Sábado 28
maio de 2016
De Mongaguá para Stanford, uma
história de amor entre mãe e filha
Aos 20 anos, Giovanna Mota se dedica a participar de pesquisas sobre o câncer de mama, doença que matou sua mãe em 2013
CHRISTIANE LOURENÇO
EDITORA DE PAUTA E REPORTAGEM
Aos 20 anos, Giovanna Mota
já está decidida a revolucionar
a medicina e curar mulheres
com câncer de mama. Desde a
morte da mãe, vítima da doen-
ça, há três anos, essa jovem de
Mongaguá dedica a vida a en-
tender o ataque do corpo hu-
mano por células canceríge-
nas. Apesar do desafio hercú-
leo, ela já chegou bem longe
nesta caminhada.
Desde meados do mês, Gio-
vanna está na Universidade de
Stanford, nos Estados Unidos,
participando de uma pesquisa
que tem como alvo o fortaleci-
mento do sistema imunológico
para que ele próprio mate as
células defeituosas.
Filha única, a estudante viu
no programa Ciência sem
Fronteiras, do Governo Fede-
ral, a chance de extravasar to-
da a impotência que sentiu ao
ver a mãe Ana Cláudia Andra-
de Mota dos Santos morrer
em 2013 depois de já ter luta-
do contra o câncer de mama
por outras duas vezes, em
1998 e 2008.
A última batalha contra a
doença foi perdida por Ana
Cláudia dez dias antes de sua
filha ingressar na Universida-
de Federal do ABC (UFABC )
para cursar Engenharia Ae-
roespacial. Ela morreu em 11
de fevereiro de 2013 vítima de
metástase óssea.
“Ver a pessoa que você ama
indo embora, com medo, me
chocou demais. Meus pais sem-
pre foram meu referencial.
Mas a história se inverteu
quando ela me pediu ajuda e
eu não podia oferecer. Isso mu-
dou minha história de vida pa-
ra sempre. Me sinto incomoda-
da em ver pessoas morrendo
de câncer”.
As perguntas sobre o “por-
quê” da morte da mãe nunca a
abandonaram. “Por que ela te-
ve câncer se não havia nenhum
outro caso na família”? Em bus-
ca de respostas, se inscreveu no
programa de iniciação científi-
ca da UFABC e começou a se
aventurar na área da biomedi-
cina mesmo estando matricula-
da em curso completamente
diferente.
“Eu queria entender se o tra-
madol (analgésico indicado pa-
ra o alívio da dor de intensida-
de moderada a grave) tinha
acelerado o câncer. Minha
mãe faleceu em uma semana
depois da internação”.
Ela integrou um grupo de
estudo sobre hidrogéis ter-
morreversíveis com tramadol
para tratamento de pacientes
com câncer. A base da pesqui-
sa é sobre os benefícios da
injeção de uma única dose de
hidrogel no organismo com
capacidade de se dissolver
aos poucos, conforme a tem-
peratura do corpo, liberando
o tramadol sem, com isso, so-
brecarregar o fígado.
“O efeito do medicamento é
mais eficiente para pacientes
com câncer em fase terminal”,
diz Giovanna.
A paixão foi imediata. A
jovem ficou um ano no proje-
to até ter a certeza de que não
queria mais conviver com ae-
ronaves, foguetes e satélites
artificiais.
“Eu conversei com minha
professora e disse que não
sabia se tinha nascido para
ser engenheira aeroespacial.
Ela me deu dois artigos para
ler: um sobre câncer de mama
e outro sobre hidrazina (com-
posto químico usado como
combustível em satélites arti-
ficiais). O de hidrazina não li
até hoje”.
EXPLORANDO A CURIOSIDADE
Giovanna foi alfabetizada em
inglês. Ela morou com os pais
Giovanna integra grupo de pesquisa sobre câncer na Universeidade de Stanford, na Califórnia, uma das instituições mais respeitadas do mundo
A jovem é aluna de Biomedicina da Universidade Federal do ABC
Giovanna ao lado da mãe, Ana Cláudia, vítima de câncer de mama
Ciência sem Fronteiras
A falta de orçamento do Ministério da
Educação atingii o programa Ciência sem
Fronteiras já em 2015. Na época, o governo
garantiu o custeio das bolsas que já tinham
sido aprovadas, mas não definiu a abertura de
novas chamadas para 2016. Assim, o
dos 4 aos 9 anos em Miami, na
Flórida, nos Estados Unidos.
Na época, o pai, Josenilson Mo-
ta dos Santos foi convidado a
trabalhar como preparador físi-
co da Seleção Americana de
Futebol de Areia.
programa continua sem orçamento este ano.
O Ciência sem Fronteiras busca promover a
consolidação, expansão e internacionalização
da ciência e tecnologia, da inovação e da
competitividade brasileira por meio do
intercâmbio e da mobilidade internacional. As
A família voltou para Mon-
gaguá no final de 2004. A
mãe ficou traumatizada com
o furacão Frances, que atin-
giu Cuba e a Flórida com ven-
tos de 240 Km/hora. “Fica-
mos quatro dias trancados
A TRIBUNA
www.atribuna.com.br Cidades
FOTOS ARQUIVO PESSOAL
Antes de Stanford, ela participou de pesquisas na Universidade do Texas
Com o pai, Josenilson dos Santos, que continua morando em Mongaguá
bolsas de estudo são destinadas a alunos de
graduação e pós-graduação para que realizem
estágio no exterior com a finalidade de manter
contato com sistemas educacionais
competitivos em relação à tecnologia e
inovação.
num quarto. Ela quis voltar”. em tempo integral. “Íamos no
Sem falar português, a meni- ônibus para a escola e ela ia me
na que já cursava a 4ª série foi dando aula”.
novamente alfabetizada, mas Aos poucos, a curiosidade
agora dentro de casa pela mãe da aluna já ultrapassava a bar-
que era professora. Desde en- reira dos livros. “Na 7ª série,
tão, Giovanna passou a estudar eu me inscrevi na Olimpíada
A-7
Brasileira de Astronomia.
Entrava no site da Nasa
(Agência Espacial Norte-
Americana) e já lia livros
como Contato, do escritor e
cientista Carl Sagan, e Eu,
Robô, de Isaac Asimov.
“Eu queria explorar o mun-
do, encontrar curiosidades
em pequenas coisas. Passava
pela Praia dos Sonhos (em
Mongaguá) e via mais do que
uma praia. Eu queria enten-
der a importância do mar, da
areia... Tudo me estimulava a
curiosidade e a pessoa com
mais influência na minha vi-
da foi minha mãe. Ela dava
aula em cinco escolas. Acorda-
va quatro da manhã, prepara-
va o almoço e as marmitas.
Ela sempre me dava aulas ex-
tras e depois tomava as lições
no ônibus”.
Em entrevista a A Tribuna
por telefone, no sábado passa-
do, Giovanna atribui ter en-
trado aos 17 anos em uma
universidade federal à dedica-
ção de Ana Cláudia. “Ela me
preparou desde a 8ª série pa-
ra o vestibular porque sabia
que não tínhamos condições
de pagar por um cursinho”.
SONHO AMERICANO
Retornando a história à Uni-
versidade Federal do ABC,
Giovanna decidiu se transfe-
rir para o curso de Biomédi-
ca em 2015, depois de um
ano de Engenharia Aeroes-
pacial. Logo se interessou
pelo programa Ciência sem
Fronteira (atualmente con-
gelado por falta de recursos
federais) e passou por todas
as etapas do longo processo
seletivo até o dia do embar-
que para Austin, capital do
Texas, nos Estados Unidos.
Esperança
“Me sinto
incomodada vendo
pessoas morrendo
de câncer”
Giovanna Mota
Lá conseguiu fazer conta-
tos e participar de projetos
importantes na área do cân-
cer que a colocaram na equi-
pede estudantes doprofessor-
doutor Holden Maecker, da
Universidade de Stanford, na
Califórnia, considerada uma
dasinstituições mais respeita-
das do mundo.
A jovem de Mongaguá che-
gou a Stanford no dia 14 deste
mês. Ela terá três meses até
encerrar seu programa de in-
tercâmbio financiado pelo
Governo do Brasil. Nos últi-
mos seis meses, ela já vinha
estudando e lendo artigos en-
viados pelo professor.
“Ele estuda uma forma de
se detectar qual a célula do
sistema imunológico de um
paciente com câncer está fal-
tando para adaptar o melhor
tratamento. A ideia é fortale-
cer o sistema imunológico
para seu próprio corpo ma-
tar as células defeituosas
cancerígenas”.
FUTURO
A morte da mãe e o intercâm-
bio de um ano nos Estados
Unidos traçaram um novo
futuro para Giovanna Mota.
Ela volta ao Brasil dia 27 de
agosto. Quer concluir o ba-
charelado em Ciência da Tec-
nologia na área de Biomédi-
ca e prestar vestibular para
Medicina.
“Por mais que no laborató-
rio eu estude novas terapias
para o tratamento de pessoas
com câncer, quero ter uma
relação mais direta com os
pacientes. Quero me especia-
lizar nos Estados Unidos em
câncer de mama e desenvol-
ver um tratamento médico
que ajude as mulheres a não
perderem a autoestima e,
com ela, a imunidade. Eu me
senti impotente vendo a mi-
nha mãe falecer. Quero fazer
parte dessa mudança”.