim porque não terá os
meios para fazê-lo.

O próprio sistema político baseado na verticalização do Estado-nação já está


sentindo a mudança. Já é mais importante, hoje, ser prefeito de São Paulo
do que governador da grande maioria dos estados brasileiros. Seria mais
importante ser administrador de Shutoken do que chefe de governo do
Japão. E amanhã, em tudo o que disser respeito ao desenvolvimento, os
governantes mais importantes não serão mais os chefes do governo ou do
Estado (nacional) e sim os administradores de cidades inovadoras e de
regiões formadas por coligações de cidades. Quem sabe na futura China (ou
no que ela vier a se transformar), os participantes do sistema de
governança de Dalian terão mais importância do que têm hoje os seus
ditadores (em um cenário, é claro, em que não houver mais ditadores).

De qualquer modo, as cidades serão independentes na razão direta da sua


capacidade de inovação. O processo de independência das cidades é um
processo de inovação. As cidades que quiserem ser independentes estão
condenadas a inovar permanentemente.

Não há uma definição de cidade inovadora a não ser aquela, quase


tautológica, de que é uma cidade que inova ao criar ambientes favoráveis à
inovação (e não uma cidade em que o governo local quer pegar a bandeira
da inovação com objetivos de marketing político). São esses ambientes que
caracterizam a cidade inovadora como uma cidade aberta, conectada para
dentro e para fora, ágil na regulamentação (sobretudo, mas não apenas, no
que tange aos empreendimentos empresariais e sociais) e educadora. Para
tanto, é necessário que as cidades que queiram ser inovadoras construam
sistemas locais de governança que favoreçam ao invés de dificultar a
regulação emergente, a partir da comunitarização.

187
O mercado nos forneceu um modelo relativamente eficaz de regulação
emergente, tão sedutor que muitas pessoas deixaram-se intoxicar por uma
visão mercadocêntrica do mundo, que poderia ser resumida na pergunta:
ora, se deu certo para as unidades econômicas, por que não daria também
para as unidades políticas e sociais? Foi assim que os modernos
avacalharam o conceito de público. E a rigor também desaproveitaram o
que havia de tão revelador na autoregulação mercantil: o próprio
mecanismo da autoregulação ou o processo da emergência. Por medo do
risco, da incerteza no tocante aos seus investimentos, em vez de
constituirem empresas-fluzz e de articularem seus negócios em rede,
erigiram empresas monárquicas, às quais logo associaram ao Estado
hobbesiano gerando o capitalismo que conhecemos.

188
Negócios em rede

Administrar pessoas como forma de conduzí-las a gerar valor para se


apropriar de um sobrevalor, é uma função social própria de uma época de
baixa conectividade social

O que chamamos de ‘negócios’ são uma interpretação possível de um tipo


de interação social. O tipo de interação que denominamos assim permanece
ainda relativamente desconhecido do ponto de vista do que se passa no
espaço-tempo dos fluxos.

Uma coisa que a nós parece ser um negócio, em uma sociedade não-
mercantil talvez pareça ser uma simples troca e em uma sociedade
fortemente verticalizada de predadores ecossociais (como, por exemplo,
entre cavaleiros medievais), pareceria ser uma justa, uma disputa de vida
ou morte. As interações entre pessoas que estão na raiz do fenômeno têm
uma precedência ontológica (se for possível falar assim) às interpretações
de suas manifestações em sociedades determinadas: para o persa vendedor
de seda no mercado, comércio era uma coisa diferente do que era para o
mercador veneziano e do que é para o vendedor da Avon. O status do
conceito (a epistemologia) varia com a ontologia; ou seja, negócios em uma
rede não são anteriores ao tipo particular de interação que, em uma dada
circunstância, interpretamos como negócio.

Isso coloca algumas perguntas fundamentais: os negócios, como acreditam


alguns, fazem parte (“naturalmente”) da vida em sociedade? Quais tipos de
intercâmbios de energia (incluindo matéria) e informação característicos do
“metabolismo” de um corpo comunitário podem se chamar de negócios? Ou,
imaginando uma comunidade como um ecossistema, o que seria um
negócio?

Vamos tomar como exemplo de um tipo de interação que, segundo a


opinião geral, ocorre em uma rede: a aprendizagem. Mas aprendizagem
também é um tipo de interação, que, dependendo das circunstâncias, pode
ser interpretado como negócio (e vice-versa). E aprendizagem também
pode ser interpretada como desenvolvimento (a organização que aprende é
aquela que se desenvolve). E desenvolvimento pode ser interpretado, em
um sentido ampliado, como vida (do ponto de vista da sustentabilidade). E
vida pode ser interpretada como conhecimento (como nos mostraram
Maturana e Varela na chamada de teoria do conhecimento de Santiago).

189
Estamos aqui como aqueles caras que olham a mesma montanha de
diferentes perspectivas e juram, um, que a montanha é assim, com uma
ponta para o lado esquerdo, outro, que a montanha é assado, com uma
inclinação para a direta, outro, ainda, que ela tem a forma de cone... Mas
como ela é realmente?

Enquanto não desvendarmos o que se passa no espaço-tempo dos fluxos,


enquanto não decifrarmos os padrões que transitam como mensagens, ou
melhor, que se configuram como emaranhamentos na rede social, não
poderemos saber o que é (e de que forma é) – ou o que não é – próprio da
“fisiologia” da rede.

Sabemos mais ou menos como devem funcionar os negócios em uma


estrutura hierárquica (ou mais centralizada do que distribuída). Não
sabemos, entretanto, como devem funcionar em uma rede (mais distribuída
do que centralizada). E não sabemos porque as estruturas de negócios até
hoje (ou, pelo menos, desde que se chamaram ‘negócios’) foram estruturas
mais centralizadas do que distribuídas.

Se tomarmos ‘redes’ por estruturas mais distribuídas do que centralizadas,


negócios em uma rede podem ser julgados como positivos ou negativos do
ponto de vista do que contribui para manter a rede como tal (quer dizer,
com graus de distribuição maiores do que de centralização). Ou, dizendo de
outro modo, isso depende do que incrementa ou dilapida capital social. Ou,
ainda, depende do que aumenta ou diminui a cooperação.

Por exemplo, qualquer repartição de excedente, em uma rede distribuída,


que reserve uma parcela maior ao administrador, não pelo fato de ele ter se
esforçado mais ou inovado mais e sim pelo fato de ele ter um acesso
diferencial a fatores que poderiam ser compartilhados, mas não foram
(conhecimento mantido em sigilo, às vezes, sob pretextos de "segurança da
informação", apoio político privilegiado e outros) gera centralização, diminui
o capital social, diminui a cooperação.

Os negócios que são feitos no mundo ainda são, em grande parte, negócios
de intermediação. Mas nos mundos hiperconectados que estão emergindo, a
figura do intermediário tente a desaparecer. Há uma espécie de
esgotamento histórico de um papel social que foi adequado a uma época
que está se desfazendo.

Unidades econômicas hierárquicas precisam, por certo, de intermediários; e


quanto mais centralizadas forem, mais precisam. Ou, dizendo de outro
modo, pelo inverso, a intermediação é uma centralização: o fluxo não

190
escorre livremente sem passar por aquela "estação"... Porém unidades mais
distribuídas do que centralizadas podem dispensar tais intermediários na
medida do seu grau de distribuição (que, como se sabe, acompanha o seu
grau de conectividade).

Em rede, ao que tudo indica, os negócios não poderão ser baseados na


manipulação alheia (arregimentação, constrangimento e condução de
pessoas) para embolsar trabalho não-pago. Administradores do excedente
que submetem pessoas à esquemas de comando-e-controle (e acabam
administrando pessoas ao invés de coisas), tendem a fenecer. Se alguém se
propõe a administrar pessoas como forma de conduzí-las a gerar valor para
se apropriar de um sobrevalor, então está cumprindo uma função social
própria de uma época de baixa conectividade social.

191
Apaches, não aztecas

A empresa hierárquica foi criada para proteger as pessoas da experiência de


empreender

Mas então, como serão as relações de negócios entre as pessoas em uma


sociedade em rede? Será que, como prevêem alguns, tudo vai ser resolvido
pela livre negociação? Parece que sim. Mas o problema é a partir de que
lugar se negocia (ou do poder de negociação, que é diretamente
proporcional às relações que alguém construiu ao longo da vida e, muitas
vezes, como conseqüência, ao conhecimento e a outros capitais econômicos
e extra-econômicos que reuniu ou acumulou e aprisionou). Assim como não
existe o tal mercado perfeito da máquina econômica inventada pelos
economistas (um delírio aceito por todos, conquanto isso seja espantoso),
também não existe a negociação simétrica.

Isso ainda é assim nos empreendimentos empresariais, não há dúvida. Se


não fosse, alguém não precisaria abandonar seu sonho para trabalhar em
prol do sonho alheio (para usar uma linguagem cara aos arautos do
empreendedorismo). A empresa hierárquica foi criada para proteger as
pessoas da experiência de empreender. Você não precisa empreender. É só
deixar que eu empreendo por você. Desde, é claro, que você abandone seu
sonho e adote o meu (como na conhecida anedota, desde que você esteja
disposto a trocar uma idéia comigo: você chega com a sua e sai com a
minha, hehe). Desde, é claro, que você trabalhe para mim.

Mas isso talvez só seja assim em um mundo de baixa conectividade e


distribuição. Nos Highly Connecteds Worlds que estão emergindo em uma
sociedade do conhecimento, isso tende a deixar de ser assim. Ou seja, a
negociação tende a ser cada vez mais equilibrada (e a eqüidade tende a
aumentar). Porque o conhecimento – desaprisionado, inclusive, das escolas
e academias – tende a estar igualmente disponível para todos os players.
Porque o capital (stricto sensu, econômico mesmo: a renda e a riqueza)
tende a não ter tanta importância diferencial para alguém iniciar um
empreendimento. E porque as relações que garantiam a um empreendedor
condições especiais para fazer um negócio, alugando força de trabalho
alheia e capturando cérebros de terceiros – em geral, relações de natureza
política, é inegável – também não conferirão apenas a alguns (poucos) tal
diferencial.

192
Em outras palavras e para exemplificar: o empreendedor capitalista
nascente não teria conseguido prosperar sem o Estado. Ele tinha relações
políticas privilegiadas. Isso valeu para os donos das primeiras grandes
manufaturas inglesas, para Ig Farben, na Alemanha hitlerista, passando por
Gerdau, no Brasil do regime militar e chegando aos atuais capitalistas
chineses. Ocorre que nos mundos que se avizinham (os mundos altamente
conectados da sociedade do conhecimento), o novo empresário não
precisará mais de uma infra-estrutura hard instalada para produzir e nem,
muito menos, de apoio político privilegiado para manter em suas mãos uma
estrutura de negócios funcionando. Serão mundos - ao que tudo indica -
muito mais abertos aos empreendedores (inovadores).

No velho mundo único proliferam grandes empresas, tão agigantadas que


foram obrigadas a embutir em sua estrutura várias funções que caberiam a
Estados, escolas e, inclusive, a igrejas: algumas delas mantêm polícias e
agências próprias de segurança e até de espionagem, universidades
corporativas e, a pretexto de levantar uma causa para captar a adesão
voluntária de seus stakeholders, elaboram e difundem, interna e
externamente, visões de mundo que extravasam o campo dos seus
negócios.

Essas megacorporações dividem com os Estados-nações o controle sobre os


grandes fluxos financeiros internacionais. Algumas empresas transnacionais
já começam a dividir com os países várias outras funções antes privativas
dos Estados: agências de inteligência, forças armadas para intervir em
conflitos (e talvez provocá-los) em qualquer parte do mundo e para
recuperar países devastados pelas guerras (que, em alguns casos, elas
mesmas ajudaram a promover) etc. Amanhã, quem sabe, elas ainda vão
cuidar de fronteiras, administrar prisões internacionais e campos de
refugiados, emitir identidades inequívocas e não-falsificáveis (códigos
digitais baseados no genoma), fornecer históricos aceitos por planos de
saúde multinacionais, patrulhar e vigiar caminhos e rotas comerciais e
turísticas e até cunhar moedas virtuais amplamente aceitas.

A rigor, as grandes empresas não têm mais um (único) negócio. Tanto faz o
negócio, pois vivem praticamente de propaganda. São, no fundo, empresas
de propaganda. Quem pode comprar dez ou vinte minutos por dia em todos
os canais de TV aberta e a cabo, pode também vender qualquer produto: de
dentifrícios a telefones celulares. Quem pode se localizar adequadamente
vende em qualquer lugar do mundo. E quem pode fazer essas coisas
acumulou tamanho poder (inclusive comprando altos funcionários
governamentais, parlamentares, juízes, promotores, policiais, fiscais e
meios de comunicação em tantos países) que pode fazer quase qualquer

193
coisa. A mega-estrutura montada e a difusão massiva da marca garantem,
depois de algum tempo, que os produtos de uma grande empresa sejam
quase sempre aceitos pelos consumidores, de um modo que não
corresponde diretamente à qualidade desses produtos (ou à sua reputação,
como se acredita). Apesar dessa conversa contemporânea de branding
como pacto feito entre a empresa e os sujeitos que estão no seu
“ecossistema”, em empresas hierárquicas competindo com outras empresas
hierárquicas em um mundo hierárquico, todo branding acaba, mais cedo ou
mais tarde, sucumbindo à realpolitik do marketing.

Mas a medida que o mundo se torna menor em termos sociais (ou seja,
mais conectado) a tendência, ao contrário do que supõem os adeptos dos
movimentos antiglobalização, é a pulverização e a diversificação das
empresas, não a sua concentração em algumas poucas unidades dominando
o mundo inteiro. Saltaremos, talvez, das dezenas para centenas de milhões
de unidades empreendedoras quando a população mundial chegar perto de
10 bilhões de pessoas (por volta de 2050). E isso não tem a ver apenas
com crescimento absoluto, pois a razão empresa-habitante tende a
aumentar bastante.

Ao que tudo indica nos Highly Connected Worlds não vingarão mais
empresas tão grandes, pouco ágeis para os tempos-fluzz. O capitalismo-
que-vem (com esse ou outro nome) tende a ser um capitalismo de muitos
capitalistas e não apenas de poucos. Se considerarmos que o capitalismo foi
o resultado de uma associação entre empresa monárquica e Estado
hobbesiano, talvez não seja nem muito correto chamá-lo de capitalismo.
Será alguma coisa assim como um "capitalismo" do capital social.

Pois bem. Aconteça o que acontecer, em uma rede negócios entre seus
nodos não podem ser feitos segundo padrões do mundo hierárquico.

Individualmente cada um pode continuar fazendo o que quiser em suas


empresas. Pode continuar alugando gente, aprisionando corpos, capturando
e colonizando cérebros, subremunerando “colaboradores” e administrando
pessoas com base em suas vantagens competitivas-comparativas. Em rede,
porém, as pessoas serão compelidas, cada vez mais, a simular, elas
próprias, com seu comportamento, a mudança-para-rede que está
acontecendo “lá fora”. Não propriamente para dar um exemplo ético e sim
por coerência adaptativa: os Highly Connecteds Worlds constituem um
florescimento da sociedade em rede que sempre fomos no princípio (e
somos, nisi quatenus não “rodamos” programas verticalizadores). Eles são
– para usar a bela expressão de William Irwin Thompson (2001), em
Transforming History – aquela “unnamed origin that is now upon us...” (51)

194
A questão aqui, portanto, não parece ser ética, nem estritamente
econômica, mas social mesmo (a economia, como dissemos, não vem de
Marte, mas é um dos pontos de vista explicativos para fenômenos que
ocorrem na sociedade, quer dizer, na rede social). O homo economicus é
uma abstração reducionista. O que existe mesmo é a pessoa, que só pode
se constituir como tal na relação e, inclusive, na troca e na dádiva.

Sim, as interações econômicas não são apenas de troca. Há uma economia,


ou melhor, uma ecologia da dádiva. Quanto você troca uma coisa por outra
não ganha nada: substitui uma coisa por outra. A máxima cínica “tudo que
não é dado está perdido” significa “é dando que se recebe”, sim, mas não
porque você dá instrumentalmente esperando receber algo em troca (como
no chamado altruísmo recíproco interpretado por economistas) e sim
porque, na ecologia do seu ecossistema comunitário, dar é a maneira de,
para usar uma linguagem poética, deixar passar o fluxo da vida. O fluxo
voltará para você na forma de maior capacidade de se transformar em
congruência com as mudanças do meio. Ou seja, a dádiva é fluzz, faz parte
da capacidade biológico-cultural – extremamente relevante em nossa
história evolutiva – de conservar a adaptação.

Não há nenhum problema, ético ou econômico, em ganhar dinheiro em


troca de atividade desenvolvida ou esforço realizado. Não há problema, nem
mesmo, ao contrário do que supõem os igualitaristas, em ganhar muito
dinheiro assim. Também não há problema em gerar excedente, sobrevalor
ou o que valha. Ter resultado positivo em qualquer atividade econômica é
uma condição de sobrevivência e uma obrigação social (haja vista que o
prejuízo terá que ser arcado por alguém e afeta a todos os stakeholders). O
problema só aparece quando queremos administrar o excedente de uma
maneira que impeça a possibilidade de outros também administrá-lo. O
problema só aparece quando você quer ser azteca em vez de apache.
Aquilo que derrotou os Apaches não foram as vacas que eles ganharam e
sim a atribuição aos Nant'ans – os netweavers da rede social apache – de
administrar centralizadamente o excedente, redistribuindo as vacas pelos
membros das comunidades a partir de sua posição diferenciada (52). Se
você administra o excedente dessa maneira, então introduz perturbações
nos fluxos gerando anisotropias na rede toda (e mudando a topologia da
sociedade). Ora, em uma rede que quer continuar sendo rede (mais
distribuída do que centralizada), isso, por certo, é um problema!

195
Não-empresas-hierárquicas

Redes de stakeholders – demarcadas do meio por membranas (permeáveis


ao fluxo) e não por paredes opacas – são as novas comunidades de
negócios dos mundos que já se anunciam

A empresa tradicional se baseava na capacidade de aprisionar o


conhecimento, deter o segredo, guardar a fórmula a sete chaves. Só que
nós – os hackers e os netweavers - estamos encontrando "O Chaveiro"
(aquele programa do filme dos irmãos Wachowski (2003), The Matrix
Reloaded, interpretado por Randall Duk Kim). E nenhuma empresa
conseguirá, sozinha, se manter na ponta da inovação (sem o que verá suas
chances de futuro se reduzirem ou não será sustentável) sem lançar suas
"hifas" para importar capital humano (conhecimento) e social (relações) do
ambiente onde existe. Duzentos cérebros aprisionados trabalhando para um
dono não podem competir com vinte mil cooperando livremente para
encontrar uma solução (de gestão, processo ou produto).

Observe-se que estamos falando disso que chamam de 'Economics', mas


sem manter uma posição genuflexória em relação aos princípios ideológicos
proclamados por esses novos sacerdotes da modernidade conhecidos como
‘economistas’. Um desses princípios, muito conveniente para os
privatizadores de conhecimento (como Bill Gates) é aquele que reza que o
principal incentivo para a inovação é o interesse material egotista (toda
economia ortodoxa, como se sabe, se baseia na idéia de que o
comportamento da sociedade pode ser explicado a partir do comportamento
dos indivíduos, que os indivíduos se comportam fazendo escolhas racionais
a fim de maximizar a obtenção dos seus interesses e que esses interesses
são sempre, ao fim e ao cabo, egotistas. Isso é alguma coisa parecida com
religião, et pour cause).

Bem, mas então o Sr. Gates diz isso. E a realidade mostra que o mundo não
funciona (mais) assim (se é que alguma vez funcionou). Os grandes
inovadores da humanidade – em sua maioria – nunca agiram assim.
Descobriram coisas porque deram curso àquela surpreendente capacidade
humana de se maravilhar com o desconhecido e de caminhar na escuridão
em direção à luz (ainda que isso possa soar, para alguns, anacronicamente
iluminista, a figura de linguagem parece perfeita). E polinizaram com suas
descobertas outras descobertas. Toda inovação surge, dessarte, por
polinização mútua, por fertilização cruzada. Ora, isso não acontece nos
marcos do jogo comercial de interesses e nem poderá acontecer, no volume

196
exigido pelo ritmo alucinante das inovações contemporâneas, apenas dentro
de uma unidade fechada de aprisionamento de corpos e de cérebros (como
a empresa como unidade administrativo-produtiva isolada). Isso ocorrerá,
cada vez mais, dentro de redes de stakeholders que serão as novas
comunidades de negócios do mundo que já se anuncia, demarcadas do
meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e não por paredes opacas.

A aplicação e o esforço devem ser remunerados, mas não o conhecimento.


Ninguém, a rigor, é dono do conhecimento, que é sempre resultante de um
processo coletivo. Alguma coisa “rodou” naquela nuvem que chamamos de
mente (e que não está restrita ao nosso cérebro, é uma cloud computing
social).

Sua avó lhe cobrou pela receita daquela magnífica geléia? Não? Então por
que você não pode fazer o mesmo? Ah! Ela então deu a receita para o
próprio neto, mas não a daria para o neto de outra avó? Por quê? Porque a
estrutura familiar, no caso, privatizou o capital social. Não é preciso grande
esforço para perceber que, do ponto de vista social, isso gerou
improdutividade, diminuiu a intensidade do fluxo econômico. E que, como
conseqüência, muitos perderam enquanto todos poderiam ganhar.

Sim, isso é pura sócio-economia. Economia do capital social. Nossa


produtividade aumentaria muito se o capital social – que é uma espécie de
recurso sistêmico que enseja a geração dos outros capitais (para continuar
com a metáfora, além dos capitais propriamente ditos, como o físico e o
financeiro, aquel’outros que são considerados externalidades pelos
economistas: como o capital natural, o capital humano e o social) – não
fosse privatizado. Isso quer dizer que aumentaria a geração de valor... para
todos!

Não parece ser verdade, como pensam alguns, que a peer production seja
coisa para um futuro longínquo. Temos hoje milhares de produtos (bens
intangíveis e inclusive tangíveis) sendo produzidos assim. Nem é necessário
insistir nos exemplos sempre citados do Linux ou do Apache (et pour cause,
novamente). Basta ver como surgiu quase toda a produção científica:
retrocederíamos à idade da pedra sem a peer production.

Por certo, muitos mundos ainda não são assim. Mas as tendências apontam
nessa direção. Na medida em que a privatização do conhecimento vai se
tornando, cada vez mais, impraticável, vão perdendo sentido os esquemas
que visam o seu aprisionamento. E assim como está ficando cada vez mais
difícil aprisionar o conhecimento, ainda há outra evidência que corrobora
essa hipótese: o conhecimento aprisionado estraga. É um bem que cresce

197
quando compartilhado e decresce e perde valor quando não se modifica
continuamente pela polinização.

198
O fim do trabalho

Boa parte do que chamamos de trabalho se exercerá como divertimento,


jogos, creative games

A pessoa é o empreendedor, não a empresa. A empresa é um meio para


que você possa empreender, não uma feitoria (você é um escravo?), um
feudo (você é um servo?), uma penitenciária onde você tenha que pagar
uma pena oito horas por dia (você foi condenado por algum crime?), quase
todos os dias da semana (sempre aborrecido e ansioso, como os escolares,
não vendo a hora em que vai tocar a sineta); muito menos um ídolo a que
você deva adorar.

A empresa-hierárquica substituiu a liberdade da invenção pela prisão do


trabalho (rotineiro). Conquanto tenha sido tão cantado e glorificado,
trabalho é um conceito regressivo, que evoca um ethos desumano
ancestral.

Sim, da perspectiva de uma sociedade em rede, trabalho será um conceito


cada vez mais problemático. Não é a toa que tenha surgido, na antiga
Mesopotâmia, com a conotação de sofrimento. Aliás, na mitogonia suméria,
segundo a “Epopéia da Criação” (53) – que contém alguns dos relatos mais
antigos que conhecemos de uma cultura sacerdotal, hierárquica e
autocrática – o homem teria sido criado pelos deuses para “trabalhar para
sempre e liberar os deuses...” ou suportar o jugo, sofrer a fadiga. Já foi
criado como trabalhador – um ser inferior, escravo dos deuses – para
propiciar a liberdade dos deuses, que passaram então a exigir dos homens
adoração. Adoração significava, originalmente, segundo os relatos bíblicos,
trabalhar para os seres superiores: trabalhar para uma deidade e essa
deidade era simultaneamente “senhor”, “soberano”, “rei”, “governante” e
“dono” – enfim, superior. O homem antigo dos sistemas hierárquico-
autocráticos não propriamente adorava seus deuses, mas temia-os e
trabalhava para eles. E, é claro, para seus intermediários humanos: os
sacerdotes.

Assim como temor não é amor, trabalho não é algo que possa humanizar os
seres humanos enquanto sujeitos interagentes em relações horizontais com
outros seres humanos. Quando se trabalha para um superior que aprisionou
seu corpo e escravizou ou alugou sua força e sua inteligência, é-se
subordinado, sub-ordenado segundo um padrão de ordem vertical, alocado
em um degrau inferior da escada do poder.

199
Também não é por acaso que no organograma das empresas figuram no
topo aqueles que têm muitas conexões e abaixo os que têm poucas. O CEO
tem acesso a todas as informações, a todos os conhecimentos, a todos os
funcionários e a todos os demais stakeholders, enquanto que o auxiliar do
almoxarifado e a moça do café vivem na pobreza de caminhos (ver Fig. 2).
É assim que a estrutura hierárquica organiza internamente a pobreza (e
toda pobreza é pobreza de conexões) para administrá-la e mantê-la. Diz-se
então que tais pessoas não são empreendedoras. Ora, é claro que não são:
a empresa cassou seu empreendedorismo ao aprisioná-las nesse tipo de
estrutura centralizada. A empresa-hierárquica só se constitui porque aquele
mesmo programa ancestral, resumido no mito sumério da criação do ser
humano como um trabalhador amestrado (o “lulu-amelu”), continua
rodando na rede social. Não importa para nada se os nomes das coisas, dos
processos e das “peças da máquina”, mudaram: você continua adorando
ídolos, quer dizer, trabalhando para um deus.

A reação desses súditos – os trabalhadores – na modernidade, nos dois


séculos passados, não poderia ter sido mais conforme ao modelo. Em vez
de se transformarem em empreendedores e montarem suas próprias
empresas em outro padrão, eles se organizaram em movimentos,
corporações e partidos de trabalhadores repetindo e legitimando o velho
padrão, apenas querendo arrancar dos patrões mais “benefícios” e
condições melhores para continuarem sendo... trabalhadores! E adotaram,
em seus movimentos – de início insurgentes e, depois, acomodatórios:
simples bandos para negociar interesses (pois o sindicalismo é uma forma
de banditismo social e, às vezes, também criminal) – a mesma estrutura
hierárquica que os aprisionava. Na vertente insurgente desses movimentos,
ditos socialistas, alguns imaginaram que deveriam se organizar, sempre de
modo hierárquico, para o combate aos patrões e ao seu Estado a fim de dar
nascimento a uma nova sociedade sem exploração. Para legitimar tudo isso
forjaram estranhas teorias sobre classes sociais e sobre supostos interesses
de classe, reservando para si – a “classe operária” – o condão de ser
portadora do único conjunto de interesses particulares que, quando se
realizassem, tornando-se dominantes, se universalizariam (atendendo aos
interesses históricos de todas as outras classes, a despeito destas últimas
não poderem ter, por si mesmas, consciência disso). Para alcançar essa
suposta sociedade sem classes, a classe trabalhadora deveria erigir seu
próprio Estado, fortalecendo-o a ponto de... extinguí-lo (por incrível que
pareça eles pensavam assim mesmo: seria cômico se não tivesse sido
trágico). É claro que tudo isso virou lixo, inclusive porque, com a bancarrota
dos modelos econômicos e políticos estadocêntricos – nas quais os
trabalhadores continuaram sendo súditos (do seu novo Estado-patrão) –,
também faliram as utopias igualitaristas que os inspiraram.

200
O problema não foi e nem será resolvido enquanto se mantiver a empresa-
mainframe que repete o padrão hierárquico das demais instituições
adequadas a um mundo de baixa conectividade social (e que, aliás,
mantinham o mundo único como um mundo de baixa conectividade social).

Empresas serão redes de empreendedores. Não hierarquias, onde um


empreendedor arrebanha e subjuga “colaboradores” para transferir para
eles o serviço pesado, repetitivo, pouco gratificante, mas considerado
necessário ao sucesso do seu empreendimento. Ou para se livrar do
“serviço sujo”. Ora, o nome desse “serviço sujo” é... trabalho!

Bob Black (1985), no seu provocante manifesto intitulado A abolição do


trabalho, escreveu que “existe tanta liberdade em uma moderada ditadura
desestalinizada como em um ordinário local de trabalho americano. A
hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que
encontramos na prisão ou em um convento”. E o mesmo ocorre, segundo
Black, com as escolas, esses “campos de concentração” onde as crianças
são levadas “para adquirirem o hábito da obediência e da pontualidade que
tanto jeito fazem a um trabalhador”. Para ele, porém “precisamos das
crianças como professores e não como estudantes. As crianças têm muito a
contribuir para a revolução lúdica [que abolirá o trabalho] porque sabem
brincar melhor que os adultos” (54).

Nos Highly Connected Worlds assistiremos ao fim do trabalho (do trabalho


indiferenciado ou não-qualificado em grande escala que surgiu com a
industrialização). Talvez boa parte do que chamamos de trabalho se
exercerá como divertimento, jogos, creative games, por que não? O fim do
trabalho, entretanto, não significará o fim das empresas e nem dos
empreendedores; pelo contrário.

Isso implica a reprogramação das empresas, que se tornarão meios onde


empreendedores vão se coligar para realizar o que desejam ou sonham,
sem se subordinarem uns aos sonhos de outros para executar as tarefas
que chamamos de trabalho – posto que isso não é realmente necessário em
mundos em que há, cada vez mais, abundância de meios para realizar um
empreendimento. No entanto, reprogramar a empresa é, de certo modo,
reprogramar a sociedade.

201
Reprogramando sociosferas

Basta que você se dedique a “fazer” redes para inocular um virus nos
programas verticalizadores

Escolas (e ensino), igrejas (e religiões), partidos (e corporações), Estados-


nações (e seus aparatos), empresas-hierárquicas: basta mexer no código
de uma dessas instituições para alterar a programação da sociedade. Há
várias entradas. Você pode escolher por onde quer começar a hackear o
mundo único, reprogramando sociosferas.

Entretanto, para reprogramar sociosferas glocais – ao sabor de fluzz – não


basta hackear, é necessário também fazer netweaving.

Netweaving – articulação e animação de redes sociais – será cada vez mais


necessário para a experimentação inovadora em todas aquelas áreas que
questionam o velho mundo único, ensejando a emergência de novos
mundos altamente conectados: comunidades de aprendizagem em rede,
ecclesias para compartilhar formas pós-religiosas de espiritualidade, redes
de interação política pública em vizinhanças e setores de atividade,
comunidades glocais em cidades inovadoras, empresas-redes – tudo isso é
semente! Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-Estados-nações e
não-empresas-hierárquicas são sementes: o que daí nascerá (depois) não
se pode saber (antes). Mas basta que você se dedique a uma dessas
atividades para inocular um virus nos programas verticalizadores. Não, não
é necessário uma grande revolução transformadora da sociedade como um
todo (mesmo porque não existe tal ‘sociedade como um todo’ e, portanto,
também não existe essa grande revolução redentora ou salvadora: como
dizia Paulo Brabo (2007), “o mundo não pode ser salvo de uma só vez... [só
pode ser salvo] redimindo-se um momento de cada vez”) (55).

É claro que tudo isso se resume em uma palavra: rede. Redes devem ser
encaradas, nesse sentido, como movimentos de desconstituição de
hierarquias. “Fazer” redes é desconstituir hierarquias.

Ao fazer isso, você se tornará um netweaver. Não importa onde atue, desde
que você desista das instituições hierárquicas: seja desistindo das escolas,
para atuar como catalisador de processos de aprendizagem em
comunidades livres de buscadores e polinizadores, estruturadas em rede;
seja desistindo das igrejas, mas (só se você quiser) não de compartilhar sua
mística ou sua espiritualidade com outras pessoas; seja desistindo dos

202
partidos, mas não desistindo de fazer política (pública), exercitando a
democracia cooperativa na base da sociedade e no cotidiano das pessoas
que convivem com você, na sua localidade ou setor de atividade; seja
desistindo das noções regressivas de patriotismo e nacionalismo e virando
cidadão transnacional de sua glocalidade; seja desistindo das empresas-
hierárquicas, mas não de empreender e de se associar a outros
empreendedores para estruturar novas empresas em rede.

No mundo único, entretanto, a desistência passa pela desobediência. Você


não conseguirá realizar nada disso se não tiver a firme disposição de
desobedecer aos mantenedores do velho mundo, que continuam mais
ativos do que nunca, talvez pressentindo fluzz – esse vento nuclear que
vem varrendo tudo por aí.

203
204
8
Os mantenedores do velho mundo

A Força era um conceito complexo e difícil.


A Força estava enraizada no equilíbrio de todas as coisas,
E todo movimento dentro de seu fluxo
arriscava um desequilíbrio nessa harmonia.
Terry Brooks em Star Wars – Episódio I: A Ameaça Fantasma (1999)

Se os tubarões fossem homens,


eles fariam construir resistentes caixas do mar,
para os peixes pequenos...
Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas...
Também haveria uma religião ali.
Bertold Brech em Se os tubarões fossem homens (1926-1956)

A força (Te) não é (um querer) induzir alguém


(ou alguma coisa) a seguir um caminho prefigurado
e sim (um deixar) fluir com o curso (Tao).
O autor em Desobedeça (2010)

Mas fluzz não é a força. Fluzz é o curso.


O autor, aqui (2010)

205
Nada disso está sendo percebido pelos mantenedores do velho
mundo que são, invariavelmente, “net-avoids”, ou seja, aqueles que
desconfiam das redes quando não deveriam fazê-lo, posto que
justamente em uma época de transição para uma sociedade em rede.
E estes são, quase sempre, hierarcas. Não conseguem ver o que está
ocorrendo porque, do lugar onde operam, objetivamente, contra os
novos mundos que estão emergindo, a mudança não pode mesmo
aparecer. Alguns exemplos dessas categorias – que freqüentemente
se misturam e incidem em alguma combinação particular sobre um
mesmo indivíduo “vitorioso” (segundo os critérios do milênio
pretérito) – merecem ser destacados: os ensinadores ou burocratas
sacerdotais do conhecimento, os codificadores de doutrinas, os
aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os
fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos.

Conhecimento atestado por títulos, fama, riqueza e poder são indicadores


de sucesso adequados às sociedades hierárquicas. São coisas que só alguns
podem ter, não todos. São coisas que alguns podem ter em detrimento dos
outros. Assim o sábio se destaca dos ignorantes (ou o titulado do não
titulado, até na cadeia), o famoso não se mistura com o zé-ninguém, o rico
vive entre os ricos para ficar mais rico e não se relaciona com o pobre (que
– como sabemos – só continua pobre porque seus amigos são pobres) e o
poderoso só consegue exercer seu poder porque os que (acham que) não
têm poder lhe prestam obediência. Os critérios de sucesso competitivo são,
na verdade, mais do que indicadores: são ordenações da sociedade
hierárquica.

O fato é que, os que tiveram sucesso ou venceram no mundo do comando-


e-controle, em grande parte, venceram aplicando esquemas de comando-e-
controle. Venceram – e foram reconhecidos como vencedores – porque
aplicaram esquemas de comando-e-controle; ou seja, porque replicaram
um determinado padrão de ordem (e, para tanto, é como se tivessem
recebido uma ordenação).

206
Dentre os que fazem sucesso na sociedade hierárquica e de massa
encontram-se, é claro, pessoas esforçadas, criativas ou inovadoras, talentos
extraordinários e gênios incontestes. Mas estão lá também – em número
tão grande para derrubar o mito de que o sucesso é um prêmio pelo talento
– os agentes reprodutores desse tipo de sociedade, como, por exemplo, os
colecionadores de diplomas, os vendedores de ilusões, os marqueteiros de
si mesmos, os aprisionadores de corpos, os ensinadores ou burocratas
sacerdotais do conhecimento, os codificadores de doutrinas, os
aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os fabricantes de
guerras e os condutores de rebanhos.

Não se trata de inculpar esses tipos por todo mal que assola a humanidade.
Eles são apenas agentes inconscientes da reprodução do sistema. Eles não
existem propriamente como indivíduos. Não adianta para nada tentar
nomeá-los: eles são legião (Mc 5: 9), entidades inumeráveis configuradas
nas redes sociais, quando campos perturbados pela presença da hierarquia
aglomeram e enxameiam no contra-fluzz.

207
Ensinadores

Os primeiros ensinadores – os sacerdotes – ensinavam para reproduzir (ou


multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio estamento

Ensinadores são os que compõem a burocracia privatizadora do


conhecimento: aquela casta sacerdotal que constitui as escolas e
academias.

Os ensinadores surgiram naquela noite dos tempos que o matemático Ralph


Abraham (1992) chamou de “precedente sumeriano” (1).

É surpreendente constatar, como fizeram Joseph Campbell, Samuel Noah


Kramer e outros renomados sumeriologistas, que os elementos centrais da
nossa cultura, dita civilizada, compareciam em uma espécie de modelo ou
protótipo ensaiado em complexos do tipo cidade-templo-Estado como Eridu,
Nippur, Uruk, Kish, Acad, Lagash, Ur, Larsa e Babilônia. Esse modelo já
estava em pleno funcionamento, segundo interpretações de relatos que não
puderam ser contestadas, a partir do quarto milênio. Em particular a obra
de Kramer (1956): “A história começa na Suméria”, revela as raízes
sumerianas do atual padrão civilizatório (2).

Joseph Campbell (1959), em “As Máscaras de Deus”, redigiu uma espécie


de termo de referência para esta investigação (3):

“Um importante desenvolvimento, repleto de significado e promessas


para a história da humanidade nas civilizações por vir, ocorreu... [por
volta] (de 4.000 a. C.), quando algumas aldeias camponesas
começaram a assumir o tamanho e a função de cidades mercantis e
houve uma expansão da área cultural... pelas planícies lodosas da
Mesopotâmia ribeirinha. Esse é o período em que a misteriosa raça
dos sumérios apareceu pela primeira vez em cena, para estabelecer-
se nos terrenos das planícies tórridas do delta do Tigre e do Eufrates,
que se tornariam em breve as cidades reais de Ur, Kish, Lagash,
Eridu, Sipar, Shuruppak, Nipur e Erech... E então, de súbito... surge
naquela pequena região lodosa suméria – como se as flores de suas
minúsculas cidades subitamente vicejassem – toda a síndrome
cultural que a partir de então constituiu a unidade germinal de todas
as civilizações avançadas do mundo. E não podemos atribuir esse
evento a qualquer conquista da mentalidade de simples camponeses.
Tampouco foi a conseqüência mecânica de um mero acúmulo de

208
artefatos materiais, economicamente determinados. Foi a criação
factual e claramente consciente (isto pode ser afirmado com total
certeza) da mente e ciência de uma nova ordem de humanidade que
jamais havia surgido na história da espécie humana: o profissional de
tempo integral, iniciado e estritamente arregimentado, sacerdote de
templo”.

Respeitados estudiosos confessam até hoje sua perplexidade diante da


constelação desse ‘precedente sumeriano’ (para insistir na feliz expressão
do matemático Ralph Abraham). É o caso, por exemplo, da antropóloga e
assirióloga Gwendolyn Leick, que leciona em Richmond (Londres). No seu
“Mesopotâmia: a invenção da cidade” (2001), ela declara que “muito se tem
escrito sobre o “súbito” aparecimento dos sumérios na Mesopotâmia e suas
possíveis origens... [mas] a questão da origem dos sumérios continua
aguardando solução, e tudo o que podemos dizer é que, no início do
Primeiro Dinástico, sua língua foi escolhida para ser vertida em escrita.
Talvez os sumérios se tivessem tornado politicamente dominantes e
exercido o controle dos centros de formação de escribas nas primeiras
cidades” (5).

Essa casta ou estamento – composta pela burocracia sacerdotal que


administrava as nascentes cidades-templo-Estado sumerianas – configurou
o primeiro padrão de transmissão de ensinamento. Ensinavam como um
imperativo para reproduzir seu próprio ensinamento; quer dizer, ensinavam
para reproduzir (ou multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio
estamento.

Por quê? Ora, porque o livre aprendizado na rede social de então não seria
capaz de cumprir tal função, que nada tinha a ver com sua sobrevivência ou
com sua convivência. Não se tem notícia de escola, ensino ou professores
em sociedades de parceria. Quando a rede social foi subitamente
centralizada pela configuração particular que se constelou com o surgimento
do complexo cidade-templo-Estado, os programas verticalizadores que
começaram a rodar nessa rede eram replicados em outras regiões do
espaço e do tempo pela transmissão-recepção de seus códigos – e já havia
programas elaborados, como os que os sumérios denominavam ‘me’ (6) –
aos membros do mesmo grupo social.

Ou seja: já havia um ensinamento (secreto, por certo, acessível somente


aos membros do estamento). Já havia ensinantes (os primeiros professores,
membros da casta sacerdotal) e ensinados (os futuros administradores em
formação).

209
Essa hipótese é fortalecida pela investigação das origens da Kabbalah. O
símbolo central desse sistema de sabedoria – a chamada “Árvore da Vida” –
foi, sem dúvida, herdado do simbolismo templário do complexo Templo-
Estado sumeriano, o qual deve ter passado ao judaísmo posterior por
intermédio da Golah – a organização dos cativos (seqüestrados nas elites de
Jerusalém) na Babilônia sob o reinado de Nabucodonozor e seu sucessor.

Não se sabe a origem da 'árvore da vida', mas ela aparece nas imagens da
tamareira gravadas nas mais antigas tabuinhas sumerianas encontradas
pelos escavadores. E aparece também – com o mesmo esquema, que
depois foi transmitido pela tradição (cabalística) – na forma de uma nave,
ladeada por dois seres alados (com cabeças de águia). Uma nave – talvez
como as naves dos templos, até hoje – que não sai do lugar, mas por meio
da qual se pode “viajar” para os céus caso se tenha acesso ao “combustível”
adequado: ao “fruto da vida” e à “água da vida”...

O mesmo schema básico da árvore da vida, representada em vários


mundos que se interceptam (os da emanação, da criação, da formação e do
produzir) compõe o que foi chamado de “Escada de Jacó”, uma escada pela
qual os mensageiros – ou as mensagens – podem subir e descer
estabelecendo os fluxos entre o céu e a terra. Isto é anisotropia: o céu, é
claro, fica em cima; a transmissão, é claro, é top down. E o esquema é mais
centralizado que distribuído (7).

Essa ideologia de raiz babilônica (suméria) que, quase dois milênios depois,
foi se chamar de Kabbalah (cabala), na Idade Média européia, fez uma
operação tremenda de “engenharia memética” no símbolo original,
ressignificando a árvore da vida como uma “árvore do conhecimento”, quer
dizer, tomando a vida pelo conhecimento da vida e do que com ela foi
feito... Isso significa obstruir o acesso à vida, facultando-o somente aos que
possuem o conhecimento (aquilo que a cabala chamou de “ensinamento” e
que é transmitido então em uma cadeia, tida por ininterrupta, que começa
com o arquimensageiro Raziel, passa para Enoc – o escriba, não por acaso
– e daí para os patriarcas e para os sacerdotes). Kabbalah vai designar,
então, essa tradição sacerdotal: condução (transmissão-recepção) do
ensinamento original por parte daqueles que são capazes de reproduzir esse
mesmo padrão de ordem sagrada, isto é, separada do vulgo, do profano,
daquele que não foi ordenado.

Isso tudo não somente fez, mas faz ainda, parte de uma experiência
fundante de verticalização do mundo, que prossegue enquanto a tradição
permanece ou se refunda toda vez que o meme é replicado. Do ponto de

210
vista da memegonia, aqui pode estar a origem da relação mestre-discípulo
ou professor-aluno.

Não foi a toa que uma mente arguta como a de Harold Bloom (1975) –
ecoando, aliás, o que dizia o erudito Gershom Scholem – percebeu que
Kabbalah era uma ideologia de professores. Na origem de tudo está... uma
Instrução: “o Ein-Sof instrui a Si mesmo através da concentração... Deus
ensina a Si mesmo o Seu próprio Nome, e, dessa forma, começa a criação”
(8).

Nessa memegonia, Deus é o primeiro professor e o ato de ensinar está na


raiz do ato de criar o mundo. O conhecimento (via ensinamento) – e não a
existência e a vida – é o objetivo: a origem e o alvo. Deus cria o mundo
para se conhecer. Mas para se conhecer ele ensina, não aprende. Logo,
seus “delegados”, ou intermediários (os sacerdotes), também ensinam.
Todo corpus sacerdotal é docente.

É por isso que há uma enorme dificuldade de conciliar visões próprias de


sistemas tradicionais de sabedoria com a visão-fluzz das redes de
aprendizagem. A tradição - dita espiritual - com raras exceções (como o
Tao, mas não o taoismo; como o Zen - esse formidável sistema de
desconstituição de certezas -, mas não o budismo) em geral replicou
atitudes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas. Maturana
levantou a hipótese da "brecha" (na civilização patriarcal e guerreira) para
mostrar como pôde ter surgido a democracia (9). Mas, na verdade, não foi
só a democracia que penetrou pela "brecha": vertentes utópicas, proféticas,
autônomas e democráticas floresceram ao longo da história e continuam
florescendo - intermitentemente - toda vez que comunidades conseguem
estabelecer uma interface para conversar com a rede-mãe (10). Essas duas
vertentes permaneceram e ainda permanecem em permanente tensão.

O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato


separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente,
como instrumentos de reprodução de programas centralizadores que foram
instalados para verticalizar a rede-mãe.

De certo modo, os deuses do panteão patriarcal e guerreiro foram os


primeiros programas meméticos centralizadores (11). O tardio IHVH bíblico
– ensinador – encarna uma rotina desses programas (e é representado por
uma das sefirot – um evento – na 'árvore da vida' ressignificada, no mundo
da emanação).

211
Como os deuses do panteão patriarcal e guerreiro da Mesopotâmia do
período Uruk (c. 4000-3200) – período sucedido, logo em seguida, não por
acaso, pela escrita (no Primeiro Dinástico I: c. 3000-2750) – foram criados
à imagem e semelhança dos homens que começaram a se organizar
segundo padrões hierárquicos, tudo isso é muito relevante para
entendermos que a transmissão do ensinamento já foi fundada, de certo
modo, em contraposição ao livre aprendizado humano na rede social muito
menos centralizada (ou até, quem sabe, distribuída) dos períodos pré-
históricos anteriores (desde, pelo menos, o Neolítico). Para essas
sociedades de dominação, nada de aprender (inventar). Era preciso ensinar
(para replicar). E por isso ensinadores são mantenedores do velho mundo.

212
Mestres e gurus

Todos são mestres uns dos outros enquanto se polinizam mutuamente

Há também os que – por fora dos sistemas formais de ensino – ainda se


intitulam (ou são por alguém intitulados de) mestres ou gurus. Alguns são
ordenados para tanto, quer dizer, têm reconhecida, sempre por uma
organização hierárquica, sua capacidade de reproduzir uma determinada
ordem top down. E querem então imprimi-lo, emprenhá-lo, ou seja,
enxertar suas idéias-implante em você, para que você se torne também um
transmissor desse “vírus”.

É claro que existem outras interpretações do papel do mestre. Osho, por


exemplo, tentando explicar a correta intolerância de Krishnamurti com os
que se anunciam ou eram anunciados como mestres ou gurus, coloca uma
outra perspectiva ao dizer que “um mestre não o ensina, ele simplesmente
torna o seu ser disponível para você e espera que você também faça o
mesmo”. E aí vem a justificativa: “A menos que algum raio do além entre
em seu ser, a menos que você prove algo do transcendental, até mesmo o
desejo de ser liberado não aparecerá em você. Um mestre não lhe dá a
liberação, ele cria um desejo apaixonado pela liberação”. A justificativa é
que “será muito difícil, quase impossível, fazer isso por conta própria” (12).

Mas quem disse que isso teria que ser feito “por contra própria”? Ao tentar
justificar sua crítica a Krishnamurti, Osho enveredou por um viés psicológico
individual. Ele não teria se curado do trauma de ter sido “educado por
pessoas muito autoritárias... professores, talvez, mas não mestres”. Então
Osho afirma que tudo isso “foi demais [para Krishnamurti] e ele não pode
esquecê-los e não pôde perdoá-los” (13). No fundo, tudo isso soa mais
como uma tentativa de salvar uma função pretérita, resgatar um papel
arcaico que, em alguma época, funcionou de fato assim como ele, Osho,
diz, porém em mundos de baixa conectividade social.

Já foi dito aqui que na medida em que vida humana e convivência social se
aproximam (nos mundos altamente conectados) somos obrigados a mudar
nossas interpretações. E que isso entra em choque com as tradições
espirituais que diziam que quando o discípulo está preparado o mestre
aparece. De certo modo é justo o contrário: o discípulo desaparece quando
desaparece a escola (quer dizer o ensinamento) e com ele vai-se também o
mestre.

213
Isso – para alguns – é um escândalo. Nos Highly Connected Worlds quem
lhe reconhece é o simbionte social, se você se sintonizar suficientemente
com a rede-mãe. Não é um representante da tradição, não é um membro
de uma casta sacerdotal ou de alguma hierarquia docente, nem mesmo um
indivíduo que despertou antes de você – a não ser que essa pessoa (uma
pessoa) seja a porta para que você possa entrar em outros mundos. Mas
neste caso essa pessoa – eis o ponto! – pode ser qualquer pessoa que
esteja conectada a esses mundos onde você quer entrar.

Se alguém pudesse recuar antes (e o que seria antes?) daquela noite dos
tempos em que a rede-mãe começou a rodar programas verticalizadores e
pudesse dizer como uma comunidade conseguia entrar em sintonia com o
simbionte natural (que talvez se confundisse – em sociedades de parceria,
pré-patriarcais, quem sabe em algum momento do Neolítico – com a rede-
mãe: síntese simbolizada na figura da grande mãe ou da deusa), talvez
pudesse nos sugerir algum processo para reinventarmos tal sintonia com o
simbionte social (o superorganismo humano). Mas, fosse qual fosse, sua
resposta seria enxame (múltiplos caminhos em efervescência) e não
indivíduo no caminho em busca da unidade perdida ou da sua origem
celeste.

Não vale fazer recuar a noite dos tempos em que surgiram os sistemas
míticos-sacerdotais-hierárquicos-autocráticos para colocá-los na origem de
tudo com o fito de transformar a origem terrestre do humano em uma
origem celeste. Essa operação ideológica, urdida por esses mesmos
sistemas, legitima o mestre como um veículo, um emissário, um
representante da suposta origem celeste (ainda quando existam mestres
que reneguem tudo isso).

No enxame você já é um mestre, todos são mestres uns dos outros


enquanto não apenas buscam, mas se polinizam mutuamente e isso quer
dizer que não existe um, não existe aquele mestre.

Mestres – como ensinadores – são mantenedores do velho mundo. Mesmo


quando recusam tal papel, eles abrem caminho para os codificadores de
doutrinas, aqueles cavadores de sulcos para fazer escorrer por eles as
coisas que ainda virão.

214
Codificadores de doutrinas

Eles produzem narrativas para que você veja o mundo a partir da sua ótica,
quer dizer, para que você não veja os múltiplos mundos existentes

Codificadores de doutrinas são todos aqueles que querem pavimentar, com


as suas crenças religiosas (e sempre o são, mesmo quando se declaram
laicas), uma estrada para o futuro. Eles produzem narrativas ideológicas
totalizantes para que você veja o mundo a partir da sua ótica, quer dizer,
para que você não veja os múltiplos mundos existentes, mas apenas um
mundo (o mundo arquitetado e administrado por eles: uma prisão para a
sua imaginação).

Quando são (explicitamente) religiosos, os codificadores de doutrinas


fornecem a justificativa para a ereção de igrejas e seitas. Quando são
políticos, urdem a base conceitual para a formação de correntes e grupos de
opinião onde a (livre) opinião propriamente dita não conta para quase nada:
o que conta é a ortodoxia de uma opinião oficial ou canônica, a qual tentam
autenticar apelando para a revelação ou para a ciência. Em todos os casos
são engenheiros meméticos, manipuladores de idéias que inventam passado
para legitimar certos caminhos (e deslegitimar outros) para o futuro. Fazem
isso para controlar o seu futuro, para levá-lo (a sua alma ou o seu corpo)
para algum lugar supostamente melhor, para um paraíso no céu ou na
terra, quando, eles mesmos, não podem conhecer tal caminho
(simplesmente porque não existe um caminho).

Codificadores de doutrinas abrem espaço para a ereção de igrejas, muitas


vezes em contraposição à experiência fundante ou à suposta revelação que
tomam como referência. É assim que os fransciscanos, hoje “puxando
dinheiro com rodo” (como dizia Frei Mateus Rocha, nos idos de 1970) (14),
executam exatamente o contrário do que pregava il poverello d’Assisi
(1182-1226). Tanto faz se tais igrejas são religiosas ou laicas: Paulo de
Tarso (com o cristianismo) e Inácio de Antioquia (com a igreja católica)
cumprem funções análogas às de Lenin (com o materialismo dialético e o
materialismo histórico) e Stalin (com o PCUS) ou Trotski (com a Quarta
Internacional).

Os codificadores de doutrinas também são ensinadores e, de certo modo,


gurus (no sentido em que a palavra é empregada atualmente). São os
abastecedores dos ensinadores que, em geral, transmitem ensinamentos
que já foram codificados por eles. São, portanto, os verdadeiros fundadores

215
de escolas, conquanto frequentemente dizendo-se a serviço de um fundador
já desaparecido (ou nunca aparecido).

216
Aprisionadores de corpos

O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus


trabalhadores fora do caos criativo

Aprisionadores de corpos são aqueles que, não contentes em usar, comprar


ou alugar, sua inteligência humana (que não tem preço), querem também
mantê-lo cativo, fisicamente, nos seus prédios ou cercados. São feitores:
antes usavam o chicote; hoje usam o relógio ou o livro de ponto, o crachá
magnético ou o banco de horas. Nas empresas ou organizações
hierárquicas, sejam privadas ou públicas, seqüestram seu corpo para
manter você por perto, para poder vigiá-lo, para terem certeza de que você
está de fato trabalhando para eles (que coisa, heim?). Não precisavam fazer
isso se o seu objetivo fosse o de articular um trabalho coletivo
compartilhado. Mas o objetivo deles não é, na verdade, compartilhar nada
com outros seres humanos e sim controlá-los-e-comandá-los, em certo
sentido desumanizá-los, embotando sua inteligência, castrando sua
criatividade, alquebrando sua vontade, para poder usá-los como objetos,
para terem-nos disponíveis, sempre à mão, tantas horas por dia: querem
um rebanho de servos de prontidão para lhes fazer as vontades. Se
quisessem que as pessoas trabalhassem com-eles e não para-eles não seria
necessário – na imensa maioria dos casos – aprisionar os seus corpos:
bastaria estabelecer uma agenda conjunta, com tarefas e prazos.

Mais de 90% dos empregadores são aprisionadores de corpos. Chefes de


repartições governamentais, administradores de empresas e “donos” de
ONGs costumam ser aprisionadores de corpos. Se as pessoas não tivessem
que dormir e as leis permitissem, gostariam que elas ficassem à sua
disposição o tempo todo: – 24 horas: tum, tum, tum...

Ainda quando dizem o contrário, eles não querem que você empreenda,
seja criativo, construa produtos ou processos inovadores e realize coisas
maravilhosas e sim que você trabalhe. Querem trabalho = repetição e
execução de ordens. Se quisessem criação, inovação, não lhe imporiam
agendas estranhas (que você não teve oportunidade de co-construir), não
lhe retalhariam o tempo em unidades controláveis, com horários rígidos de
entrada e saída em algum espaço murado. Dariam a seus colaboradores (a
todos) as melhores condições para inovar (alugariam, quem sabe, uma casa
em uma ilha paradisíaca, em uma chácara aprazível ou mesmo em um
bosque urbano, um horto, cultivariam jardins... em suma, não organizariam
e docorariam seus locais – de trabalho – de modo tão horrendo, sem cores,

217
sem arte, tudo cinza, quadrado, como uma prisão mesmo, ou um convento)
e, sobretudo, não reduziriam sua mobilidade: uma dimensão essencial da
sua liberdade para criar.

O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus


trabalhadores fora do caos criativo, protegê-los do seu próprio espírito
empreendedor. Então, para estereliza-lo, colocam você na pirâmide. Sim,
aprisionadores de corpos são também construtores de pirâmides.

218
Construtores de pirâmides

O indivíduo não é o átomo social; para ser social, é preciso ser molécula

Os construtores de pirâmides também surgiram naquela noite dos tempos


em que a rede-mãe passou a rodar programas verticalizadores. Talvez os
primeiros construtores de pirâmides tenham sido mesmo os... construtores
de pirâmides, não apenas as do Egito, mas também os zigurates
mesopotâmicos. Mas todas as pirâmides que vêm sendo construídas ao
longo do chamado período civilizado evocam o mesmo padrão vertical
surgido pela perturbação do campo social introduzida pela hierarquia. Não
são, entretanto, apenas arquitetos, engenheiros e mestres de obra que
projetam, comandam e controlam o trabalho de erigir construções físicas.
Construtores de pirâmides são os que erigem organizações hierárquicas de
todo tipo para mandar nos outros e obrigá-los a fazer (ou deixar de fazer)
coisas contra a sua vontade ou sem o seu assentimento ou consentimento
ativo.

São os chefes de instituições hierárquicas. São organizadores de pessoas


como se pessoas fossem coisas. Toda organização hierárquica é uma
arquitetura com pessoas, uma construção forçada, coisificante, onde as
pessoas são tratadas como tijolos ou outro material qualquer: – Então
colocamos uma aqui, outra em cima dessa, outra abaixo, bem ali; ôpa!
Cuidado, não está encaixando bem; então quebra um pedaço aqui,
desbasta ali, martela com força que entra...

Replicadores e trancadores são construtores de pirâmides. Replicadores são


todos os que se dedicam a repetir uma ordem pretérita. São, portanto,
ensinadores (“estações repetidoras” do que foi forjado, em geral, pelos
codificadores de doutrinas). Para exercer tal papel, entretanto, eles
constroem, invariavelmente, estruturas centralizadas ou verticalizadas –
sejam escolas, sociedades, maçonarias e assemelhadas, partidos ou
corporações ou qualquer outra burocracia que viva da repetição e da
inculcação de um conjunto de idéias ou visões de mundo urdidas para
prorrogar passado – e, nesse sentido, são construtores de pirâmides.

Trancadores são os que privatizam bens que poderiam ser comuns (ou que
não poderiam ser trancados, como o conhecimento). Trancadores de
conhecimento são, por exemplo, os que defendem o domínio privado sobre
o conhecimento, como as leis de patentes e o famigerado copyright.

219
Um dos tipos contemporâneos de trancadores – relevante pelo efeito
devastador que sua atividade provoca na antesala de uma época-fluzz – são
os trancadores de códigos, que estão entre os mais bem-sucedidos
inventores de softwares proprietários da atualidade Ao construírem caixas-
pretas para esconder seus algorítimos (como fazem os donos do Google ou
do Twitter) ou para montar seus alçapões de dados (como faz o dono do
Facebook), eles acabam tendo que construir pirâmides para proteger suas
operações centralizadoras da rede social. Não é por acaso que as
plataformas que desenham a partir de uma instância proprietária tentem
disciplinar a interação. Essa é a razão pela qual as plataformas ditas
interativas de que dispomos não são suficientemente interativas (i-based),
posto que baseadas na participação (envolvendo sempre algum tipo de
escolha de preferências geradora de escassez) e no arquivamento de
passado (para aumentar o repositório ao qual, a rigor, só os proprietários
dessas plataformas têm pleno acesso na medida em que só eles podem
programá-las sem restrições).

E essa é também a razão pela qual tais plataformas deseducam (se se pode
falar assim) seus usuários (a palavra – ‘usuário’ – já é horrível do ponto de
vista da interação) para as redes distribuídas. Então uma pessoa entra em
alguma dessas plataformas e tende a achar que a sua página é o seu
espaço proprietário a partir do qual ela vai interagir. Em vez de entrar em
um fluxo, ela se aboleta no seu bunker (às vezes chamado de ‘Minha
Página’) e é induzida a achar que ali pode colocar todos os seus vídeos,
suas fotos, seus eventos e seus posts, independentemente do que está
rolando na rede que usa tal plataforma como ferramenta de netweaving e,
não raro, sente-se até ofendida quando alguém lhe lembra que o concurso
de Miss Universo não tem muito a ver com astrofísica.

A solução para tal problema não é “fugir para trás”, voltando aos blogs,
como sonham alguns. Ainda que a blogosfera seja de fato, no seu conjunto,
uma rede distribuída, os blogs, em si, não se estruturam de modo
distribuído. Em geral são organizações fechadas, que não admitem
interação a não ser com aprovação prévia dos seus donos (por meio da
chamada “mediação de comentários”). Mesmo quando são abertos a
qualquer comentário, os blogs são piramidezinhas, espécies de reinados do
eu-sozinho. Não são bons instrumentos de netweaving de redes sociais
distribuídas na medida em que não são, eles próprios, redes distribuídas.

Não existem tecnologias de netweaving capazes de colocar um conjunto de


blogs em um meio eficaz de interação. Ademais, a mentalidade dos
bloggers não acompanhou a inovação que, objetivamente, sua atividade
representa. E muitos daqueles que fazem o proselitismo das redes

220
distribuídas nos seus blogs, organizam, lá no seu quadrado, suas igrejinhas
hiper-centralizadas, algumas vezes quase-monárquicas (15). Ou seja, são
também construtores de pirâmides.

O que está por trás disso tudo é a idéia de q ue o indivíduo é o átomo social,
quando, na verdade, para ser social, é preciso ser molécula. Pessoas são
produtos de interação e não unidades anteriores à interação.

221
Fabricantes de guerras

O único inimigo que existe é o fazedor de inimigos

Fabricantes de guerras são, stricto sensu, os chefes militares e, lato sensu,


os que pervertem a política como arte da guerra e os que se entregam à
competição adversarial tendo como objetivo destruir seus concorrentes.
São, todos, predadores. O predador (humano) é uma máquina de converter
o semelhante em inimigo. Mas é preciso considerar que não existem
inimigos naturais ou permanentes: toda inimizade é circunstancial e pode
ser desconstituída pela aceitação do outro no próprio espaço de vida, pelo
acolhimento, pelo diálogo, pela cooperação. Assim, o (único) inimigo que
existe mesmo é o fazedor de inimigos.

Na civilização patriarcal e guerreira viramos seres cindidos interiormente. O


predador é um produto dessa quebra da unidade sinérgica do simbionte
(que poderemos ser no futuro, se anteciparmos esse futuro). Preda porque
quer recuperar, devorando, suas contrapartes, em um ritual antropofágico
em busca da unidade perdida (aquela origem que é o alvo, para usar a
expressão de Karl Kraus). É por isso que nos apegamos tanto à guerra do
bem contra o mal. Mas o problema, como disse Schmookler, é que “o
recurso da guerra é em si o mal” (16).

Toda vez que você quer triunfar sobre o mal, combater o bom combate,
derrotar o “lado negro da Força”, você fabrica guerra. Estatistas,
hegemonistas, conquistadores, vencedores são – todos – fabricantes de
guerras. Toda vez que você olha o mundo como um terreno inóspito, como
uma ameaça, como algo a enfrentar, você fabrica guerra. Estrategistas de
qualquer tipo, sejam ou não justificáveis seus esforços – chamem-se
Winston Churchill ou Michel Porter – são fabricantes de guerras. Boa parte
dos incensados consultores de empresas da atualidade são fabricantes de
guerras: apenas deslizam conceitos da arte da guerra para as estratégias
empresariais que transformam o concorrente em inimigo.

É claro que tudo isso revela uma não-aceitação da democracia. A guerra é


sempre um modo autocrático de regulação de conflitos, seja a guerra
declarada ou aberta, seja a guerra fria, seja a política praticada como arte
da guerra, seja a concorrência empresarial adversarial que trata o outro
como inimigo.

222
Condutores de rebanhos

O modo intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do


líder de massas é uma sociopatia

Condutores de rebanhos são, em geral, os líderes que alcançaram


popularidade pelo broadcasting para guiar as massas. Algumas vezes esses
líderes são carismáticos e se dedicam a mesmerizar multidões em comícios,
reuniões e manifestações. Ou pela TV e pelo rádio. Quase sempre são
pessoas “pesadas”, que usam sua gravitatem em benefício próprio ou de
um grupo, para reter em suas mãos o poder pelo maior tempo que for
possível, transformando os outros em seus satélites. E odeiam os princípios
de rotatividade ou alternância democrática. Considere-se que, do ponto de
vista social (ou coletivo, da rede), o modo intransitivo de fluição que gera o
fenômeno da popularidade do líder de massas é uma sociopatia.

O liderancismo é uma praga que vem contaminando as organizações de


todos os setores: segundo tal ideologia, a liderança só é boa se não puder
ser exercida por todos, só por alguns. Assim, não se deve estimular a multi-
liderança, senão afirmar a precedência da mono-liderança, do líder
providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os
assuntos e atividades, como se essa – a liderança – fosse uma qualidade
rara, de origem genética ou fruto de uma unção extra-humana.

Condutores de rebanhos se dirigem sempre às massas – não às pessoas –


com o objetivo de comandá-las e controlá-las, sejam ditadores ou
manipuladores. São marqueteiros de si-mesmos e, como tais, vendedores
de ilusões (diga-se o que se quiser dizer, o marketing é uma atividade
muito problemática, que não visa formar novas identidades a partir da
construção de pactos com os stakeholders de uma determinada iniciativa e
sim disseminar, via de regra por broadcasting, alguma ilusão).

Sacerdotes (stricto sensu), pastores e políticos profissionais são também


vendedores de ilusões assim como todos os que prometem e não cumprem,
no sentido de que vendem e não-entregam (o que vendem). Mas reserva-se
a categoria de condutores de rebanhos para os que pretendem liderar
massas, comovê-las e mobilizá-las para que lhes sigam.

Na coletânea Histórias do Sr. Keuner, que reúne textos de Bertold Brecht


escritos entre 1926 e 1956, encontra-se a deliciosa parábola “Se os
Tubarões Fossem Homens” (17):

223
“Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes
caixas do mar, para os peixes pequenos... Aula principal seria
naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados
de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um
peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões,
sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos
peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria
garantido se aprendessem a obediência...

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra


entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.
Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da
outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem
das algas e receberia o título de herói...

Também haveria uma religião ali. Se os tubarões fossem homens,


eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que
começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem
homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os
peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos
outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive
comer os menores... E os peixinhos maiores que deteriam os cargos
valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a
ser professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim
por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os
tubarões fossem homens”.

Não poderia haver um fecho melhor para a reflexão deste capítulo. Brecht,
provavelmente, criou a metáfora entre tubarões e peixinhos no contexto da
luta de classes entre patrões e trabalhadores. No entanto, ela é tomada
aqui para fazer referência aos mantenedores do velho mundo único que
surgem em configurações deformadas do campo social. Que tipos de
configurações ensejam a reprodução de tubarões em vez de, por exemplo,
golfinhos?

Como já foi dito, frequentemente as características das funções


agenciadoras do velho mundo se misturam, incidindo, em maior ou menor
grau, em uma mesma configuração de pessoas. É assim que ensinadores
replicam ensinamentos forjados por codificadores de doutrinas que, por sua
vez, constróem pirâmides para aprisionar corpos e tudo isso é feito em
nome da necessidade de derrotar um inimigo que ameaça alguma
identidade imaginária que foi artificialmente construida, não raro exigindo
que grandes contingentes de pessoas fossem arrebanhadas (e

224
despersonalizadas) por condutores de rebanhos para enfrentar tal inimigo,
ele próprio construído sempre para justificar alguma hierarquia que foi
erigida. Tudo isso é usar a Força para enfrear e represar fluzz.

Conquanto resilientes, essas velhas funções do mundo único exercidas,


invariavelmente, para exterminar outros mundos, não têm conseguido
barrar os novos papéis-sociais-fluzz que começam a emergir.

225
226
9
Eles já estão entre nós

Os herméticos irão perdendo terreno,


ou se linkarão a outros herméticos e então tudo bem.
Os velhos irão perdendo o terreno.
Ou se linkarão com outros velhos, só por prazer.
Tudo isso está fluindo
e para que mude o paradigma falta pouco.
É uma revolução silenciosa e divertida.
E é sub-corporativa, deliciosamente caótica, enredada,
sináptica, não linear, não metódica.
Marcelo Estraviz em A linkania e o religare (2001)

Sem dúvida, bebidas alcoólicas, tabaco etc.


são coisas que um santo deve evitar,
mas santidade também é algo que os seres humanos devem evitar.
George Orwell em Reflexões sobre Gandhi (1948)

227
A resiliência das velhas funções, agenciadoras de um tipo de mundo
(erigido para exterminar outros mundos) que teima em não
desaparecer, não está conseguindo impedir o surgimento de novos
papéis sociais que antecipam uma nova época.

Caminhando fora dos trilhos estabelecidos, emergem a cada dia


novos atores do mundo glocalizado. Sim, eles já estão entre nós. Não
são conhecidos porquanto não são pessoas que ficaram famosas
segundo o que até então era considerado indicador de sucesso: pelo
seu poder, pela sua riqueza ou pelo seu conhecimento atestado por
títulos. Quem são? Ora são os múltiplos anônimos conectados,
habitantes de uma diversidade incrível de Highly Connected Worlds,
que não foram produzidos por broadcasting. São como aquele
personagem do romance “Distraction” de Bruce Sterling (1998) que,
para se identificar, afirmou: “Não temos raízes. Somos pessoas da
rede. Temos antenas”.

Tais papéis inéditos que estão sendo produzidos pela (ou em) rede
são também múltiplos. Por enquanto só conseguimos divisar alguns.
Três exemplos marcantes são os hubs, os inovadores e os
netweavers.

Os principais indicadores de sucesso do mundo hierárquico, no dealbar do


século 21, ainda são a fama, o conhecimento atestado por títulos, a riqueza
e o poder.

A fama parece ser o principal indicador. Quem colecionou muitos diplomas,


acumulou riqueza ou conseguiu deter em suas mãos algum poder de
mandar nos outros, não se sentirá plenamente bem-sucedido se não for
conhecido por muita gente ou, pelo menos, por uma parcela ponderável de
seus pares.

228
Como critério de sucesso, a fama é inquestionável, indiscutível mesmo. Se
você virou uma celebridade, é sinal de que progrediu na vida. Deixou de ser
qualquer um. Destacou-se e continuará sendo destacado. Merecerá
tratamento especial aonde for. Não entrará na fila. Não receberá senhas. O
maitre logo lhe arranjará uma mesa, mesmo que o restaurante esteja
lotado. Não ficará aguardando atendimento nos bancos das repartições
públicas ou nos sofás das antesalas das organizações. E todos o observarão
com admiração, alguns deixarão escapar suspiros à sua passagem, muitos o
cumprimentarão como se o conhecessem de longa data; outros, mais
afoitos, lhe pedirão autógrafos ou implorarão sua licença para tirar uma foto
ao seu lado.

Mas a fama não é necessariamente um prêmio pelo talento e sim o


resultado direto da exposição em algum meio de comunicação centralizado,
do tipo broadcasting (de mão única, um-para-muitos). Qualquer pessoa que
aparece regularmente na televisão (não importa se apresentando um
noticiário ou um programa de auditório ou atuando em uma novela) fica
famosa. Qualquer pessoa que atua com certo protagonismo em um filme
fica famosa. Qualquer pessoa que escreve durante algum tempo em um
grande jornal ou revista fica famosa.

Artistas, desportistas e até cientistas só ficam famosos porque são


transmitidos por broadcasting (do contrário ninguém os reconheceria na
rua). Mesmo os grandes teatros, estádios e auditórios de conferências, nos
quais um é visto por muitos, já são uma forma de “broadcasting”
(conquanto não permitam uma visualização tão massiva).

O mesmo ocorre com quem acumulou riqueza ou detém algum cargo de


poder. Mesmo estes fazem certo esforço financeiro para sair na revista
Caras ou nas chamadas colunas sociais. Por quê? Ora, porque estão fazendo
sucesso, estão seguindo os conselhos da mamãe para se destacar dos
demais. Encaram isso como um investimento, pois aprenderam desde
pequenos que só é possível fazer negócios – comerciais ou políticos – a
partir de relacionamentos (é isso que a ridícula literatura empresarial mais
recente chama de networking). Aprenderam que é preciso ser conhecido
como alguém que se destacou dos demais para ser incluído nos círculos de
relacionamentos daqueles que se destacaram dos demais (porque têm
fama, riqueza ou poder). Estão apenas pagando a jóia, o preço para entrar
no clube. E a partir daí podem até ostentar alguns distintivos dos bem-
sucedidos, como fumar charutos e jogar golfe.

Quando questionadas, as pessoas que acreditam nesse tipo de coisa – e são


muitas – costumam dizer que a vida é assim mesmo. É uma luta. E que é

229
preciso vencer na vida: bah! A expressão, convenhamos, é muito escrota:
vencer quem? Por acaso estamos em uma guerra?

O problema é que estamos. E aí, como se diz, tudo é sacrificado em nome


da vitória, a começar pela verdade.

230
Mentiras pregadas em nome da ciência

Os sobreviventes não são selecionados por seu sucesso evolutivo

Para difundir a idéia de que a vida é uma guerra permanente recorre-se à


mentira. Para legitimar essa mentira alguns dizem que não somente a vida
humana é assim, mas a vida em geral. E aí dão os exemplos mais furados,
supostamente embasados na biologia da evolução, de que sempre vence o
mais forte ou o mais esperto e que a natureza seleciona os sobreviventes
por seu sucesso. Essa crença, entretanto, nada tem de científica. Como
escreveu a notável bióloga Lynn Margulis (1998), não é que “os
sobreviventes sejam selecionados por seu sucesso, mas sim que os seres
que não conseguem reproduzir-se antes de morrer são excluídos por
seleção” (1). Simples assim. Quase (tauto)lógico. Ou seja, a natureza não
premia apenas alguns, os mais destacados. E não há nada como uma “luta
pela vida” nos cinco reinos de organismos vivos – nem no reino das
bactérias, nem no dos protoctistas (como as amebas e conchas), nem no
dos fungos (como os cogumelos), nem no das plantas, nem no dos animais
– com uma única exceção: os humanos.

O problema com essas leituras ideológicas do darwinismo (e com o próprio


darwinismo) é que, em algum momento do passado, projetamos sobre a
natureza a competição que observamos nos mercados (e na política
autocrática a eles associada) na antesala do nascente capitalismo
concorrencial europeu (sobretudo o inglês). Já se disse sobre isso que
selvagem não era bem a selva, mas a concorrência nesse capitalismo
inaugural (que, aliás, foi chamado, não por acaso, de “capitalismo
selvagem”) e que a “lei da selva” não saiu propriamente da selva para a
sociedade sob o influxo desse mercado nada-livre, mas, ao contrário, da
segunda para a primeira.

Capitalismo, ao contrário do que se pensa, não é livre mercado. Na sua


origem e em grande parte do seu desenvolvimento, ele foi – como já
dissemos e repetimos aqui – uma espécie de conúbio entre empresas
monárquicas e Estado autocrático hobbesiano (de lá para cá, o Estado se
democratizou um pouco, porém as empresas – em sua maioria –
continuaram monárquicas, mas isso não vem ao caso agora). O fato é que,
independentemente das atuais leituras do darwinismo urdidas para
legitimar a idéia de sucesso competitivo-excludente, o darwinismo foi
capturado por uma corrente de pensamento hobbesiana e transformado,
desde o princípio, em “darwinismo social”.

231
Como percebeu com argúcia Matt Ridley (1996), “Thomas Hobbes foi o
antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta” (2). Segundo
Hobbes (que tantos citam e poucos lêem) na falta de um poder que
domestique ou apazigue os homens, “não há sociedade; e o que é pior do
que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do
homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (3). E isso ocorre,
segundo ele, não por razões culturais, que emanassem da forma como a
sociedade se organiza, mas intrínsecas: uma espécie de inclinação
“genética” – e Hobbes (1651) só não disse isso porquanto Mendel (1864)
ainda não havia nascido. Sim, foi exatamente o que ele escreveu, sem
meias-palavras, no famoso capítulo XIII do “Leviatã”: “Na natureza do
homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a
competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” (4). Para ele o
egoísmo e seus bad feelings acompanhantes (como a desconfiança) não
eram culturais, mas tinham sua origem na própria natureza humana (seja lá
o que isso for).

Muito tempo depois surgiu toda uma linhagem de tarados individualistas


mais intelectualizados (como Ayn Rand e Ludwig von Mises) construindo
suas ortodoxias com base nesse pressuposto metafísico, segundo o qual o
homem é inerentemente competitivo, que o egoísmo é a força motriz da
criatividade e que a cooperação e o altruísmo são um atraso de vida. Trata-
se, é claro, de uma impostura antropológica que não pode ser justificada
pela ciência. Mas muitos – com estruturas mentais um pouco mais simples
do que Rand e von Mises – ainda tentam embasá-la com hipóteses
científicas para aumentar-lhe a verossimilhança. Dizem então que basta
olhar o comportamento dos outros seres vivos para perceber que essa é “a
ordem natural das coisas”.

E citam exemplos. As abelhas têm sua rainha. Os formigueiros têm seus


chefes. Os pássaros que voam em bando seguem sempre o seu líder. Ou
seja, por toda parte que se olhe, sempre há os que dirigem e os que são
dirigidos. E os que dirigem foram os que conseguiram se destacar dos
demais, por serem mais bem-dotados (!), mais capazes de desenvolver
suas próprias potencialidades como indivíduos e, sobretudo, mais aptos a
enfrentar a luta pela vida saindo-se vitoriosos. Um leão protege o seu
território (e suas fêmeas) afugentando os outros leões na base de rugidos,
patadas e mordidas. Em várias espécies animais o macho-alfa impõe seu
domínio pela força, pela destreza ou pela esperteza, batendo a
concorrência. E o mais forte vence, fere, mata ou devora o mais fraco. Sim,
é “a natureza, vermelha em dentes e em garras” (5) como cantou o poeta
Tennyson (1849) no poema In Memorian A. H. H.

232
De sorte que se disseminou a crença segundo a qual no mundo humano,
semelhantemente ao que ocorre no mundo animal (e nos outros reinos de
organismos vivos), ter sucesso é sempre se destacar dos demais, vencê-los,
sobretudo em contextos em que há escassez – tudo isso baseado no
egoísmo.

Ora, se ter sucesso em condições de escassez (e dependendo do modo de


olhar sempre encontraremos escassez de algum recurso em toda parte) é
se destacar dos demais, isso significa que há uma economia política do
sucesso, ou seja, a escassez precisa ser administrada. Se todos tivessem
sucesso, cada qual naquilo que realiza de uma maneira peculiar (e que só
ele pode realizar daquela maneira), o sucesso não seria um prêmio pela
vitória. Vitória é o triunfo em uma luta, aquele triunfo que recebiam os
generais romanos, atributo da sua glória, conquanto a glória (escoimada da
ideologia que a acompanhava) não passasse de uma metáfora para a fama
possível naquela época: não havia TV e os caras precisavam desfilar em
carro aberto com a coroa de louros nas praças e estádios para serem vistos
(e isso não deixava de ser uma difusão por broadcasting, pois que um era
visto por muitos).

Mas essa escassez – segundo a qual no pódio só cabem alguns – é gerada


artificialmente pela construção de um pódio em que só cabem alguns. Eis o
ponto! Não precisava ser assim. Da mesma forma, não há nenhuma lei
natural segundo a qual os jogos precisem ser, quase todos, baseados no
padrão perde-ganha; ou, como observou George Orwell (1945), como uma
espécie de “guerra sem mortes” (6). A invenção da escassez replica um
padrão piramidal de organização: poucos em cima e muitos na base. Com
aqueles degrauzinhos dispostos em diferentes níveis, os pódios são
pirâmides.

Se as mentes simples que gostam de sacar exemplos do mundo natural se


esforçassem um pouco mais para acompanhar as descobertas científicas,
veriam que não há pódios nos reinos de organismos vivos (com exceção do
humano). E não há porque não é necessário. Há quatro bilhões de anos a
vida vem trabalhando com redundância (e, portanto, com abundância):
mesmo quando os recursos sobrevivenciais se esgotam para uma
população, a evolução compensa essa (aparente) escassez desenvolvendo
novas habilidades na espécie atingida, novas sinergias entre várias espécies
e simbioses entre espécies diferentes gerando novas espécies adaptadas às
condições mutantes.

O padrão jamais é o da luta, tal como nós, os humanos, a concebemos. O


padrão jamais é de competição, como a praticamos. Não há nenhum triunfo

233
e os indivíduos de qualquer espécie não-humana, por mais que tenham
conseguido superar grandes dificuldades para sobreviver ou se reproduzir,
não desfilam em carro aberto como os generais romanos. Maturana já nos
mostrou que animais não-humanos não competem por alimentos,
simplesmente seguem seu impulso de se alimentar, não importando para
nada se outro exemplar da espécie ficou sem alimento; ou seja, não é
constitutiva da sua ação (nem da sua emoção, no caso dos mamíferos), a
diretiva de vencer o outro (não sendo essencial para quem come o fato de
que o outro deixe de comer) (7).

Da mesma forma, não há liderança nos reinos de organismos (com exceção


dos humanos, no reino animal). A abelha rainha não lidera as outras
abelhas. As colônias de formigas não têm chefe (nem coordenador, nem
facilitador). Como escreveu a cientista Deborah Gordon (1999) – professora
de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou durante 17 anos colônias
de formigas no Arizona –, “o mistério básico que cerca as colônias é que
nelas não há administração... Não há nenhum controle central. Nenhum
inseto dá ordens a outro ou o instrui a fazer coisas de determinada
maneira... De fato, não há entre elas líderes de qualquer espécie”. E não
há, ademais, qualquer programação genética capaz de determinar um tipo
de comportamento especializado em relação aos demais indivíduos da
espécie: “as formigas não nascem para executar certa tarefa; a função de
cada uma delas muda juntamente com as condições que encontra, incluindo
as atividades de outras formigas” (8).

Outra hipótese perversa, supostamente científica – que também tem sido


instrumentalizada para legitimar a idéia de sucesso competitivo-excludente
– é a de que existe uma escala evolutiva segundo a qual alguns seres vivos
seriam mais “evoluídos” do que outros. E assim como o homem seria mais
evoluído do que o macaco ou do que uma fischerella (uma cyanobactéria),
assim também, entre os próprios seres humanos, alguns seriam mais
“evoluídos” do que outros: ou seja, a evolução natural se espelharia ou teria
uma espécie de continuidade em uma evolução cultural (frequentemente
chamada de “espiritual”) baseada em fatores naturais diferenciados (daí as
perversões que levaram alguns a justificar a superioridade do “macho
branco no comando”: os caucasianos seriam superiores aos negros,
amarelos e pardos, os machos seriam superiores às fêmeas, os arianos
seriam superiores às demais “raças” humanas e outras barbaridades).

Nada disso! Novamente aqui é Lynn Margulis (1998) que vem puxar a
orelha dos impostores:

234
“Todas as espécies existentes são igualmente evoluídas. Todos os
seres vivos, desde a minúscula bactéria até o membro de um comitê
do Congresso, evoluíram do antigo ancestral comum que desenvolveu
a autopoese e que, com isso, tornou-se a primeira célula viva. A
própria realidade da sobrevivência prova a “superioridade”, já que
todos descendemos de uma mesma forma originária metabolizadora.
A delicada explosão da vida, em uma sinuosa trajetória de quatro
bilhões de anos até o presente, produziu-nos a todos” (9).

235
Os indicadores de sucesso

Destacar-se dos demais, triunfar, vencer na vida, subir ao pódio onde


cabem apenas alguns poucos

Malcolm Gladwell (2008) escreveu um livro de quase trezentas páginas,


intitulado Outliers, para chegar à conclusão que “o outlier, no fim das
contas, não está tão a margem assim”. Ou seja, os bem-sucedidos são
frutos de uma constelação particularíssima e imprevisível de fatores, alguns
conhecidos, outros desconhecidos. Como ele próprio escreve, “advogados
celebridades, prodígios da matemática e empresários de software parecem,
à primeira vista, estar fora da experiência comum. Mas não estão. Eles são
produtos da história, da comunidade, das oportunidades e dos legados. Seu
sucesso não é excepcional nem misterioso. Baseia-se em uma rede de
vantagens e heranças, algumas merecidas; outras, não; algumas
conquistadas, outras obtidas por pura sorte – todas, porém, cruciais para
torná-los o que são” (10).

Sim, ele tem razão: nem excepcional, nem misterioso. No entanto, a


combinação ideal, a “fórmula” do sucesso é desconhecida e varia de acordo
com as condições de trajetória, tempo e lugar para cada indivíduo.

“Os mitos dos melhores e mais brilhantes e do self-made man


afirmam que, para obtermos o máximo em potencial humano, basta
identificarmos as pessoas mais promissoras. Olhamos para Bill Gates
e dizemos, em um espírito de autocongratulação: “Nosso mundo
permitiu que aquele adolescente de 13 anos se tornasse um
empresário tremendamente bem-sucedido”. Mas essa é a lição
errada. O mundo só deixou que uma pessoa de 13 anos tivesse
acesso a um terminal de tempo compartilhado em 1968. Se um
milhão de adolescentes tivesse recebido uma oportunidade idêntica,
quantas outras Microsofts existiriam hoje? Quando compreendemos
mal ou ignoramos as verdadeiras lições do sucesso, desperdiçamos
talentos... Agora multiplique esse potencial perdido por cada campo e
profissão. O mundo poderia ser bem mais rico do que este em que
nos acomodamos” (11).

No segundo capítulo do livro, Gladwell conta a história de Bill Gates,


sublinhando o fato de que ele foi matriculado em uma escola particular que
criou um clube de informática. Essa escola especial investiu, em 1968, 3 mil
dólares na compra de um terminal de tempo compartilhado ligado a um

236
mainframe no centro de Seattle. Assim, Gates, quando ainda estava na
oitava série, passou a viver em uma sala de computador (20 a 30 horas por
semana). De sorte que, “quando deixou Harvard após o segundo para criar
sua própria empresa de software, Gates vinha programando sem parar por
sete anos consecutivos... Quantos adolescentes tiveram esse mesmo tipo
de experiência?” É o próprio Bill Gates que responde: “Se existiram 50 em
todo mundo, eu me espantaria. Houve a C-Cubed e o trabalho para a ISI
com a folha de pagamento. Depois a TRW. Tudo isso veio junto. Acredito
que meu envolvimento com a criação de softwares durante a juventude foi
maior do que o de qualquer outra pessoa naquele período, e tudo graças a
uma série incrivelmente favorável de eventos” (12).

Todos os outliers que Gladwell analisou no livro “foram favorecidos por


alguma oportunidade incomum [como, no caso de Gates, estar na escola
Lakeside em 1968]. Golpes de sorte não costumam ser exceção entre
bilionários de software, celebridades de rock e astros dos esportes. Pelo
contrário, parecem constituir a regra” (13).

Responsabilizar a sorte não acrescenta muito conhecimento sobre o


fenômeno. Se continuarmos focalizando o indivíduo, a equação não terá
solução. Ou melhor, não conseguiremos nem equacionar o problema (já que
solução mesmo dificilmente haverá), o que poderia acrescentar, aí sim,
algum conhecimento novo. Mas Gladwell erra um pouco o alvo. Não é que
tudo se baseia – como ele diz, falando metaforicamente – “em uma rede de
vantagens e heranças” e sim que tudo depende (muito mais do que
pensamos) de uma rede mesmo, de uma rede social propriamente dita.
Quando ele afirma que o sucesso dos bem-sucedidos não foi criado só por
eles, mas “foi o produto do mundo onde cresceram”, deixa de ver que esse
mundo não é o mundo físico, nem ‘o mundo’ como noção abstrata usada
para designar a totalidade da existência e sim o mundo social, quer dizer, a
rede social a que estão conectados seus outliers. Eis o erro: ver o indivíduo
e não ver a rede; ver a árvore, mas não ver a floresta (e sobretudo não ver
a incrível rede miceliana, o clone fúngico que está por baixo da floresta e
sem a qual ela não poderia existir); ver o organismo vivo, mas não ver o
ecossistema em que ele está inserido. É a estrutura e o metabolismo da
rede social que podem revelar as condições para o papel mais ou menos
relevante assumido, em cada tempo e lugar (ou seja, em cada cluster),
pelos seus nodos.

Em uma sociedade cuja topologia e dinâmica se aproximam, cada vez mais,


das de uma rede distribuída – a chamada sociedade em rede, emergente
nas últimas décadas – isso ficará cada vez mais evidente. Os critérios de
sucesso nesse tipo de sociedade tendem a deixar de ser baseados em

237
características puramente individuais e em noções competitivo-excludentes
(se destacar dos demais, triunfar, vencer na vida, subir ao pódio onde
cabem apenas alguns poucos) para passar a ser função de um corpo e de
um metabolismo coletivos: a própria rede.

Não se trata de coletivos indiferenciados, segundo uma velha perspectiva


coletivista, própria dos condutores de rebanhos (sejam ditadores ou
manipuladores de massas, de direita ou de esquerda, contra os quais os
individualistas têm razão nas críticas que fazem) e sim de arranjos de
pessoas. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui
apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo
orgulhosamente suas características distintivas e sim também como um
entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação
com outros indivíduos.

É por isso que o tipo de educação que recebemos, para nos destacar dos
semelhantes, é terrivelmente prejudicial em uma sociedade em rede, na
qual estão abertas infinitas possibilidades de polinização mútua e de
fertilização cruzada que impulsionam a inovação e o desenvolvimento
pessoal e coletivo. Essa idéia é desastrosa, porquanto, sob sua influência,
desperdiçamos as potencialidades criativas e inovadoras das múltiplas
parcerias e sinergias que o relacionamento horizontal entre as pessoas
proporciona. Guiados por ela, perdemos talentos, bloqueamos a
dinamização de inusitadas capacidades coletivas, matamos no embrião
futuros gênios e exterminamos o mais precioso recurso para o
desenvolvimento de pessoas e comunidades: o capital social (que é uma
metáfora, construída do ponto de vista dos recursos necessários ao
desenvolvimento, para designar nada mais do que a própria rede social).

Assim, antes de qualquer coisa, tanto a idéia quanto a própria palavra


‘sucesso’ deverão ser abolidas. Trata-se agora, outrossim, de reconhecer
papeis relevantes.

238
Hubs

Qualquer iniciativa na rede social que não conte com seus principais hubs
encontrará mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe

Dentre os novos papéis relevantes em uma sociedade em rede o mais


evidente é o hub. Todas as pessoas são hubs ou têm uma porção-hub. Sem
tal característica não poderíamos ser humanos, quer dizer, não seríamos
pessoas porque não poderíamos interagir com outras pessoas. No entanto,
se olharmos o aglomerado da rede social em que estão conectadas,
algumas pessoas – nem sempre as mesmas em todas as situações –
desempenham o papel social de hubs stricto sensu.

Os hubs – como a palavra está dizendo – são os conectores, os nodos da


rede social muito conectados, são os entroncamentos de fluxos. Um hub
não é necessariamente alguém com grande popularidade ou notoriedade e
sim alguém com muitas relações, que pode acessar — e ser acessado por —
outros nodos com baixo grau de separação. Quando uma pessoa perde sua
porção-hub, provavelmente alguma patologia psíquica nela vai se
manifestar, como – veremos mais adiante – soe acontecer com os muito
famosos.

Não é a fama que faz um hub. Pessoas famosas, celebridades, costumam


ser, em geral, inacessíveis. Não são, portanto, conectores. Qualquer
iniciativa na rede social que não conte com seus principais hubs encontrará
mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe (que é uma metáfora
para designar o acesso ao mundo social, sempre oculto, já que não aparece
como objeto porquanto fractalizado e em fluição, quer dizer, sendo criado a
cada instante).

Também não é o conhecimento que faz um hub, a não ser que se queira
relacioná-lo ao conhecimento das pessoas, quer dizer, aos contatos de
confiança. Às vezes um hub é o chaveiro do bairro, em quem as pessoas
confiam que sua segurança residencial não será colocada em risco — e aqui
novamente é evocada uma imagem do filme The Matrix: aquele “O
Chaveiro”, interpretado pelo ator Randall Duk Kim, era um programa
confiável; um hub, de certo modo, também é um programa que “roda” na
rede. Tocou-se agora em um ponto importante da dinâmica das redes:
confiança. Para que um hub possa cumprir sua função é necessário que as
pessoas confiem nele.

239
Em vez de conhecimento individual, um hub precisa do reconhecimento
social. Trata-se de um reconhecimento diferente daquele que se manifesta
em relação a uma celebridade: não é um reconhecimento das massas, do
grande público, das multidões e sim o reconhecimento realizado um a um,
molecular. Assim, pode-se dizer que o hub é “produzido” socialmente pela
rede.

Em mundos altamente conectados um hub tende a cumprir um papel


socialmente mais relevante do que os que colecionaram muitos titulos
acadêmicos, acumularam muita riqueza ou conquistaram muito poder.

240
Inovadores

Em mundos altamente conectados um inovador também tende a cumprir


um papel social mais relevante do que o dos colecionadores de diplomas

A rigor – e em um sentido geral – todas as pessoas são inovadoras. Se não


fossem, se não tivessem a capacidade de modificar passado, de introduzir
uma nova rotina ou uma nova dinâmica que rompe com a repetição de
passado, não poderiam ter (novas) idéias: estariam psicologicamente
mortas.

Chama-se, porém, de inovadores, stricto sensu, àqueles que cumprem o


papel social de introduzir inovações que modificam a maneira como uma
rede se configura, provocando desequilíbrios que alteram os ritmos e os
caminhos das fluições.

Inovadores são muito diferentes dos hubs. Em geral não são conhecidos —
e não conhecem — muita gente, nem são, na maior parte dos casos, muito
conectados. Às vezes, são até bastante isolados. Podem vir a ser
amplamente reconhecidos, mas isso depende de fatores, via de regra,
fortuitos. A característica principal do inovador é emitir mensagens na rede
que acabam produzindo mudanças de comportamento dos agentes
(considerando a rede social como um sistema de agentes). Quando esse
processo ocorre, o inovador não sabe bem nem por quê nem o quê
aconteceu. Formaram-se laços de realimentação de reforço (feedback
positivo) e a mensagem emitida pelo inovador acabou sendo reforçada e
amplificada, adquirindo condições de se disseminar pela rede. Tais
mensagens podem ser idéias, modos de fazer ou estilos (como a moda, por
exemplo), atitudes que contenham novos padrões. Sim, não custa repetir:
um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal, como já
dizia, há tanto tempo, Norbert Wiener (1950) (14).

O inovador — tal como o hub — também é “produzido” socialmente pela


rede. Ninguém vira inovador apresentando sua inovação na TV, nos jornais
ou anunciando-a em um evento massivo. A inovação é uma perturbação no
tecido social que vai se espalhando molecularmente, ponto a ponto.
Pequenas perturbações, mesmo que partam da periferia do sistema (quer
dizer, de regiões pouco clusterizadas da rede social), são capazes de se
disseminar se conseguirem atingir uma espécie de tipping point (a coisa
parece funcionar da mesma forma que a propagação epidemiológica), mas
para cada configuração de rede e, a rigor, para cada tipo de mensagem,

241
pode-se ter um “ponto de desequilíbrio” diferente, a partir do qual a
mensagem passa a se disseminar exponencialmente.

Nem sempre, porém, os inovadores vêem os resultados de sua inovação.


Muitas vezes, eles desencadeiam mudanças de comportamento que só vão
aparecer muito tempo depois, quando não se pode mais atribuir a um
inovador particular a paternidade da inovação, pois é próprio da dinâmica
da rede social que muitas mensagens se misturem, combinem-se e se
transformem em outras mensagens.

Uma longa jornada ainda será percorrida antes de se assumir mais


amplamente esses novos paradigmas, o que não significa que eles já não
estejam vigendo. Quem já está nos novos Highly Connected Worlds se
comporta mais ou menos assim. Basta ver o que começa a ocorrer nos
meios científicos: no passado, um pesquisador, para ser reconhecido,
precisava se submeter ao conselho editorial de uma publicação autorizada
pelas instituições acadêmicas e esperar alguns meses (às vezes muitos)
para ter seu trabalho publicado (ou rejeitado). Hoje, boa parte desse
pessoal publica, em seus próprios blogs, as descobertas que vai fazendo,
imediatamente e sem pedir licença a ninguém. Há que se convir que essa é
uma mudança é tanto!

Acontecerá com os inovadores o que já acontece com algumas atividades


intelectuais ou exercidas livremente na área do conhecimento; por exemplo,
com os escritores. Escritor é quem escreve. O escritor é reconhecido pelos
que lêem o que ele publica e não em virtude de ter obtido um título
acadêmico ou uma licença de uma corporação de escribas para escrever ou,
ainda, um atestado concedido por uma burocracia qualquer. Assim, em
mundos altamente conectados um inovador também tende a cumprir um
papel social mais relevante do que o dos que colecionaram muitos títulos
acadêmicos.

A rede é uma ótima oportunidade para se quebrar o poder das burocracias


do conhecimento. Na verdade, para quebrar o poder de qualquer
burocracia. “Quebrar” (to crack) é a primeira medida para desobstruir o que
foi entupido. Quanto mais ocorrem eventos de desobstrução, mais a
sociedade vai se comportando como uma entidade que aprende, pois o que
é chamado de aprendizagem é sempre a abertura de novos caminhos. E
mais, a sociedade vai se desenvolvendo, pois o que chamamos de
desenvolvimento é a mesmíssima coisa: a abertura de novas oportunidades
de conexão (15). Este, porém, é o papel dos netweavers.

242
Netweavers

Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse assim, não


poderiam ser seres políticos

Netweavers são os “tecelões” (para aproveitar o que poderia ter sido uma
feliz expressão de Platão, no diálogo O político, se ele não estivesse se
referindo a um sujeito autocrático), e os animadores de redes
voluntariamente construídas. Na verdade, eles constroem interfaces para
conversar com a rede-mãe. Os netweavers não são necessariamente os
estudiosos das redes, os especialistas em Social Network Analysis ou os que
pesquisam ou constroem conhecimento organizado sobre a morfologia e a
dinâmica da sociedade-rede. Os netweavers, em geral, são políticos, não
sociólogos. E políticos no sentido prático do termo, quer dizer, articuladores
políticos, empreendedores políticos e não cientistas ou analistas políticos.

Os políticos tradicionais, entretanto, não são netweavers e sim,


exatamente, o contrário disso: eles hierarquizam o tecido social,
verticalizam as relações, introduzem centralizações, obstruem os caminhos,
destroem conexões, derrubam pontes ou fecham os atalhos que ligam um
cluster a outros clusters, separando uma “região” da rede de outras
“regiões”, excluem nodos; enfim, introduzem toda sorte de anisotropias no
espaço-tempo dos fluxos. Fazem tudo isso porque o tipo de poder com o
qual lidam — o poder, em suma, de mandar alguém fazer alguma coisa
contra sua vontade — é sempre o poder de obstruir, separar e excluir. E é o
poder de introduzir intermediações ampliando o comprimento da corrente,
dilatando a extensão característica de caminho da rede social ou
aumentando seus graus de separação, ou seja, diminuindo a conectividade
(e a interatividade). Não é por outro motivo que os políticos tradicionais
funcionam, via de regra, como despachantes de recursos públicos,
privatizando continuamente o capital social. Pode-se dizer que, nesse
sentido, os políticos tradicionais são os anti-netweavers, visto que
contribuem para tornar a rede social menos distribuída e mais centralizada
ou descentralizada, isto é, multicentralizada. Também não é à toa que todas
as organizações políticas — mesmo no interior de regimes formalmente
democráticos — têm topologia mais centralizada do que distribuída. Essa
também é uma maneira de descrever, pelo avesso, o papel dos netweavers.

Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse assim, não


poderiam ser seres políticos (e a democracia jamais poderia ter sido
inventada e reinventada).

243
Mas em sentido estrito, chamamos de netweaver aqueles que se dedicam a
tecer redes. Esse talvez seja o papel social mais relevante em mundos
altamente conectados. O que significa que, em um mundo hierárquico, o
netweaver é necessariamente um hacker (embora não seja apenas isso).

244
Netweaver howto

Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do seu H4ck3r Howto.
Entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um N3tw34v3r Howto

Em “Como se tornar um hacker” (texto que ficou conhecido em alguns


meios como Hacker Howto), Eric Raymond (1996-2001) escreveu uma
espécie de manual autodidático de aprendizagem sobre hacking. Para ele, o
“hacking é uma atitude e uma habilidade na qual você tem que basicamente
ser autodidata. Você verá que, embora hackers de verdade queiram lhe
ajudar, eles não o respeitarão se você pedir "mastigado" tudo que eles
sabem. Aprenda algumas coisas primeiro. Mostre que você está tentando,
que você é capaz de aprender sozinho. Depois faça perguntas aos hackers
que encontrar” (16).

Raymond afirma que o termo “hacker” tem a ver “com aptidão técnica e um
prazer em resolver problemas e superar limites”. Para ele, se você quer
saber como se tornar um hacker, o relevante é o seguinte:

“Existe uma comunidade, uma cultura compartilhada, de


programadores experts e gurus de rede cuja história remonta a
decadas atrás, desde os primeiros minicomputadores de tempo
compartilhado e os primeiros experimentos na ARPAnet. Os membros
dessa cultura deram origem ao termo "hacker". Hackers construíram
a Internet. Hackers fizeram do sistema operacional Unix o que ele é
hoje. Hackers mantém a Usenet. Hackers fazem a World Wide Web
funcionar. Se você é parte desta cultura, se você contribuiu a ela e
outras pessoas o chamam de hacker, você é um hacker.

A mentalidade hacker não é confinada a esta cultura do hacker-de-


software. Há pessoas que aplicam a atitude hacker em outras coisas,
como eletrônica ou música – na verdade, você pode encontrá-la nos
níveis mais altos de qualquer ciência ou arte.

Hackers de software reconhecem esses espíritos aparentados de


outros lugares e podem chamá-los de "hackers" também – e alguns
alegam que a natureza hacker é realmente independente da mídia
particular em que o hacker trabalha. Mas no restante deste
documento, nos concentraremos nas habilidades e dos hackers de
software, e nas tradições da cultura compartilhada que deu origem ao
termo ‘hacker'” (17).

245
É claro que a maioria dessas habilidades e atividades que caracterizam o
“hacker-de-software” hoje não se colocariam mais assim. A comunidade
restrita dos programadores que cultivavam a cultura hacker explodiu para
além dos limites de uma igrejinha. Essas habilidades e atividades estão
agora distribuídas praticamente por todas as redes que usam a Internet. No
entanto, o mais relevante é que Raymond considerava que hacker é todo
aquele que pratica uma “arte criativa” e, assim, não se reduz ao que faz o
hacker-de-software, mas está baseada em quatro coisas: uma atitude
geral, um conjunto de habilidades, uma cultura e uma mentalidade hacker.

Segundo Raymond, a atitude hacker poderia ser assim resumida:

“Hackers resolvem problemas e constróem coisas, e acreditam na


liberdade e na ajuda mútua voluntária. Para ser aceito como um
hacker, você tem que se comportar de acordo com essa atitude. E
para se comportar de acordo com essa atitude, você tem que
realmente acreditar nessa atitude... Assim como em todas as artes
criativas, o modo mais efetivo para se tornar um mestre é imitar a
mentalidade dos mestres – não só intelectualmente como
emocionalmente também” (18).

É significativo que Raymond tenha insistido nesse ponto, aduzindo à


explicação acima o moderno poema zen: “To follow the path: look to the
master, follow the master, walk with the master, see through the master,
become the master” (Para seguir o caminho: olhe para o mestre, siga o
mestre, ande com o mestre, veja através do mestre, torne-se o mestre)
(19).

“Então - recomenda Raymond – se você quer ser um hacker, repita as


seguinte coisas até que você acredite nelas”. E aí elenca cinco crenças
básicas que, segundo seu ponto de vista, são acordes à atitude hacker: o
mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para serem
resolvidos (20); não se deve resolver o mesmo problema duas vezes (21);
tédio e trabalho repetitivo são nocivos (22); liberdade é uma coisa boa
(23); e atitude não substitui competência (24).

No seu conjunto essas crenças configuram um bom libelo contra o trabalho


(que ele chama de trabalho repetitivo: “tédio e trabalho repetitivo não são
apenas desagradáveis, mas nocivos também”) e a favor da diversão (sem
negar a necessidade do esforço e da concentração: “o trabalho duro e a
dedicação se tornará uma espécie de um intenso jogo, ao invés de trabalho
repetitivo”); um estímulo à criatividade; uma aposta no auto-aprendizado;
um certo desprezo em relação ao desejo de obter aprovação social ou

246
buscar a fama; um elogio à capacidade de viver com o necessário e de
compartilhar gratuitamente (segundo Raymond, “é quase um dever moral
compartilhar informação, resolver problemas e depois dar as soluções”); e –
o mais importante – uma valorização da liberdade. Sobre isso ele escreveu:

“Liberdade é uma coisa boa. Hackers são naturalmente anti-


autoritários. Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de
resolver qualquer que seja o problema pelo qual você está fascinado
– e, dado o modo em que a mente autoritária funciona, geralmente
arranjará alguma desculpa espantosamente idiota para fazer isso.
Então, a atitude autoritária deve ser combatida onde quer que você a
encontre, para que não sufoque a você e a outros hackers... Pessoas
autoritárias prosperam na censura e no segredo. E desconfiam de
cooperação voluntária e compartilhamento de informação – só
gostam de "cooperação" que eles possam controlar. Então, para se
comportar como um hacker, você tem que desenvolver uma
hostilidade instintiva à censura, ao segredo, e ao uso da força ou
mentira para compelir adultos responsáveis. E você tem que estar
disposto a agir de acordo com esta crença” (25).

Raymond lista em seguida as três habilidades básicas do hacker-de-


software: aprender a programar, aprender a mexer com Unix e aprender a
usar a World Wide Web e escrever em HTML.

Sobre a cultura hacker, Eric Raymond observa:

“Como a maioria das culturas sem economia monetária, a do hacker


se baseia em reputação. Você está tentando resolver problemas
interessantes, mas quão interessantes eles são, e se suas soluções
são realmente boas, é algo que somente seus iguais ou superiores
tecnicamente são normalmente capazes de julgar.
Conseqüentemente, quando você joga o jogo do hacker, você
aprende a marcar pontos principalmente pelo que outros hackers
pensam da sua habilidade (por isso você não é hacker até que outros
hackers lhe chamem assim). Esse fato é obscurecido pela imagem
solitária que se faz do trabalho do hacker; e também por um tabu
hacker-cultural que é contra admitir que o ego ou a aprovação
externa estão envolvidas na motivação de alguém. Especificamente, a
cultura hacker é o que os antropólogos chamam de cultura de
doação. Você ganha status e reputação não por dominar outras
pessoas, nem por ser bonito, nem por ter coisas que as pessoas
querem, mas sim por doar coisas. Especificamente, por doar seu
tempo, sua criatividade, e os resultados de sua habilidade” (26).

247
Para Raymond existem basicamente “cinco coisas que você pode fazer para
ser respeitado por hackers”: escrever open-source software, ajudar a testar
e depurar open-source software, publicar informação útil, ajudar a manter a
infra-estrutura funcionando e servir à cultura hacker em si.

Sobre esse último ponto, vale a pena ler o que ele escreveu:

“Você pode servir e propagar a cultura em si (por exemplo,


escrevendo um apurado manual sobre como se tornar um hacker).
Você só terá condição de fazer isso depois de ter estado por aí por
um certo tempo, e ter se tornado conhecido por uma das primeiras
quatro coisas. A cultura hacker não têm líderes, mas têm seus heróis
culturais, "chefes tribais", historiadores e porta-vozes. Depois de ter
passado tempo suficiente nas trincheiras, você pode ser tornar um
desses. Cuidado: hackers desconfiam de egos espalhafatosos em
seus "chefes tribais", então procurar visivelmente por esse tipo de
fama é perigoso. Ao invés de se esforçar pela fama, você tem que de
certo modo se posicionar de modo que ela "caia" em você, e então
ser modesto e cortês sobre seu status” (27).

Por último, sobre a mentalidade hacker, Raymond diz que, para entrar
nessa mentalidade “há algumas coisas que você pode fazer quando não
estiver na frente de um computador e que podem ajudar... [coisas que]
estão ligadas de uma maneira básica com a essência do hacking”: ler ficção
científica, estudar o Zen ou fazer artes marciais, desenvolver um ouvido
analítico para música, desenvolver sua apreciação por trocadilhos e jogo de
palavras e aprender a escrever bem em sua língua nativa (28).

Raymond nos deu algumas preciosas dicas – embora tenha, aqui e ali,
corretamente, extrapolado isso – para que pudéssemos programar em
ambientes digitais ou virtuais. A ele certamente ocorreu, mas disso
aparentemente não tirou muitas consequências, que hackers não são
programadores; são, mais, desprogramadores. Você pode hackear uma
escola, uma igreja, um partido, uma organização estatal, uma empresa,
sem nunca ter encostado em um computador ou em um dispositivo móvel
de navegação. A rigor, você pode (e deveria, se quisesse mesmo viver em
outro mundo) hackear sua família.

Não se trata, portanto, apenas de elaborar e modificar softwares e


hardwares de computadores, desenvolvendo funcionalidades novas ou
adaptando as antigas à revelia (ou não) dos seus proprietários. Nem se
trata de invadir para bagunçar, violar, roubar senhas, tirar do ar, como se

248
diz que fazem os hackers sem ética, ou sem a ética-hacker, os dark-side
hackers como os crackers.

Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do seu H4ck3r Howto.
Mas agora, entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um
N3tw34v3r Howto.

Se você quiser se dedicar ao netweaving, comece esquecendo toda essa


bullshit sobre ética como conjunto de normas sobre o que fazer ou não-
fazer válidas para qualquer interação e estabelecidas antes da interação. O
que caracteriza o netweaver é o que ele faz e não um conjunto de crenças
ou valores, por mais excelços, solidários ou do-bem que possam ser
estimados.

Todo netweaver é um hacker no sentido ampliado do termo (para além do


“hacker-de-software”). Mas nem todo hacker é netweaver. O netweaver é
um hacker-fluzz. Para se tornar um netweaver, não é necessário seguir o
caminho (mesmo porque não existe o caminho), mas jogar-se no não-
caminho: naquele sentido poético do “perder-se também é caminho” de
Clarice Lispector (1969) (29); nem, muito menos, é o caso de olhar o
mestre, seguir o mestre, andar com o mestre, ver através do mestre e
tornar-se o mestre, como sugere o poema Zen reproduzido por Raymond;
senão de fazer exatamente o contrário: matar o mestre!

O netweaver não é um indivíduo excepcional, destacando-se dos demais no


velho mundo único por seu espírito criativo e por sua dedicação concentrada
em inovar: ele é uma função social dos mundos altamente conectados. Nos
Highly Connected Worlds não se trata mais de constituir uma tribo dos
diferentes (diferentes dos outros, dos que não-são) ou uma comunidade dos
iguais (que se reconheçam mutuamente: como disse Raymond, “você não é
hacker até que outros hackers lhe chamem assim”). Não há uma atitude
geral fundante, um conjunto de habilidades certas, uma cultura adequada
comum e uma mentalidade distinta baseada em um sistema de crenças.
São muitas comunidades, muitas tribos, com as mais variadas atitudes e
habilidades, miscigenando suas culturas enquanto seus agentes nômades
viajam pelos interworlds. E pouco importa as crenças de cada uma das
pessoas ou aglomerados de pessoas que se dedicam ao netweaving. Para
orientar e multiplicar os hackers, de certo modo, Eric Raymond quis fazer
uma escola (ainda que baseada na auto-aprendizagem e no reconhecimento
mútuo). Para ensejar o florescimento do novo papel social do netweaver,
trata-se, pelo contrário, de apostar que sua livre interação enxameie não-
escolas.

249
Não pode haver, portanto, um receituário procedimental elencando
habilidades técnicas para alguém se tornar netweaver. Você não precisa
saber programar. Você não precisa só usar o Linux (nem entrar na igreja do
software livre, que – convenhamos – em alguns países da América Latina
está mais para partido). Você não precisa saber escrever em HTML5. Para
fazer hacking (no sentido ampliado do termo) – como uma das dimensões
do netweaving – você precisa estar disposto a desprogramar hierarquias
(hackeando aquelas instituições erigidas no contra-fluzz, como, por
exemplo, escolas, igrejas, partidos, Estados e empresas-hierárquicas). E
para fazer netweaving não há nenhum conteúdo substantivo (filosófico,
científico ou técnico) que você tenha que adquirir: basta desobedecer,
inovar e tecer redes. Isto sim, você vai ter que aprender: a tecer redes – da
única maneira possível de se aprender isso: interagindo com outras pessoas
sem erigir hierarquias (sem mandar nos outros e sem obedecer a alguém).
Isto é netweaving!

Não é algum conteúdo que determina seu comportamento. Para se tornar


netweaver não se trata de saber, mas de ser. Se você é um hacker – tão
convicto e habilidoso como o próprio Raymond, ou Torvalds, ou Stallman,
ou Cox, ou Tanenbaum – mas constroi suas patotas e igrejinhas, ou monta
empresas-hierárquicas, ou, ainda, erige quaisquer outras organizações
centralizadas e nelas convive com as outras pessoas o tempo todo, então
você não poderá ser um netweaver, mas não por motivos éticos ou morais,
por estar sendo incoerente com suas crenças e sim porque, nestas
condições, você dificilmente conseguirá aprender a articular e animar redes
(distribuídas).

Enfatizando, não é porque você violou princípios ou não observou valores.


Não é porque você não compartilhou o que sabe, nem porque transgrediu a
“cultura da doação” para ganhar mais dinheiro. Aliás, como disse o próprio
Raymond “não é inconsistente usar suas habilidades de hacker para... ficar
rico, contanto que você não esqueça que é um hacker”. Um netweaver
também pode ser – ou ficar – rico. Esse não é o ponto. O que um
netweaver não pode é não ser um netweaver; ou seja, o que faz o
netweaver não é um conjunto de conhecimentos adquiridos (ou de opiniões
proferidas, habilidades técnicas exercitadas, capacidades cognitivas
desenvolvidas) ou valores abraçados e sim o que o netweaver faz. Se não
faz rede, não é netweaver (ainda que, pelo visto, possa ser hacker).

A parte hacking do netweaving é aquela que desprograma, que corta (to


hack) ou quebra (to crack) as cadeias de scripts dos programas
verticalizadores que perturbam o campo social centralizando a rede-mãe e
gerando aglomeramentos no contra-fluz (que aparecem então como

250
instituições hierárquicas). Hackeando tais instituições pode-se introduzir
funcionalidades diferentes das originais como, por exemplo: a
experimentação da livre aprendizagem em vez da transmissão do
ensinamento (essa é uma espécie de “virus” não-escola, poderíamos
chamar assim tais experiências, em termos metafóricos); o
compartilhamento da espiritualidade espontânea em vez do seu
enquadramento e cerceamento por meio das práticas religiosas e dos rituais
das igrejas (“virus” não-igreja); o exercício voluntário e cooperativo da
política pública e da democracia comunitária em vez da disciplina e da
fidelidade partidárias (“virus” não-partido); a vivência do localismo
cosmopolíta em vez do refúgio no nacionalismo e no patriotismo insuflados
pelo Estado (“virus” não-Estado-nação); a associação de empreendedores
para polinizarem mutuamente seus sonhos em vez da montagem de
estruturas para arrebanhar trabalhadores e subjugá-los em prol da
realização do sonho único de alguém (“virus” não-empresa-hierárquica).

Todo resto pode ser abandonado. Nada de religião: para o netweaving você
pode fazer todas essas coisas usando o Linux, mas também o Microsoft
Windows ou o Mac OS ou o Chrome OS; ou, mesmo, não usar nada disso.
Você pode empregar uma das dezenas de plataformas p-based disponíveis,
como o Noosfero ou o Elgg e também o Ning, o Grouply, o Grou.ps (ou,
melhor ainda, pode ajudar a desenvolver uma plataforma i-based) ou pode
tentar se virar com sites de relacionamento como Orkut, MySpace ou
Facebook. Você pode usar o identi.ca ou ir se arranjando com o Twitter. Ou
então você pode sair do mundo virtual ou digital e promover atividades
presenciais de netweaving, como rodas de conversação, desconferências ou
Open Spaces, World Cafés etc. Para os “netweavers-de-software” (por
assim dizer) o principal desafio é desenvolver tecnologias interativas (i-
based) de netweaving: ferramentas digitais adequadas à articulação e
animação de redes sociais. E há muitos outros desafios tecnológico-sociais
que estão colocados para todos os netweavers (e não apenas os que
mexem com softwares) para intensificar a interatividade. Mas nenhuma
ferramenta, nenhuma técnica ou metodologia e nenhuma dinâmica é
realmente essencial. O essencial é articular e animar redes distribuídas de
pessoas. Ou seja, o grande desafio é social mesmo.

Enfatizando, mais uma vez: de nada adianta você só usar free software e as
mais avançadas técnicas dialógicas de conversação se você continua se
organizando hierarquicamente, se sua organização é centralizada ou
fechada (e, portanto não-free) e se você privatiza o conhecimento que
poderia ser comum, vedando o acesso público (e, dessarte, seu conteúdo
também será não-free).

251
Desprogramar sociosferas – a parte hacker do netweaver – não basta: é
necessário reprogramá-las, construindo seus próprios mundos. Eis porque,
por meio do netweaving, mundos-bebês estão agora em gestação.

252
Eles já estão entre nós

Nos Highly Connected Worlds o que vale são suas antenas

Netweaving é criação de novos mundos. Não é uma tribo especial – a


décima-terceira tribo (dos hackers) de Israel ou dos sionistas digitais – que
pode fazer netweaving, não é um cluster de gênios, uma fraternidade de
seres notáveis, dotados de faculdades e qualidades excepcionais, super-
humanas. É você! Se você não fizer, nada se modificará em seu mundo (ou
melhor, você não poderá sair do mundo que lhe impuseram e no qual você
está aprisionado). Para tanto, você não precisa ser mais do que você é.
Você só precisa ser o que você pode ser como revelação ou descoberta do
que você é.

Quando foi a Oslo, receber o Prêmio Nobel da Paz, Albert Schwitzer (1952)
disse em seu discurso que “nos tornamos tanto mais desumanos quanto
mais nos convertemos em super-homens”. É isso. Trata-se de ser mais
humano, não mais-do-que-humano.

Durante milênios fomos contaminados com a idéia perversa de que não


devemos ser o que somos. Tudo que nos diziam é que devíamos nos
superar, nos destacar dos semelhantes, separarmo-nos da plebe que habita
a planície ou chafurda no pântano e subir aos píncaros da glória para ter
sucesso na vida. Quem ficasse para trás era um looser. Ou alguém que não
desenvolveu suas potencialidades, que bloqueou sua “evolução” mental ou
espiritual ou que não foi capaz de se transformar ou de se aperfeiçoar.

Mas você não tem que se transformar no que você não é. Não há nada
errado com você. Você não veio com defeito de fábrica, que precise ser
consertado por alguma instituição hierárquica. Você não precisa ser
reformado pelo Estado e seus aparatos, como querem os autocratas de
todos os matizes. Você não precisa ser educado – quer dizer, ensinado,
adestrado, domado – para aplacar uma suposta besta-fera que existe no
seu interior. Não há nada no seu interior humano além da composição
fractal de todos os outros humanos que fazem com que você seja uma
pessoa. O humano é um maravilhoso encontro fortuíto do simbionte natural
(em evolução) com o simbionte social (em prefiguração).

Ser humano é algo muito, mas muito mais importante do que qualquer
coisa, mais importante do que um deus (e conta-se que teve até um deus
que, percebendo isso, quis se tornar humano), um santo ou um herói; mais

253
importante do que qualquer título, propriedade, cargo ou índice de
popularidade: nada disso importa se você não conseguir formar sua alma
humana, quer dizer, se não conseguir tornar-se pessoa.

Tornar-se pessoa. Pessoa comum. Não santo. Pois há também o caminho


excepcional dos santos (que são pessoas incomuns). George Orwell (1948)
nas suas inquietantes Reflexões sobre Gandhi elaborou, talvez, a mais
profunda (e corajosa) crítica à disciplina religiosa tomando como exemplo a
“disciplina que Gandhi impôs a si mesmo e que – embora ele possa não
insistir com seus seguidores que observem cada detalhe – acreditava ser
indispensável se quiséssemos servir a Deus ou à humanidade. Em primeiro
lugar, não comer carne e, se possível, nenhum alimento animal sob
qualquer forma... Nada de bebida alcoólica ou tabaco, nenhum tempero ou
condimento, mesmo do tipo vegetal... Em segundo lugar, se possível, nada
de relação sexual... E, por fim – este o ponto principal –, para quem busca
a bondade não deve haver quaisquer amizades íntimas e amores
exclusivos” (30). Então vem a crítica cortante de Orwell:

“O essencial no fato de sermos humanos é que não buscamos a


perfeição, é que às vezes estamos propensos a cometer pecados em
nome da lealdade, é que não assumimos o ascetismo a ponto de
tornar impossível uma amizade, é que no fim estamos preparados
para ser derrotados e fragmentados pela vida, que é o preço
inevitável de fixarmos nosso amor em outros indivíduos humanos.
Sem dúvida, bebidas alcoólicas, tabaco etc. são coisas que um santo
deve evitar, mas santidade também é algo que os seres humanos
devem evitar. Para isso há uma réplica óbvia, porém temos de ser
cautelosos em fazê-la. Nesta época dominada por iogues, supõe-se
com demasiada pressa não só que o “desapego” é melhor do que a
aceitação total da vida terrena como também que o homem comum
só a rejeita porque ela é muito difícil: em outras palavras, que o ser
humano mediano é um santo fracassado. É duvidoso que isso seja
verdade. Muitas pessoas não desejam sinceramente ser santas, e é
provável que as que alcancem a santidade, ou que a ela aspirem,
jamais tenham sentido muita tentação de ser seres humanos” (31).

Ter percebido que esse “homem comum”, esse “ser humano mediano” não
é “um santo fracassado” foi a grande sacada de Orwell, desmascarando o
que nos impuseram as igrejas ao colocarem como ideal a superação do
humano, o seu aperfeiçoamento, a sua “espiritualização”, como se houvesse
alguma coisa errada com os que vivem sua vida e sua convivência sem se
submeterem a alguma disciplina religiosa, ascética, mesmo quando voltada

254
ao bem da humanidade (como os santos, os bodisatvas e os mahatmas –
que, talvez, não tenham conseguido chegar a ser pessoas comuns).

Sim, tornar-se pessoa. Pessoa comum. Não herói. Herói também é uma
pessoa incomum. É outra escapada da humanidade. É alguém que
supostamente “superou” sua condição humana. Toda cultura hierárquica é
construída a partir do mito do herói, um Hércules que vence desafios
insuperáveis (pelas pessoas comuns) e realiza missões impossíveis (para as
pessoas comuns). Não é por acaso que, frequentemente, o herói é um
guerreiro que demonstrou bravura em batalha e foi agraciado pelos seus
superiores (fabricantes de guerras) com medalhas (um reconhecimento da
organização montada pelos construtores de pirâmides). Depois tal cultura
apenas se deslocou para as outras pirâmides e apareceram os heróis
empresariais (como muitos capitães de indústria, badalados nas revistas de
negócios), os heróis políticos (como os condutores de rebanhos, glorificados
pelos seus índices de popularidade), até chegar aos heróis da filantropia
(que também são premiados pelo volume da caridade que praticam). E há
ainda os heróis revolucionários, aqueles “guias geniais dos povos” (muitos
deles genocidas como Stalin ou Mao – este último, aliás, o campeão em
número de mortes infligidas a outros seres humanos em toda história e pré-
história humana). Até Julian Assange do Wikileaks é heroificado:
positivamente (pela sua luta contra a opacidade dos Estados-nações) ou
negativamente (pelo seu irresponsável anarquismo, capaz de colocar em
risco a moral de quadrilha e o pacto de silêncio entre os Estados-nações
chamado de “ordem internacional”).

Sob esse influxo verticalizante as pessoas tendem a achar que não podem
fazer nada de muito significativo, pois são apenas... pessoas comuns, não
heróis. Elas são induzidas a achar que são heróis fracassados, que não são
boas o suficiente para realizar grandes feitos, promover magníficas
transformações. Nesse modelo épico são levadas a acreditar que somente
formidáveis revoluções e mega-reformas conduzidas por extraordinários
líderes heróicos são capazes de fazer a diferença, desprezando aquelas
seminais experiências líricas vividas por pessoas comuns.

Como já sabiam as pessoas-zen, não é fácil ser uma pessoa comum, ao


contrário do que parece. No mundo único fomos induzidos a conquistar
algum diferencial para nos destacarmos das pessoas comuns. Quando
interagimos com alguém em qualquer ambiente hierárquico somos
avaliados por esses diferenciais e começamos então a cultivá-los. Como
reflexo dos fluxos verticais que passamos a valorizar, nossa vida também se
verticaliza. É como se importássemos a anisotropia gerada na rede-mãe

255
pela hierarquia. Nessa ansia de subir, começamos a imitar os de cima e a
desprezar os de baixo.

O caso limite é a chamada celebridade (e os psicólogos, psicanalistas e


psiquiatras que tratam das patologias incidentes em quem se mantém
nessa condição têm muito a contar sobre a perturbação da personalidade
que pode levar, em determinadas circunstâncias, quando combinada com
outros fatores, ao surgimento de pulsões autodestrutivas, às drogas e à
violência). Mesmo que tais consequências extremas não aconteçam, há
sempre um isolamento (aquele cruel isolamento de que reclamam todos os
grandes líderes hierárquicos e os condutores de rebanhos), causado pelo
represamento de fluzz.

Em certa medida, em sociedades e organizações hierárquicas viramos


(todos nós, não apenas as celebridades) seres da aparência, deformados
pelo broadcasting, usando nossas antenas quase que somente para difundir
as características de nossa persona (como queremos que os outros nos
vejam) e não para captar outros padrões de convivência. É assim que não
desenvolvemos nossas características-hub e, em consequência, perdemos
interatividade, sobretudo porque não queremos nos manter abertos à
interação com o outro imprevisível por medo de nos confundirmos com
qualquer um, com seres de menor importância do que nós (porque têm
menos títulos, menos riqueza, menos poder ou menos popularidade do que
nós). Para nos protegermos da livre interação passamos a conviver apenas
com aqueles que se parecem conosco e ficamos cada vez mais parecidos
com eles, por um mecanismo que já foi explicado pelo físico Mark Buchanan
(2007) em O átomo social (32). Como resultado, ficamos cada vez mais
aprisionados em nosso submundo do mundo único: ainda que morando em
uma megalópole de dez milhões de habitantes, frequentamos os mesmos
clubes, moramos nos mesmos bairros, gozamos nossas férias nas mesmas
localidades e fazemos os mesmos roteiros de viagem, jogamos os mesmos
jogos, usamos as mesmas roupas e conversamos as mesmas conversas.

É claro que, nessas circunstâncias, temos muitas dificuldades de ser


pessoas-fluzz. Ficamos cada vez mais opacos, duros e quebradiços, porque
não queremos ser membrana, não queremos que o fluxo nos atravesse.
Como consequência, perdemos caminhos para outros mundos. E isso
significa que não fazemos novas conexões (reduzindo nosso número de
amigos), mas significa também que não conseguimos nem “ver” as
conexões (perdemos nossas antenas porque ficamos concentrados em
cavucar nossas raízes, até sermos enterrados junto com elas).

256
Quando se coloca em processo de fluzz uma pessoa deixa de lutar para
subir, para ter sucesso, para se igualar ou imitar os ricos, os poderosos, os
muito titulados e os famosos. Libertando-se da exigência de ser uma VIP
(very important person), ela começa a revalorizar seus relacionamentos
horizontais. Nessa jornada terapêutica, vai se curando das sociopatias
associadas às perturbações no campo social introduzidas pela hierarquia e
vai caminhando, no seu próprio passo e do seu próprio jeito, em direção ao
supremo objetivo de virar uma pessoa comum.

O vento continua soprando... e a cada dia surgem miríades de pessoas


desconhecidas que, simplesmente, já não ligam para nada disso, para
nenhum desses indicadores de sucesso da sociedade hierárquica, sejam
materiais ou espirituais. Elas não têm medo de entrar na orgia fúngica,
lançando suas hifas para todo lado (e não apenas para cima).

Essas pessoas desobedecem. Não dão a mínima para os que querem avaliá-
las pelas suas raízes, pela sua descendência (seu patrimônio genético ou
seu “sangue”) e pelo ambiente em que nasceram e foram criadas na
primeira infância (o seu “berço”), pelos seus certificados, diplomas e títulos
(conferidos por alguma burocracia sacerdotal trancadora de conhecimento)
ou pelos seus graus (conferidos por algum mestre ou confraria), pela sua
riqueza acumulada, pelo seu poder conquistado ou pela sua popularidade.
Elas sabem que nos Highly Connected Worlds o que vale são suas antenas.

Essas pessoas comuns antenadas, esses múltiplos anônimos conectados,


criadores de uma diversidade incrível de mundos, estão aí do seu lado. Sim,
eles já estão entre nós.

257
258
10
Mundos-bebês em gestação

– E o que vocês esperam que eu faça?


– Você já sabe.
– Não, não sei. Por favor, ensine-me!
– Você fez muitas coisas sem precisar que o ensinassem a fazê-las.
Será que lhe ensinamos a desobediência?
Diálogo entre um ghola Duncan Idaho e o bashar Miles Teg
por Frank Herbert em Os hereges de Duna (1984)

O homem vive num filme, o homem vive num filme.


Mark Slade em The New Metamorphosis (1975),
realçando comentário de Joseph Conrad em O coração das trevas (1902)

O terrível segredo, que ninguém parece ter a coragem de encarar,


é que o mundo não pode ser salvo de uma só vez.
Não há como se varrer a miséria da existência
em grandes e eficientes vassouradas...
Salvar o mundo é um serviço sujo que só você pode fazer,
ao ritmo de um ínfimo passo de cada vez...
redimindo-se um momento de cada vez.
Um remédio de cada vez. Uma refeição de cada vez.
Uma conversa de cada vez. Um abraço de cada vez.
Uma caminhada de cada vez.
Paulo Brabo em Microsalvamentos:
como salvar o mundo um instante de cada vez (2007)

259
A despeito do fato, incontestável, de a dinâmica global da interação
entre as velhas instâncias organizativas ter mudado, anunciando a
emersão de uma verdadeira sociedade-rede, um novo padrão de
organização distribuído não logrou se materializar no interior e no
entorno das organizações empresariais, governamentais e sociais,
que continuaram ainda se estruturando de modo centralizado ou
hierárquico. Ou seja, o muro que caiu em 1989, caiu para o mundo
construído pelo broadcasting como um único mundo, sob o efeito das
poderosas forças da globalização (sobretudo da globalização das
telecomunicações e da globalização dos mercados), mas não chegou
a se localizar nas organizações realmente existentes em todos os
setores. A mudança continuou acontecendo, mas os novos (e
múltiplos) Highly Connected Worlds como que "cresceram
escondidos" nesta época de mudança e não apareceram ainda à luz
do dia, de sorte a consumar o que poderíamos chamar de uma
mudança de época. Esses mundos-bebês estão agora em gestação.

Os fenômenos acompanhantes do glocal swarming serão


surpreendentes. Alguns já começaram a se manifestar: uma
tendência acentuada à desobediência dentro das organizações
hierárquicas, a incapacidade dessas organizações de inovar no ritmo
exigido pelas mudanças contemporâneas (ou melhor, de se estruturar
para inovar permanentemente) e - o que é mais drástico - as perdas
irreversíveis de oportunidades e condições de sustentabilidade para
as organizações fechadas que não forem capazes iniciar a transição
do seu padrão piramidal para um padrão de rede.

Fluzz é a queda dos muros. Em 1989 houve uma queda: a do Muro de


Berlim. O episódio, pleno de significado simbólico, assinalou o início de uma
época de mudanças nos padrões de relação entre Estado e sociedade. Um
processo até então oculto de mudança social tornou-se visível de repente.
Embora fugaz, o momento abriu uma brecha pela qual se pode ver um novo
tecido societário em gestação, uma nova topologia – mais distribuída – da

260
rede social sendo tramada. Com efeito, nos anos seguintes, como se diz, "o
mundo mudou": a Internet (com a World Wide Web) nos anos 90 expressou
aspectos importantes dessa mudança profunda.

Os anos 2000, contrariando uma série de profecias futuristas, não raro


inspiradas por algum tipo de milenarismo, e frustrando as mais animadoras
expectativas da New Age, não consumaram o que foi prefigurado. A
primeira década do século 21 - marcada indelevelmente pela queda das
torres gêmeas do World Trade Center - conquanto tal evento também seja
riquíssimo de significado simbólico (místico, como revela a famosa Carta 16
do Tarot; e ideológico: o que ruiu foi um centro mundial de comércio, dando
a alguns a impressão, não raro regressiva, de que a dinâmica reguladora do
mercado estava com os dias contados e seria substituída pela normatização
estatal), não foi o vestíbulo de entrada para aquele terceiro milênio
imaginário desejado.

No entanto, subterraneamente, prosseguiu a gestação de novos padrões


societários. O mundo descobriu as redes. Entrou em franco
desenvolvimento uma nova ciência das redes. E surgiram por toda parte
novas plataformas tecnológicas interativas de articulação e animação de
redes sociais. As ferramentas começaram a ficar disponíveis. Faltaram ao
encontro apenas as pessoas, ainda arrebanhadas e cercadas, em grande
parte, nos tradicionais currais organizativos.

E tudo permanecerá assim nos mundos em que as pessoas não


desobedecerem, não saírem do seu quadrado (as fortalezas organizativas
que criaram para se proteger do “mundo exterior”), não inovarem e não
iniciarem a transição para uma padrão de rede. Por isso não haverá mesmo
uma (única) New Age. Enquanto as pessoas não desistirem da Old Age
permanecerão em mundos murados contra fluzz; ou melhor: vice-versa.

É claro que o vento continuará soprando, mas – dependendo da opacidade


de seus muros – você pode nem notar. Assim como não notou a formidável
orgia fúngica sob seus pés (uma espécie de sexo grupal que está
acontecendo agora em Zion, i. e., nos subterrâneos, com hifas surgindo por
toda parte). Assim como não notou o espalhamento dos esporos no ar que
você respira. Assim como não está vendo as miríades de interfaces
conectando miríades de mundos à sua volta e “explodindo como uma
ramada de neurônios”... (1)

Esse é o glocal swarming – que você só percebe se estiver nele. Para


invocá-lo em seu mundo você precisa, antes de qualquer coisa, conceber e

261
dar à luz ao seu mundo. Sim, agora chegou a hora de você mesmo fazer o
seu mundo!

262
Não global, glocal swarming

Um mundo mais-fluzz quer dizer muitos mundos-fluzz

Não haverá aquela grande transformação capaz de lhe dar um novo mundo
de presente. Se você está aguardando essa mudança global apocalíptica,
escatológica, é melhor esperar sentado. Simplesmente não vai acontecer. É
inútil apostar no parto de um novo mundo como um evento épico de
magníficas proporções. No plano global não vem nada por aí – no curto
prazo, vamos dizer assim, no próximo milhão de anos – capaz de gerar um
novo mundo (2).

É claro que podem acontecer catástrofes de dimensões planetárias, pode


até irromper uma terceira guerra mundial (conquanto isso não seja muito
provável). Mas apostar que uma tragédia de proporções planetárias possa
criar condições para uma revolução internacional ou para uma batalha
cósmica entre as forças do bem e as forças do mal capaz de produzir um
mundo radicalmente novo em termos sociais é não entender o que se
chama de sociedade humana ou ser humano.

Como escreveu Paulo Brabo (2007), em Microsalvamentos: “o mundo não


pode ser salvo de uma só vez. Não há como se varrer a miséria da
existência em grandes e eficientes vassouradas... Salvar o mundo é um
serviço sujo que só você pode fazer, ao ritmo de um ínfimo passo de cada
vez... redimindo-se um momento de cada vez. Um remédio de cada vez.
Uma refeição de cada vez. Uma conversa de cada vez. Um abraço de cada
vez. Uma caminhada de cada vez” (3).

Catástrofes não trarão nada de novo. Combates, batalhas, guerras e


revoluções, só produzirão repetição de mundo velho. Só um sociopata pode
acreditar que a violência é a parteira da história (e só alguém muito
intoxicado das crenças do mundo único pode acreditar que exista uma
história).

O plano global é uma construção, uma abstração. Nenhuma mudança


concreta pode acontecer nesse terreno abstrato. As mudanças nos padrões
de relação societários ocorrem sempre em sociosferas. Por isso a queda dos
muros não poderá ser uma (única) queda, de um (único) muro. Serão
muitas quedas, provavelmente em cascata ou swarming, de muitos muros.
Do ponto de vista dos movimentos invisíveis que se processam no espaço-
tempo dos fluxos, 'muro' significa centralização, obstrução de fluxo. Onde

263
quer que existam "muros" impedindo o livre curso de fluições, “muros”
estes que caracterizam organizações mais centralizadas do que distribuídas,
poderá haver uma "queda". Não será um global swarming, mas um glocal
swarming.

Cada mundo altamente conectado que emergirá será o mundo todo, como
se fosse uma imagem holográfica de uma nova matriz de mundo mais
distribuído. Não um mundo interligado – pois que isso já se materializou
desde que a conexão global-local tornou-se uma possibilidade – e sim um
mundo-gerador intermitente de novos, inéditos, mundos altamente
tramados, para fora e para dentro, que emergirão a cada instante. Um
mundo mais-fluzz, quer dizer, muitos mundos-fluzz. Esta será,
propriamente falando, a primavera das redes.

A livre interação de múltiplos mundos altamente conectados, estruturados


com outras topologias e regidos por outras dinâmicas, vai substituir
processualmente as remanescências deste mundo aprisionado, sob o influxo
de velhas narrativas ideológicas totalizantes, em grandes ou pequenas
estruturas hierárquicas unificadoras top down.

Mundos-bebês começam a ser gerados na medida em que tais estruturas


vão sendo desmontadas. E elas estão sendo desmontadas cada vez que
você desobedece, inova, sai do seu quadrado e inicia a transição da
organização hierárquica em que você vive e convive para uma organização
em rede.

264
Desobedeça

Uma inspiração para o netweaving

Tudo começa com a desobediência. Cada pequeno ato ou gesto de


desobediência contribui para desestabilizar a dominação. É assim que a
desobediência vai deixando fluzz passar.

Desobedecer é sempre abrir um caminho. Mas cada ato ou gesto de


desobediência abre um novo caminho. Manter-se no mesmo caminho, à
revelia da direção do vento, acreditando que ele é o seu caminho para a
vida toda ou o único caminho e tentar impingí-lo a outras pessoas... aí já é
obedecer.

Quando o biólogo chileno Humberto Maturana Romesin afirmou, no final dos


anos 80, que relações hierárquicas, relações de subordinação, que exigem
obediência, baseiam-se na negação do outro e que essas relações não
podem ser consideradas relações propriamente sociais, alguns acadêmicos e
bem-pensantes e, sobretudo, aqueles que se tinham por indivíduos muito
“sérios” e “responsáveis”, ficaram meio escandalizados. Como assim? –
perguntavam, indignados. Pois pensavam que, caso tais idéias heterodoxas
(e perigosas) vicejassem, seria o caos!

E a coisa piorou um pouco quando ele, Maturana (2009), duas décadas


depois, ousou declarar que o liderazgo (a liderança), o xodó das teorias
empresariais que floresceram nos anos 90, não era uma idéia nada boa,
posto que “el liderazgo requiere que los liderados abandonen su propia
autonomía reflexiva y se dejen guiar por otro confiando o sometiéndose a
sus directrices o deseos...” (4).

Mas o fato que até agora ainda não tivemos coragem de derivar todas as
conseqüências dessas impactantes constatações de Maturana e desenvolvê-
las no contexto da transição de uma sociedade hierárquica, que tende a
fenecer, para uma florescente sociedade em rede, diante da emergência de
múltiplos mundos altamente conectados de forma cada vez mais distribuída.
Embora anunciador de uma visão pioneira sobre redes (que qualificou como
“redes de conversações”), Maturana não reestruturou seu pensamento sob
o influxo das visões contemporâneas inspiradas pela nova ciência das redes.
Cabe a nós, que investigamos o assunto, dar continuidade aos seus insights
geniais à luz da teoria e da prática de redes, quer dizer, do netweaving.

265
Sim, netweaving. Se você quer mesmo aprender a “fazer” redes, então sua
primeira “prova” é: desobedeça! Aprenda a desobedecer! Um netweaver é,
por definição, um desobediente. Porque é alguém que, criativamente,
caminha fora dos trilhos já estabelecidos por alguém.

Mas a quem você deve desobedecer?

Ora, a todos que querem obrigá-lo a obedecer. Em especial aos agentes do


velho mundo hierárquico e autocrático cujos alicerces já estão apodrecendo,
mas que continua, resilientemente, a nos assombrar. Dentre tais agentes,
que são muitos, merecem ser destacados os que já foram tratados aqui: os
ensinadores, os codificadores de doutrinas, os aprisionadores de corpos, os
construtores de pirâmides, os fabricantes de guerras e os condutores de
rebanhos.

Desobedeça aos ensinadores. Aprenda o que você quiser, quando quiser e


do jeito que você quiser. Aprenda com seus amigos. E compartilhe o que
aprendeu com quem você quiser, gerando mais conhecimento. Guarde seus
conhecimentos nos seus amigos, não na cabeça dos professores; nem nas
instituições que sobrevivem trancando o conhecimento e estabelecendo
caminhos obrigatórios, cheios de barreiras e permissões, para dificultar-lhe
o acesso; ou, ainda, nos livros submetidos à normas odiosas de copyright.
Conhecimento trancado apodrece.

E não siga mestres de qualquer tipo: todos somos aprendentes. ‘Quando o


“mestre” está preparado o discípulo desaparece’, quer dizer, ele não precisa
mais da muleta chamada “discípulo”: pode se tornar, por si mesmo e em
interação com outras pessoas, um aprendente, livre... e tão ignorante como
todos nós. Mas enquanto eles estiverem pensando em conquistar discípulos,
fuja dos “mestres”!

Desobedeça aos codificadores de doutrinas. Não entre em suas armações,


não replique seus discursos: pense com sua própria cabeça. Ria dos seus
vaticínios e ameaças e ponha-se fora do alcance de suas patrulhas. Saia dos
trilhos que eles assentaram, escape das valetas (os pré-cursos) que eles
cavaram para fazer escorrer por elas as coisas que ainda virão. Recuse tudo
isso: faça o seu próprio caminho.

Desobedeça aos aprisionadores de corpos. Monte seu próprio


empreendimento individual ou coletivo compartilhado, empresarial ou
social. Corra atrás do seu próprio sonho ao invés de servir de instrumento
para realizar o sonho alheio. Sim, você é capaz. A evolução investiu quatro
bilhões de anos desenvolvendo seu hardware, que é igualzinho ao daquele

266
cara esperto que quer capturá-lo e aprisioná-lo e que ainda por cima tem a
desfaçatez de alegar que está fazendo um bem para a humanidade por lhe
oferecer um emprego.

Desobedeça aos construtores de pirâmides, em primeiro lugar, cortando o


barato daquele “construtorzinho de pirâmide” que mora aí dentro de você:
não faça patotas, não erija igrejinhas. Sim, é muito difícil resistir à tentação
de juntar “os seus” e separá-los dos “dos outros”, mas – para quem quer
fazer redes – é absolutamente necessário. E, sobretudo, abra mão de
querer mandar nos outros. Em vez de arquitetar organizações tradicionais,
a partir de organogramas centralizados, para realizar qualquer projeto ou
trabalho, teça redes: quase tudo que se organizou até agora de forma
hierárquica (com estrutura centralizada) pode ser organizado em forma de
rede (com estrutura distribuída); menos, é claro, os sistemas de comando-
e-controle.

Em segundo lugar, nunca se enquadre docemente em sistemas de


comando-e-controle. Se for obrigado a tanto para sobreviver, por um
período (que não pode ser muito longo, do contrário você estará
bloqueando seu desenvolvimento humano), faça-o resignadamente, mas
sempre resistindo. Isso significa: não se curve a seu chefe, não lhe faça as
vontades, vamos dizer assim, tão solicitamente. Não seja tão prestativo,
subserviente, serviçal. Não caminhe um quilômetro a mais para agradá-lo.
Não fique na penumbra, recuado, servindo de escada para ele subir ou se
destacar. Não faça o jogo.

Desobedeça aos fabricantes de guerras, esses hierarcas. Recuse-se a entrar


em organizações militares ou para-militares de qualquer tipo. Recuse-se a
entrar em qualquer organização política de combate, que pregue que o bem
só será alcançado com a destruição do mal. Recuse-se a olhar o diferente
como adversário em princípio: em princípio todo ser humano é um potencial
parceiro de outro ser humano, não um inimigo.

Recuse-se a construir inimigos. Recuse-se a entrar em organizações que


elegem inimigos para ser eliminados: física, econômica, psicológica ou
politicamente. A ética do netweaver é uma ética do simbionte, não do
predador. Adote um comportamento pazeante para não cair na armadilha
de travar uma guerra contra o mal, pois, assim procedendo, você mesmo
estará gerando o mal ao construir inimigos em vez de fazer amigos, quer
dizer, de fazer redes.

Desobedeça aos condutores de rebanhos, esses líderes. Não os siga para


parte alguma. Não se deixe conduzir, ser puxado pelo nariz ou guiado pelo

267
cabresto como se fosse uma cavalgadura. Não existem guias geniais dos
povos. Nos sistemas representativos, as pessoas que você elegeu são seus
empregados (mandatados pelos eleitores), não seus patrões.

Arrebanhamentos e assembleísmos são o contrário da interação


humanizante entre as pessoas: transformam gente em gado, em
contingente moldável e manipulável. Pule para fora desse curral. Aparte-se
desse rebanho. “Inclua-se fora” dessas listas de excluídos que ficam
olhando para cima de boca aberta, esperando pelas benesses de um
salvador (pois o simples fato de pertencer a elas já é um indicador de
exclusão, quer dizer, de incapacidade de pensar por si mesmo e de andar
com as próprias pernas). Toda pessoa, se estiver disposta a desobedecer,
será um alguém (com nome reconhecido) fora da massa, não apenas um
número em uma estatística. Toda pessoa que desobedece, em um mundo
ainda infestado por organizações hierárquicas, é um ponto fora da curva:
alguém único, singular, insubstituível como você.

Isto posto, é tudo.

Mas ainda resta tratar das objeções dos bem-pensantes e dos indivíduos
que se levam muito a sério e que se acham responsáveis.

Você deve desobedecer às leis? De uma maneira geral, você nunca deve
obedecer a pessoas, sejam elas quais forem. Dizendo de uma forma ainda
mais ampla: você nunca deve obedecer a nenhuma individualidade
portadora de vontade, real ou imaginária, humana ou extra-humana, seja
ela qual for.

Freqüentemente surge uma objeção: mas se as pessoas não obedecerem às


normas da vida civilizada será o caos. Por isso, todos devem respeitar as
leis.

Será mesmo? Depende. Você não deve, por certo, romper com os pactos
livremente celebrados por uma sociedade e que foram transformados em
leis em um processo democrático.

Dizer que a democracia é o império da lei significa dizer que não ela não é o
império de pessoas. Obedecer às leis significa, então, não-obedecer a
pessoas. Mas isso depende do processo que fabricou as leis.

Você não tem obrigação moral de obedecer às leis das ditaduras. Assim, leis
de exceção podem ser desobedecidas. Por princípio, elas não têm qualquer
legitimidade.

268
A legitimidade é o resultado da confluência de vários critérios democráticos:
a liberdade, a publicidade, a eletividade, a rotatividade (ou alternância), a
legalidade e a institucionalidade. Sim, não basta alguém ter sido eleito para
ter legitimidade.

Tais critérios – ou alguns deles – são violados não somente pelas ditaduras
clássicas, mas também por protoditaduras e, ainda, se bem que em menor
escala, por democracias parasitadas por regimes populistas manipuladores.

Você mesmo avaliará até onde vão as normas estabelecidas por processos
que violam os critérios acima. Se achar que violam, desobedeça-as. E
esteja preparado para arcar com as conseqüências, é claro.

Um princípio geral da ética do simbionte poderia ser: o único objetivo


realmente humano (e humanizante) das leis é assegurar a convivência
pacífica das pessoas.

Você deve desobedecer aos dirigentes das organizações políticas a que


pertence? Eis aqui outra questão recorrente. Liminarmente, você não deve
pertencer a organizações que não tomam a democracia como um valor.

Ora, com exceção das leis democraticamente aprovadas, a democracia não


pode aceitar que alguém faça alguma coisa que não quer ou deixe de fazer
alguma coisa que quer em virtude de sanção ou ameaça de sanção
proveniente de instância hierárquica. Portanto, respeitado o pacto de
convivência, é legítima a desobediência política e ninguém é obrigado a
acatar uma decisão com a qual não concorde ou mesmo concordando não
queira acatar, por medo de sanção, ainda que tal decisão tenha sido
tomada por maioria. Obediência nada tem a ver com colaboração, que
pressupõe adesão voluntária, seja por concordância, seja por resultado de
convencimento ou por livre assentimento.

Assim, em coletivos políticos de adesão voluntária, nenhum tipo de


disciplina deve ser imposto e nenhum tipo de obediência deve ser exigida
dos participantes, além daquelas às regras a que voluntariamente aderiram.
Nenhum tipo de sanção pode ser imposta aos participantes, nem mesmo
em virtude do descumprimento das regras a que voluntariamente aderiram.
Todos têm o direito de não acatar decisões.

Ordem, hierarquia, disciplina e obediência, vigilância (ou patrulha) e


punição; e fidelidade imposta top down, são virtudes de sistemas
autocráticos. Nada disso tem a ver com a democracia. Quanto mais
autocrática for uma organização, mais ela insistirá na exaltação de tais

269
“virtudes”. As razões para isso são tão claras que dispensariam
comentários. Todas as organizações não-estatais e não baseadas em
contratos (de trabalho ou de prestação de serviços) são (ou deveriam ser)
constituídas por adesão voluntária. Em organizações voluntárias, “obedece”
(ou melhor, acata) quem concorda. Querer exigir disciplina e obediência em
relações sociais (stricto sensu) é um absurdo. Impor sanções para quem
não obedece é uma violência e, como tal, um comportamento
antidemocrático.

Organizações que visem chegar à (ou praticar a) democracia (no sentido


“forte” do conceito), não podem se organizar autocraticamente para atingir
seus fins. Não existe caminho para a democracia a não ser a
democratização contínua das relações; ou, parafraseando Mohandas
Ghandi, não existe caminho para a democracia: a democracia é o
caminho...

Você deve desobedecer aos seus patrões? Outra objeção freqüente diz
respeito à obediência àquele que paga o seu salário: como você pode não-
obedecer aos seus patrões se tem que sobreviver?

Uma boa regra geral seria: nunca trabalhe para alguém e sim com alguém
(em vez de dizer trabalhe com alguém seria melhor dizer: empreenda com
alguém). Todas as coisas podem ser feitas em parceria. A obediência não é
necessária.

Mas é você quem decide. Quanto mais você trabalha para alguém, menos
alguém você é. O espírito de liberdade é a fonte de toda criatividade! Para
sentir esse sopro criador só há uma via: desobedeça!

Você não concorda e querem que você faça assim mesmo? Desobedeça!
Uma pessoa (qualquer pessoa, em especial, a sua pessoa) vale muito mais
do que a bosta de um emprego.

É preciso considerar que a organização piramidal trabalha para o cume. Ou,


dizendo de outro modo, a organização centralizada trabalha para o centro,
para o chefe, para o líder. E as pessoas que trabalham em geral não
aparecem, pois seu papel precípuo é o de fazer o chefe aparecer (ou ficar
com o crédito por todas as realizações, inclusive por aquelas alcançadas
pelo seu esforço e pela sua inteligência). Aí o chefe fica contente e mantém
tais pessoas nas suas funções (empregadas ou contratadas). Se o chefe
ficar muito contente com o resultado, pode até retribuir com uma promoção
do "colaborador" que lhe fez tão bem as vontades.

270
Ocorre que quando um conjunto de pessoas aplica seus talentos para
promover uma atividade, todas as pessoas devem aparecer. Para quê? Ora,
para poder ser reconhecidas, para poder compartilhar, aumentar e
desenvolver esses talentos. Essa é uma característica central daquele tipo
de inteligência tipicamente humana de que falava Humberto Maturana: uma
inteligência que cresce e se realiza com a troca, com o jogo ganha-ganha,
com a colaboração. Uma inteligência colaborativa.

Se as pessoas abrem mão de fazer isso em prol da projeção de outras


pessoas que estão acima delas na estrutura hierárquica, elas estão
renunciando, em alguma medida, a exercer suas qualidades propriamente
humanas. O diabo é que os funcionários burocráticos e outros empregados
ou prestadores de serviços em organizações hierárquicas já introjetaram
tão fundo as idéias que sustentam tais práticas, que o hábito, já não se
diria de servir, mas de ser serviçal, se instalou no andar de baixo da sua
consciência (?) e emerge como uma pulsão. Freqüentemente eles se
escondem para promover seus superiores, tendo medo, inclusive, de
proferir uma opinião própria em uma reunião, escrever um artigo em um
blog, dar uma entrevista ou gravar um vídeo para um meio de
comunicação. Essas pessoas até se orgulham de habitar a penumbra e se
vestir de cinza, adotando a servidão voluntária e, com isso, violando sua
própria humanidade ou, no mínimo, deixando de explorá-la e desenvolvê-la
como poderiam.

Alguns fazem isso taticamente (e imaginam que estão agindo


conscientemente), em troca do emprego ou da contratação. Argumentam
que se não obedecerem e fizerem a vontade dos chefes, perderão a
remuneração sem a qual não terão como viver. Mas dá no mesmo. Se, para
sobreviver, uma pessoa precisa castrar suas potencialidades, então tal
sobrevivência não poderá ser digna. Um trabalho que deixe de promover o
desenvolvimento humano de quem trabalha não pode ser digno.

Os chefes, por sua vez – como aquele senhor de escravo, escravo do


escravo, a que se referia Hegel, em outros termos – também estão
aprisionados neste círculo desumanizante. Estão intoxicados pelas
ideologias do comando-e-controle e do liderancismo, segundo as quais se
não for assim, as coisas não funcionam. De que alguém tem sempre que
liderar – quer dizer: mandar nos outros – para que uma ação possa ser
realizada a contento. Por isso não se adaptam à cultura e à prática de rede,
onde não é possível mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua
vontade.

271
É por isso que organizar as coisas em rede distribuída é um desafio
tremendo em um mundo ainda infestado, em grande parte, por
organizações hierárquicas.

Quando organizações hierárquicas se interessam por redes, quase sempre


esse interesse é instrumental. Querem usar as redes para obter alguma
coisa que fortaleça os seus objetivos e a manutenção das suas estruturas...
hierárquicas! Seus chefes – e isso quando mais ilustrados – acham que
usando as "tecnologias de rede" vão conseguir aumentar sua influência, seu
poder ou, quem sabe, suas vendas (daí todo esse súbito interesse cretino
pelo tal "marketing viral", de resto uma vigarice).

As organizações hierárquicas – em termos do ser coletivo que se forma,


diga-se: não, é claro, das pessoas que as integram – não vêem as redes
como fim, como uma nova forma de interação propriamente humana ou
humanizada pelo social, e sim como meio para alguma coisa não-humana.
Sim, organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-
humanos. A afirmação é forte, mas não há como dizer de outro modo se
quisermos ir ao coração do problema. Entenda-se bem: as pessoas
continuarão sendo humanas, mas o ser coletivo que se forma não será,
posto que não será 'social' (naquele especialíssimo sentido que Maturana
empresta ao termo).

O principal é quebrar o círculo vicioso do poder. Em que medida você tem


coragem de desobedecer e arcar com as conseqüências? Sua resposta a
essa pergunta define o seu campo de liberdade e de possibilidade.

Dependendo das circunstâncias, desobedecer pode acarretar demissão,


reprovação, agressão, perseguição, condenação, prisão, tortura, mutilação
e morte. Você não deve se suicidar. Quando não há condições objetivas
para desobedecer (ou seja, quando isso colocar em risco a sua vida ou a
vida de terceiros, a sua liberdade ou a liberdade de seus semelhantes) você
deve avaliar cuidadosamente os riscos e as possibilidades. Mas nunca deve
deixar de desobedecer interiormente. O que importa aqui é sua atitude,
vamos dizer assim, espiritual, de desobediência. Não se curve, não se
abaixe, não se deixe instrumentalizar, não se conforme em ser mandado,
não colabore (voluntariamente) com o poder vertical. Desobedecer é, antes
de qualquer coisa, resistir.

Quando você resiste ao poder vertical, você estabelece uma sintonia com as
grandes correntes de humanização do mundo, quer dizer, dos mundos-
bebês que estão gestando o simbionte social. Quando você cede,

272
sujeitando-se a alguém ou sujeitando outras pessoas a você (no fundo, dá
no mesmo), contribui para desumanizar os mundos e a você mesmo.

O mais importante é: não faça um pacto com a morte. Sim, toda vez que
você vende sua alma, sujeitando-se a alguém ou toda vez que você sente
um ímpeto de controlar alguém, é sinal de que uma pulsão de morte está
irrompendo na sua vida.

Se organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos,


ao obedecer voluntariamente aos chefes, enquadrando-se nas dinâmicas
dessas organizações, você está, na verdade, subordinando-se a seres não-
humanos.

Ordem hierarquia disciplina obediência

Eis é a seqüencia maligna, o círculo vicioso que deve ser quebrado pela
saudável desobediência-fluzz (5).

273
Inove permanentemente

Colocar-se em processo de inovação permanente é viver em processo de


Ítaca (ou em processo de fluzz)

Nos Highly Connected Worlds estamos todos condenados a inovar


permanentemente. Não se trata mais de buscar uma grande inovação para
viver dela até o fim da vida: coroar uma bela carreira, inaugurar um grande
empreendimento ou amealhar uma fabulosa fortuna. A inovação passa a ser
o modo cotidiano de viver e conviver.

A maior parte dos sistemas de inovação urdidos por organizações


hierárquicas são, de fato, contra a inovação. Não querem a inovação,
querem a inovação que eles querem. Ora, mas se eles já sabem qual é a
inovação que deve acontecer, então não é inovação. Se fosse, não
poderiam conhecê-la de antemão. Via de regra acabam constituindo escolas
de inovação (que são túmulos para as novas idéias). Querem usar as novas
idéias para justificar as velhas (porque suas escolas, lato sensu, nada mais
são do que coagulações de velhas idéias).

Em termos de idéias, a inovação acontece quando os muros epistemológicos


são perfurados por hifas, viabilizando a polinização, a fertilização cruzada
entre campos do conhecimento que foram separados (pelas escolas).

Grande parte dos que falam em inovação não são inovadores. Inovador é
quem inova, não quem fala como a inovação deve ser. Para inovar você
deve fazer o contrário do que lhe dizem, do que querem ouvir de você, do
que esperam que você faça. Simplesmente, faça diferente. Para tanto, você
tem que ter liberdade. Como já foi dito, o espírito de liberdade é a fonte de
toda criatividade. Você não pode inovar sob encomenda e vigilância de um
sistema que quer que você inove, sim, ma non troppo. É como se lhe
dissessem: inove, mas não exagere: não saia fora de nossa visão, não
bagunce nossos processos, não desarrume nosso modelo de gestão. A
mesma pulsão de morte que exige obediência para disciplinar a interação,
quer também disciplinar a inovação.

De modo geral, toda inovação é fluzz. Mas inovação-fluzz propriamente dita


é aquela que aumenta a interatividade. Grandes inovações-fluzz serão, por
exemplo, aquelas que favorecem a articulação de interworlds (por isso os
inovadores-fluzz têm muito com que se ocupar na construção das novas
internets distribuídas). Ou, dizendo de outro modo, na construção de

274
“membranas sociais”. Ou, ainda, na remoção das separações: entre pessoas
(inclusive entre pessoas que falam idiomas diferentes), entre quem busca e
quem gera conhecimento, entre dispositivos tecnológicos e o corpo humano
e entre pessoas e não-pessoas.

Você quer inovar seguindo o curso (ou surfando na onda-fluzz)? Não seja
por falta de pauta. Tudo que você inventar para remover a centralização
das comunicações e para superar a descentralização da Internet (em
direção a mais distribuição) será inovação-fluzz. Tudo que você inventar
para oferecer alternativas às caixas-pretas onde alguém trancou um
algorítmo, um programa, um conhecimento (para poder viver à custa de
sua inovação aprisionada), será inovação-fluzz. Tudo que você inventar
para derrubar a barreira da língua será inovação-fluzz. Tudo que você
inventar para ensejar que cada busca crie novos significados, evitando que
significados únicos sejam arquivados de modo centralizado, será inovação-
fluzz. Tudo que você inventar para aproximar do corpo humano dipositivos
tecnológicos nômades que intensifiquem a interação, será inovação-fluzz.

Se você quer inovar no mundo digital, nada de copiar os Gates, os Jobs, os


Pages, os Stones e os Zuckerbergs. Hoje o signo da mudança não está mais
com essa gente e sim, por um lado, com os que estão retomando o espírito
libertário dos primórdios e introduzindo inovações em prol do surgimento de
government-less internets (em projetos como Openet, Netsukuku,
Openmesh, Daihimia, Digitata, Freifunk e wlanljubljana) e, por outro lado,
com os que estão tentando construir plataformas i-based adequadas ao
netweaving de redes distribuídas.

Esses são apenas alguns exemplos, apresentados a título ilustrativo, para


tentar tornar compreensível um sentido. A rigor, não há como fazer uma
pauta concreta das inovações-fluzz porque uma verdadeira inovação-fluzz
(como qualquer inovação) é aquela que sequer conseguimos imaginar antes
que apareça. Isso não significa, entretanto, que não possamos afirmar que
o sentido do curso é +interatividade.

Além da desobediência aos que querem aprisioná-lo no mundo de baixa


interatividade, para poder se colocar em processo de inovação permanente
(ou em processo de Ítaca = em processo de fluzz) você precisa sair da
prisão que você mesmo construiu para você ao se aquartelar no seu
quadrado para enfrentar o “mundo exterior”.

275
Saia já do seu quadrado

“Cada um no seu quadrado, cada um no seu quadrado (4x) / Eu disse: Ado


a-ado cada um no seu quadrado/ Ado a-ado cada um no seu quadrado” (6)

Em geral, quando ouvem falar dos temas tratados neste livro, as pessoas
dizem: “ - Legal esse papo de rede! Aqui na minha organização, acho que é
meio cedo. Ainda estamos aprendendo. Gostaria de ver como funciona na
prática. Você tem algum exemplo concreto?” Mas isso não é bom o
suficiente. Se você não sair já do seu quadrado, nada pode ser feito.

Entretanto, compreender e aceitar a possibilidade da organização em rede


distribuída é um processo de aprendizagem mais árduo do que pensam
aqueles que agora estão aderindo à moda meio ligeiramente.

É um processo que exige uma varrição no subsolo onde estão fundeados os


nossos pré-conceitos. Isso quer dizer que as principais resistências às redes
não estão propriamente no terreno das idéias que comparecem nos
debates, senão naquelas que em geral não se explicitam e a partir das
quais formamos nossas concepções. A resistência está nos pressupostos
não-declarados.

Em qualquer lista tentativa desses pressupostos, comparecerão, pelo menos


os quatro seguintes:

 O ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo


(totalmente ou parcialmente).

 As pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação


de seus próprios interesses materiais (egotistas).

 Nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia.

 Sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação


coletiva.

Nossa “wikipedia memética” está lotada de significadores-replicadores como


esses, que privilegiam e propagam determinadas interpretações baseadas
na inevitabilidade da centralização. E o problema é que essa “wikipedia” não
está arquivada somente nos nossos cérebros e sim na rede social que foi

276
vítima de seguidas centralizações, em razão, justamente, da replicação de
memes verticalizadores.

O resultado prático dessa impregnação ideológica é que desconfiamos da


colaboração. Intoxicados por esses pressupostos antropológicos –
falsamente legitimados como científicos – até conseguimos aceitar a
colaboração, mas em função da competição com quem está em outro
quadrado. Ou – pelo inverso e de maneira aparentemente paradoxal –
aceitamos a cooperação com alguns outros quadrados dentro de um campo
(não raro para competir com quadrados que estão em outro campo), mas
não nos organizamos de forma cooperativa dentro do nosso próprio
quadrado.

A contradição é apenas aparente: tudo, no fundo, é a mesma coisa. A


observação cuidadosa revela que quando não aceitamos a cooperação com
os “de fora”, também não conseguimos nos organizar de uma forma que
facilite a cooperação entre os “de dentro”. E vice-versa.

Nossa capacidade de aceitar o padrão de rede é função da forma como nos


organizamos. Um ambiente organizacional favorável à cooperação é aquele
cuja topologia é mais distribuída do que centralizada. Quanto mais
distribuída for uma rede social, mais fácil é ensejar o fenômeno da
cooperação. Ou, dizendo de maneira inversa, quanto mais centralizada for
uma estrutura organizacional, mais ela gerará e emulará a competição e
seus bad feelings acompanhantes, como a desconfiança.

Ao contrário do que sugere o senso comum, a cooperação não é uma


característica intrínseca do indivíduo, inata ou adquirida pela sua formação.
Não decorre de nenhum gene nem da sua boa índole ou da sua alma
generosa. Tal fenômeno se manifesta em função dos graus de distribuição e
de conectividade da rede social em que uma pessoa está inserida.

Quanto mais distribuídas e densas forem as redes sociais, mais elas terão
capacidade de converter competição em cooperação, como resultado de sua
dinâmica. Elas não convertem pessoas competitivas, beligerantes e
possuidoras de forte ânimo adversarial em pessoas cooperativas, pacíficas e
amigáveis. Ao favorecer a interação e permitir a polinização mútua de
muitos padrões de comportamento, o resultado do “funcionamento” de uma
rede social (distribuída) é produzir mais cooperação, como já descobriram
(ou estão descobrindo) os que trabalham com o conceito de capital social.
As pessoas podem continuar querendo competir umas com as outras,
porém, quando conectadas em uma rede (distribuída), esse esforço não
prevalece como resultado geral visto que, na rede, elas não podem impedir

277
que outras pessoas façam o que desejam fazer, nem podem obrigá-las a
fazer o que não querem. Sim, essa é a essência dos processos de comando-
e-controle: mandar nos outros.

Essa constatação pode até parecer meio óbvia, mas está longe disso. A
prova é a nossa imensa dificuldade de aceitar o padrão de rede dentro de
nossas próprias organizações.

Nossa dificuldade de aceitar o padrão de rede é função da forma como nos


organizamos e não da nossa falta de capacidade de entendimento do
assunto.

Hoje, como o tema virou moda, as pessoas gostam de falar em redes, no


mínimo, para não parecerem ultrapassadas. Mas quando falam em redes,
em geral, elas falam da conexão em rede de estruturas centralizadas. Os
nodos não são redes. No seu próprio nodo não querem saber dessa
conversa. E, para falar a verdade, nem se importam muito com a maneira
como os outros nodos se organizam internamente, desde que... fique lá
cada um no seu quadrado. É isso então: “Ado, a-ado, cada um no seu
quadrado”.

Meu “quadrado” é o meu bunkerzinho. É dali que eu enfrento o mundo em


vez de me relacionar com ele com abertura.

Pode-se argumentar que essa visão é característica do mercado (que tem


uma dinâmica competitiva), mas o fato é que ela também comparece em
outras formas de agenciamento, como a sociedade civil (cuja racionalidade
é cooperativa). Nas empresas e em outras organizações de mercado,
entretanto, é mais do que uma visão: é uma disposição emocional. Para
além de uma racionalidade, é uma emocionalidade que induz a replicação
de comportamentos. Por isso é tão difícil para a cultura empresarial aceitar
de fato as redes sociais.

A cultura empresarial foi contaminada por uma ideologia construída sobre o


mercado. É claro que, mesmo do ponto de vista puramente racional, há um
problema com a visão que foi construída sobre o mercado, quer dizer, com
a visão que parte dos pressupostos assumidos pelos que propagam o
liberalismo de mercado. É uma visão que valoriza e emula o chamado
“instinto animal” do empreendedor, imaginando que o resultado variacional
da confluência das ações de miríades de agentes animados desse espírito
belicoso do conquistador, será, ao fim e ao cabo, o do incremento produto.
Essa visão, por sua vez, é legitimada pela crença de que o ser humano é
por natureza assim mesmo e que cada indivíduo gera suas preferências a

278
partir de uma perspectiva egocêntrica. A interação desses múltiplos inputs
seria então capaz de estabelecer uma autoregulação no plano em que se
estabelece (quer dizer, no do próprio mercado). Mas como tal esquema não
garante coesão social, é preciso escorá-lo com uma concepção política
segundo a qual caberia a uma estrutura de poder, supostamente acima das
partes, resolver os dilemas da ação coletiva estabelecendo top down a
regulação, emitindo normas a partir do Estado ou de outra instância
centralizada capaz de cumprir esse papel.

Nesse esquema, como se pode ver, não há lugar para a autoregulação


societária. E é por isso que, para o liberalismo econômico e sua ‘ciência do
crescimento’ – a chamada Economics – a sociedade civil não é uma forma
de agenciamento capaz de subsistir por si mesma. Sim, aqui ainda estamos
em Hobbes.

Padrão variacional de mudança no mercado combinado com lógica


normativa do Estado e... nada mais (como provocava Margaret Thatcher no
final dos anos 80: “And, you know, there is no such thing as society”) (7).
Eis a concepção de mundo que foi produzida. No limite, o mercadocentrismo
(não o mercado, mas a ideologia que foi construída sobre o mercado), como
qualquer ideologia de raiz hobbesiana, é sempre hierarquizante e
autocratizante e, assim, está longe de ser um liberalismo em termos sócio-
políticos.

Tudo isso contaminou a cultura empresarial, sobretudo das grandes


empresas (invariavelmente mancomunadas com o Estado para gerar isso
que chamamos de capitalismo), na medida em que essa ideologia foi
disseminada pelos novos sacerdotes da modernidade – os economistas –
que, ademais, adquiriram status científico e trabalham sempre no complexo
Estado-Empresa, legitimados pela Universidade. Das grandes empresas,
essas crenças extravasaram para as médias e pequenas, cujo sonho não é
serem-bem o que são, mas se tornarem grandes. De sorte que uma cultura
mais cooperativa só consegue penetrar em certas brechas abertas pela
assimetria da competição mercantil: por exemplo, pequenas empresas de
um setor aceitam estabelecer laços cooperativos entre si – formando
sistemas sócio-produtivos (como os arranjos produtivos locais) – não para
compartilhar e inovar a partir da polinização mútua ou da fertilização
cruzada de diferentes visões de gestão, processo e produto, mas para
concorrer com as grandes e médias empresas ou com outros clusters de
pequenas empresas. A cooperação é então compreendida, aceita e
justificada pela necessidade de adquirir condições mais competitivas.

279
Não se pode aprender muito sobre redes em organizações hierárquicas. Só
muito recentemente, algumas empresas começaram a se dar conta de que
um padrão de organização mais favorável à cooperação – tanto
internamente, quanto no âmbito dos seus stakeholders – pode ter alguma
coisa a ver com sua capacidade de se adaptar tempestivamente às
mudanças do meio em que estão inseridas. Colocou-se então, para além da
questão da competitividade (e da qualidade e da produtividade como
atributos conexos), a questão da sustentabilidade.

Mas tal não foi suficiente para alterar os, digamos, drives dos agentes
empresariais. Mesmo os mais avançados, que já foram capazes de perceber
que tudo que é sustentável tem o padrão de rede e, assim, conseguiram
entender a necessidade da transição de sua forma de organização
hierárquico-vertical ou centralizada para formas mais horizontais ou
distribuídas, mesmo estes, não conseguem mudar seu “código-fonte”. E não
conseguem fazê-lo simplesmente porque continuam se organizando de
forma hierárquica. Eis o ponto!

Até as empresas de consultoria estratégica que atuam na perspectiva dessa


transição (e mesmo as que declaram trabalhar com redes sociais)
permanecem se organizando de forma mais centralizada do que distribuída.
E as teorias e metodologias que aplicam em seus clientes empresariais
continuam reforçando visões e práticas hierarquizantes. Um bom exemplo
disso são as crenças liderancistas que proliferaram nas últimas décadas,
segundo as quais haveria pessoas, por alguma razão, predestinadas a
captar pioneiramente as mudanças, que deveriam se destacar das demais,
caminhando à sua frente a fim de conduzi-las para o futuro que anteviram.

A ideologia do liderancismo fornece um bom exemplo da dificuldade de


entender as redes sociais. Pois quando falam em líderes os adeptos do
liderancismo empresarial estão, na verdade, falando de monoliderança. Não
querem muitos líderes e sim apenas alguns (aqueles que se destacam): se
muitos puderem liderar, desconstitui-se o papel do líder, pelo menos dentro
de cada fortaleza organizativa. Ou melhor, eles até querem líderes, no
plural, sim, mas... cada um no seu quadrado. Mais uma vez é isso: “Ado, a-
ado, cada um no seu quadrado”.

Ora, as redes (distribuídas) constituem ambientes favoráveis à emersão da


multiliderança. Mas a observação acrítica de que sempre tem alguém que
lidera, que puxa, do contrário a coisa não anda, reforça as tão ingênuas
quanto interesseiras crenças liderancistas.

280
Bastaria experimentar uma organização em rede distribuída para ver surgir
o “misterioso” fenômeno (o da multiliderança). Ah! Mas esse passo eles não
querem dar, porque têm medo de... perder a liderança! Trata-se aqui, como
parece óbvio, do monopólio da liderança, que, na sua raiz, está
inegavelmente associado não propriamente à propriedade, mas ao uso que
dela se possa fazer (diretamente, no caso dos donos; ou por delegação, no
caso dos CEOs ou altos dirigentes) para ocupar uma posição de comando-e-
controle; quer dizer: para mandar nos outros.

A interpretação do líder que se destaca e que seria capaz de ver o que os


outros não são capazes e que seria, portanto, capaz de comandar e
controlar seus “colaboradores” em prol do bem-comum agrada a todos,
vendedores e compradores. Os dirigentes hierárquicos têm seu ego
fortalecido e obtêm mais um argumento de peso para justificar seus
processos discricionários de tomada de decisões. E ficam motivados para
comprar serviços e metodologias baseados nessa metafísica. Mas caminha
em direção contrária aos ventos da mudança da sociedade hierárquica para
a sociedade em rede. E constitui um obstáculo à necessária transição do
padrão de organização das empresas e de outras instituições.

É claro – e ninguém pode negar – que existem pessoas visionárias, mais


antenadas para captar as tendências e capazes de ver à frente dos seus
contemporâneos. O problema é que não se pode atribuir essa “capacidade”
a uma condição intrínseca do sujeito, independentemente das funções
exercidas por ele nas redes sociais em que está inserido. E,
fundamentalmente, não se pode associar essa capacidade às posições
ocupadas por ele em organizações hierárquicas, fazendo um raciocínio
primário do tipo: se o cara está ali naquela posição é porque demonstrou
que é um líder destacado, logo... ele tem (ou tem mais chances de ter) as
condições (genéticas ou culturais) de captar as mudanças e tem também
não apenas o dever mas o direito de conduzir as outras pessoas.

Mas posições em estruturas verticais de comando-e-controle são diferentes


de funções exercidas em estruturas horizontais de relacionamento. O que
confere capacidades extraordinárias a alguns indivíduos, além, é claro, do
seu esforço, são as funções assumidas por eles na dinâmica coletiva das
fluições que os atravessam e não as posições ocupadas nos degraus da
escadinha do poder de mandar nas outras pessoas. Em outras palavras,
líderes são expressões do capital social (são produzidos, por assim dizer,
em grande parte, pela fenomenologia da rede) e não o resultado de uma
competição entre diferentes unidades de capital humano para ver quem
chega primeiro. O recente estudo de Malcolm Gladwell (2008) – Outliers – é
bastante ilustrativo a esse respeito (8).

281
Tudo é aceitável, menos mexer no meu quadrado, disse o reizinho. O
problema com as organizações hierárquicas é que elas são capazes de
aceitar qualquer nova moda, qualquer linguagem vanguardista e qualquer
metodologia revolucionária justificada pela metafísica mais influente da
hora, suposta ou realmente sintonizada com o Zeitgeist, mas – dos pontos
de vista dos padrões de organização e dos modos de regulação – querem
continuar sendo como são! Ou como acham que são. Ou como querem ser
(9).

Isso é mais freqüente nas empresas. Dirigentes empresariais mostram-se


predispostos a comprar qualquer coisa inusitada, mesmo aquelas que vêm
justificadas por esquemas míticos de interpretação do mundo, da natureza
e do ser humano (basta ver o incalculável número de consultorias que
proliferou na esteira da New Age) ou aderem, pressurosos, às novas
“religiões laicas” que surgem (sobretudo após a falência das grandes
narrativas ideológicas utópicas do século 20, como as que hoje pretendem
“salvar o planeta” do aquecimento global) desde que: a) não questionem e
propriedade; e b) não questionem as formas de organização baseadas no
acesso diferencial à propriedade para estabelecer mecanismos de comando-
e-controle (mas é aí que está o problema).

Tudo é aceitável, menos mexer no meu quadrado, que delimita o perímetro


do meu reino. Sim, pode-se dizer o que se quiser, mas não se pode,
honestamente, deixar de encarar o fato de que as empresas – assim como
a maior parte das organizações – ainda são monárquicas em um mundo
que, pelo menos no que tange às sociedades consideradas mais
desenvolvidas, já superou as monarquias (absolutistas) há bem mais de um
século.

O reizinho não se preocupava muito com a maneira como os outros povos


(estrangeiros) se organizavam. Mas lá no seu reino, êpa! Aqui mando eu.
Era isso: “Ado, a-ado, cada um no seu quadrado”.

Se você não está disposto a sair do seu quadrado, abandonando o seu


reino, não vai conseguir entrar em outros mundos. Para você, essa
conversa de mundos-bebês em gestação não passará de uma divagação
abstrata, de uma metáfora sem sentido, de uma especulação ociosa e sem
aplicação prática. É justo. Um rei deve ter mesmo a responsabilidade de
manter o mundo em que reina (o que significa que ele é o primeiro-escravo
do seu reino).

Sair do seu quadrado não é bombardear, incinerar, demolir a sua


organização, seja ela qual for, tenha ou não fins lucrativos. É iniciar a

282
transição do padrão hierárquico dessa organização para um padrão de rede
(10).

283
Inicie agora a transição

Nos já descobrimos a “fórmula”: é a rede distribuída

Para iniciar a transição do padrão hierárquico de organização para um


padrão de rede, você precisa ser um netweaver.

A transição da organização hierárquica para a organização em rede (mais


distribuída do que centralizada) é o grande desafio glocal, não de nosso
tempo (posto que tal não existe mais como um mesmo tempo para todos) e
sim de todos os tempos.

Como fazer isso? Pode parecer incrível, mas nós já temos a resposta.
Embora, a rigor, não haja nenhuma fórmula, nós já descobrimos a
"fórmula" da transição do padrão hierárquico para o padrão rede. Essa
"fórmula" é a rede (distribuída).

Dito assim, causa surpresa. Mas é, exatamente, isso mesmo. Estamos, já


faz tempo, dando voltas na questão para não ir ao centro da questão:
articular e animar redes distribuídas.

Quase sempre é difícil ver o óbvio. E o óbvio, aqui, é o seguinte: se


queremos efetuar a transição de uma sociedade ou organização hierárquica
(centralizada ou multicentralizada) para uma sociedade ou organização em
rede (distribuída), nada mais nos cabe fazer senão netweaving.

O nosso problema não está no desconhecimento da "receita" e sim na nossa


incapacidade de mostrar que ela é eficaz. Na verdade, o que nos falta são
os argumentos suficientes para convencer os hierarcas e seus prepostos das
organizações (governamentais e não-governamentais) de que é possível,
sim, re-organizar as coisas em um padrão distribuído. Não é o caminho (a
direção e o sentido do movimento a ser feito) que nos falta e sim o discurso
convincente, os exemplos e as tecnologias (e metodologias) para promover
e conduzir tal transição. Como não conseguimos "vender" a idéia, achamos
que não temos a "fórmula".

Mas nós já temos a "fórmula". Achamos que não temos porque, na maior
parte dos casos, não queremos nos organizar – nós mesmos – segundo um
padrão de rede distribuída. Então montamos uma empresa de consultoria
ou uma ONG hierárquica e queremos sair por aí "vendendo o nosso peixe"
para outros hierarcas. É claro que o sujeito (potencial cliente de nossos

284
serviços ou tecnologia) desconfia da nossa conversa. Logo de cara pergunta
onde tal coisa foi aplicada com sucesso. Quer conhecer as best practices,
porque não quer entrar em uma aventura, seguir um maluco qualquer que
anda pregando algo que pode colocar em risco seu negócio ou seu projeto.

Uma organização hierárquica copia a outra. É por isso que todas as


organizações do mesmo setor ou ramo de negócio ou atividade são tão
parecidas. Não somente seus projetos, produtos e serviços são similares,
mas também seus processos de produção, seus modelos de gestão e seus
sistemas de governança. Se você chega lá falando uma coisa diferente, sua
proposta é de pronto considerada out of topic. E há uma associação, tácita
e involuntária na maior parte dos casos (e em alguns casos voluntária:
quando existe corrupção), entre compradores e vendedores de tecnologias
e metodologias.

Por quê? Ora, porque organizações hierárquicas competem entre si (e


quando colaboram é para competir com outras organizações hierárquicas).
A competição nivela e, mais do que isso, torna os competidores
semelhantes. Em qualquer disputa você, mais cedo ou mais tarde, adquire
as características do seu adversário. É aquela história: para lutar com o
urso você adquire garras de urso. Então o comprador quer comprar o que
seus concorrentes compram para não ficar para trás. Mas, ao fazer isso,
perde completamente a originalidade e reduz sua capacidade de inovar. E,
ainda que não desconfie disso, perde também capacidade de “viver” (ou
reduz suas chances de alcançar sustentabilidade).

Bem, mas aí você chega lá falando da transição do padrão de organização e


o seu interlocutor quer ver suas credenciais, seu portfólio, seus cases. E
você não tem nada disso para apresentar. Tem apenas as suas idéias...
Idéias de que uma organização em rede é mais produtiva, mais inovadora e
mais sustentável do que uma organização hierárquica.

Mas suas idéias não valem muito. E os que olham para você com
desconfiança, têm certa razão. Porque não é o seu conhecimento que vai
conseguir transformar aquela organização hierárquica em uma organização
em rede e sim a maneira como as pessoas vão passar a se relacionar
dentro da organização. Seu papel – ao contrário do que muitos acreditam –
não é fazer a cabeça dos decisores da organização. Em geral eles são
pessoas inteligentes o suficiente para entender suas idéias. Mas isso não
adianta porque a organização hierárquica, a despeito do que acreditam seus
dirigentes, continuará funcionando na dinâmica do comando-e-controle.

285
Seu papel – se você é, por exemplo, um consultor estratégico voltado à
inovação e à sustentabilidade – é desencadear uma mudança nos padrões
de convivência entre as pessoas da organização. Mas não são as idéias que
mudam os comportamentos. São novos comportamentos que podem gerar
novos comportamentos. Ninguém muda se não muda o seu viver. Nenhuma
organização muda se não muda o seu conviver. Os chamados modelos
mentais são sociais. As mentes não são cérebros individualmente
parasitados por idéias e sim nuvens de computação da rede social onde
rodam determinados programas meméticos. Esses velhos programas não
param de rodar enquanto os graus de distribuição e de conectividade dessa
rede social não mudam.

E enquanto você, que quer ser um agente da mudança, não muda o seu
viver e o seu conviver, também não pode desencadear qualquer mudança.
Se, por exemplo, você vier com esse papo de rede, mas trabalhar a partir
de uma organização hierárquica, não terá condições de introduzir
mudanças. Seu padrão de relacionamento (da sua organização) com a
organização que você quer transformar será conservador e não inovador.

Não se trata de coerência. É bom não misturar os canais. Não estamos aqui
no terreno do discurso ético. Trata-se da capacidade de introduzir estímulos
que podem se replicar em um sistema alterando o comportamento dos
agentes do sistema.

Isso exige outro padrão de consultoria que não aquele do técnico que vai lá
vender o seu conhecimento para quem quiser pagar o preço. Só é possível
realizar essa consultoria se você for parte do processo, como um dos nodos
da rede dos stakeholders da organização. Não é uma aplicação tecnológica
ou metodológica que possa ser feita por um agente desinteressado, neutro,
imparcial. Você também é transformado na interação. Se não for, não
haverá mudança alguma. Os caras vão fazer de conta que acreditam no seu
discurso, vão experimentar suas tecnologias e metodologias e, no final,
você vai sair mais ou menos como entrou e a organização vai ficar mais ou
menos como você a pegou. Vai passar a ter um novo discurso –
materializado formalmente em novas declarações sobre visão, missão,
valores – mas o conviver que expressa os seus fluxos cotidianos
permanecerá (quase) inalterado.

Hierarquia (ordem top down, disciplina, obediência, monoliderança),


desconfiança e inimizade, competição, comando-e-controle são
características de programas verticalizadores que rodam na rede social da
organização. Não são os indivíduos – ou as idéias que estão dentro das
cabeças deles – os responsáveis pela reprodução dessas disposições e sim a

286
configuração e a dinâmica dos arranjos em que as pessoas foram colocadas
para viver e conviver.

Esses programas verticalizadores (ou softwares centralizadores) já estão


rodando há tanto tempo que modificaram o hardware. Não é possível
desinstalá-los a partir do discurso ou fazendo a cabeça das pessoas. É
necessário mudar o hardware.

Como? Ah! Basta aplicar a "fórmula" que – não é demais repetir – nós já
descobrimos. Basta alterar a topologia e a conectividade da rede social
composta pelos stakeholders da organização. Se fizermos isso, vão emergir
conexões em rede (ordem bottom up, liberdade, autonomia,
multiliderança), confiança e amizade, colaboração e auto-regulação como
características de programas horizontalizadores (ou softwares
distribuidores) que poderão (então) rodar nos novos arranjos em que as
pessoas vão passar a viver e conviver.

Não é necessário mudar os indivíduos. É necessário mudar o padrão de


relacionamento entre eles (quer dizer, mudar as pessoas). Mas por onde
começar para obter tal resultado?

Articulando uma rede distribuída dentro da organização (uma espécie de


embrião da rede na qual a organização vai se tornar). Essas pessoas
conectadas em rede terão a liberdade de propor mudanças e construir
"espelhos" (em rede) dos mecanismos e processos de governança, gestão e
produção que estão organizados hierarquicamente. Por exemplo, vão
reconfigurar os departamentos, seções ou áreas administrativas da
organização, superpondo, às caixinhas do velho organograma, novos
clusters onde as pessoas vão se aglomerar por afinidade (segundo a
máxima: "a melhor pessoa para realizar um trabalho é aquela que deseja
fazê-lo"). Vão criar redundâncias mesmo, em todos os lugares em que isso
for possível. Na verdade, vão criar uma outra (nova) organização dentro da
velha.

Mas isso não vai dar uma confusão danada? É claro que vai. Criar uma
espécie de Zona Autônoma Temporária (11) dentro da organização, não é
uma coisa trivial. Há o risco de bagunçar os atuais processos que, bem ou
mal, estão permitindo que a organização sobreviva e muitas vezes se
destaque na competição com suas congêneres. Por outro lado, o que se
pode ganhar com isso, caso a transição consiga se realizar, é muito mais do
que se pode ganhar com qualquer suposta inovação – em geral cosmética –
lançada pelas consultorias estratégicas organizacionais da moda, cujo
principal resultado é fazer você ficar igualzinho a seus concorrentes. Os

287
indicadores de produtividade, inovação e, sobretudo, de sustentabilidade
que uma organização em rede pode alcançar não são comparáveis aqueles
que podem ser atingidos por uma organização hierárquica. Não há
comparação porque o que muda aqui é a própria natureza da organização.

A organização em rede deixará de ser uma unidade administrativo-


produtiva isolada e passará a ser uma coligação móvel de stakeholders.
Isso significa que ela não contará apenas com os capitais econômicos e
extra-econômicos, sempre limitados, que seus investidores ou
constituidores são capazes de aportar. Para dar um exemplo, em termos de
capital humano, ela não terá à sua disposição apenas algumas dezenas ou
centenas (ou, em alguns casos, poucos milhares) de cérebros que contratou
e é capaz de pagar e sim dezenas e centenas de milhares. Assim, não terá
as dificuldades inerentes – e os custos correspondentes – do
aprisionamento de corpos (que sustentam os cérebros alugados) que foi
capaz de realizar e funcionará, em grande parte, lançando mão do peer
production e do crowdsourcing.

A organização em rede importará a custo zero (ou por baixo preço) capital
social (que é um recurso caríssimo) do meio onde está situada. Se as
populações locais começarem a fazer parte da rede de stakeholders da
organização, elas também farão parte da comunidade de negócios ou de
projeto em que ela se transformará. Isso reduzirá drasticamente os
famosos custos de transação, além de trazer outras vantagens
inimagináveis atualmente.

288
Afinal, redes são apenas (múltiplos) caminhos

“Ah, sim, isso é evidentemente óbvio”

De que transição se trata? Da transição da organização hierárquica para a


organização em rede (entendendo-se por isso, a rigor, o aumento dos graus
de distribuição-conectividade).

Transição evoca caminho. Mas não existe um caminho, em primeiro lugar,


porque os caminhos são múltiplos (aliás, rede é, por definição, múltiplos
caminhos).

Mas também não existe caminho para se chegar a um padrão de rede, em


segundo lugar, porque a maneira de ter +rede é tendo +distribuição. Em
outras palavras: a rede é o caminho! Não é possível chegar às redes a não
ser pelas redes.

Mohandas Ghandi disse certa vez que "não existe caminho para a paz: a
paz é o caminho". John Dewey, antes de Ghandi – e Amartya Sen, muito
depois – já haviam sugerido que não existe caminho para a democracia a
não ser a própria democracia. Com as redes é a mesma coisa: 'não existe
caminho para as redes: as redes são o caminho'. A paráfrase não é apenas
literária. Há uma relação intrínseca entre essas realidades processuais –
paz, democracia e redes: na verdade não há paz, senão +pazeamento; e
não há democracia, senão +democratização; e não há redes, senão
+enredamento ou +reticulação ou, ainda, +distribuição.

Entendida assim, processualmente, a problemática da transição deixa-se


ver sob nova luz. Trata-se de aumentar os graus de distribuição-
conectividade na rede social conformada pelas pessoas afetadas, de algum
modo, pela vida orgânica: não só os empregados e os gestores, mas
também os donos ou acionistas, os fornecedores, os clientes, usuários ou
consumidores e todas as outras pessoas concernidas na atividade da
organização (os chamados stakeholders, lato sensu).

Qual é a novidade aqui? A novidade é a seguinte: isso tem que ser feito
agora, não depois. Não pode haver uma transição para uma organização em
rede mantendo-se intocado o padrão centralizado atual (+centralizado do
que distribuído, entenda-se) em nome de um futuro padrão de rede
(+distribuído do que centralizado). Essa é a desculpa para não mexer nos

289
graus de centralização e é por isso que uma transição assim não costuma
dar certo.

Na transição não existe o futuro a não ser na medida em que o


antecipamos. Se não anteciparmos padrões de rede, nunca teremos um
futuro de rede. Se queremos chegar às redes, temos que começar, aqui-e-
agora, a fazer redes; quer dizer: netweaving. A rede é o caminho!

Mas como fazer redes? Não há um guia, um verdadeiro how-to. Por isso,
fuja dos receituários. Todos esses receituários contemporâneos que
pretendem ensinar a fazer redes, em geral não servem porque confundem
redes sociais com midias sociais. Então elencam 5 passos, recomendam 10
medidas, sugerem 15 procedimentos, dão 20 dicas para você usar melhor
(?) o seu blog ou alguma plataforma interativa da moda como o Twitter e o
Facebook. Mas não falam nada sobre seus encontros com seus amigos na
sua casa, nos restaurantes, nas festas, nos seus locais de estudo e
trabalho. Ou seja, não falam das redes sociais propriamente ditas.

Para aprender, você tem que começar a fazer. Começar conversando, no


mínimo, com outras duas pessoas (que não podem estar acima nem abaixo
de você em qualquer sentido). Depois você vai ver o que acontece. O
essencial é que você não mande em ninguém, nem obedeça a alguém.

Só redes podem gerar redes. Os que querem assumir o papel de agentes,


indutores, facilitadores, promotores da mudança, não poderão fazer nada se
eles mesmos não se organizarem em rede (ou seja, de modo +distribuído
do que centralizado). Esta é uma daquelas argumentações evidentes por si
mesmas, das quais falava Wittgenstein (1931) em conversa com Friedrich
Waismann – e narrada por este último em Ludwig Wittgenstein and the
Vienna Circle (1979) – que seriam capazes de provocar no interlocutor uma
reação do tipo: "Ah, sim, isso é evidentemente óbvio" (12).

290
11
Bem-vindos aos novos mundos-fluzz

O Pó de Flu (Floo Powder) é um modo de viajar e se comunicar


no mundo mágico, que pode ser usado por crianças...
Inventado por Ignatia Wildsmith,
é utilizado por muitos bruxos e bruxas
para se transportar para (e através de) todos os lugares
que estiverem ligados à Rede do Flu (Floo Network).
Da série Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007)

Perder-se também é caminho.


Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969)

Livre, livre é quem não tem rumo.


Manoel de Barros em Menino do Mato (2010)

291
Bem-vindos aos novos mundos-fluzz.

Esqueçam suas velhas idéias e práticas de comando e controle.


Abram mão de suas noções-século-20 de participação. E se livrem da
compulsão de gerir o conhecimento ou organizar conteúdos para os
outros (ou juntamente com eles). Preparem-se para entrar no
multiverso das interações.

Nos mundos-fluzz não é o conteúdo do que flui pelas conexões da


rede a variável fundamental para explicar o que acontece(rá) e sim o
modo-de-interagir e suas características, como a freqüência, as
reverberações, os loopings, as configurações de fluxos que se
constelam a cada instante, os espalhamentos e aglomeramentos
(clustering), os enxameamentos (swarming) que irrompem, as curvas
de distribuição das variações aleatórias introduzidas pela imitação
(cloning) que produzem ordem emergente (a partir da interação), as
contrações na extensão característica de caminho (crunch) dentro de
cada cluster...

Em vez de tentarem organizar a auto-organização, construam


interfaces para conversar com a rede-mãe, aquela que existe
independentemente de nossos esforços conectivos voluntários e que,
para usar uma imagem do Tao, é como o espírito do vale, suave e
multífluo, [como] a mulher misteriosa que age sem esforço ao se
deixar varrer pelo sopro, ao ser permeável ao fluxo que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe: fluzz.

Oh!, sim, redes são fluições. Este livro foi sobre redes.

Os novos mundos altamente conectados do terceiro milênio são aqueles


mundos glocais em que fluzz vai sendo desobstruído. Fluzz é obstruído pela
centralização das comunicações (e inclusive pela Internet descentralizada),
mas também por todas as separações que reduzem a interação, desde

292
aquelas impostas pela barreira da língua, passando por aquelas que
separam quem busca de quem gera conhecimento e pelas que separam os
dispositivos tecnológicos interativos do corpo humano até chegar às que
separam pessoas de não-pessoas.

Bem-vindos então aos novos mundos-fluzz. Seu dispositivo móvel de


interação já se comunica diretamente com outros dispositivos móveis. Seu
computador – agora um transceptor, alimentado por baterias recarregáveis
por luz ou força mecânica – gera sua própria onda eletromagnética e “fala”
diretamente com os outros computadores do seu mundo. Nada de
provedores, roteadores, protocolos únicos. No lugar da internet
multicentralizada, redes distribuídas. Redes P2P (peer-to-peer). Redes
Mesh, ampliadas por replicação em cascata, interconectadas.

Seu Foursquare não está mais montado sobre a planta urbana, mas sobre
mapas de caminhos no espaço-tempo dos fluxos. Ele passou a ser i-based.
Com a ajuda de telas (e tudo pode ser tela), óculos especiais, projeções
holográficas ou implantes bio-eletrônicos e cibernéticos, você “vê” o fluxo.
Como um precog você antevê o desfecho de configurações em formação,
que ainda não se materializaram... E como um novo John Anderton (o
protagonista de Minority Report, interpretado por Tom Cruise, mas agora
livre e não-perseguido) interage com as coisas: os artefatos, os
equipamentos, os prédios, as ruas.

Mas com você não ocorre nada parecido com o que se passa na sociedade
de controle de Minority Report, o filme de Spielberg (2002) baseado no
conto homônimo de Philip K. Dick (1956). Você será mais como aquele
Leto, o filho de Paul Atreides, em Os Filhos de Duna, de Frank Herbert
(1976) (1). Não há um mainframe. Não há um Arquiteto (o personagem de
Matrix Reloaded magistralmente interpretado por Helmut Bakaitis). Acorda!
Você não está mais na Matrix.

Agora você dispõe de programas i-based de navegação inteligente, da


busca (semântica) à polinização (criativa, ensejadora de múltiplos
significados). Cada um tem sua própria wikipedia, cada busca P2P é feita
em miríades de wikipedias e não em apenas uma (única) instalada em um
mainframe. Cada busca revela um resultado diferente porque, na verdade,
não existe a busca unilateral: toda busca é uma interação, quer dizer, uma
geração de conhecimento-vivo (ou não revela nada além de conhecimento-
morto). Cada busca, portanto, deixa um rastro, o rastro daquela particular
fluição que se agrega ao resultado da busca análoga seguinte para os que
estão trafegando pelo mesmo interworld.

293
Nos Highly Connected Worlds todo buscador é um polinizador. Esse
interagente é um viajante, um peregrino de mundos e um semeador de
mundos, um nômade que não depende mais de workstations instaladas em
equipamentos que obstruem fluxos. Dispositivos móveis de navegação e
comunicação, objetos interativos nômades ficaram vez mais portáteis e
mais decisivos na geração de small-worlds e de interworlds.

Os dispositivos tecnológicos deixaram de estar separados do corpo. Eles


estão cada vez mais próximos, como certos games que, no passado,
começaram a substituir o joystick pelo próprio corpo humano (2); e assim
também ocorre com processadores, navegadores e comunicadores que são
instalados em relógios de pulso, óculos, pulseiras, anéis, colares, bonés e
outros acessórios. Alguns desses artefatos são tradutores-transdutores que
funcionam em tempo real permitindo a conversação entre pessoas que
falam línguas diferentes. E muito além disso: agora temos dispositivos
inseridos – integrados, assimilados ou combinados por simbiose – ao corpo
humano. Tornou-se irrelevante a velha discussão sobre aquelas faculdades
polêmicas, parapsicológicas, como a telepatia, porque já é irrelevante tê-las
na medida em que podemos realizar a interação sem distância ou em tempo
real com outros seres humanos e não-humanos, animados ou inanimados,
sempre que quisermos.

Podemos inserir em nossos corpos outros dispositivos capazes de ampliar e


acelerar a comunicação. Estamos descobrindo em seres não-humanos
parceiros simbióticos – semelhantes à psilocibina, na visão de Terence
McKenna (1992) (3) ou como as imaginárias “midi-chlorians” da série Star
Wars (4) – capazes de nos dotar de mais “percepção” de fluzz ou de ensejar
melhores condições de interação.

Mas esses avanços tecnológicos, em si, não são nada diante das inovações
sociais que surgiram com o auxílio de tecnologias i-based (aliás, tais
tecnologias só foram desenvolvidas porque já havia a possibilidade social
para o seu surgimento). Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-
Estados-nações, não-empresas-hierárquicas germinaram e floresceram,
dando nascimento a novas variedades de instituições-fluzz baseadas na vida
comum e na convivência das pessoas comuns ressignificadas como
expressões diretas do multiverso criativo (aquele que cria a si mesmo à
medida que se desenvolve). Não é um novo céu e uma nova terra (como
expectou Isaias 65: 17): é que o novo céu passou a ser a nova terra; enfim
a terre des hommes!

Todas as novas possibilidades sociais que permitem a emergência de Highly


Connected Worlds estão ligadas à fenomenologia das redes sociais

294
distribuídas. Não foi propriamente a descoberta desses novos fenômenos
que quebrou as cadeias que nos aprisionavam ao velho mundo e sim a
nossa disposição social de deixarmos eles acontecerem.

295
Quebrando as cadeias

Mundos sociais criam-se a si mesmos à medida que se desenvolvem = fluzz

É incrível como ficávamos – no mundo único – presos aos conteúdos.


Achávamos que eram os conteúdos que podiam fazer a diferença. Foi uma
consequência trágica de seis milênios de ensino (quer dizer, da
programação das mentes efetuada por alguma organização hierárquica – e
todas elas, como vimos, são escolas): o conteúdo é um ensinamento.

Do conteúdo para a consciência foi um pulo, ou melhor, um deslizamento


(epistemológico). A consciência que queríamos que os outros tivessem
deveria surgir quando eles entrassem em contato com determinados
conteúdos (que às vezes chamávamos de “conhecimento”). E aí nos
esforçávamos para construir, organizar e transferir conhecimentos para os
outros. Assim nos tornamos programadores (replicadores) do velho mundo.
Fomos programados para ser replicadores: enfiadores de conteúdos na
cabeça dos outros.

Da consciência para a ética ocorreu outro deslizamento. A ética que


queríamos que os outros tivessem era, no fundo, conquanto muitos se
esforçassem por negar tal evidência, um conjunto de valores (conteúdos)
que viravam normas para direcionar comportamentos. Mas valor – do jeito
que foi tomado, de modo genérico – virou uma palavra tola. Valor é o que é
valorizado por alguém e compartilhado pelos que estão em interação com
esse alguém. Não pode existir um valor acima, ou antes, da interação de
alguns, que deva valer para todos. E essas idéias que chamávamos de
valores não podiam mudar comportamentos: como se, inoculados por elas,
passássemos a agir de modo correto ou mais “consciente”. Consciência
(entendida nesse sentido deslizado, como conhecimento de um conteúdo ou
mesmo, em termos mais sofisticados, como localização da reflexividade no
sujeito que sabe que sabe) não pode mudar comportamentos. Pela
milésima vez: somente comportamentos mudam comportamentos.

Quase tudo no velho mundo hierárquico girava em torno de conteúdos. Mas


a grande descoberta que acompanhou a geração dos Highly Connected
Worlds foi que o comportamento das redes sociais não depende de
conteúdos. Sua fenomenologia é interativa. E todas as formas de interação
que foram descobertas pela nova ciência das redes revelaram a mesma
coisa: nada a ver com conteúdos. Clustering, swarming, cloning, crunching
– nenhuma dessas coisas tem a ver com conteúdo. Não têm a ver com

296
ensinamento (replicação) e sim com aprendizagem (criação). Aprendizagem
coletiva que reflete o metabolismo pelo qual os mundos sociais criam-se a si
mesmos à medida que se desenvolvem = fluzz.

Quando, a partir dessas descobertas, começamos a quebrar as cadeias,


deixando as forças do aglomeramento atuarem, o enxamento agir, a
imitação exercer o seu papel e os mundos se contrairem, os novos mundos
altamente conectados começaram a vir à luz.

297
Clustering

Deixando as forças do aglomeramento atuarem

A primeira grande descoberta: tudo que interage clusteriza,


independentemente do conteúdo, em função dos graus de distribuição e
conectividade (ou interatividade) da rede social. Há muito já se pode
mostrar teoricamente que quanto maior o grau de distribuição de uma rede
social, mais provável será que duas pessoas que você conheça também se
conheçam (essa é a raiz do fenômeno chamado clustering).

Em geral não se conhece todas as variáveis que estão presentes em cada


processo particular, mas é observável que se formam clusters
(aglomerados) em quaisquer redes, não apenas nas redes sociais. Insetos
se aglomeram, doenças se aglomeram (e não apenas as contagiosas),
empreendedores de um mesmo ramo de negócios tendem a se aglomerar
(não é por acaso que encontramos lojas de tecidos, roupas, luminárias ou
oficinas mecânicas concentradas em uma mesma rua ou quadra). E isso não
depende, como ocorre em certas cidades planejadas (como Brasília) da
localização forçada ou top down de setores (setor hospitalar, setor
hoteleiro, setor automotivo etc.). É assim que, como mostrou Steven
Johnson (2001), os vendedores de seda se clusterizam, há séculos, em
determinada localidade de Florença. E voltam sempre para o mesmo lugar
após as tão seguidas quanto inúteis tentativas de deslocá-los para outras
regiões da cidade (5).

Os planejadores normativos – como construtores de pirâmides que são –


não têm paciência para esperar a clusterização. Na verdade, como seu
objetivo é construir organizações hierárquicas, eles não podem esperar a
clusterização. A hierarquia exige desatalhamento, quer dizer, a supressão
de atalhos entre clusters: só alguns caminhos podem ser válidos (e, por
isso, só alguns são validados). Isso dificilmente ocorreria se a clusterização
brotasse da dinâmica da rede. Essa é a razão pela qual os planejadores
urbanos nunca construiriam uma Florença, tendo que se contentar em erigir
suas capitais para algum deus hierárquico (como fez Amenófis IV para o
deus Aton) ou arquitetar suas cidades-sede para o Estado, não para a
sociedade (como aquela Brasília que foi inaugurada antes da convivência
social dos brasilenses; depois estes últimos começaram a conformar a
verdadeira Brasília modificando os estranhos caminhos traçados pelos
planejadores). A diferença entre o zigurate de Uruk e o assentamento

298
temporário do festival Burning Man revela quase tudo: poucos caminhos x
múltiplos caminhos.

Ao articular uma organização em rede distribuída não é necessário pré-


determinar quais serão os departamentos, aquelas caixinhas desenhadas
nos organogramas. Estando claro, para os interagentes, qual é o propósito
da iniciativa, basta deixar as forças do aglomeramento atuarem. Em pouco
tempo (a depender da interatividade da rede), surgirão clusters agregando
pessoas que se dedicarão às funções necessárias à realização daquele
propósito: alguns se juntarão para cuidar da criação, outros para cuidar dos
relacionamentos com os stakeholders, outros, ainda, da produção ou do
delivery etc.

Até certos eventos planejados autonomamente por pessoas diferentes (que


não se conhecem entre si) se aglomeram e isso é revelador de um
metabolismo da rede, de uma dinâmica invisível que ocorre no espaço-
tempo dos fluxos.

Nada a ver com conteúdo. A partir do clustering outros fenômenos


supreendentes ocorrem em uma rede, como o swarming.

299
Swarming

Deixando o enxameamento agir

A segunda grande descoberta: tudo que interage pode enxamear. Swaming


(ou swarm behavior) e suas variantes como herding e shoaling, não
acontecem somente com insetos, formigas, abelhas, pássaros, quadrúpedes
e peixes. Em termos genéricos esses movimentos coletivos (também
chamados de flocking) ocorrem quando um grande número de entidades
self-propelled interagem. Algum tipo de inteligência coletiva (swarm
intelligence) está sempre envolvida nestes movimentos. Já se sabe que isso
também ocorre com humanos, quando multidões se aglomeram (clustering)
e “evoluem” sincronizadamente sem qualquer condução exercida por algum
líder; ou quando muitas pessoas enxameiam e provocam grandes
mobilizações sem convocação ou coordenação centralizada, a partir de
estímulos que se propagam P2P, por contágio viral.

E não ocorre apenas como uma forma de conflito, como ficamos


acostumados a pensar depois que Arquilla e Ronsfeld (2000) produziram
para a Rand Corporation seu famoso paper “Swarming and the future of
conflict” (6). Um exemplo conhecido dos efeitos surpreendentes do
swaming – no caso, civil – foi a reação da sociedade espanhola aos
atentados terroristas cometidos pela Al-Qaida em 11 de Março de 2004 (7).
Escrevendo sobre isso, ainda preso as visões do swarming como netwar,
David de Ugarte (2007), em O poder das redes, acerta porém quando diz:

“Como organizar, pois, ações em um mundo de redes distribuídas?


Como se chega a um swarming civil? Em primeiro lugar, renunciando
a organizar. Os movimentos surgem por auto-agregação espontânea,
de tal forma que planificar o que se vai fazer, quem e quando o fará,
não tem nenhum sentido, porque não saberemos o quê, até que o
quem tenha atuado” (8).

O swarming (enxameamento) é uma forma de interação. Deixar o


enxameamento agir significa ‘renunciar a organizar’, quer dizer, a disciplinar
a interação.

O fenômeno acontece com mais rapidez em função direta dos graus de


conectividade e de distribuição da rede. Em mundos altamente conectados
tais movimentos tendem a irromper com mais frequência. E é por isso que
eles surgem por emergência, não supervêm a partir de qualquer instância

300
centralizada. Assim, do que se trata é de deixar mesmo. As tentativas de
provocar artificialmente swarmings, instrumentalizando o processo para
derrotar um adversário, destruir um inimigo, disputar uma posição, vencer
uma eleição ou vender mais produtos batendo a concorrência, em geral não
têm dado certo. Todas elas acabam, contraditoriamente, fazendo aquilo que
negam: tentando organizar a auto-organização.

E ainda bem que tais tentativas fracassam: do contrário viveríamos em


mundos altamente centralizados por aqueles que possuíssem o segredo de
como desencadear swarmings. De posse desse conhecimento (que logo
seria trancado), um partido poderia eleger seus candidatos (e mantê-los no
poder indefinidamente) ou uma empresa poderia reinar sozinha no seu
ramo de negócio.

Nada a ver com conteúdo. Na sua intimidade, o processo de swarming


pressupõe clustering e se propaga por meio de cloning.

301
Cloning

Deixando a imitação exercer seu papel

A terceira grande descoberta: a imitação também é uma das formas da


interação e, desse ponto de vista, a imitação é uma clonagem. Poucos
perceberam isso. Como pessoas – gholas sociais – todos somos clones, na
medida em que somos culturalmente formados como réplicas variantes
(embora únicas) de configurações das redes sociais onde estamos
emaranhados.

O termo clone deriva da palavra grega klónos, usada para designar "tronco”
ou “ramo", referindo-se ao processo pelo qual uma nova planta pode ser
criada a partir de um galho. Mas é isso mesmo. A nova planta imita a velha.
A vida imita a vida. A convivência imita a convivência. A pessoa imita o
social.

Sem imitação não poderia haver ordem emergente nas sociedades humanas
ou em qualquer coletivo de seres capazes de interagir. Sem imitação os
cupins não conseguiriam construir seus cupinzeiros. Sem imitação, os
pássaros não voariam em bando, configurando formas geométricas tão
surpreeendentes e fazendo aquelas evoluções fantásticas.

A imitação não é algo ruim, como começamos a pensar depois que surgiram
os sistemas de trancamento do conhecimento (como, por exemplo, as leis
de patentes e o direito autoral). A preocupação deslocou-se então da
criação para a fraude, passando a ser um caso de polícia.

Mas não há aprendizagem sem imitação. Learn from your neighbours é a


diretiva geral de auto-organização dos sistemas complexos e, portanto, de
qualquer sistema capaz de aprender.

Quando imitamos, introduzimos variações. Nunca reproduzimos nada


fielmente (isso seria impossível em qualquer mundo em que as condições
são mutáveis e os imitadores são diferentes dos imitados). A propagação
dessas variações se distribui de uma maneira estranha.

Você não imita uma-a-um ou um de cada vez. O que você imitou (e variou)
vai ser imitado por outro (e ser também variado). Além disso, você imita
vários ao mesmo tempo, combina e recombina modelos a ser imitados e
essas recombinações também se propagam gerando novos padrões de

302
adaptação emergentes. Isso é o que chamamos aqui de cloning. Foi assim
que nasceu a vida (o simbionte natural). É assim que está nascendo a
convivência social “orgânica” (ou o simbionte social) nos Highly Connected
Worlds.

Ao contrário do que se acreditou por tanto tempo, não há inovação sem


imitação. E quanto mais imitação, mais inovação. Imitação não é
propriamente repetição, reprodução assistida. Imitação é uma função dos
emaranhados em que as coisas – inclusive os humanos – sempre estão.

Na verdade, nossos esforços educativos, ao querermos preparar as pessoas


e orientá-las para que cumpram adequadamente uma função (em geral
uma função que queremos que elas cumpram), são, em grande parte,
tentativas de condicioná-las (ao que queremos que elas façam) e
administrá-las (para que elas façam o que queremos do jeito que
queremos). Se não estamos preocupados com comando-e-controle, tal
esforço é quase sempre inútil. Bastaria deixar que elas aprendessem.
Deixar-aprender é a solução-fluzz para a educação (que, como tal – como
‘a’ educação – é então abolida). E é também, sob certo ponto de vista, uma
definição de democracia (no sentido “forte” do conceito).

Como naquelas experiências promovidas por Sugatra Mitra com crianças de


localidades pobres da Índia, que nunca haviam visto um computador e que
aprenderam, elas mesmas, em grupo, não somente a usar a máquina e a
rede, mas aprenderam a aprender em rede por meio da máquina, é preciso
deixar as pessoas aprenderem na interação. Mitra não ensinava nada,
simplesmente entregava computadores conectados às crianças e dizia: “ –
Vejam aí o que vocês podem fazer, voltarei daqui a um mês”. Ao voltar
verificava que elas haviam feito prodígios. Nessas experiências a
aprendizagem fundamental era sempre a da interação (no grupo dos
aprendentes) (9). Mas isso vale para qualquer aprendizagem. A imitação
não deve ser apenas tolerada senão estimulada (e se os chamados
educadores soubessem disso incentivariam a cola nas suas provas ao invés
de montar sistemas para vigiar e punir os transgressores: argh!).

Quando tentamos orientar as pessoas sobre o quê – e como, e quando, e


onde – elas devem aprender, nós é que estamos, na verdade, tentando
replicar, reproduzir borgs: queremos seres que repetem. Quando deixamos
as pessoas imitarem umas as outras, não replicamos; pelo contrário,
ensejamos a formação de gholas sociais. Como seres humanos – frutos de
cloning – somos seres imitadores.

303
Nada a ver com conteúdo. Nos mundos altamente conectados o cloning
tende a auto-organizar boa parte das coisas que nos esforçamos por
organizar inventando complicados processos e métodos de gestão. Mesmo
porque tudo isso vira lixo na medida em que os mundos começam a se
contrair sob efeito de crunching.

304
Crunching

Deixando os mundos se contrairem

A quarta grande descoberta: small is powerful. Essa talvez seja a mais


surpreendente descoberta-fluzz de todos os tempos. Em outras palavras,
isso quer dizer que o social reinventa o poder. No lugar do poder de mandar
nos outros, surge o poder de encorajá-los (e encorajar-se): empowerment!

Sim, como já foi dito aqui, fluzz é empowerfulness. Quando aumenta a


interatividade é porque os graus de conectividade e distribuição da rede
social aumentaram; ou, dizendo de outro modo, é porque os graus de
separação diminuiram: o mundo social se contraiu (crunch). Steven
Strogatz observou em 2008 que os graus de separação não estavam apenas
diminuindo: eles estavam despencando (10). De uma perspectiva-fluzz,
podemos afirmar que – sob o efeito desse amassamento (Small-World
Phenomenon) – somos nós que estamos despencando... no abismo!

Nada a ver com conteúdo. Tudo que interage tende a se emaranhar mais e
a se aproximar, diminuindo o tamanho social do mundo. Quanto menores
os graus de separação do emaranhado em você vive como pessoa, mais
empoderado por ele (por esse emaranhado) você será. Mais alternativas de
futuro terá à sua disposição. Mais parcerias e simbioses poderá fazer para
realizar qualquer coisa. Mais rico (de conexões) e mais poderoso (de
empoderamento) você será, porque terá mais recursos (meios) e mais
capacidade (potencialidade) de alterar disposições no espaço-tempo dos
fluxos.

Novamente é o caso de dizer (pela terceira vez neste livro): bem, isso muda
tudo.

Nos Highly Connected Worlds a contração (crunching) é acelerada. Em


pouco tempo sua timeline fica tão caudalosa que você é arrastado pela
correnteza. Não adianta mais erigir muros para tentar se proteger da
interação: como se sabe, a enxurrada, quando vem, leva tudo. Então você
vai ter que aprender a viver em fluxo. Isso muda tudo porque muda a
natureza do que chamávamos de normas e instituições, processos e rotinas,
planos e agendas e, inclusive, propriedades (incluindo propriedades
imobiliárias, como nossas casas – nossos refúgios contra as intempéries e
nosso espaço privado, separado dos outros e protegido da interação com o
outro-imprevisível). Uma vida em fluxo é uma vida nômade.

305
No passado temia-se que isso nos colocasse na dependência de dispositivos
interativos móveis – e-readers e tablets – mochilas e naves. Quá! Tudo isso
já é passado. Os dispositivos separados do corpo vão sendo substituídos por
implantes conectores, as máquinas de ler livros e os computadores-
comprimidos vão virando objetos tão jurássicos como aqueles velhos
computadores-armários que rodavam fitas magnéticas e liam cartões
perfurados. As mochilas vão ficando cada vez menores na medida em que
não há muito para carregar (e carregar para onde?). As naves, entretanto,
permanecem, mas são outra coisa.

Em um mundo contraído você precisa mesmo é da nuvem. Não de se


conectar à alguma nuvem (criada por algum mainframe) para armazenar e
acessar seus arquivos (quer dizer, o passado). Agora você é a nuvem.
Agora você é a nave: como nas velhas catedrais góticas (pelo menos nas
intenções dos pedreiros-livres que as construíram), você viaja sem sair do
lugar (porque o lugar também passa a ser outra coisa). A nuvem é o
emaranhado que viaja pelos interworlds junto com você. E esse
emaranhado é o seu lugar. O seu lugar não é você (arrumando um jeito de
ficar prevenido) contra o outro: o seu lugar é o outro.

Deixe os mundos se contrairem para ver só o que acontece.

306
Conversando com a rede-mãe

Você só precisa construir interfaces

A quinta grande descoberta: é possível conversar com a rede-mãe e é


possível programá-la.

Se você é um netweaver, seu papel não é construir conteúdos, mas


interfaces para conversar com a rede-mãe. É ser um nômade, um viajante
dos interworlds. As interfaces são os interworlds.

Interworlds são os meios pelos quais o que foi separado pode se reconectar.
Todas as coisas sociais (esses emaranhados que chamamos de pessoas) se
reconectam quando são devolvidas à rede-mãe. Quando são livres para
fazer isso: amagi. Para tanto, porém, é necessário remover o que está
impedindo essa volta, não fazer discursos. Você não precisa convencer os
outros dessas coisas (o que é sempre sinal de que você não está realmente
convencido). Não precisa fazer proselitismo de uma nova visão de mundo,
de uma nova ideologia, de uma nova filosofia, de uma nova religião. As
pessoas já querem se comunicar com a rede-mãe, não é necessário induzi-
las, compeli-las, conduzi-las.

Dançar, brincar e jogar foram as formas de tentar conversar com a rede-


mãe que conseguiram sobreviver sob a civilização hierárquica.

Quando, por exemplo, você vê uma jovem querendo ser dançarina, cantora,
é fluzz que está ali naqueles desejos muitas vezes inexplicáveis. Ela não
quer fazer sucesso, se destacar dos semelhantes. Isso pode vir depois,
quando for capturada por uma organização hierárquica. No início ela quer
apenas vibrar no mesmo ritmo da intermitente criação, acompanhar a vida
nômade das coisas, respirar com elas, reconhecer e ser reconhecida por
outras pessoas capazes de se deixar empatizar...

A dança, a música... são movimentos-fluzz de sintonização. Depois vem


alguma fraternidade disciplinando tudo, ensinando você a ser dervixe. Em
algum lugar perdido da Ásia Central, entre o Cazaquistão, o Uzbequistão, o
Turcomenistão, o Arzebaijão, sabe-se lá, eles vão treiná-lo até que você
repita exatamente os mesmos movimentos sincronizados, execute as
mesmas evoluções com perfeição. Não é que não haja conhecimento ali
(deve haver, e muito). No entanto, não é mais de conhecimento que se
trata. Os pássaros e os peixes fazem isso, apenas aglomerando,

307
enxameando, imitando (clonando), enfim, interagindo com os semelhantes
em seus mundos pequenos (amassados). E a forma como eles expressam
suas interações – por flocking ou shoaling – revela o metabolismo do
simbionte natural: apenas deixando acontecer. Trata-se agora de fazer
alguma coisa correspondente em relação à segunda criação do mundo: o
simbionte social. Como? Não se sabe. Você vai ter que perguntar à rede-
mãe. Para conversar com ela, você só precisa construir interfaces. Ou
melhor: você – a núvem – só precisa ser interface.

A brincadeira e o jogo vão adquirindo outro status nos mundos altamente


conectados. Tudo vai virando jogo. Com a abolição do trabalho (repetitivo)
a atividade produtiva (inovadora) vai se exercendo como creative game e
vai materializando aquele sonho de Bob Black (1985) quando disse: “O que
eu gostaria realmente de ver acontecer é a transformação do trabalho em
jogo”. Social games vão substituindo os programas ditos sociais ou de
desenvolvimento. Ao contrário do que se pensou, social games não são
games virtuais coletivos – que pressupõem colaboração entre pessoas –
para serem jogados no mundo virtual, por meio de computadores ou outros
dispositivos interativos digitais. Social games são jogos instalados na rede
social, que "rodam" na própria rede social e que permitem programá-la
(ainda que possam ter um espelhamento no mundo virtual e ser operados,
em parte, por meio de computadores ou outros dispositivos interativos
digitais).

Sim, se você está disposto a ser um netweaver, você pode agora programar
na rede-mãe através da interface que construiu.

308
Pulando no abismo

Não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos quando colhidos por
fluzz

Este foi um livro para netweavers. Ele contém uma espécie de “linguagem
de máquina”. Se você aprender essa linguagem poderá programar na
própria rede-mãe. Mas... atenção: nessa plataforma você só pode
programar com sua vida.

Para tanto, é justo o contrário do que lhe disseram na sociedade


hierárquica. Do que se trata é de perder sua vida, não de preservá-la, de
administrá-la, de programá-la, pré-traçando um caminho e monitorando
seu progresso nesse caminho rumo ao sucesso. É claro que você, se quiser,
pode fazer isso. Mas depois não reclame que não conseguiu perder-se: e
perder-se é o único modo de encontrar-se, aquele poético “perder-se
também é caminho” de Clarice Lispector é o caminho-fluzz, quer dizer, o
caminho-não-caminho (11). Ou na síntese tão perfeita de Manoel de Barros
(2010): “Livre, livre é quem não tem rumo” (12). E depois não reclame que
não acontece nada de interessante em sua vida: o interessante é sempre o
inesperado, não o programado (e, como dizia Heráclito, “espere o
inesperado ou você não o encontrará”) (13).

Ter essa atitude-fluzz é algo assim como usar aquele “Pó de Flu” – da série
Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007) – para se transportar para todos
os lugares que estiverem ligados à Floo Network; ou seja: ligar a
imaginação que voa. Para se comprometer com aves, como escreveu um
daqueles poetas que sabem tudo de redes (sim, fluzz se revela aos poetas):
“Os adejos mais raros se escondem nos emaranhos” (14).

Nos emaranhos, como diz um bom lema (recentemente capturado pelos


publicitários), você é o que você compartilha, ao se deixar varrer pelo
sopro, ao ser permeável ao fluxo.

Se você está esperando algum momento especial para que isso aconteça na
sua vida, fique sabendo que tal momento não existe. Você não precisa
aguardar a abertura de uma janela de oportunidade. Você não precisa se
preparar. Você não precisa galgar os degraus de um processo iniciático,
percorrer uma trilha oculta, aguardando pacientemente que alguma
burocracia espiritual lhe reconheça ou lhe escolha. Se lhe oferecerem esta

309
via, agradeça penhorado e... dispense! Diga que você está ocupado no
momento com uma coisa mais importante: ser uma pessoa comum.

Ao contrário do que Morpheus diz para Neo (15) em The Matrix (1999) não
há uma última chance. Enquanto você respirar, a chance estará presente. E
não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos quando colhidos por
fluzz. Independe do que você acredita ou queira acreditar.

Tanto faz. Não acredite em Morpheus, não acredite em nada – nem mesmo
no que você leu neste livro –, mas cante como Lennon & McCartney Let it
be e… pule no abismo. Seja um Meher Baba, assobie com Bobby McFerrin
Don’t worry, be happy e... salte na correnteza. Fale como Yoda: Não tente,
faça e... entregue-se ao nada (sim, ouça agora Morihei Ueshiba, fundador
do Aikido: “Aqueles que são possuídos pelo nada possuem tudo”). Ou, como
disse algures o Bhagwan Shree Rajneesh (mais conhecido como Osho),
“deixe de lado todas as ideologias, todas as filosofias, todas as religiões,
todos os sistemas de pensamento e penetre no vazio”.

E agora? Você vai tomar a pílula azul ou a vermelha? Ora, talvez você não
precise escolher nenhuma das duas. Já não se trata bem de fazer escolhas.
Você pode se atirar no rio e... simplesmente deixar.

Mas como? – Depois de ler isso tudo ainda não sei bem o que é fluzz. Pois
é... Você ainda não entendeu que tem que pular no abismo?

310
311
Quer gozemos, quer não gozemos,
passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente...
Fernando Pessoa (como Ricardo Reis, em 12/06/1914)

Ser como o rio que deflui


silencioso dentro da noite.
Manoel Bandeira no poema Rio, em Belo Belo (1948)

Não passamos de remoinhos


num rio de água sempre a correr.
Norbert Wiener em Cibernética e sociedade (1950)

Deixe-me ser o que sou,


o que sempre fui,
um rio que vai fluindo.
Mario Quintana em Água: os últimos textos (2001)

Eu me atirei num rio...


[e] simplesmente deixei.
Mojud, personagem da história sufi (s/d) “O homem cuja história era inexplicável”

312
Notas e referências

313
Coda

(*) Coda faz as vezes de apresentação deste livro. É uma espécie de “código-fonte”
de fluzz. Fluzz nasceu a partir de reflexões intermitentes do autor durante a última
década. Talvez tenha surgido do espanto com a palavra ‘Entidade’, tal como foi
usada – com maiúscula – por Jane Jacobs (1961), em Morte e Vida das Grandes
Cidades Americanas: “As inter-relações que permitem o funcionamento de um
distrito como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas. Consistem em
relacionamentos vivos entre pessoas...” Difícil saber agora, quase cinco anos após
sua morte, tudo que ela queria realmente dizer com ‘Entidade’ (com maiúscula) e
‘relacionamentos vivos’ (que é diferente de relacionamento entre vivos). De
qualquer modo, isso foi interpretado aqui como ‘viver a convivência’. Quando
vivemos nossa convivência (social) produzimos um novo tipo de vida (humana).
Essa é a idéia básica.

Tal como as reflexões que o originaram, este é um livro que se repete. Vários
capítulos repisam o que já foi dito em capítulos anteriores. Quem não está
preparado para a redundância, pode ficar incomodado com o estilo recursivo do
texto. Uma explicação para isso, baseada no tipo de interação chamado cloning,
está no Capítulo 0 – Tudo é fluzz. Mas essa explicação, provavelmente, não será
suficiente diante da cultura, ainda predominante, da escassez.

Muitos tópicos inseridos aqui – que desenvolvem os temas sumarizados em Coda –


foram escritos com outros propósitos, em épocas circunstâncias diversas. Alguns,
inclusive, já foram publicados como artigos autônomos ou fizeram parte de outros
livros do autor. Isso também é redundância.

Quando uma parte do material aqui contido foi escrita pela primeira vez, não havia
surgido a idéia de fluzz. Depois que tal idéia surgiu, surgiu também a impressão de
que tudo o que já estava escrito, havia sido escrito como prefiguração. Fluzz
apenas consumou.

A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início de 2010, com
Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor observava que Buzz não captava
adequadamente o fluxo da conversação, argumentando que era necessário criar
outro tipo de plataforma (i-based e não p-based). Marcelo Estraviz respondeu com
a interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a
idéia de Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida e recebeu outros
significados, que não têm muito a ver com o programa mal-sucedido do Google,
como se pode ver neste livro.

314
Tudo é fluzz | 0

(1) Sobre a palavra fluzz, ver nota anterior (Coda).

(2) BARROS, Manoel (1993). “Uma didática da invenção” in O Livro das Ignorãças.
Rio de Janeiro: Record, 2004.

(3) Cf. DIAZ, Jesus (2010). Humans can only walk in circles and we don’t know
why. Gizmodo:

<http://www.npr.org/blogs/krulwich/2010/11/03/131050832/a-mystery-why-can-
t-we-walk-straight>

(4) BARROS, Manoel (1993). “Mundo pequeno” in O Livro das Ignorãças: Ed. cit.

(5) KOESTLER, Arthur (1967). O fantasma da máquina. Rio de Janeiro: Zahar,


1969.

315
No “lado de dentro” do abismo | 1

(1) SCHOLEM, Gershom (1941). As grandes correntes da mística judaica. São


Paulo: Perspectiva, 1972.

(2) Cf. Histórias da Tradição Sufi. Rio de Janeiro: Edições Dervish, 1993.

O HOMEM CUJA HISTÓRIA ERA INEXPLICÁVEL

Era uma vez um homem chamado Mojud. Ele vivia numa cidade onde havia
conseguido um emprego como pequeno funcionário público, e tudo levava a
crer que terminaria seus dias como Inspetor de Pesos e Medidas.

Um dia, quando estava caminhando pelos jardins de uma antiga construção


próxima à sua casa, Khidr, o misterioso guia dos sufis, apareceu para ele,
vestido em um verde luminoso. Então Khidr disse:

- Homem de brilhantes perspectivas! Deixe seu trabalho e se encontre


comigo na margem do rio dentro de três dias.

E assim dizendo, desapareceu.

Excitado, Mojud procurou seu chefe e lhe disse que ia partir. Todos na
cidade logo souberam desse fato e comentaram:

- Pobre Mojud. Deve ter ficado louco.

Mas como havia muitos candidatos a seu posto logo se esqueceram dele.

No dia marcado Mojud encontrou-se com Khidr, que disse:

- Rasgue suas roupas e se jogue no rio. Talvez alguém o salve.

Mojud obedeceu, embora se perguntasse se não estaria louco.

Como ele sabia nadar, não se afogou, mas ficou boiando à deriva por um
longo trecho antes que um pescador o recolhesse em seu bote, dizendo:

- Homem insensato! A corrente aqui é forte. Que está tentando fazer?

- Na realidade eu não sei - respondeu Mojud.

- Você está louco - disse o pescador. - Mas o levarei à minha cabana de


junco próximo ao rio e veremos o que se pode fazer por você.

316
Quando o pescador descobriu que Mojud era bem instruído, passou a
aprender com ele a ler e a escrever. Em troca Mojud recebeu comida e
ajudou o pescador em seu trabalho.

Alguns meses depois Khidr reapareceu, desta vez junto à cama de Mojud, e
disse:

- Levante-se e deixe o pescador. Será provido do necessário.

Vestido como pescador, Mojud imediatamente deixou a cabana e


perambulou sem rumo até encontrar uma estrada. Ao romper da aurora viu
um granjeiro montado num burro.

- Procura trabalho? - perguntou o granjeiro. - Estou precisando de um


homem que me ajude a trazer algumas compras.

Mojud o acompanhou. Trabalhou para o granjeiro durante quase dois anos,


quando aprendeu muito sobre agricultura, mas pouco sobre outras coisas.

Uma tarde, quando estava ensacando lã, Khidr fez nova aparição e disse:

- Deixe esse trabalho, dirija-se à cidade de Mosul e empregue as suas


economias para tornar-se mercador de peles.

Mojud obedeceu.

Em Mosul tornou-se conhecido como mercador de peles, sem voltar a ver


Khidr durante os três anos em que exerceu seu novo ofício. Tinha reunido
uma considerável quantia e estava pensando em comprar uma casa quando
Khidr lhe apareceu e disse:

- Dê-me seu dinheiro, afaste-se desta cidade rumo à distante Samarkanda e


lá passe a trabalhar para um merceeiro.

Foi o que Mojud fez.

Logo começou a demonstrar sinais incontestáveis de iluminação. Curava os


enfermos e servia a seu próximo tanto no armazém como nas horas de
lazer. Seu conhecimento dos mistérios da vida se tornou cada vez mais
profundo.

Sacerdotes, filósofos e outros o visitavam e indagavam:

- Com quem você estudou?

- É difícil dizer - respondia Mojud.

Seus discípulos perguntavam:

317
- Como iniciou sua carreira?

- Como um pequeno funcionário público - respondia.

- E você deixou seu emprego para dedicar-se à automortificação?

- Não. Simplesmente o deixei.

Eles não podiam compreendê-lo.


Pessoas o procuravam para escrever a história de sua vida.

- O que você foi, em sua vida? - perguntavam.

- Eu me atirei num rio, me tornei pescador e, no meio de uma noite,


abandonei uma cabana de junco. Depois disso me converti em ajudante de
um granjeiro. Enquanto estava ensacando lã, mudei de idéia e fui para
Mosul, onde me tornei vendedor de peles. Lá economizei algum dinheiro,
mas o dei. Caminhei para Samarkanda, onde trabalhei para um merceeiro. E
aqui estou agora.

- Mas esse comportamento inexplicável não esclarece de modo algum seus


estranhos dons e maravilhosos exemplos - diziam seus biógrafos.

- Assim é - dizia Mojud.

Então os biógrafos teceram uma história maravilhosa e excitante em torno


da figura de Mojud, porque todos os santos devem ter suas histórias, e a
história deve estar de acordo com a curiosidade do ouvinte, não com as
realidades da vida.

E a ninguém é permitido falar de Khidr diretamente. É por isso que esta


história não é verídica. É a representação de uma vida. A vida real de um
dos maiores santos sufis.

(3) GOETHE, Johann Wolfgang von (1811). Memórias: Poesia e Verdade. Brasília:
Hucitec, 1986.

(4) BANDEIRA, Manoel (1948). O rio (Belo Belo) in Bandeira: Antologia Poética. São
Paulo: José Olympio, 1954.

(5) MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984). A Árvore do Conhecimento.


Campinas: Psy II, 1995.

(6) GOETHE, Johann Wolfgang von (1811): Op. cit.

(7) BARAN, Paul (1964). “On distributed communications: I. Introduction to


distributed communications networks” (Memorandum RM-3420-PR August 1964).
Santa Monica: The Rand Corporation, 1964.

318
(8) ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

(9) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política?


(Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

(10) BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-1990). TAZ. São Paulo: Coletivo
Sabotagem: Contra-Cultura, s/d.

(11) MATURANA, Humberto (1993). La democracia es uma obra de arte. Bogotá:


Cooperativa Editorial Magistério, 1993.

(12) McLuhan em uma palestra pública – intitulada “Viver à velocidade da luz” – em


25 de fevereiro de 1974, na Universidade do Sul da Flórida, em Tampa, explicando
o que entendia por seu famoso aforismo “o meio é a mensagem”: “Significa um
ambiente de serviços criado por uma inovação, e o ambiente de serviços é o que
muda as pessoas. É o ambiente que muda as pessoas, e não a tecnologia. (Mc
Luhan por McLuhan, de David Staines e Stephanie McLuhan (2003). São Paulo:
Ediouro, 2005. Título original: Understanding me: lectures and interviews.
<http://trick.ly/4ra>

(13) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

(14) COLEMAN, James (1988). “Social Capital in the creation of Human Capital”,
American Journal of Sociology, Supplement 94, 1998.

(15) Vf. Swarming civil espanhol in UGARTE, David (2004). 11M: Redes para ganar
una guerra. Barcelona: Icaria, 2006.

(16) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Redes são ambientes de interação, não de
participação. Slideshare [4.425 views em 22/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/redes-so-ambientes-de-interao-no-
de-participao>

(17) Cf. FRANCO, Augusto (2009). A lógica da abundância. Slideshare [2.171 views
em 22/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia>

(18) Cf. WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de seres
humanos. São Paulo: Cultrix, 1993.

(19) MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984): Op. cit.

(19) GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma


sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

319
(21) GLADWELL, Malcolm (2008). Fora de série (Outliers). Rio de Janeiro:
Sextante, 2008.

(22) Cf. UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008.

(23) HERBERT, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.

(24) GORDON, Deborah (1999): Op. cit.

(25) BUCHANAN, Marc (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010.

(26) BUARQUE, Chico (1971). “Construção” in Construção (Álbum LP). Phonogram-


Philips, 1971.

(27) Cf. Os ‘me’ in Nota (6) ao Capítulo 8 (infra).

(28) WIENER, Norbert (1950): Op. cit.

(29) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1.890
views em 22/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2a-
versao>

(30) BRAFMAN, Ori e BECKSTROM, Rod (2006): Quem está no comando? A


estratégia da estrela-do-mar e da aranha: o poder das organizações sem líderes.
Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2007.

(30) FRANCO, Augusto (2010): Desobedeça. Slideshare [5.157 views em


22/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/desobedea>

320
Inumeráveis interworlds| 2

(1) Cf. LORCA, Frederico Garcia (1924). “Canción Tonta” in Canciones (Obras
Completas I). Madrid: Aguilar, 1978.

(2) BARROS, Manoel (1993). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.

(3) LÉVY, Pierre (1998). “Uma ramada de neurônios” in Folha de São Paulo:
15/11/1998. Cf. ainda Caderno Mais da Folha de S. Paulo: 15/11/2002 (p. 5-3). O
texto está disponível em:

<http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/uma-ramada-de-neuronios>

(4) Cf. FRANCO, Augusto (1998). O Complexo Darth Vader. Slideshare [469 views
em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-complexo-darth-vader>

321
Pessoa já é rede | 3

(1) HERBERT, Frank (1976). Os filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.

(2) CASTELLS, Manoel (2001). A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os


negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

(3) Trata-se de uma tradução forçada do provérbio “Viam aut aut faciam inveniam”
cuja localização não foi possível determinar. Cf. a bibliografia de SENECA, Lucius
Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65) em:

<http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>

322
Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos | 4

(1) SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65). Cf. Wikiquote:

<http://pt.wikiquote.org/wiki/S%C3%AAneca>

Não foi possível determinar a localização desta citação. Cf. a bibliografia de


SENECA: <http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>

(2) KAVÁFIS, Konstantinos (1911). Ithaca. Kaváfis não publicou nenhum livro em
vida. Estão disponíveis online as traduções de José Paulo Paes e Haroldo de
Campos em:

<http://www.org2.com.br/kavafis.htm>

(3) KAVÁFIS: Op. cit.

(4) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James (2009): Connected: o poder das


conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

(5) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

(6) HOBBES: Op. cit.

(7) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James: Op. cit.

(8) MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion years of
microbial evolution. Los Angeles: University of California Press, 1997.

(9) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1893
views em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2a-
versao>

(10) ROBINSON, Walter (2008). “Morte e renascimento de uma mente vulcana” in


EBERL, Jason & DECKER, Kevin (2008). Star Treck e a filosofia: a ira de Kant. São
Paulo: Madras, 2010.

(11) O sétimo sentido seria “o senso de unicidade com Tudo, isto é, Universo, a
força criativa, ou o que alguns humanos poderiam chamar de Deus. Vulcanos não
vêem, contudo, isso como uma crença, seja religiosa ou filosófica. Eles tratam isso
como um simples fato que insistem não ser mais incomum ou difícil de entender do
que a habilidade de ouvir ou ver” [como escreveu o criador da série Star Trek,
Gene Roddenberry (1979)]. Vulcanos chamam essa filosofia de “Nome”, querendo

323
dizer “uma combinação de uma diversidade de coisas para fazer com que a
existência valha a pena” (Episódio “Por trás da cortina”: The Original Series)”. Cf.
RODDENBERRY, Gene (1979). The Motion Picture. New York: Pocket Books, 1979.

(12) Em Os Persas, Ésquilo descreve os reveses de Xerxes, filho de Dario. Já morto


na ocasião, Dario vai então aparecer na peça como uma sombra para advertir aos
persas que jamais movam novamente uma guerra aos gregos. Depois de dar adeus
aos anciãos e de recomendar que, mesmo “em meio a desgraças, alegrem-se na
fruição do mundo... a Sombra de Dario esfuma-se no túmulo”.

(13) CAMPBELL, Joseph (1988). O poder do mito (entrevistas concedidas a Bill


Moyers: 1985-1986). São Paulo: Palas Athena, 1990.

324
Hifas por toda parte | 5

(1) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorion (1998). O que é vida? Rio de Janeiro: Zahar,
2002.

(2) A quase totalidade dos procedimentos e mecanismos de obstrução de fluxos,


estabelecidos nas organizações a pretexto de segurança, não se justifica (em mais
de 90% dos casos, não há nada de realmente decisivo, estratégico ou sigiloso que
deva ser protegido ou não-compartilhado, fechado e trancado em vez de
permanecer aberto e disponível). Isso vale para os protocolos de segurança
impostos pelas áreas chamadas de “tecnologia da informação”. Não há qualquer
ganho em proibir o acesso dos funcionários de uma organização ao Youtube ou ao
Messenger, ao Slideshare ou ao 4shared, ao Facebook ou ao Twitter. Não há
nenhuma razão para impor programas de e-mail proprietários, lentos, pesados e
com limitações enervantes de poucos megabytes no lugar de adotar correios
eletrônicos web mais eficazes, rápidos, com alta capacidade e, além de tudo,
gratuitos (como o gmail ou o ymail). Não há nenhum motivo para editar hierarquias
de permissões diferenciais e preferências de acesso a conteúdos que, se fossem
realmente secretos (como listas de espiões ou processos de fabricação de artefatos
de destruição em massa), não poderiam mesmo estar em rede. E não há explicação
plausível para a manutenção de intranets, sobretudo em uma época em que já
existe a Internet.

(3) Por exemplo, cabeças hidrofílicas com caudas hidrofóbicas em conjugação com
fosfolípidos, aglomerados de proteínas globulares, glicoproteínas, glicolipídios,
colesterol, proteínas extrínsecas etc.

(4) Cf. FRANCO, Augusto (2009). A lógica da abundância. Slideshare [2.172 views
em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia>

(5) WARHOL, Andi (1968). Cf. “15 minutes of fame” em

<http://en.wikipedia.org/wiki/15_minutes_of_fame>

325
O terceiro milênio já começou? | 6

(1) MCLUHAN, Marshall (1979). “O homem e os meios de comunicação” in


McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003). McLuhan por McLuhan
(Understandig me). Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

(2) Cf. UGARTE, David (2010). Los futuros que vienen. Madrid: Grupo Cooperativo
de las Índias, 2010. “Descomposición es descomposición también, y sobre todo, de
los sujetos con los que se componía la narración histórica: las clases, las naciones,
los grupos de interés, el marco de mercado… con ellos muere ese futuro que se
pretendía el futuro y que es precisamente aquel por el que los universalistas se
afanan. Ese futuro universal es hoy un enfermo crónico en fase terminal. Nacido en
el siglo XVIII, tuvo su crisis adolescente con el Romanticismo, su madurez con el
progresismo decimonónico y su primera crisis grave con los genocidios cometidos
por el estado alemán durante la Segunda Guerra Mundial”.

(3) RUSSO, Renato (1986). “Índios” in Dois: Emi, 1986.

(4) WOLFE, Tom (2003). “Introdução” in McLUHAN, Stephanie & STAINES, David
(2003): Op. cit.

(5) MCLUHAN, Marshall apud WOLFE: Ed. cit.

(6) Idem.

(7) CHARDIN, Teilhard (1955). O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1989.

(8) CHARDIN: Op. cit.

(9) TAPSCOTT, Don e WILLIAMS, Anthony (2006). Wikinomics: como a colaboração


pode mudar o seu negócio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

(10) FRANCO, Augusto (2003). A revolução do local: globalização, glocalização,


localização. Brasília/São Paulo: AED/Cultura, 2003.

(11) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de rede:
sustentabilidade empresarial e responsabilidade corporativa no século 21. Curitiba:
Escola-de-Redes, 2008.

(12) Comunicação pessoal ao autor feita por alunos do curso Biologia-Cultural


ministrado pela Escola Matriztica de Santiago em 2010.

(13) FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de rede: ed.
cit.

326
Alterando a estrutura das sociosferas | 7

(1) BARROS, Manoel (1986). Livro sobre Nada in Poesia Completa. São Paulo:
Leya, 2010.

(2) O termo ‘aprendente’, conquanto seja uma tentativa de escapar de categorias


mais problemáticas como docente/discente, educando/educador, mestre/aprendiz,
que introduzem relações dicotômicas e não expressam adequadamente relações
sociais envolvidas em aprendizagem, também não é muito adequado. São sempre
pessoas aprendendo na interação. Essas observações forem feitas por Nilton Lessa,
à quarta versão do texto “Buscadores e Polinizadores”. Cf. FRANCO, Augusto
(2010). Buscadores & Polinizadores. Slideshare [2.865 views em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/buscadores-polinizadores-4a-verso>

(3) Cf. Observações de Nilton Lessa à FRANCO, Augusto (2010). Buscadores &
Polinizadores: ed. cit.

(4) Cf. FRANCO, Augusto (2001). Uma teoria da cooperação baseada em Maturana.
Aminoácidos 4. Brasília: AED, 2002.

(5) Cf. e. g., a Biblioteca do Conectivismo da Escola-de-Redes:

<http://escoladeredes.ning.com/group/bibliotecadoconectivismo>

(6) ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985. (Na
verdade o título dessa tradução, para ser fiel ao original, deveria ser
“Desescolarizando a sociedade”)

(7) Este parágrafo e varios dos seguintes da mesma seção (“Mata a escola = matar
o Buda”) foram elaborados originalmente durante uma polêmica conversação,
ocorrida entre 27 de abril e 24 de maio de 2010, na Escola-de-Redes, com Ignácio
Munõz Cristi e outros interlocutores sobre “redes sociais entendidas como redes
fechadas de conversações no espaço social”. Para conhecer a íntegra da discussão
acesse:

<http://escoladeredes.ning.com/group/biologiacultural/forum/topics/redes-sociais-
entendidas-como>

(8) RAYMOND, Eric (2001). How To Become A Hacker. Disponível em:

<http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html>

(9) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um instante de


cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>

327
(10) Cf. as conversações do grupo da Escola-de-Redes intitulado “A desistência
como ativismo”:

<http://escoladeredes.ning.com/group/desista>

(11) MATURANA, Humberto (1993). Amar e brincar: fundamentos esquecido do


humano. São Paulo: Palas Athena, 2004.

(12) Idem.

(13) Idem-idem.

(14) Idem-ibidem.

(15) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for cultural


evolution. Ma: Lindisfarne books, 2001.

(16) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Modelos mentais são sociais. Slideshare [1.022
views em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/modelos-mentais-so-sociais>

(17) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política?


(Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

(18) Cf. WEBER, Renée (1986). Diálogos com cientistas e sábios. São Paulo:
Cultrix, 1991 [cf. a entrevista com Ilya Prigogine no capítulo intitulado “O
reencantamento da natureza”].

(19) BLOCH, Ernst (1968). El ateísmo en el cristianismo: la religión del éxodo y del
Reino. Madrid: Taurus, 1983.

(20) Idem.

(21) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.

(22) BEY, Hakim (1985-1991). BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-1990).
TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Coletivo Sabotagem: Contra-
Cultura, s/d.

(23) BEY, Hakim (1985). CAOS: Terrorismo poético e outros crimes exemplares.
São Paulo: Conrad, 2003.

(24) GIBSON, William (1984). Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008.

328
(25) STERLING, Bruce (1988). Piratas de dados [Péssima tradução do título Islands
in the Net]. São Paulo: Aleph, 1990.

(26) Cf. a entrevista concedida em 1984 por Ilya Prigogine à Renée Weber em
WEBER: Op.cit.

(27) LÉVY, Pierre (2000). O Fogo Liberador. São Paulo: Iluminuras, 2001.

(28) NOVALIS (George Friedrich Philipp, Freyherr (Barão) von Hardenberg) (1798).
Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogos. São Paulo: Iluminuras, 2011.

(29) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.

(30) BOHM, David (1996). Diálogo: comunicação e redes de convivência. São


Paulo: Palas Athena, 2005.

(31) Para uma explicação abrangente dessa imaginária linhagem-fluzz da “tradição”


democrática confira FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa
autodidático de aprendizagem. Slideshare [1022 views em 29/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/democracia-um-programa-
autodidatico-de-aprendizagem>

(32) Cf. DEWEY, John (1927). O público e seus problemas in (excertos) FRANCO,
Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa:
escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: CMDC / EdiPUCRS, 2008.

(33) Cf. FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa autodidático de


aprendizagem. Op. cit. Cf. também MATURANA, Humberto (1993). La democracia
es una obra de arte: Ed. cit.

(34) Chama-se de formule inversa de Clausewitz-Lenin (com base nas anotações


marginais de leitura do segundo ao tratado Da Guerra, do primeiro) à inversão do
postulado clausewitziano “a guerra é uma continuação da política por outros
meios”. Como, para Lenin, a luta de classes era uma espécie de guerra
permanentemente presente, então ele avaliou que se poderia afirmar que, inclusive
em tempos de paz, “a política é uma continuação da guerra por outros meios”.

(35) De um ponto de vista político, não há problema com a competição entre


grupos privados quando seus objetivos são privados. O problema surge quando se
quer gerar um sentido público por meio da competição entre grupos privados
(como os partidos). Foi assim que, decalcando a racionalidade do mercado, os
modernos cometeram uma confusão brutal entre tipos diferentes de agenciamento
que levou à irresponsável identificação entre democracia e capitalismo (e tão
perdidos ficaram em sua confusão que agora não sabem nem explicar direito a
onda de capitalismo autoritário que nos atinge nos últimos anos, sobretudo a partir
da China).

329
Predominou amplamente uma desinteligência sobre a questão do público nos
últimos séculos do mundo único. As pessoas achavam que público era o resultado
de uma declaração legal, legitimada por um pacto dito social, mas promovido e
garantido pelo Estado. Bastava que a lei decretasse que uma coisa era pública e
pronto! Estava feita a mágica.

Não viam que o público se forma, sim, a partir de inputs privados porém somente
quando esses inputs interagem coletivamente formando configurações complexas
que brotam por emergência. E não podiam mesmo ver isso porquanto as categorias
sociológicas e políticas que utilizavam eram impotentes para analisar a intimidade
do que chamavam de sociedade, ou seja, para captar a fenomenologia da rede
social.

Sem buscar novos constructs para entender uma realidade diferente daquela em
que as velhas concepções, que reificavam essa abstração chamada indivíduo, foram
forjadas, não há saída. Dificilmente se poderá entender a emergência e outros
processos acompanhantes da complexidade social.

Agora percebemos a necessidade a lançar mão de outros conceitos para tentar


descrever a formação do público. Hoje podemos dizer que a diversidade das
iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E que a partir
de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas privadas acaba
gerando um tipo de regulação emergente. Quando milhares de micromotivos
diferentes entram em interação, é possível se constituir um sentido coletivo comum
que não está mais vinculado aos motivos originais dos agentes privados que
contribuíram para a sua constituição. Aqui começamos a roçar o problema!

No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é muito


pequeno. O que indica que o público propriamente dito só pode, portanto, se
constituir por emergência. Pode até haver, provisória e intencionalmente, um pacto
que reconheça alguns processos de constituição do público, assim como há, por
exemplo, um pacto que reconhece como receita pública o resultado do montante de
impostos pagos por agentes privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica
que transforma nossos recursos privados em recursos públicos quando pagamos
impostos: há um assentimento social, que reconhece como válida a operação
política pela qual esses recursos privados, pagos pelos chamados contribuintes,
quando arrecadados compulsoriamente pelo Estado, passam a ser considerados
como recursos públicos.

No entanto, há limites impostos pela racionalidade do tipo de agenciamento que


estamos considerando. Querer transformar o interesse privado de um grupo em
interesse público é semelhante a querer fazer uma mágica mesmo. Seria, mal
comparando, como querer chamar de receita pública os impostos pagos apenas por
uma dúzia de contribuintes.

Entenda-se que não é um problema de quantidade. É uma questão de


complexidade, em que, evidentemente, a quantidade é uma variável relevante,
mas não a única. Se somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos, dificilmente

330
haveria base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o direito de
taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto privatizante e
os tais contribuintes seriam considerados (e se comportariam como) donos do
Estado (que, então, não poderia mais ser considerado um ente público).

Por outro lado, há uma razão eloqüente para afirmar que a quantidade não é a
única variável nesse processo. Pois também não fica assegurada a formação do
público pela simples soma – ou a totalização ex post e inorgânica – de imputs
privados, mesmo que as parcelas dessa soma expressem quantitativamente a
opinião da maioria de uma população.

Mas é forçoso reconhecer que tudo ou quase tudo que se diz sobre o público que
não leva em conta esse processo emergente pelo qual o público se constitui a partir
da complexidade social não é capaz de explicar a natureza do público, nem de
compreender a fenomenologia a ele associada.

(36) É por isso que têm se revelado vãs todas as tentativas de fundar um novo
partido para reformar a política, a partir de novas idéias e, supostamente, da
inauguração de novas práticas. Em pouquíssimo tempo esse novo partido será
capturado pelo oligopólio dos velhos partidos e se comportará como eles. Quando
não há má intenção (e tudo então não passa de pretexto para construir uma nova
caciquia ou para legalizar uma nova quadrilha para assaltar o público), parece
evidente que há falta de inteligência mesmo nos que vivem insistindo em percorrer
essa via.

(37) "Patriotism is the last refuge of a scoundrel" ("o patriotismo é o último refúgio
dos canalhas”). Cf. BOSWELL, James & CROKER, John (1791). The life of Samuel
Johnson, LL. D. New York: George Dearborn Publisher, 1833. Disponível em Google
Books:

<http://books.google.com/books?id=TmShu9cK3IUC&pg=PP1#v=onepage&q&f=fal
se>

(38) Cf. ALTHUSIUS, Johannes (1603). Política. Liberty Fund (2003). Rio de
Janeiro: Topbooks, s/d.

(39) DEWEY, John (1927). O público e seus problemas: Ed. cit.

(40) Dentre todos, talvez a língua continue sendo a obstrução mais efetiva à
interação entre diferentes povos, mas tudo indica que esse “muro” também está
com seus dias contados. Os avanços, verificados nos últimos anos, no
desenvolvimento de programas de tradução e a construção de sistemas
simultâneos de tradução de idiomas, compostos por softwares aplicativos,
suportados por hardwares e conectados a dispositivos de reconhecimento de voz
em computadores e aparelhos telefônicos, logo anulará essa desculpa da Babel
para o viver separado do diferente. Como observou Humberto Maturana, lembrado
por Carlos Boyle em um recente post no site da Escola-de-Redes, Babel não
fracassou em virtude das diferentes línguas que falavam seus construtores e sim

331
porque eles não se entendiam entre si (ou seja, o que faltou foi cooperação, de vez
que o linguagear pode se exercer mesmo entre duas pessoas que falam línguas
diferentes, que acabarão, de um modo ou de outro, se entendendo).

(41) A não ser quando a seleção brasileira de futebol joga com a da Argentina. Aí,
em uma caricatura degenerada de primitivos seres tribais, nos pintamos de verde-
amarelo, nos enrolamos na bandeira e gritamos irracionalmente a plenos pulmões
que o legítimo gol feito pelo genro de Maradona não valeu, pois que ele estava
impedido e acusamos de ladrão o juiz. E os argentinos fazem a mesma coisa. Sim,
é do jogo, pode-se dizer. Mas em geral esquece-se de perguntar: de que jogo (o
esporte competitivo como “uma guerra sem mortes” como bem o definiu George
Orwell)? De que vale esse tipo de polarização que passa por cima de qualquer
senso de urbanidade e justiça? E o que de bom poderá advir dessa patriotice?

(42) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for cultural


evolution. Ma: Lindisfarne books, 2001.

(43) Idem.

(44) SEN, Amartya (1999). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo:


Companhia das Letras, 1999.

(45) Cf. FREEDOM HOUSE (2011). Freedom in the World 2011: The authoritarian
challenge to democracy. Disponível em

<http://www.freedomhouse.org/images/File/fiw/FIW_2011_Booklet.pdf>

(46) Democracias plenas (full democracies) são apenas 26 países, correspondendo


a 12,3% da população mundial: Norway, Iceland, Denmark, Sweden, New Zealand,
Australia, Finland, Switzerland, Canada, Netherlands, Luxembourg, Ireland, Austria,
Germany, Malta, Czech Republic, US, Spain, UK, South Korea, Uruguay, Japan,
Belgium, Mauritius, Costa Rica, Portugal. Cf. The Economist Intelligence Unit
(2010). Democracy in retreat. New York: The Economist Group, 2010. Disponível
em <http://www.eiu.com>

(47) OHMAE, Kenichi (2005). O novo palco da economia global: desafios e


oportunidades em um mundo sem fronteiras. Porto Alegre: Bookman, 2006.

(48) CASTELLS, Manuel (1999). Para o Estado-rede: globalização econômica e


instituições políticas na era da informação” in BRESSER PEREIRA, L. C., WILHEIM,
J. e SOLA, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999.

(49) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a sociedade, o
desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado. Curitiba: Escola-de-
Redes, 2008.

332
(50) Cf. FULLER, Buckminster (1968). Manual de Operação da Espaçonave Terra.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1983 e MCLUHAN, Marshall (1974) in
McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003): Op. cit.

(51) THOMPSON: Op. cit.

(52) Um bom relato das causas da derrota dos Apaches pode ser encontrado no
livro de Ori Brafman e Rod Beckstrom (2006): The starfish and the spider (Quem
está no comando? A estratégia da estrela-do-mar e da aranha: o poder das
organizações sem líderes. Rio de Janeiro: Elsevier Campus, 2007), na passagem
intitulada A estratégia da centralização:

“A última vez que vimos os Apaches, eles estavam dominando o Sudoeste.


Os espanhóis tentaram em vão controlá-los, e os mexicanos, que vieram em
seguida, também não tiveram sorte. Quando os americanos conseguiram o
controle da região, também fracassaram. Na verdade, os Apaches
permaneceram como uma grande ameaça até o século XX. Mas depois a
maré mudou. Aí os americanos venceram. Quando Tom Nevins explicou isso,
ficamos de queixo caído ao descobrir como algo tão simples poderia ter um
efeito tão poderoso.

Nevins nos contou a história. "A verdade é que os Apaches representaram


uma ameaça até 1914. O exército ainda marcou presença na reserva White
Mountain até o início do século XX". Por que era tão difícil derrotar os
Apaches? Os Nant'ans [espécie de catalisadores da rede social apache]
apareceram, disse Nevins, e "as pessoas desejavam apoiar quem elas
acreditavam ser o líder mais eficaz, com base em suas próprias ações ou em
seu comportamento. E não tardaria a acontecer". Como surgiam cada vez
mais Nant'ans, os americanos finalmente "perceberam que precisavam
atacar os Apaches no nível mais básico para poder controlá-los. Essa foi a
política adotada pela primeira vez com o grupo Navajo - que também era
Apache, e aperfeiçoada com o grupo Western Apache".

Eis o que acabou com a sociedade Apache: os americanos deram gado aos
Nant'ans. Foi simples assim. Como os Nant'ans tinham recursos escassos -
as vacas -, seu poder passou de simbólico a material. Antes, os Nant'ans
lideraram pelo exemplo, mas agora eles poderiam recompensar e punir
membros da tribo oferecendo ou retirando esse recurso.

As vacas foram as responsáveis pela grande mudança. Como os Nant'ans


ganharam poder autoritário, eles começaram a brigar entre si por assentos
nos recém-criados conselhos tribais e começaram a ter um comportamento
cada vez mais parecido... [com os de presidentes de empresas] Membros da
tribo começaram a fazer lobby junto aos Nant'ans para obter mais recursos
e ficavam aborrecidos quando as alocações não funcionavam a seu favor. A
estrutura de poder, que antes era horizontal, se tornou hierárquica, com o
poder concentrado no topo. Isso arruinou a sociedade Apache. Nevins
reflete: "O grupo Apache agora tinha um governo central, mas, a meu ver,

333
isso foi desastroso para eles, pois gerou uma baralha sem lucros em troca
de recursos entre linhagens". Com uma estrutura de poder mais rídiga, os
Apaches ficaram semelhantes aos Astecas e, assim, ficou mais fácil para os
americanos os controlarem...

Na essência, o que movia os Apaches [quando passaram a disputar entre si


por recursos centralizados pelos Nant’ans] era a concentração de poder.
Após adquirirem o direito à propriedade, seja ela em forma de vacas ou
royaltes..., as pessoas rapidamente buscam um sistema centralizado para
proteger seus interesses. É por isso que queremos bancos centralizados.
Desejamos ter controle, estrutura e prestação de contas, pois o que está em
jogo é nosso dinheiro.

No momento em que direitos de propriedade entram na equação, tudo


muda: a organização estrela-do-mar se transforma em aranha. Se você
realmente quiser centralizar uma organização, passe o direito de
propriedade ao catalisador [os catalisadores funcionam como netweavers em
uma rede social] e peça-o para distribuir recursos conforme adequado. Ao
deter o poder sobre os direitos de propriedade, o catalisador se transforma
em CEO e os círculos passam a ser competitivos”.

(53) Epopéia da Criação – Enuma Elish (ou Enûma Eliš) é o mito de criação
babilônico. Ele foi descoberto por Austen Henry Layard em 1849 (em forma
fragmentada) nas ruínas da Biblioteca de Assurbanipal em Nínive (Mossul, Iraque),
e publicado por George Smith em 1876. Cf. SMITH, George (1876). The Chaldean
Account of Genesis. London: s/ed., 1876. Eis a passagem citada do Enuma Elish:
“Ele criou o homem (e a mulher), seres vivos, para trabalhar para sempre, e liberar
os deuses de outras cargas...”. Uma versão duvidosa em português está disponível
no link:

<http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html>

Tablets 1 e 2 estão disponíveis: <http://wikisource.org/wiki/Enuma_Elish>

(54) BLACK, Bob (1985). The Abolition of Work and Other Essays. Port Townsend:
Loompanics Unlimited, 1986. Uma tradução em português do manifesto “A abolição
do trabalho” está disponível para download em

<http://www.4shared.com/file/219719893/b8942012/A_ABOLIO_DO_TRABALHO_B
lack.html>

(55) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um instante


de cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>

334
Os mantenedores do velho mundo | 8

(1) ABRAHAM, Ralph (1992) in ABRAHAM, Ralph, McKENNA, Terence &


SHELDRAKE, Rupert (1992). Caos, criatividade e retorno do sagrado: triálogos nas
fronteiras do Ocidente, São Paulo: Cultrix, 1994.

(2) KRAMER, Samuel (1956). A história começa na Suméria. Lisboa: Europa-


América, 1977.

(4) CAMPBELL, Joseph (1959): As máscaras de Deus (Volume I). São Paulo: Palas
Athena, 1998.

(3) ABRAHAM. Ralph, McKENNA, Terence & SHELDRAKE, Rupert (1992). Caos,
criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do Ocidente. São
Paulo: Cultrix, 1994.

(5) LEICK, Gwendolyn (2001): Mesopotâmia: a invenção da cidade. Rio de Janeiro:


Imago, 2003.

(6) Os ‘me’ continuam sendo um enigma para os historiadores. A antropóloga e


assirióloga Gwendolyn Leick (2001), no seu livro “Mesopotâmia: a invenção da
cidade” (ed. cit.), escreve: “Eridu, como a manifestação primária do Apsu, também
era considerada o lugar do conhecimento, a fonte da sabedoria, sob o controle de
Enki. Numerosas narrativas foram elaboradas em torno desse conceito. Eridu, como
respositório de decretos divinos é descrita em uma narrativa suméria chamada
“Enki e Inanna”. Enki, escondido no Apsu, está na posse de todos os ‘me’, termo
sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis, formas de comportamento
social, emoções e símbolos de carga que, em sua totalidade, eram vistos como
indispensáveis ao funcionamento regular do mundo. Esses ‘me’ pertenciam a Eridu
e a Enki. Entretanto, Inanna, deusa da cidade de Uruque, deseja obter os ‘me’ para
si própria e levá-los para Uruque. Com esse fim, ela desfralda velas para chegar a
Eridu de barco, sempre o caminho mais fácil para ir de uma cidade da Mesopotâmia
a outra. Enki toma conhecimento da chegada de Inanna e preocupa-se com as
intenções dela. Instrui o seu vizir para a receber com todas as honras e preparar
um banquete, no qual ambas as deidades bebem muita cerveja. Enki não tarda em
adormecer, deixando o caminho livre para Inanna carregar os preciosos ‘me’ em
seu barco, um por um, e zarpar. Quando Enki desperta da ébria sonolência e dá-se
conta do que aconteceu, procura usar sua magia em uma tentativa de recuperar os
‘me’. Inanna consegue rechaçar os demônios perseguidores e chegar sã e salva a
Uruque. O desfecho da história não é claro, pois nenhuma das versões existentes
do texto está suficientemente preservada, mas parece que uma terceira deidade
logra a reconciliação entre Inanna e Enki. Esta é, obviamente, uma típica história
de Uruque, concentrando-se nas deusas locais e em seu poder superior. Ao libertar
os ‘me’ das profundezas do Apsu, Inanna podia não só ampliar seus próprios
poderes, mas também fazer valer os seus decretos entre os humanos. A lista dos

335
‘me’ inclui a realiza, as funções sacerdotais, os ofícios e a música, assim como as
relações sexuais, a prostituição, a velhice, a justiça, a paz, o silêncio, a calúnia, o
perjúrio, as artes dos escribas e a inteligência, entre muitos outros”.

Muitos anos antes, o famoso sumeriologista Samuel Noah Kramer (1956), em From
the Tablets of Sumer (ed. cit.) já havia observado:

“Finalmente chegamos aos ‘me’, as leis divinas, normas e regras que, segundo os
filósofos sumérios, governam o universo desde os dias da sua criação e o mantêm
em funcionamento. Neste domínio possuímos considerável documentação direta,
particularmente em relação ao ‘me’ que governam o homem e a sua cultura. Um
dos antigos poetas sumérios, ao compor ou redigir um dos seus mitos, julgou que
vinha a propósito dar uma lista dos ‘me’ relacionados com a cultura. Divide a
civilização, segundo o conhecimento que dela tinha, em uma centena de elementos.
No estado atual do texto são apenas inteligíveis cerca de sessenta e alguns são
palavras mutiladas que, sem contexto explicativo, apenas nos dão uma vaga idéia
do seu real sentido. Mas ainda subsistem os suficientes para nos mostrar o caráter
e a importância da primeira tentativa registrada de análise da cultura, que resultou
em uma lista considerável de o que é hoje geralmente designado por “elementos e
complexos culturais”. Estes compõem-se de várias instituições, certas funções de
hierarquia sacerdotal, instrumentos de culto, comportamentos intelectuais e
afetivos e diferentes crenças e dogmas. Eis a lista das partes mais inteligíveis e
seguindo a própria ordem escolhida pelo antigo escritor sumério: 1 – Soberania; 2
– Divindade; 3 - A sublime e permanente coroa; 4 - O trono real; 5 - O sublime
cetro; 6 - As insígnias reais; 7 - O sublime santuário; 8 - O pastoreio; 9 - A
realeza; 10 - A durável senhoria; 11 - A “divina senhora” (dignidade sacerdotal);
12 – O ishib (dignidade sacerdotal); 13 – O lumah (dignidade sacerdotal); 14 – O
gutug (dignidade sacerdotal)…” [A lista segue até o número 67].

Essas “fórmulas divinas” (os ‘me’) reforçam a idéia da existência de uma espécie de
protótipo. Os ‘me’ parecem ser códigos replicativos para criar e reproduzir um
determinado tipo de civilização (ou padrão societário). A existência material ou
ideal dos ‘me’ como conhecimentos armazenáveis em objetos que podiam ser
transportados, evidencia que os sumérios não apenas desenvolveram
historicamente o que chamamos de civilização. Eles também sistematizaram
teoricamente um modelo dessa civilização para ser replicado em outros locais.

Mas o mais relevante é a ordem em que aparecem tais “elementos culturais”. Os


seres humanos e suas características próprias e qualidades distintivas só vão surgir
lá pelo quadragésimo lugar. O schema é mítico, sacerdotal, hierárquico e
autocrático. Aliás, pode-se dizer que essas “fórmulas divinas” são fórmulas da
autocracia em “estado puro”.

E havia um ensinamento organizado sobre tudo isso. Pois bem. Tal ensinamento a
ser replicado foi o motivo de haver um ensino. Para mais informações pode-se ler
os textos indicados por LEICK (2001) e por KRAMER (1956). Ou pode-se tentar
decifrar o material disponível:

336
Inana and Enki: cuneiform source translation at ETCSL (The Electronic Text Corpus
of Sumerian Literature, University of Oxford, England) in ETCSL translation:

<http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.3.1#>

Cf. ainda: “What are ‘me’ anyway?” in Sumerian Mythology FAQ:

<http://home.comcast.net/~chris.s/sumer-faq.html#A1.5>

(7) Existem outras maneiras não verticais de representar essa árvore das Sefirot
(abaixo representada) que evidenciam melhor as conexões de cada nodo (Keter e
Malkhut com 3, Hochmah, Binah, Hesed, Gevurah e Yesod com 4, Nezah e Hod com
5 e Tiferet – o hub principal – com 8).

É fácil ver que a topologia dessa rede é descentralizada (com graus de


centralização maiores do que de distribuição). Portanto, não se trata – e não
poderia mesmo ser de outro modo – de uma rede distribuída. Ela tem apenas 27%
de distribuição. E tem somente 22 caminhos (ou 32, se incluirmos os próprios
nodos como caminhos) quando poderíamos ter – no grau máximo de distribuição –
45 conexões (ou 55, contando os nodos). Para acompanhar esses cálculos cf.
FRANCO, Augusto (2009): O poder nas redes sociais. Op. cit.

(8) BLOOM, Harold (1975). Cabala e crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

337
(9) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y Juego:
fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia.
Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997. (Existe tradução brasileira:
Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena,
2004).

(10) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a sociedade, o
desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado. Curitiba: Escola-de-
Redes, 2008.

(11) FRANCO, Augusto (2008): O Olho de Hórus. Disponível em

<http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/o-olho-de-horus>

(12) OSHO (Bhagwan Shree Rajneesh) (1978). A revolução: conversas sobre Kabir.
São Paulo: Academia de Inteligência, 2008.

(13) Idem.

(14) Comunicação pessoal ao autor de José Rocha: Frei Mateus Rocha (1923-
1985). Para saber quem foi José Rocha cf. POLETTO, Ivo (org.) (2003). Frei Mateus
Rocha: um homem apaixonado pelo absoluto. São Paulo: Loyola, 2003.

(15) Agregadores de blogs que foram inventados com base em RSS não resolvem o
problema. O fato de se ter vários blogs em uma mesma página, atualizando
automaticamente as primeiras palavras das postagens mais recentes de cada blog,
não garante, nem favorece muito, qualquer tipo de interação mais efetiva. Esses
softwares produzem apenas índices ilustrados dos blogs que foram agregados por
iniciativa única e exclusiva do administrador da página. Caso haja reciprocidade, ou
seja, se todos os agregados por um blog também agregarem os demais nos seus
blogs, essas ferramentas são boas para formar um grupo seleto (e necessariamente
pequeno, por motivos óbvios) de pessoas que se lêem. Também podem ser
bastante úteis no caso de uma corporação (onde, porém, o acesso à página
agregada é, via de regra, fechado, pois, afinal, uma corporação precisa se proteger
da concorrência...) ou de uma comunidade já existente. Mas, em geral, não são
ferramentas eficazes de netweaving, pois ninguém fica sabendo – a não ser que
abra seguidamente, várias vezes por dia, todos os blogs – o que cada um está
dizendo, no seu próprio blog, sobre o que outros postaram, nos deles. Ademais,
não são viáveis para organizar o compartilhamento de agendas (a única coisa que
pode realmente “produzir” comunidade). As velhas listas de e-mails com seus
fóruns derivados são mais eficazes para esse propósito.

(16) SCHMOOKLER, Andrew (1991): “O reconhecimento de nossa cisão interior” in


ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao Encontro da Sombra: o potencial
oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994.

(17) BRECHT, Bertold (1926-1956). Histórias do Sr. Keuner. São Paulo: Editora 34,
2006.

338
Eles já estão entre nós | 9

(1) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorian (1998). O que é vida? Rio de Janeiro: Zahar,
2022.

(2) O caso de Hobbes é notável, pois além de esse pensador ter lançado os
fundamentos para uma justificação filosoficamente elaborada da autocracia,
também derruiu os pressupostos cooperativos de qualquer idéia democrática, tendo
influência marcante sobre grande parte dos pensadores de outras disciplinas
científicas que surgiram ulteriormente – como a biologia da evolução e a economia
– até, praticamente, o final do século 19. A esse respeito vale a pena ler a brilhante
passagem de Matt Ridley (1996) no livro As origens da virtude: “Thomas Hobbes foi
o antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651) gerou
David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776), que gerou Thomas Robert
Malthus (1798), que gerou Charles Darwin (1859). Foi depois de ler Malthus que
Darwin deixou de pensar sobre competição entre grupos e passou a pensar sobre
competição entre indivíduos, mudança que Smith fizera um século antes. O
diagnóstico hobbesiano – embora não a receita – ainda está no centro tanto da
economia quanto da biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman; Darwin
gerou Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a noção de que, se o equilíbrio da
natureza não foi projetado de cima, mas surgiu de baixo, não há motivo para
pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John Maynard Keynes diria
que “A Origem das Espécies” é “simples economia ricardiana expressa em
linguagem científica”. E Stephen Jay Gould disse que a seleção natural “era
essencialmente a economia de Adam Smith vista na natureza”. Karl Marx fez mais
ou menos a mesma observação: “É notável”, escreveu ele a Friedrich Engels, em
junho de 1862, “como Darwin reconhece, entre os animais e as plantas, a própria
sociedade inglesa à qual pertence, com sua divisão de trabalho, competição,
abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a
‘bellum omnium contra omnes de Hobbes’”. Cf. RIDLEY, Matt (1996). As origens da
virtude: um estudo biológico da solidariedade. Rio de Janeiro: Record, 2000.

(3) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

(4) Idem.

(5) TENNYSON, Alfred (Lord) (1849). In Memorian A. H. H. Canto 56: “Who trusted
God was love indeed / And love Creation's final law / Tho' Nature, red in tooth and
claw / With ravine, shriek'd against his creed”. Cf. o link abaixo:

<http://en.wikipedia.org/wiki/In_Memoriam_A.H.H.>

(6) Literalmente: “It is war minus the shooting”. Cf. ORWELL, George (1945). The
Sporting Spirit. London: Tribune, December 1945. Disponível em:

339
<http://orwell.ru/library/articles/spirit/english/e_spirit>

(7) MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte (alocução em


uma mesa redonda organizada pelo Instituto para o Desenvolvimento da
Democracia Luis Carlos Galan, Colômbia). Bogotá: Editorial Magistério, 1993.

(8) GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma


sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

(9) MARGULIS, L. & SAGAN, D.: Op. cit.

(10) GLADWELL, Malcolm (2008). Fora de série (Outliers). Rio de Janeiro:


Sextante, 2008.

(11) Idem.

(12) Idem-idem.

(13) Idem-ibidem.

(14) WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de seres


humanos. São Paulo: Cultrix, 1993.

(15) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Nova visões sobre a sociedade,
o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado. Curitiba: Escola-
de-Redes, 2008.

(16) RAYMOND, Eric (1996-2001). Como se tornar um hacker. Disponível em:

<http://www.linux.ime.usp.br/~rcaetano/docs/hacker-howto-pt.html>

(17) Idem.

(18) Idem-idem.

(19) RAYMOND, Eric (2001). How to become a hacker. Disponível em:

<http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html>

(20) “O mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para serem


resolvidos. Ser hacker é muito divertido, mas é um tipo de diversão que necessita
de muito esforço. Para haver esforço é necessário motivação. Atletas de sucesso
retiram sua motivação de uma espécie de prazer físico em trabalhar seus corpos,
em tentar ultrapassar seus próprios limites físicos. Analogamente, para ser um
hacker você precisa ter uma emoção básica em resolver problemas, afiar suas
habilidades e exercitar sua inteligência. Se você não é o tipo de pessoa que se
sente assim naturalmente, você precisará se tornar uma para ser um hacker.
Senão, você verá sua energia para "hackear" sendo esvaída por distrações como

340
sexo, dinheiro e aprovação social. (Você também tem que desenvolver uma espécie
de fé na sua própria capacidade de aprendizado – crer que, mesmo que você não
saiba tudo o que precisa para resolver um problema, se souber uma parte e
aprender a partir disso, conseguirá aprender o suficiente para resolver a próxima
parte – e assim por diante, até que você termine)”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(21) “Não se deve resolver o mesmo problema duas vezes. Mentes criativas são um
recurso valioso e limitado. Não devem ser desperdiçadas reinventando a roda
quando há tantos problemas novos e fascinantes por aí. Para se comportar como
um hacker, você tem que acreditar que o tempo de pensamento dos outros hackers
é precioso – tanto que é quase um dever moral compartilhar informação, resolver
problemas e depois dar as soluções, para que outros hackers possam resolver
novos problemas ao invés de ter que se preocupar com os antigos indefinidamente.
(Você não tem que acreditar que é obrigado a dar toda a sua produção criativa,
ainda que hackers que o fazem sejam os mais respeitados pelos outros hackers.
Não é inconsistente com os valores do hacker vender o suficiente da sua produção
para mantê-lo alimentado e pagar o aluguel e computadores. Não é inconsistente
usar suas habilidades de hacker para sustentar a família ou mesmo ficar rico,
contanto que você não esqueça que é um hacker)”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(22) “Tédio e trabalho repetitivo são nocivos. Hackers (e pessoas criativas em


geral) não podem ficar entediadas ou ter que fazer trabalho repetitivo, porque
quando isso acontece significa que eles não estão fazendo o que apenas eles
podem fazer – resolver novos problemas. Esse desperdício prejudica a todos.
Portanto, tédio e trabalho repetitivo não são apenas desagradáveis, mas nocivos
também. Para se comportar como um hacker, você tem que acreditar nisso de
modo a automatizar as partes chatas tanto quanto possível, não apenas para você
como para as outras pessoas (principalmente outros hackers). (Há uma exceção
aparente a isso. Às vezes, hackers fazem coisas que podem parecer repetitivas ou
tediosas para um observador, como um exercício de "limpeza mental", ou para
adquirir uma habilidade ou ter uma espécie particular de experiência que não seria
possível de outro modo. Mas isso é por opção -- ninguém que consiga pensar deve
ser forçado ao tédio”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(23) “Liberdade é uma coisa boa. Hackers são naturalmente anti-autoritários.


Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de resolver qualquer que seja o
problema pelo qual você está fascinado – e, dado o modo em que a mente
autoritária funciona, geralmente arranjará alguma desculpa espantosamente idiota
isso. Então, a atitude autoritária deve ser combatida onde quer que você a
encontre, para que não sufoque a você e a outros hackers. (Isso não é a mesma
coisa que combater toda e qualquer autoridade. Crianças precisam ser orientadas,
e criminosos, detidos. Um hacker pode aceitar alguns tipos de autoridade a fim de
obter algo que ele quer mais que o tempo que ele gasta seguindo ordens. Mas isso
é uma barganha restrita e consciente; não é o tipo de sujeição pessoal que os
autoritários querem). Pessoas autoritárias prosperam na censura e no segredo. E
desconfiam de cooperação voluntária e compartilhamento de informação – só
gostam de "cooperação" que eles possam controlar. Então, para se comportar como
um hacker, você tem que desenvolver uma hostilidade instintiva à censura, ao

341
segredo, e ao uso da força ou mentira para compelir adultos responsáveis. E você
tem que estar disposto a agir de acordo com esta crença”. Cf. RAYMOND, Eric: Op.
cit.

(24) “Atitude não substitui competência. Para ser um hacker, você tem que
desenvolver algumas dessas atitudes. Mas apenas ter uma atitude não fará de você
um hacker, assim como não o fará um atleta campeão ou uma estrela de rock. Para
se tornar um hacker é necessário inteligência, prática, dedicação, e trabalho duro.
Portanto, você tem que aprender a desconfiar de atitude e respeitar todo tipo de
competência. Hackers não deixam posers gastar seu tempo, mas eles idolatram
competência – especialmente competência em "hackear", mas competência em
qualquer coisa é boa. A competência em habilidades que poucos conseguem
dominar é especialmente boa, e competência em habilidades que envolvem
agudeza mental, perícia e concentração é a melhor. Se você reverenciar
competência, gostará de desenvolvê-la em si mesmo – o trabalho duro e dedicação
se tornará uma espécie de um intenso jogo, ao invés de trabalho repetitivo. E isso
é vital para se tornar um hacker”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(25) Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(26) Idem.

(27) Idem-idem.

(28) Idem-ibidem.

(29) LISPECTOR, Clarice (1969). Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998.

(30) ORWELL, George (1948). Reflexões sobre Gandhi in ORWELL, George (1984).
Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

(31) Idem.

(32) BUCHANAN, Mark (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010.

342
Mundos-bebês em gestação | 10

(1) Referência a um artigo de Pierre Lèvy: Op. cit.

(2) No final de 2010 as pessoas fingiam que não viam, mas a situação do mundo
único – baseado no equilíbrio competitivo internacional, uma estrutura
descentralizada de menos de duas centenas de Estados – já estava ficando muito
complicada: expansão do capitalismo autoritário na China e em outros continentes,
inclusive com uma espécie de neocolonização econômica da África, domínio
crescente do fundamentalismo islâmico em todos os países árabes, no Oriente
Médio e alhures, perpetuação de governos de assassinos da KGB (FSB) na Rússia
com pretensões expansionistas, avanço do parasitismo democrático via
neopopulismo na América Latina, democracia nos Estados-nações claramente em
recuo, restando apenas 26 países (menos de 13% da população mundial) em que o
regime democrático representativo vigorava em plenitude.

(3) BRABO, Paulo (2007): Op. cit.

(4) MATURANA, Humberto et all. (2009): “Ethical matrix of human habitat” (texto
enviado pelos autores para uma lista restrita de discussão).

(5) Esta seção intitulada “Desobedeça” é a terceira versão do texto de FRANCO,


Augusto (2010). Desobedeça: uma inspiração para o netweaving (2ª Versão).
Slideshare [5.168 views em 30/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/desobedea>

(6) Refrão da “Dança do Quadrado”, música de origem desconhecida utilizada por


Sharon Aciole com o objetivo de animar o pessoal nas praias de Porto Seguro no
verão de 2007 e que acabou virando um hit no Brasil em 2008. Ouça aqui antes de
ler: <http://migre.me/knQS>

(7) "I think we've been through a period where too many people have been given
to understand that if they have a problem, it's the government's job to cope with it.
'I have a problem, I'll get a grant.' 'I'm homeless, the government must house me.'
They're casting their problem on society. And, you know, there is no such thing as
society. There are individual men and women, and there are families. And no
government can do anything except through people, and people must look to
themselves first. It's our duty to look after ourselves and then, also to look after
our neighbour. People have got the entitlements too much in mind, without the
obligations. There's no such thing as entitlement, unless someone has first met an
obligation”. Prime minister Margaret Thatcher, talking to Women's Own magazine,
October 31 1987.

(8) GLADWELL, Malcolm (2008): Op. cit.

343
(9) Como disse certa vez um mestre sufi da Turquia a um grupo de visitantes
(citado recentemente por uma pesquisadora conectada à Escola-de-Redes), “as
pessoas no ocidente são engraçadas; elas dizem: ‘eu sinto muito, mas eu sou
assim’, quando, na verdade, elas nem sentem muito e nem são assim”. Cf. Bia
Machado em <http://escoladeredes.ning.com>

(10) Esta seção intitulada “Cada um no seu quadrado” é a segunda versão do texto
de FRANCO, Augusto (2009). Cada um no seu quadrado: algumas notas sobre o
difícil aprendizado das redes sociais nas organizações hierárquicas. Slideshare
[1.088 views em 30/11/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/cada-um-no-seu-quadrado-
3215261>

(11) Referência ao texto seminal BEY, Hakim (1984). TAZ – Zona Autônoma
Temporária: Op. cit. Disponível para download em:

<http://www.4shared.com/get/88283715/b2c341c8/TAZ_-_Hakim_Bey.html>

(12) WAISMANN, Friedrich (1979). Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circle. New
York: Routledge, 2003.

344
Bem-vindos aos novos mundos-fluzz | 11

(1) HERBERT, Frank (1976). Os Filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.

(2) Como o Kinect, um dos maiores lançamentos da Microsoft em 2010.

(3) A psilocibina é um alcalóide encontrado em alguns cogumelos, de estrutura


molecular análoga à serotonina, e merece continuar sendo estudada (assim como
várias outras substâncias que alteram de alguma forma a percepção ou aquilo que
se chama de consciência, como as que são misturadas para o preparo do chá
ayahuasca). Cf. McKENNA, Terence (1992). O alimento dos deuses. São Paulo:
Nova Era, 1996.

(4) Os “midi-chlorians”, organismos microscópicos existentes nas células dos seres


vivos que facilitam a interação com a Força, introduzidos tardiamente na série de
George Lucas, no Episódio 1 (1999): “A Ameaça Fantasma” (cf. BROOKS, Terry
(1999). Star Wars – Episódio I: A Ameaça Fantasma. São Paulo: Meia Sete Editora,
1999) talvez sejam uma evocação conceitualmente menos adequada. Pois fluzz não
é a força (Te). Fluzz é o curso (Tao).

(5) JOHNSON, Steven (2001). Emergência: a vida integrada de formigas, cérebros,


cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

(6) ARQUILLA, John e RONSFELD, David (2000). Swarming and the Future of
Conflict. USA: Rand Corporation, Office of the Secretary of Defense, 2000.

(7) O paper de John Arquilla e David Ronsfeld sobre swarming entre humanos,
infelizmente, estava mais voltado para a análise das suas implicações na guerra.
Quatro anos depois, em 11M: Redes para ganar uma guerra, analisando a reação
da sociedade espanhola aos atentados terroristas cometidos pela Al-Qaida em 11
de Março de 2004, David de Ugarte (2004) aventou a possibilidade de um
swarming civil, mas ainda nos marcos de um conflito (a netwar). Cf. UGARTE,
David (2004). 11M. Redes para ganar uma guerra. Barcelona: Icaria, 2006. Três
anos depois, em O Poder das Redes (2007), ele iria definir o sarming como “um
novo tipo de conflito multi-agente e multicanal, onde as relações entre os atores
parecem descrever a topologia de uma rede distribuída. O swarming é a forma
específica do conflito na sociedade-rede: distintos grupos e tendências, não
coordenados explicitamente entre si e apenas centralizados um pouco além de uma
mínima doutrina comum dentro das fileiras de cada um deles, vão aumentando o
alcance e a virulência de suas ações, até isolar e encurralar as posições contrárias
sem deixar-lhes possibilidade real de resposta”.

(8) UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008.

345
(9) Cf. Sugatra Mitra: “The child-driven education” no TED Global 2010 no link
abaixo:

<http://www.ted.com/talks/lang/eng/sugata_mitra_the_child_driven_education.ht
ml>

(10) Cf. depoimento de Steven Strogatz no filme Connected: the Power of Six
Degrees, dirigido por Annamaria Talas. BBC – TV ABC / Discovery Science Channel,
2008. Disponível – com legendas em português – no link:

<http://escoladeredes.ning.com/video/o-poder-dos-seis-graus-1>

(11) LISPECTOR, Clarice (1969): Op. cit.

(12) BARROS, Manoel (2010). “Caderno de Aprendiz” in Menino do Mato: Poesia


Completa. São Paulo: Leya, 2010.

(13) Cf. von OECH, Roger (2001). Espere o inesperado ou você não o encontrará.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

(14) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa: Ed. cit.

(15) Morpheus in The Matrix (1999): “This is your last chance [Neo]. After this,
there is no turning back. You take the blue pill - the story ends, you wake up in
your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill - you stay
in Wonderland and I show you how deep the rabbit-hole goes”.

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