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O Abecedário de Gilles Deleuze
Entrevista por Claire Parnet, direção de Pierre-André Boutang
Nota do tradutor
Esta tradução é apenas um rascunho e não sofreu nenhum revisão. É preciso revisar a tradução
em si, a correspondência entre certas escolhas do tradutor para o inglês e o original francês e a
digitação. À medida que trechos forem revisados, eles serão assinalados aqui.
O que se segue é o sumário de uma série de entrevistas, em três partes, oito horas, de Gilles
Deleuze, feita por Claire Parnet e filmada por Pierre-André Boutang, em 1988-89. Destinada a ser
tornada pública apenas após a morte de Deleuze, essas entrevistas foram, apesar disso,
mostradas no Canal Arte, entre novembro de 1994 e a primavera de 1995, isto é, durante o ano
anterior à sua morte.[No Brasil, o filme foi veiculado no circuito restrito da TV Escola].
Em vez de fornecer uma transcrição e tradução [do francês], tento fornecer os principais pontos
das questões colocadas por Parnet e das respostas de Deleuze, todos os erros e omissões sendo
de minha inteira responsabilidade.
Uma breve descrição do “cenário” da entrevista: Deleuze está sentado em frente de uma lareira
sobre a qual há um espelho e em frente a ele está Claire Parnet. A câmera está localizada atrás do
ombro esquerda de Claire, de forma que, dependendo do foco da câmera, suas costas estão
parcialmente visíveis e, com um foco mais amplo, ela está também visível no espelho. A qualidade
da produção é bastante boa, e no conjunto de três fitas agora comercialmente disponíveis [Éditions
Montparnasse], Boutang decidiu tirar, por meio da edição, os saltos entre as trocas de fita; apesar
disso, Deleuze é bastante compreensivo com as pequenas quebras no movimento da produção.
Antes de começar a discutir a primeira “letra” de seu abecedário, Deleuze menciona a premissa
dessa série de entrevistas: que Parnet e Boutang tinham escolhido o formato de abecedário e que
indicaram a Deleuze quais seriam os temas, mas não questões específicas. Ele diz que responder
questões sem ter antecipadamente pensado sobre elas é algo inconcebível para ele, mas que se
consola com a condição de que as fitas só serão usadas após sua morte. Assim, isso, de certa
forma faz com que ele sinta bastante aliviado, como se fosse uma folha de papel, ou até mesmo
um estado de puro espírito. Mas ele também se pergunta sobre o valor disso tudo uma vez que
todo mundo sabe que um puro espírito não é alguém que dá respostas muito profundas ou
inteligentes a questões que são colocadas.
Part I - A a F
Parnet começa lendo uma citação de W. C. Fields que ela aplica a Deleuze: “Um
homem que não gosta de animais ou crianças não pode ser de todo mau”. Ela
deixa as crianças de lado para perguntar sobre a relação de Deleuze com os
animais. Ela sabe que ele não é muito amigo de animais domésticos, mas observa
que ele tem um bestiário considerável, bastante repugnante, na verdade – de
piolhos, de pulgas – em seus escritos, e que ele e Guattari desenvolveram o
animal em seu conceito de “devir-animal”. Assim, ela se pergunta qual é a relação
de Deleuze com os animais.
Deleuze é bastante lento na resposta a essa pergunta, dizendo que não se trata
tanto de gatos e cachorros, ou de animais desse tipo. Ele indica que ele é sensível
a algo nos animais, mas o que o incomoda são animais domésticos, familiais e
familiares. E lembra o “momento fatal” em que uma criança traz um gato perdido
para casa com o resultado de que há sempre um animal em sua casa. O que acha
desagradável é que ele não gosta de “coisas que esfregam” (les frotteurs); e ele
particularmente reprova cachorros por latir, o que ele chama de “o grito mais
estúpido”, a vergonha do reino animal. Ele diz que ele suporta melhor (embora não
por muito tempo) o lobo uivando para a lua do que latindo.
Além disso, ele observa que as pessoas que realmente gostam de gatos e
cachorros não têm com eles uma relação humana, por exemplo, crianças que têm
uma relação infantil com animais. O que é essencial, argumenta D, é ter uma
relação animal com animais. Deleuze tira suas conclusões ao observar pessoas
passeando com seus cachorros ao longo de sua rua isolada, observando-as falar
com seus cachorros de uma forma que ele considera “amedrontadora” (effarant).
Ele reprova a psicanálise por transformar as imagens de animais em simples
símbolos de membros da família, como na interpretação dos sonhos. Deleuze
conclui perguntando que relação se deveria ou se poderia ter com um animal e
especula que seria melhor ter uma relação animal (não uma relação humana) com
um animal. Mesmo caçadores têm esse tipo de relação com sua presa.
Sobre seu bestiário, Deleuze admite sua fascinação por aranhas, piolhos e pulgas,
indicando que mesmo sua raiva por certos animais é alimentada por sua
fascinação. A primeira coisa que o fascina, e distingue o que faz um “animal”, é
que toda animal tem um mundo limitado, extraordinário, reagindo a bem poucos
estímulos (ele discute o restrito mundo dos piolhos com algum detalhe), e ele é
fascinado pelo poder desses mundos. Depois, uma segunda coisa que distingue
um animal é que ele também tem um território (Deleuze indica que, com Guattari,
ele desenvolveu um conceito quase filosófico sobre territórios). Constituir um
território é quase como o nascimento de uma arte: fazer um território não é
simplesmente uma questão de marcas defecatórias e urinárias, mas também de
uma série de posturas (ficar ereto/sentar para um animal), uma série de cores
(que um animal assume), uma canção (un chant). Três dos determinantes da arte
são: cores, linhas, canção – diz D, arte em seu estado puro. Além disso, deve-se
considerar o comportamento no território como o domínio de propriedade e posse,
o território como “minhas propriedades” à maneira de Beckett ou Michaux.
Deleuze faz, aqui, uma breve digressão, para discutir a necessidade ocasional, em
filosofia, de criar mots barbares, palavras bárbaras, mesmo que a palavra exista
em outras linguagens, alguns termos que ele e Guattari criaram juntos. A fim de
refletir sobre o território, ele e Guattar criaram “desterritorialização” (Deleuze diz
que ele encontrou um equivalente inglês de “o desterritorializado” em Melville, com
outlandish. Em filosofia, ele diz, a invenção de um mundo bárbaro é algumas
vezes, necessária para dar conta de uma nova noção: assim, não haveria
qualquer territorialização sem um vetor de deixar o território, desterritorialização, e
não há qualquer deixar o território, nenhuma desterritorialização, sem um vetor de
re-territorialização em algum lugar. Em animais, esses territórios são expressos e
delimitados por uma infindável emissão de sinais, reagir a sinais (p. ex., uma
aranha em sua teia) e produzir sinais (p. ex., a trilha de um lobo ou algo mais),
reconhecidos por caçadores e rastreadores em uma espécie de relação animal.
Aqui, Parnet pergunta-se se existe uma conexão entre essa emissão de sinais,
território e escrita. Deleuze diz que eles estão conectados ao se viver uma
existência aux aguets, être aux aguets, estar sempre à espreita, como um animal,
como um escritor, um filósofo, nunca tranqüilo, sempre olhando por sobre os
ombros. Escreve-se para leitores, “para” significando “à l’attention de”, “para com”,
“à sua atenção”. Mas também escreve-se por não-leitores, isto é, “por”
significando “no lugar de”, como fazia Artaud ao dizer que ele escrevia para
analfabetos, para idiotas, em seu lugar. Deleuze argumenta que pensar que
escrever é alguma pequena tarefa privada é vergonhoso; em vez disso, escrever
significa jogar-se em uma tarefa universal, seja ela um romance ou filosofia.
Parnet refere-se, em um parênteses, à discussão que Deleuze e Guattari fazem
de Lord Chandos por Hoffmmanstahl em Mil platôs. Deleuze diz que escrever
significa empurrar a linguagem, a sintaxe, até o fim, a um limite particular, um
limite que pode ser uma linguagem de silêncio, ou uma linguagem de música, ou
uma linguagem que é, por exemplo, um doloroso lamento (cf. A metamorfose de
Kafka). Deleuze argumenta que não são os homens, mas os animais que sabem
como morrer, e ele volta aos gatos, à forma como um gato busca um canto para
morrer, um território para a morte. Assim, o escritor empurra a linguagem ao limite,
do canto, e um escritor é responsável por escrever “por”, no lugar de, animais que
morrem, mesmo fazendo filosofia. Aqui, ele diz, está-se na fronteira que separa o
pensamento do não-pensamento.
EINÍCIOSPAÇOB de Boire-BeberESPAÇOALFABETO
Parnet pergunta o que significava para Deleuze beber quando ele bebia. Deleuze
brinca que ele costumava beber bastante, mas teve que parar por razões de
saúde. Beber, ele diz, é uma questão de quantidade. As pessoas zombam de
viciados e alcoólatras que fazem de conta que são capazes de deixar a droga ou o
álcool. Mas o que eles querem, diz D, é chegar à última bebida/ao último copo.
Um alcoólatra nunca pára de parar de beber, nunca pára de chegar à última
bebida. “Última”, aqui, significa que ele não consegue suportar beber mais um
copo naquele dia particular. É o último ao seu alcance, em contraste com o último
além de seu alcance que o faria cair. Assim, a busca é pelo penúltimo gole, pelo
último gole... antes de começar o dia seguinte.
Parnet pergunta como se pára de beber, e Deleuze diz que Michaux disse tudo
que tinha a se dizer sobre o assunto. Beber está ligado com trabalhar; bebida e
drogas podem representar um perigo absoluto que nos impede de trabalhar. A
bebida e as drogas não são necessárias para se trabalhar, mas sua única
justificativa seria se elas nos ajudassem a trabalhar, mesmo ao risco de prejudicar
a saúde. Deleuze refere-se aos escritores americanos, cita Thomas Wolfe,
Fitzgerald, como uma série d’alcoolique (série alcoólica). Beber os ajudava a
perceber aquele algo que é demasiado forte na vida. Deleuze diz que ele pensava
que beber o ajudava a criar conceitos filosóficos, mas ele se deu conta então de
que não ajudava em absolutamente nada. À observação sobre escritores
franceses alcoólatras, Deleuze responde, claro, há muitos, mas há uma diferença
de visão entre os escritores franceses e os americanos. Ele termina por se referir
a Verlaine, “um dos maiores poetas franceses”, o qual costumava passar, a
caminho para o seu copo de absinto, pela rua onde Deleuze mora.
EINÍCIOSPAÇOC de CulturaESPAÇOALFABETOESPAÇO
Deleuze diz que não vive como um “intelectual” ou que não vê a si próprio como
“cultivé” porque quando vê algum “cultivé”, ele fica simplesmente “effaré”, tomado
de espanto e não necessariamente com admiração. Ele vê as “pessoas cultas”
(gens de culture) como possuindo um “savoir effarant”, um corpo assustador de
conhecimento, que conhece tudo, que é capaz de falar sobre tudo. Assim, ao dizer
que ele não é nem um intelectual, nem “cultivé”, Deleuze entende isso no sentido
de que ele afirma que não tem nenhum “conhecimento de reserva” (aucun savoir
de réserve), nenhum conhecimento em estoque. Tudo que ele aprende, ele o faz
para uma tarefa particular, e uma vez que ela tarefa foi completada, ele então
esquece tudo e tem que começar do zero, exceto em certos casos raros (p. ex.,
Spinoza, que está no seu coração e na sua mente).
Assim, por que, ele pergunta, ele não admira “este conhecimento assustador”?
Parnet pergunta se ele pensa que esse tipo de conhecimento é erudição, ou
apenas uma opinião, e Deleuze diz, não, não é erudição. Ele diz que ele pode
nomear alguém que é assim porque ele tem toda a admiração por ele: Umberto
Eco, que é espantador, é como apertar um botão, ele pode falar sobre qualquer
coisa, e ele inclusive sabe que é assim. Deleuze diz que isso o assusta e que ele
não inveja isso de forma alguma.
Ele continua, brincando a respeito de algo que ele fez desde que se aposentou,
desde que deixou de ensinar. Falar é um pouco sujo, ele diz, enquanto escrever é
mais limpo. Falar é fazer charme (faire du charme), e Deleuze liga isso a assistir
conferências, algo que ele não pode suportar. Ele não viaja mais por razões de
saúde, mas para ele, intelectuais que viajam é uma coisa sem sentido, seus
deslocamentos para dar palestras, mesmo durante as refeições ele falam com
intelectuais locais. “Não suporto falar, falar, falar”, e é nesse sentido, vendo a
cultura ligada à palavra falada que faz com que ele odeie a cultura [Deleuze utiliza
o verbo francês bastante forte haïr para expressar esse sentimento].
Deleuze responde “sim”, certamente é prazer, embora nem sempre. Ele diz que
ele vê isso como parte de seu investimento em estar “alerta” (être aux aguets; cf.
“A como em Animal”). Ele acrescenta que ele não acredita em cultura; ele
acredita, antes, em encontros (rencontres), mas esses encontros não ocorrem
com pessoas. As pessoas pensam que é entre pessoas que os encontros se dão,
como entre intelectuais em um colóquios. Os encontros ocorrem, antes, com
coisas, com uma pintura, uma peça musical. Com as pessoas, entretanto, essas
reuniões não são, de forma alguma, encontros; esses tipos de encontros são
geralmente decepcionantes, catastróficos. Aos sábados ou domingos, quando ele
sai de casa, ele está certo de que vai ter um encontro; ele simplesmente sai de
casa, em estado de alerta para possíveis encontros, para ver se ele pode
encontrar algum material de encontro, em um filme, em uma pintura.
Ele insiste que sempre que se faz algo, é também uma questão de se afastar
daquilo, de sair ou ir além daquilo (d’en sortir). Quando se faz filosofia, por
exemplo, permanecer “na”filosofia é também sair da filosofia. Isso não significa
fazer algo diferente, mas sair dela ao mesmo tempo que permanecer nela, não
necessariamente escrevendo um romance. Deleuze diz que ele seria incapaz
disso, de qualquer maneira, mas que mesmo que ele fosse capaz, seria
completamente inútil. Deleuze diz que ele sai ou vai além da filosofia por meio da
filosofia. Parnet pergunta o que ele quer dizer e Deleuze diz que uma vez que isso
será ouvido após sua morte, ele pode falar sem modéstia. E refere-se ao seu (na
época) recente livro sobre Leibniz, no qual ele insistia na noção de “dobra”, um
livro de filosofia sobre essa estranha e pequena noção de dobra. Como
conseqüência, ele recebeu uma quantidade de cartas, algumas de intelectuais, e
duas outras cartas que eram bem diferentes. Uma era de uma associação de
dobradores de papel que diziam que eles estavam completamente de acordo; o
que Deleuze estava fazendo, elas também faziam! Depois ele recebeu uma outra
carta na qual o escritor dizia exatamente a mesma coisa: a dobra somos nós!
Deleuze achou isso maravilhoso, ainda mais que lhe fazia lembrar uma história em
Platão, uma vez que para D, os grandes filósofos não escrevem sobre abstrações,
mas são grandes escritores de coisas bem concretas. Assim, Deleuze sugere que
Platão sugerirá uma definição, por ex., o que é um político? Um político é im
pastor de homens (pasteur des hommes). E com essa definição, muitas pessoas
acabam por dizer: nós somos políticos! O pastor de ovelhas que fornece roupas
para a humanidade; o açougueiro que alimenta a humanidade. Assim chegam
esses rivais, e Deleuze sente que ele passou por isso muitas vezes: aqui vêm os
dobradores de papel que dizem: nós somos a dobra! E os outros que escreveram
vão na onda, nós compreendemos, nós concordamos inteiramente. Nunca
paramos de nos inserir nas dobras da natureza. Para eles, a natura é uma espécie
de dobra móvel, e eles pensam que é sua missão viver nas dobras das ondas.
Assim, com esses encontros, pode-se ir além da filosofia por meio da filosofia, e
Deleuze teve esses encontros com os dobradores de papel, com pessoas que
embarcaram nessa onda sem que ter que sair para vê-los: literalmente, com esses
encontros com onda, com os dobradores de papel, ele saiu da filosofia por meio
da filosofia. Assim, quando Deleuze vai a uma exposição, ele está em estado de
alerta para uma pintura que pode tocá-lo, que pode afetá-lo. O teatro não
apresenta essa oportunidade para encontros, ele diz, uma vez que ele tem
dificuldade em permanecer sentado por um tempo tão longo, com certas exceções
(como Bob Wilson, Carmelo Bene). Parnet pergunta se ir ao cinema é sempre
trabalho, se não existe, para ele, nenhum filme como mera diversão. Deleuze diz
que não é cultura, e Parnet pergunta se tudo que ele faz inscreve-se em seu
trabalho. Deleuze diz que não é trabalho, que ele está simplesmente alerta, à
espreita para algo que “passa”, algo que é problemático, que é divertido. [Aqui
Parnet diz que Deleuze só vê Benny Hill, e Deleuze concorda, dizendo que há
razões pelas quais Benny Hill interessa a ele.] O que Deleuze busca ao sair de
casa é ver se existe uma idéia que ele pode extrair de seus encontros, em filmes,
por exemplo. Ele refere-se a Minelli, a Joseph Losey, e indica que ele descobre o
que existe em suas obras que afetam a ele: que esses artistas são avassalados
por uma idéia, é isso que Deleuze considera como um encontro. Parnet
interrompe D, dizendo que ele já está entrando na letra “I”, e por isso ele deve
parar. Deleuze diz que ele só queria indicar o que era um encontro para ele, e não
encontros com intelectuais. Ele diz que mesmo quando ele tem um encontro com
um intelectual, é com o charme de uma pessoa, com o trabalho que ele está
fazendo, que ele tem um encontro, mas com as pessoas em si. “Je n’ai rien à
foutre avec les gens, rien du tout” (“Não tenho nada a ver com as pessoas, de
forma alguma”). Parnet diz que eles talvez se esfregam nele, como os gatos, e
Deleuze ri, concordando que pode ser o fato de que eles se esfregam ou o fato de
que eles latem!
Entretanto, ele se volta para algo que ele considera mais sério a esse respeito. Ele
viu recentemente um filme russo, Le Commisaire, que ele achou admirável,
perfeito. Mas isso o fez lembrar de um filme como os que os russos costumavam
fazer antes da guerra, na época de Eisenstein, como se nada tivesse acontecido
desde a guerra, como se o diretor fosse alguém que tinha estado tão isolado em
seu trabalho que ele havia criado um filme daquela maneira, como os filmes que
eram feitos há 20 anos, desde que ele tinha sido criado em um deserto. O que é
horrível, diz D, é ter nascido nesse deserto, e ter sido criado nele, especialmente
para aqueles que têm 18 anos agora.
Além disso, quando algo desaparece, ninguém nota porque ninguém sente falta
quando desaparece. Por exemplo, sob o regime de Stálin, a literatura russa ao
estilo do século XIX simplesmente desaparecera, e ninguém havia notado. Hoje,
há pessoas engenhosas, novos Beckett talvez, mas se eles não conseguem ser
publicados, nada parecerá estar faltando, ninguém sentira falta dessa criação
nova. Deleuze diz a afirmação mais impudente que ele jamais é: Hoje nós não
corremos o risco de nos enganar quando o editor Gallimard fez ao se recusar
inicialmente a publicar Proust uma vez que temos hoje os meios para localizar e
reconhecer novos Proust e novos Beckett. Deleuze diz que é como dizer que ele
têm alguma espécie de contador Geiger que os ajuda a identificar um novo
Beckett por meio da emissão de algum som ou de alguma luz!
Deleuze diz que ele atribui a atual crise, o período do deserto, a três coisas: 1) ao
fato de que os jornalistas conquistaram a forma-livro, de que os jornalistas acham
agora bastante normal escrever um livro que dificilmente exigiria um artigo de
jornal. 2) Difundiu-se a idéia geral de que qualquer um pode escrever uma vez que
a escrita tornou-se o pequeníssimo negócio do indivíduo, de arquivos de família,
dos arquivos em nossa cabeça. As pessoas têm todo o tipo de experiências
pessoais e por isso decidem escrever um romance. 3) Os clientes reais mudaram:
os clientes da televisão não são os espectadores, mas, antes, os anunciantes, os
publicitários; no campo do livro, os clientes não são os leitores potenciais, mas,
antes, os distribuidores. O resultado é uma rotação rápida, o regime do best-seller.
Toda literatura à la Beckett, a literatura criativa, é arrasada por esse regime. É que
isso que define um período de seca, o perído de Bernard Pivot [apresentador dos
programas literários televisivos, Apostrophes e Bouillon de culture, ambos agora
extintos], nulidade, o desaparecimento de toda crítica literária fora da promoção
comercial.
Entretanto, Deleuze conclui que não é assim tão sério, uma vez que sempre
haverá um circuito paralelo para a expressão, ou algum tipo de mercado negro. Os
russos perderam sua literatura, mas conseguiram de alguma forma reconquistá-la.
Parnet diz que, durante alguns anos, parecia que nada realmente novo havia se
desenvolvido, de forma que ela pergunta de que forma algo novo emerge, e se
Deleuze passou por isso. Deleuze responde, sim, como ele sempre disse, o
período entre a Liberação e a Nouvelle Vague, a primeira parte dos anos 60, foi
extremamente rico. É um pouco como Nietzsche disse, Deleuze conclui, uma
flecha é lançada no espaço: assim um período ou um grupo lança uma flecha, e
ela acaba por cair [Deleuze refere-se provavelmente à frase de Nietzsche na 3ª
Consideração extemporânea, "Schopenhauer como educador": "Die Natur schiesst
den Philosophen wie einen Pfeil in die Menschen hinein, sie zielt nicht, aber sie
hofft, dass der Pfeil irgendwo hängen bleiben wird"; "A natureza atira o filósofo
como uma flecha em direção aos homens; não acerta o alvo, mas espera que a
flecha fique pendurada em algum lugar", TTS]. Dessa forma, a criação literária
passa por seus períodos de deserto.
INÍCIOSPAÇOD de DesejoESPAÇOALFABETOESPAÇO
O que eles queriam dizer era a coisa mais simples na palavra: até agora, fala-se
abstratamente sobre desejo porque se extrai um objeto que se supõe ser o objeto
do desejo. Deleuze enfatiza que nunca se deseja algo ou alguém, mas, antes,
sempre se deseja um agregado (ensemble). Assim, elas se perguntaram qual era
a natureza das relações entre elementos a fim de que houvesse desejo, para que
esses elementos se tornassem desejáveis. Deleuze refere-se a Proust quando ele
diz que o desejo por uma mulher não é tanto desejo pela mulher quanto por uma
paysage, uma paisagem, que está envelopada nesta mulher. Ou, ao desejar um
objeto, um vestido, por exemplo, o desejo não é pelo objeto, mas pelo contexto
global, pelo agregado, “eu desejo em um agregado”. Deleuze menciona ao que foi
dito na letra B, sobre beber, sobre álcool, e o desejo não apenas pela bebida, mas
por seja lá qual for agregado em que situamos o desejo pela bebida (com
pessoas, em um café, etc.).
Assim, não existem nenhum desejo, diz Deleuze, que não flua em um
agenciamento e, para ele, o desejo sempre foi um construtivismo, construir um
agenciamento, um agregdo: o agregado da saia, de um raio de sol, de uma rua, de
uma mulher, de uma vista, de uma cor... construir um agenciamento, construir
uma região, juntar. Deleuze enfatiza que o desejo é construtivismo. Parnet
pergunta se é porque o desejo é um agenciamento que Deleuze precisou ser dois,
com Guattari, a fim de criar. Deleuze concorda que com Guattari, eles criaram um
agenciamento, mas que pode existir agenciamentos de uma pessoa só bem como
de duas pessoas, ou de algo que passa entre dois. Tudo isso, ele continua, diz
respeito a fenômenos físicos, e para que um evento ocorra, algumas diferenças de
potencial devem surgir, como um clarão ou uma corrente, de forma que o domínio
do desejo é construído. Assim, toda vez que alguém diz, eu desejo isto ou aquilo,
aquela pessoa está no processo de construir um agenciamento, nada mais do que
isso, o desejo não é nada mais do que isso.
Parnet liga isso ao Anti-Édipo, ao afirmar que foi o primeiro livro em que ele
discutiu o desejo, assim como foi o primeiro que ele escreveu com outra pessoa.
Deleuze concorda; eles tiveram que entrar naquilo que era um novo agenciamento
para eles, escrevendo à deux, de forma que algo pudesse “passar”. E esse algo
era uma hostilidade fundamental para com as concepções dominantes de delírio
(délire), particularmente contra a psicanálise. Uma vez que Guattari tinha passado
pela psicanálise e Deleuze estava interessado nela, eles encontraram um terreno
comum para desenvolver uma concepção construtivistas do desejo. Assim, Parnet
pede-lhe para definir melhor como ele vê a diferença entre esse construtivismo e a
interpretação analítica. Deleuze a vê como bastante simples, com a psicanálise
falando do desejo exatamente da forma que fazem os padres, sob o disfarce da
grande lamúria sobre a castração que, para Deleuze, é uma espécie de uma
enorme e assustadora maldição contra o desejo.
Parnet pergunta se o Anti-Édipo ainda tem seus efeitos hoje, e Deleuze diz, sim, é
um belo livro, o único livro no qual aquele conceito de inconsciente foi colocado,
com os três pontos sobre as multiplicidades do inconsciente e do delírio, o delírio
mundo/cósmico e não o delírio da família, e o inconsciente como uma
máquina/fábrica, não um teatro. Ele diz que não tem a mudar nesses pontos, e ele
espera que ainda seja um livro a ser descoberto.
EINÍCIOSPAÇOE de Enfance-Infância ESPAALFABETOÇO
Parnet lembra que Deleuze passou toda sua vida no 17º arrondissement de Paris,
então ela pergunta se ele foi criado em um família burguesa com tendências
politicamente conservadoras (de direita).
Deleuze fala com um certo ar divertido de sua infância, dizendo que sua vida no
17º arrondissement foi como uma “chute”, uma queda do quartier bastante chique
perto do Arco do Triunfo, onde ele nasceu, para vários apartamentos durante a
guerra, para a rua d’Aubigny por vários anos com sua mãe e, depois, como adulto,
para seu quartier, mais precisamente na rue de Bizerte, um bairro de classe
média. Deleuze diz que não tem certeza, se esse ritmo continuar, de onde ele
acabará nos próximos anos.
Quanto à sua família, sim, eles eram burgueses “de direita”, mas ele diz que ele
tem poucas memórias de sua infancia (ele observa que parece que suas
memórias mais longínquas desapareceram, e que ele não é um arquivo). Ele se
lembra de certas crises, da falta de dinheiro que o salvou de ir estudar “chez les
Jesuites” (com os padres jesuítas), uma vez que ele teve que ir para a escola
secundária pública e não para uma escola privada, católica, devido às dificuldades
de dinheiro de sua família; além disso, o período antes da guerra e o medo que a
burguesia conservadora tinha da Frente Popular [Socialista], que para eles
representava a chegada do caos total. Eles eram anti-semitas, e particularmente
contra Leon Blum [socialista e judeu, líder do governo da Frente Popular], o qual,
para eles, era pior que o demônio. Deleuze insiste que não se pode compreender
como Pétain tomou o poder sem compreender o ódio devotado no período pré-
guerra ao governo de Blum.
Assim, ele lembra que ele vem de uma família burguesa “de droite”,
completamente inculta, com um pai (Deleuze lembra-se dele de forma carinhosa,
lembrando-se também da atmosfera de crise e os sentimentos violentos de seu
pai – como um veterano da I Guerra Mundial – contra a esquerda). Ele era
engenheiro, um inventor, cujo primeiro negócio fracassou pouco antes da guerra,
tendo depois trabalhado em um fábrica construindo dirigíveis – a fábrica foi depois
tomada pelos alemães para construr barcos infláveis.
Deleuze lembra que quando os alemães chegaram , invadindo a partir da Bélgica,
ele estava em Deauville (na Normandia, onde sua família passava os verões),
assim ele foi colocado na escola secundária de lá por um ano. Ele lembra como
uma imagem de Deauville ilustra a enorme mudança social da Frente Popular.
Com a introdução das “férias remuneradas”, pessoas que nunca viajavam podia
agora ir à praia e ver o mar pela primeira vez. Deleuze lembra a visão de um
jovem de Limousin que ficara parada por cinco horas, fascinada diante do
extraordinário espetáculo do mar. E esta tinha sido uma praia particular, para
proprietários burgueses. Ele também lembra o ódio de classe traduzido por uma
frase pronunciada por sua mãe – “hélas” ( “infelizmente”), diz Deleuze – sobre a
impossibilidade de freqüentar praias para a qual pessoas “como essas” estariam
vindo. Para burgueses como seus pais, conceder férias aos trabalhadores significa
perda de privilégio bem como de território, pior mesmo do que os alemães
ocupando as praias com seus tanques.
Deleuze diz que lá, em Deauville, sem seus pais e com seu irmão mais novo, ele
era uma completa nulidade em seus estudos, até que algo ocorreu que fez com
Deleuze deixasse de ser um idiota. Até a mudança para Deauville e o ano de liceu
que ele passara durante a “estranha guerra”, ele tinha sido uma nulidade na
escola, mas em Deauville, ele conheceu um jovem professor, Pierre Halwachs
(filho de um famoso sociológo), de saúde frágil e que por ter apenas um olho havia
sido dispensado do serviço militar. Para Deleuze, esse encontro foi um despertar,
e ele tornou-se algo como o díscipulo do jovem “maître”. Halwachs levava ele para
a praia no inverno, para as dunas, e o introduzia, por exemplo, às Nourriturs
terrestres, de Gide, a Anatole France, a Baudelaire, a outros livros de Gide, e
Deleuze se transformou completamente. Mas o fato de que eles passavam tanto
tempo juntos fez com que as pessoas começassem a comentar, e a senhora em
cuja pensão Deleuze e seu irmão estavam parando preveniu Deleuze sobre
Halwachs, e depois escreveu aos seus pais osbre isso. Os irmãos deveriam voltar
a Paris, mas então os alemães invadiram, e assim eles pegaram suas bicicletas
para encontrar seus pais em Rochefort... e en route eles deram de cara com
Halwachs com seu pai! Mais tarde na vida Deleuze reencontrou Halwachs, sem a
mesma admiração, mas com 14 anos Deleuze acha que ele estava inteiramente
correto.
Parnet pergunta sobre seu retorno a Paris, freqüentando o Liceu Carnot. Deleuze
foi colocado em uma turma com um professor de filosofia chamado Vialle, embora
ele pudesse ter ido para uma turma cujo professor era Merleau-Ponty. Deleuze diz
que ele não lembra exatamente por que, mas Halwachs tinha-o ajudado a sentir
algo importante na literatura; entretanto, desde de sua primeiras aulas de filosofia,
ele sabia que isso era algo importante, que ele faria isso pelo resto de sua vida.
(Deleuze lembra que isso ocorreu exatamente quando o massacre, por parte dos
alemães, da localidade francesa de Oradour, havia sido anunciado, e que havia
uma atmosfera bastante politizada). Ele lembra Merleau-Ponty como sendo um
tanto melancólico, enquanto Vialle, que estava no fim de sua carreira, era alguém
de quem Deleuze gostava muito. A oportunidade de aprender conceitos filosóficos
atingiu-o com a mesma força com que algumas pessoas eram atingidas ao
encontrar personagens literários, Vautrin ou Eugenie Grandet; para ele a filosofia
era tão animada quanto qualquer obra literária. A partir daí ele não teve mais
nenhum problema escolar, deu-se muito bem como estudante. Parnet pergunta
sobre a atmosfera política, e Deleuze diz que havia pessoa de todas as correntes
políticas, mas não era a mesma consciência ou atividade política do tempo de paz.
Seus colegas de turma tinham uma certa consciência política devido à presença
de Guy Moquet, um estudante que participava da Resistência e tinha sido morto
pelos um ano mais tarde. Mas Deleuze lembra que a política era um tanto
camuflada durante a Ocupação uma vez que havia colegas de todos os matizes
políticos, desde simpatizantes da Resistência até simpatizantes de Vichy.
Parnet diz que parece que, para Deleuze, sua infância teve realmente pouca
importância. Deleuze responde, sim, foi necessariamente assim. Ele considera
que a atividade de escrever não tem nada a ver com as questões individuais, não
é algo pessoal ou um pequeno negócio privado. Escrever é devir, ele diz, devir-
animal, devir-criança, e a gente escreve para a vida, para devir algo, seja lá o que
se quer, exceto devir um escritor e exceto devir um arquivo. Ele respeita, sim, o
arquivo, mas isso tem importância para alguma outra coisa. Ele insiste que falar
de sua própria vida pessoal não tem qualquer interesse, como não tem nenhum
interesse um arquivo pessoal. Deleuze pega um livro que ele tem na mão, de um
grande poeta russo, Ossip Mandelstam, e lê uma passagem na qual o autor fala
sobre quão pouca importância tem a memória e especialmente para escrever.
Deleuze concorda plenamente, e toma emprestada de Mandelstam a idéia de que
se aprende não a falar, mas a gaguejar [Deleuze cita Mandelstam em seu ensaio
“Begaya-t-il” em Crítica e clínica]. A escrita é isso, diz Deleuze, gaguejar na
linguagem, empurrar a linguagem ao limite, gaguejar, devir um animal, devir uma
criança, não a partir da própria infância, mas, antes, da “infância do mundo”. Um
escritor não apela diretamente a sua vida privada (aquilo que Deleuze chama de
totalmente abominável, uma verdadeira besteira – une dégoutation, la vraie
merde), não escavoca os arquivos de família, mas, antes, permanece uma criança
do mundo. Um escritor devém, mas não um escritor, nem seu próprio
memorialista.
Parnet faz o papel de “advogado do diabo” (“um papel muito perigoso”, Deleuze
brinca com ela), ao perguntar se o livro Enfance, de Nathalie Sarraute constitui
uma exceção, se sua obra indica alguma espécie de fraqueza em seu conceito de
infância, e Deleuze discorda. Ele diz que Enfance não se centra, de forma alguma,
na infância dela, mas que ela inventa uma criança do mundo, extraindo coisas de
fórmulas e expressões para inventar uma linguagem do mundo. [A referência
implícita de Deleuze, aqui, é também ao ensaio de Sarraute “Ich strebe” em
L’usage de la parole; obrigado a Veronique Flambard-Weisbart por essas
referências]. Parnet pergunta se ele teve que passar por alguma espécie de
exercício estrito para limitar seu interesse na infância, que de alguma forma ele
deve surgir, e Deleuze sugere que este tipo de coisa acontece por si mesmo. Ele
pergunta o que há na infância que possa interessar. Talvez relações com os pais,
irmãos, mas isso é uma coisa apenas de interesse pessoal, para o indivíduo, mas
não para a escrita. Em vez disso, o que é interessante é encontar a emoção de
uma criança, não a criança que uma vez se foi, mas também o sentimento de ser
uma criança, uma criança qualquer (“un enfant quelcoque”). Deleuze refere-se a
alguém que conta ter visto um cavalo morrer na rua antes da era do automóvel, e
ele traduz isso em termos de devir um escritor. Deleuze cita Dostoyevski, o
dançarino Nijinksi, Nietzsche, todos os quais viram um cavalo morrer na rua.
Parnet diz, e Deleuze concorda, que para ele foram as manifestações da Frente
Popular, e ver seu pai em conflito entre sua honestidade e seu anti-semitismo.
Mas Deleuze insiste, “eu era uma criança”, e a importância desse artigo indefinido
na multiplicidade de uma criança. “Un enfant: l’article indefini est d’une richesse
extreme” ele conclui. O artigo indefinido é de uma extrema riqueza.
Fica claro, na introdução de Parnet, que uma vez que a letra “A” estava tomada
com “Animal”, ela não poderia usá-la para “Amizade” e foi por isso que ela
escolheu “fidelidade” para substituí-la. Ela evoca uma série de amigos próximos
de Deleuze, com os quais ele partilhou muitos anos de “fidelidade” em suas
amizades. Parnet pergunta se fidelidade e amizade estão necessariamente
ligadas, e Deleuze imediatamente diz que não se trata de uma questão de
fidelidade. Em vez disso, a amizade, para ele, é uma questão de percepção. O
que significa ter algo em comum com alguém? Não idéias em comum, mas ter
uma linguagem e mesmo uma pré-linguagem em comum. Há pessoas que nunca
conseguiremos entender ou falar até mesmo sobre simples assuntos, e outras das
quais podemos discordar completamente, mas que podemos compreender
profundamente mesmo nas coisas mais abstratas, tendo como base essa coisa
indeterminada que é tão misteriosa.
Deleuze ri quando ele diz que ele acha a amizade extremamente cômica, e Parnet
fá-lo lembrar de como ele vê a amizade em termos de duplas. Deleuze discute um
amigo muito próximo, Jean-Pierre, com o qual ele tem uma longa amizade, e eles
constituem uma espécie de dupla que ele liga a personagens de Mercier and
Camier, de Becket, enquanto com Guattari, trata-se mais de uma dupla tipo
Bouvard et Pecuchet [romance de Gustave Flaubert], tentando criar sua enorme
enciclopédia que abarca todos os campos de conhecimento. Não se trata de uma
questão de imitar essas grandes duplas, ele diz, mas a amizade é feita desse tipo
de relação, mesmo quando há discordância.
Mas Deleuze diz, então, que na questão da amizade, há um mistéro que está
conectado diretamente à filosofia. Ele se volta, aqui, para oa conceito de amigo tal
como desenvolvido pelos gregos. A filósofo é um amigo da sabedoria, um conceito
que os gregos inventaram: como alguém que se volta para a sabedoria sem ser
sábio, com uma série de pretendentes atuando em uma rivalidade de homens
livres em todos os domínios, com eloqüência, tentativas que eles perseguem (o
pretendente é o que ele chama de “fenômeno grego por excelência”). A filosofia é
um rival por alguma coisa, e ao examinar a história da filosofia, vemos que para
alguns escritores, a filosofia é precisamente essa conexão com a amizade e, para
outros, uma conexão com o noivado (fiançailles), por exemplo, Kierkegaard
(fiançailles rompues, noivado rompido). Parnet cita Blanchot e seu conceito de
amizade, e Deleuze diz que tanto Blanchot quanto Mascolo são dois escritores
atuais que dão a maior importância à amizade como a categoria mesma ou a
condição mesma de exercício do pensamento. Não um amigo real, mas a amizade
como uma categoria ou condição do pensamento [cf. O que é a filosofia?, para o
desenvolvimento deste conceito].
Deleuze conclui dizendo que ele adora desconfiar do amigo. Deleuze faz
referência a um poeta alemão, que diz que entre cão e lobo, há uma hora em que
devemos desconfiar do amigo, e ele diz que ele desconfia de seu amigo Jean-
Pierre, mas ele o faz com tal graça que isso não lhe causa nenhum mal. Existe
uma grande comunalidade de amizade, de forma que isso funciona bem. Mas
Deleuze insiste que não se trata, de forma alguma, de pequenas questões
pessoais; quando dizemos “amigo” ou “noivado rompido”, devemos saber sob
quais condições o pensamento pode se exercer. Proust disse que a amizade é
zero, pessoalmente e para o pensamento, não o pensamento na amizade, mas,
antes, no amor ciumento, como a condiçãod e pensamento para Proust.
Parnet faz uma última questão, sobre sua amizade com Foucault, que não era
uma amizade de dupla, era profunda, mas distante. Deleuze diz que Foucault era
alguém do maior mistério para ele, talvez porque eles se conheceram muito tarde
na vida. Deleuze diz que ele sente um grande arrependimento em relação a
Foucault, embora o tenha respeitado enormemente. Ele diz que Foucault era o
caso raro de um homem que entrava em uma sala e tudo mudava. Foucault, como
todos nós, não era simplesmente uma pessoa, mas, antes, era se houvesse uma
rajada de ar ou alguma outra coisa atmosférica, uma emanação. Foucault
corresponde, diz Deleuze, ao que ele mencionara antes, sobre não ser preciso
falar para que cada um aprecie e compreenda o outro. Deleuze tem na memória,
em particular, os gestos de Foucault, secos, estranhos, fascinantes, como gestos
de metal e madeira.
Finalmente, Deleuze diz que todas as pessoas só tem charme por meio de sua
loucura (folie). O que é charmoso é o lado de uma pessoa que mostra que essa
pessoa pirou um pouco (où ils perdent un peu les pédales). Se você não consegue
apreender o traço de loucura em alguém, você não pode ser seu amigo. Mas se
você apreende aquele pequeno ponto de insanidade, de “démence”, de algu´me, o
ponto em que a pessoa está com medo ou mesmo feliz, aquele ponto de loucura é
a própria fonte de seu charme.
[G de Gauche-Esquerda] [H de História da Filosofia] [I de Idéia]
[J de Joie-Alegria] [K de Kant] [L de Literatura] [M de Maladie-Doença]
Parnet observa que, embora Deleuze venha de uma família burguesa, com suas
inclinações políticas de “direita”, ele tem sido, desde a Liberação de 1945, um
“homme de gauche” (“esquerdista”), e ela também observa que enquanto tantos
de seus amigos se juntaram ao Partido Comunista FrancÊs, ele nunca o fez. Por
quê?
Deleuze diz, sim, todos passaram pelo PC, e o que o impediu de fazê-lo foi que
sempre foi tão trabalhador (travailleur) e, além disso, ele simplesmente nunca foi
capaz de agüentar ir a todas aquelas reuniões! Ele lembra a Parnet que era foi o
período do “Appel de Stockholm” (Apelo de Estocolmo) e todos os seus amigos,
pessoas de grande talento, passava todo o seu tempo andando pra lá e pra cá
coletando assinaturas para esse manifesto... Uma geração inteira ficou presa
nisso, diz Deleuze, mas isso colocava um problema para ele. Ele tinha uma
porção de amigos que eram historiadores comunistas, e ele sentia que teria muito
mais importante para o PC se esses amigos gastassem sua energia em terminar
suas dissertações do que em coletar assinaturas. Assim, ele não tinha qualquer
interesse nisso, nem tampouco era ele muito falante, assim toda essa atividade de
assinatura de manifestos deixava-o em um estado de completo pânico.
Parnet focaliza uma outra questão atual (em 1988), o respeito pelos “direitos do
homem” (les droits de l’homme), que está tão na moda, mas não é revolucionário,
bem pelo contrário. Deleuze responde suavemente, até mesmo fatigadamente,
que ele pensa que o respeito pelos “direitos do homem” pertence a esse
pensamento fraco (pensée molle) do período intelectual empobrecido que eles
discutiram antes (na letra C de cultura). É puramente abstrato, diz Deleuze, esse
“direitos do homem”, puramente abstrato, completamente vazio. É como o que ele
estava tentando dizer sobre o desejo: o desejo não consiste em erigir um objeto,
de dizer o desejo é isso... não desejamos um objeto, é zero; em vez disso, nos
encontramos em situações.
Deleuze pega um exemplo do noticiário, a situação armênia: um enclave em outra
República Soviética Armênia, um primeiro passo; depois, há esse massacre por
algum tipo de grupo turco, de forma que os armênios recuam para sua república, e
bem nesse momento, há um terremoto. Você imagina que está em algo escrito
pelo Marquês de Sade, diz Deleuze, esse pobre povo nessas circunstâncias
horríveis. (Deleuze dá esse exemplo com um conjunto de situações).
Ele continua dizendo que quando as pessoas dizem “os direitos do homem”, é
apenas um discurso intelectual, intelectuais odiosos, por sinal, que não têm idéia
nenhuma. Deleuze insiste em dizer que essas declarações não são nunca feitas
em função das pessoas que estão diretamente envolvidas, os armênios, por
exemplo. Seu problema não é os “direitos do homem”. Isso é o que Deleuze
chama de um “agenciamento” (agencement): o que se deve fazer para suprimir
esse enclave ou para fazer com que se torne possível que esse enclave
sobreviva? É uma questão de território, não de “direitos do homem”, não uma
questão de justiça, mas uma questão de jurisprudência.
Todas as abominações que os humanos sofrem, diz Deleuze, são casos não
elementos de lei abstrata. Esses são casos abomináveis, exatamente da mesma
forma que o problema armênio é um problema extremamente complexo de
jurisprudência, salvar os armênios ou ajudá-los a que eles se salvem. Então, um
terremoto ocorre para confundir tudo. Agir pela liberdade, devir revolucionário, é
operar em jurisprudência quando nos voltamos para o sistema de justiça. Assim,
não é uma questão de aplicar os “direitos do homem”, mas, antes de inventar
formas de jurisprudência, de forma que, para cada caso, isso não seja mais
possível.
Assim, trata-se de uma questão de situações que evoluem, e a luta pela liberdade
consiste em envolver-se na jurisprudência. Na Armênia, quais são os “direitos do
homem”? Os turcos não têm o direito de massacrar os armênios: aonde isso nos
leva? São os estúpidos ou hipócritas realmente, Deleuze argumenta, que têm
essa ideia dos “direitos do homem”. A criação de direitos é a criação de
jurisprudência e da luta por eles. É nisso em que consiste a esquerda, em criar
direitos.
[Aqui Charles Stivale insere um link que remete para uma lista de discussão na
qual um participante, Bram Dov Abramson, transcreveu, em francês, e traduziu,
para o inglês, integralmente essa parte da intervenção de Deleuze sobre os
“direitos do homem].
Parnet afirma que essa demanda pelos “direitos do homem” é como uma negação
do maio de 68 e também uma negação do marxismo. Entretanto, Deleuze nunca
foi um comunista, e contudo ele faz uso de Marx, que continua a ser uma
referência para ele. E Deleuze, diz Parnet, é uma das poucas pessoas que não
disse que maio de 68 foi nada, uma brincadeira de escolares; e todo mundo muda.
Ele pede a ele para falar um pouco sobre maio de 68. Deleuze a desaprova, diz
que ela é demasiado dura, ele não é uma das poucas pessoas, há muitas pessoas
que pensam bem de maio de 68. Parnet contrapõe que essas pessoas são seus
amigos. Deleuze diz, mesmo assim, muitas pessoas não renegaram ou abjuraram
maio de 68.
Para Deleuze, maio de 68 foi uma coisa simples: tratou-se de uma intrusão do
real. As pessoas quiseram vê-lo como o reino do imaginário, mas foi realmente,
diz Deleuze, um sopro do real em seu estado puro (une bouffée du réel dans l’état
pur). É o real, ele repete, e as pessoas compreendem que foi prodigioso! As
pessoas na realidade é isso que é o devir. Pode haver devires ruins, e é quase
obrigatório que os historiadores não tenham entendido isso, Deleuze crê, porque
nesses momentos, a diferença entre história e devires revela-se, e maio de 68 foi
um devir-revolucionário sem um futuro revolucionário. As pessoas podem sempre
zombar dele pós-fato, mas os devires tomaram conta das pessoas, até mesmo
devir-animal, até mesmo devir-criança, devir-mulher para os homens, devir-
homem para as mulheres. Todos esses aspectos estão nesse domínio muito
especial que Deleuze e Parnet vem distilando desde o início das questões feitas
por ela.
Assim, ele continua, as mulheres deixarão a sua marca seja ao intervir nessa
maioria, seja nas minorias segundo os grupos em que elas são colocadas
segundo esse padrão. Deleuze clarifica isso: ser uma mulher não é um dado da
natureza, as mulheres têm seus próprios devir-mulher; e assim, se as mulheres
têm um devir-mulher, os homens também têm um devir-mulher. Deleuze lembra a
Parnet de haver falado anteriormente sobre devir-animal, sobre as crianças terem
seus próprios devires, de não serem crianças naturalmente. Parnet pergunta se os
homens não podem devir homens, e essa é uma pergunta difícil! Deleuze diz, não,
esse é um padrão majoritário, viril, adulto, macho... eles podem se tornar
mulheres, e então eles entram em práticas minoritárias. A esquerda, conclui
Deleuze, é o agregado de processos de devires revolucionários. Assim, diz
Deleuze, bastante literalmente, a maioria não é ninguém, a minoria é todo mundo,
e é isso o que significa estar na esquerda: saber que a minoria é todo mundo e é
aí que fenômenos de devir ocorrem. É por isso que não importa quão grandes eles
pensem que são, eles ainda têm dúvidas sobre o resultado de eleições.
INÍCIOSPAÇOH de História da Filosofia ESPAALFABETO
Deleuze faz uma pausa e então diz que se trata de uma questão complicada
porque essa história da filosofia abrange a própria filosofia. Ele supõe que muitas
pessoas pensam na filosofia como algo muito abstrato e sobretudo para
especialistas, mas em sua opinião, não tem nada a ver com especialistas, ou tem,
mas apenas da forma que a música e a pintura têm. Assim, ele indica que tenta
colocar o problema de forma diferent.
Deleuze pergunta, entretanto, se ele não está indo ligeiro demais com essa
comparação com a pintura, e diz que se ele invoca pintores como Van Gogh ou
Gauguin, é porque algo em suas obras tem um enorme efeito sobre ele, o tipo de
imenso respeito ou, antes, de medo e até mesmo de pânico que eles provocam
quando confrontados com a abordagem da cor. Esses pintores, diz Deleuze, são
os maiores coloristas que já existiram, mas em suas obras, eles empregam a cor
com grande hesitação [tremblement]. No começo de suas carreiras, eles usavam
cores terrosas [couleurs patate, de terre], nada que chamasse a atenção, porque
ele ainda não ousavam assumir a cor. É uma questão muito comovente, como se,
literalmente, eles se julgassem ainda não dignos da cor, ainda não prontos ou
capazes para assumi-la e realmente pintar. Foram necessários anos e anos antes
que eles fossem capazes de fazê-lo. Quando você vemos os resultados de seu
trabalho, diz Deleuze, temos que refletir sobre essa imensa lentidão para
empreender aquele trabalho. A cor, para um pintor é algo que pode levá-lo à
loucura, à insanidade, sendo, assim, algo bastante difícil, levando anos para que
eles ousem chegar perto dela.
Assim, não é que ele seja particularmente modesto, diz Deleuze, mas chama sua
atenção como sendo bastante chocante que haja filósofos que dizem
simplesmente, olha, agora vou para a filosofia, vou fazer minha própria filosofia.
Trata-se de afirmações frágeis, argumenta Deleuze, porque a filosofia é como
pintar com cores, antes de chegar a ela, temos que tomar tantas precauções,
antes de conquistar a “cor filosófica” [la couleuer philosophique] – e a cor filosófica
é o conceito. É necessária uma enorme quantidade de trabalho antes que se
possa ser bem sucedido em inventar conceitos. Deleuze vê a história da filosofia
como esta modéstia vagarosa, gastando um enorme tempo em fazer retratos. É
como um romancista, sugere Deleuze, que pode dizer, estou escrevendo
romances, mas não posso ler nenhum, porque eu correria o risco de comprometer
minha inspiração. Deleuze diz que ele tem ouvido alguns escritores jovens fazer
essa apavorante afirmação, a qual, para ele, significa que eles simplesmente não
precisam trabalhar. Além disso, Deleuze vê a história da filosofia não apenas
como tendo um papel preparatório, mas que ela é razoavelmente bem sucedida
por si mesma. Trata-se de uma arte do retrato na medida em que permite que se
chegue a alguma coisa. Nesse ponto, torna-se um pouco misterioso, diz Deleuze,
e ele pergunta a Parnet se ela pode, talvez, dar a ele uma outra questão, de forma
que ele possa definir isto.
Parnet diz que a utilidade da história da filosofia para Deleuze está clara nessa
explicação. Mas a utilidade da história da filosofia para as pessoas em geral, o que
é isso, ela pergunta, uma vez que Deleuze diz que ele não quer vê-la como uma
espécie de especialização?
Para Deleuze, é muito simples. Pode-se compreender o que é a filosofia, ele diz –
isto é, a extensão na qual é ela não é uma coisa mais abstrata do que uma pintura
ou uma obra musical – apenas por meio da história da filosofia, desde que se a
conceba da maneira adequada [comme il faut]. O que pode isso ser? Uma coisa é
certa: um filósofo não é alguém que contempla ou mesmo reflete, mas é alguém
que cria um tipo muito especial de coisa, conceitos, não estrelas para as quais se
olha no céu. Deleuze argumenta [com ele e Guattari fazem em O que é filosofia?]
que temos que criar conceitos, fabricar conceitos. Assim, muitas questões surgem
aqui: para quê? Por que criar conceitos, e o que é isso? Deleuze deixa essas
questões de lado para dar um exemplo: sabemos que Platão criou um conceito
que não existia antes dele, que em geral se traduz como “a Idéia”. O que ele
chama de Idéia é verdadeiramente um conceito platônico. Concretamente,
pergunta Deleuze, de que se trata? É isso que temos que perguntar. Uma Idéia é
uma coisa que não seria uma outra coisa, isto, seria apenas o que é... Deleuze faz
uma para perguntar: isso é abstrato? Não, ele responde, e dá o exemplo que não
se encontra em Platão: uma mãe não é apenas uma mãe, mas também uma
esposa, uma filha. Imaginemos, continua ele, que uma mãe fosse apenas uma
mãe, por exemplo, a Virgem Maria. Mesmo que isso não exista, uma mãe que não
fosse uma outra coisa seria uma Idéia de mãe, isto é, uma coisa que seria apenas
o que é. Isso, afirma Deleuze, é o que Platão quis dizer quando ele afirmou que
apenas a justiça é justa, que apenas a justiça não é alguma outra coisa senão
justa. Platão não pára aí, mas ele criou um verdadeiro concito da Idéia de algo
como puro.
Deleuze admite que isso ainda continua abstrato, e pergunta por quê. Se vamos
ler Platão, tudo se torna concreto, Deleuze insiste. Platão não criou esse conceito
de Idéia por acaso; ele disse que não importa o que aconteça nessa situação
concreta, não importa o que seja um dado nesse caso, existem pretendentes, isto
é, pessoas que dizem: para esta coisa, eu sou o melhor exemplo. Platão deu o
exemplo de um político com uma definição inicial como o pastor de homens, o
qual cuida das pessoas. Como conseqüência, as pessoas apareceram para dizer:
eu sou o verdadeiro pastor de homens (o comerciante, o condutor de ovelhas, o
médico), isto é, diferentes níveis. Em outras palavras, há pretendentes, e com isso
as coisas começar a ficar um pouco mais concretas.
Deleuze insiste que um filósofo cria conceitos, isto é, a Idéia, a coisa na medida
em que ela é pura [la chose en tant que pure]. O leitor não compreende
imediatamente de que se trata, ou por que precisaríamos criar um tal conceito. Se
ele ou ela continua a refletir sobre isso, verá a razão: há todo tipo de pretendentes
que se apresentam como reivindicando as coisas. Assim, o problema, para Platão,
não é, de forma alguma: “o que é a Idéia”? Dessa forma as coisas continuariam
abstratas. Em vez disso, trata-se de como selecionar os pretendentes, como
descobrir entre eles qual é genuíno (le bon). É a Idéia, isto é, a coisa em estado
puro, que permitirá essa seleção, que selecionará o pretendente que se aproxima
dela.
Deleuze entende que isso permite que a discussão avance um pouco, uma vez
que todo conceito, por exemplo, a Idéia, refere-se a um problema, neste caso o
problema de como selecionar o pretendente. Se fazemos filosofia abstratamente,
ele insiste, não chegamos sequer a ver o problema, mas se chegamos a esse
problema... Perguntamo-nos por que o problema não é claramente apresentado
pelo filósofo, uma vez que ele certamente existe em seu trabalho, e Deleuze
sustenta que é porque não podemos fazer tudo de uma vez só. A tarefa do filósofo
é já a de expor os conceitos que ele está em vias de criar, assim ele não pode,
além disso, expor os problemas, ou ao menos podemos descobrir esses
problemas apenas por meio dos conceitos que estão sendo criados. Deleuze
insiste: se não tivermos encontrado o problema ao qual um conceito corresponde,
tudo permanece abstrato. Se tivermos encontrado o problema, tudo se torna
concreto. É por isso que em Platão, há constantemente esses pretendentes, esses
rivais.
Deleuze vai adiante para perguntar, por que isso ocorre na cidade grega, e em
Platão? O conceito é a Idéia como meio de selecionar os pretendentes, mas por
que esse conceito e esse problema tomam forma no milieu grego? Porque trata-se
tipicamente de um problema grego, da cidade grega, democrática, mesmo que
Platão não aceite o caráter democrático da cidade. Pois é na cidade grega que,
por exemplo, a magistratura é um objeto de pretensão, pois alguém pode se
candidatar para uma função particular. Em uma formação imperial, os funcionários
são nomeados pelo imperador, enquanto que a cidade ateniense é uma
competição de pretendentes, todo um milieu de problemas gregos, uma civilização
na qual a confrontação de rivais constantemente aparece: é por isso que eles
inventaram a ginástica, os jogos olímpicos, e também os procedimentos legais. E
também na filosofia existem pretendentes, por exemplo, a luta de Platão contra os
sofistas. Ele acreditava que os sofistas eram pretendentes em relação a algo ao
qual eles não tinham direito. O que definiria o direito ou não de um pretendente?,
pergunta Deleuze. Tudo isso é tão interessante quanto um grande romance ou
uma grande pintura, mas em filosofia, existem dois coisas ao mesmo tempo: a
criação de um conceito sempre ocorre como função de um problema. Se não
encontramos o problema, a filosofia permanece abstrata.
Ele dá outro exemplo: as pessoas em geral não vêem os problemas, eles em geral
permanecem ocultos, mas envolver-se na história da filosofia significa restaurar
esses problemas e, por esse meio, descobrir o que há de inovativo nesses
conceitos. A história da filosofia conecta conceitos como se eles parecessem
óbvios, como se eles não fossem criados, de forma que há uma tendência a
ignorar os problemas.
Parnet pergunta, uma vez que Deleuze evocou o tremor e a hesitação de Gauguin
e de Van Gogh diante da decisão de utilizar a cor, o que aconteceu com ele,
Deleuze, quando ele deixou a história da filosofia para fazer sua própria filosofia?
Deleuze responde rapidamente, foi isso o que aconteceu: a história da filosofia
deu-lhe a oportunidade de aprender coisas, tornou-o mais capaz de chegar à cor
em filosofia. E, ele pergunta, por que a filosofia não deixa de existir, por que ainda
fazemos filosofia hoje? Porque existe sempre uma ocasião de criar conceitos. Mas
hoje, ele continua, essa noção de criação de conceitos foi tomada pela mídia, pela
publicidade; com os computadores, eles dizem que podemos criar conceitos, toda
uma linguagem roubada da filosofia, para a “comunicação”. Mas aquilo que eles
chama de conceitos, de criar, diz Deleuze como que encerrando a questão, é
verdadeiramente cômico, não há nenhuma necessidade de insistir nisso. Essa
ainda continua sendo a tarefa da filosofia.
Deleuze diz que ele nunca foi afetado por pessoas que proclamam a morte da
filosofia, que falam em ultrapassar (dépasser) a filosofia, etc., uma vez que ele
sempre se perguntou o que querem dizer com essa “morte”. Na medida em que
houver a necessidade de criar conceitos, haverá filosofia, uma vez que essa é a
definição de filosofia, nós temos que criá-los, e nós os criamos como uma função
de problemas, e os problemas mudam. Certamente, podemos ser platônicos,
leibnizianos, kantianos, hoje, isto é, julgamos que certos problemas – não todos –
colocados por Platão continuam válidos desque se façamos certas
transformações, e assim somos platônicos uma vez que ainda existe um uso para
conceitos platônicos. Se nós colocamos problemas de natureza completamente
diferente, fazer filosofia é criar novos conceitos como função dos problemas
colocados hoje.
Parnete volta às duas questões especiais para Deleuze: quando ele voltou a faze
história da filosofia com o livro sobre Leibniz (A dobra), no ano anterior, foi da
mesma forma que 20 anos ants, isto é, antes de ele ter começado a produzir sua
própria filosofia? Deleuze responde que “certamente não”. Antes, ele utilizou a
história da filosofia como essa espécie de aprendizagem indispensável a fim de
examinar os conceitos de outros, de grandes filósofos, e os problemas para os
quais seus conceitos forneciam respostas. Enquanto que no livro sobre Leibniz – e
Deleuze diz que não existe nada em vão no que ele está para dizer –, ele misturou
problemas do século XX, que poderiam ser seus próprios problemas, com os
colocados por Leibniz, uma vez que Deleuze está convencido da atualidade dos
grandes filósofos. Assim, o que significa agir como (faire comme) um grande
filósofo o faria? Não significa necessariamente ser seu discípulo, mas ampliar sua
tarefa, criar conceitos em relação com os conceitos que ele criou e em sintonia
com sua evolução. Ao trabalhar sobre Leibniz, Deleuze estava mais nesse
caminho, enquanto que nos primeiros livros sobre a história da filosofia, ele estava
no estágio “pré-cor”.
Parnet persegue essa idéia ao observar que seus livros sobre Nietzsche e
Espinosa foram eventos reais, livros pelos quais ele é conhecido, e contudo não
se pode dizer que ele seja um nietzschiano ou um espinosiano. Deleuze passou
por tudo isso, mesmo durante seu aprendizado, e Parnet diz que ele já era
deleuziano. Deleuze parece levemente constrangido, dizendo que ela lhe fez um
grande elogio, se é que isso é verdadeiro. O que ele sempre procurou, diz ele,
fosse seu trabalho bom ou ruim, e ele sabia que podia fracassar, foi tentar colocar
problemas para seus próprios objetivos (pour mon compte), e criar conceitos para
seus próprios objetivos. Deleuze então sugere que, no caso extremo, ele teria
querido uma espécie de quantificação da filosofia, de forma que a cada filósofo
fosse atribuído uma espécie de número mágico que correspondesse ao número
de conceitos que ele realmente criou, referidos a problemas – Descartes, Leibniz,
Hegel. Deleuze acha essa uma idéia interessane, e pensa que talvez ele tivesse
um número mágico pequeno, tendo criado conceitos em função de problemas.
Mas Deleuze conclui dizendo que sua questão de honra é simplesmente que,
qualquer que tenha sido o tipo de conceito que ele tenha tentado criar, ele pode
estabelecer a qual problema aquele conceito corresponde. Se não fosse assim,
tudo teria sido uma conversa vazia.
A última questão de Parnet sobre este tema: durante o período em volta de 1968,
e antes, quando todo mundo estava envolvido em ler Marx e Reich, não tinha sido
deliberadamente provocativo ao se voltar para Nietzsche, suspeito de fascismo, e
para Espinosa e o corpo, quando todo mundo estava pregando sobre Reich? Não
servia a história da filosofia, para ele, um pouco como uma ousadia, uma
provocação?
Deleuze responde dizendo que isto está ligado ao que eles estiveram o tempo
todo discutindo, a mesma questão. O que ele estava buscando, mesmo com
Guattari, era esse tipo de dimensão verdadeiramente imanente do inconsciente. A
psicanálise está inteiramente plena de elementos transcendentais – a lei, o pai, a
mãe – enquanto que um campo de imanência que lhe permitiria definir o
inconsciente como o domínio no qual Espinosa foi mais longe, e Nietzsche
também, mais longe que qualquer outro antes deles. Assim não havia qualquer
provocação, mas Espinosa e Nietzsche formam na Filosofia talvez a maior
liberação do pensamento, de natureza quase explosiva, e os conceitos mais
incomuns, porque seus problemas eram de alguma forma problemas condenados,
que as pessoas não ousavam colocar durante suas épocas.
[Deleuze pára, sorrindo para Parnet, e ela responde de forma bastante estranha,
dizendo (quase no tom de um pai ou uma mãe que repreende seu filho]: “Bem,
vamos adiante, já que você não quer responder”. Deleuze simplesmente faz um
leve questionament: “eh?”, enquanto Parnet anuncia a próxima letra.
Parnet começa dizendo que esta “idéia” não está mais no domínio platônico. Em
vez disso, ela diz, Deleuze sempre falou apaixonadamente sobre idéias de
filósofos, mas também idéias de pensadores no cinema (diretores), idéias de
artistas e de pintores. Ele sempre preferiu uma “idéia” às explicações e ao
comentário. Por que, então, para Deleze, a “idéia” ganha precedência sobre todo o
resto?
Deleuze admite que isso está bastante correto: a “idéia” tal como ele a utiliza
atravessa todas as atividades criativas, uma vez que criar idéias significa ter uma
idéia. Mas há pessoas – que não devem, de forma alguma, ser desprezadas por
causa disso – que passam pela vida sem jamais ter uma idéia. Deleuze insiste que
é, em geral, bastante raro que se tenha uma idéia, não ocorre todos os dias. E um
pintor também pode ter idéias, da mesma forma que um filósofo, só que não se
trata do mesmo tipo de idéias. Assim, pergunta Deleuze, em que forma uma idéia
ocorre em um caso particular? Em filosofia, ao menos, de duas formas: a idéia
ocorre na forma de conceitos e de criação de conceitos.
Assim, o que acontece quando alguém que vive as sensações passa para uma
outra coisa? Isso, diz Deleuze, é um pouco como na arte, onde encontramos uma
resposta. É dar uma duração ou uma eternidade a essa complexa rede de
sensações que não são mais apreendidas como sendo vividas por alguém, ou
que, do lado de fora, podem ser apreendidas como vividas por um personagem de
ficção. O que faz um pintor? Ele dá consistência a perceptos, ele rasga perceptos
a partir da percepção.
Parnet observa que Deleuze está sempre muito interessado nas idéias dos
pintores, artistas, filósofos, mas ela pergunta por que ele nunca parece
interessado em examinar ou ler algo que seja simplesmente divertido ou algo
meramente diversionista, sem que seja preciso ter uma idéia. Não é uma possível
que haja também aí uma idéia? Deleuze diz que, no sentido em que ele defini
“idéia”, ele tem dificuldade em ver como isso seria possível? Se mostrarmos para
ele uma pintura que não tem nenhum percepto ou tocar para ele alguma música
sem afeto, Deleuze diz que ele praticamente não pode compreender o que isso
quer dizer. E um livro idiota de filosofia, ele diz que ele teria dificuldade em
compreende que tipo de prazer ele tiraria disso, além de um prazer extremamente
doentio. Parnet diz que podemos simplesmente pegar um livro deliberadamente
divertido, e Deleuze diz que um livro desses bem poderia estar cheio de idéias,
tudo depende. Ele diz que ninguém o fez rir mais do que Beckett e Kafka, e que
ele se considera uma pessoa sensível ao humor, mas que é verdade que ele não
gosta muito de programas cômicos na televisão. Parnet diz que a exceção para
Deleuze é Benny Hill, e Deleuze diz, sim, porque ele [Benny Hill] “tem uma idéia”,
mas mesmo em seu seu campo, os grandes cômicos americanos (burlesques)
têm um monte de idéias.
Parnet pergunta se algum vez ocorre que Deleuze senta em sua escrivaninha sem
ter uma idéia do que ele vai fazer, isto é, sem ter qualquer idéia. Deleuze diz,
obviamente não, se ele não nenhuma idéia, ele não se senta para escrever. Mas o
que acontece é que a idéia não se desenvolveu o suficiente, a idéia lhe escapa, a
idéia desaparece, pode haver buracos. Ele tem essas experiências dolorosas, ele
admite, e não é fácil uma vez que as idéias não estão prontas, há momentos
terríveis, até mesmo desesperadores desse tipo. Parnet menciona uma
expressão: a idéia que faz um buraco que está faltando (l’idée qui fait un trou qui
manque), e Deleuze responde dizendo que é impossível fazer uma distinção.
Tenho uma idéia que eu sou apenas incapaz de expressar, ou simplesmente não
tenho idéia nenhuma? Para Deleuze, é exatamente a mesma coisa: se ele não
pode expressá-la, ele não tem a idéia, ou está faltando um pedaço, uma vez que
as idéias não chegam em um bloco completamente formado, há coisas que vêm
de horizontes variados, e se está faltando um pedaço, então é inutilizável.
INÍCIOSPAÇO J de Joie-AlegriaESPAALFABETO
Deleuze diz, sim, esses textos estão, da forma mais extraordinária, carregados de
afeto. Em Espinosa isso significa – para simplificar – que a alegria é tudo aquilo
que consiste em preencher uma potência. O que é isso? Deleuze sugere voltar a
exemplos anteriores: eu conquisto, por menor que isso possa ser, eu conquista
um pequeno segmento de cor, eu entro um pouco mais na cor; é aí que a alegria
pode ser localizada. A alegria é preencher uma potência, efetuar uma potência. É
a palavra “potência” que é ambígua.
Deleuze vai adiante, sugerindo que a confusão entre potência e poderes tem
bastante custos, porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão sujeitas
daquilo que elas são capazes de fazer. Espinosa partiu desse ponto, diz Deleuze,
e ele volta a algo que Parnet disse ao fazer aquela pergunta, que a tristeza está
ligada aos padres, aos tiranos, aos juízes, e essas são perpetuamente as pessoas
que separam seus sujeitos daquilo que eles são capazes de fazer, que os proíbem
de efetuar suas potências. Deleuze relembra algo que Parnet disse no verbete “I
de Idéia”, ao se referir ao anti-semitismo de Nietzsche. Deleuze vê essa como
uma questão importante, uma vez que há textos de Nietzsche que se pode achar
bastante perturbadores se eles são lidos da maneira antes mencionada, isto é, a
de ler os filósofos muito ligeiramente. O que impressiona Deleuze como curioso é
que em todos os textos nos quais Nietzsche fustiga o povo judeu, o que é que ele
reprova neles, e o que contribuiu para sua fama de anti-semita? Nietzsche
reprova-os, sob condições bem específicas, por terem inventado um personagem
que nunca existiu antes deles, o personagem do padre. Deleuze argumenta que,
tanto quanto ele saiba, em nenhum texto de Nietzsche existe a mínima referência
aos judeus em um ataque generalizado, mas, estritamente, um ataque contra o
povo judeu inventor do padre. Deleuze diz que Nietzsche enfatiza que em outras
formações sociais pode haver feiticeiros, escribas, mas não são a mesma coisa
que os padres.
Deleuze sustenta que uma das fontes da grandeza de Nietzsche como filósofo é
que ele nunca deixa de admirar aquilo que ele ataca, pois ele vê o padre como
uma invenção verdadeiramente incrível, algo muito impressionante. E isso resulta
em uma imediata conexão com os cristãos, mas não o mesmo tipo de padre.
Assim, os cristãos conceberão um outro tipo de padre e continuarão na mesma
trajetória do personagem clerical. Isso mostra, argumenta Deleuze, a extensão na
qual a filosofia é concreta, pois Deleuze insiste que Nietzsche é, tanto quanto ele
saiba, o primeiro filósofo a ter inventado, criado, o conceito do padre, e desse
ponto em diante, de ter colocado problemas fundamentais: em que consiste um
poder sincero, total, etc.; qual é a diferença entre um poder sincero, total e um
poder roial, etc.? Para Deleuze, essas são questões que continuam
completamente atuais. Aqui, Deleuze quer mostrar, como ele começou a fazer
antes, como podemos continuar e ampliar a filosofia. Ele refere-se à maneira
como Foucault, utilizando seus próprios meios, enfatizou o poder pastoral, um
novo conceito que não é o mesmo de Nietzsche, mas que se liga diretamente com
Nietzsche, e dessa forma, desenvolvemos uma história do pensamento.
Assim, o que é o conceito de padre e como está ligado à tristeza?, pergunta
Deleuze. De acordo com Nietzsche, esse padre é definido como o que inventou a
idéia de que os homens existem em um estado de dívida infinita. Antes do padre,
há a história da dívida, e os etnólogos fariam bem em ler Nietzsche. Eles fizeram
pesquisaram muito isso durante o nosso século, nas assim chamadas sociedades
primitivas, onde as coisas funcionavam por meio de pedaços de dívida, blocos de
dívida finita, eles os recebiam e os davam de volta, todos ligados ao tempo,
pacotes adiados. Esta é uma grande área de estudo, diz Deleuze, uma vez que
sugere que a dívida era fundamental à troca. Esses são problemas propriamente
filosóficos, argumenta Deleuze, mas Nietzsche falou sobre isso muito antes dos
etnólogos. Na medida em que a dívida existe em um regime finito, o homem pode
libertar-se dela. Quando o padre judeu invoca esta idéia em virtude de uma
aliança de dívida infinita entre o povo judeu e Deus, quando os cristãos adotam
isso sob uma outra forma, a idéia de dívida infinita ligada ao pecado original, isso
revela o personagem muito curioso do padre, sendo responsabilidade da filosofia
criar o seu conceito. Deleuze toma cuidado em dizer que ele não afirma que a
filosofia é necessariamente atéia, mas no caso de Espinosa, ele já tinha esboçado
uma análise do padre judeu, no Tratado teológico-político. Ocorre, diz Deleuze,
que os conceitos filosóficos são verdadeiros personagens que tornam a filosofia
concreta [Deleuze está obviamente desenvolvendo, aqui, o conceito de “personas
conceituais” que ele e Guattari propuseram em O que é filosofia?]. Criar o conceito
do padre é como um artista criando uma pintura do padre.
Por outro lado, Deleuze continua, a alegria é a efetivação de potências. Ele diz
que ele não conhece qualquer potência que seja má. Regozijar-se é alegrar-se em
ser o que se é, isto é, em ter chegado onde se está. Não é auto-satisfação, não é
nenhum gozo de estar satisfeito consigo mesmo. Em vez disso, é o prazer na
conquista, como disse Nietzsche, mas a conquista não é a conquista de submeter
as pessoas, mas a conquista é quando os pintores utilizam e então conquistam as
cores. É isso que é a alegria, mesmo quando dá errado. Pois, na história das
potências e da conquista das potências, ocorre que se pode efetivar potências
demasiadas para o próprio eu, fazendo com que se entre em surto, como no caso
de Van Gogh.
Parnet diz que Deleuze tem tido sorte em escapar da dívida infinita. Assim, como
se explica que ele se queixe da manhã à noite, e que ele seja o grande advogado
da queixa e da elegia? Sorrindo enquanto Parnet diz isso, Deleuze observa que se
trata de uma questão pessoal. Ele então diz que a elegia é uma fonte importante
de poesia, uma grande queixa. Dever-se-ia fazer uma história da elegia,
provavelmente já foi feita; a queixa do profeta, ele continua, é o contrário do padre.
O profeta lamenta-se, por que Deus escolheu a mim?, o que está me acontecendo
é demais para mim; se aceitamos que isso seja a queixa, algo que não vemos
todo dia. E não é, ai, ai, ai, estou com dor, embora também possa ser isso, diz
Deleuze, mas a pessoa que está se queixando nem sempre sabe o que ela quer
dizer. A senhora de idade que se queixa sobre seu reumatismo, o que ela quer
dizer é, que força está tomando conta de minha perna e que é demasiado grande
para que eu possa suportar?
Deleuze diz [com uma risada de Parnet, como resposta], que se ele não tivesse
sido um filósofo e se ele tivesse sido uma mulher, ele queria ter sido uma chorona,
a queixa surge e é uma arte. E a queixa tem também este lado perverso, como se
dissesse: não assuma minha queixa, não me toque, não tenha pena de mim, eu
estou tomando conta disso. E ao tomar conta disso, sozinho, a queixa se
transforma: o que está acontecendo é demasiadamente esmagador para mim,
porque isto é alegria, alegria em estado puro. Mas tomamos cuidado em ocultá-la,
diz Deleuze, porque há pessoas que não ficam muito contentes com alguém que
esteja alegre, assim, temos que ocultá-la em alguma forma de queixa. Mas a
queixa não é apenas alegria, é também desconforto, porque, na verdade, efetivar
uma potência pode ter um custo: a gente se pergunta, vou arriscar minha pele?
Assim que alguém efetiva uma potência, por exemplo, um pintor chegando a uma
cor, não está arriscando sua pele? Literalmente, devemos pensar na forma como
Van Gogh foi em direção à cor, depois viveu a alegria, e isso está mais ligado à
sua loucura que todas essas histórias psicanalíticas. Algo arrisca ser quebrado, é
demasiadamente esmagador para mim, é isso que a queixa é, algo
demasiadamente grande para mim, na infelicidade ou na alegria, mas geralmente
na infelicidade.
INÍCIOSPAÇO K de KantESPAALFABETO
Parnet começa afirmando que, de todos os filósofos sobre os quais Deleuze tem
escrito, Kant parece o mais distante de seu próprio pensamento. Entretanto,
Deleuze tem dito que todos os autores que ele estudou têm algo em comum.
Existiria, assim, pergunta ela, algo em comum entre Kant e Espinosa que não seja
de todo óbvio?
Deleuze faz uma pausa e então diz que ele preferiria, se ele puder ter essa
ousadia, tratar da primeira parte da questão, isto é, por que ele tratou de
Kant, .............................Assim, pergunta Deleuze, por que ele se fascinou com
Kant? Por duas razões: 1. Kant representou uma grande virada, e 2. Kant foi tão
longe quanto possível, iniciando algo que nunca tinha sido formulado em filosofia.
Especificamente, diz Deleuze, ele erige tribunais, talvez sob a influência da
Revolução Francesa.
Deleuze lembra a Parnet que até agora ele tentou falar sobre os conceitos como
personagens. Assim, antes de Kant, no século XVIII, há um novo tipo de filósofo
apresentado como um investigador (enquêteur), a investigação, aparecem títulos
com “Investigação” sobre isso ou aquilo. O próprio filósofo via-se como um
investigador. Mesmo no século XVII, e Leibniz é o último a representar essa
tendência, ele via-se como um advogado, defendendo uma causa, e a maior coisa
é que Leibniz tinha a pretensão de ser o advogado de Deus. Como deve ter
havido, na época, coisas em relação às quais Deus podia ser reprovado, Leibniz
escreve um pequeno e maravilhoso trabalho “A causa de Deus”, no sentido
jurídico de causa, a causa de Deus a ser defendida. É como uma seqüência de
personagens: o advogado, o investigador, e então, com Kant, a chegada de um
tribunal, um tribunal da razão, coisas sendo julgadas como função de um tribunal
da razão. E as faculdades, no sentido de compreensão – a imaginação, o
conhecimento, a moralidade – são medidas em função do tribunal da razão.
Obviamente, ele utiliza um certo método que ele inventou, um método prodigioso
chamado o método crítico, o método propriamente kantiano.
Deleuze admite que ele acha todo esse lado de Kant bastante horrível, mas é
tanto fascinação quanto horror, porque é tão engenhoso. E ao interagir com os
conceitos que Kant inventou, Deleuze considera o conceito do tribunal da razão
como inseparável do método crítico. Mas, em última instância, diz Deleuze, trata-
se de um tribunal de julgamento, o sistema de julgamento, apenas que não se
precisa mais de Deus, que se baseia agora na razão, não mais em Deus.
Em uma observação lateral, Deleuze diz que se poderia ficar curioso sobre algo
que ele acha misterioso – por que alguém, você ou eu, acaba se conectando ou
se relacionando especialmente com uma espécie de problema e não com outro?
Em que consiste a afinidade de alguém por um tipo particular de problema? É
possível que estejamos destinados a um certo problema uma vez que nós não
simplesmente não pegamos qualquer problema. E isso é verdadeiro, sente
Deleuze, para os pesquisadores nas ciências, uma afinidade por um problema
particular. E a filosofia é um agregado de problemas, com sua própria
consistência, mas, felizmente, ela não tem a pretensão de lidar com todos os
problemas, recita Deleuze. Bem, ele se sente de alguma forma ligado a problemas
que tenham como objetivo buscar os meios para se livrar do sistema de juízes, e
substituí-lo por alguma outra coisa. Trata-se um grande “não”... Deleuze pensa
sobre o que Parnet havia dito anteriormente e diz, de fato, Kant é um outro
acréscimo. Deleuze vê Espinosa, vê Nietzsche, na literatura, D. H. Lawrence e,
finalmente, o mais recente e um dos maiores escritores, Artaud, seu “Pour en finir
avec le jugement de dieu”, que tem sentido, não são as palavras de um louco,
temos que tomar isso de forma literal, argumenta Deleuze. [Ver “Para dar um fim
ao juízo”, em Gilles Deleuze. Crítica e clínica, Rio, Editora 34, pp. 143-153].
E por baixo, quando Deleuze diz que temos que olhar por baixo dos conceitos, há
algumas afirmações de Kant que são surpreendentes, maravilhosas. Deleuze diz
que ele foi o primeiro a ter criado a surpreendente inversão de conceitos, e é por
isso que Deleuze fica tão triste quando se ensina as pessoas, até mesmo os
jovens que estão preparando seu baccalaureate, de uma forma abstrata, sem nem
mesmo tentar fazê-las participar de problemas que são problemas bem
fantásticos. Deleuze insiste na afirmação de que, até Kant, por exemplo, o tempo
era derivado do movimento, era secundário em relação ao movimento, era tido
como um número ou uma medida do movimento. O que faz Kant? Em um
parênteses, Deleuze lembra a Parnet que tudo o que ele está fazendo aqui é
constantemente considerar o que significa criar um conceito. Continuando, ele diz
que Kant cria um conceito porque ele inverte a subordinação, de forma que com
ele, o movimento depende do tempo. E repentinamente, o tempo muda sua
natureza, deixa de ser circular. Antes, o tempo era subordinado ao movimento, no
qual o movimento era o grande movimento periódico dos corpos celestiais, de
forma que ele é circular. Ao contrário, quando o tempo se liberta do movimento e o
movimento passa a depender do tempo, o tempo torna-se uma linha reta. Deleuze
lembra algo que Borges disse – embora ele tenha pouca relação com Kant –, que
uma labirinto mais assustador que um labirinto circular é um labirinto em linha reta,
maravilhoso, mas foi Kant que libertou o tempo.
Parnet tenta perguntar a Deleuze (enquanto a fita acaba) sobre a vida de Kant, e
Deleuze exclama: “nós não discutimos isto antecipadamente!”. Assim, Parnet faz
uma outra pergunta: existe um aspecto no trabalho de Kant que também pode
agradar muito a Deleuze, o aspecto que Thomas de Quincey discutiu [em The
Last Days of Immanuel Kant], essa vida fantasticamente regulada, cheia de
hábitos, sua caminhada diária, a imagem quase mística de um filósofo. Parnet diz
que essa imagem também se aplica a Deleuze, isto é, algo bastante regulado,
com um enorme número de hábitos...
Deleuze sorri outra vez, diz que ele percebe o que ela quer dizer, e o texto de De
Quincey é um texto que ele acha interessantíssimo, um verdadeira obra de arte.
Mas ele vê esse aspecto como pertencendo a todos os filósofos, não os mesmos
hábitos, mas dizer que eles são criaturas de hábitos parece sugerir que eles não
têm qualquer familiaridade com... [Deleuze não completa o pensamento]. Sendo
criaturas de hábito é quase algo que se exige deles... Espinosa também... Deleuze
diz que sua impressão de Espinosa é que não existe muita coisa de
surpreendente em sua vida, ele polia lentes, recebia visitas, não era uma vida
muito agitada, exceto por algumas perturbações políticas da época. Kant também
viveu algumas em meio a algumas perturbações políticas muito intensas. Assim,
tudo o que as pessoas dizem sobre os aparatos de vestir de Kant (os aparatos
para puxar suas meias, etc.), Deleuze vê como uma espécie de charme, na
medida em que se precisa desse tipo de coisa. Mas, é um pouco como Nietzsche
disse, os filósofos são em geral castos, pobres, e Nietzsche acrescenta, que uso
faz o filósofo disso tudo, dessa castidade, dessa pobreza, etc.? Kant tinha sua
pequena caminhada, mas isso não é nada em si, é o que Deleuze sente: o que
acontecia durante sua pequena caminhada, para que ele estava olhando? No
longo prazo, diz Deleuze, o fato de que os filósofos sejam criaturas de hábito
corresponde a uma espécie de contemplação, contemplar algo. Quanto aos seus
próprios hábitos, sim, ele tem uns tantos, mas são uma espécie de contemplação,
e de coisas que só ele vê.
INÍCIOSPAÇOL de Literatura ESPAALFABETO
Deleuze diz, sim, embora em determinado momento ele tivesse sido muito mais
um leitor ativo de filosofia uma vez que isso era parte de seu aprendizado, e ele
não tinha tempo para romances. Mas ao longo de sua vida, ele leu, e mais e mais.
Ele mesmo pergunta: ele faz uso disso para a filosofia? Sim, certamente, por
exemplo, ele indica que ele deve muito a Fitzgerald, e a Faulkner também, e
embora em geral não considerado um escritor filosófico. [Deleuze indica aqui que
ele não lembra quais escritores são importantes para ele.]
Deleuze continua, dizendo que sua leitura literária pode ser explicada em função
do que eles discutiram antes, a história do conceito nunca está sozinha: ao
mesmo tempo que persegue sua tarefa, ele nos faz ver coisas, isto é, há uma
interconexão entre perceptos. Sempre que encontramos perceptos em um
romance, há uma comunicação perpétua entre conceitos e perceptos. Há também
problemas estilísticos que são os mesmos em filosofia e literatura. Deleuze sugere
colocar a questão em termos bastante simples: os grandes personagens literários
são grandes pensadores. Ele relê muito Melville, e acha que o Capitão Ahab é um
grande pensador, Bartleby também, à sua própria maneira. Eles o fazem pensar
de uma forma que uma obra literária traça uma trilha de conceitos intermitentes
(en pointillé) da mesma forma que o faz com perceptos. De forma bastante
simples, argumenta ele, não é a tarefa do escritor literário, que não pode fazer
tudo ao mesmo tempo, ele/ela está preso nos problemas de perceptos e de criar
visões (faire voir), causando percepções (faire percevoir), e criando personagens,
uma tarefa assustadora. E um filósofo cria conceitos, mas ocorre que eles se
comunicam muito, uma vez que, sob certos aspectos, o conceito é um
personagem, e o personagem assume dimensões do conceito.
Deleuze continua de seu jeito, concordando que nas assim chamadas literaturas
secundárias... Ele insiste no fato de que a literatura russa, por exemplo, não está
limitada a Dostoieveski e a Tolstoi, mas não se pode chamar [Nikolai] Leskov de
secundário na medida em que há tanta coisa de admirável em Leskov. Assim,
trata-se de grandes gênios. Deleuze diz então que ele sente que tem pouco a
dizer sobre isso, sobre autores secundários, mas sobre o que ele está feliz é em
ter tentado encontrar em qualquer autor desconhecido algo que poderia lhe
mostrar um conceito ou um personagem extraordinário. Mas, sim, diz Deleuze, ele
não se envolveu em nenhuma pesquisa sistemática [nesse domínio].
A última questão na letra L refere-se ao fato de que embora Deleuze leia muitos e
grandes (canônicos) autores, tem-se a impressão de que ele lê muitos autores
contemporâneos. Deleuze diz que compreende o que ela quer dizer, e pode
responder rapidamente: não é que não goste de lê-los, é que a literatura é uma
atividade verdadeiramente especializada na qual se tem de ter uma formação,
algo difícil na produção contemporânea. É uma questão de gosto, exatamente da
forma como as pessoas encontram novos pintores; tem-se que aprender como
[pintar]. Deleuze diz que ele admira muito pessoas que vão às galerias e sentem
que existe alguém que é verdadeiramente um pintor, mas ele não pode fazer isso
e ele explica por que: custou-lhe cinco anos, ele diz, para entender – não Beckett,
que aconteceu imediatamente – mas que tipo de inovação a escrita de Robbe-
Grillet representou. Deleuze afirma ter sido uma das coisas mais estúpidas
quando falou sobre Robbe-Grillet no início. Deleuze não se considera um
descobridor nessa área, enquanto que em filosofia, ele se sente mais confiante
porque ele é sensível a um novo tom e, por outro lado, àquilo que é
completamente nulo ou redundante. No domínio do romance, Deleuze diz que é
bastante sensível, o suficiente para saber o que já foi dito e que não tem interesse
algum. Ele fez, de fato, uma descoberta, do seu próprio jeito, alguém que ele
julgava ser um grande romancista, Armand Farachi. [Em “Introdução: Rizoma”, em
Mil Platôs, Deleuze e Guattari referem-se ao livro de Farachi, La dislocation, com
um exemplo, entre vários outros, de um modelo de escrita nomádica e rizomática].
Assim, a questão que Parnet levanta, diz Deleuze, é bastante razoável, mas ele
argumenta que não se deve crer que, sem experiência, se pode julgar o que está
sendo criado. O que Deleuze prefere e o que lhe traz grande alegria é quando
algo que ele mesmo está criando tem um eco em um jovem pintor ou no trabalho
de um jovem escritor. Dessa forma, Deleuze sente que ele pode ter um tipo de
encontro com o que está acontecendo atualmente, com outro modo de criação.
Deleuze diz que sua insuficiência quanto a julgamentos é compensada por esses
encontros com pessoas que estão em ressonância com o que ele está fazendo, e
vice-versa.
Parnet diz que a pintura e o cinema, por exemplo, são favoráveis a esses
encontros, uma vez que ele vai a galerias e a cinemas, mas que ela tem
dificuldade em imaginá-lo vagando em uma livraria e examinando livros que
saíram nos últimos meses. Deleuze diz que ela está certa, mas que isso está
ligado á idéia de que a literatura não muito forte neste momento, uma idéia que é
uma idéia preconcebida em sua mente, que a literatura está tão corrompida pelo
sistema de distribuição, de prêmios literários, que nem vale mesmo a pena.
L de Literatura
Deleuze diz, sim, embora em determinado momento ele tivesse sido muito mais
um leitor ativo de filosofia uma vez que isso era parte de seu aprendizado, e ele
não tinha tempo para romances. Mas ao longo de sua vida, ele leu, e mais e mais.
Ele mesmo pergunta: ele faz uso disso para a filosofia? Sim, certamente, por
exemplo, ele indica que ele deve muito a Fitzgerald, e a Faulkner também, e
embora em geral não considerado um escritor filosófico. [Deleuze indica aqui que
ele não lembra quais escritores são importantes para ele.]
Deleuze continua, dizendo que sua leitura literária pode ser explicada em função
do que eles discutiram antes, a história do conceito nunca está sozinha: ao
mesmo tempo que persegue sua tarefa, ele nos faz ver coisas, isto é, há uma
interconexão entre perceptos. Sempre que encontramos perceptos em um
romance, há uma comunicação perpétua entre conceitos e perceptos. Há também
problemas estilísticos que são os mesmos em filosofia e literatura. Deleuze sugere
colocar a questão em termos bastante simples: os grandes personagens literários
são grandes pensadores. Ele relê muito Melville, e acha que o Capitão Ahab é um
grande pensador, Bartleby também, à sua própria maneira. Eles o fazem pensar
de uma forma que uma obra literária traça uma trilha de conceitos intermitentes
(en pointillé) da mesma forma que o faz com perceptos. De forma bastante
simples, argumenta ele, não é a tarefa do escritor literário, que não pode fazer
tudo ao mesmo tempo, ele/ela está preso nos problemas de perceptos e de criar
visões (faire voir), causando percepções (faire percevoir), e criando personagens,
uma tarefa assustadora. E um filósofo cria conceitos, mas ocorre que eles se
comunicam muito, uma vez que, sob certos aspectos, o conceito é um
personagem, e o personagem assume dimensões do conceito.
Deleuze continua de seu jeito, concordando que nas assim chamadas literaturas
secundárias... Ele insiste no fato de que a literatura russa, por exemplo, não está
limitada a Dostoieveski e a Tolstoi, mas não se pode chamar [Nikolai] Leskov de
secundário na medida em que há tanta coisa de admirável em Leskov. Assim,
trata-se de grandes gênios. Deleuze diz então que ele sente que tem pouco a
dizer sobre isso, sobre autores secundários, mas sobre o que ele está feliz é em
ter tentado encontrar em qualquer autor desconhecido algo que poderia lhe
mostrar um conceito ou um personagem extraordinário. Mas, sim, diz Deleuze, ele
não se envolveu em nenhuma pesquisa sistemática [nesse domínio].
Parnet persegue essa questão, ao se referir outra vez ao trabalho de Deleuze
sobre Proust como o único trabalho considerável que ele jamais dedicou a um
único autor, embora a literatura seja uma grande referência em sua filosofia.
Assim, ele pergunta sobre o fato de ele nunca ter devotada um livro inteiro à
literatura, um livro de pensamento sobre a literatura. Deleuze diz que ele
simplesmente não teve tempo, mas que ele planeja fazê-lo. Parnet diz que isso o
tem assombrado e ele responde que ele planeja fazê-lo porque ele o quer. Parnet
pergunta se será um livro de crítica, e Deleuze diz que em vez disso, será sobre o
problema do que, para ele, significa escrever em literatura. Ele diz que Parnet está
familiarizada com todo o seu programa de pesquisa, assim ele verá se tem tempo.
A última questão na letra L refere-se ao fato de que embora Deleuze leia muitos e
grandes (canônicos) autores, tem-se a impressão de que ele lê muitos autores
contemporâneos. Deleuze diz que compreende o que ela quer dizer, e pode
responder rapidamente: não é que não goste de lê-los, é que a literatura é uma
atividade verdadeiramente especializada na qual se tem de ter uma formação,
algo difícil na produção contemporânea. É uma questão de gosto, exatamente da
forma como as pessoas encontram novos pintores; tem-se que aprender como
[pintar]. Deleuze diz que ele admira muito pessoas que vão às galerias e sentem
que existe alguém que é verdadeiramente um pintor, mas ele não pode fazer isso
e ele explica por que: custou-lhe cinco anos, ele diz, para entender – não Beckett,
que aconteceu imediatamente – mas que tipo de inovação a escrita de Robbe-
Grillet representou. Deleuze afirma ter sido uma das coisas mais estúpidas
quando falou sobre Robbe-Grillet no início. Deleuze não se considera um
descobridor nessa área, enquanto que em filosofia, ele se sente mais confiante
porque ele é sensível a um novo tom e, por outro lado, àquilo que é
completamente nulo ou redundante. No domínio do romance, Deleuze diz que é
bastante sensível, o suficiente para saber o que já foi dito e que não tem interesse
algum. Ele fez, de fato, uma descoberta, do seu próprio jeito, alguém que ele
julgava ser um grande romancista, Armand Farachi. [Em “Introdução: Rizoma”, em
Mil Platôs, Deleuze e Guattari referem-se ao livro de Farachi, La dislocation, com
um exemplo, entre vários outros, de um modelo de escrita nomádica e rizomática].
Assim, a questão que Parnet levanta, diz Deleuze, é bastante razoável, mas ele
argumenta que não se deve crer que, sem experiência, se pode julgar o que está
sendo criado. O que Deleuze prefere e o que lhe traz grande alegria é quando
algo que ele mesmo está criando tem um eco em um jovem pintor ou no trabalho
de um jovem escritor. Dessa forma, Deleuze sente que ele pode ter um tipo de
encontro com o que está acontecendo atualmente, com outro modo de criação.
Deleuze diz que sua insuficiência quanto a julgamentos é compensada por esses
encontros com pessoas que estão em ressonância com o que ele está fazendo, e
vice-versa.
Parnet diz que a pintura e o cinema, por exemplo, são favoráveis a esses
encontros, uma vez que ele vai a galerias e a cinemas, mas que ela tem
dificuldade em imaginá-lo vagando em uma livraria e examinando livros que
saíram nos últimos meses. Deleuze diz que ela está certa, mas que isso está
ligado á idéia de que a literatura não muito forte neste momento, uma idéia que é
uma idéia preconcebida em sua mente, que a literatura está tão corrompida pelo
sistema de distribuição, de prêmios literários, que nem vale mesmo a pena.
A questão, diz Deleuze, é a de saber se a doença tornou algo mais fácil, não
necessariamente mais bem sucedido, entretanto, especificamente um
empreendimento de pensamento, e Deleuze pensa que um estado de doença
muito enfraquecido favorece isso. Não é o caso de que se está sintonizado com
sua própria vida, mas para ele, parecia que ele estava sintonizado com a vida.
Sintonizar com a vida é diferente de pensar sobre a própria saúde. Ele repete que
ele acha que um estado frágil de saúde favorece esse tipo de sintonização.
Quando ele falava anteriormente sobre autores como Lawrence ou Espinosa, em
alguma medida eles viram algo imenso, tão avassalador que era demais para eles.
Isso realmente significa, diz Deleuze, que não podemos pensar se não estamos já
em um domínio que excede, em alguma medida, a nossa força, que nos torna
frágeis. Ele repete que ele sempre teve um estado frágil de saúde, e isso foi
reforçado quando ele foi diagnosticado como tendo tuberculose, momento no qual
ele adquiriu todos os direitos concedidos a um estado frágil de saúde.
Deleuze afirma que ele acha odioso a forma como os médicos manipulam o
opoder, e que ele tem um grande ódio não por indivíduos, mas pelo poder médico
e pela forma como os médicos o utilizam. Há apenas uma coisa que o faz feliz, diz
ele, por mais que o tenha desagradado. Isso ocorre quando eles utilizam suas
máquinas e o examinam. Ele considera essas coisas como muito desagradáveis
para um paciente uma vez que se trata de exames que realmente parecem não ter
qualquer utilidade a não ser a de fazer os médicos se sentirem melhor sobre
diagnósticos que eles já fizeram. Se eles têm tanto talento, diz Deleuze, então
esses médicos parecem fazer esses exames cruéis apenas se sentirem melhor ao
jogar com esses inadmissíveis exames. Assim, o que fazia Deleuze feliz era cada
vez que ele tinha ser testado por uma dessas máquinas – sua respiração era
demasiadamente inaudível para ser registrada por suas máquinas, ou eles
incapazes de submetê-lo a um exame cardíaco – eles ficavam furiosos com ele,
eles odiavam esse pobre paciente, porque eles podiam aceitar tão facilmente o
fato de que seu diagnóstico podia estar errado, mas não o fato de que suas
máquinas não funcionassem com ele.
Além disso, Deleuze julga-os muito pouco cultivados, ou quando eles tentam ser
cultivados, os resultados são catastróficos. Eles são uma gente muito estranha,
diz Deleuze, mas seu consolo é que se eles ganham um monte de dinheiro, eles
não têm tempo para gastá-lo e se aproveitar disso porque eles têm uma vida muito
dura. Assim, é verdade, repete Deleuze, ele não acha os médicos muito atraentes,
mas os indivíduos podem ser muito bons e no entanto eles tratam as pessoas
como cachorros em suas funções oficiais. Assim, isso realmente revela a luta de
classes porque uma pessoa um pouquinho rica é ao menos um pouco polida,
menos quando fazendo cirurgia. Os cirurgiões são um caso completamente à
parte. Deleuze diz que é necessário algum tipo de reforma dos médicos.
Parnet pergunta se Deleuze toma remédios o tempo todo, e Deleuze diz, sim, ele
gosta de fazê-lo, não o incomoda exceto pelo fato de que eles tem a fatigá-lo.
Parnet está surpresa pelo fato de que Deleuze realmente gosta de tomar
remédios, e Deleuze diz, sim, quando há um monte! Em seu estado atual (em
1988), sua pequena pílula toda manhã é uma verdadeira piada (bouffonnerie)!
Mas ele também acha bastante útil. Deleuze diz que ele sempre foi a favor dos
remédios, mesmo no domínio da psiquiatria. [Deleuze esfrega seu rosto e olhos
com freqüência enquanto responde e escuta].
Parnet diz que com essa fadiga ligada à doença, pensamos em Blanchot
escrevendo sobre a fadiga e a amizade. Ela diz que a fadiga exerce um grande
papel em sua vida, e algumas vezes se tem a impressão que se trata de uma
excusa para evitar um monte de coisas que o chateiam/incomodam, e que a
fadiga tem sempre sido útil. Deleuze diz que o fato de ser afetado dessa forma,
esse pensamento, remete ao tema da potência, isto é, o que significa realizar,
efetivar, uma potência, o que significa fazer o que se pode. Deleuzediz que se
trata de uma noção extremamente complicada, ligado àquilo que constitui nossa
impotência, por exemplo, nossa saúde frágil ou nossa doença. Deleuze sustenta
que trata-se de uma questão de saber que uso fazer dela de forma que, por meio
dela, possamos recuperar uma pequena potência. Assim, Deleuze está seguro de
que a doença poderia ser utilizada para algo, e não meramente em relação à vida
para a qual ela deveria dar algum sentimento.
Parnet pergunta se Deleuze vê a fadiga como uma doença e Deleuze diz que é
uma outra coisa. Para ele, significa: fiz o que pude hoje, isto é, o dia terminou. E
vê a fadiga biologicamente como o dia estando terminado. É possível que pudesse
durar por outras razões, razões sociais, mas a fadiga é a formulação biológica do
dia terminado, de não ser capaz de extrair nada mais de si mesmo. Assim, se
você considera-a dessa forma, diz Deleuze, não se trata de um sentimento
incômodo, mas, antes, agradável, a menos que não se tenha feito nada, então, de
fato, é angustiante. É a esses estados de fadiga, esses estados frágeis,
algodoados que Deleuze sempre foi sensível. Ele gosta desse estado, o fim de
algo, e provavelmente tem um nome em música, uma coda, a fadiga como uma
coda. Parnet diz que antes de discutir a idade avançada, eles podem discuti sua
relação com a comida. Deleuze diz baixinho “ah! a velhice”. Parnet diz que ele
gosta de comidas que parecem lhe trazer força e vitalidade, como tutano e
lagosta. Ela observa que tem uma relação especial com a comida já que ele não
gosta de comer. Deleuze diz que é verdade. Para ele, comer é a coisa mais chata
do mundo. Beber é algo extraordinariamente interessane, mas comer o chateia
mortalmente. Ele detesta beber sozinho, mas com com alguém que ele gosta
muda tudo, mas isso não transforma a comida, apenas ajuda-o a suportar comer,
tornando-o menos chato mesmo se acontece que ele não tenha nada para dizer.
Todas as pessoas dizem isso a respeito de comer sozinho, sustenta Deleuze, e
isso prova como comer é chato já que a maioria das pessoas admite que comer
sozinho é uma tarefa abominável.
Tendo dito isso, continua Deleuze, há certamente coisas das quais ele gosta
muitíssimo [mes fêtes], que são muito especial, apesar do desprazer geral que ele
tem. Ele diz que pode agüentar quando outros comem queijo – Parnet diz que
Deleuze não gosta de queijo – e para alguém que gosta de queijo, ele diz que é
uma das poucas pessoas tolerantes em relação a isso, que não se levanta e sai
ou expulsa a pessoa que está comendo queijo. Para Deleuze, o gosto por queijo é
um pouco como uma espécie de canibalismo [neste ponto Parnet dá uma risada
estridente], um horror total.
Continuando, Deleuze imagina que alguém pode lhe perguntar qual poderia sua
comida favorita, um empreendimento extremamente maluco, diz ele, mas ele
sempre volta a três coisas que acha sublimes, mas que são, muito
apropriadamente, repugnantes: língua, cérebro e tutano. Trata-se de alimentos
bastante nutritivos. Há uns poucos restaurantes em Paris, diz Deleuze, que
servem tutano e depois disso ele não pode comer nada mais. Eles preparam esse
pequenos quadrados de tutano, realmente extramemamente fascinantes, diz ele,
cérebro, língua...
Depois, Deleuze tenta situar esse gosto de forma diferente, em relação com
coisas que eles já discutiram: essas coisas constituem uma espécie de trindade já
que se pode dizer – Deleuze admite que isso é um tanto demasiado anedótico –
que o cérebro é Deus, o pai, o tutatno, o filho já que são vertebrados que são um
pouco lagostas. Assim Deus é o cérebro, os vertebrados o filho, Jesus, e a língua
o Espírito Santo, que é a força da língua. Ou, e aqui Deleuze hesita um
pouquinho, é o cérebro que é o conceito, o tutano é o afeto, e a língua, o
precepto... Deleuze pede a Parnet que não lhe pergunte por quê, é que ele
simplesmente vê essas trindades como muito... [ele não completa a sentença].
Assim, ele conclui, isso compõe uma refeição fantástica. Ele pergunta se ele
alguma vez comeu os três juntos. Talvez em um aniversário com amigos [Parnet
dá uma risada aqui], eles podem fazer para ele uma real refeição, não?, diz ele,
uma festa. [Ele ri, muito satisfeito]. Parnet diz que além de comer essas três
coisas, ela quer discutir a velhice. Deleuze diz, sim, comer todas as três coisas
seria um pouco demais, e Parnet diz, rindo, sim, repugnante! Deleuze retoma a
questão da velhice, outra vez dizendo baixinho: “ah! a velhice!”.
Deleuze diz que há alguém que falou sobre a velhice muito bem, um romance de
Raymond Devos que, para Deleuze, é a melhor declaração sobre a velhice.
Deleuze a vê como uma idade esplêndida. Obviamente, há problemas, por
exemplo, a gente é dominado por uma certa lentidão. Mas o pior é quando alguém
diz “não, você não é tão velho”, porque ao dizer isso, ele não compreende qual é a
queixa. Deleuze diz, eu me queixo, eu digo, oh, estou velho, isto é, invoco as
forças da velhice, mas então alguém tenta me animar, dizendo “não, você não
está tão velho”. Assim, diz Deleuze, eu lhe dou uma bengalada [alors je vais lui
foutre un coup de canne] [Parnet dá uma risada], porque ele ............. Deleuze diz
que seria melhor dizer: “sim, na verdade, você está certo!”, mas trata-se de pura
alegria, diz Deleuze, alegria em toda parte exceto nesse tantinho de lentidão.
E trata-se de uma idade, continua ele, na qual se trata apenas de uma questão de
uma única coisa, de ser. Não mais de ser isso ou aquilo, mas ser velho é apenas
ser, ponto, nada mais. Ele é, muito simplesmente. Quem tem o direito de
simplesmente ser? Pois uma pessoa velha pode dizer que tem planos, mas ele
espera terminar dois livros nos quais ele está realmente empenhado, um sobre
literatura, outro sobre filosofia, mas isso não muda o fato de que está livre de
todos os planos. Quando se é vleho, diz Deleuze, não se é mais
suscetível/sensível, não se tem mais qualquer decepção fundamental, tende-se a
ser muito mais desinteressado, e gosta-se realmente das pessoas por elas
mesmas. Para Deleuze, parece que a velhice afia sua percepção de coisas que
ele nunca tinha visto antes, elegâncias em relação às quais ele nunca tinha sido
sensível. Ele vê melhor, ele sustenta, porque ele olha para uma pessoa por si
mesma, como se fosse uma questão de transportar uma imagem, um percepto da
pessoa.
Deleuze admite que há dias que passam com sua quota de fadiga, mas para ele, a
fadiga não é uma doença, mas algo mais, não a morte, apenas o sinal do final de
um dia. Obviamente, há angústias na velhice, diz ele, mas a gente tem que afastá-
las, e é fácil afastá-las, um pouco como se faz com lobisomens ou vampiros, não
se pode estar sozinho quando se começa a envelhecer porque se está muito lento
para sobreviver. Assim, temos que evitar algumas coisas, mas o que é
maravilhoso, diz ele, é que as pessoas liberam a gente, a sociedade deixa você
em paz. Ser liberado pela sociedade, diz ele, é tão maravilhoso, não que a
sociedade realmente tivesse Deleuze em suas amarras, mas alguém que não
tenha a idade de Deleuze, não aposentado, não pode ter nenhuma idéia de
quanto alegria se pode ter em ser liberado pela sociedade. Obviamente, ele
continua, quando ele ouve os velhos se queixarem, trata-se de velhos que não
querem ser velhos ou que não querem ser tão velhos quanto são. Ele não podem
suportar estar aposentados, e Deleuze não sabe por que, já que eles poderiam
descobrir algo, e ele não acredita que as pessoas aposentadas não possam
descobrir algo para fazer.
Deleuze diz que é preciso que a gente se dê uma sacudida, de forma que todos
parasitas que a gente teve nas costas toda a vida caiam no chão, e o que resta ao
nosso redor? Nada além das pessoas que a gente ama e que nos apóiam e que
nos amam, se eles sentem a necessidade disso. O resto deixa você em paz. E o
que é realmente duro é quando algo pega a gente outra vez. Deleuze diz que não
pode suportar a sociedade, e ele só sabe disso agora por causa de sua vida de
aposentado. Ele se vê como completamente desconhecido da sociedade. O que é
catastrófico, ele declara, é quando alguém que pensa que ele ainda pertence à
sociedade pede que ele dê uma entrevista. Deleuze faz uma pausa para dizer que
a filmagem do Abecedário é diferente já que o que eles estão fazendo pertence
inteiramente ao seu sonho de velhice. Mas quando alguém pede uma entrevista,
ele gostaria de perguntar se a pessoa está bem da cabeça. Essa pessoa não está
sabendo que Deleuze é um velho e que a sociedade o liberou? [Deleuze dá uma
risada]. Mas Deleuze pensa que as pessoas confudem duas coisas: não se deve
falar sobre os velhos, mas sobre a pobreza e o sofrimente, pois quando se é
velho, pobre e se está sofrendo, não existe uma palavra para descrever isso. Uma
pessoa puramente velha, que não é nada mais que velha, significa que ela
simplesmente é. Parnet diz que o fato de Deleuze estar doente, cansado, e velho,
[Deleuze dá uma risada], é às vezes difícil para as pessoas ao seu redor, menos
velhas que ele, seus filhos, sua esposa. Deleuze responde que não é um grande
problema para seus filhos. Poderia haver se eles fossem mais jovens, mas agora
eles estão grandes o suficiente para ter sua própria vida, e Deleuze não é um
fardo para eles, não é um problema exceto talvez em termos de afeição, quando
eles dizem, oh, ele parece realmente muito cansado. Quanto à Fanny, sua
esposa, Deleuze não pensa que seja um problema, embora possa ser, ele não
sabe. É muito difícl, ele diz, perguntar a alguém que se ama o que ele/ela poderia
fazer em uma outra vida. Deleuze imagina que Fanny gostaria de ter viajado mais,
mas ele pergunta o que ela teria descoberto de tão diferente se ela tivesse
viajado. Ela (e Parnet, diz ele) tem uma formação literária forte, assim ela foi
capaz de encontrar coisas esplêndidas por meio da leitura de romances e isso, diz
Deleuze, é como viajar. Certamente há problemas, mas eles estão para além de
sua compreensão, ele admite.
Parnet diz que, para terminar, ela quer perguntar sobre seus projetos, como o
projeto sobre a literatura ou O que é Filosofia? Quando ele empreende um projeto
como esses, o que ele encontra de prazeroso como um velho que se envolve
neles? Ele lembra-o que anteriormente ele disse que talvez ele não os terminasse,
mas que existe algo de divertido neles. Deleuze diz que é algo realmente
maravilhoso, toda uma evolução, e quando se é velho tem-se uma certa idéia do
que se espera fazer que se torna cada vez mais puro, cada vez mais purificado.
Deleuze diz que ele pensa nas famosas linhas japonesas de desenho, linhas que
são tão puras e então não há nada mais, nada mais senão pequenas linhas. É
assim que ele concebe o projeto de um velho, algo que seria tão puro, tão nada, e
ao mesmo tempo, tudo, maravilhoso. Com isso ele quer dizer chegar a uma
sobriedade, algo que só pode acontecer tarde na vida.
Ele menciona seu O que é a Filosofia?, sua pesquisa sobre isso: em primeiro
lugar, é bastante agradável, em sua idade, sentir que ele sabe a resposta, e que
ele é o único a saber, como se ele entrasse em um ônibus, e ninguém mais
soubesse. [Parnet dá uma risada]. Tudo isso, para Deleuze, é muito prazeroso.
Talvez ele pudesse ter criado um livro sobre O que é a Filosofia? trinta anos atrás,
um livro que seria um livro muito, muito, diferente da forma pela qual ele o
concebe agora. Há uma espécie de sobriedade tal que... – quer ele seja bem
sucedido ou não – ele sabe que é agora que ele pode conceber isso, de qualquer
modo, que não se assemelha... ok. [Deleuze não termina a frase, o quadro se
congela e os créditos entram no fim da fita].
Part III - N a Z
Parnet apresenta este título como ligando a neurologia e o cérebro. Deleuze diz
que a neurologia é muito difícil para ele, mas que ela sempre o fascinou. Para
responder por quê, ele considera a questão do acontece na cabeça de alguém
quando tem uma idéia. Quando não há nenhuma idéia, ele diz, é como uma
máquina de pin-ball. Como isso se comunica dentro da cabeça? Elas não
funcionam de acordo com trajetos pré-formados e com associações prontas, de
forma que alguma coisa aconteça – se soubéssemos do que se trata! Isso
interessa muito Deleuze, uma vez que ele sente que se compreendêssemos isso,
poderíamos compreender tudo, e as soluções devem ser extremamente variadas.
Ele clarifica isso: duas extremidades no cérebro podem muito bem estabelecer
contato, isto é, por meio de processos elétricos de sinapse. E, então, há outros
casos que são talvez muito mais complexos, por meio da descontinuidade na qual
há um fosse que deve ser preenchido. Deleuze diz que o cérebro é cheio de
fissuras (fentes), que o preenchimento ocorre apenas em um regime
probabilístico. Ele acredita que existem relações de probabilidade entre dois
vínculos, e que essas comunicações dentro de um cérebro são fundamentalmente
incertas, estando fundamentadas em leis de probabilidade. Deleuze vê isso como
uma questão do que nos faz pensar, e ele admite que alguém pode objetar que
ele não está inventado nada, que se trata da velha questão de associação de
idéias. Pode-se quase perguntar-se, ele diz, por exemplo, quando um conceito é
dado ou uma obra de arte é olhada, pode quase tentar esboçar um mapa do
cérebro, suas correspondências, quais são as comunicações contínuas e quais
seriam as comunicações descontínuas de um ponto ao outro.
Algo impressionou Deleuze, ele admite, uma história que os físicos usam, a
transformação do padeiro: pegue um pedaço de massa para sová-la, estique até
formar um retângulo, dobre sobre ela mesma, estique outra vez, etc., você faz
uma série de transformações e após “x” transformações, dois pontos
completamente contíguos acabam por necessariamente se transformar no oposto,
muito distantes entre si. E existem pontos distantes que, como resultado de “x”
transformações, acabam por ficar bastante próximos. Assim, Deleuze se pergunta
se, quando buscamos por algo na nossa cabeça, não pode haver esse tipo de
combinações (brassages), por exemplo, dois pontos que ele não pode ver como
associar, e como resultado de numerosas transformações, ele acaba por vê-las
lado a lado. Ele sugere que entre um conceito e uma obra de arte, isto é, entre um
produto mental e um mecanismo cerebral, existem semelhanças muito, muito
estimulantes e que, para ele, as questões, como se pensa?, e, o que significa
pensar?, sugerem que com o pensamento e o cérebro, as questões estão
entrelaçadas. Deleuze diz que ele acredita mais no futuro da biologia molecular do
cérebro que no futuro da ciência da informação ou de qualquer teoria da
comunicação.
Parnet faz uma pergunta metodológica: não é nenhum segredo que Deleuze mais
um autodidata quando ele lê uma revista de neurologia ou outra revista científica.
Além disso, ele não é muito bom e Matemática, em contraste com alguns filósofos
que ele estudou, como Bergson (que era formado em Matemática), Espinosa (forte
em Matemática), Leibniz (não é preciso dizer que era forte em Matemática).
Assim, pergunta ela, como faz Deleuze para ler sobre esses temas? Quando ele
tem uma idéia e precisa de algo que lhe interessa, mas não compreende nada,
como ele se vira?
Deleuze diz que existe algo que lhe consola muito, especificamente que ele está
firmemente persuadido da possibilidade de leituras variadas de uma mesma coisa.
Já em Filosofia, ele acreditava fortemente que não é preciso ser um filósofo para
ler filosofia. Não se trata apenas do fato de que a Filosofia está aberta a duas
leituras: a filosofia precisa de duas leituras ao mesmo tempo. Uma leitura não-
filosófica da Filosofia é absolutamente necessária, sem a qual não haveria
qualquer beleza na Filosofia. Isto é, com não-especialistas lendo Filosofia, essa
leitura não-filosófica da Filosofia não carece de nada e é inteiramente adequada.
Deleuze qualifica essa afirmação, dizendo que duas leituras podem não funcionar
para toda filosofia. Ele tem dificuldade em ver uma leitura não-filosófica de Kant.
Mas em Espinosa, ele diz que não é absolutamente nada impossível que um
agricultor ou um vendedor de loja possa ler Espinosa e, no caso de Nietzsche,
mais ainda, com todos os filósofos que Deleuze admira acontece isso. Assim,
continua ele, não existe qualquer necessidade de compreender, uma vez que a
compreensão significa um certo nível de leitura. Se alguém fosse objetar que para
apreciar uma pintura de Gauguin seria necessário ter algum conhecimento
especializado sobre ela, Deleuze responde que, naturalmente, algum
conhecimento especializado é necessário, mas há também emoções
extraordinárias, autênticas, extraordinariamente puras, extraordinariamente
violentas, em uma total ignorância da pintura. Para ele, é completamente óbvio
que alguém pode receber uma pintura como um raio e não saber nada sobre a
pintura. De forma similar, alguém pode ser inteiramente tomado de emoção por
uma obra musical sem saber uma palavra. Deleuze diz que ele, por exemplo,
emociona-se muito com as óperas [de Alban Berg] Lulu e Wozzeck, e que o
concerto To the Memory of an Angel [também de Berg] o emocionou acima de
qualquer outra coisa.
Assim, ele sabe que é melhor ter uma percepção competente, mas ele ainda
assim sustenta que tudo o que conta no mundo, no domínio da mente, está aberto
a uma dupla leitura, desde que não seja algo feito aleatoriamente como alguém
que é autodidata faria. Antes, é algo que empreendemos começando de nossos
problemas tomados de algum outro lugar. Deleuze quer dizer que é com base no
fato de ele ser um filósofo que ele tem uma percepção não-musical da música, o
que faz com que a música seja extraordinariamente tocante para ele. De forma
similar, é com base no fato de ser um músico, um pintor, isso ou aquilo, que se
pode empreender uma leitura não-filosófica da Filosofia. Se essa segunda leitura
(que não é segunda) não ocorresse, se não houvesse essas duas e simultâneas
leituras, seria como ambas as asas num pássaro, a necessidade de duas leituras
juntas. Além disso, Deleuze argumenta que mesmo um filósofo deve aprender a
ler uma grande filósofo não-filosoficamente. O típico exemplo, para ele, é ainda,
outra vez, Espinosa: ler Espinosa em uma brochura, em qualquer momento e
lugar que se possa, para Deleuze, cria tanta emoção quanto uma grande obra
musical. E, em alguma medida, ele diz, a questão não é compreender, uma vez
que nos cursos que Deleuze costumava dar, estava tão claro que algumas vezes
os estudantes compreendiam, algumas vez não, e todos somos assim, algumas
vezes compreendemos, outras não.
Deleuze volta à questão de Parnet sobre a ciência, que ele vê da mesma forma:
em alguma medida, estamos sempre no extremo (pointe) de nossa ignorância,
que é exatamente onde devemos nos instalar, no extremo de nosso conhecimento
ou de nossa ignorância, o que é a mesma coisa, a fim de ter alguma coisa a dizer.
Se ele esperasse para saber o que ele ia escrever, diz Deleuze, literalmente, se
ele esperasse para saber o que ele ia falar, então ele sempre teria que esperar
porque o que ele iria dizer não teria nenhum interesse. Se ele não corre um risco,
se ele se instala e falar com um ar acadêmico sobre algo que ele não sabe, então
isso é um outro exemplo sem interesse. Mas se ele fala desse limite mesmo, entre
saber e não-saber, é ali que devemos nos instalar para ter alguma coisa para
dizer.
Na ciência, diz Deleuze, ele sabe apenas o suficiente para avaliar encontros; se
ele soubesse mais, ele estaria fazendo ciência e não filosofia. Assim, em um
grande medida, ele fala bem sobre algo que ele não sabe, mas ele fala do que ele
não sabe como uma função do que ele sabe. Ele argumenta que tudo isso é uma
questão de tato, não existe nenhum sentido em brincar sobre isso, nenhum
sentido em adotar um ar de quem sabe quando não se sabe, mas ainda assim,
Deleuze diz que ele teve encontros com pintores que foram os mais belos dias de
sua vida. Não encontros físicos, mas naquilo que Deleuze escreve – o maior deles
sendo [Simon] Hantaï [pintor húngaro; obrigado a Tim Adams pela grafia e pelas
seguintes referências: A dobra, p. 33, e O que é filosofia, p. 195, CS], com quem
algo se passou entre eles. Deleuze diz o que foi seu encontro com Carmelo Bene
[em Superposições]. Deleuze nunca fez teatro, não compreende nada sobre
teatro, mas ele tem que admitir que algo importante aconteceu aí também. Há
cientistas com os quais essas coisas também funcionam. Deleuze diz que ele
conhece alguns matemáticos que tiveram a gentileza de ler o que Deleuze tem
escrito, e disseram que funciona bastante bem.
Deleuze admite que seus comentários aqui estão indo mal uma vez que ele sente
que ele está tomando os ares de uma auto-satisfação completamente desprezível.
Para ele, entretanto, a questão não é se ele sabe ou não bastante coisa de
ciência, nem se ele é capaz de aprender alguma coisa sobre ciência, a coisa
importante, ele admite, é não dizer besteiras, e estabelecer ecos, fenômenos de
ecos entre um conceito, um percepto e uma função (uma vez que, para Deleuze, a
ciência não funciona por conceitos, mas por funções). Dessa perspectiva, Deleuze
precisava dos espaços riemannianos, ele sabia que eles existiam, não sabia
exatamente o que eles eram, mas isso era o que bastava.
Parnet começa admitindo que este título é uma pequena brincadeira, já que,
exceto por causa de Wozzeck e Lulu, de Berg, certamente pode-se dizer que a
ópera não é uma das atividades ou um dos interesses de Deleuze. Em
comparação com Foucault ou com François Châtelet, que gostavam de ópera
italiana, Deleuze nunca escutou realmente ópera. O que mais lhe interessava era
a canção popular, particularmente Edith Piaf, pela qual ele tem uma grande
paixão. Assim, ela pergunta se ele pode falar um pouco sobre isso.
Deleuze responde que ele está sendo um pouco severa ao dizer isso. Em primeiro
lugar, ele escutava bastante música, só que isso faz muito tempo; desde então,
ele parou porque ele concluiu que se tratava de uma ....., tomando muito tempo, e
uma vez que ele tem muitas coisas a fazer – não tarefas sociais, mas seu desejo
de escrever coisas – ele simplesmente não tem tempo para ouvir música, ou para
ouvi-la o suficiente.
Parnet observa que Châtelet trabalhava escutando ópera, e Deleuze diz que,
primeiro, ele não poderia fazer isso, e ele não está certo de que Châtelet o fazia
enquanto trabalhava e sim, obviamente, quando ele recebia pessoas em sua casa.
A ópera algumas vezes se sobrepunha ao que as pessoas estavam dizendo
quando ele estava cheio delas, mas por Deleuze não é assim que funciona. Mas,
ele diz que preferiria distorcer a questão a seu favor, transformando-a em: o que é
que cria uma comunidade entre uma canção popular e uma obra de arte musical?
Esse é um assunto que ele acha fascinante. O caso de Edith Piaf, por exemplo:
Deleuze considera-a uma grande chanteuse, com uma voz extraordinária; além
disso, ele tem esse jeito de cantar fora do tom e, então, constante perseguindo a
nota falsa e corrigindo-a, essa espécie de sistema em desiquilíbrio que
constantemente está pegando o errado e corrigindo-o. Para Deleuze, isso parece
acontecer em qualquer estilo. Isso é algo que Deleuze gosta muito porque trata-se
da mesma questão, no nível da canção popular, que ele faz sobre tudo: ele se
pergunta, o que isso me traz de novo? Especialmente nas produções, elas trazem
algo de novo. Se for feito 10, 100, 1000 vezes, talvez até mesmo muito bem feito,
Deleuze compreende então o que Robbe-Grillet disse: Balzac era obviamente um
grande escritor, mas que interesse há em criar romances hoje como Balzac os
criava? Além disso, essa prática macula os romances de Balzac, e assim ocorre
com tudo.
O que Deleuze acha particularmente comovente em Piaf é que ela introduziu algo
inovativo em relação à geração precedente, Frehel e Adabia, mesmo em sua auto-
apresentação, e em sua voz. Em cantores mais modernos, temos que pensar que
Charles Trenet. Bastante literalmente, Deleuze diz, nunca ouvimos ninguém como
ele. Deleuze insiste nesse ponto: para a filosofia, para a música, para a pintura,
para a arte, seja a canção popular ou o resto, até mesmo o esporte, a questão é
exatamente a mesma: o que há ai de novo? Isso não deve ser interpretado no
sentido de moda, mas exatamente no sentido oposto: o que é inovativo é algo que
não é da moda, talvez se torne da moda, mas não é da moda uma vez que não é
esperado pelas pessoas. Quando Trenet estava cantando bem, as pessoas diziam
que ele estava louco; as pessoas não dizem mais isso, mas pode-se dizer
eternamente que ele estava louco; e ele assim permaneceu. Piaf parecia
grandiosa a todos nós.
Deleuze diz que hoje ele não está ao par da música, mas quando ele liga a tevê –
agora que ele está aposentado ele tem o direito de ligar a tevê – ele nota que
quanto mais canais há mais eles se parecem, e mais nulos eles se tornam, uma
nulidade radical. O regime de competição, competindo entre si, produz o mesmo,
a nulidade eterna, e o esforço para saber o que faz o ouvinte ver este canal em
vez daquele, é amedrontador. O que ele ouve aí dificilmente pode ser chamado de
canção, já que não há nem mesmo a voz, ninguém tem a mínima voz.
Mas, então, diz Deleuze, não vamos nos queixar. O que todos querem, sustenta
ele, é essa espécie de domínio que seria tratada duplamente pela canção popular
e pela música. Deleuze volta-se para algo que ele e Félix Guattari desenvolveram,
algo que ele considera um conceito filosófico muito importante, o ritornello: trata-se
do ponto em comum entre a canção popular e a música. Para Deleuze, o ritornello
é o ponto comum. Deleuze sugere que se defina o ritornello como uma pequena
canção, “tra-la-la-la”. “Quando digo “tra-la-la”?, pergunta Deleuze. Ele insiste que
ele está fazendo filosofia ao perguntar quando ele canta para si mesmo. Em três
ocasiões: ele canta essa toada quando ele está se movendo em seu território,
secando seus móveis, o rádio tocando ao fundo. Assim, ele canta quando ele está
em casa. Depois, ele canta para si próprio quando não está em casa, ao cair da
noite, na hora da angústia, quando ele está indo pra casa, e precisa encorajar-se,
cantando “tra-la-la”. Ele está se dirigindo para casa. E ele canta para si mesmo
quando ele diz “adeus, estou saindo, e levarei você comigo em meu coração”, é
uma canção popular, e eu canto para mim mesmo quando estou saindo de casa
para ir para algum outro lugar. Em outras palavras, continua Deleuze, o ritornello
está absolutamente ligado – o que leva a discussão de volta ao “A de Animal” – ao
problema do território e de sair ou entrar no território, isto é, o problema da
desterritorialização. Eu volto para meu território ou tento voltar, diz Deleuze, ou eu
desterritorializo a mim mesmo, isto é, eu saio, eu deixo meu território.
Qual é a relação com a música?, pergunta ele, e insiste que temos que avançar ao
criar um conceito. É por isso que Deleuze invoca a imagem do cérebro. Tomando
seu próprio cérebro neste momento como exemplo, ele repentinamente diz a si
próprio: “o lied. O que é o lied?”. Tem sido sempre a voz, como uma canção
elevando seu canto como uma função de sua posição em relação ao território.
Meu território, o território que eu não tenho mais, o território ao qual estou
tentando chegar outra vez, é isso que o lied é. Seja Schumann ou Schubert, é isso
que ele fundamentalmente é. É isso que Deleuze considera ser o afeto. Quando
ele estava dizendo anteriormente que a música é a história do devir e as forças de
devires, era algo desse tipo que ele queria dizer, grande ou medíocre.
Deleuze pergunta: “o que verdadeiramente a grande música?”. Para Deleuze, isso
aparece com uma operação artística de música. Elas começam a partir dos
ritornellos, e Deleuze inclui mesmo os músicos mais abstratos. Ele acredita que
cada músico tem seus tipos de ritornellos, falando de pequenas toadas, de
pequenos ritornellos. Ele menciona Vinteuil e Proust [em A busca do tempo
perdido], três notas, depois duas, um pequeno ritornello, que passa a partir de
Vinteuil, depois passa a partir do septeto. Para Deleuze, é o ritornello que se deve
encontrar na música e mesmo sob a música, algo prodigioso que um grande
músico cria: não ritornellos que ele ou ela coloca um depois do outro, mas
ritornellos que se dissolvem em um ritornello ainda mais profundo. Trata-se de
todos os ritornellos de territórios, de uma território particular e um outro que se
tornará organizado no centro de um imenso ritornello, um ritornello cósmico, na
verdade! Tudo que Stockhausen diz sobre a música e o cosmos, toda essa forma
de voltar a temas que eram comuns na Idade Média e na Renascença – Deleuze
diz que ele é completamente a favor desse tipo de idéia que a música teria uma
relação com o cosmos.
Ele volta a um músico que ele admira e que o tem afetado muito, Mahler, sua
Canção da terra – para Deleuze, não se poderia dizer de forma melhor. Isso é
perpetuamente como elementos em gênese, na qual há perpetuamente pequenos
ritornellos algumas vezes baseados em dois sininhos de vaca. Deleuze acha que
é extraordinariamente comoventem nas obras de Mahler a forma pela todos os
pequenos ritornellos, que são já obras músicas de gênio – ritornellos de taverna,
ritornellos de pastores, etc. – a forma pela qual eles realizam uma composição em
uma espécie de grande ritornello que se tornará a canção da terra. Deleuze
sugere ainda outro exemplo em Bartok, um grande gênio. Deleuze admira a forma
como ele conecta e reconecta ritornellos locais, ritornellos de minorias nacionais,
etc., e os reúne em uma obra que ainda não foi plenamente examinada.
Parnet objeta que ela não pode explicar exatamente por que, mas ela tem a
impressão, a partir da explicação de Deleuze, plena de erudição musical, que ele
busca o visual por meio da música, por meio do ritornello. Ela o vê implicando o
visual. Ela diz que compreende a extensão na qual o audível é ligado às forças
cósmicas, tal como o visual, mas ela observa que Deleuze não freqüenta
concertos, algo o incomoda ali, ela não ouve música, e tem como hábito ir a
exposições de arte ao menos uma vez por semana.
Parnet, então, observa que há exceção de [Alban] Berg, para Deleuze... E ele
engata a partir daí: sim, e para explicar sua admiração, ele diz que isso está ligado
à questão de por que alguém é devotado a alguma coisa. Deleuze admite que ele
não sabe por que, mas ele descobriu ao mesmo tempo aquelas peças musicais
para orquestra... [como ele havia feito às vezes durante a entrevista, Deleuze aqui
mostra uma dificuldade em respirar, para e diz:] Você percebe o que é ser velho
[faz movimentos com sua garganta], você não pode encontrar nomes... as peças
orquestrais desse mestre [Parnet fornece-lhe o nome:] Schoenberg. Há não muito
tempo, Deleuze relembra ter tocado essas peças orquestrais quinze vezes
seguidas, vindo a reconhecer alguns momentos completamente avassaladores.
Ao mesmo tempo, Deleuze encontrou Berg, alguém que ele podia ouvir o dia toda.
Mas Deleuze diz que isso é também uma questão de uma relação com a terra.
Mahler, diz Deleuze, era alguém que ele veio a conhecer muito mais tarde, mas
trata-se de música e terra. Deleuze diz que no caso de músicos muito velhos, há,
plenamente, uma relação entre a música e a terra, mas a extensão desse tipo de
relação nas obras de Berg e de Mahler, Deleuze achou isso extremamente
avassalador. Para ele, isso significa tornar sonoras as forças da terra, por
exemplo, no Wozzeck [de Berg], que Deleuze considera um grande texto já que se
trata da música da terra.
Parnet observa que há uma porção de gritos nessa obra e que Deleuze gosta
muito de gritar. Deleuze concorda: para ele, há uma relação entre o canto e os
gritos, de fato, que essa escola [de música] foi capaz de reintroduzi-la como um
problema. Os dois gritos, Deleuze diz, nunca o cansam, o grito horizontal que
flutua ao longo da terra em Wozzeck, e o grito completamente ertical da condessa
em Lulu [outra obra de Berg] – eles são como duas densas culminâncias de gritos.
Tudo isso interessa Deleuze também porque, em filosofia, existem canções e
gritos, verdadeiras canções na filosofia, os conceitos são verdadeiras canções e
verdadeiros gritos em filosofia. De repente, Aristóteles diz: você tem que parar! Ou
um outro diz, não, nunca vou parar! Espinoza: o que pode um corpo? Nós nem
sequer sabemos o que um corpo pode! Assim, a relação grito-canção ou conceito-
afeto é praticamente a mesma, é algo que Deleuze aceita completamente e que o
afeta imensamente.
INÍCIOSPAÇOP de ProfessorESPAALFABETO
[Outro dia; Deleuze está com uma camisa de colarinho aberto; outros óculos]
Parnet lembra a Deleuze que aos 64 anos de idade, ele passou quase 40 como
professor, primeiro em escolas secundárias francesas (lycées), depois na
universidade. Em 1988, Deleuze não queria mais dar aulas, assim ela,
primeiramente, pergunta se ele senta falta delas, já que ele disse que dava suas
aulas com paixão, assim ela pergunta se ele sente falta de não estar mais dando
aulas. Deleuze diz, não, de forma alguma. Ele concorda que as aulas foram uma
parte importante de sua vida, mas quando ele se aposentou ele ficou bastante feliz
já que ele estava menos inclinado a dar aulas. Essa questão, para ele, é bastante
simples: as aulas têm equivalentes em outros domínios, mas lhe exigiam um
tempop enorme de preparação. De novo, como tantas outras atividades, para 5 ou
10 minutos, no máximo, de inspiração, é preciso muita preparação. Deleuze diz
que sempre gostou muito de fazer isso, preparar bastante para chegar a esses
momentos de inspiração, mas quanto mais o tempo avançava mais ele tinha que
preparar apenas para ter sua inspiração progressivamente reduzida. Assim já era
tempo de se aposentar, e isso não o fez, de forma alguma, feliz, já que as aulas
era algo que ele gostava imensamente, mas então se tornara algo que ele
necessitava menos. Agora, ele tem sua escrita que coloca outros tipos de
problemas, mas ele gostava imensamente de ensinar. Parnet pergunta-lhe o que
significa preparar bastante, quanto tempo ele levava preparando. Deleuze diz que
ensaiar (des répétitions) para uma aula é como qualquer outra coisa. Ele compara
isso com o teatro ou do canto, há ensaios, e se não ensaiamos o suficiente não há
qualquer inspiração. Em uma aula, significa ter momentos de inspiração, sem os
quais a aula nada significa. Parnet diz que isso não pode significar que ele
ensaiasse na própria sala de aula, e Deleuze diz, obviamente não, cada atividade
tem seus modos de inspiração. Ele a descreve como enfiá-la na cabeça. Enfiá-la
na cabeça e achar que aquilo que estamos dizendo é interessante. É óbvio, diz
Deleuze, que se o orador nem sequer acha que o que ele está dizendo tem
interesse... e isso não é evidente, ele insiste, achar que aquilo que estamos
dizendo é interessante, apaixonante. Deleuze diz que não se trata de uma forma
de vaidade, de nos considerarmos apaixonantes e interessantes, é o assunto do
qual estamos tratando que temos que achar apaixonante. E para fazer isso,
Deleuze admite, às vezes temos verdadeiramente que nos aguilhoar. A questão,
diz ele, não é a de saber se é interessante, mas de nos estimular ao ponto de
sermos capazes de falar sobre algo com entusiasmo: é isso que é ensaiar.
Assim, Deleuze diz que ele precisava menos disso, especialmente desde que as
aulas eram algo muito especial, aquilo que ele chama de cubo, um espaço-tempo
particular no qual muitas coisas acontecem. Deleuze dia que ele gosta muito
menos de dar conferências, nunca gostou de confer~encias já que elas tendem a
ser um espaço-tempo demasiado pequeno, enquanto uma aula é algo que se
estende uma semana à outra. Trata-se de um espaço e de uma temporalidade
muito, muito especial, algo que tem constitui uma seqü~encia. Ele esclarece que
não é que se pode refazer ou recuperar quando algo não vai bem, mas há um
desenvolvimento interno em uma aula. Além disso, as pessoas mudam de uma
semana para a outra, e a audiência de uma aula, diz Deleuze, é muito estimulante.
Parnet continua, depois de Amiens e Orleans, Deleuze foi para Paris, para o Liceu
Louis-le-Grand, no curso preparatório [Deleuze diz, sim, sim, sim, enquanto Parnet
revisa sua carreira], assim ela pergunta se ele pode se lembrar de algum aluno
que tenha sido notável ou nem tanto. Deleuze repete essa pergunta, refletindo,
dizendo que ele não pode lembrar, talvez alguns tenham se tornado professores,
mas nenhum que ele conheça se tornou ministro do governo. Ele dá uma risada
ao lembrar de alguém que se tornou delegado de polícia, mas diz que realmente
não havia ninguém de especial, todos seguiram seu próprio caminho.
Parnet continua, referindo-se agora aos anos da Sorbonne, dos quais se têm a
impressão, diz elea, que correspondem aos tempos de sua história da filosofia.
Depois, ele foi para Vincennes que foi uma experiência totalmente crucial e
determinante depois da Sorbonne (Parnet indica que ela está pulado Lyon que
veio depois da Sorbonne). Ela pergunta se ficou feliz em se tornar um professor
universitário depois de ter dado aula no liceu. Deleuze diz que “feliz” não é
realmente uma palavra apropriada nesse caso, tratava-se simplesmente de uma
carreira normal, e se ele tivesse que voltar ao liceu, não teria sido dramático,
apenas anormal e um fracasso, assim do jeito que as coisas aconteceram era
normal, e ele não tem nada a dizer sobre isso. Parnet pergunta se preparava suas
aulas na universidade de forma diferente das aulas no liceu, e ele diz, não, de
forma alguma, exatamente a mesma coisa, ele sempre deu suas aulas da mesma
forma. Parnet parece surpresa, perguntando outra vez se suas preparações para
as aulas do liceu eram tão intensas quanto suas preparações para as aulas na
universidade, e ele repete, “obviamente”, três vezes. Em todo caso, diz Deleuze,
temos que estar totalmente imbuídos do material, temos que gostar daquilo sobre
o qual estamos falando, e isso não acontece sozinho, nós temos que ensaiar,
preparar, percorrer as coisas mentalmente, temos que encontrar um jeito, um
truque. À medida que a fita corre, ele diz que é bastante divertido que temos que
encontrar algo como uma porta que temos que passar apenas a partir de uma
posição particular. Depois que a fita muda, Parnet faz a mesma pergunta (sobre
as preparações de aula) uma terceira vez, e Deleuze diz simplesmente que não
havia nenhuma diferença para ele, de forma algua, entre os dois tipos de aula.
Parnet diz que já que eles estão discutindo o trabalho universitário, talvez ele
pudesse falar sobre sua tese de doutorado. Ela pergunta quando ele a defendeu.
Deleuze lembra a ela que ela já havia escrito vários livros antes de sua defesa e,
em alguma medida, isso aconteceu porque ele não queria terminar a tese, uma
reação freqüente. Ele lembra que trabalhava muito e, em algum momento, ele se
deu conta de que ele tinha que ter a tese, que se tratava de algo urgente. Assim,
ele fez um esforço máximo, e finalmente ele a apresentou como uma das
primeiras defesas depois do Maio de 1968, no começo de 1969. Isso criou uma
situação bastante privilegiada para ele, porque a banca estava intensamente
preocupada com uma única coisa, em como organizar a defesa de modo a evitar
os grupos que invadiam as salas de aula da Sorbonne. Eles estavam com
bastante medo, já que foi imediatamente após a volta às aulas depois dos eventos
de Maio de 1968, assim eles não sabiam o que podia acontecer. Deleuze lembra o
presidente da banca dizendo que havia duas possibilidades: ou eles faziam a
sessão de defesa no térreo, onde havia uma vantagem, a existência de duas
saídas [Deleuze dá uma risada], de forma que eles pudessem sair rapidamente,
mas a desvantagem era que os grupos invadiam principalmente as salas do
térreo; ou eles poderiam ir para o segundo andar, com a vantagem de haver
menos grupos naquele andar, mas a desvantagem de apenas uma saída, assim
se algo acontecesse, eles poderiam ficar impossibilitados de sair. Assim, quando
Deleuze defendeu sua tese, não foi nunca possível encarar de frente os membros
da banca, uma vez que todos estavam vigiando a porta [Deleuze dá uma risada]
para ver se alguém ia entrar de repente. Parnet pergunta quem era o presidente
da banca, mas Deleuze diz que é um segredo. Parnet diz que ela poderia fazê-lo
confessar, mas Deleuze insiste, não, especialmente dada a angústia do presidente
naquele momento, e também que ele era muito encantador. Curiosamente, o
presidente estava mais perturbado do que Deleuze, e é raro que uma banca esteja
mais perturbada que o candidato. Parnet sugere que ele era provavelmente mais
conhecido naquela altura do que qualquer outra pessoa da banca, mas Deleuze
diz que ele não era absolutamente bem conhecido. Parnet diz que a defesa se
centrava no que depois foi publicado como o livro Diferença e repetição, e Deleuze
diz, sim, então Parnet relembra que ele era bem conhecido por seus trabalhos
sobre Proust e Nietzsche [aqui Deleuze faz uma espécie de resmungo como único
resposta, visivelmente constrangido e depois balança seus ombros para Parnet].
Parnet volta a Vincennes, e Deleuze diz que quanto a Vincennes, Parnet está
certa, de que houve uma mudança, não na forma como ele preparava suas aulas
(o que ele chama de ensaios), nem no estilo de uma aula, mas a partir de
Vincennes, Deleuze diz que não tinha mais uma audiência de alunos. Era isso que
era tão esplêndido sobre Vincennes e que não valia, em geral, para todas as
universidades que estavam voltando ao normal. Ao menos em filosofia – Deleuze
não sabe se isso é verdade para toda a universidade de Vincennes –, havia um
tipo completamente novo de público, não mais feito de estudantes, mas uma
mistura de todas as idades, todos os tipos de atividades profissionais, incluindo
pacientes de hospitais psiquiátricos. Tratava-se talvez de um dos públicos mais
multicoloridos, o qual encontrava uma misteriosa unidade em Vincennes. Isto é,
era ao mesmo tempo o mais diverso e o mais coerrente, em função de Vincennes,
que dava a essa multidão díspar uma espécie de unidade. Deleuze diz que
passou toda sua carreira em Vincennes, mas que se ele tivesse sido forçado
posteriormente a ir para outra faculdade, ele teria se sentido completamente
perdido. Quando ele visitiva outras faculdades depois disso, era como viajar de
volta no tempo, era como aterrisar no século XIX.
Assim, em Vincennes, ele falava para um público misto, jovens pintores, pessoas
do campo do tratamente psiquiátrico, músicos, drogados, jovens arquitetos,
pessoas de países muito diferentes. Havia ondas de visitantes que mudavam a
cada ano. Ele lembra da chegada repentina de 5 ou 6 australianos. Deleuze não
sabia por quê, e no ano seguinte eles tinham ido embora. Os japoneses estavam
constantemente lá, a cada ano, e havia sul-americanos, negros... Deleuze diz que
era um público inestimável e fantástico. Parnet diz que era porque, pela primeira
vez, Deleuze estava falando para não-filósofos, sua prática que ele havia
mencionado antes, e Deleuze concorda: tratava-se plenamente de filosofia que
era dirigida igualmente a filósofos e a não-filósofos, exatamente como a pintura é
dirigida a pintores e a não-pintores, ou como a música não está limitada a
especialistas em música, mas trata-se da mesma música, do mesmo Berg ou do
mesmo Beethoven, dirigidos a pessoas que não são especialistas em música e
que não são músicos. Para a filosofia, deve ser estritamente o mesmo, diz
Deleuze, ser dirigida a não-filósofos e a filósofos, sem nenhuma mudança. A
filosofia dirigida aos não-filósofos não deveria ser simplificada, da mesma forma
que em música não se simplifica Beethoven para não-especialistas. É a mesma
coisa em filosofia, diz Deleuze, a filosofia tem sempre seu público duplo, um
público não-filosófico assim como um público filosófico. E se eles não estão juntos,
então não há nada.
Parnet pede a Deleuze para explicar um sutil distinção: nas conferências há não-
filósofos, mas ele odeia conferências. Deleuze diz, sim, ele odeia conferências
porque elas são artificiais e também por causa do antes e do depois das
conferências. Ele diz que gosta tanto de dar aulas, que é uma maneira de falar
diferentemente das conferências. Nas conferências, falamos antes, e então
falamos depois, e não tem a pureza de uma aula. E depois há a característica de
um circo nas conferências – embora Deleuze admita que as aulas também têm
suas características de circo, mas ao menos elas o divertem e tendem a ser mais
profundas. Em uma conferência, há um lado falso, e Deleuze diz que ele não
gosta das pessoas que as freqüentam, ou até mesmo simplesmente falar com
elas: ele as acha muito tensas, muita venais [trop putain], muita estressadas... não
muito interessante, de forma alguma. Parnet faz com que ele volte ao que ela
chama de seu “querido público” em Vincennes que era tão mixto na época, com
loucos, drogados, como disse Deleuze, que faziam intervenções malucas,
pegavam a palavra e, apesar disso, nada disso parece jamais ter incomodado
Deleuze. Apesar de todas essas intervenções no meio de suas aulas, elas
continuavam completamente magistrais, e nenhum intervenção feita durante a
aula parecia jamais ter algum caráter objetável, isto é, o aspecto magistral da aula
era sempre mantido.
Deleuze emite seu constrangido “oui, oui, oui”, enquanto ela completa sua
pergunta, depois diz que precisa encontrar outra palavra, uma vez que esta
expressão – aula magistral – é imposta pela universidade, mas que é preciso uma
outra. Deleuze vê duas concepções de uma aula: a primeira é aquela na qual o
objetivo é incitar reações bastante imediatas por parte do público por meio de
questões e interrupções. Trata-se de toda uma tendência, diz Deleuze, uma
concepção particular de aula. Por outro lado, há a assim chamada concepção
“magistral”, com uma pessoa (le monsieur) que fala. Não é que ele prefira um ou
outra, diz Deleuze, ele simplesmente não tinha escolha, ele só tinha praticado a
segunda forma, a concepção magistral. Assim é preciso uma palavra diferente.
É mais como uma concepção musical, sugere Deleuze. Para ele, nós não
interrompemos a música, seja ela bou ou ruim, ou apenas se ela é realmente ruim,
mas, em geral, não interrompemos a música enquanto podemos facilmente
interromper palavras faladas. Ele pergunta o que significa essa concepção musical
de uma aula. Ele fala a partir de sua experi~encia, embora ele não queira dizer
que essa seja a melhor concepção, é apenas a maneira como ele vê as coisas.
Tal como ele vivenciou os públicos, seus públicos, ocorre freqüentemente que
alguém não compreende em um momento particular, e então há algo como um
efeito retardado, um pouco como na música. Em um dado momento, não
entendemos um movimento, diz Deleuze, e então três ou dez minutos mais tarde,
torna-se claro: algo aconteceu nesse meio-tempo. O mesmo ocorre com esses
efeitos retardados, de repente uma pessoa escutando [na aula] pode certamente
não entender algo em um dado momento, e dez minutos mais tarde, torna-se
claro, há uma espécie de efeito retroativo. Assim, se ele tivesse já interrompido – é
por isso que Deleuze acha as interrupções tão estúpidas, ou até mesmo certas
perguntas que as pessoas fazem. Em vez de fazer uma pergunta, porque se está
no meio de uma não-compreensão, a pessoa faria melhor em esperar. Esse é um
primeiro aspecto da questão, e Deleuze diz que os melhos alunos são aqueles
que fazem as perguntas na semana seguinte. Ele não insistiu nisso, mas no fim,
eles lhe passavam uma mensagem de uma semana para a outra – uma prática
que ele gostava – dizendo que ele tinha que voltar a um determinado ponto.
Assim, ao esperar dessa forma, havia uma espécie de comunicação.
Parnet observa que isso corresponde a seu público, mas para o “concerto”
Deleuze inventou a expressão “filosofia pop” e “filósofo pop”. Deleuze balança a
cabeça, sim, é isso o que ele queria dizer. Parnet continua, dizendo que sua
aparência [allure], como a de Foucault, era algo muito especial, seu chapéu, suas
unhas [extremamente longas, o que é bastante visível no vídeo], sua voz. Assim,
ela pergunta se Deleuze estava consciente desse tipo de mistificação por parte de
seus alunos, em torno de sua aparência, como eles tinham mitificado Foucault.
Primeiramente, estava ele consciente de ter essa aparência e depois de ter essa
voz especial? Deleuze diz, certamente, já que a voz em uma aula – Deleuze
relembra o que ele disse antes: se a filosofia mobiliza e trata de conceitos, que é a
vocalização de conceitos em uma aula, então isto é normal, exatamente da
mesma maneira que existe um estilo escrito de conceitos. Os filósofos não são
pessoas que escrevem sem a pesquisa ou a elaboração de um estilo, é como os
artistas, e eles são artistas. Assim, uma aula implica que vocalizemos, até mesmo
[Deleuze diz que ele fala mal o alemão] uma espécie de Sprechgesang [estilo de
canto declamado e modulado de acordo com as intonações da palavra, utilizado
pelos compositores da escola dodecafônica de Viena – Schonberg, TTS],
claramente. Assim, para além do fato de que há mitificações – você viu suas
unhas?, etc. – esse tipo de coisas acontece com todos os professores, já na
escola primária. O que é mais importante é a relação entre a voz e o conceito.
Parnet diz que para fazê-lo feliz, seu chapéu era como o vestido negro de Piaf,
com um estilo (allure) muito preciso. Deleuze responde que sua questão de honra
era nunca usá-lo simplesmente por essa razão, assim se produzia esse efeito,
tanto melhor, muito bem. Parnet pergunta se isso faz parte de seu papel de
professor, e Deleuze repete sua pergunta em voz alta antes de dizer, não, trata-se
de um complemento dele. O que faz parte do papel de um professor é o que ele
disse antes: ensaio prévio e inspiração no momento, esse é o papel do professor.
Parnet diz que ele nunca quis nem uma “escola” [baseada em suas obras] nem
discípulos, e essa recusa de discípulos corresponde a algo muito profundo nele.
Deleuze rompe em uma risada quando ela diz isso, afirmando que ele não recusa,
de forma alguma, geralmente funciona em ambos os sentidos: ninguém quer ser
seu discípulo tanto quanto ele não quer nenhum. Uma “escola” é uma coisa
horrível, por uma razão muito simples: toma muito tempo, nós nos transformamos
em um administrador. Consideremos os filósofos que tiveram sua própria “escola”,
como os witgensteinianos: não formam um grupo muito divertido. Os
heideggerianos formam uma escola: em primeiro lugar, isso implica que algumas
terríveis contas sejam ajustadas, implica exclusividades, implica um calendário,
toda uma administração. Deleuze diz que ele observou essas rivalidades entre os
heideggerianos franceses, liderados por Beaufret, e os heideggerianos belas,
liderados por Develin, um verdadeira luta de facão, abominável para Deleuze, sem
nenhum interesse.
Parnet diz que a filosofia serviu, para Deleuze, para colocar questões e
problemas, e que as questões são construídas com o propósito não de respondê-
las, mas de deixar essas questões para trás. Assim, por exemplo, deixando a
história da filosofia para trás significou criar novas questões. Em uma entrevista,
não se faz realmente questões a Deleuze, assim ela pergunta como Deleuze deixa
isso para trás. Parnet vê isso como uma espécie de escolha forçada, e assim
pergunta qual é a diferença, para Deleuze, entre uma questão no contexto da
mídia e uma questão na história da filosofia. Deleuze faz uma pausa, dizendo que
é difícil. Na mídia, há conversas a maior parte do tempo, não questões, não
problemas, apenas perguntas. Se dizemos, como você está?, isso não constitui
um problema. “Que horas são?” não é um problema, mas uma pergunta. Se
vemos o nível geral na televisão, mesmo em programas supostamente sérios, está
cheio de perguntas, “o que você acha disso?” não constitui um problema, mas um
pedido de opinião, uma pergunta. É por isso que a TV não é muito interessante.
Deleuze não tem um interesse muito grande nas opiniões das pessoas.
Ele dá o exemplo da questão: você acredita em Deus? Ele pergunta onde está o
problema, onde está questão. Não há nenhum problema, nenhuma questão.
Assim, se colocassem questões ou problemas num programa de TV, Deleuze diz
que o número de programas é enorme, mas raramente ocorre que um programa
de TV abranja qualquer problema. Deleuze sente que eles poderiam, por exemplo,
pergunta sobre a questão chinesa. Mas o que ocorre em geral é que eles
convidam especialistas em China [Deleuze dá uma risada] que dizem coisas sobre
a China que poderíamos nós mesmos deduzir, sem saber qualquer coisa sobre a
China [risos]. Voltando à questão mais ampla sobre Deus, qual é o problema ou a
questão sobre Deus? Não é se acreditamos em Deus ou não, coisa que não
interessa a muita gente, mas o que quer dizer quando se pronuncia a palavra
“Deus”? Deleuze sugere que isso pode significar: somos julgados após a morte?
Assim, de que forma isso constitui um problema? Deleuze vê isso como
estabelecendo uma relação problemátic entre Deus e a instância do julgamento.
Assim, é Deus um juiz? Isso é uma questão.
Outro exemplo é Pascal; alguém sugere seu texto sobre a aposta: Deus existe ou
não? Apostamos nisso, lemos o texto de Pascal e vemos que não se trata de uma
questão de aposta porque, argumenta Deleuze, Pascal coloca uma outra questão:
não é se Deus existe ou não, o que não seria uma coisa muito interessante, mas
é: qual é melhor modo de existência, o modo de alguém que acredita que Deus
existe, ou o modo de alguém que acredita que Deus não existe? Assim, a questão
de Pascal não diz respeito à existência (ou não) de Deus, mas, antes, à existência
de quem quer que seja que acredita na existência de Deus ou não. Por várias
razões, diz Deleuze, Pascal desenvolve suas próprias questões, mas elas podem
ser articuladas: Pascal pensa que alguém que acredita que Deus existe tem uma
existência melhor que alguém que não acredita. Esse é o interesse de Pascal, há
um problema, uma questão, e já é mais a questão de Deus. Há um tema
subjacente, uma transformação de questões uma dentro da outra.
Deleuze sugere que é o mesmo quando Nietzsche diz “Deus está morto”, não é a
mesma coisa que dizer que Deus não existe. Deleuze pergunta: se dizemos que
Deus está morto, à que questão isso se refere, a uma questão que não é a mesma
que quando perguntamos se Deus existe? Ao ler Nietzsche, diz Deleuze,
observamos que não poderia se importar menos com a morte de Deus, e que está
colocando uma outra questão por meio daquela, especificamente, que se Deus
está morto, não há nenhuma razão para que o homem também não esteja, temos
que encontrar algo mais no homem, etc. O que interessava Nietzsche não era, de
forma alguma, se Deus estava morto, mas toda uma outra coisa.
Esses, diz Deleuze, são questões e problemas, e eles poderiam certamente ser
apresentados na TV ou na mídia, mas criariam uma espécie muito estranha de
programa, sobre essa história subjacente de problemas e questões. Enquanto nas
conversas diárias bem como na mídia, as pessoas permanecem no nível das
perguntas. Deleuze menciona um programa particular [uma vez que esse
programa é póstumo, ele diz], “A hora da verdade” [Deleuze dá uma risada], todo
feito de perguntas do tipo “Madame Veil, você acredita na Europa?”. Seria
interessante, argumenta Deleuze, se se perguntasse sobre o problema da Europa.
É a mesma coisa que com a questão da China. Eles constantemente perguntam
sobre preparar a uniformização da Europa, eles se perguntam uns aos outros
sobre isso, sobre como tornar o seguro uniforme, etc. E então, eles encontram um
milhão de pessoas na Place de la Concorde, de todos os lugares, da Holanda, da
Alemanha, etc., e os entrevistadores não podem, de forma alguma, controlar isso,
eles convocam especialistas para lhes dizer por que há tantas pessoas
holandesas na Place de la Concorde. Eles simplesmente rodeiam em torno das
verdadeiras questões quando elas precisariam ser feitas. Deleuze admite que o
que está dizendo é um pouco confuso [ele dá uma risada].
Parnet dá o exemplo de Deleuze que costumava ler os jornais diários, mas não lê
mais Le Monde ou Libération. Ela pergunta se há algo no fato de imprensa ou a
mídia não colocar questões que o desgosta, e Deleuze responde, sim! Ele tem a
sensação de aprender cada vez menos. Ele diz que ele está bastante disposto a
aprender coisas, já que ele não sabe nada, mas uma vez que os jornais tampouco
dizem qualquer coisa, o que se pode fazer? Parnet diz que ele sempre vê as
notícias vespertinas, é o único programa que ele nunca perde, e pergunta se
Deleuze tem uma questão para formular cada vez que ele vê esse noticiário que
não é nunca formulada na mídia. Deleuze diz que ele não sabe e Parnet diz que
ele parece pensar que nunca se colocam questões. Deleuze diz que ele pensa
que, em grande medida, as questões não podem ser feitas. Aqui Deleuze escolhe
um exemplo específico, um recente escândalo francês que remonta à era de
Vichy, a prisão de Paul Touvier [Paul Touvier, preso em 1989, por crimes contra a
humanidade, por enviar 7 judeus a serem executados, em 29 de junho de 1944,
em Rillieux-la-Pape, perto de Lyon, é o primeiro francês a ser considerado culpado
de crimes de guerra e sentenciado à prisão perpétua, em 20 de abril de 1994. Ele
morreu de câncer em julho de 1996. Touvier tinha sido condenado à morte, in
absenctia, em 1946, e passou a maior parte dos próximos 40 anos como fugitivo,
vivendo em monastérios católicos]. Deleuze sugere que as questões são evitadas
e deliberadamente não colocadas. Aparentemente, evitou-se colocar questões a
Touvier sobre sua conduta durante a guerra, uma vez que ele devia ter
informações que poderiam implicar algumas autoridades católicas. Assim, diz
Deleuze, todo mundo sabe o que Touvier sabe, mas há um acordo em não colocar
questões, e assim elas não são colocadas. Isso é conhecido como consenso, diz
Deleuze, isto é, um acordo segundo o qual perguntas simples como “Como você
está?” tomam o lugar de problemas e questões, isto é, perguntas que evitam
qualquer questão real.
Parnet parece querer fazer objeções ao que Deleuze está dizendo, assim ele diz,
vamos tentar um outro exemplo, sobre os reformadores do partido conservador
francês e o aparato político da Direita. Deleuze diz que todo mundo sabre de que
se trata, mas os jornais não dizem uma palavra ao público. Para Deleuze, esses
reformadores colocam uma questão bastante interessante: é uma tentatia de
abalar elementos do aparato do Partido que estão sempre centralizados em torno
de Paris. Especificamente, os reformadores querem independência regional, algo
muito interessante e sobre o qual ninguém está insistindo. A conexão com
questões européias, diz Deleuze, é que eles querem criar uma Europa não de
nações, mas de regiões, isto é, uma verdadeira unidad regional e inter-regional,
em vez de uma unidade nacional e internacional. Isso é um problema, diz
Deleuze, um problema que os socialistas terão que enfrentar em algum momento,
entre tendências regionalistas e tendências internacionalistas. Mas os aparatos do
Partido, isto é, as federações provinciais, ainda correspondem à estrutura antiga,
centrada em torno de Paris, que conserva um papel extremamente importante.
Parnet traz o exemplo de uma jornalista, Anne Saint-Claire, que tenta colocar boas
questões, não perguntas, e Deleuze responde, ótimo, esse é sua tarefa, ele está
seguro de que está muito feliz com ela mesma. À questão de Parnet sobre por que
Deleuze nunca aceitou participar de uma entrevista de televisão, enquanto
Foucault e Serres o fizeram, e se ele está se retirando da vida como o fez Beckett,
Deleuze diz, aqui está a prova, esta entrevista, ele estará na TV! Mas suas razões
para não aceitar está relacionadas a algo que ele já disse: ele não tem qualquer
desejo de ter conversas e interrogatórios com pessoas, algo que ele não pode
suportar particularmente quando ninguém sabe que problema está sendo
levantado. Ele volta ao exemplo de Deus: é uma questão da não-existência de
Deus, da morte de Deus, da morte do homem, da existência de Deus, da
existência de quem quer que seja que acredita em Deus, etc. É uma confusão,
muito cansativo, diz Deleuze. Assim, quando todo mundo tem sua vez de falar,
trata-se da domesticidade em puro estado, com algum apresentador idiota
[présentateur à la con]... Deleuze conclui isso resmungando “pitié, pitié”, “piedade”,
“piedade”...
Parnet diz que a coisa mais importante é que Deleuze está aqui hoje respondendo
suas pequenas perguntas. Deleuze responde: “sob a condição de que seja
póstumo”.
Parnet lembra a Deleuze sobre algo que ele disse em uma conferência recente: a
filosofia cria conceitos, e sempre que criamos nós resistimos. Artistas, diretores de
cinema, músicos, matemáticos, filósofos, todos resistem, mas Parnet pergunta, ao
quê exatamente eles resistem? Ela sugere considerar caso por caso: os filósofos
criam conceitos, mas os cientistas criam conceitos?
Depois que uma nova fita tem início, Parnet traz Deleuze de volta a essa idéia do
artista e da resistência, o papel da vergonha de ser um homem, da arte libertando
a vida dessa prisão de vergonha, mas algo muito diferente da sublimação.
Deleuze insiste que isso significa extrair a vida, a libertação da vida e, de forma
alguma, algo abstrato. Deleuze pergunta o que é um grande personagem de
romance. Não é um personagem tomado de empréstimo ao real e até mesmo
exagerado: ele mencionar o Charlus, da Remembrance, de Proust, que não é
Mostesquiou [amigo de Proust] da vida real, nem mesmo uma reprodução
exagerada, feita pela imaginação brilhante de Proust. Deleuze diz que se trata de
forças de vida fantásticas, por mais que dêem errado. Um personagem de ficção
integrou a vida em si mesmo... Deleuze diz que se trata de uma espécie de
gigante, um exagero em relação à vida, mas não um exagero em relação à arte, já
que a arte é a produção desses exageros, e é apenas por seu único existir que ela
é resistência. Ou, em outra direção, ligando com o tema desenvolvido em “A de
Animal”, escrever é sempre escrever por animais, isto é, não para eles, mas em
seu lugar, fazendo o que os animais não podem, escrever, libertar a vida das
prisões que os humanos criaram e é isso que é resistência. Isso é, obviamente, o
que os artistas fazem, diz Deleuze, e ele acrescenta: não existe arte que não seja
também uma libertação das forças da vida, não existe uma arte da morte.
Parnet observa, entretanto, que a arte não é suficiente. Primo Levi acabou por
cometer suicídio muito mais tarde. Deleuze responde, sim, mas ele cometeu
suicídio pessoalmente, ele não agüentava mais, assim ele cometeu suicídio
relativamente à sua vida pessoa. Mas, continua ele, há quatro ou doze ou cem
páginas de Primo Levi que permanecerão resistências eternas. Assim, é dessa
forma que acontece.
Mas, pergunta ele, o que vai substituir a filosofia? Talvez alguém diga: não
devemos mais criar conceitos, e assim, conclui Deleuze, vamos deixar a estupidez
dominar, está bem, são os idiotas que querem matar a filosofia. Quem vai criar
conceitos? A ciência da informação? Os agentes de publicidade que tomaram
conta da palavra “conceito”? Está bem, vamos ter conceitos de publicidade, que é
o conceito de uma marca de macarrão, diz Deleuze. Eles não correm o risco de
terem uma grande competição por parte da filosofia porque a palavra “conceito”,
ele acredita, não está mais sendo utilizada da mesma maneira. Mas é a
publicidade que é apresentada como o verdadeiro rival da filosofia uma vez que
eles nos dizem: nós, publicitários, estamos inventando conceitos. Mas, diz
Deleuze, o conceito proposto pela ciência da informação, pelos computadores, é
simplesmente ridículo o que eles chamam de conceito.
Parnet pergunta se podemos dizer que Deleuze, Guattari e Foucault formam redes
de conceitos que funcionam como redes de resistência, como uma máquina de
guerra contra os modos dominantes de pensamento. Deleuze parece visivelmente
constrangido e diz, sim, por que não? Seria muito bom se fosse verdade. Na
seqüência, ele reflete sobre as redes: se não pertencemos a uma “escola” – e,
para Deleuze, essas “escolas” de pensamento não parecem nada boas –, existe
apenas o regime de redes, de cumplicidades, algo que existiu em cada período,
por exemplo, o que chamamos de Romantismo – alemão ou em geral –, e há
redes hoje também, suspeita Deleuze. Parnet pergunta se se trata de redes de
resistência e Deleuze diz, sim, na medida em que a função da rede é resistir e
criar. Parnet diz que, por exemplo, Deleuze considera-se ao mesmo tempo famoso
e clandestino, como vivendo em uma espécie de clandestinidade [Deleuze dá uma
risada] da qual ele se orgulha. Deleuze diz que ele não se considera nada famoso,
nem clandestino, mas que seria, na verdade, imperceptível. [Neste ponto, Deleuze
parece hesitar, começando frases, mas não concluindo o pensamento]. Mas se é
imperceptível porque se pode... Essas questões são praticamente pessoais... O
que ele quer é fazer seu trabalho, que as pessoas não o incomodem e não o
façam perder tempo e, ao mesmo tempo, ele quer ver pessoas, ele precisa disso,
como todo mundo, ele gosta de pessoas, ou de um pequeno grupo de pessoas
que ele gosta de ver. Mas ele insiste que ele não quer que isso constitua nenhum
problema, ele só quer ter relações imperceptíveis com pessoas imperceptíveis, é
isso que é a coisa mais bela no mundo. Deleuze sugere que somos todos
moléculas, uma rede molecular.
Parnet pergunta se existe uma estratégia em filosofia, por exemplo, quando ele
escreveu aquele ano em seu livro sobre Leibniz, ele o fez estrategicamente?
Deleuze sorri, perguntando-se em voz alta o que significa a palavra “estratégia”,
talvez que não escrevemos sem uma certa necessidade. Mas ele diz, se não
existe nenhuma necessidade de criar um livro, que isso não é sentido fortemente
pelo autor, então ele não deveria fazê-lo. Assim, quando Deleuze escreveu sobre
Leibniz, foi por necessidade, porque para ele havia chegado o momento – uma
coisa muito comprida para explicar em detalhe – de falar sobre Leibniz e a dobra.
E quanto à dobra, acontecia que, para Deleuze, ela estava fundamentalmente
ligada a Leibniz. Ele pode dizer isso para cada livro que ele escreveu: qual era a
necessidade em cada período.
Parnet continua a falar sobre isso: além do impulso da necessidade que leva
Deleuze a escrever, ele pergunta sobre sua movimentação, depois de escrever
filosofia e voltar à história da filosofia, depois dos livros sobre cinema e depois de
livros como Anti-Édipo e Mil platôs. Deleuze diz que não houve nenhuma volta da
filosofia, e essa foi a razão pela qual ele, anteriormente, respondeu às perguntas
dela de forma bastante exata. Ele escreveu um livro sobre Leibniz porque, para
ele, tinha chegado o momento de estudar o que era uma dobra. Ele faz história da
filosofia quando ele tem necessidade, isto é, quando ele encontra e vive uma
noção que já está ligada a um filósofo. Quando ele ficou animado sobre a noção
de “expressão”, ele escreveu um livro sobre Espinosa, porque Espinosa é o
filósofo que levou a noção de “expressão” a um nível extraordinário. Assim,
parecia-lhe óbvio que seria por meio de Leibniz, e ocorre que ele também
encontra noções que não estão ainda dedicadas a um filósofo, assim, nesse caso
Deleuze não faz história da filosofia. Mas ele não vê qualquer diferença entre
escrever um livro sobre história da filosofia e um livro sobre filosofia, assim é
dessa forma, diz ele, que ele segue seu próprio caminho.
Parnet anuncia o título e Deleuze exclama: “ah, bom!”. Parnet pergunta o que é o
estilo. Ela lembra que em Diálogos, Deleuze diz que o estilo é a propriedade
daqueles dos quais se diz que não têm nenhum estilo. Ele diz isso de Balzac.
Assim, o que é o estilo? Deleuze diz que não se trata de um questão trivial, e
Parnet responde, não, foi por isso que ela fez a pergunta de forma tão rápida! [Na
verdade, em Diálogos, Deleuze não faz qualquer referência a um escritor
específico. Em vez disso, ele diz: “Gostaria de dizer o que é o estilo. Ele pertence
a pessoas dos quais normalmente dizemos: “Eles não têm nenhum estilo”. Não se
trata deum estrutura de significação, nem de uma organização refletida, nem de
uma inspiração espontânea, nem de uma orquestração, nem de uma pequena
peça musical. Trata-se de um agenciamento, um agenciamento de enunciação.
Um estilo significa conseguir gaguejar em sua própria língua”.]
Deleuze ri, depois diz, escuta, isso é o que posso dizer para compreender o que é
estilo: antes de mais nada, é melhor não saber absolutamente nada sobre
lingüística. A lingüística tem causado muito prejuízo, diz ele; por quê? Há uma
oposição – Foucault o disse muito bem – e trata-se mesmo de sua
complementaridade, entre lingüística e literatura. Contrariamente ao que muitos
dizem, elas, de forma alguma, encaixam. É porque, para a lingüística, diz Deleuze,
a língua [langue] é sempre um sistema em equilíbrio a partir do qual pode-se criar
uma ciência. E o resto, as variações, são colocadas não mais no lado da
linguagem, mas no lado da fala [parole]. Quando escrevemos, sabemos
perfeitamente que a língua é um sistema sobre o qual os fisicos diriam que é um
sistema muito distante do equilíbrio, um sistema em desiquilíbrio permanente, de
forma que não existe qualquer diferença de nível entre língua e fala, mas a língua
é constituída por todo tipo de correntes heterogêneas em desiquilíbrio mútuo.
Assim, ele continua, o que é o estilo de um grande autor? Deleuze diz que ele
pensa que há duas coisas no estilo – ele observa que ele está respondendo
rapidamente e claramente, mas que ele está envergonhado porque está
demasidamente abreviado. O estilo é composto de duas coisas: submetemos a
língua na qual falamos e escrevemos a um certo tratamento, não um tratamento
que seja artificial, voluntário, etc., mas um tratamento que mobiliza tudo, a vontade
do autor, mas também seus desejos e necessidades. Assim, submetemos a língua
a um tratamento sintático e original, que poderia ser... Aqui Deleuze indica que
eles estão voltando ao tema da letra “A de Animal”: um tratamento que poderia
fazer a língua gaguejar e Deleuze diz, não que nós mesmos gaguejemos, mas
fazer a língua gaguejar. Ou, e não se trata da mesma coisa, fazer a língua
balbuciar.
Ele toma o exemplo dos grandes estilistas: Gherasim Luca, um poeta. Deleuze
sugere que geralmente ele cria gaguejando, não a sua própria fala, mas faz a
língua gaguejar. Outro exemplo é Charles Péguy, de forma muito estranha, diz
Deleuze, porque Péguy é um certo tipo de personalidade sobre o qual
esquecemos que, acima de tudo, está entre os grandes artistas, e ele é totalmente
louco. Deleuze dia que nunca ninguém escreveu como Péguy, e nunca ninguém
escreverá com Péguy, e sua escrita está entre os grandes estilos da língua
francesa, um dos grandes criadores da língua francesa. O que ele fez? Não
podemos dizer que seu estilo é um gaguejar: em vez disso, ele faz a sentença se
desenvolver a partir de seu meio: em vez de fazer com que as sentenças se sigam
umas às outras, ele repete a mesma sentença com acréscimo no seu meio, o
qual, por sua vez, gerará um outro acréscimo, etc. Ele faz a sentença proliferar a
partir de seu meio, por inserções. Trata-se de um grande estilo, conclui Deleuze.
Assim, há o primeiro aspecto: fazer com que a língua seja submetida a um incrível
tratamento. É por isso que um grande estilista não é alguém que conserva a
sintaxe, mas é um criador de sintaxe. Deleuze diz que ele não pode deixar de citar
a admirável fórmula de Proust: obras de arte são sempre escritas em uma espécie
de língua estrangeira. Um estilista, diz Deleuze, é alguém que cria uma língua
estrangeira em sua própria língua. [Deleuze e Parnet fornecem a referência dessa
citação na página .... de Diálogos, do livro de Proust, Contra Sainte-Beuve]. É
verdadeiro a respeito de Céline, de Péguy. Ele continua: ao mesmo tempo que
esse primeiro aspecto – fazer com que a sintaxe sofra uma deformação, um
tratamento de contorsão, mas necessário, que constitui algo como uma língua
estrangeira na língua na qual escrevemos, -- o segundo aspecto consiste em, por
meio desse mesmo processo, levar toda a língua, integralmente, a uma espécie
de limite, à fronteira que a separa da música. Produzimos um tipo de música. Se
somos bem sucedidos, é com essas duas coisas, e é necessário fazê-lo, trata-se
de um estilo, ele pertence a todos os grandes estilistas. Tudo isso acontece de
uma vez só: cavar no interior da língua uma língua estrangeira, levar toda a língua
a uma espécie de limite musical: é isso o que significa ter um estilo.
Parnet pergunta rapidamente se Deleuze acha que ele tem um estilo..., e ele cai
numa gargalhada, dizendo, “Oh! a perfídia!”. Parnet continua, ... porque ela vê
uma mudança em relação a seus primeiros livros. Deleuze diz que a prova do
estilo está em sua variabilidade, e que geralmente caminhamos em direção a um
estilo cada vez mais sóbrio. Isso não significa menos complexo, insiste Deleuze.
Ele pensa imediatamente em um dos escritores que ele admira muito do ponto de
vista do estilo, Jack Kerouac. No final de sua carreira, diz Deleuze, a escrita de
Kerouac era como um desenho japonês de linha, uma pura linha, alcançando uma
sobriedade, mas isso realmente implica, então, a criação de uma língua
estrangeira no interior da língu. Deleuze também pensa em Céline, e ele acha
estranho quando as pessoas ainda elogiam Céline por haver introduzido a
linguagem falada na linguagem oral [em Voyage au bout de la nuit]. Deleuze acha
isso estúpido porque, na verdade, é preciso um tratamento escrito completo na
língua, devemos criar uma língua estrangeira no interior da língua a fim de obter,
por meio da escrita, o equivalente da língua falada. Assim, Céline não introduziu o
falado na língua, é simplesmente estúpido dizer isso, exclama Deleuze. Mas
quando Céline recebia um elogio, continua Deleuze, ele sabia que ele estava
muito distante do que ele queria criar, assim ele começou seu segundo romance.
Em Mort à crédit, ele chega mais perto, mas quando o livro é publicado e lhe
dizem que ele havia mudado seu estilo, ele sabia outra vez que ele estava distante
do que ele queria e assim o que ele queria ele vai alcançar com Guignhol’s Band,
no qual, de fato, a linguagem é levada a um tal limite que está próxima da música.
Não é mais um tratamento da língua que cria uma língua estrangeira, mas toda
uma linguagem levada a seu limite musical. Assim, por sua própria natureza, o
estilo muda, ele tem sua variação.
Depois que a fita muda, Parnet retoma essa questão outra vez, dizendo que para
Deleuze, o estilo é uma espécie de necessidade para a composição daquilo que
ele escreve, que a composição entra na sua escrita de uma forma bem primordial.
Deleuze concorda completamente, refazendo a questão dessa forma: a
composição de um livro é já uma questão de estilo? E ele responde, sim,
inteiramente. A composição de um livro não pode ocorrer de forma antecipada,
mas ao mesmo tempo que o livro é escrito. Naquilo que Deleuze escreveu, “se eu
puder invocar isso”, ele diz, há dois livros que parecem ter sido compostos.
Deleuze diz que ee sempre atribuiu grande importância à própria composição, por
exemplo, em Lógica do sentido, composto por séries, constituindo para Deleuze
verdadeiramente uma espécie de composição serial. Depois, em Mil platôs, trata-
se de uma composição por platôs, platôs constituídos por coisas. Mas Deleuze vê
esses dois livros quase como duas composições musicais. A composição, diz ele,
é um elemento fundamental do estilo.
Parnet pergunta sobre algo que ele disse anteriormente: se no modo de expressão
de Deleuze ele está agora mais próximo do que ele queria do que vinte anos
atrás, ou se se trata de uma coisa completamente diferente. Deleuze diz que
atualmente no que ele está fazendo, ele sente que, naquilo que ainda não está
concluído, ele está chegando mais perto, que ele está capturando algo que ele
estava buscando e que não havia encontrado antes. Parnet sugere que seu estilo
é não apenas literário, que se sente claramente o estilo em todos os domínios. Por
exemplo, diz ela, Deleuze vive com uma família elegante, seu amigo Jean-Pierre
também é bastante elegante, e Deleuze parece ser bastante sensível a essa
elegância.
Deleuze diz, primeiramente, que ele se sente um pouco excedido. Ele diz que ele
gostaria de ser elegante mas sabe muito bem que não o é. Para ele, a elegância
consiste já em perceber o que é a elegância. Tem que ser assim uma vez que há
pessoas que não conseguem perceber isso, de jeito nenhum, e para as quais o
que elas chamam elegância não é, de forma alguma, elegante. Assim, uma certa
apreensão do que é a elegância faz parte da elegância. Essa elegância que
impressiona Deleuze é um domínio como qualquer outro, que exige uma
aprendizagem, para o qual se tem um certo dom. Ele, então, pergunta a Parnet
por que ela lhe perguntou isso. Ela diz que a questão do estilo está em todos os
domínios. Ele diz, naturalmente, mas esse aspecto não é parte da grande arte.
Deleuze faz uma pausa, depois diz, o que é importante – além da elegância que
ele aprecia muito – são todas essas coisas no mundo que emitem signos. Assim,
uma grande elegância, tanto quanto a vulgaridade, emite signos, e é algo mais
que apenas a elegância que Deleuze considera importante: é a própria emissão
de signos. É por isso que ele sempre gostou e ainda gosta tanto de Proust, pela
mundaneidade, pelas relações mundanas. Aquilo que se conhece como “gafe”,
por exemplo, trata-se de uma fantástica emissão de signos. Trata-se de uma não-
compreensão de um signo, signos que as pessoas não compreendem. A vida de
sociedade existe como um milieu da proliferação de signos vazios, mas é também
a velocidade de sua emissão, a natureza de sua emissão. Isso se liga de novo
com o mundo dos animais porque os mundos dos animais também são emissões
de signos. Os animais e os “animais” mundanos são os mestres dos signos.
Parnet diz que, embora Deleuze não saia muito de casa, ele sempre se mostrou
mais favorável às noites mundanas que às conversas amenas. Deleuze diz,
naturalmente, porque para ele, nos meios mundanos, as pessoas não vão discutir,
essa vulgaridade não faz parte daquele meio. Em vez disso, move-se
completamente em uma certa leveza, isto é, em uma evocação
extraordinariamente rápida, em velocidades de conversas. Outra vez, diz Deleuze,
trata-se de emissões de signos muito interessantes.
Parnet pergunta se o tênis é o único esporte que ele vê na televisão e Deleuze diz,
não, ele adora futebol, assim é o futebol e não tênis. Parnet pergunta se ele
jogava tênis e Deleuze diz, sim, bastante até a guerra, de modo que isso faz dele
uma vítima da guerra! Parnet pergunta que efeito isso tem sobre seu corpo,
quando se pratica muito um esporte, ou quando se deixa de praticá-lo, se existem
coisas que mudam. Deleuze diz que ele não acha isso, ao menos não no caso
dele. Ele diz que ele não o transformou em um ofício. Em 1939, ele tinha 14 anos
e parou de jogar tênis, assim não se tratava de nada sério. Parnet pergunta se ele
jogava bem e Deleuze diz, sim, para um garoto de 14 anos ele jogava bastante
bem, mas ele um tanto baixo. Parnet diz que ela também ouviu dizer que praticou
um pouco de boxe, e Deleuze diz, um pouco, mas ele acabou se machucando,
assim ele parou em seguida, mas, sim, ele tentou praticar um pouco de boxe.
Parnet pergunta se ele acha que o tênis mudou muito em relação à época de sua
juventude e Deleuze diz, sim, naturalmente, como em todos os esportes, há
milieus de variação, e aqui voltamos à questão do estilo. Deleuze acha muito
interessante a questão das atitudes do corpo. Há uma variação de posições do
corpo sobre espaços de maior ou menor extensão e teríamos que categorizar as
variáveis na história dos esportes. Deleuze vê várias. Variáveis de tática: no
futebol, a tática mudou muito desde a época de sua infância. Há posições
variáveis para a postura do corpo: houve um momento, diz Deleuze, em que ele
esteve muito interessado no lançamento de esfera [? shot put], não para que ele
próprio praticasse, mas a conformação do lançador de esferas desenvolveu-se,
em determinado momento, com uma rapidez extrema. Tornou-se uma questão de
força: como, com lançadores realmente fortes, podia-se recuperar a velocidade e
como, com malhadores [de corpo] voltados para a velocidade, podia-se recuperar
a força? Deleuze acha essa questão muito interessante. Ele diz que o sociólogo
Marcel Mauss fez uma série de estudos sobre as posições do corpo em diferentes
civilizações, mas o esporte é um domínio da variação de posições, algo muito
fundamental.
Deleuze se pergunta qual foi o grande ponto de virada no tênis e ele acha que foi
a sua proletarização, de uma forma relativa, naturalmente. Ele tornou-se um
esporte de massa, uma espécie de executivos jovens com pretensões de classe
operária, mas Deleuze sente que podemos chamar isso de proletarização do tênis.
E, naturalmente, continua ele, há abordagens mais profundas para explicar tudo
isso, mas isso não teria ocorrido se não tivesse havido, ao mesmo tempo, a
chegada de um gênio, Bjorn Borg, que tornou isso possível. Por quê? Porque, de
acordo com Deleuze, ele trouxe um estilo particular, e ele teve que criar um tênis
de massa a partir do nada. Então, atrás dele veio uma multidão de campeões
muito bons, mas não criadores, por exemplos, tipo Vilas, etc. Assim, Borg tem um
apelo para Deleuze, sua cabeça como a de Cristo, a postura de Cristo, essa
extrema dignidade, esse aspecto que o tornou tão respeitado entre todos os
jogadores.
Parnet pergunta qu tipo de estilo Borg impôs e Deleuze descreve-o como: situado
no fundo da quadra, o mais longe possível, rodopiando, a bola colocada bem
acima da rede. Deleuze diz que qualquer “proletário” podia entender esse jogo,
não que ele fosse capaz de sair-se bem [Deleuze e Parnet dão risadas]. Assim, o
princípio mesmo – profundidade da quadra, rodopio, bola alta – é o oposto dos
princípios aristocráticos. Trata-se de princípios populares, mas que gênio era
preciso ter para isso!, diz Deleuze, exatamente como Cristo, um aristocrata que
vai ao povo. Deleuze admite que ele provavelmente está dizendo algo idiota, mas
ele achou a jogada Borg impressionante, a obra de um grande jogador.
E com McEnroe, continua ele, era um puro aristocrata, metade egípcio, metade
russo, saque egípcio, alma russa, inventando jogadas que ele sabia que ninguém
podia seguir. Assim, ele era um aristocrata que não podia ser seguido. Ele
inventou algumas jogadas prodigiosas, uma delas consistia em colocar a bola,
muito estranha, nem mesmo tocá-la, apenas colocá-la. E ele desenvolveu um
movimento de saque que era desconhecido, tanto o saque dele quanto o de Borg
foram completamente transformados. Outro grande jogador, mas sem a mesma
importância, é o outro americano, Connors, que também tinha um princípio
aristocrático, argumenta Deleuze: a bola mal acima da rede, um princípio
aristocrático muito estranho, e também batendo enquanto estava numa posição de
desiquilíbrio. Deleuze diz que Connors nunca jogou com tanto gênio quanto
quando ele estava completamente em desiquilíbrio. Deleuze diz que há uma
história do esporte, e tem que ser contada exatamente como na arte, a evolução,
os criadores, os seguidores, as mudnças, os devires do esporte.
Parnet traz Deleuze de volta à sua afirmação sobre ter assistido algo, e ele tenta
lembrar a quê ele se referia. Ele diz que é algo difícil de especificar o quê ou
quando algo realmente teve origem [em um esporte], embora Deleuze lembre algo
particular. Antes da guerra, havia alguns australianos – isto faz com que Deleuze
especule sobre as questões das origens nacionais, por que os australianos
introduziram a two-handed back swing, ao menos tanto quanto ele se lembra. Uma
jogada que o impressionou quando ele era criança era algo que teve um grande
impacto, quando eles viam que o oponente não conseguia atingir a bola, e não
podiam compreender por quê. Deleuze diz que se tratava de um golpe bastante
suave e depois de pensar seriamente sobre isso, eles viram que era a réplica do
saque. Quando o oponente dava o saque, o jogador o retornava com uma batida
bastante suave, assim ele a recebia como uma bola a meio-caminho que ele não
podia devolver. Assim, tratava-se de uma estranha resposta, porque Deleuze não
podia compreender muito bem por qual motivo ela funcionava. Na opinião de
Deleuze, o primeiro a ter sistematizado isso foi um grande jogador australiano, que
não teve uma grande carreira nas quadras de terra, chamava-se Bromwich, foi um
pouco antes da guerra ou um pouco depois (Deleuze diz que ele não lembra
exatamente). Mas ele lembra, isto sim, que quando ele criança ou jovem, ele se
impressionava com essa jogada que agora se tornou clássica. Tanto quanto ele
saiba, foi a invenção de uma resposta que a geração de Borotras não conhecia
ainda, apenas respostas simples.
Para terminar com o tema do tênis, Parnet pergunta se Deleuze pensa que
McEnroe continuará a fazer o que ele faz, quando ele ofende o juiz, na verdade
ofendendo mais a ele próprio que o juiz, e se isso é uma questão de estilo, e se
ele, McEnroe, está descontente com essa forma de expressão? Deleuze diz, sim,
é uma questão de estilo porque faz parte integral do estilo de McEnroe. Trata-se
de uma espécie de recarga nervosa, exatamente da mesma forma que um orador
fica irritado, enquanto há oradores que permanecem calmos e distantes. Assim, o
estilo de McEnroe tem isso como um dos elementos, é a alma, como se diz em
alemão, a Gemut.
Deleuze continua, argumentando que que a filosofia não está preocupada com o
uno, com o ser. Sugerir isso é uma estupidez. Em vez disso, ela está também
preocupada com singularidades. Finalmente, nós quase sempre descobrimos
multiplicidades, que são agregados de singularidades. A fórmula para as
multiplicidades e para agregados de multiplicidades é n-1, isto é, o Uno é aquilo
que deve ser sempre subtraído. Assim, Deleuze sustenta que há dois erros que
não se pode fazer: a filosofia não está preocupada com universais. Existem três
tipos de unversais: universais de contemplação – Idéias com I maiúsculo;
universais de revelação; e universais de comunicação, o último refúgio da filosofia
dos universais [Deleuze e Guattari desenvolvem essa noção em O que é a
filosofia?, cap. 1; sobre universais, ver pp........] Habermas gosta desses universais
da comunicação [Deleuze dá uma gargalhada].
Isto significa que a filosofia não é definida nem como contemplação, nem como
reflexão, nem como comunicação. Em todos os três casos, é realmente cômico,
realmente burlesco. A filosofia que contempla, ok, diz Deleuze: ela faz todo mundo
rir. A filosofia que reflete não nos faz rir, mas é ainda mais estúpida porque
ninguém precisa da filosofia para refletir. Os matemáticos não precisam da
filosofia para refletir sobre matemática. Um artista não precisa buscar a filosofia
para refletir sobre a pintura ou a música. Boulez não precisa da filosofia para
refletir sobre a música. Acreditar que filosofia seja uma reflexão sobre qualquer
coisa significa desprezar tudo. E, afinal, sobre o quê supõe-se que a filosofia
reflete?, pergunta Deleuze. Quanto à filosofia ser a restauração de um consenso
na comunicação a partir da base dos universais na comunicação, essa é a idéia
mais engraçada que já ouvi desde... Pois a filosofia não tem estritamente nada a
ver com comunicação. A comunicação é perfeitamente auto-suficente e toda essa
coisa sobre consenso e opinião é a arte das perguntas.
Deleuze reitera que a filosofia consiste em criar conceitos, o que não significa
comunicar. A arte não é comunicativa ou reflexiva, argumenta Deleuze, nem a arte
nem a ciência nem a filosofia são contemplativas ou reflexivas ou comunicativas.
Elas são criativas, simplesmente. Assim, conclui ele, a fórmula n-1 suprime a
unidade, suprime o universal. Parnet replica que Deleuze sente, portanto, que os
universais não têm nada a ver com a filosofia e Deleuze sorri, balançando sua
cabeça.
Tendo dito isso, Deleuze diz que ele sente uma grande simpatia por pessoas que
viajam, não se trata de nenhum princípio para ele, e ele diz que nem sequer
pretende estar com a razão, graças a Deus. Ele pergunta o que significa viajar
para ele? Primeiramente, há sempre um pouquinho de uma falsa ruptura, o
primeiro aspecto que faz com que a viajar para ele seja bastante desagradável.
Assim, a primeira razão: trata-se de uma ruptura barata, e Deleuze sente-se
exatamente da forma como foi expressada por Fitzgerald: uma viagem não é
suficiente para criar uma ruptura real. Se se trata de uma questão de rupturas, diz
Deleuze, há outras coisas que não a viagem, porque, afinal, o que a gente vê?
Pessoas que viajam muito, e talvez sejam orgulhosas disso, alguém disse que é
para encontrar um pai [Deleuze dá uma risada]. Eles não deveriam se dar ao
trabalho... Viajar pode realmente ser edipiano em um certo sentido, diz ele, dando
risadas. Deleuze conclui: eu digo, não, não dá!
A segunda razão está relacionada com uma frase admirável de Beckett que afetou
muito Deleuze. Beckett faz um de seus personagens dizer, mais ou menos –
Deleuze diz que é um mau citador, e a frase poderia ser dita de uma forma melhor
do que a que ele vai dizer: as pessoas são realmente idiotas, está bem, mas não
ao ponto de viajar por prazer. Deleuze acha esta frase inteiramente satisfatória:
sou idiota, diz ele, mas não ao ponto de viajar por prazer, não, não a esse ponto.
Parnet pergunta se esse tema da viagem está ligado à lentidão natural de Deleuze
e Deleuze diz, não, que ele não concebe a viagem como sendo lenta, mas que,
em todo caso, ele não sente necessidade de se mover. Todas as intensidades que
ele tem são intensidades imóveis. As intensidades se distribuem, ele diz, no
espaço ou em outros sistemas que não estão necessariamente em espaços
exteriores. Deleuze assegura a Parnet que quando ele lê um livro ou ouve música
que ele considera belo, ele realmente tem a sensação de estar entrando nesses
estados e emoções que ele nunca encontraria na viagem. Assim, pergunta ele, por
que ele buscaria essas emoções em lugares que não se quadram muito bem com
ele, enquanto ele tem as mais belas delas só para ele, em sistemas imóveis, como
a música, como a filosofia. Deleuze diz que há uma geo-música, uma geo-filosofia,
que ele considera serem países profundos, e que esses são seus países. Parnet
diz: “terras estrangeiras”, e Deleuze continua dizendo que se trata de suas
próprias terras estrangeiras, que ele não encontra viajando.
Parnet diz que ele é a perfeita ilustração de que o movimento não está localizado
no deslocamento, mas ela observa que viajou um pouco, ao Líbano para uma
conferência, ao Canadá, aos EEUU. Deleuze diz, sim, mas ele tem que dizer que
ele sempre foi arrastado e que ele não faz mais isso porque ele nunca deveria ter
feito tudo aquilo, ele sente que ele fez muito. Ele também diz que na época ele
gostava de andar e agora ele anda menos bem, assim ele não viaja mais. Mas ele
lembra andando sozinho nas ruas de Beirute, da manhã até à noite, não sabendo
para onde estava indo. Ele diz que ele gosta de ver uma cidade a pé, mas que
isso acabou. [Deleuze acena com a cabeça].
Parnet diz, vamos para a letra W e Deleuze diz, não há nada em W. Parnet diz,
sim, há Wittgenstein. Ela sabe que ele não significa nada para Deleuze, que é
apenas uma palavra. Deleuze diz que ele não gosta de falar sobre... Trata-se de
uma catástrofe filosófica. É exatamente o tipo de uma “escola”, uma regressão de
toda filosofia, uma imensa regressão. Deleuze considera o tema Wittgenstein
muito triste. Eles impuseram um sistema de terror no qual, sob o pretexto de fazer
algo novo, trata-se da pobreza apresentada como grandeza. Deleuze diz que não
existe nenhuma palavra que possa expressar esse tipo de perigo, mas esse perigo
é um perigo recorrente, que não foi a primeira vez que ocorreu. É uma coisa séria,
uma vez que ele acha que os wittgensteinianos são nocivos e destrutivos. Assim,
pode haver um assassinato da filosofia, eles são assassinos da filosofia, e por
causa disso, devemos continuar vigilantes. [Deleuze dá uma risada].
INÍCIOSPAÇOZ de ZiguezagueSPAALFABETO
Parnet diz que eles estão na última letra, Z, e Deleuze diz, “já era tempo!”. Parnet
diz que não é o Z de Zorro, o Justiceiro, já que Deleuze deixou claro, ao longo de
todo o alfabeto, que ele não gosta de julgamentos. É o Z de bifurcação, de
iluminação, é a letra que encontramos em nomes de grandes filósofos: Zen,
Zaratustra, Leibniz, Nietzsche, Spinoza, BergZon [Deleuze dá uma risada] e,
naturalmente, o próprio Deleuze. Ele acha que o Z é uma grande letra que
estabelece um retorno a A, a mosca, o movimento de ziguezague da mosca, o Z,
a palavra final, nenhuma palavra depois do ziguezague. Deleuze acha bom
terminar com esta palavra.