Sei sulla pagina 1di 7

OPINIÃO OPINION 425

A saúde indígena no processo de implantação


dos Distritos Sanitários: temas críticos
e propostas para um diálogo interdisciplinar

Renato Athias 1,2


Marina Machado 2

1 Programa de Pós Abstract


Graduação em Antropologia,
Key words
Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade
Federal de Pernambuco. Resumo A proposta do presente trabalho é a de expor, a partir das experiências dos autores, al-
Rua Prof. Moraes Rego s/n o
guns problemas que se apresentam no atual processo de implantação dos distritos sanitários in-
13 o andar, Cidade
Universitária, Recife, PE dígenas, relacionados à organização dos serviços de saúde segundo o entendimento de profissio-
50670-901, Brasil. nais de saúde e de antropólogos. Para tal, os autores reportam-se aos conceitos fundamentais
zarabata@elogica.com.br
2 Associação Saúde inerentes ao modelo de Distrito Sanitário, explicitam-nos e, por fim, apresentam as abordagens
Sem Limites. que estão sendo usadas comumente no processo de distritalização para as populações indígenas.
C. P. 31, São Gabriel As experiências vivenciadas pelos autores referem-se à região do Alto Rio Negro – no noroeste
da Cachoeira, AM
69670-000, Brasil.
amazônico, representando uma realidade de 10% do total da população indígena do Brasil – e à
<http://www.ocara.org.br/ssl>. região Nordeste – mais especificamente, o Estado de Pernambuco – com população indígena es-
timada em 20.000 indivíduos.
Palavras-chave Índios, Distritos Sanitários, Saúde Indígena

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):425-431, mar-abr, 2001


426 ATHIAS, R. & MACHADO, M.

Introdução dade é importante e necessária, pois reflete as


características de cada área. No entanto, dadas
O atual modelo de organização dos serviços de as diversas formas de contato das populações
saúde para as áreas indígenas, na concepção indígenas com a sociedade envolvente e, em
de Distritos Sanitários, nasceu no âmbito das conseqüência, os diferentes estágios de organi-
Conferências Nacionais de Saúde, no início da zação política frente a esta mesma sociedade,
década de noventa, no bojo do movimento da o processo de distritalização nas áreas indíge-
Reforma Sanitária. Porém, somente na II Con- nas tende a desenvolver-se de forma variada de
ferência Nacional de Saúde para os Povos Indí- região para outra. Em determinadas regiões,
genas (II CNSPI), ocorrida em 1993, este mode- como a Amazônia, onde a organização política
lo foi referendado pelo movimento indígena e das populações indígenas tem histórico mais
por profissionais de saúde que atuam com es- longo, a possibilidade de participação no con-
tas populações. A proposta versava a respeito trole social das ações de saúde torna-se mais
da implantação de um modelo de saúde ade- viável. Em outras regiões, como no Nordeste e
quado às áreas indígenas, inserido em um sub- Centro-Oeste e também no Sul do país, o exer-
sistema de atenção à saúde ligado ao Sistema cício do controle social em saúde deverá ser es-
Único de Saúde (SUS). A partir daí, a concep- timulado pelas instituições que estarão respon-
ção e o modelo de Distrito Sanitário Especial sáveis pela execução dos serviços de saúde e
Indígena (DSEI) passou a ser reivindicação per- pela implantação e funcionamento regular dos
manente na pauta do movimento indígena or- Conselhos Distritais de Saúde com a participa-
ganizado, bem como dos profissionais de saú- ção efetiva dos índios. Apesar de toda essa di-
de das áreas indígenas. versificação e das dificuldades pertinentes a to-
A decisão política de implantar o modelo do o processo de democratização e de inclusão
assistencial referendado pela II Conferência social, existe o vislumbre de serem gerados mo-
foi tomada pela Fundação Nacional de Saúde delos sanitários que atendam às necessidades
(FUNASA) ao final de 1998, obedecendo, em li- básicas e estratégicas das comunidades indíge-
nhas gerais, a proposta da II CNSPI no que se nas no Brasil, desde que seja mantida a linha
refere à participação social na elaboração das política de distritalização da saúde indígena.
políticas de saúde. No entanto, apresenta algu- Grande parte dos antropólogos que estão
mas distorções quanto ao aspecto de autono- trabalhando nas áreas indígenas tiveram ou
mia orçamentária e financeira dos DSEIs. O mo- têm ligações com a questão da saúde indígena.
delo administrativo adotado pela FUNASA con- A saúde é tema central em muitas regiões em
tém duas vertentes. Na primeira, as Coordena- virtude da situação precária, em termos de
ções Regionais da FUNASA atuam como ordena- acesso aos serviços de saúde, a que a maioria
doras de despesas e, por conseguinte, contro- dos povos indígenas do Brasil estão submeti-
lam os recursos financeiros destinados aos Dis- dos. Pode-se notar que, nos últimos 30 anos,
tritos; na segunda modalidade administrativa, vários projetos de saúde foram iniciados nas
o nível central da FUNASA realiza a celebração áreas indígenas – em especial, por organiza-
de convênios com organizações indígenas, Or- ções não-governamentais – com apoio de re-
ganizações Não-Governamentais (ONGs), Se- cursos provindos da cooperação internacional.
cretarias de Saúde e universidades para a exe- Os resultados advindos destes projetos consti-
cução das ações de saúde nas áreas indígenas. tuem-se em acervo significativo de experiên-
Sendo assim, para que haja, de fato, uma orga- cias em saúde indígena. Neste trabalho, não
nização dos serviços de saúde que possibilite o iremos analisar essas experiências e sim referi-
atendimento das demandas atuais e promova las no contexto desse processo de distritaliza-
uma postura mais próxima às propostas refe- ção. Isso implica ressaltar que há um saber an-
rendadas na II Conferência, torna-se necessá- tropológico construído a partir de práticas sa-
ria a discussão do modelo administrativos pre- nitárias em áreas indígenas com mais de 30
conizados neste momento pela FUNASA. anos de existência. As experiências efetuadas
Os Distritos que estão sendo implantados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI)/FUNAI
em todo o Brasil contemplam as características também merecem ser sistematizadas, pois há
peculiares de cada área indígena e estão sendo mais de 50 anos que a agência oficial mantém
concebidos dentro de um processo de discus- projetos de saúde em áreas indígenas. Este sa-
são que envolve vários atores sociais, tais co- ber deve ser sistematizado ou classificado nas
mo: as organizações indígenas, os profissionais diversas abordagens em saúde indígena, a fim
de saúde, as ONGs, as universidades e órgãos de ressaltar as experiências que deram resulta-
federais como a FUNASA e a Fundação Nacio- dos significativos e divulgá-las tanto aos pres-
nal do Índio (FUNAI). De um lado, esta plurali- tadores de serviços quanto aos formuladores

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):425-431, mar-abr, 2001


SAÚDE INDÍGENA E IMPLANTAÇÃO DOS DISTRITOS SANITÁRIOS 427

de políticas de saúde, no sentido de colaborar ganizados com a participação da sociedade or-


com o trabalho dos mesmos, assim como no de ganizada para desenvolver ações de saúde ca-
contribuir para a melhoria das condições de vi- pazes de resolver a maior quantidade possíveis
da e de saúde dos povos indígenas. de problemas de saúde” (Capote, 1988:17-26).
O presente trabalho propõe apresentar, a Portanto, a noção de Distrito Sanitário in-
partir das experiências dos autores, alguns pro- dígena está centrada na organização da presta-
blemas que se apresentam neste processo de ção de serviços de saúde pertinentes a cada
implantação dos distritos sanitários indígenas realidade étnica, de forma que as ações decor-
segundo o entendimento dos profissionais de rentes sejam eficazes para determinada popu-
saúde e de antropólogos relacionados à orga- lação indígena, sendo fundamental a partici-
nização dos serviços de saúde. Preferimos a de- pação das diversas instâncias organizativas in-
signação Distrito Sanitários Indígena, sem a dígenas na formulação das políticas do setor.
qualificação de Especial, pois o termo Indígena As experiências deveriam apontar os proble-
já indica que é específico. Para tal, os autores mas no nível organizativo, cuja resolução de-
reportam-se aos conceitos fundamentais ine- veria ser encontrada no local.
rentes ao modelo de distrito, explicitam-nos e, Os distritos sanitários, na qualidade de pro-
por fim, expõem as abordagens que estão sen- cessos sociais de mudança das práticas sanitá-
do usadas comumente nesse processo de dis- rias, não são entendidos como tal pela maioria
tritalização. As experiências concretas viven- dos profissionais de saúde que atuam no âm-
ciadas pelos autores referem-se à região do Al- bito da saúde pública e, tampouco, pelos admi-
to Rio Negro – no noroeste amazônico, repre- nistradores de sistemas locais de saúde, dando
sentando uma realidade de 10% do total da po- lugar a duas estratégicas bem identificadas por
pulação indígena do Brasil – e à região Nordes- Mendes (1995). O autor assinala que, no âmbi-
te – mais especificamente, o Estado de Per- to dos processos de implantação dos distritos
nambuco – com população indígena estimada sanitários, observam-se duas práticas recor-
em 20.000 indivíduos. rentes. Uma, que identifica como “topográfica-
burocrática”, a qual reduz as atividades de or-
ganização dos serviços de saúde no âmbito de
Distritos Sanitários território específico sem se desvencilhar dos
vícios existentes na prática administrativa. Ou
Os Distritos Sanitários foram implantados no seja, não rompe com o paradigma assistencial;
Brasil a partir de 1987 (Mendes, 1995:11) e exis- apenas criam-se novos espaços burocráticos
te literatura significativa acerca dessas expe- sem mudar de fato as formas de prestação de
riências no âmbito da saúde pública. As pri- serviços e, por conseqüência, o distrito não vai
meiras iniciativas remontam ao processo de além de uma reforma administrativa. A outra
distritalização apoiado pela Organização Pan- estratégia referida pelo autor é a que identifica
americana de Saúde (OPAS)/Organização Mun- o distrito como “processo social”, procurando
dial de Saúde (OMS), que canalizavam a im- atuar no âmbito das mudanças na prestação de
plantação de distritos em municípios conside- serviços e na inclusão de práticas sanitárias de
rados estratégicos. Os primeiros municípios a modo a obter impacto na situação de saúde da
iniciar essa forma de organização de serviços população.
foram Salvador, Curitiba e São Paulo. Tais ex- Como foi citado anteriormente, a saúde in-
periências estavam relacionadas à idéia de Dis- dígena não tem avaliação mais global, até o
trito Sanitário como processo social de mudan- presente, sobre as diferentes formas existentes
ças das práticas sanitárias e remetem a núme- das práticas. Os diversos projetos de saúde im-
ro significativo de discussões e avaliações rea- plantados na áreas indígenas não chegaram a
lizadas por sanitaristas e especialistas em saú- formular consenso mínimo de como os servi-
de pública. Vale lembrar que essas experiências ços de saúde seriam melhor organizados, ten-
encontram respaldo importante na coopera- do em vista sua relação ou não com um mode-
ção internacional italiana no sentido de docu- lo nacional que também optou por favorecer
mentação e divulgação das mesmas. os sistemas locais de saúde. Em outras pala-
Neste trabalho estamos trabalhando com a vras, ainda não há reflexão mais ampla no to-
noção de Distrito Sanitário que é reconhecido cante a como organizar um subsistema de saú-
como “unidade operacional e administrativa de indígena relacionado com o SUS.
mínima do sistema de saúde, definida com cri- O SUS oferece, como concepção geral, a
térios geográficos, populacionais, epidemiológi- possibilidade de criação de sistemas de saúde
cos, administrativos e políticos, onde se locali- baseados na realidade local, o que favoreceria
zam recursos de saúde públicos e privados, or- a diversidade de modelos. No âmbito da saúde

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):425-431, mar-abr, 2001


428 ATHIAS, R. & MACHADO, M.

indígena, o que se observou nestes últimos anos A participação indígena nesse processo de
foi uma divisão dos serviços entre a FUNAI e a elaboração consolida o espaço que as organi-
FUNASA: a primeira, com atividades eminen- zações indígenas conquistaram ao longo dos
temente curativas e a segunda, com atividades anos. Existem, na região, cerca de 28 associa-
de prevenção. Em se tratando de modelos de ções indígenas, filiadas à Federação das Orga-
saúde e sob a perspectiva de comando único nizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), que
de ações, essa dicotomia mostrou-se inviável e as congrega desde 1986. O trabalho da FOIRN
incoerente, criando relações paternalistas para está direcionado à defesa dos direitos indíge-
determinadas populações indígenas e gerando nas quanto à demarcação de terras, educação e
a impossibilidade de execução de serviços de saúde. As Terras Indígenas do Rio Negro foram
saúde de maneira integral. demarcadas em 1998, após processo de luta de
20 anos. Semelhante acúmulo de experiência
em termos de participação social capacitou o
Distrito Sanitário Indígena movimento indígena no Rio Negro a expressar
do Rio Negro suas demandas no momento da concepção do
modelo assistencial e a participar das fases de
A elaboração da proposta de organização dos execução e avaliação das atividades.
serviços de saúde para a região do Alto Rio Ne-
gro foi fruto de intenso trabalho de articulação
interinstitucional, que se vem consolidando Distrito Sanitário Indígena
desde 1997, a partir da II Conferência de Muni- em Pernambuco
cipal de Saúde, e contou com a participação de
representantes indígenas e dos profissionais de Vivem no Estado de Pernambuco cerca de 20.000
saúde ligados ao setor de toda a região, de polí- índios, distribuídos em oito diferentes etnias,
ticos locais, inclusive com as Forças Armadas, que habitam a região do Agreste e do Sertão;
que têm representação bem expressiva na área. contudo, a maioria das terras indígenas não foi
A região do Alto Rio Negro possui caracte- demarcada e ainda está em processo de identi-
rísticas bastante peculiares quanto aos povos ficação. As ações de saúde eram realizadas sem
indígenas que ali habitam – tais como a exten- a preocupação de desenvolver uma reflexão
são territorial e as dificuldades de acesso às co- em torno da especificidade de uma organiza-
munidades indígenas –, apresentando-se co- ção dos serviços de saúde apropriada a essas
mo grande desafio à elaboração de uma pro- populações e estiveram, até então, sob a res-
posta de Distrito Sanitário adequada a esse ter- ponsabilidade da FUNAI e dos municípios on-
ritório (Oliveira et al., 1997). O Município de de as aldeias indígenas estão localizadas. A prá-
São Gabriel da Cachoeira, sede distrital, conta tica dessas ações de saúde seguiam o modelo
com 108.000 km2 de extensão, e é entrecortado assistencialista, efetuada pela FUNAI e, nos pe-
pelos rios formadores da Bacia do Rio Negro, ríodos eleitorais, pelos municípios. Não exis-
em que há diversos trechos encachoeirados, tem registros de trabalho de ONGs com popu-
motivo pelo qual, muitas vezes, para passar de lações indígenas em Pernambuco.
uma a outra comunidade torna-se necessário As organizações indígenas em Pernambuco
que os profissionais de saúde e os comunitá- priorizam, em toda a sua mobilização, a ques-
rios façam um trecho a pé, transportando todos tão da demarcação de suas terras e, conseqüen-
os equipamentos necessários ao trabalho de temente, a da afirmação da identidade étnica.
saúde. Pensar na operacionalização desses ser- A problemática da saúde vem em segundo pla-
viços com vistas à melhoria no acesso aos ser- no, sob a forma de reivindicações específicas
viços de saúde para as populações que residem e pontuais. Neste contexto, a implantação do
nessa região exige esforço técnico de modo a Distrito Sanitário Indígena ocorreu de forma
adequar as rotinas de trabalho sem perda de verticalizada, e o movimento indígena não dis-
qualidade. pôs do tempo necessário para entender a pro-
A articulação interinstitucional constituída posta como um todo e discuti-la adequada-
revela a maturidade das organizações e entida- mente. Houve uma única reunião promovida
des de saúde que atuam na região, uma vez que pela FUNASA em abril de 1999, da qual partici-
nenhuma delas tem capacidade operacional param as lideranças indígenas, em que se tra-
para dar conta das 600 comunidades indígenas tou basicamente da definição do território dis-
existentes. A sustentabilidade do modelo assis- trital. Em seguida deu-se início ao processo de
tencial para esta realidade depende do trabalho implementação da proposta em ritmo acelera-
mais intenso na formação de agentes indígenas do, sem a participação indígena em seu acom-
de saúde e de outros recursos humanos locais. panhamento e desenvolvimento. A equipe da

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):425-431, mar-abr, 2001


SAÚDE INDÍGENA E IMPLANTAÇÃO DOS DISTRITOS SANITÁRIOS 429

FUNASA do nível local não elaborou uma prá- Seria interessante iniciar essa discussão pe-
tica de diálogo com os usuários dos serviços, o la análise da noção de participação. A partici-
que tem provocado reflexos importantes no pação, enquanto tema relativo ao desenvolvi-
processo de implantação do distrito. mento social, mereceu atenção em literatura
As articulações do Distrito estão sendo fei- vasta e, em particular, quando se trata de parti-
tas diretamente com os municípios que vão in- cipação em saúde, os registros são bastante ex-
corporar a execução de ações de saúde nas pressivos no Brasil. A formação dos profissio-
áreas indígenas através de convênios especí- nais de saúde no país está voltada prioritaria-
ficos, que prevêem a contratação de equipes mente para a intervenção e atendimento indi-
multidisciplinares para a prestação de serviços vidual da demanda espontânea, pautado pela
de saúde naquelas localidades. Cabe ressaltar ética profissional, o que os responsabiliza pela
que o Ministério da Saúde (MS)/FUNASA está luta na preservação da vida. Muitas vezes, isso
investindo uma série de incentivos financeiros dificulta a percepção mais ampla da necessida-
nos municípios – procurando seguir os parâ- de de participação do grupo social nos aspec-
metros adotados na Norma Operacional Básica tos inerentes à atenção a saúde. Neste sentido,
do SUS/96 –, para que sejam estimulados a exe- existe uma prática de organização de serviços
cutar a Atenção Básica nas comunidades indí- de saúde que relega a segundo plano a partici-
genas. Desta forma, as equipes de saúde para o pação social, perdendo-se assim a oportunida-
distrito estão sendo escolhidas e contratadas de de diálogo, por exemplo, entre a prática mé-
pela prefeitura local, o que pode envolver um dica ocidental e a medicina tradicional, a qual
jogo de interesses políticos às portas de ano pode contribuir para o desenvolvimento de um
eleitoral, sem considerar necessariamente a sistema local de saúde adequado à realidade
melhoria do acesso aos serviços de saúde. Em dos povos indígenas. Os antropólogos – cuja
outras palavras, a organização dos serviços de formação está voltada ao conhecimento mais
saúde nessa região está sendo feita sem discus- aprofundado de determinado grupo popula-
são mais ampla com a população indígena, cional – poderiam estabelecer tal ligação, bus-
afora que a inserção desse subsistema de saú- cando instrumentos de facilitação dessa dis-
de no SUS aponta para distorções históricas da cussão para que o diálogo seja efetivado.
saúde pública no país, apropriadas ao uso po- Outra área de conhecimento que conside-
lítico-eleitoral da questão. ramos central neste processo de implantação
dos distritos é a de planejamento e organização
dos serviços de saúde. Neste aspecto encontra-
Discursos e práticas mos diferentes abordagens, pois a noção de or-
ganização dos serviços de saúde, para que seja
A partir das duas experiências narradas resu- eficiente e eficaz, demandaria informações bá-
midamente, torna-se possível verificar os ca- sicas sobre as populações indígenas no tocante
minhos pelos quais o processo de distritaliza- a suas concepções de doença e saúde, essen-
ção da saúde indígena pode passar, bem com ciais para estabelecer um processo de planeja-
explicitar que este não foge da realidade dos mento que contemple as necessidades básicas
processo de luta pelo estado de bem-estar so- e estratégicas do grupo indígena em que se está
cial no país. atuando. A dificuldade torna-se maior, pois os
Em se tratando do tema pertinente a este profissionais de saúde não são tão flexíveis em
trabalho, pode-se também localizar elementos aceitar “outros” modelos, que fogem àqueles já
com os quais é possível elaborar um arcabouço preconizados de assistência de saúde. Essa difi-
de informações importantes para profissionais culdade é resultado de uma lacuna em seu pro-
de saúde e antropólogos, com vista ao melhor cesso de formação acadêmica pela não inclu-
entendimento das possibilidades do desenvol- são de disciplinas relativas às Ciências Sociais
vimento de sistemas locais de saúde democráti- e à Antropologia da Saúde nos currículos. A con-
cos e culturalmente sensíveis. Abrindo essa dis- cepção de saúde e doença existente entre os po-
cussão em aspecto mais amplo, elencaremos vos indígenas interfere no modelo de assistên-
espaços e temas de conhecimento nas quais os cia já preconizado, e os profissionais de saúde,
autores percebem a existência de convergên- pela falta de conhecimento mais aprofundado
cia, divergência e complementaridade nos dis- dessas concepções, encontram dificuldade em
cursos de antropólogos e profissionais de saú- adaptar tais modelos, provocando assim difi-
de, visando uma prática adequada quanto à culdades na organização dos serviços de saúde.
atenção à saúde dos povos indígenas e esclare- Esses modelos organizados no conheci-
cendo que esses discursos não estão generali- mento epidemiólogico concentram as seguin-
zados entre estes profissionais. tes etapas: 1) as doenças que mais ocorrem na

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):425-431, mar-abr, 2001


430 ATHIAS, R. & MACHADO, M.

área; 2)o que afeta a população; 3) soluções de o potencial existente com relação ao território
problemas de saúde; e 4) acompanhamento e de um distrito. No entanto, a questão de defini-
avaliação. A maior flexibilidade neste aspecto ção de um território distrital tem sido um dos
proporcionaria abertura mais ampla para a elementos mais conflitantes no processo de
compreensão e identificação clara dos proble- distritalização nas áreas indígenas. Essa dis-
mas de saúde, surgindo, em decorrência disso, cussão merece debate mais amplo com possi-
um modelo de atendimento mais adequado à bilidades bastante inovadoras, uma vez que
realidade indígena local. permite o desenvolvimento de sistemas locais
Essas concepções diferenciadas encon- de saúde que tomem em conta as bases geopo-
tram-se centradas na idéia de acesso aos servi- líticas e os sistemas médicos dos grupos indí-
ços de saúde, com diferentes abordagens entre genas. Um território distrital, em nossa con-
antropólogos, profissionais de saúde e, tam- cepção, vai além de uma base física relaciona-
bém, entre os grupos indígenas. As diferentes da ao solo, constituindo uma extensão definida
noções de acesso aos serviços de saúde são em termos de organização social dos grupos
provenientes da falta de clareza e compreensão indígenas, portanto, um território econômico,
mais ampla dos diversos problemas de saúde político, cultural e, sobretudo, epidemiológico.
identificados. Esses problemas são referidos de Em virtude da incompreensão de uma geopolí-
diversas formas sem discussão mais ampla, o tica indígena e da falta de conhecimento mais
que entendemos necessário antes mesmo de aprofundado acerca da epidemiologia, a dis-
iniciar qualquer tipo de planejamento em saú- cussão dos territórios distritais torna-se ainda
de. E neste caso, por exemplo, uma simples fe- mais importante no sentido de garantir servi-
bre pode-se tornar uma grande complicação ços eficientes de saúde. E, neste aspecto, as ló-
em uma área indígena. Em outras palavras, o gicas de entendimento tanto de profissionais
nível de complexidade não é o mesmo e a gra- de saúde quanto de antropólogos não entram
vidade da situação será referida sob diversas em acordo. Os primeiros, centralizam seus dis-
formas aos prestadores de serviços de saúde. cursos na organização dos serviços de forma
Assim, os dados antropológicos relativos bastante operacional, em detrimento de pro-
aos grupos indígenas deveriam ser melhor ex- curar desenvolver sistemas locais que pudes-
plicitados, de forma a garantir adequada com- sem contemplar outros elementos, como, por
preensão dos problemas por parte dos profis- exemplo, os mecanismos locais da medicina
sionais de saúde. Por sua vez, os antropólogos indígena, os quais enriqueceriam o modelo lo-
não dispõem de conhecimento mais específico cal a ser proposto. Os antropólogos, por sua
no que se refere à organização de serviços de vez, têm dificuldade de explicitar com maior
saúde e ao potencial criativo de sistemas locais clareza todos os conhecimentos relativos a
de saúde que poderiam vir a ser construídos uma “geopolítica” indígena, que conformaria a
mediante a incorporação das diversas concep- melhor compreensão das ações de saúde em
ções do processo saúde/doença existentes en- território específico. No âmbito mais amplo dos
tre os grupos indígenas. Já existe literatura ex- discursos entre antropólogos podemos identi-
pressiva sobre essas concepções (Buchillet, ficar convergência quando se trata da questão
1992, 1997; Athias, 1998) que mereceriam maior do território e que poderia ser complementada
atenção. Neste aspecto, pode-se verificar que o com informações mais precisas. A dificuldade
discurso antropológico busca fortalecer a me- está na falta de espaços de discussões sobre es-
dicina tradicional sem, no entanto, haver uma sa questão que abordem o tema da organiza-
abordagem de complementaridade com o sis- ção dos serviços de saúde como elemento aglu-
tema médico ocidental. Na Colômbia, onde ha- tinador dos diversos conhecimentos.
bitam também as mesmas etnias existentes no O que se observa, por exemplo, no proces-
Rio Negro, tivemos notícias que, por um perío- so de distritalização em Pernambuco, é um en-
do, o ‘pajé’ indígena teve inserção oficial no tendimento por parte dos profissionais de saú-
sistema de saúde local, demonstrando a possi- de, de conformar o território do distrito de
bilidade de efetivar uma real valorização dos acordo com os limites municipais. Neste tipo
conhecimentos médicos tradicionais. Conhe- de prática, as prefeituras locais receberão par-
cer essas experiências torna-se necessário e cela maior de recursos para atuar na área indí-
nossa vivência leva-nos a refletir sobre a noção gena, mas verifica-se historicamente que essas
de acesso à saúde que incorpore os sistemas prefeituras não executam os serviços de saúde
médicos tradicionais à organização das refe- planejados, pois estão presas a práticas clien-
rências dos serviços. telistas ligadas ao voto eleitoral. Neste sentido,
As duas experiências de distritalização rela- o processo de distritalização em Pernambuco
tadas anteriormente mostram a diversidade e não aponta à melhoria dos serviços de saúde

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):425-431, mar-abr, 2001


SAÚDE INDÍGENA E IMPLANTAÇÃO DOS DISTRITOS SANITÁRIOS 431

para as populações indígenas, que não têm es- de informação em saúde indígena, ainda ne-
paço para discutir essas práticas – o diálogo é cessária para melhor garantir a implantação
inexistente – uma vez que a relação com as pre- dos distritos sanitários indígenas. Um sistema
feituras locais não ocorrem de modo pacífico. de informação deveria ser capaz de:
Por último, outra área de conhecimento em • identificar efetivamente os problemas e os
que é possível existir divergência de entendi- recursos para gerenciamento local;
mento está relacionada ao sistema de informa- • registrar as especificidades e melhorar a dis-
ção, sobretudo na discussão da elaboração de criminação das informações produzidas em
instrumentos que contemplem informações campo;
pertinentes para subsidiar o planejamento das • envolver a população local e os profissio-
ações e na vigilância em saúde. Neste aspecto nais do distrito na coleta de informações;
observa-se a necessidade, durante a elabora- • ser prático na coleta de informações;
ção ou adaptação desses instrumentos, de ha- • fornecer dados precisos para melhor geren-
ver maior complementaridade entre os conhe- ciamento e que alimentem o sistema nacional
cimentos dos antropólogos e dos profissionais de informação em saúde.
de saúde, criando subsídios para que o sistema Para finalizar, gostaríamos de voltar ao te-
de informação em saúde para os distritos sani- ma da participação, que está intimamente vin-
tários indígenas seja concebido sob uma ópti- culado à mudança da prática sanitária que se
ca de praticidade e de flexibilidade que leve em pretende efetuar na saúde indígena. Acredita-
consideração a diversidade cultural das popu- mos que o envolvimento da população indíge-
lações indígenas. Esses sistemas deveriam ser na seja de extrema importância para direcio-
responsáveis pelo gerenciamento do distrito de nar as práticas de saúde nos distritos sanitários
forma integrada aos diversos sistemas de infor- indígenas. Insistimos que a condução do pro-
mação já adotados no nível nacional. Julgamos cesso de distritalização implica a identificação
necessário uma avaliação crítica desses siste- clara de todos os aspectos culturais que envol-
mas para poder compreender a lógica de fun- vem o território distrital e exige contínua ava-
cionamento que os direciona. Neste sentido, os liação a cada passo do processo.
antropólogos enfatizam a necessidade de criar A prática sanitária desenvolvida até então
um sistema de informação que contemple as nas áreas indígenas tem sido pontual e indivi-
especificidades étnicas de cada grupo indíge- dualizada, enfrentando problemas em níveis
na. Na realidade existe, por parte dos antropó- locais sem referência mais ampla. Poderíamos
logos, desconhecimento dos sistemas de infor- designar essa prática como imediatista e cen-
mação já existentes tanto na sua prática quan- trada na demanda espontânea. O que se preten-
to na relação com o SUS. E essa falta de conhe- de com os distritos sanitários indígenas é justa-
cimento abre a possibilidade de divergências, mente mudar essa prática e, para tanto, deverá
sobretudo ao se tratar da ‘integração’ ao siste- haver maior participação indígena no âmbito
ma nacional de informação em saúde, haven- do entendimento do Distrito Sanitário como
do a necessidade de estudar as possíveis adap- processo social. Neste caso, a prática sanitária
tações no sistema de informação existente. é vista como enfrentamento contínuo dos pro-
A seguir, elencamos pontos básicos que po- blemas previamente discutidos, de modo que a
dem orientar a discussão relativa aos sistemas vigilância à saúde torne-se um imperativo.

Referências

ATHIAS, R., 1998. Doença e cura – Sistemas médicos Saúde (Silos) (Secretaria Estadual de Saúde, org.),
e representação entre os Hupdë-Maku da região pp. 17-26, São Paulo: Instituto da Saúde, Secre-
do Rio Negro, Amazonas. Horizontes Antropológi- taria Estadual de Saúde.
cos, 9:237-260. MENDES, E. V., 1995. Distrito Sanitário – O processo
BUCHILLET, D., 1992. Os povos Tukano e a questão social de mudança das práticas sanitárias do
da saúde. Amazonas em Tempo, Manaus, 29 jan. SUS. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro:
Caderno Cultura, p. 8. Abrasco.
BUCHILLET, D., 1997. Tuberculose, busca de assis- OLIVEIRA, N.; MACHADO, M.; ARGENTINO, S. &
tência médica e observância terapêutica na Ama- ATHIAS, R., 1997. Considerações sobre a saúde das
zônia brasileira. França – Flash Saúde, n. 11. populações indígenas do Rio Negro. São Paulo: As-
CAPOTE, R., 1988. O Processo de organização e a re- sociação Saúde Sem Limites, Relatório (mimeo)
gionalização dos serviços. In: Sistemas Locais de

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):425-431, mar-abr, 2001

Potrebbero piacerti anche