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ancestry as an
união vital dos elementos naturais e sociais
constitutivos do homem caracteriza sua
manifestação no mundo terrestre. A dissolução
epistemological dessa união estabelece um novo estado existencial.
A morte, portanto, permite a última transfiguração
Introdução
Têm sido aceitáveis as afirmações de que, após o advento da física quântica, da teoria da
relatividade, da biologia molecular e da tecnologia da informação, não podemos mais falar de uma
racionalidade, senão em racionalidades e deveríamos falar também das racionalidades das
irracionalidades. O mito não pode ser tratado apenas com uma pré-compreensão, mas como
outra forma de pensar e representar o conhecimento. A velha divisão mito, filosofia e ciência
como sinais evolutivos da humanidade não mais se aplica. O mito está reaparecendo como
intercrítica da razão e da fé e devemos falar sobre as diversas maneiras de se ter razão.
Os gregos fizeram uma hierarquização dos caminhos do aprender e alcançar o que
chamavam de conhecimento. O mito seria uma antessala para aquele momento mais
fundamentado e verificável para se chegar ao verdadeiro conhecimento. A ciência se contrapõe ao
mito, por sua condição superficial e fantasiosa do mundo. No entanto, a ciência também se tornou
uma máquina de produção de mitos, tornando este conceito uma forma generalista de falar de
uma acepção negativa do conhecimento possuidora de uma capacidade insidiosa de encobrir a
verdade. Ora, sabemos que todos os povos do planeta terra desenvolveram linguagens (formas
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Odeere: Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB.
ISSN: 2525-4715 – Ano 2018, Volume 3, número 6, Julho – Dezembro de 2018.
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“(...) são movidos por uma necessidade ou um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e
sociedade em que vivem. Para atingirem estes objectivos agem por meios intelectuais exactamente como faz um
filósofo ou até um cientista” (LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Tradução: Antônio Marques Bessa. Lisboa:
Edições 70, 1978).
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regras.
A tendência quase sempre de colocar a harmonia e a conciliação do grupo (Ubuntu) como
critério acima de outros para decidir conflitos é uma prática que localiza uma primeira valoração
do universo comunitário em detrimento da pessoa. Em sua tese de doutoramento pela USP,
intitulada Os Basanga de Shaba – um grupo étnico do Zaire: ensaios de antropologia social,
Munanga aborda a relação jurídica do homem com a terra e suas implicações para a comunidade
e salienta para esta subordinação dos direitos da comunidade ao direito isolado das pessoas2.
Nossas motivações e leituras de mundo sustentam-se no pressuposto em que as
moralidades geram eticidades e as eticidades geram juridicidades3. Neste contexto eticidade
assevera que a juridicidade, embora supostamente estática, é sempre dinâmica, hermenêutica e
plural contendo elementos emancipatórios numa perspectiva trans-histórica. Tal correspondência
une o destino a um passado que influencia o modo ancestre de decidir sobre as situações do
presente. A existência de organizações políticas, comunitárias e tradicionais no continente
africano e na diáspora comprova a forma costumeira e conciliadora de lidar com os conflitos e ela
nos influencia numa perspectiva de que a contingência da nova experiência ético-jurídica africana
e afro-brasileira pode ser experienciada através de um discurso de origem e não de finalidade.
Quando a comunidade enfrenta um conflito a ser resolvido quase sempre é reivindicado um
código ancestral, uma lembrança mítica que informa ou auxilia na resolução adotada.
Pensar ou exercitar uma epistemologia afro-brasileira a partir da ancestralidade, significa,
além de tudo, uma tomada de posição frente ao mundo e seus acontecimentos. Pressupõe uma
postura ética frente a uma camada questionável de pensamentos e saberes identificáveis como
africanos. O que invoca posições de atrelamento e dúvida. A primeira posição reproduzida no que
tange à escolha de uma sequência de narrativas e dados que podem assimilar às perguntas
gnosiológicas dos primeiros humanos nascidos em solo africano, e a segunda, de dúvida, porque
não podemos dogmatizar os ensinamentos, os mais variados, se quisermos alcançar uma
sabedoria mais ampla do mundo, e, com ele, a possibilidade de adotarmos chaves explicativas
para alcançar modelos os mais supremos de humanismo, verdade e justiça.
2
“Munanga nos diz que, como o pertencimento à coletividade é uma condição do indivíduo, então a propriedade é de
toda coletividade. Esta mesma propriedade pode receber novas pessoas e coletividades a partir das experiências
históricas do processo de ocupação e conquistas, desde que se preserve as relações sociais as ligam. Cita como exemplo,
a chegada dos Bayeke, emigrados da Tanzânia, que são acolhidos e ainda conservam certos direitos junto a nova
coletividade, sem ferir a noção de patrimônio comum próprios desses povos. Nesse caso, é evidente a preservação do
instituto do usufruto coletivo em detrimento da propriedade particular” (MUNANGA, Kabenguele. Os Basanga de
Shaba – um grupo étnico do Zaire: ensaios de antropologia social. São Paulo, FFLCH, 1986, p. 207-208).
3
Aqui nos aproximamos do jusnaturalismo, mas, estamos mirando as perspectivas pós-posivistas naquilo que esta
corrente se desincumbe, exclusivamente, de uma leitura monista, dogmática, formalista e essencialista do direito.
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A partir de Ramose4, podemos desvendar outros véus que nos encobrem sobre a
particularidade acentuada de uma negação de sistemas políticos e jurídicos e da aplicação de
justiça e democracias pelos povos africanos. Ramose defende a tese de que o projeto de
colonização aliou-se às doutrinas racialistas no continente africano. Esta é uma chave de leitura
que não podemos nos afastar: a da análise estrutural do racismo como construidor des grandes
estruturas de desigualdades no Brasil.
A ideia de Ubuntu, como princípio de equilíbrio e harmonia, ao lado de sua construção
como humanidade são as saídas para a realidade americana e brasileira. Temos que combater um
entendimento comum de que a lei (seja ela mítica, moral e legal) era algo estranho aos povos
africanos. A filosofia Ubuntu (formação de uma dupla palavra que quer dizer: Ubu+NTU. Ubu é a
ideia do ser em geral e Ntu, o ser em particular). É uma categoria ontológica e epistemológica que
pode significar o surgimento da humanidade para os africanos de língua Banto. Este direito é
dinâmico, pressupõe movimento e pode ser reformado. Tal proposição confere uma proposição
epistemológica polissêmica e relacional. Nesse caso, um direito individual, privado, quase não
existe, prevalecendo um direito público.
A justiça Ubuntu se funda na crença de que os que ainda não nasceram, os seres vivos e
os mortos viventes, são as fontes de equilíbrio e verdade. Importante pensar uma semelhança da
metafísica da energia Banto com a imanência filosófica da metafísica da natureza de Spinosa. Ou
ainda uma correspondência de uma intuição vital como postulava Bergson.
Os Banto5 pedem que os indivíduos sintam e conheçam “IVALUKA” daí o termo
SUNGULUKA (ser reto, ser lógico). Inspiramo-nos no consenso6 e na reconciliação como um dos
fundamentos originários de democracia africana. A justiça restaurativa dos Banto, sediada no
pensamento UBUNTU, induz ao equilíbrio e à cura. A injustiça sobrevive à lei. No direito Ubuntu as
pessoas que o ferem devem acertar as contas com o tempo e a memória da comunidade.
7
Oliveira, 2007.
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Kohlhagen, 2000.
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Para o pensamento jurídico positivista moderno, direito e lei são sinônimos e são vistos
como realidade lógico-normativa. Cumpre pensarmos sobre esta dimensão fático-ancestral como
14
“A presença dos mortos - Aqueles que morreram nunca foram embora; Eles estão na sombra que se acende, Eles
estão na sombra que está engrossando (...) Os mortos não estão mortos; Eles estão nas sombras que estremecem; Eles
estão na madeira que geme; Eles estão na água corrente; Eles estão na água que dorme; Eles estão na caixa; eles estão
no meio da multidão (...) Os mortos não estão mortos ...” in (KOHLHAGEN, Dominik. Os ancestrais do pensamento
jurídico Africano, estudo aplicado às empresas do Golfo do Benin – DEA. In: Estudos africanos. Opcional
Antropologia Legal e Política na Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne ano 1999-2000 sob a direção de Camille
Kuyu, p. 3).
15
Thomas, 1968.
16
Ver em Altuna os níveis de hierárquias dos povos Banto: Ser Supremo – Nzambi, Zambiapungo, Mulunga, Unkulu.
Fundadores do primeiro clâ humano, fundadores dos grupos primitivos, heróis civilizadores, espíritos tutelares e gênios
da natureza, antepassados qualificados, antepassados simples, humanos vivos. In ALTUNA, Raul Ruiz de Asua,
Cultura tradicional banto. Cidade: Ed Paulinas, 2006.
17
Kohlhagen, idem.
18
Os ancestrais são representados por símbolos, tais como barras de ferro em Fons, os crânios mortos em armas de
estatuetas em Baoule ou fezes no Ashanti; Iorubás, em particular, representam os antepassados por máscaras através das
quais eles podem se manifestar diretamente. Normalmente, também, cada linhagem ou vila tem uma casa reservada para
os antepassados.
19
“Os bakúlus, grandes anciãos são os membros falecidos do clã. Seu domínio é o seio da terra, onde moram, o interior
das florestas e os cursos d’água. Nesses locais, eles formam aldeias semelhantes às dos vivos e se relacionam em
perfeita harmonia. Porque o domínio dos bakúlus é um lugar onde não existe o mal. (...) Eles devem ser honrados
regularmente em um dos quatro dias da semana que lhes é consagrado. Suas ordens, transmitidas principalmente por
intermédio dos sonhos. Têm que ser prontamente acatadas. Seu apoio deve sempre ser invocado antes de qualquer
empreendimento. E é a eles que se pede paz para a aldeia quando a discórdia e a morte a acometem (...) Os soberanos,
ao falecerem, assumem imediatamente a condição de ancestrais de seu povo. E o receptáculo de sua alma passa a ser a
estátua que o representa” (LOPES, Nei. Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos. Editora Senac Rio, 2005,
p. 48-51).
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fundamento de lei e do direito. Muito mais que uma imposição normativa tradicional a lei
ancestral é uma manifestação permanente da tradição e da cultura legitimada e se auto-atribui
normas e preceitos de forma dinâmica e vitalizada.
Esta é uma característica dos povos, nações e países do continente africano e das
Américas e Caribe, que nos alimentam sobre a possibilidade de uma cultura jurídica
experimentada na convivência com o direito tradicional costumeiro mesclado com um direito
positivado em sistemas de regras codificadas em manuais. Esta é uma experiência praticada em
Angola a partir do diálogo entre um direito formal organizado em sistemas de regras e o sistema
de valores e princípios típicos das autoridades tradicionais como tratados pelo escritor angolano
Chicoadão.20
É comum a insistência em se preservar (em menor ou maior grau) o patrimônio ético-
jurídico dessas nações e comunidades obedecendo quase sempre a uma sobrevivência pragmática
entre a cultura jurídica dos colonizados e a cultura jurídica dos colonizadores e, em certa medida,
entre os defensores de uma lei escrita de influência ocidental europeia e ainda aqueles que
defendem a preservação dos saberes tradicionais associados às normas de resolução de conflitos,
independentemente de serem do repertório jurídico de um e do outro.
O fato de a maioria dos países africanos de língua portuguesa viverem uma situação de
pós-independência e, hoje, encontrarem-se em contextos geopolíticos de influência neoliberal e
neo-constitucionalista, evidenciam-se tensões que buscam a defesa do caráter nacionalista e de
uma integração nacional. Esta tensão serve para justificar e provocar caminhos de liberdade
política e desenvolvimento econômico e social mais próximo de suas próprias histórias e
necessidades.
A existência de fontes e experiências filosóficas e epistemológicas distintas e singulares
dessas matrizes, de colonizados e colonizadores, ora antagônicas, ora de convivência pacífica, nos
leva a pensar sobre a necessidade de novas possibilidades de justiça que se afirmem no horizonte
da própria sobrevivência das pessoas envolvidas nesse contexto. Existe um convívio múltiplo de
sistemas jurídicos nessas sociedades e é este aspecto que devemos analisar para a afirmação de
uma justiça e de um direito de caráter plurijurídico.
Oliveira21 discorre sobre o princípio e normas como formas culturais africanas. Essa é uma
20
Chocoadão, 2010.
21
“A ética africana não é normativa nem prescritiva. Ela é educativa. Ela é erótica e estética ao mesmo tempo. Por ser a
ética a primeira filosofia, é a filosofia antes de tudo uma ética. A ética é da ordem do acontecimento e, por isso tudo, ela
é uma categoria que se relaciona antes que tudo com as atitudes. Somos condenados à escolha, e a escolha pode nos
lograr a liberdade. A ética não é a ciência da liberdade, muito menos as regras que conduzem à liberdade”. (OLIVEIRA,
Eduardo D. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003, p.
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perspectiva da lei como categoria educativa e nunca normativa e nem prescritiva. É aceitável a
dimensão educativa e lúdica da ética africana, mas não devemos perder a dimensão prescritiva,
preditiva e normativa dessa mesma ética sob pena de desconhecermos os valores e fundamentos
que norteiam a lei como comando e construção social. A abordagem estética e erótica é mais uma
dimensão deste repertório que se alia ao projeto do reencantamento ético-ontológico do mundo.
Entretanto, a força normativa dos axiomas, provérbios e mandamentos ancestrais possuem força
legislativa com ares de formação de sistemas jurídicos peculiares.22
Ao afirmar a ética como atitude, Oliveira23 dará margem para pensarmos o direito ou
princípio normativo como um comportamento frente ao mundo. A questão é saber se
convencionamos regras a partir das atitudes frente aos dilemas que o mundo nos apresenta. A
resposta parece ser afirmativa. Elaboramos leis e as convertemos em modelos vários de comando
e de sanção frente à desobediência. Elas possuem poder normativo em si quanto mais forem
aceitas pela comunidade. Nesse caso, o pertencimento e a submissão às regras da comunidade,
afiançadas pelo culto aos antepassados e ancestrais, conferem o poder normativo e ainda
preditivo, prescritivo que já apontamos.
Nesse caminho de trilhas inacabadas e sempre refeitas, concordamos com Oliveira24 e
Lévinas25, quanto à produção do pensamento africano estar fundado majoritariamente numa
ética. Sendo, nesse caso, uma filosofia da imanência e da transcendência em escalas simbióticas.
Como nos diz Oliveira: “a estética é já uma ética”, teremos que dizer: a ancestralidade é já uma
ética. E mais: a ancestralidade é já um projeto de ação política, posto que ligada a pressupostos
libertários no sentido da identidade e da autonomia.
Por isso, a riqueza ontológica do legado Banto enquanto sugestão de povo e humanidade
em movimento. Esta é uma categoria relacional da ontologia Banto. Daí no dizer de Oliveira, “a
ontologia Banto é uma ontologia relacional. Aqui se anuncia uma filosofia que prescinde das
essências para colar na imanência. E filosofia do acontecimento, sem metafísica, mas com
transcendência”26.
Temos que fazer o diálogo sobre as formas culturais e normativas que adotam “a
167).
22
Ver uma moderna doutrina de princípios normativos como realizadores do direito da ética retorica e argumentativa
em Perelman (1999) e Wiehweg (1979).
23
A ética não é uma moral. A ética é mais que princípios que orientam ações. Ela é em si mesma, uma atitude. Atitude
que terá como instância de avaliação as formas culturais – que foram coletivamente construídas por gerações.
(OLIVEIRA, Eduardo D. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza:
LCR, 2003, p. 167).
24
Oliveira, 2003.
25
Lévinas, 1980.
26
OLIVEIRA, 2007, ibidem.
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tradição” como critério normativo. O círculo hermenêutico pode ser posto em diálogo com as
experiências ancestrais para uma leitura axiológica de valores e princípios. Vamos observar que
estas formas culturais aliançadas na tradição podem se transformar em formas impositivas e
autoritárias. Este modelo interpretativo está dando azo a muitos governantes de países africanos e
diaspóricos, que se referenciam também na tradição africana e encontram fundamentos para
exercer um poder tirânico, predatório e ofensivo aos direitos humanos.
Fu-Kiau nos fala sobre o mau uso da tradição africana, respaldada por uma doutrina
ocidentalizada de direito e poder que tem maltratado a política de gestão destes Estados africanos
e marcado a ferro e fogo suas populações em nome de uma política moderna de
desenvolvimento, mesclada de uma unidade africana artificializada ou de um nacionalismo
messiânico.27
A abordagem de Oliveira afirma uma mutabilidade e um status de criatividade ao
repertório ético africano frente à natureza e aos seus modelos de organização comunitária
incidindo num processo erótico permanente. Neste contexto de prazer e resistência em nome da
existência ancestre corporal, identificamos que os territórios dos valores e as suas medidas
compreendem já uma ética. Ninguém resiste à força dos princípios mandamentais ancestrais
como sustentadores de uma vida social. A ordem do acontecimento ainda que seja do imprevisto
e do acaso se expressa como equilíbrio e uma ética do convívio resgatado em memória ancestral
para além dos livre-arbítrios dos indivíduos em comunidade.
Outra abordagem fundamental para compreender a dimensão ancestral como
organizadora da vida social encontramos na obra, A Questão Ancestral, do pesquisador Fábio
Leite. Ele nos apresenta, através de uma abordagem não religiosa da ancestralidade, uma África
Negra e suas leis ancestrais. A partir do convívio com três povos da África ocidental que ele chama
de África Profunda, Leite não discorre sobre religião, embora algum crítico apressado o classifique
de cientista da superestrutura, marcadamente da teoria e da história da religião. Ao analisar os
ritos ancestrais de povos (Aka, Senufo e Ioruba), é também visivelmente confundido com
arqueólogo por analisar reminiscências, denominadas eufemisticamente de “restos culturais”
desses povos.
O autor se autorreivindica estudioso de uma África profunda através da investigação
sobre os cultos ancestrais. A sua tese de Doutorado, para além de uma suposta visão idílica do
continente, aponta para uma abordagem que chamo aqui de Ancestralidade Normativa Não
Religiosa. Leite diz não se interessar por religião, embora todo seu material de estudo possa ser
27
Teoria e Prática da Criminologia de Base Africana - o caso dos Bakongos. Ver Fu-Kiau, 2001, p. 45.
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28
Leite, 2008.
29
“Nesse universo, a problemática da morte colocou-se de maneira crucial, pois os pressupostos nascidos da
proposta de formação do homem exigiram que fossem também apreciados quais mecanismos e processos
permitem considerar que efetivamente a sociedade estabelece que o homem é dotado de uma capacidade
transformadora passível de caracterizar historicamente a condição ancestral de sua existência, e como isso
ocorre” (LEITE, Fábio Rubens da Rocha. A Questão Ancestral: África Negra, São Paulo: Palas Athenas:
Casa das Áfricas, 2008, p. 23).
30
Fu-kiau, 2001.
31
“O homem natural de Ioruba é constituído também por Ori, princípio vital de individualização da personalidade e do
destino. Sua noção vai além da ideia de elemento integrante do sistema físico, pois esse princípio é considerado a
‘cabeça interna’ das pessoas. De fato, Ori configura principalmente a abstração de uma dimensão do homem ligada á
problemática de sua existência histórica. Embora tendo como sede a cabeça física, Ori não propõe o estabelecimento de
relações decisivas com a massa cerebral, ele é algo fundamental superposto á matéria. Esse princípio vital tem origem
especifica: é elaborado por Ajala, o oleiro divino dos Iorubas, carregando de produzir continuamente ‘cabeças internas’
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a fim de completar o homem. O processo de criação indicado por Abimbola (1973) estabelece que Orisanla molda os
seres humanos e Olodumare insufla-lhes o sopro divino do qual é detentor, após o que recebem de Ajala seus Ori”
(Idem, p. 30).
32
Leite discorrerá sobre a pessoa e seu duplo como uma potencialidade ancestral, conferindo um poder maior para os
indivíduos: “o duplo é, assim, uma das concepções mais ricas propostas pela explicação africana definidora do homem
natural e um dos elementos mais dinâmicos da personalidade”. Entretanto, embora sua natureza estabeleça a existência
de certas práticas sociais, algumas de significado não negligenciável, o “duplo” relaciona-se decisivamente com aquela
instancia ontológica do homem que estabelece sua vitalidade material e, em certo sentido, até mesmo espiritual, devido
à sua origem divina. (Idem, p. 50-51).
33
LEITE, ibidem.
34
Para Leite, segundo Thomas e Luneau (1975): “com a ausência do prepúcio e do clitóris, a penetração e facilitada
para ambas as partes, há maior concentração do prazer, o esperma jorra mais livremente e é mais bem aproveitado, pois
não é retido em parte pelo prepúcio e pelo clitóris. Mas a excisão e a circuncisão adquirem sua dimensão mais
significativa enquanto tomada de consciência do sexo e de seus atributos sócias.” Ibidem, p. 83.
35
LEITE, ibidem, p. 93.
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das formas culturais africanas, Kohlhagen aponta que ela opera em sistema de regulação que
confere certo grau de juridicidade, vale dizer, no âmbito daquilo que o direito positivo
contemporâneo proclama e reivindica: a segurança jurídica.
Kohlhagen nos ensina que a ancestralidade é uma forma de poder e de justiça e que os
ocidentais “ignoram a diferenciação entre a ordem e a desordem e que a justiça nem sempre é a
única maneira de restaurar a harmonia em uma sociedade”. Acompanho o raciocínio de
Kohlhagen que se assenta na abordagem transcultural da lei, e é nesse campo que vamos nos
aliançar.36
Tenho visto com parcimônia abordagens ético-jurídica com fundamento religioso sendo
adotado como controle social e perfazendo esquemas normativos para vida social dos africanos
em todo o mundo. As doutrinas religiosas são as melhores e exclusivas formas culturais de
organizar um esquema de controle social? Diria que não. Penso, a partir de Fabio Leite e Oliveira,
que os esquemas ético-normativos, ou melhor, ético-jurídicos constroem sistemas poderosos de
predição, prescrição e regulação, sem menores temores que os daqueles alegados em
fundamentos morais e religiosos ou em sistemas positivados. A questão aqui é afirmar que o
sistema ético já embebido de uma ontologia transcultural confirma-se como um sistema jurídico
transcendental e imanente em nada devendo aos princípios normativos da religião e da ciência
normativa logicizada ocidental.
Neste caso, a ancestralidade influencia um universo mais amplo da existência e das forças
físicas e metafísicas possuindo um poder normativo maior. O controle do mundo visível e invisível
confere à ancestralidade um status de fenômeno jurídico. E citando Keba M’Baye, Kolhlhagen diz:
“as regras religiosas, metafísicas ou legais são misturadas com uma clara predominância de
princípios normativos, que de bom grado, submetem todos os membros da comunidade”.37
Vale aqui fazer menção como o autor senegalês mencionado analisa as escolas
antropológicas e as imagens dos antepassados. Partindo dos evolucionistas (Frazer James, 1854-
1941; Edward Tylor, 1832-1917; Herbet Spencer, 1820-1903) que tiveram dificuldade de perceber
a dimensão religiosa como produtor de juridicidades, no entanto, souberam reconhecer o poder
ancestral do sistema mortuário desses povos. Já Durkheim (1857-1917), segundo o autor, critica
os evolucionistas não reconhecendo o poder ancestralizador através das mortes.38
36
Kohlhagen, ibidem.
37
Kohlhagen apud Keba M’Baye, 2011. p.10.
38
Max Gluckmann (1911-1975), em sua tese de doutorado sobre “Bantu Sudeste”, define a crença na vida após a morte
como uma parte “prática social” do património cultural e se opõe a uma resposta pura” o indivíduo à morte”.
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O antepassado mítico – esta divindade deificada – pode ser associado aos orixás. Xangô e
todo panteão Iorubano é um desses antepassados míticos que deixou a terra para se tornar orixá.
A lei do antepassado mítico é uma interdição ou tabu associado ao enredo de sua lenda na terra.
Comumente chamado de “quizila”39. Da transgressão dos tabus e interdições, os seus adeptos
podem sofrer sanções mediadas entre os representantes dos valores entre os antepassados e os
viventes que guardam suas regras.
Kohlhagen distingue antepassados de ancestrais acentuando para os primeiros uma carga
de memória numa comunidade sem que haja um vínculo familiar exato. Normalmente, é um chefe
de um grupo que teve que deixar a terra para a conquista de novos espaços. Possui uma grande
ligação com a narrativa fundadora da comunidade. Podem ser vistos como heróis civilizadores.
Este é um sistema jurídico perfeito para as modernas teorias jurídicas da norma. Possui
um núcleo material, que seria a sua predição. Possui um núcleo processual que seria a sua
prescrição e modos de fazer e não fazer, e possui um núcleo sancionador que são as punições
voltadas para quem transgride as normas proibidas.
Normalmente num ambiente religioso, e devo dizer não religioso também, mas que tem
ligações fortemente arraigadas na cultura africana. É comum associar certas limitações
comportamentais às histórias míticas dos antepassados e ancestrais. Nesse sistema de regras,
adotado numa comunidade religiosa e praticada também fora dela pelos aspectos transculturais
que determinada civilização africana possui, verificamos os impedimentos em relação à forma de
se alimentar, de se vestir e de se comportar em ambientes fechados e públicos a partir da
aderência que o indivíduo tem com este sistema de mitos ancestralizados.
O ancestral fundador é geralmente a pessoa que está na origem de uma linhagem, clãs,
múltiplas linhagens ou grupo aldeia. Existem distinções entre antepassados míticos e a
ancestralidade religiosa. Existe uma dimensão de realidade próxima nos ensinamentos dos
antepassados míticos. Isso diz respeito, segundo Kohlhagen, a sociedades matrilineares e
patrilineares que se relacionam através de graus de parentesco, da relação com o uso dos recursos
naturais e da convivência em sua comunidade. Essa ligação é sempre de ordem ancestral pela
39
É comum dizer que: quem é de Nanã não pode comer alimento com sangue; Xangô não pode comer frio e nem se
aproximar de cemitérios e hospitais; Oxóssi não pode comer pimenta e nem comida molhada etc. Ver significado de
Quizila: (banto) 1. (ps)-s.f. tabu, interdição religiosa, exemplo de não poder comer abóbora para quem é de Iansã. Ou,
amendoim para quem é de Oxóssi. Cf. euó. Var. quijila. Kik. Kizilal. Kijila. 2. (oBr)-s.f. (p.ext.) repugnância, antipatia.
Var. quijila. Cf. Ziquizila. CASTRO, Yeda, Pessoa de, Falares Africanos Na Bahia; um vocabulário afro-brasileiro. Rio
de janeiro: Top Books, Academia Brasileira de Letras, 2001.
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natureza própria do pertencimento e dos valores morais que estão associados aos valores
ancestrais e aos antepassados como força simbólica e normativa.
Parece certo que a ordem defendida pelos antepassados experimenta uma lógica interna
que realmente coincide com o que pode ser experimentado como tradição ou moralidade e
eticidade. Mais uma vez, Nei Lopes nos apresenta a força poderosa dos mais velhos (antepassados
vivos e mortos) enquanto reserva, espaço e produtores de força normativa numa comunidade.40
O mito como controle social é o que Leite também nos leva a pensar sobre o antepassado
mítico que se refaz e se reancestralizada naquilo que ele chama de herói civilizatório decorrente
de uma sacralização social e histórica.41
Fabio Leite42 nos chama a atenção sobre os rituais que envolvem respeito a certas regras
morais da comunidade que nem sempre estão associadas a valores religiosos. Aqui, o autor, nos
leva a pensar sobre a importância das práticas de perpetuação biológica e ecológica da sociedade.
Porque nem sempre existem respostas racionais para os fenômenos da natureza que podem ser
associados à ira dos ancestrais. Nesse caso, o sentimento de equilíbrio é que mantém viva aquela
comunidade para uma vida social.
Kolhagen43 nos leva a pensar sobre uma cadeia superposta de respostas sociais, religiosas
e naturais da comunidade que, embora estejam interligadas, obedecem a preceitos que guardam
independência a seus ritos de obrigação ético-jurídicos. O panteão das divindades exige um
conjunto de preceitos, interdições e ofertas que compõem um acervo ético-jurídico. Falar em
nome das divindades importa aplicar um sistema de predições associados aos arquétipos desses
deuses e deusas. É comum usarmos as características dos orixás para aplicarmos valores a
comportamentos éticos que vamos adotar. O caso de utilizar as águas (Yabas) para referir-se à
ancestralidade, ou ao fogo de Xangô, como sinal de justiça rigorosa a ser feita.
40
“Os velhos possuem uma forte dose de poder. Eles conseguiram no curso de suas longas vidas acumular
forças e, assim, são herdeiros das gerações precedentes. O ancião está num estágio entre o humano e o
divino. (...) Sua própria existência é uma prova do seu poder. Já que somente graças a esse poder, eles
tiveram condição de, durante sua longa vida, neutralizar as investidas das forças hostis. (...) O. Os mortos são
os verdadeiros chefes de um povo, e sua vontade é decisiva. Eles velam por seus descendentes noite e dia e
lhes distribuem riquezas, saúde. Paz, colheitas abundantes, fecundidade. Por meio de sonhos, avisam dos
perigos e propiciam benefícios análogos aos concedidos pelas divindades. Os mortos procuram ser úteis e
gostam de tomar parte nos assuntos humanos. (...) Para apaziguar sua cólera e assegurar sua ajuda ou lhes
render graças, os homens da família precisam realizar os sacrifícios rituais”. (LOPES, Nei. Kitábu: o livro do
saber e do espírito negro-africanos Rio de Janeiro: Editora SENAC, 2005, p. 159-160).
41
LEITE, 2008, ibidem.
42
Ver: Fabio Leite citando Verger em A Questão Ancestral, 2008, p. 132, sobre o mito de criação iorubano a partir de
Odudua, ibidem.
43
Ibidem
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44
Usamos a expressão “povos banto” em todo o texto por se tratar de um tronco linguístico que teve influencia e
hibridações sobre diversas povos e em períodos históricos distintos. Esta denominação foi usada por W. H. I. Bleek
(1827-1875) O NTU refere-se ao ser humano (muntu) e a Ba-ntu com seu prefixo indica o plural para indicar “povos”.
As línguas bantas são faladas em mais de 400 etnias e mais de 20 países (Camarões, Gabão, Congo, República
Democrática do Congo, Uganda, Quênia, Tanzânia, Moçambique, Malauí, Zâmbia, Angola, Namíbia, Botsuana,
Zimbábue, Suazilândia, Lesoto, África do Sul, etc.). Preferi manter a expressão povos e etnias para dar conta dos grupos
linguísticos, povos e países (árabes, por exemplo) que reivindicam esta denominação ou origem.
45
NZAMBI KALUNGA – DEUS SUPREMO E INFINITO - Uma origem do mundo segundo os Bakonès – o primeiro
ser humano não era homem nem mulher, era portado das duas criaturas – Kimuzungu ou Nkwa Muzungu, aquele que
possui duas forças opostas. O ser humano nasceu com dois sexos opostos e complementares. Lado direito – Masculino
– Lado esquerdo – Feminino. Membros híbridos. Mpoku Mununi para construir “Muntu Walunga”. Ndala Karitanga
(deus criador de si próprio). Nzambi Ampungu (deus poderoso) depois que criou o mundo, criou a mulher para que
fosse sua esposa=Na Kalunga que teve uma filha chamada Kalunga aquela que domina animais selvagens. A criança
nasceu na senzala Dia Zumbi = aldeia de deus – o pai leva a filha para conhecer o mundo. O pai engravida a filha. A
mãe se enforca e é amaldiçoada por Zambi e transformada em “Mulungi Mujimo” = ventre ruim. Kalunga passa a se
chamar Ndala Karitanga e sonha com a mãe, insultando-a, perde perdão, conta ao pai. Faz oferenda para mãe e dá à luz
a um filho chamado Ndala Kalunga. Quando seu filho neto cresce, Nzambi ordena-lhe que se case com a mãe para
povoar a terra. As primeiras gerações foram feitas e depois entre os primos. História contada por dois velhos Sombos,
seção de arqueologia e pré-história do museu de Dundo Angola. Extraído do livro “Crenças, adivinhação e medicina
tradicionais do Tchokwe, Angola.
46
Leite, 2008 ibidem.
47
KOHLHAGEN, 2010, ibidem.
48
Lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro, Lei 12.376/2010.
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Estado da Bahia. O seu reconhecimento, através de legislação estadual49, impõe aos prepostos dos
poderes constituídos, o reconhecimento de modelos muito próximos aos valores ancestralizados
dos usos comunitários da terra e das relações de parentesco.50
Isso significa que mesmo que a norma legal não trate dos detalhes das condutas
tipificadas decorrentes desse modo de uso da terra e das relações entre as pessoas, os costumes e
a tradição irão apresentar um modo peculiar, trançado na memória e na história de como aquela
comunidade vai responder para si mesma e para, no caso do Brasil, ao poder constituído do
Estado. Este é um grandioso exemplo da afirmação ética-social dos valores e princípios da
ancestralidade civilizatória dos povos africanos e indígenas no Brasil.
KOHLHAGEN menciona Achebe51 para discorrer sobre um litígio entre Uzowulu, um
homem que derrotou sua esposa e a família em que este último se refugiara. Uzowulu persiste em
afirmar o seu dote. O caso é então submetido ao julgamento de seus antepassados que decidiu
que ele mesmo deve fazer uma doação para a família e tentar orar por sua esposa para retorná-lo.
Após o veredicto, uma pessoa velha pergunta por que um tão pouco deve ser decidido pelos
antepassados. Outra então responde: “Você não sabe que Uzowulu”? Ele não vai ouvir nenhuma
outra decisão.
A ancestralidade e o antepassado como controle social se configura naquilo que
Kohlhagen chama de “identificação social e civil gerada pela ancestralidade” e que gera uma
relação espacial para exercer seu poder a partir da sua linhagem. O que se privilegia é o ser
humano (vivo ou morto) como centro da coesão social. Isso explica parte expressiva da
constituição da pessoa nas comunidades de alguns povos africanos e nas Américas que
reivindicam um conceito de pessoa voltada para a consciência de mundo e vida social
ancestralizada é o caso, por exemplo, do muntuismo em Boulaga que busca um mito como
49
Lei 12.910/2013 trata da regularização fundiária de terras públicas estaduais, rurais e devolutas, ocupadas
tradicionalmente por Comunidades Remanescentes de Quilombos e por Fundos de Pastos ou Fechos de Pasto; Decreto
n. 12.433 de outubro de 2010. Institui a Comissão Estadual para a Sustentabilidade dos Povos e Comunidades
Tradicionais da Bahia; Decreto n. 6.040 de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para
Assuntos Jurídicos. 2007.
50
“Pode-se entender o Fundo de Pasto como uma experiência de apropriação de território típico do semi-árido baiano
caracterizado pelo criatório de animais em terras de uso comum, articulado com as áreas denominadas de lotes
individuais. Os grupos que compõem esta modalidade de uso da terra criam bodes, ovelhas ou gado na área comunal,
cultivam lavouras de subsistência nas áreas individuais e praticam o extrativismo vegetal nas áreas de refrigério e de
uso comum. São pastores, lavradores e extrativistas. São comunidades tradicionais, regulamentados internamente pelo
direito consuetudinário, ligados por laços de sangue (parentesco) ou de aliança (compadrio) formando pequenas
comunidades espalhadas pelo semi-árido baiano” (ALCANTARA, D.M; GERMANI, G.I. Fundo de Pasto: Um conceito
em Movimento. In: Anais do VIII Encontro Nacional da ANPEG. Curitiba (PR). 2009. Anais da ANPEGE. CD-ROM,
p. 13.
51
Kohlhagen apud Chinua ACHEBE, Things Fall Apart, London: Heinemann, coll. African Writers Series, 1986 (1ère
éd. 1958), 150 p., p. 83: "Don't you know what kind of man Uzowulo is? He will not listen to any other decision."
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discurso buscando se desincumbir de uma metafísica e de uma ontologia estática sem perder de
vista sua relação social.52
José Castiano menciona: “a morte é uma ocasião, portanto, para a reflexão sobre os
projetos de vida do morto, aqueles que ele terminou e deixou por realizar” e que “os que ficaram,
sobretudo os mais novos, devem continuar” e mais à frente nos ensina, citando Heidegger, que a
sensação de temporalidade é o que dá compreensibilidade e sentido ao ser. Este ser temporal do
que se deve ocupar? Esta pergunta de Castiano nos remonta ao tema do
muntuísmo/ubuntuísmo.53 A ideia de continuar a obra do antepassado se constitui na narrativa do
legado. Não existe o fim com a morte, como nos diz Castiano.54
Conclusão
52
Ver: conceito de Muntuismo em Boulaga a partir do livro do Pe. Enzo Bono: “Existir graças a si e por si próprio, na
comunhão do saber e do fazer, segundo uma ordem que exclua a violência e o arbítrio”. (BONO, Ezio Lorenzo.
Muntuismo: A ideia de “pessoa” na filosofia africana contemporânea. 2ª Edição, Maputo: Paulinas, 2015, p. 88).
53
Castiano questiona os valores de uma humanidade em desequilibro e de uma experiência de morte social que está
acabando com a vitalidade muntuismo/ubuntuísmo e da humanidade Africana em Moçambique (CASTIANO, José P.
Filosofia Africana: da sagacidade à intersubjectivação (com Viegas) Maputo: Editora Educar, 2015, p. 181-182).
54
“A morte não é o fim. É antes o início de uma nova relação, mais transcendental, que se realiza e renova através da
obra deixada. Ubuntuisticamente diríamos que esta nova relação se actualiza através. A obra se vê pelo exemplo”
(CASTIANO, José P. Filosofia Africana: da sagacidade à intersubjectivação (com Viegas) Maputo: Editora Educar,
2015, p. 196).
55
V Congresso Brasileiro de Filosofia da Libertação, II Encontro Internacional de Filosofia Africana: movimentos
sociais populares e libertação, organizado pela Linha de Pesquisa Cultura e Conhecimento do DMMDC- Doutorado
Multiinstitucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento, sediado na UFBA, os grupos de pesquisa: REDE-
AFRICANIDADES e GRIÔ – educação popular e ancestralidade africana, cidade de Valença, povoado do Bonfim,
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travessias para dialogar com as possibilidades atuais das releituras dos mitos e suas simbologias
como possuidoras de valores hermenêuticos humanizatórios.
Quem mistificou a mitologia africana foi o ocidente e depois os africanos a partir do
ocidente. Os próprios mitos ocidentais não são totalmente ocidentais, já que se constituiu em
expropriação, pilhagem e transmutação na maioria das vezes, é o que nos diz Stéllia Muianga
através de sua dissertação de mestrado56. Parece que tais mitos precisam ir ao ocidente para
voltarem validados como científicos. As nossas histórias se forem re-contadas, hoje, serão
histórias entrecruzadas com a história da colonização e já não podemos atestar absolutamente
uma originalidade e nem uma autenticidade sobre os mitos nossos e os mitos recriados pelos
ocidentais e por nós mesmos. Resta-nos pensar apenas se este ato de recontar o mito nos leva a
processos interpretativos da nossa realidade pensando em saídas legítimas e satisfatórias e mais
valorosas para a autoestima civilizatória.
Na maioria das vezes nos utilizamos dos argumentos do princípio da autoridade para
demarcar atos de fala. As narrativas dos mitos associados a líderes de suas civilizações (Xangô,
Zeus, Javé, Maomé, Jesus, Buda, Thor etc.) são tidas como inquestionáveis para as circunstâncias
interpretativas que necessitam de decisões persuasivas através de seus exemplos e prescrições.
Nesse caso, a autoridade do mito sobre nossos valores morais possui alto valor performativo. Em
relação aos valores normativos, fazemos sempre uso dos valores míticos como substrato histórico
e moral de um modo de vida voltado para uma racionalidade ou uma sensibilidade humanística.
Em suma, reivindicamos sempre uma suposta proporcionalidade ou uma razoabilidade
quando queremos justificar interesses em nossas ações intersubjetivas. Tratar os princípios
ancestrais como parte dos estudos da hermenêutica jurídica nos leva ao diálogo dos métodos e
procedimentos para alcançar esta possibilidade. Este estudo não alcança ainda esta finalidade. No
entanto, pensamos que o diálogo intercultural e a valorização dos nossos próprios mitos e caráter
identitário é uma sugestão poderosa para retomarmos o fio da história e das interpretações
possíveis de liberdade e justiça para a realidade jurídica brasileira.
Referências
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Augusto Sérgio dos Santos de São Bernardo: Doutorado Sanduíche em Difusão do Conhecimento
através do Programa de Doutorado Multidisciplinar e Multi institucional em Difusão do
Conhecimento-Faced/UFBA, Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília/UNB (2007),
Bacharel em Direito e advogado pela Universidade Católica do Salvador/UCSal (1990), Licenciado
em Filosofia pela Universidade Católica do Salvador/UCSal (1997), Especializado em Direitos
Humanos pela Universidade Estadual de Feira de Santana/UEFS (2000), Pós-Graduado Lato Sensu
em Direito do Consumidor pela Escola de Direito de Brasília-IDP. Professor Assistente da
Universidade do Estado da Bahia - UNEB - Departamento de Ciências Humanas Campus I, leciona
as disciplinas: Filosofia do Direito, Hermenêutica Jurídica e Direito do Consumidor, Desenvolve
estudos nas áreas da filosofia latino-americana, africana e brasileira. Presidente da Comissão de
Defesa do Consumidor da OAB-Bahia e membro do Instituto Pedra de Raio - Justiça Cidadã, autor
do Livro Xangô e Thémis, estudos sobre direito, filosofia e racismo (2015) e Co-organizador do livro
Comentários ao Estatuto da Igualdade Racial e Combate à intolerância Religiosa do Estado da
Bahia.
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