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Introdução
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A pesquisa está subdividida em dois tópicos, além da introdução e con
clusão. O primeiro tópico busca uma definição de espiritualidade, partindo de
uma perspectiva bíblica, passando pela comunidade primitiva e como ela foi
sendo vivenciada ao longo da história da igreja, especialmente em obras do
reformador Martim Lutero e nos dias de hoje. Vai também abordar os diferen
tes tipos de espiritualidade e as vivências de espiritualidade na comunidade,
levantando a questão se existe uma espiritualidade típica na cidade.
O segundo tópico aborda a questão da espiritualidade e igreja na cidade,
perguntando por modelos, quais já existem e quais ainda devem surgir. Vai
falar das necessidades espirituais das pessoas que vivem na cidade, apresentar
os diferentes espaços de espiritualidade pessoal e comunitária, exemplificados
aqui a partir da comunidade evangélico-luterana de São Bento do Sul em San
ta Catarina. No final, aborda limites e possibilidades de uma espiritualidade
urbana, buscando caracterizar e qualificar essa mesma espiritualidade.
Espero que este estudo seja uma contribuição à vivência da espirituali
dade cristã no contexto urbano ao questionar seus limites e buscar suas pos
sibilidades. Ao mesmo tempo, procuro demonstrar o enorme potencial que a
comunidade cristã tem para acolher, servir e desafiar pessoas na caminhada do
evangelho de Cristo hoje neste país em constante mudança.
350 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da Lín
gua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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Constatamos a partir dessa definição que espiritualidade designa uma
qualidade incorpórea, imaterial e relacionada com a religião. Essa associação
fica evidente quando afirma que espiritualidade é qualidade ou caráter de es
piritual ou uma doutrina acerca do progresso metódico na vida espiritual. O
Novo Aurélio também entende espiritualidade como sendo uma qualidade do
ser humano ou até mesmo conseqüência de um programa metódico que busca
alcançar ou aperfeiçoar essa qualidade.
O teólogo alemão Hermann Brandt analisa em seu livro Espiritualidade
- Vivência da Graça a espiritualidade cristã ao longo da história. Ele afirma
que a espiritualidade cristã vai num crescendo de distanciamento do mundo
em direção a uma espiritualidade comprometida, ecumênica e da libertação.
Em sua análise, mostra que “espiritualidade” é um termo plural e multicolo-
rido por causa de sua história variada e das múltiplas concepções acerca da
concretização da fé cristã que fizeram uso desse termo e para as quais ele se
tomou característico. Para o autor, a espiritualidade em sentido cristão não
pode ser outra coisa que o âmbito e o domínio do Espírito Santo. Se ela nasce
e é nutrida pela experiência do Espírito de Jesus Cristo, ela jam ais pode ser
entendida e vivenciada como obra nossa ou produto de nosso esforço. Espiri
tualidade cristã é ação do Espírito do Evangelho em nós, que nos faz renascer
como novas criaturas e nos faz descobrir como centro de nossa vida a graça
libertadora e recriadora de Deus. Depois de analisar o entendimento de Lutero
acerca do Magnificat, o cântico de Maria (Lucas 1.46-55), ele afirma:
351 BRANDT, Hermann, Espiritualidade - Vivência da graça. 2. ed. revista. São Leopoldo:
Sinodal, EST, 2006. p. 83s.
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aparece na Bíblia em 1 Coríntios 2.14-3.3. Ele designa aí a forma de viver a
vida a partir do Espírito de Deus. Desse modo, a partir de Paulo, pneumáticos
toma-se o termo técnico para a existência cristã, e o adjetivo spiritualis passa
a designar o centro da existência cristã. Espiritualidade quer, pois, expressar o
aspecto formal da estrutura central da vida cristã para designar a relação do ser
humano com Deus e com os outros. Por isso o termo nas cartas de Paulo não é
abstrato, mas muito concreto, pois remete a um modo de ser, existir e viver.352
O moderno conceito de espiritualidade tem seu nascedouro na Igreja
Católica Romana a partir da piedade vivida nas ordens religiosas francesas do
século XVIII. No mundo protestante, o termo passa a ser mais conhecido a
partir da V Assembleia do Conselho M undial de Igrejas, reunida em Nairóbi,
Quênia, no ano de 1975. Na mensagem dirigida aos cristãos aparecia a busca
por uma nova espiritualidade que perpasse o planejar, refletir e agir cristãos.
Isso fez renascer nas igrejas históricas, principalmente protestantes, o tema da
espiritualidade.353
Os fundamentos bíblicos para a espiritualidade cristã encontram-se, por
exemplo, nos evangelhos, que repetidamente falam acerca de como Jesus se
retirava para orar, fazendo-o geralmente de forma solitária. Os evangelhos tam
bém nos relatam que Jesus, seguindo tradição judaica, se fazia presente nos
cultos da sinagoga. Também vivia em comunhão de vida com seus discípulos
e dava testemunho a respeito da proximidade do reino de Deus em palavra e
ação. De forma resumida, podemos afirmar que na espiritualidade de Jesus
estavam presentes o ouvir, o orar e o compartilhar. No entanto, essa espiritua
lidade de Jesus não se toma a base de fé das comunidades cristãs, mas sim o
Cristo morto e ressuscitado, assimilado doxologicamente - como louvor ao
trino Deus. Assim surge o culto da comunidade primitiva, que é a forma fun
damental e a origem de sua espiritualidade. Desse modo, a espiritualidade da
comunidade primitiva vai se definir como sendo doxológica e eclesial, isto é,
vivida de forma comunitária, tendo como base o culto e a vida em comunhão.354
O texto de Atos 2.42-47 apresenta-nos os elementos que compõem essa
espiritualidade. Nele aparece a espiritualidade de Jesus transformada, agora,
numa espiritualidade comunitária. Nesse belíssimo texto, temos diante de nós
o ícone da igreja primitiva. E uma pequena comunidade familiar que se au
xiliava na superação do anonimato da grande cidade, que se podia preocupar
352 MUELLER, Ênio R. Teologia cristã em poucas palavras. São Paulo: Teológica; São Leo
poldo: EST, 2005, que aborda esse aspecto amplamente ao longo da obra.
353 BUTZKE, Paulo Afonso. Aspectos de uma espiritualidade luterana para nossos dias. E stu
dos Teológicos, v. 43, n. 2, p. 105, 2003.
354 BUTZKE, 2003, p. 107-108.
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com a fé e a vida de seus membros. Possuía também um perfil diaconal que
exercia grande atração sobre os contemporâneos não cristãos por se contrapor
à desumanização das grandes cidades.
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ções sobre métodos de meditação de textos da Escritura, sobre como lutar
contra as tentações, como viver com os sacramentos, a vivência do amor e
da solidariedade cristã. Foi isso que Lutero recebeu e praticou em sua vida
monástica, e essa era a espiritualidade da igreja ocidental no início do século
XVI. Lutero submeteu, porém, essa forma de piedade à teologia da Reforma.
Tal teologia afirma que nós somos aceitos por Deus não por causa de méritos,
obras piedosas ou morais, mas “recebemos remissão do pecado e nos tor
namos justos diante de Deus pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé,
quando cremos que Cristo padeceu por nós e que por sua causa os pecados nos
são perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna”356.
A partir de sua redescoberta do evangelho e da salvação como graça
de Deus, Lutero reorganizou essa vivência da espiritualidade especialmente
no que se refere à meditação.357 O normal na época de Lutero era a seqüência
lectio-meditatio-oratio-contemplatio (unio). Lutero reordena essa seqüência:
oratio-meditatio-tentatioi5i. Nessa inversão, ele começa com a oração e inclui
a lectio na meditado. Para Lutero, meditação é sempre meditação da Palavra.
O que chama a atenção é o fato de que Lutero substitui a contemplado - a
visão mística de Deus e a união com ele - pela tentado - a experiência da
presença de Deus mediada pela Palavra na situação de tentação. Com isso o
motivo maior da meditação passa a ser a vivência aprovada da fé nas ambigüi
dades do dia a dia. Mas isso não significa que Lutero descarta a contemplado.
Ele apenas considerava que não era possível alcançá-la através de um método
de meditação, pois, para ele, a contemplado sempre é presente de Deus e não
pode ser “produzida” por exercícios.359
Lutero vai falar dessa piedade evangélica, que está apoiada em cinco
pilares, nos Artigos de Esmalcalda. Ali ele afirma que
156 LIVRO DE CONCÓRDIA. A s confissões da Igreja Evangélica Luterana. 4. ed. São Leopol
do: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1993. p. 30.
357 Assim também Manfred Seitz vai falar do comportamento de Lutero em relação à meditação
como algo trazido através da tradição da mística e dos monges como uma maneira de refletir
sobre a palavra bíblica. Cf. SEITZ, Manfred. Prática da f é - Culto, poimênica e espirituali
dade. São Leopoldo: Sinodal, 1990. p. 161-165.
358 Significativa é a abordagem de Baeske acerca dos critérios para o cavoucar teológico de
Lutero. BAESKE, Albrecht. Como se estuda e vive teologia conforme Lutero, in: HOCH,
Lothar Carlos. Formação teológica em terra brasileira - Faculdade de Teologia da IECLB,
1946-1986. Edição Comemorativa. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 74-87.
359 BUTZKE, 2003, p. 113-114.
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santo sacramento do altar; em quarto, mediante o poder das chaves e também
p e r mutuum colloquium et consolationem fratrumC"
[...] faço com o uma criança a que se ensina o Catecismo: de manhã, e quando
quer que tenha tempo, leio e profiro, palavra por palavra, o Pai-Nosso, os D ez
Mandamentos, o Credo, alguns salmos etc. Tenho de continuar diariamente a
ler e estudar, e ainda assim não m e saio com o quisera, e devo permanecer crian
ça e aluno do Catecismo. Também m e fico prazerosamente assim. [...] existe
multiforme proveito e fruto em ler e exercitá-lo todos os dias em pensamento e
recitação. E que o Espírito Santo está presente com esse ler, recitar e meditar, e
concede luz e devoção sempre nova e mais abundante, de tal forma que a coisa
de dia em dia melhora em saber e é recebida com apreço cada vez maior.361
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mandamento, cada artigo, cada petição é recitada e depois meditada a partir
das quatro perguntas da “coroazinha quádrupla O que eu aprendo? (doctri-
na), pelo que tenho a agradecer? (gratiarum actio), o que tenho a confessar?
(■confessio) e pelo que quero pedir? (oratio).
Aqui temos, pois, um exercício espiritual composto por concentração,
meditação e oração, elaborado por Lutero. Importante é observar que essa me
ditação do Catecismo era inédita na história da espiritualidade. Aos poucos,
ao longo de décadas, essa forma de espiritualidade conseguiu ser assimilada
pelas famílias evangélicas. Essa espiritualidade estava apoiada no ciclo da
natureza e no ritmo do ano litúrgico.
Atualmente, essa espiritualidade já não se mantém mais com a mesma
estabilidade que se conheceu até a metade do século XX, também na 1ECLB.
Nos dias de hoje, tornou-se difícil transmitir os fundamentos teológicos e es
pirituais às novas gerações, principalmente se apenas nos baseamos no Cate
cismo Menor de Lutero. Em muitos lugares, a espiritualidade luterana tomou-
-se por demais cognitiva - restringindo-se, em grande medida, à reflexão in
telectual sobre o texto bíblico ou sobre a doutrina - , perdendo a conexão com
a experiência, com o corpo e com o cotidiano. É nossa herança iluminista. No
entanto, há tentativas de melhorar essa situação. Isso se tom a manifesto na va
riada literatura editada pela igreja no formato de devocionários como “Caste
lo Forte”, “Semente de Esperança”, “Orando em Família”, “Senhas Diárias”,
“Gotas de Orvalho” e outros, como oferta para uma espiritualidade cotidiana
doméstica, vivida e praticada de forma pessoal ou familiar.
tal atitude. Espero que, pelo menos, essas pessoas não tirem essa página de suas Bíblias, pois
então não sei mais o que significa ser cristão’’.
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Essa transformação cristã acontece com o agir do Espírito Santo na vida
do ser humano a partir do Batismo. O Espírito Santo, habitando em nós, vai
nos conceder as inclinações e disposições para seguir Jesus Cristo, pois o único
objetivo é a união com Deus já aqui e agora, bem como na eternidade. Sendo
Cristo, para nós, o caminho, a verdade e a vida, como viver em Cristo e no Es
pírito? Ao longo dos tempos, várias formas de viver a espiritualidade foram se
materializando, pois a verdadeira vida não se descreve, mas se experimenta, se
vive. Desse modo, na história da igreja, várias formas de espiritualidade foram
aparecendo. O que elas têm em comum é que propõem o seguimento a Cristo.
No início da era cristã, as pessoas que seguiam Cristo, principalmente
durante o período de perseguição (70-313), para não negar sua fé apoiavam-se
no desejo de imitar Cristo no sofrimento e martírio. Quando o tempo da per
seguição termina, o ideal passa a ser o ascetismo e a virgindade. No período
da patrística (séculos IV-V), a espiritualidade vai estar marcada pela concep
ção teológico-ontológica e psicológico-experimental. Vamos encontrar, por
exemplo, em Orígenes, a mística do logos. Busca-se uma vida ascética com
o objetivo de domar as paixões, como algo essencial para a contemplação e a
união com Deus. O centro da espiritualidade cristã vai ser a humanidade de
Cristo. Agostinho e, mais tarde, Tomás de Aquino vão interpretar o corpo hu
mano como a parte inferior, caduca da pessoa e da personalidade. Na verdade,
as suas reflexões são reflexos de visões platônicas e aristotélicas, algo muito
típico de seu tempo e de um modo de ser da igreja.
Nos séculos seguintes, encontramos o surgimento do monaquismo, que
se caracterizou pela fuga do mundo e pela vida contemplativa. Essa forma de
espiritualidade vamos encontrar na vida solitária dos anacoretas ou na for
ma de vida comunitária dos cenobitas. Dessa forma de espiritualidade sur
gem os beneditinos, cuja espiritualidade está resumida no ora et labora (orar
e trabalhar) da Regra de São Bento. Da ordem beneditina, na Idade Média,
originaram-se, mais tarde, várias escolas e outros ramos de espiritualidade
cristã, como a inaciana do século XVI. E uma espiritualidade apoiada em três
princípios: trabalho, leitura e oração.
O que se percebe é que, ao longo da Idade Média, se começa a acentuar
aos poucos e sempre mais o elemento afetivo sobre o intelectual. Surge a ênfa
se do matrimônio espiritual, da paixão e a do coração de Jesus. Mas o aspecto
eclesial começa a perder espaço. A própria espiritualidade, de certo modo, vai
dando lugar a uma simples afetividade365, a união mística com Cristo.
Nesse período, destaca-se Francisco de Assis, que foi um apaixonado
por Cristo e sua humanidade. Ele vai desenvolver a espiritualidade solidária. E
365 A esse respeito cf. DREHER, Martin N. A Igreja latino-americana no contexto mundial -
História da Igreja, v. 4. São Leopoldo: Sinodal, 1999. p. 120-129.
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dele que herdamos toda a espiritualidade do presépio, que celebramos no Na
tal e que, surpreendentemente, ainda persiste nas famílias cristãs de diferentes
confissões. Em Inácio de Loyola surge a síntese dos diferentes tipos de espiri
tualidade e a espiritualidade do serviço com a organização da Companhia de
Jesus. Na Idade Moderna, podemos citar Teresa d ’Ávila, que vai aperfeiçoar a
descrição psicológica da experiência mística.
Na atualidade, pode-se mencionar a espiritualidade da libertação. Um
dos precursores dessa espiritualidade é Thomas Merton, monge trapista norte-
-americano que buscou unir mística e compaixão, seguimento de Jesus e pro
fecia, oração e libertação.366 Essa espiritualidade, além de considerar o ser
humano em sua integralidade, também leva em conta a realidade na qual o ser
humano está inserido. Roberto Zwetsch afirma:
366 MERTON, Thomas. Paz na era pós-cristã. Testamento de um dos maiores místicos do sécu
lo XX. Aparecida: Santuário, 2007. BERTELL1, Getúlio Antônio. M ística e compaixão. A
teologia do seguimento de Jesus em Thomas Merton. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 175s.
367 ZWETSCH, Roberto E. Teologia e prática da missão na perspectiva luterana. São Leopol
do: Sinodal/EST, 2009. p. 56.
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por inteiro em favor de cada pessoa, acolher a bênção de Deus na certeza de
que Deus acompanha a pessoa em seu dia a dia são momentos muito fortes de
espiritualidade que o culto cristão sempre vai poder proporcionar a seus par
ticipantes. O culto é, pois, o momento em que Deus nos serve através de sua
palavra e sacramentos e durante o qual cada pessoa o serve através do louvor
e das orações. E ali que Deus tem um encontro marcado com cada pessoa atra
vés da comunidade reunida numa determinada hora e lugar. As diferentes for
mas de culto são importantes, pois vão ao encontro de necessidades diferentes
das pessoas que o buscam. Por exemplo, culto voltado especificamente aos jo
vens, com músicas, instrumentos e linguagens específicos. Cultos de Batismo,
de aniversário de Batismo, de Confirmação, de louvor, de oração, de Tomé,
de unção ou outras formas são necessários e importantes para a vivência da
espiritualidade. Também os cultos de bênção matrimonial e sepultamento são
espaços ricos para a vivência da espiritualidade. No caso do sepultamento e
velório, são significativas a forma de lidar com o limite da vida e sua transito-
riedade e a forma como celebramos o luto e caminhamos solidariamente com
as pessoas enlutadas.
Outro espaço de espiritualidade na comunidade são as celebrações de
Quaresma e de Advento, que culminam na celebração dos cultos de Páscoa
e Natal. Essas celebrações são espaços mais informais, nos quais é possível
trazer as angústias e alegrias da vida para dentro da celebração.
Há diferentes celebrações que acontecem nos diversos grupos da co
munidade, como grupo de crianças, jovens, mulheres, idosos, oração, música.
Esses são espaços importantíssimos de vivência da espiritualidade. Pelo fato
de haver maior proximidade entre os participantes do grupo, há oportunidade
de mais sintonia com os temas do dia a dia que lá podem ser compartilhados,
discutidos. Esse clima favorece a solidariedade e a compaixão entre os inte
grantes do grupo.
Momentos fortes de vivência da espiritualidade são os cursos que têm
um determinado tempo de duração e número de participantes. Podemos citar
como exemplo: Curso Básico da Fé, Celebrar e Viver, Deus está Presente,
retiros espirituais, encontros de pais e padrinhos para preparação ao Batismo,
encontro de noivos visando à preparação ao matrimônio, ensino confirmatório
como espaço de educação contínua na fé e assim por diante. Nesses encontros
surge uma aproximação muito grande entre os participantes, criando uma for
te comunhão e solidariedade, bem como espaço de poimênica e cura interior.
São momentos especiais para uma experiência com Deus.
Podemos dizer que são muitas e variadas as vivências de espiritualidade
que encontramos na comunidade. Claro que também há crises. Muitas vezes,
as pessoas reclamam do fato de não encontrar aquilo que estão buscando. Ou
então a forma de viver a espiritualidade não cabe dentro da experiência cul
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tural que a pessoa traz consigo. Há também um sincretismo religioso muito
grande na vida das pessoas, especialmente no que se refere às concepções de
morte, ressurreição e/ou reencamação. Muitas pessoas creem na imortalidade
da alma e com isso enveredam facilmente para a crença na reencamação, dou
trina que contraria a fé na ressurreição.
Experimentamos que as pessoas que vivem na cidade buscam cada vez
mais espaços de silêncio, meditação em pequenos grupos, nos quais podem
experimentar comunhão com Deus e com as pessoas participantes, além da
solidariedade fraterna. Há também uma carência afetiva manifestada no sen
tido de poder ser tocado, abençoado, ungido ou simplesmente ser ouvido.
A partir dessa experiência de solidariedade é possível libertar-se de pesos e
amarras que a vida vai colocando sobre os ombros.
Corresponde aos desafios urbanos às comunidades cristãs atrair, encon
trar espaços e respostas na vivência de uma espiritualidade cristã autêntica,
que acolhe as angústias das pessoas, mas ao mesmo tempo as desafia para um
compromisso de fé holística nestes tempos difíceis em que vivemos.
180
cristã de poder proporcionar essa vivência espiritual, de ajudar as pessoas a
perceber a lógica de sua vida: estou gastando o tempo em desempenhar fun
ções ou nos relacionamentos com as pessoas?
Também vivemos hoje sob a égide do medo. Uma insegurança muito
grande marca a vida das pessoas. Como conseqüência, as pessoas estão sendo
vigiadas o tempo todo e em toda parte. Como lido com esse tipo de controle
social?
Há também nas pessoas da cidade a necessidade de identidade. É im
portante nesse aspecto central da vida pessoal ir forjando uma espiritualidade
que possa criar núcleos de relacionamento, com o objetivo de dar identidade,
de tal forma que as pessoas saibam os nomes umas das outras, se conheçam
e desenvolvam amizade verdadeira, pois é nos relacionamentos que o ser hu
mano se reconhece. Ter espaços nos quais é possível trabalhar a fé que leva
em direção ao outro, a fé relacionai. Pois a pessoa sente necessidade de que
alguém saiba seu nome, a reconheça, respeite e ame. O importante é tomar
consciência de que todos os seres humanos querem ser amados, benquistos,
pois há muitas pessoas que clamam por ser gente. Elas querem experimentar
que são amadas por Deus através da comunidade de fé. A grande característica
da vida na cidade é ela estar marcada pelo anonimato, saudade e pelo anseio
por relações pessoais. A espiritualidade cristã quer ser um a oferta e uma res
posta a esse anonimato que despersonaliza e empobrece as pessoas.
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riados âmbitos da comunidade. O trabalho eclesial acontece de tal forma que
o culto se tom a o centro da vida de fé da comunidade. Também são realiza
das celebrações no período de Advento, Quaresma, Páscoa, Natal, Ação de
Graças, Dia M undial de Oração. A comunidade está organizada em diversos
grupos, nos quais acontece uma dinâmica muito ativa de trabalhos específicos,
tais como grupos de Missão Criança, Culto Infantil, Ensino Confirmatório,
Juventude, OASE - Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas, Grupo de
Terceira Idade, Música (coral e gm po vocal), Diaconia (ação social e visita
ção), Estudos Bíblicos, Presbitério, recepcionistas de cultos, entregadores do
jom al “O Caminho”, Cursos (Pais e Padrinhos, Noivos, Membros Novos),
Celebrar e Viver, Deus está Presente. É uma comunidade bastante dinâmica e
com forte presença na realidade social e política da cidade.
A seguir, vamos apresentar e comentar cada uma dessas possibilidades
oferecidas pela comunidade, procurando destacar sua contribuição para a vi
vência de uma espiritualidade contextualizada e atual.
368 KIRST, Nelson. Nossa liturgia: das origens até hoje. Série Colmeia - fascículo 1. São Leo
poldo: Sinodal, 1993. p. 12.
182
2.2.2 - C ultos d e B a tism o e de a niversário d e B a tism o
2.2.3 - C ulto na m a d ru g a d a d a P á sc o a
183
Esse espírito de caminhada conjunta tem o seu ponto alto no culto de
Páscoa, celebrado na madrugada de domingo. Poder celebrar a vitória da vida
sobre a morte exatamente no dissipar das trevas da noite em meio ao raiar de
um novo dia tem uma força espiritual muito grande. Esse culto termina com
a celebração do café da manhã comunitário no salão da comunidade. Para
esse café cada participante traz algo de sua casa, que é colocado numa grande
mesa, na qual todos se servem. E uma experiência do ágape, refeição comum
praticada pelas primeiras comunidades cristãs. O culto na madrugada de Pás
coa tem sido sempre uma experiência de espiritualidade muito marcante. Faz
cinco anos que realizamos esse culto, e a falta de espaço na igreja chega a ser
preocupante.369
2.2.4 - C ulto de N a ta l
369 Maiores informações sobre a Páscoa como evento central da vivência cristã, cf. KIRST,
Nelson. Liturgia, in: SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (Org.) Teologia prática no
contexto da América Latina. São Leopoldo: Sinodal, ASTE, 1998. p. 128-130.
184
2 .2 .6 - C ulto In fa n til
2 .2 .7 - P ro g ra m a C elebrar e Viver370
O projeto teve sua origem na Igreja Luterana dos Estados Unidos (Am erican
Lutheran Church) na década de 1970 sob o nom e “caring com m unity”. Em
1971, o pastor Harry Hinrichs havia assumido o ministério pastoral numa co
munidade evangélico-luterana na região sul de Chicago, bairro com maioria
de população negra. A questão racial era candente e polêm ica. A comunidade
situava-se justamente na rua que dividia o bairro entre o setor “branco” e o se
tor “negro”. N a comunidade, porém, havia poucas famílias negras. Certa oca
sião, a comunidade procurava um novo zelador. Para a vaga candidataram-se
vários membros. N o processo de seleção, evidenciou-se que um membro negro
era o mais qualificado para o cargo. Eleito, porém, foi um branco. A decisão
levou a um conflito na comunidade. Hinrichs relata o fato com o segue: “Essa
decisão abalou minha fé. Ela provocou questionamentos que se tomaram cada
vez mais profundos e fundamentais. Que credibilidade têm nossos belos cultos
se entre nós acontece segregação racial e social? Podem os orar o Pai-N osso e
excluir o irmão negro de nossa comunhão? Com o se relacionam nosso louvor
e a prática do amor ao próximo?”
370 PROJETO Celebrar e Viver - manual para coordenadores. Sínodo Vale do Itajaí - 1ECLB.
As informações aqui constantes foram obtidas nesse manual do Sínodo do Vale do Itajaí.
185
Hinrichs questionava-se: “O que de fato tenho pregado? Quanto disso é com
preendido e integrado na vida dos membros? Som os realmente uma igreja
apenas para a classe média branca? Com o podem os experimentar em nossa
comunhão a força transformadora do evangelho?” Essas perguntas acentuaram
o conflito de Hinrichs com o presbitério. Sua dem issão foi inevitável.
Em sua nova comunidade em Green Bay, W isconsin, Hinrichs encontrou uma
equipe de lideranças que o auxiliaram a desenvolver, a partir de seus questio
namentos, o projeto “caring com m unity” (“comunidade solidária”, “tragfahi-
ge Gemeinschaft”). Hinrichs relata: “Eu me lembro dos preparativos para o
culto dominical. Eu via com cada vez mais clareza a ligação entre os passos
litúrgicos: A colhida - Confissão de Pecados - Palavra - Confissão da Fé -
Ofertório - Santa Ceia. Cada passo contém de forma concentrada e sim bólica
a totalidade da vida. Eles interpretam nossa vida com D eus e nossa vida uns
com os outros. Se os sím bolos cristãos forem redescobertos em comunhão, a
compreensão e a experiência do corpo de Cristo conduzirão a novos p osicio
namentos e atitudes”. O sucesso da “caring com m unity” foi tal que a American
Lutheran Church solicitou que Hinrichs colocasse seu projeto à disposição de
todas as comunidades da igreja.
N a década de 1980, o projeto chegou à Igreja Evangélica da Alemanha, onde
recebeu o nom e de “Gottesdienst Leben”. A partir dessa nomenclatura pro
vém também a sugestão do nom e em português: “Celebrar & Viver”. Enquanto
“Celebrar” remete aos passos litúrgicos, “Viver” lembra a relação do projeto
com a totalidade da vida. N o Brasil, o curso “Celebrar & Viver” foi realizado
pela primeira vez em 1994 na Paróquia Matriz de Porto A legre sob a coorde
nação do pastor Kurt Rieck. D esde 2001, a A ssessoria de Formação do Sínodo
Vale do Itajaí oferece treinamentos para obreiros/as e paróquias interessadas.
Um manual de cerca 100 páginas subsidia o treinamento e a realização do
projeto nas paróquias.
186
namento o processo de aprendizado pelo qual passaram no Curso de Multipli
cadores. Cada um dos seis passos de Celebrar & Viver será, paulatinamente,
explicado teologicamente e depois exercitado. Entre o 6o e o 7o encontros
pode ser realizado um retiro de final de semana.
G ra n d e G rupo: Após três meses de projeto (12 encontros), o Grupo de
Treinamento convida mais 20 a 30 pessoas para participar dos 12 a 20 encon
tros seguintes, formando o Grande Grupo. Nos cultos, programas e meios de
comunicação, todos os membros da comunidade serão convidados. Com os
membros interessados o Grupo de Treinamento poderá realizar um encontro
de Celebrar & Viver antes de um a inscrição definitiva. N a inscrição, cada
participante assume o compromisso de participar regularmente dos encontros.
Os primeiros sete encontros do Grande Grupo são coordenados pelo
Grupo de Treinamento. Eles transmitem ao Grande Grupo o seu próprio pro
cesso de aprendizado. Após, os participantes do Grande Grupo são desafiados
a auxiliar na coordenação dos encontros.
Para o segundo e o quarto passos de Celebrar & Viver (Confissão de
culpa/Absolvição e Confissão de fé), o Grande Grupo subdivide-se em G ru
pos Fam iliares, constituídos por 5 a 7 pessoas. Nesses pequenos grupos, pre
ferencialmente heterogêneos, acontecem de forma mais intensiva o comparti
lhar e a comunhão. Os membros do Grupo de Treinamento serão distribuídos
equitativamente entre os diversos Grupos Familiares.
C ontinuidade: O projeto Celebrar & Viver deve ser encerrado no prazo
predeterminado. Importante é avaliar as experiências feitas. Os participantes
poderão escolher um a nova atividade na comunidade onde queiram se engajar
ou outro curso em que desejam participar. Provavelmente haverá interesse em
aprofundar-se na fé e no conhecimento da Bíblia. A partir da vivência da li
turgia de forma dinâmica e existencial no projeto, é possível que participantes
aceitem o convite para integrar uma Equipe de Liturgia em sua comunidade.
Outros aceitarão de bom grado o convite para integrar a equipe de apoio de
um próximo projeto.
Os seis passos litúrgicos dos encontros são os que seguem:
Invocação/C ham ado/A colhida - M em ória do B atism o [Plenário -
5 minutos]-. “Nós somos chamados em nome do Deus Triúno, Pai, Filho e
Espírito Santo” (Isaías 43.1). Na invocação, somos lembrados de nossa voca
ção. Somos lembrados de nosso Batismo, no qual fomos chamados pelo Deus
Triúno e em cujo nome estamos reunidos. Esse Deus está presente em todas
as situações de nossa vida com o seu chamado. Eím “cartão de chamada”, con
feccionado por cada participante, lembra-nos do contexto existencial no qual
estamos inseridos: família, vizinhança, profissão, escola, sociedade. Todos os
participantes são acolhidos pelo próprio nome: “NN tu és chamado!”
187
Confissão da culpa - Absolvição [grupos familiares -1 5 -2 0 minutos]:
“Como vivi a semana que passou?” Aqueles que desejarem podem compar
tilhar (“sharing” - somente ouvir, não discutir ou problematizar) suas expe
riências em seu contexto existencial e são ouvidos pelo grupo familiar. Depois
de 15 minutos, o grupo familiar entoa um “Kyrie” (canto litúrgico), no que é
seguido pelos outros grupos à medida que vão encerrando seu compartilhar,
até todos estarem cantando a uma só voz no plenário. Alguém diz: “Cristo
aceitou os pecadores e perdoou seus pecados. Em nome de Cristo também os
teus pecados estão perdoados” . O grupo responde com “Amém”, e entoa-se
em conjunto o canto de “Glória”.
P a lav ra [plenário - 45 minutos]: Inicia-se lendo um trecho da palavra
de Deus, a Bíblia. Cada semana, um círculo familiar prepara a interpretação e
a atualização da Palavra, geralmente o texto do próximo domingo. Pergunta-
-se, inicialmente, em que situação histórica o texto foi dito pela primeira vez
(“palavra histórica” - “o que Deus disse no passado?”). Depois pergunta-se
pelo seu significado para a situação atual (“palavra atual” - “o que Deus diz
hoje?”) e para a situação pessoal (“palavra pessoal” - “o que Deus diz para
mim?”) de cada participante. Os coordenadores são motivados a usar de muita
criatividade para tom ar viva a Palavra e sua mensagem.
Confissão de fé [grupos fam iliares - 10-15 minutos]'. A Palavra espera
por uma resposta pessoal de fé. Nos círculos familiares, compartilha-se o que
a Palavra nos diz pessoalmente. Compartilha-se igualmente a que essa Palavra
desafia concretamente (serviço/diaconia) no contexto existencial. Escolhe-se
um símbolo para o desafio que aceitamos. Normalmente, encerra-se esse pas
so orando em conjunto o Credo Apostólico.
O fertório [plenário - 1 5 minutos]: Aqui as pessoas ofertam a Deus e
ao próximo o que são e têm (Romanos 12.1-2). A mesa eucarística é prepara
da com os elementos da Santa Ceia, as velas são acesas. Alguém diz: “Trazei
o vosso sacrifício de serviço para o altar de Deus, tendo em mente também
vosso altar do dia a dia” . Alguns trazem os símbolos de seus desafios e servi
ços para o altar. Ora-se em comunhão, intercalando as preces com o “Kyrie”
(Oração de Intercessão).
S anta C eia [plenário - 15 minutos]: Celebra-se o dom da comunhão
com Deus e com irmãos e irmãs. Partilha-se o corpo de Cristo e experimenta-
-se o tomar-se seu corpo. Faz-se a memória da vida, morte e ressurreição de
Cristo por nós, experimenta-se a alegria com a sua presença na comunidade
de irmãs e irmãos, recebe-se perdão e contempla-se a ceia futura no seu reino.
Louvor (Prefácio e Sanctus), instituição, voto de paz, distribuição dos elemen
tos, oração e bênção são as partes litúrgicas deste último passo, após o qual
todos se despedem com um canto final.
188
As experiências todas com o Celebrar & Viver foram muito gratifican-
tes. Os encontros sempre foram avaliados de forma muito positiva. Vale a
pena investir nesse tipo de espaço de espiritualidade.
2 .2 .8 - D e u s está presente^1'
189
comprovados e aprovados, relacionados sempre com conteúdos de tradição
cristã. Eles possibilitam concentração interior e convidam o/a participante a
parar e quedar, ou seja, olhar para o essencial.
O programa Deus está presente não é propriamente um curso de m edi
tação, mas tem elementos de meditação. A palavra meditar quer designar uma
postura entre atividade e passividade. Não se trata de fazer (ativo) nem deixar
estar (passivo), mas sim de deixar-se envolver e deixar acontecer. O soltar-se
e o deixar ou liberar o que incomoda são pré-requisitos importantes.
A meditação cristã pressupõe a palavra de Deus e visa a um enraiza
mento e crescimento cada vez mais fortes nela. O alvo da meditação é ex
perimentar Deus e vivenciar a si mesmo renovadamente por meio dele. O
direcionamento amoroso e absoluto para Deus e sua Palavra precede a m edi
tação. É, pois, necessário um relacionamento constante e contemplativo com
Deus, para que o Deus que fala possa ser experimentado. Quer-se praticar a
meditação.
Um exemplo de meditação que nunca cessa encontramos no Salmo 1.2:
“Antes o seu prazer está na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noi
te”, que significa recitar à meia-voz a palavra de Deus. Com ela entrelaça-se
uma técnica de meditação que pode ser descrita acertadamente como “rum i
nação” . Com relação a ela, Lutero diz em sua preleção dos Salmos: “Meditar
cabe somente aos seres humanos, pois imaginar e pensar parece que também
os animais podem. [...] M editar e pensar são coisas distintas; pois meditar
significa pensar de modo profundo e cuidadoso, na verdade ruminar no cora
ção. Meditar é demorar-se no centro ou ser movido pelo centro ou pelo mais
profundo”372.
2 .2 .9 - C ulto d e Tomé
Um breve histórico373
Outro espaço de espiritualidade que a comunidade proporciona é o Cul
to de Tomé. Essa proposta nasceu em Helsinque, capital da Finlândia, em
1987, após uma evangelização que reavivou comunidades e despertou muitas
pessoas para uma vida de fé. Diante da crescente preocupação pelo fato de que
somente 2% dos membros participavam regularmente do culto tradicional,
a comunidade reavivada se perguntou: O que podemos oferecer a toda essa
gente faminta e sedenta pelo evangelho?
190
Nasceu então um grupo de trabalho com a tarefa de formular uma pro
posta de celebração que atendesse melhor os anseios do povo numa realidade
urbana. Esse grupo foi integrado por membros participantes da vida comuni
tária, bem como por pessoas distantes; por pessoas simples, bem como por
autoridades e empresários.
A celebração deveria proporcionar a edificação de uma viva comunhão
cristã e tomar-se um lar espiritual para homens e mulheres, que em nossas
cidades frias e desumanas buscam identidade, compreensão e valorização. Ela
também deveria ser uma porta aberta para o diálogo com pessoas em crise,
com dúvidas e pessoas críticas à igreja.
A celebração foi chamada de “Culto de Tomé” . Tomé é o discípulo de
Jesus que teve dúvidas acerca da ressurreição de Cristo (João 20.24-29). Ele
precisava de algo mais do que unicamente o testemunho falado; precisava ver
e tocar em Jesus para poder crer. Essas dúvidas e necessidades de Tomé tam
bém estão presentes hoje, de forma especial no meio urbano. O Culto de Tomé
visa responder a elas através de um a celebração mais envolvente, significativa
e simbólica. Ele nos ajuda a experimentar comunhão com Deus não só pela
audição, mas também pela visão, olfato, paladar e tato.
Em São Bento do Sul, o culto foi introduzido em 2007. Ele é realiza
do duas vezes por ano, uma em cada semestre. Temos tido resultados muito
positivos com essa iniciativa. Esse culto é sempre aguardado com muita ex
pectativa. Ele foi celebrado pela prim eira vez apenas com os participantes do
programa Celebrar & Viver, os quais depois passaram a formar a equipe de
apoio ou equipe litúrgica, como também podem ser chamados.
191
Em um espaço reservado colocam-se duas cadeiras, frente a frente, uma
para o/a ministro/a, outra para os participantes, que servirão de Estação da
Intercessão Pessoal.
O grupo de apoio veste-se de roupa escura e sobrepõe uma estola bran
ca. Isso vale também para os ministros/as, o que vem a reforçar a ideia do
sacerdócio geral de todas as pessoas crentes.
Roteiro do culto
A igreja permanece fechada até dez minutos antes do início da celebra
ção. Quando se abrem as portas, o grupo de apoio recepciona os participantes.
Na igreja, há música de fundo.
Entrada
Após o badalar dos sinos, o grupo de apoio entra na igreja em procissão;
entoando um hino de louvor e carregando velas, dirige-se ao altar e deposita
as velas a seus pés.
Acolhida e saudação trinitária
Poderá ser feita por um ministro/a ou integrante da equipe de apoio.
Louvor
Por ser um a proposta diferente do culto tradicional, sugere-se um a mú
sica alternativa, conduzida com outros instrumentos que não o órgão. (Em
nosso culto, formamos um grupo de canto acompanhado por violões.) A pro
posta é que sejam cantados aqui vários hinos.
Confissão de pecados
A confissão de pecados é tema central no Culto de Tomé. Pecado é
quebra de relacionamento entre Criador e criatura e crise de relacionamento
com o próximo e comigo mesmo. O pecado gera sentimentos de culpa, dívida
e indignidade. E necessário libertar-se desses sentimentos para viver feliz,
confessando pecados, recebendo a absolvição e vivendo do perdão.
O Culto de Tomé proporciona um caminho amoroso para esse processo.
Estabelece uma atmosfera de aceitação, de compreensão e confiança, propor
ciona um clima em que posso dar-me a conhecer como realmente sou. Posso
mostrar o meu lado bom e ruim, as minhas trevas e a minha luz, saber-me
aceito e perdoado.
A confissão de pecados é introduzida com a leitura de um salmo (Pro
postas: Salmos 30, 32, 51, 90, 139 e outros). Seguem a oração de confissão e
um canto comunitário de confissão.
Fase dinâmica
Essa é ao mesmo tempo o centro e a grande novidade do Culto de Tomé.
Vivemos em um mundo onde todos estão carregando aflições, sofrimentos,
inquietações, desespero. Diante dessa situação, Deus vem ao nosso encontro e
convida-nos através de Jesus Cristo: Vinde a mim todos os que estais cansados
192
e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei
de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para
as vossas almas. Porque o meu ju g o é suave e o meu fardo é leve (Mateus
11.28-30).
A fase dinâmica visa promover esse encontro reconfortante com Cristo
através do silêncio, meditação, introspecção, oração, ação simbólica, diálogo
e bênção.
Todos os participantes são convidados a participar das estações. Po
derão decidir de que maneira querem participar, havendo a possibilidade de
permanecer em seus lugares para momentos de reflexão pessoal ou de leitura
bíblica.
Estação das orações individuais - Cada participante é convidado a di
rigir-se a esse altar e depositar um a pedra sobre ele, lembrando suas dificulda
des, doenças e crises. Em seguida, acende-se um a vela, lembrando que Jesus
Cristo, a luz do mundo, quer ser a luz em nosso caminho e caminhar conosco
em meio às nossas dificuldades. Junto com a ação simbólica faz-se um a ora
ção, levando a Deus as súplicas e a gratidão.
Estação da Oração pelo Mundo - Nesse altar, os participantes inter
cedem pelo mundo com seus sofrimentos. Ao fazê-lo, as pessoas acendem
uma vela. Pode-se fazer menção a temas como a paz no mundo, a natureza, a
educação. É possível o grupo de apoio sugerir uma situação específica para a
oração da comunidade.
Estação das Intercessões - Nesse local, através da escrita, cada parti
cipante formula suas orações pessoais ou gerais. Cada um dirige-se à mesa e,
servindo-se de caneta e papel, escreve sua oração. Dobrando o papel, coloca-o
no cesto sob a mesa. Esse cesto será trazido ao altar principal no final da fase
dinâmica. As orações não serão lidas, mas sim levadas a Deus, que tudo sabe.
Na oração final e após o culto, elas serão incineradas.
Estação da Intercessão Pessoal - Diante de cada ministro/a há uma ca
deira vaga, e os mesmos estarão à disposição para um breve diálogo e momen
to de intercessão. Após o diálogo, o ministro colocará a mão sobre o ombro do
participante e fará uma oração.
A fase dinâmica leva entre trinta e quarenta e cinco minutos, dependen
do do número de participantes da celebração. Nossa experiência tem mostrado
que a procura pela intercessão pessoal é muito grande, e é importante que se
possa contar com o apoio de mais de um ministro/a. Durante a fase dinâmica
também há música de fundo.
Louvor - Durante o louvor é trazido até o altar principal o cesto com as
orações escritas.
193
Palavra de absolvição - Levando em conta que toda a fase dinâmica
é um “derramar o coração perante Deus e se dar a conhecer”, cabe aqui uma
palavra formal de absolvição.
Unção com óleo - No Culto de Tomé, a unção com óleo é a celebração
do “sim” de Deus. Sim que Deus nos disse no Batismo e que mantém fiel, ape
sar de nossa infidelidade. Para pessoas que estão acostumadas a ouvir tantos
“nãos”, o sim de Deus é remédio que liberta e alivia. Lembramos que o grande
sim de Deus, garantia de seu amor e sua fidelidade, está na dádiva de Jesus
Cristo, o nosso Salvador.
Alguns integrantes do grupo de apoio colocam-se junto ao altar, ten
do consigo um recipiente com óleo para unção, de preferência um a essência
aromática. O participante coloca-se diante de um desses e diz o seu nome.
Seu nome é repetido, e o sinal da cruz é feito na testa do ungido, dizendo-se:
“Receba este óleo como sinal do grande amor de Deus. Vá em paz”. Durante
a unção, também há música de fundo na igreja.
L o u v o r - Aqui cantam-se hinos de alegria e gratidão.
Prédica - Procuramos fazer um a pregação temática, mais curta do que
a pregação de um culto tradicional. O tema da pregação também é o tema de
todo o culto.
Confissão d e f é - Poderá ser feita com um dos credos tradicionais ou
um credo cantado.
Louvor - Canta-se aqui um hino de preparo para a Santa Ceia. Também
poderá ser substituído pelo hino do ofertório.
Santa Ceia - Segue a liturgia da Santa Ceia. Conforme a proposta do
culto, celebramos a Ceia de forma bem dinâmica. Para expressar mais clara
mente a comunhão dos pecadores perdoados, fazemos um grande círculo para
a distribuição. A distribuição é feita pelos integrantes do grupo de apoio.
Oração fin a l - Nessa são incluídas todas as intercessões escritas. Para
simbolizar isso, a pessoa que dirige a oração deverá ter a cesta em suas mãos.
Seguem a bênção, o envio, o louvor e no final a saída, na qual o grupo de apoio
sai em procissão pelo corredor central da igreja levando consigo as orações es
critas, que serão incineradas na presença de todos no pátio da igreja. Durante
a ação canta-se um hino de louvor. E, no final, a confraternização, momento
em que todos se dirigem ao salão comunitário para um cafezinho, que é pro
videnciado pelo grupo de apoio.
O Culto de Tomé proporciona uma experiência profunda que vale a
pena realizar e que compensa todo esforço investido. Por outro lado, ele exige
bastante tempo de preparo. Muitas pessoas precisam estar envolvidas e aplicar
os seus dons. E necessário também realizar uma boa divulgação. Há de se ter
abertura para mudar conceitos. Mas o resultado é surpreendente.
194
2 .2 .1 0 - M editação vespertina
374 Sobre a meditação como proposta para uma espiritualidade no cotidiano veja artigo de IL-
LENSEER, Louis Marcelo e SANTOS, Joe Marçal Gonçalves dos, in: Tear. Liturgia em
Revista do Centro de Recursos Litúrgicos. São Leopoldo: EST, n. 25, p. 7-10, maio de 2008.
195
para citar os mais usados.375 O uso desses devocionários cria espaços signi
ficativos, nos quais a fé das pessoas é alimentada e a prática da meditação e
o recolhimento são perpetuados. Evidentemente, com os devocionários po
demos supor a leitura da Bíblia, de livros de edificação cristã, de teologia ou
outros que aprofundam a vivência da espiritualidade cristã.
375 Numa contagem feita a partir das tiragens desses devocionários, supondo que duas pessoas
leiam o mesmo material uma ou outra vez, pode-se afirmar que eles atingem diariamente
mais de 100 mil pessoas na 1ECLB. Se isso for verdade, a pergunta que fica é como apro
veitar de uma forma mais participativa toda essa busca das pessoas por uma espiritualidade
que lhes fortaleça a alma e o espírito no cotidiano de suas vidas, hoje tão marcadas por
incertezas, crises e dúvidas.
376 SECONDIN, Bruno. Como e por que cultivar a espiritualidade no coração da modernidade
em crise. Grande Sinal, v. 53, n. 6, p. 767, 1999.
377 SECONDIN, 1999, p. 768.
378 BRANDT, 2006, p. 33.
196
ford-Ruether, a espiritualidade da libertação de Ivone Gebara no Brasil, a es
piritualidade afro-americana, as diferentes espiritualidades indígenas e outras.
Conforme Secondin, tudo isso aponta para a necessidade e a chance de novos
“modelos de completude”, novos “caminhos do Espírito” próximos a nós,
mais integrais, inclusivos, holísticos, libertadores.379
Essa espiritualidade teria que abandonar sua abordagem estritamente
confessional para tomar-se mais descritiva, analítica, multidisciplinar, ecu
mênica, multicultural, holística e inclusiva. Também os binômios céu-terra,
natural-sobrenatural, graça-pecado, masculino-feminino, razão-emoção, ins-
tituição-profecia, memória-futuro, tradição-inovação, sagrado-profano devem
ser superados.380 Importante é também recuperar o corpo na espiritualidade.
Ainda são muito fortes as influências de Agostinho e Tomás de Aquino, no que
se refere a uma espiritualidade inimiga da corporeidade, pois eles traziam con
sigo a visão platônica e aristotélica de que o corpo é a parte inferior e caduca da
pessoa e da personalidade. A espiritualidade contemporânea precisa considerar
a importância do corpo, pois a espiritualidade do corpo reconhece a variedade
e a diversidade, a fragilidade e a finitude do corpo humano. Mais ainda, que a
vivência da fé só pode ser corporalmente integral (corpo - mente - espírito). A
partir do momento em que se tem respeito pelo processo de envelhecimento,
pelos ciclos naturais do corpo humano e do seu lugar no mundo, pode surgir
uma espiritualidade que toma cuidado do corpo humano sem transformá-lo em
ídolo.381 Conforme Secondin, é também graças ao eco feminismo que se chega
a uma visão de profunda integração entre microcosmo e macrocosmo, entre a
vida pessoal e seus mistérios e o cosmo inteiro como fonte e suspiro de vida.382
São várias as possibilidades e os desafios para a espiritualidade que
deseja dialogar com novos cenários culturais.383 Uma delas é auscultar o “co
ração” do ser humano contemporâneo mergulhado em suas crises.384 Tentar
compreender o que ele anda procurando, o que o fascina e o que o interpela e
inquieta. Vivemos num tempo de mudanças tão profundas, que se tem perdi
do a memória das origens e se vagueia para lá e para cá, experimentando um
197
tempo de transição, de tal modo que a impressão que fica é que não se chega
a lugar nenhum.
Outro aspecto a considerar é exercitar um olhar contemplativo.385 Bus
car captar os sinais ainda fracos de um novo mundo que vem à luz. A tarefa
aqui é ficar de sentinela, vigiando e intuindo, olhando e perscrutando a noite,
para perceber os sinais do novo que se aproxima.
Não se trata de sacralizar qualquer fenômeno que se chame de “procura
do sagrado” , “necessidade espiritual” , “experiência interior” . Conforme le-
mos em 1 João 4.1, é preciso colocar à prova as inspirações, para saber se vem
mesmo de Deus. A sabedoria típica da espiritualidade cristã deve capacitá-la
a reconhecer aquilo que é autêntico e separá-lo das modas espirituais vazias
de substância. O próprio Dalai Lama, líder do budismo tibetano, sob uma
perspectiva não cristã, também critica a apropriação apressada de aspectos
da meditação oriental feita por ocidentais, pois ela se tom a superficial e sem
profundidade.386
Buscar símbolos novos, criativos, que correspondam às novas necessi
dades e às novas experiências, faz-se também necessário. A busca por novas
chaves de leitura se impõe para reinterpretar a história e não repetir simples
mente de maneira fetichista as teorias do passado. Possibilidade e tarefa, ao
mesmo tempo, é caminhar em direção a uma espiritualidade realmente liber
tadora e curadora neste mundo dividido, injusto, irresponsável e suicida. Ne-
cessita-se urgentemente de uma espiritualidade que venha a ser uma proposta
terapêutica387, que seja caminho de salvação e redenção. Uma espiritualidade
capaz de criar uma comunidade que seja solidária com a dor e o sofrimento,
que seja capaz de exercitar o ministério da cura.388 À medida que for liberta
dora, ela irá coincidir com a presença surpreendente do reino de Deus que vem
a nós e que é um reino de justiça a orientar toda ação libertadora. É assim que
se poderá ir fomentando o aparecimento de um estilo de vida comum e soli
dário.389 Essa espiritualidade precisa aprender a convivência das diferenças,
aprender o que é a ecojustiça a partir de uma experiência de vulnerabilidade,
imperfeição e empatia. A espiritualidade precisa ouvir o “grito pela vida”, que
se faz ouvir de tantas situações de opressão e morte. Ela precisa aprender a
não continuar falando de maneira “platônica”, fora da história.
385 BOFF, Leonardo; BETTO, Frei. M ística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
386 LAMA, Dalai. Caminho da sabedoria, caminho da paz. Porto Alegre: L&PM, 2009.
387 HOCH, Lothar C. (Org.). Comunidade terapêutica: cuidando do ser através de relações de
ajuda. São Leopoldo: EST, Sinodal, 2003.
388 ULRICH, Claudete Beise e KIEFER, Wemer. Ao Deus desconhecido. Um encontro na cida
de de Atenas. Estudos Bíblicos, n. 36, p. 47, Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1992.
389 BRANDT, 2006, p. 34.
198
Uma espiritualidade que se alimenta do Cristo ressurreto vai necessa
riamente empenhar-se pela reconciliação e paz. O ministério da reconciliação
confiado por Jesus a seus seguidores tem por finalidade promover a paz, o
shalom que vai superar barreiras culturais entre os povos, que vai buscar uma
paz social.390
Urge que a espiritualidade cristã deixe de ser retaguarda para transformar-
-se em vanguarda, espiritualidade que corre à frente, que exerce mais profecia do
que conformismo. Ela deveria atuar como “sabedoria orientadora” que alimenta
a sinceridade e a audácia, que aponta para caminhos mais largos, caminhos de
antecipação profética. A espiritualidade deve aprender e ensinar a interpretar
os “sinais dos tempos”. Ela deve insistir sobre a alteridade do divino, sobre
sua incognoscibilidade, sobre o “totalmente outro”, sobre a “graça a um alto
preço”. A espiritualidade precisa enfrentar o supermercado do sagrado selva
gem, o retomo drogado da religião e da religiosidade, o fascínio da experiência
religiosa disponível a preços módicos, mesmo a prestações. Só irá sobreviver a
espiritualidade que dá conta da responsabilidade do ser humano, que dá sentido
à existência material, ao mundo da técnica e, de modo geral, à história. Deverão
perecer as espiritualidades de evasão, as espiritualidades dualistas.
A espiritualidade cristã nos dias tumultuados em que vivemos precisa
saber conjugar a palavra de Deus com os sinais dos tempos e dos lugares. Ela
precisa carregar dentro de si a marca da solidariedade para com todos aqueles
que lutam e esperam uma vida menos injusta e humilhada pela opressão e vio
lência. A espiritualidade precisa abrir-se ao universal, acolher os sofrimentos
e as esperanças dos seus irmãos e irmãs, tecer sempre de novo alianças de
fraternidade e reconciliação entre povos e raças, entre homem e mulher, entre
jovens e idosos, entre memória e utopia.
A espiritualidade que tem possibilidades no meio urbano é aquela que
for intensa e arrebatadora, que souber interagir com as pessoas, uma espiri
tualidade centrada na graça, pois ela caracteriza Deus como aquele que vem
ao encontro do ser humano, não para condenar, mas para manifestar a sua
misericórdia. Porque Deus é aquele que é capaz de buscar e criar das trevas
a luz, do caos a beleza. Tal espiritualidade abre possibilidades à medida que
é poimênica e dialogai, que considera a vida com sensibilidade e respeito no
que se refere às suas crises e angústias e dá voz ao que sofre. A linguagem dos
Salmos, nesse sentido, é e será sempre uma fonte inesgotável para tal espiri
tualidade, pois ela capta na oração cotidiana as dores e angústias, o sofrimento
e as perdas e coloca-as diante de Deus, criador do céu e da terra, mas que não
esquece nem abandona a pessoa pobre, sofredora, vulnerável e humilde.
199
Uma espiritualidade como vimos apresentando terá possibilidades se
for enraizada na comunidade e mostrar-se engajada socialmente, se estiver em
tensão entre a manifestação da graça e o sofrimento, pois a graça de Deus atua
no mundo através de gestos de misericórdia, manifestados através de todos os
que foram atingidos por essa misericórdia. Portanto também não poderá ser
ingênua, mas autocrítica, pois os sistemas que produzem a morte não mudam
seu padrão de comportamento se não forem desmascarados e se não houver
uma mobilização que os reprima. Não por último, essa espiritualidade precisa
ser cristocêntrica, ela precisa apontar para Jesus como testemunho em meio à
vida numa dimensão relacionai. A espiritualidade cristã é a vivência atual da
fé no Espírito de Cristo, crucificado e ressurreto e que continua a interceder
por nós diante de Deus (Hebreus 7.25).
Conclusão
200
No movimento da Reforma do século XVI, encontramos Lutero, que
herda as formas fundamentais da espiritualidade medieval monástica. Essa se
caracterizava pelas instruções sobre métodos de meditação de textos da Escri
tura, sobre como lutar contra as tentações, sobre como viver os sacramentos,
sobre a vivência do amor e da solidariedade cristãs. Lutero, entretanto, subme
teu essa forma de piedade à teologia da Reforma, que vai resultar num exercí
cio espiritual composto por concentração, meditação e oração, sem esquecer
a passagem pela tentação.
Foi importante descobrir que a espiritualidade que hoje celebramos é
herdeira de um mar de experiências espirituais vividas por pessoas de fé no
passado e que através dessas formas de espiritualidade buscaram a cura e li
bertação para suas angústias e males.
O segundo tópico do estudo trouxe diferentes modelos de espirituali
dade, vividos na cidade atualmente. Nele apresentamos as necessidades es
pirituais das pessoas que vivem na cidade e a importância de ir forjando uma
espiritualidade que possa criar núcleos de relacionamento, com o objetivo de
dar identidade, criar espaços nos quais se possa trabalhar a fé que leva em di
reção ao outro, à fé relacionai. Mas o mais básico de tudo foi demonstrar que
as pessoas querem ser amadas, respeitadas como gente, querem experimentar
que são amadas por Deus através da comunidade de fé. Essa é uma necessi
dade relevante nos dias de hoje, porque a vida na cidade está marcada pelo
anonimato, pela saudade e pelo anseio por relações pessoais.
Perguntando por modelos, essa pesquisa apresentou espaços e formas
de espiritualidade, existentes na Comunidade Evangélica de Confissão Lute
rana de São Bento do Sul, SC. Apresentou as diferentes formas de culto comu
nitário que atualmente têm lugar na comunidade, como os cultos de Batismo
e aniversário de Batismo, culto na madrugada da Páscoa, culto de Natal, culto
de idosos, Culto Infantil, Culto de Tomé. Além dos cultos, também fizemos
referência a programas de espiritualidade como o Celebrar & Viver, Deus
está presente, a meditação vespertina, apresentados e destacados como sig
nificativos espaços para a vivência da espiritualidade, sem desconsiderar os
espaços de espiritualidade gerados nos diferentes grupos da comunidade e nos
espaços domésticos. Constata-se com isso que a comunidade local oferece um
leque bastante amplo, com diferentes e significativos espaços de espiritualida
de para os mais variados segmentos da sociedade e que têm sido buscados e
freqüentados por um significativo número de pessoas.
A partir da questão levantada no começo do trabalho acerca dos limites
e possibilidades de uma espiritualidade urbana, a presente pesquisa constata
que a espiritualidade tem possibilidades e chances na realidade urbana, mas
com certeza também tem tarefas urgentes a realizar. Quer dizer, a espiritua
lidade cristã passa pelo contexto cultural, sendo ele uma oportunidade favo
201
rável. A vida cotidiana, as vivências históricas concretas e as emoções cole
tivas precisam estar presentes na vivência dessa espiritualidade. As alegrias
e esperanças, tristezas e angústias do ser humano precisam ser consideradas
pela espiritualidade cristã. Por isso ela vai estar caracterizada pela exigência
de compromisso, de entrega. A espiritualidade cristã necessita tomar-se mais
descritiva, analítica, multidisciplinar, ecumênica, multicultural, holística e in-
clusiva, de tal modo que os binômios céu-terra, natural-sobrenatural, graça-
-pecado, masculino-feminino, razão-emoção, instituição-profecia, memória-
-füturo, tradição-inovação, sagrado-profano sejam superados. E, não por últi
mo, afirmamos que é importante recuperar o corpo na espiritualidade, como
Rubem Alves, Ivone Gebara, Maria Soave, Leonardo Boff, Frei Betto e outros
teólogos e místicos têm enfatizado ultimamente.
O presente trabalho apresenta como possibilidade e tarefa, ao mesmo
tempo, caminhar em direção a um a espiritualidade libertadora, curadora e te
rapêutica, por isso capaz de criar uma comunidade que seja solidária com a
dor e o sofrimento das pessoas. Ora, uma espiritualidade que se alimenta do
Cristo ressurreto vai empenhar-se pela reconciliação e paz, superando barrei
ras culturais entre os povos. Podemos afirmar, assim, que a espiritualidade
cristã tem possibilidades no meio urbano enquanto for intensa e arrebatadora
e souber interagir com as pessoas. Enquanto estiver centrada na graça liber
tadora, a espiritualidade cristã sempre será uma superação, um modo e um
desafio para as pessoas dos dias de hoje, pois a graça nos fala de Deus como
aquele que vem ao encontro do ser humano para manifestar sua misericórdia
ontem, hoje e sempre.
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