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A Opção pelos Pobres e a Misericórdia de Deus

Paulo Fernando Carneiro de Andrade

1. Introdução

Desde os anos 60 a chamada “opção pelos pobres” constitui-se em um dos pontos centrais

da Igreja Latino-americana e da Teologia da Libertação. A Igreja desde seus primórdios teve

uma particular atenção pelos pobres como evidenciam os Padres da Igreja1. De modo semelhante

na Idade Média encontramos uma densa experiência de proximidade e efetivo cuidado com os

pobres em grande parte da Igreja2. Em épocas mais recentes o cuidado caritativo dos pobres por

parte de diversas instituições ligadas à Igreja como hospitais, asilos, escolas são também um

tradução desta especial relação que os cristãos devem manter com os pobres. No Concílio

Vaticano II a questão da pobreza motivou um contingente de bispos a assumirem um

compromisso com os pobres e um modo de vida simples. Este documento conhecido como

“Pacto das Catacumbas da Igreja Serva e Pobre” firmado por cerca de 40 Padres conciliares em

16 de novembro de 1965 após uma celebração eucarística nas Catacumbas de Santa Domitila

expressa uma vertente importante do espírito do Concílio3. Embora os signatários tenham optado

por não divulgarem seus nomes sabe-se que entre eles figurava em papel de liderança D. Helder

Câmera. Este mesmo espírito levou nos anos 60 um grande número de Padres e Religiosas a

abraçar um novo estilo de vida e a constituir comunidades inseridas em meios populares,

1
Para uma coletânea significativa de textos Patrísticos sobre a questão social e econômica veja-se: R. Sierra Bravo,
Doctrina Social y Economica de los Padres de La Iglesia, Compi, Madri, 1967.
2
Veja-se o excelente estudo de Michel Mollat (M. Mollat, Les Pauvres au Moyen Age, Hachette, Paris, 1978).
3
Veja-se B. Klopenpurg (org) Concílio Vaticano II. Vol V, Quarta Sessão, Vozes, Petrópolis, 1966, p. 526-528.
2

condividindo condições de moradia com os pobres, testemunhando o sofrimento cotidiano dos

marginalizados e explorados. A Opção pelos Pobres feita pela Igreja Latino Americana e

assumida nos Documentos do Episcopado Latino Americano, de Medellin à Aparecida possui

dois significados particulares. O primeiro é o da mudança de lugar social: a identificação com os

pobres deve nos levar a ver o mundo com seus olhos, a mudar nossa perspectiva, nossos

interesses, nossa compreensão da realidade. O segundo significado, indissociável do primeiro, é

o de que esta opção deve nos levar a criar condições para que o pobre seja o sujeito das

necessárias transformações sociais e, também, um sujeito eclesial pleno. Neste sentido não tanto

“ser a voz dos que não têm voz”, mas sim “dar voz aos pobres” mais do que ser “advogado dos

pobres”, colocar-se ao seu lado na caminhada e nas lutas.

Existiu no passado no ambiente eclesial e muitas vezes até mesmo fora deste uma polêmica

em torno da chamada "Opção pelos Pobres" ou “Opção Preferencial pelos Pobres” que se faz a

partir da Fé. Algumas pessoas julgavam que a expressão é incompatível com a fé crista. Os

motivos alegados eram vários. Uns viam na "opção pelos pobres" um ódio ao rico, incompatível

com o amor cristão. Outros alegavam que esta opção não tem sentido já que os pobres são tão

pecadores quanto os ricos (e aí apontam exemplos de pobres que são ladrões, criminosos,

vagabundos ... ) e Deus não faz distinção de classes, interessando-se apenas pela pureza de

coração. Alguns, entendendo esta opção como amor exclusivo ao pobre, chegaram mesmo a

dizer que ela nega a misericórdia de Deus, que ama igualmente a todos os homens. Tais críticas

foram pouco a pouco perdendo sua razão de ser, sobretudo depois que o Papa João Paulo II

legitimou o uso da expressão “Opção Preferencial pelos Pobres” em suas duas últimas Encíclicas

Sociais (SRS 42, CA 57).


3

Em tempos recentes ressurgiu a crítica à opção pelos pobres feita na Igreja Latino

Americana. Basicamente nesta nova crítica pretende-se opor uma opção pelos pobres feita com

motivações sociais e pessoais àquela feita a partir da Fé, isto é, como cumprimento de um

mandato que nesse caso só pode ser considerado de caráter superegóico. O que está em jogo aqui

é antes de tudo a própria concepção da Ética Cristã e da relação entre a Fé e seu conteúdo Ético e

a chamada Lei Natural. O Magistério da Igreja e a grande tradição teológica tem sempre

acentuado a relação entre o conteúdo ético da Fé Cristã e a chamada Lei Natural. Existe inscrito

na ordem na criação valores e princípios de onde derivam normas para a ação que são universais

e acessíveis a todos os homens e mulheres. Em função mesmo de nossa comum humanidade

temos um comum horizonte de valores universais que podemos reconhecer mesmo sem o auxílio

da Fé. A Fé Cristã e o seu conteúdo Ético ilumina este conteúdo e para o Cristão sobredetermina

seu agir. A opção pelos pobres, vista à luz da Lei Natural, é a tradução em um dos valores éticos

mais básicos: a solidariedade efetiva com o que sofre, com o que não tem possibilidades de

manter uma vida digna, e é injustiçado pelo simples fato de lhe serem negadas estas condições

em um mundo onde o supérfluo de muitos é o necessário que falta a uma multidão. Na Fé cristã

encontramos uma sobredeterminação daquilo que se encontra na Lei natural. Conforme afirmou

o Papa João Paulo II: “...a opção ou amor preferencial pelos pobres. Trata-se de uma opção ou

de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a

Tradição da Igreja. Ela concerne à vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de

Cristo;...”(SRS 42). Neste sentido não se pode opor uma opção pelos pobres por motivações

humanísticas daquela feita pela fé. Na fé encontramos novas motivações que devem nos levar a

uma permanente opção pelos pobres, que não é nem para cristãos nem para não cristãos algo
4

facultativo. Em razão de nossa mesma humanidade e no caso dos cristãos, também por causa de

nossa Fé, somos convocados à solidariedade com os pobres. Neste artigo buscaremos refletir

sobre a relação entre a “opção pelos pobres” e a Misericórdia de Deus a partir dos Evangelhos

Sinóticos e como a indissociabilidade entre a dimensão social e religiosa desta opção é

estabelecida nos Evangelhos mesmo4.

2. Os Pobres e as Três Parábolas da Graça de LC 15

Em primeiro lugar cabe precisar quem eram os pobres no contexto dos Evangelhos

Sinóticos. Na literatura Bíblica Antigotestamentária, de um modo geral, a figura do pobre é

condensada nas trilogia: órfãos, viúva e estrangeiros. Na época de Jesus as condições de vida na

Palestina eram em geral muito modestas. Só uma pequena parte da população hebraica gozava de

condições abastadas de vida. A população de um modo geral vivia da agricultura, da criação de

pequenos animais, da pesca, do artesanato e do pequeno comércio. Algumas profissões, como a

dos publicanos, eram mal vistas e aqueles que a elas se dedicavam eram socialmente

marginalizados. A pobreza era bastante difusa e, de um modo geral, os pobres além de sofrerem

a falta de bens materiais eram social e religiosamente marginalizados, sobretudo quando, a partir

da ótica de uma teologia da retribuição presente em alguns escritos sapienciais e duramente

criticada no livro de Jó, a situação de pobreza era vista como um castigo pelos pecados

cometidos pelo indivíduo ou seus antepassados. O pobre é identificado com o pecador. Por causa

da situação concreta de falta de acesso aos bens materiais necessários a uma adequada

manutenção da vida ou pela situação de exclusão social entre os pobres da Palestina da época de

4
Para uma introdução geral ao Novo testamento veja-se a obra clássica de R. Brown recentemente traduzida no
Brasil: R. Brown, Introdução ao Novo Testamento, Paulinas, São Paulo, 2009. Para os Evangelhos Sinóticos veja-
se: B. Marconcini, Os Evangelhos Sinóticos, Paulinas, São Paulo, 2007
5

Jesus podem ser incluídos os mendicantes, os trabalhadores diários que recebiam um denário por

dia quando conseguiam ocupação, os mutilados, as prostitutas, os publicanos, os portadores de

necessidades específicas, os doentes crônicos ou infecciosos como os leprosos5. Embora Jesus

rejeite explicitamente uma teologia da retribuição que relaciona a causa da pobreza ou do

infortúnio de uma pessoa a uma falta moral (Jo 9,1-3; Lc 13,2), pode-se dizer, entretanto, que a

clássica trilogia do órfão, da viúva e do estrangeiro, que no Antigo Testamento condensa em si

os pobres em geral, é substituída nos Sinóticos pela expressão “pecadores e publicanos”.

“Pecadores e Publicanos” é uma categoria que nos Sinóticos resume e inclui de um modo geral

os pobres e os religiosa e socialmente excluídos da Palestina do tempo de Jesus, em contraste aos

Fariseus e Escribas (Mt 9,10-13), o que não significa que não encontremos também, à

semelhança do Antigo Testamento, diversas passagens em que aparece também diretamente a

expressão “pobres” para designar os materialmente despossuídos e excluídos (Lc 6,20)6.

O capítulo 15 de Lucas inicia-se com uma acusação. A conduta de Jesus para com os

marginalizados era inaceitável. Seus inimigos o acusam de ser comilão e beberrão de vinho,

amigo de pecadores e publicanos (Mt 11,19; 9,10-13; Lc 5,29-32; 7,34; Mc 2,15-17). As

refeições com os pecadores e publicanos que no contexto da Palestina significavam comunhão de

vida constituíam verdadeiros escândalos. Os fariseus e escribas murmuravam: "Este homem

recebe os pecadores e come com eles! (Lc 15,2). Jesus justificava este comportamento

escandaloso apenas dizendo: É este o amor de Deus! É isto que nos revelam as parábolas da

5
Cf. E. Lohse, L’ambiente del Nuovo Testamento, Nuovo Testamento, Supplementi 1, Paideia, Brescia, 1980.
6
Para uma análise do significado dos Fariseus, Escribas e Saduceus na Sociedade de Jesus veja-se: A. Saldarini,
Fariseus, Escribas e Saduceus na Sociedade Palestina, Paulinas, São Paulo, 2009.
6

graça de Deus7. Logo após estes murmúrios dos fariseus e escribas a respeito dos publicanos e

pecadores que se aproximavam para ouvir Jesus e da crítica da atitude de proximidade de Jesus

com eles, Lucas coloca três parábolas de Jesus sobre a graça de Deus como resposta a estas

críticas: as parábolas conhecidas como “a ovelha perdida”, “a dracma perdida” e “o pai

misericordioso (filho pródigo)” (Lc 15.1-32).

A primeira destas parábolas, a da “ovelha perdida” (Lc 15,4-7), ilustra como é o amor de

Deus: um só enquanto perdido e em perigo torna-se mais importante do que noventa e nove. O

pastor não hesita em deixar só as noventa e nove ovelhas que se encontram reunidas no rebanho

para ir buscar a única ovelha que se perdeu e que, estando só, corre especial perigo. Quando ele a

encontra se alegra sobremaneira, retorna para casa e anuncia aos seus vizinhos: “alegrai-vos

comigo, porque encontrei minha ovelha perdida”. Na parábola usa-se o verbo heurisko para

designar o ato de encontrar a ovelha. Heurisko não significa apenas achar, mas encontrar algo

que se procurou, que se buscou com intensidade vital, como na conhecida história sobre

Arquimedes de Siracusa. Este ao encontrar a resposta ao problema que o atormentava, sobre a

autenticidade de uma coroa de ouro, descobrindo a lei do empuxo enquanto tomava banho, saiu

nú gritando: Heureka, Heureka. O Pastor da Parábola é a imagem de Deus Misericordioso que

vai ao encontro de “pecadores e publicanos” não por mérito desses, mas por sua situação de

necessidade. Toda a Sua preocupação se dirige ao que está marginalizado ainda que seja só um

frente a noventa e nove. Deus com sua misericórdia se compadece do que está perdido não por

ser melhor que qualquer outro, mas por estar perdido. Um Deus que ama assim é

incompreensível para os fariseus e escribas. Para eles Deus só podia amar os justos, isto é, a eles

mesmos que não são como o resto dos homens ("ladrões, injustos, adúlteros”), que pagam o

7
Para uma análise mais ampla das Parábolas de Lucas veja-se: M. Gougues, As Parábolas de Lucas. Do contexto as
ressonâncias, Loyola, São Paulo, 2005.
7

dízimo de todos os rendimentos (Lc 18,11-12). Os fariseus consideram-se os justos, perfeitos

seguidores das leis religiosas, mesmo sendo "amigos do dinheiro” (Lc 15,14). Enfim, Deus só

poderia amar a eles mesmos. Na lógica dos fariseus nada mais natural que o desprezo àqueles

que não são iguais a eles (Lc 18,9). E a parábola se conclui com um toque de profunda ironia:

“Haverá mais alegria no Céu por um pecador que se converte do que por noventa e nove justos

que não precisam de conversão”. Afinal quem é o justo que não precisa de conversão? Em outras

palavras se poderia dizer que, “Deus se alegra mais com a conversão de um pecador do que com

a pretendida justiça dos Fariseus que acreditam não ter necessidade do perdão de Deus”8.

A segunda parábola é conhecida como a “dracma pedida” (Lc 15,8-10). Esta parábola tem

o mesmo sentido que a anterior. Chama a atenção para a disposição de Deus em relação àquele

que se acha perdido. Quatro elementos nos chamam a atenção de modo particular. Em primeiro

lugar é uma das poucas passagens bíblicas em que, de modo explícito, a imagem de Deus é uma

mulher. Em segundo lugar trata-se de algo que foi perdido pela dona da casa e não de um animal

ou de uma pessoa que se desgarrou do bando ou se perdeu, o que parece acentuar a irrelevância

do motivo de o objeto, o animal ou a pessoa ter se perdido. Em terceiro lugar o valor da moeda

perdida é de uma dracma, o equivalente a um denário, o valor de uma jornada de trabalho de um

trabalhador diarista e o equivalente a uma pequena parte do que a mulher possuía. Por fim, a

mulher apenas encontra a moeda perdida apressa-se em comunicar com alegria, do mesmo modo

que o Pastor, o ocorrido às suas vizinhas: “Alegrai-vos comigo porque encontrei a dracma que

havia perdido”. O verbo usado é o mesmo: heurisko. Assim como a mulher que perdeu a

Dracma, Deus não se contenta enquanto não vai ao encontro daquele que está perdido. Para Deus

8
Cf Me. Boismard, P. Benoit, Sinopsis de los Cuatro Evangelios, tomo II (comentarios), Desclée de Brouwer,
Bilbao, 1974, p.277.
8

os homens são riquezas que não podem se perder. A parábola termina da mesma forma irônica

que a anterior. A lógica de Deus não é a lógica do mérito, mas da misericórdia. Ele tem sua

atenção voltada para os necessitados9.

A terceira parábola é a mais complexa das três. De certo modo as duas anteriores são como

que uma preparação para esta terceira parábola que se tornou conhecida como “o filho pródigo”,

embora o seu ápice não esteja na primeira parte, mas na segunda, onde se narra o drama do filho

primogênito. De modo mais próprio esta parábola se deveria chamar “A parábola do Pai

Misericordioso e de seus dois filhos”. Na primeira parte da parábola (vv 1-24) encontramos certa

analogia com o tema das parábolas da ovelha e da dracma perdida. No filho pródigo que se perde

no mundo coincidem, entretanto, pecado e marginalização social. O problema não está em este

pedir sua parte da herança antecipada. Muitos contos do antigo oriente médio e mesmo contos

muito posteriores como os encontrados nas “Mil e uma Noites” começam do mesmo modo. Isto

porque ao filho primogênito cabia a maior parte da herança e, ainda mais, ele é que seria o

continuador da casa paterna. Ao filho mais moço cabia o dever de se emancipar, receber sua

parte da herança antecipada e sair para o mundo fundando sua própria casa, multiplicando a

herança, honrando deste modo seu pai. O problema na parábola é que o filho mais moço ao invés

disto gastou todos os bens recebidos em uma vida dissoluta, desperdiçou a herança,

desrespeitando seus deveres filiais. Após isto se encontra em total desamparo, em necessidade e

desonrado. Em sua volta à casa não há propriamente mérito. Volta principalmente porque tem

fome. Como nas duas parábolas anteriores, o acento recai sobre a atitude do Pai Misericordioso

que se alegra por ter reencontrado o filho perdido. Antes mesmo de que o filho pudesse

pronunciar seu discurso de arrependimento ensaiado, o Pai o abraça, o recebe como o filho que
9
Ibidem, p.276.
9

nunca deixou de ser. O motivo da volta não importa para ele. Ao Pai basta a alegria de poder

tirar o filho da situação de marginalidade em que se encontra. Não exige nenhuma reparação,

antes, ao contrário, o recebe com uma festa. Sua única justificativa para a alegria incontida que

dele toma conta é aquela que comunica aos empregados: “pois este meu filho estava morto e

voltou a viver; estava perdido e foi reencontrado” (v. 24). Observe-se que o verbo aqui

empregado mais uma vez é o mesmo das duas parábolas anteriores: heurisko. Isto supõe que,

como o Pastor e a Mulher das duas parábolas anteriores, o Pai não havia esperado passivamente

a volta do filho. Ele o havia procurado, ele ansiava por encontrá-lo para socorrê-lo.

Na segunda parte da parábola desenvolve-se o verdadeiro drama (w. 25-32). Nela aparece

reação do filho primogênito que estava fora de casa, trabalhando no campo, quando o irmão mais

novo retornou. O filho primogênito ao saber da festa se irrita, “fica com muita raiva”. Não aceita

entrar para participar da festa nem mesmo quando o Pai sai para suplicar-lhe que entre. O filho

primogênito se queixa amarguradamente ao Pai da festa feita por ele “a este teu filho que

devorou teus bens com prostitutas”. Nem sequer consegue chamar a seu irmão de irmão. O Pai

com tranqüilidade repete para ele o mesmo motivo que já havia dado aos empregados para a

festa que é manifestação de sua imensa alegria: “pois este teu irmão estava morto e tornou a

viver; ele estava perdido e foi reencontrado!”. O mesmo verbo heurisko. O grande drama

encontra-se aqui: o filho primogênito, fiel no seguimento da Lei (“Jamais transgredi um só de

teus mandamentos" v 29) torna-se infiel no seguimento do Amor do Pai. Torna-se incapaz de

atender aos insistentes apelos do Pai que o quer junto a seu irmão na festa. Esta incapacidade de

ir ao encontro do irmão sofrido (mesmo que este sofrimento seja resultado de um comportamento

dissoluto) o exclui da festa. No fim, o filho fiel se torna o grande infiel. Esta é a grande resposta
10

de Jesus aos Fariseus que se escandalizavam com sua proximidade com os excluídos e

marginalizados. É seu embate maior com eles. É o confronto entre a lógica do mérito e a lógica

da misericórdia. O Deus de Jesus é o Deus de misericórdia, Aquele que houve o clamor de seu

Povo, vai ao encontro dos deserdados, que socorre os aflitos, liberta os oprimidos e cativos,

anuncia a boa nova aos pobres (Lc 4,16-20) não porque estes tenham algum mérito espiritual que

os tornem melhores do que os outros, mas por sua situação de necessidade, por sua dignidade

negada, desfigurada.

3. A Parábola dos trabalhadores na Vinha (Mt 20, 1-16)

O mesmo confronto entre a lógica do mérito e a lógica da gratuidade do amor serve de base

à parábola dos Jornaleiros da Vinha que encontramos em Mt 20.1-16. Do ponto de vista da

lógica do mérito esta parábola soa um tanto desconcertante. Os trabalhadores chamados a tra-

balhar na última hora recebem o mesmo que os que trabalharam todo o dia. O dono da vinha

acha que deve dar a eles o mesmo salário que aos outros, por sinal, um denário ou uma dracma, o

salário mínimo convencional de uma jornada de trabalho (v. 2). Trata-se da quantia mínima

necessária à manutenção de um trabalhador, por um dia, na Palestina da época de Jesus.

Comporta-se assim não por merecimento dos trabalhadores, não por terem produzido mais que

os outros em menos tempo; faz assim porque julga bom fazer assim (v. 15).

Este comportamento do dono da vinha é escandaloso para os outros trabalhadores. Estes,

seguindo a lógica do mérito, “pensaram que receberiam mais" (v. 10) e não admitem que o pai de

família os tenha igualado (“os igualaste a nós", v. 12). A resposta do Pai é simples: “o teu olho é
11

mau porque sou bom?" (v. 15). Aqui está a raiz última da justificativa do privilégio dos pobres:

assim é a bondade de Deus. Deus que ama a todos se compadece da situação dos marginalizados.

Ouve os gritos dos miseráveis (Lc 18,1-8). Atende ao pedido do publicano que se acha perdido

(Lc 18,9-14). É assim que Jesus justifica sua própria misericórdia para com os marginalizados: é

a atualização do amor de Deus, cuja lógica é incompreensível do ponto de vista dos que a partir

dos seus próprios méritos, se consideram credores de recompensas que Deus lhes deve dar.

Àqueles que se escandalizam por seu comportamento junto aos marginalizados Jesus responde:

Deus é assim, não há que se buscar outra justificação (Mt 11,19).

4. A parábola do bom Samaritano (Lc 10, 25-37)

Para Jesus, o serviço ao necessitado é o modo de traduzir e atualizar este amor de Deus.

Mais uma vez sua lógica é diferente da lógica dos legistas (Lc 10,25-37). Um legista, para

embaraçar Jesus pergunta a Jesus o que deve fazer para herdar a vida eterna (v. 25). Jesus

responde com uma pergunta: “Que está escrito na Lei? Como lês?” (v. 26). A resposta do legista

é clara: “Amarás teu Deus de todo coração, de toda a alma, com toda tua força e de todo o

entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo” (v.27, uma resposta que combina Lv 19,18 e

Lv 18,5). Aqui amor a Deus e ao próximo são reunidos em um único mandamento, que é o

resumo de toda a Lei. Esta resposta do legista de algum modo deve ser referida à interpretação

rabínica da escola de Hillel. Recorde-se aqui o conhecido episódio no qual um prosélito pede ao

rabino Shammai que resuma todo o conteúdo da Lei enquanto estivesse apoiado em uma só

perna. Shammai se irrita e, dizendo ser isto impossível, manda o prosélito embora. A mesma
12

demanda é feita a Hillel. Este aceita o desafio e responde com tranqüilidade: “O que odeias para

si, não farás a teu próximo. Esta é toda a Lei, o resto é comentário” (Talmud, Sabbat 31a)10.

Jesus acolhe a resposta do legista: “Respondeste corretamente; faz isto e viverás” (v.28).

Mas o legista não está satisfeito. Ele que saber quem é seu próximo. Jesus responde a esta nova

pergunta com a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37). Na parábola um homem descia de

Jerusalém a Jericó e é assaltado, deixado quase morto no caminho. Passam por ele um sacerdote

e um levita. Não fazem nada. Por fim passa um Samaritano. Vendo-o “moveu-se de compaixão”.

Ele o socorre e o conduz a uma hospedaria, paga por sua hospedagem e ainda se compromete a

pagar mais se houverem mais gastos, quando retornar. Ao final da parábola Jesus pergunta:

“qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?"

(v.36). A ótica é mais uma vez invertida. O legista queria saber “quem é meu próximo?" (v. 29).

Ou seja, a partir de sua perspectiva, “quem está próximo a mim”? Jesus propõe responder a partir

da perspectiva do necessitado: quem dele se fez próximo? Invertendo a questão do legista, acaba

por colocar como critério de próximo não o que está mais perto de mim, mas aquele que se faz

vizinho ao mais necessitado. Concretizar o amor ao próximo é para Jesus ir ao encontro (no

sentido de heurisko como em Lc 15) do necessitado, é exercer a misericórdia para com o outro

(v. 37). A concretização do amor ao próximo como amor ao necessitado é para Jesus a

atualização da misericórdia de Deus. E curiosamente nesta parábola aquele que atualizou a mi-

sericórdia de Deus não foi nem o sacerdote nem o levita, representantes da ortodoxia religiosa da

época, mas um samaritano, justamente de quem um Judeu normalmente só esperava o ódio,

aquele que era considerado um praticante de uma fé sincrética, portanto um não observante puro

10
Ibidem p.142-144. Veja-se também o verbete Hillel em J. Bowker (Ed) The Oxford Dictionary of World
Religions, Oxford University Press, New York, 1997, p.429
13

da Lei. A motivação do Samaritano ao aproximar-se do homem moribundo foi a “compaixão”.

Ele não se fez próximo do necessitado para cumprir um preceito, mas por que “moveu-se de

compaixão (esplagkniste)”. Recorde-se que em LC 15, 20 o que move o Pai a ir ao encontro do

filho que retorna para casa depois de haver dissipado seus bens é o mesmo: “encheu-se de

compaixão (esplagkniste), correu e lançou-se ao seu pescoço, cobrindo-o de beijos”. Também

Jesus ao encontrar a viúva de Naim, que levava seu único filho para ser enterrado, enche-se de

compaixão (esplagkniste, v.14) e o ressuscita (Lc 7,11-17). O verbo grego splagknizomai

normalmente traduzido por “sentir compaixão” remete a algo de muito profundo, visceral, que

remete na sua raiz à identificação da mãe com a criança, a duas vidas que se tornam uma. Este

sentimento profundo que moveu o Samaritano não pode ser produzido por nenhuma Lei, não

nasce do dever de cumprir um mandamento. É um sentimento originário. A conclusão da

parábola é uma interpelação ao legista: “Vai, e tu também faze o mesmo!" (v. 37), faça-se

próximo do necessitado, solidário com o seu sofrimento, deixe-se tomar de compaixão.

5. A Solidariedade concreta com os pobres e o seguimento de Jesus (Mc 10,17-22; Mt

19,16-22; Lc 18, 18-23)

O relato do encontro de Jesus com um “certo homem de posição” que o interpela para saber

como deve agir para “herdar a vida eterna” (Lc 18,18) deve também ser recordado neste

contexto. O relato aparece com algumas variantes nos três Sinóticos. A pergunta feita por este

homem ou jovem de posses é respondida por Jesus com a citação dos Mandamentos: “Não

cometer adultério, não matar, não roubar, não levantar falso testemunho; honrar teu pai e tua

mãe” (v. 20). Note-se que aqui não aparecem recomendações quanto a guardar o Sábado ou a
14

sacrifícios religiosos ou mesmo jejum. A reação do homem que o havia interpelado é positiva:

“tudo isto tenho guardado desde a juventude” (v. 21). Porém Jesus responde que uma coisa ainda

falta: “Vende tudo o que tens, distribui aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e

segue-me” (v 22). O homem ao ouvir isto “ficou cheio de tristeza, pois era muito rico” (v.23). É

importante aqui ter em conta um texto de Pseudo Origines Latino, Comentário sobre Mateus XV

14, onde este escreve: “Está escrito em certo evangelho, chamado segundo Os Hebreus (se é que

se possa admiti-lo, não como autoridade, senão para esclarecimento da questão proposta): Disse-

lhe o outro dos dois ricos: Que tenho de fazer do bom para poder viver? Disse-lhe [Jesus]:

Cumpre a Lei e os Profetas. Responde-o o rico: Já o venho fazendo. Disse-lhe: Vai, vende tudo o

que é teu, distribui entre os pobres, e vem, segue-me. Mas o rico começou a balançar a cabeça, e

não lhe agradou o conselho. Disse-o o Senhor: Como te atreves a dizer: Tenho observado a Lei e

os Profetas? Está escrito na Lei: Amarás a teu próximo como a ti mesmo. E existem muitos

irmãos teus, filhos de Abraão, que estão vestidos de trapos e morrem de fome, enquanto sua casa
11
está cheia de bens sem que saia nada dela para socorrê-los” . Neste Evangelho Apócrifo é

colocada uma glosa que explicita a relação entre a primeira resposta (Segue os Mandamentos, ou

Segue a Lei e os Profetas) e o mandato de vender os bens e dar tudo aos pobres. Não se trata

neste caso de um conselho para “ir além” ou dito de outra forma, “de perfeição evangélica”12. Na

verdade, a afirmação “uma coisa ainda te falta” (Lc 18,22) deve ser interpretado como “algo

ainda te falta para dizeres que cumpre os mandamentos”: a solidariedade concreta com os

11
Veja-se o texto em A. de Santos Otero, Los Evangelios Apocrifos. Edición crítica y bilíngüe., BAC, Madri, 6a Ed.,
1988, p.42-43. Alguns autores consideram ser este um fragmento do chamado Evangelho dos Nazarenos, cf. M.
Craveri (org) I Vangeli Apocrifi, Einaudi, Torino, 5a Ed., 1969, p.269.
12
Neste sentido deve-se entender a versão Mateana: “se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos
pobres...” (Mt 19,21) como um aramaicismo que nos conduz ao mesmo significado de Marcos e Lucas (uma coisa te
falta, vai... Mc 10,2; uma coisa ainda de falta, vai..; Lc 18, 22) Cf. J. L. McKenzie, The Gospel according to
Matthew, em, R. Brown, J. Fitzmyer, R. Murphy, (Edt.), The Jerome Biblical Commentary, Prentice-Hall, New
Jersey, 1968, p. 97.
15

pobres. E tanto não se trata de um conselho complementar que esta solidariedade é exigida como

condição prévia para colocar-se no seguimento de Jesus: “depois vem e segue-me” (v.23).

A continuação do relato nos três Sinóticos é desconcertante. Assim como o filho

primogênito (Lc 15,25-32), o homem rico rejeita o convite de Jesus. Sai pesaroso porque era

possuidor de muitas propriedades ... (Mc 10,22). Jesus pronuncia então uma dura sentença:

“Como é difícil aos que têm riquezas entrar no Reino de Deus!” (Mc 10,23). Segue em Marcos:

“os discípulos ficam admirados com estas palavras. Jesus, porém, continuou a dizer: Filhos,

como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha

do que um rico entrar no Reino de Deus” (vv. 24-25). Muitas vezes se procurou interpretar este

dito de Jesus amenizando seu significado como, por exemplo, a alusão a um tipo de porta nas

muralhas de Jerusalém de nome “agulha” onde só passaria um camelo se este não carregasse

nenhuma mercadoria em seu dorso. Na verdade a expressão é semelhante a outras que

encontramos em português, no Brasil, para indicar impossibilidade tais como: “é mais fácil um

boi voar que isto acontecer” ou ainda, “é mais fácil uma galinha criar dente do que tal coisa

ocorrer”. Tanto assim que a reação dos discípulos é de grande desconforto: “Eles ficaram muito

espantados e disseram uns aos outros: Então quem poderá salvar-se?” (v.26). Então vem a

resposta de Jesus: “Jesus, fitando-os disse: Aos homens é impossível mas não a Deus, pois para

Deus tudo é possível” (v.27). É o amor de Deus, O espírito, a Graça Increada que cria em nós o

amor, a compaixão capaz de nos tirar de nossos próprios interesses e de nos abrir à necessidade

dos outros, à solidariedade concreta com os pobres. Colocar-se no seguimento de Jesus é

colocar-se no seguimento do Amor misericordioso de Deus, deixar-se invadir por este amor que

faz com que busquemos o necessitado para nos colocarmos ao seu lado como irmãos, é abrir as
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entranhas, aceitar o convite para a Festa onde se entra para partilhar a mesma alegria do Pai

solidário (Lc 15, 31-32).

6. A Parábola do Pobre Lázaro (Lc 16, 19-31)

Em Lucas 16, 19-31 encontramos a parábola do pobre Lázaro. Nela, a semelhança do que

ocorreu com um “certo homem de posição” (Lc 18, 18-23 e paralelos), a não disposição de

dividir os bens ou a falta de socorro concreto aos necessitados é em si mesmo e por si só causa

de condenação. É o que ocorre com o “homem rico” desta parábola. Este tinha abundantes bens

que permitiam que se vestisse “de púrpura e linho fino”. Dele também é dito que a “cada dia se

banqueteava com requinte” (v.19). Na sua porta encontrava-se um pobre de nome Lázaro,

coberto não de linho e púrpura, mas de úlceras. Lazáro apenas desejava saciar-se das migalhas

que caiam da mesa do rico, porém este dele não se apiedava (v. 21). Morrem os dois. Lázaro é

levado ao “seio de Abraão” e o rico jaz no inferno (v. 22-23). O rico apela a Abraão pedindo

piedade, solicitando que fosse permitido a Lázaro socorrê-lo em sua sede (v.24). Aqui se

encontra uma profunda ironia: aquele que tinha a possibilidade e o dever de socorrer o pobre

Lazáro em vida, agora morto, pede para que Lázaro seja autorizado a socorrê-lo. Abraão

responde não ser isto possível, pois “além do mais entre vós e nós existe um grande abismo, de

modo que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o podem, nem tampouco

atravessarem os de lá até nós” (v.26) e justifica a situação em que ambos se encontram com a

seguinte frase: “Filho, lembra-te de que recebestes teus bens em vida, e Lázaro por sua vez os
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males: agora porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado” (v. 25). O homem rico foi

condenado por não ter se solidarizado com o pobre Lázaro em vida. Ele se aflige pensando nos

irmãos que agem da mesma forma que ele. Solicita que Lázaro seja enviado para adverti-los.

Abraão responde que isto de nada serviria. Eles têm a Lei e os profetas e “se não escutam nem a

Moisés nem aos profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão” (vv.

27-31). Ninguém pode se subtrair à solidariedade com os pobres alegando desconhecer ser esta

solidariedade uma exigência que se radica na própria ordem da criação e na Aliança. Do mesmo

modo ninguém pode afirmar seguir a Lei e os profetas se não vai ao encontro dos pobres e se não

se deixa tomar de compaixão.

7. As palavras sobre o Juízo Final (Mt 25,31-46)

As palavras de Jesus sobre o Juízo Final que se encontram em Mt 25,31-46 constituem-se

em um texto fundamental para a questão da relação entre a solidariedade com os pobres e a

salvação. Nos fins dos tempos ocorrerá um grande julgamento. Na ocasião os homens serão

separados pelo “Filho do Homem” uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos

(vv. 31-33). À direita ficarão os benditos que receberão por herança o Reino. O que eles fizeram?

É o próprio “Filho do Homem” quem responde “Pois tive fome e me destes de beber. Era

forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-

me” (vv. 35-36). E os “benditos do Pai” se surpreendem, pois não se recordam de terem feito tais

ações em atenção ao “Filho do Homem”. Este responde: “Em verdade vos digo: cada vez que o

fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes” (v. 40). O que foram

colocados à esquerda são, por outro lado, chamados de malditos e são apartados para “o fogo
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eterno preparado para o diabo e seus anjos” (v. 41). A razão dada pelo “Filho do homem” é

contundente: “Porque tive fome e não me destes de comer. Tive sede e não me destes de beber.

Fui forasteiro e não me recolhestes. Estive nu e não me vestistes, doente e preso e não me

visitastes” (vv. 42-43). Estes se espantam, se indignam e perguntam: mas ”Senhor, quando é que

te vimos com fome ou sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não te servimos?” (v.44). E o

Filho do Homem responde “Em verdade vos digo: cada vez que o deixastes de fazer a um desses

pequenino, foi a mim que o deixastes de fazer” (v.45).

O que levou alguns a serem considerados justos e outros a serem condenados ao “castigo

eterno” não foi o cumprimento ou descumprimento de ritos ou preceitos litúrgicos, mas a

solidariedade concreta em relação aos pobres: o faminto, o sedento, o nu, o forasteiro, o doente,

o prisioneiro. São necessidades concretas que exigem a solidariedade humana. Observe-se aqui

que não cabe no texto nenhuma espiritualização destas necessidades: não se trata daqueles que

estão prisioneiros da ignorância, sedentos da verdade. Trata-se do que efetivamente está preso. E

nem sequer se trata do que está preso injustamente. Do mesmo modo, o que importa não é a

responsabilidade de cada um em relação a sua situação de penúria. Não importa porque o

faminto está faminto, se porque foi indolente ou se porque foi vítima de uma situação adversa,

mas sua realidade de fome. É a situação de necessidade em que se encontram (“irmãos mais

pequeninos”) que leva à identificação do “Filho do Homem” com eles. O dever de socorrê-los

não surge da Lei, não é o cumprimento de uma ordem arbitrária, embora ninguém possa dizer

que cumpre a Lei se não se solidariza com eles. É uma exigência humana que,

independentemente da consciência que se tenha do fato, é em si mesma seguimento do amor

misericordioso de Deus, conforme ensinam as parábolas do capítulo quinze de Lucas. Deus ama
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os necessitados de um modo próprio, não por terem um mérito qualquer, mas pela sua situação

de carência. Este amor faz com que Deus os busque e por fim que se identifique com eles

mesmo. A falta de solidariedade concreta com os pobres e a recusa de se deixar “mover pela

compaixão” é em si mesmo a negação do amor de Deus que leva à condenação eterna. A

consciência deste fato não é o fator que gera em nós a compaixão. A compaixão se inscreve na

nossa humanidade mesma. Esta consciência sobredetermina o nosso agir. Enquanto cristãos

encontramos na Fé elementos fundamentais sobre a especial relação entre Deus e os pobres que

devem sobredeterminar o nosso agir solidário, nossa caminhada na direção dos pobres e nossa

incondicional tomada de posição a favor dos “nossos irmãos mais pequeninos”.

8. Algumas considerações finais

A solidariedade com os pobres, conforme afirmado na introdução, sempre foi uma

constante na Igreja. Tomar o partido dos mais fracos, dos pobres não é, entretanto, algo sem

conseqüências. Como considerações finais citamos um trecho de uma homilia pronunciada por S.

João Crisóstomo, bispo de Constantinopla no século IV. Sua defesa dos pobres vinha gerando

polêmica na comunidade. Alguns os acusavam de, ao se colocar do lado dos pobres, criar divisão

e antagonismos. São João numa série de Sermões sobre os Salmos pronuncia esta homilia

respondendo às críticas, mostrando como a defesa dos direitos dos pobres não pode ser entendida

como ódio aos não-pobres, mas sim como imitação da misericórdia de Deus, imitação esta que

lança um apelo aos não-pobres. Um apelo a saírem de sua situação e a se solidarizarem com os
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pequenos, tornando-se "amigos de todos”, fazendo-se "amáveis para com todos e assim

"livrando-se do pecado”. Finalizando, eis as palavras de S. João Crisóstomo13:

“- Mais uma vez - vocês me dizem - te revoltas contra os ricos?

- Uma vez mais vocês estão contra os pobres!

- Mais uma vez atacas os que roubam?

- Uma vez mais vocês se colocam contra os que são espoliados! Não se fartam de devorar

e engolir os pobres e eu não me canso de lançar-lhes isto em face.

- Pretendes ficar sempre do lado deles? Estarás sempre do lado do pobre?

- Afastem-se de minhas ovelhas. Deixem em paz o meu rebanho. Não me destruam o

rebanho. Se mo destroem, por que me acusam de que os persigo? Se eu fosse pastor de ovelhas.

por acaso não me acusariam de não perseguir o lobo que invadisse meu rebanho? Sou pastor de

uma grei espiritual. Não persigo a pedradas, mas com a palavra. Melhor dizendo não os

persigo, os chamo. Tornem-se ovelhas, entrem em meu rebanho. Por que dizimam meu rebanho.

vocês que dever·iam aumentar minha grei? Não persigo vocês, mas o lobo. Se vocês não são

lobos, não os estou perseguindo. Mas se se tornaram lobos, vocês se acusam a si mesmos. Eu

não estou contra os ricos, pelo contrário, estou a favor dos ricos. Falando assim, falo a seu

favor, mesmo que não se apercebam disto.

- Como falas a nosso favor?

- Falo a seu favor, porque os livro do pecado, salvo-os da rapina, faço-os amigos de todos,

faço-os amáveis para com todos ...

Quem mais Ihes falará destas coisas? Por acaso os que mandam? Eles não se preocupam

com estas coisas, mas sim com processos e acusações. Sua mulher lhe falará disto? O tema

13
Veja-se o texto em: J. Leuridan; G. M ú g i c a, Por que a Igreja critica os ricos?, Paulinas, São Paulo, 1983, p.
143·144. Ver também R. Sierra Bravo, op. cit., p. 399-400.
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preferido de sua mulher são as jóias e o ouro. Seu filho? Seu filho só pensa na herança, no testa-

mento e na posse. Seu escravo lhe falará disto? Seus escravos lhe falarão de seus trabalhos, de

sua escravidão e de sua liberdade. Talvez os parasitas o façam. Mas eles só entendem de

banquetes, ceias, de glutonarias. Os atores de teatro? Eles só podem falar de piadas torpes e de

desejos intemperantes. Os juízes lhe falarão disto? Os juízes entendem de testamentos, heranças,

liberdade e coisas deste estilo. De quem podem ouvir isto, se não o ouvirem de mim?

Todo mundo teme vocês, mas eu os desprezo. Enquanto vocês forem como são, eu os

desprezo, eu os desdenho, eu desprezo sua paixão. Eu corto e vocês gritam, mas não temo seus

gritos. Desejo sua cura, pois sou médico.

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