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INTRODUÇÃO

Por onde devo começar a minha história?


Esta não tem começo, nem fim, apenas um desabrochar perpétuo, de
um botão com muitas pétalas de estranha botânica.
Devo, por exemplo, começar com Eliane. Lembre-se, por favor, Eliane,
não Elaine. Ela não tem nada a ver com a história, exceto que aconteceu de
começá-la. Ou aconteceu também de me começar com ela. Um dia, entrou
no meu quarto quando eu pensei que ela estivesse há três mil quilômetros
distantes, senão mais.
Ela abriu a porta e disse, “Aqui estou eu!” Bonita, atrevida e saudável,
um certo tanto de dinheiro e outro de cérebros. Nada extravagante. Só
determinado. O quanto for suficiente para aos propósitos dela.
Fiz o melhor para me expressar “Bem-vinda à Paris,” mas fiquei com
medo e não deu muito certo. Nós não éramos tais como aqueles grandes
amigos de volta para casa. Embora, na tórrida atmosfera de Paris, um gesto
vulgar de cumprimento rapidamente evolui à intimidade. Assim como entre os
americanos que acabaram de chegar. Como para mim, considero-me um
morador antigo, e Paris, uma cidade calma para se fazer um trabalho duro.
“Quero ir ao Zelli’s para ver Folies Bergère e ah! Tudo mais. Haverei de
trabalhar rápido porque, veja, tenho só uma semana.”
“Sim, claro.” Disse um pouco interessado, “e não se esqueça do
Louvre.”
“E quero ir à Doma e ao Select e comer no Dingo e no Foyot's.”
“Há coisas interessantes no museu de Luxemburgo,” adicionei. Mas ela
continuou. “E eu preciso assistir ao Moulin Rouge e Rat Mort.”
“E ao Cluny,” lembrei.
“Ah,” ela disse, “todos os lugares sobre os quais tenho lido muito.
Montmartre e Montparnasse. E você irá comigo.”
“Eu vou o que?”
“Você irá comigo. Ah, sei que você não tem dinheiro. Claro, que eu pago
para nós dois.” “Eu não tenho nenhum dinheiro,” disse sério, “e não tenho
tempo. Estou ocupado.”
“Ocupado com o que?” ela me perguntou inocentemente.
“Por que, minha criança querida, você olha todos esses livros?”
“Sim, claro,” ela respondeu, “mas eles já estão escritos, não estão? O
que você está fazendo, escrevendo-os de novo?”
“Você supõe que seja assim,” eu disse, ofendido pela recusa de ficar
impressionada. Ela pegou um volume: “De Rerum Natura. Das coisas na
natureza,” traduziu.
“Da natureza das coisas,” logo corrigi.
“Qual é a diferença?” ela perguntou. “Diga que você virá. Não seja
deselegante. Não há mais ninguém em Paris que eu conheça. Se você não
me levar para sair, terei que ir bisbilhotando com os outros turistas. E estou
cansada deles.”
“E meu trabalho?” A lembrei.
“Vai continuar,” disse. “Além disso, por que você não escreve ficção?
Assim você faria dinheiro. Eu li o livro mais divertido no barco enquanto estava
vindo. Juventude em Chamas. Você já leu?”
“Não,” eu disse decidido.
“Deveria. É sobre uma geração nova que está crescendo com a
liberdade. Eu queria conseguir levar minha mãe e meu pai para ver isso. Eles
não entenderiam. Mas você é jovem, deveria ficar conosco. Seja moderno.
Não um estraga-prazeres.”
“Você que é a estraga-prazeres,” disse. “Olhe, vou mostrar a você.
Aqui,” eu disse, abrindo um volume, “é uma citação de um antigo papiro
egípcio. 'As pessoas jovens não obedecem aos mais velhos. As leis que
governavam os pais estão ultrapassadas. Elas procuram somente o próprio
prazer e não têm respeito com a religião. Vestem-se indecentemente, e suas
conversas são cheias de impudência.' Você se acha retratada aqui? Sempre
houve uma geração mais jovem e sempre haverá. E os mais novos sempre se
julgarão espertos por si mesmos, e não por causa dos mais velhos.”
Mas minha sabedoria superior era pouco útil contra a sua persistência.
Nós fomos ao Zelli's. O champanhe estava excelente e caro, como de costume,
porém não me importo com isso agora. Gosto de cerveja. Lembro-me de ler
num restaurante alemão: Ein echter Deutscher mag kein Franzen nicht, doch
seine Weine trinkt er gern. Um alemão genuíno não suporta francês, mas
gosta de beber o seu vinho. Muitos franceses se sentem do mesmo jeito.
Eles não gostam dos alemães, contudo, apreciam muito bem a sua cerveja.
De fato, nunca é falado da cerveja em Paris, mas elas são boas mesmo. Eu
pedi uma no Zeffi's. O garçom deve ter pensado que sou louco.
Eliane bebeu champanhe. Esqueci o quanto. Ela dançou comigo. Depois
com um companheiro de pele escura, provavelmente um cubano. Então ela
decidiu que deveríamos ir a outro lugar – assim quando pensei que
estávamos indo para casa. Os taxis cobrariam a bandeira dois logo. Eliane
não tinha tais compulsões. Estava começando a achar Paris uma enorme
piada. E é, para pessoas que não precisam contar o troco e trabalhar
arduamente por uma faculdade.
Nós fomos para outro lugar, e para outro, de novo, e para mais algum
outro. Já me esqueci de todos aonde fomos. Há muitos lugares para ir em
Paris. Você não acharia nenhum deles nos Estados Unidos. São
cheios de americanos. O garçom fala inglês, a banda é americana,
os clientes voltam para casa. Qual é o objetivo de estar viajando?
Agora, manuscrito F.2839, do qual estava escrevendo minha tese, não
foi encontrada na América. Ora, eu havia de estar em Paris. Mas isso
desvaloriza? Há depreciações pelo mundo inteiro. E, pelo mundo todo, os
prejuízos são os mesmos. Porque o pecado é o mesmo ao redor do mundo. E
ele é sempre o mesmo. Desde agora, você esforçaria o cérebro até o fim do
mundo e não conseguiria cometer um novo pecado.
Lá pelas três horas da manhã, estava dizendo para Eliane que, bem,
agora, bastava. Mas ela aprendeu com alguém que havia um restaurante
aberto vinte e quatro horas em Les Halles, onde teria a sopa de cebola que
ela queria. Então nós fomos e logo chegamos lá. Pelo horário, eu estava me
confundindo um pouco, e havia mais duas ou três pessoas na festa. Não
consigo lembrar como nos conhecemos ou se nos conhecíamos. Porém, um
deles era um rapaz jovem, muito legal, pois, já estávamos numa discussão
profunda sobre mimese. Havia muito tempo desde que eu li alguma coisa
sobre o assunto, mas, em minha embriaguez, isso estava tão fresco
como se eu houvesse estudado no dia anterior.
“Aí que está o x da questão,” Eu disse, “que imita o excremento das
aves, assemelhando-se ao rasante dos pássaros. Há um inseto curioso igual
a uma vespa. E um besouro que se parece com uma formiga perigosa. ”
“Vocês não podem parar com isso?” disse Eliane. “Meu Deus, do que
vocês, homens, são feitos?” Levantou-se, em seguida, e começou a
dançar sozinha. Nós continuamos nossa conversa. Ele teve alguns pontos
muito interessantes para fazer. Esqueci quais são eles. Então percebi que
Eliane estava cantando o mais alto possível.
“Estou com calor,” ela disse, soltando rapidamente o vestido,
deslizando-se para fora dele, e começou a dar piruetas de calcinha de
seda e sutiã. O proprietário veio correndo, censurando-a e a todos nós,
como americanos vendidos. Mas Eliane não era de ser parada tão
facilmente. Ela se jogou nos braços de um homem estranho e disse,
“leve-me; eu sou sua. Quero ser toda sua. Só sua.”
Ele colocou os braços em volta dela e a levou até a mesa, onde ela se
acomodou sobre o seu colo, com os braços apertados ao redor do seu
pescoço, e suas bocas juntas pareciam coladas.
Eu fui até ele para discutir. Eliane o abandonou de imediato e disse para
mim, “Não fique bravo, eu também serei sua. Sim, serei. Rápido, me leve com
você.”
Foi onde eu errei. Pelo que foi dito, “Vamos, Eliane, pegue suas roupas e
me deixe levar você para casa.” Eu deveria ter me prevenido de cair nos
seus planos, ao invés de mandar vestir as roupas, que foi exatamente o
que ela não quis fazer.
“Se você não me quer, tem quem queira. Quem me quer?” ela gritou,
“Quem me quer? Quero um homem! Eu sou virgem e livre, e também branca e
apresentável. Vou mostrar para vocês,” e começou a arrancar o sutiã.
Eu tentei segurar os braços dela, mas ela me empurrou. “Eliane!” Eu
disse.
O estranho do colo em que ela se sentou veio até ela e disse, “Sabe,
querida, você é minha. Você deveria vir comigo. Nós pertencemos um ao
outro. Vou admirar o seu corpo pequeno durante a noite toda,” e outros tipos
de besteiras, as quais eu mesmo falo às mulheres, é verdade, só que soam
como besteiras quando você ouve outra pessoa dizendo. Essas coisas não
foram feitas para serem ouvidas o tempo todo. É uma cantada, nasceria e
morreria aí.
Ela o levou a sério e se derreteu sobre os ombros dele. Literalmente
derretida. Ficou toda molenga e firme no corpo do rapaz. Ele a afastou e a
convenceu a colocar o vestido. Em seguida, desceu as escadas com ela e
chamou por um taxi.
Eu tenho uma noção sutil de que ficava seguindo-a para tudo, tentando
fazer com que visse razão, lembrando-a do pai e da mãe. Também tenho a
mesma noção de que meu amigo da discussão sobre mimese ficava me
seguindo e me falando o tempo todo sobre a verossimilhança dos insetos.
Tentei entrar no taxi com Eliane e o seu amigo, porém ele me
empurrou para fora educadamente, ela com menos gentileza. Bem, assim é
o mundo.
Meu amigo continuou o que estava dizendo, “Ao menos que goste de
comer insetos, você conseguiria ter uma concepção clara do quanto a mimese
vai longe: há uma borboleta da família Euphaedra com o sabor idêntico ao de
uma da Aletis, apesar de não serem parecidas.”
“As coisas não ficaram um pouco misturadas?” eu disse. Nós
caminhamos à Torre Saint-Jacques, estávamos seguindo pelo rio Sena.
De repente, uma garota jovem nos parou e convidou para dar uma volta
com ela. Logo meu amigo perguntou, “Quanto?” Ela mencionou um tanto.
“Isso é muito,” ele disse. Ela ficou desanimada, cabisbaixa.
“Venha,” falou com uma expressão cansada no rosto pálido. “Não
quero qualquer dinheiro. Apenas você.”
Com isso, ele pegou o relógio e respondeu, “Está tarde. Desculpe-me,
em outro dia, se não se importa.” E, segurando-me pelos braços,
começou a fugir. Ela me segurou.
“Por nada,” repetiu desesperada com os olhos de ressaca fundos.
“Por nada,” respirou. “Por nada. Não quero nenhum dinheiro. Veja, eu
sou rica.” Ela abriu sua bolsinha e retirou um bolo de dinheiro. Rolos de
dinheiro não significam muito na França, mesmo assim, ela devia ser
rica. Estava bem vestida, eu percebi. Nada extravagante, nem
certamente simples. E todo o seu corpo estremecia como se estivesse
em febre. Os tremores percorreram para suas mãos e se comunicaram
comigo.
Meu amigo me afastou. Enquanto nos apressávamos, olhei para trás e a
vi parada onde deixamos, cobrindo o rosto com suas mãos.
“Por que você fez isso?” Perguntei. A ação do meu colega havia me
desagradado. Ele só queria provocá-la.
“Quis ver até onde ela iria. Eu já consegui fazê-las abaixarem até dois
francos, mas nunca até nada. Apesar de que o seu caso não vale, porque ela
não estava interessada em dinheiro. Ela é um caso patológico.”
“Acho esse tipo de jogo muito cruel,” respondi. Penso por mim mesmo,
ficarei feliz de me livrar de você.
“É uma doença,” ele continuou a falar. “Elas ficam como se
estivessem possuídas por um animal. Você sabia que há uma nova escola
da psicologia que está voltando às antigas crenças em possessões?”
Ele esperou por uma resposta e, então, disse brevemente, “Não.” Não
ficaria bem concluída se a resposta fosse sim, ele continuaria a
impor a sua opinião para mim de qualquer maneira.
“Com certeza, você já ouviu sobre Hyslop, né?” Afirmou. “Bem, eu
acredito que ele julgaria os dois exemplos que nós vimos esta noite como
evidências de possessão por espíritos bestiais.”
“Você tem certeza de que está certo?” Interroguei. Estava levemente
cético sobre a segurança desse conhecimento, retratado como a Torre de
Pisa.
“Isso também é psicologia antiga. Os romanos, por exemplo, pensavam
o apetite sexual insaciável como prova da possessão por um lobo.”
“Achei que o bode fosse o símbolo da insaciabilidade sexual.”
“Está errado,” replicou. “A palavra lobo é reconhecida no latim, no
termo lupus, com o mesmo significado que lobo. Você conhece o festival
romano Lupercália. Corresponderia ao nosso carnaval, e era caracterizado
pelo completo abandono da moral.”
“Lupércio não foi outro nome dado para o deus Pã?” Questionei.
“Sim, foi, apesar do nome significar o protetor contra os lobos.
Havia algo relacionado com a amamentação de Rômulo e Remo, por
uma loba, mas o sentido sexual se mostra pelo fato de, durante o
sacrifício dos bodes nesse festival, as mulheres que quiserem ficar
mais férteis se permitem serem açoitadas com tiras ensanguentadas
da pele cortada do bode.”
“Acho uma daquelas teorias normalmente construídas sobre
fundamentos muito banais,” defendi. “Soa como relativa, e não há nada que
eu considere menos. Além disso, há teorias das quais eu não me importo,
independente do quanto são boas.”
“Você falhou comigo,” retornou, enchendo os meus ouvidos com um
montão de argumentos dos quais me esqueci. Não estava
particularmente interessado, e uma discussão unilateral sempre me
aborrece. Além do mais, estava pensando na Eliane. Quando iria vê-la de
novo? E o que ela diria para mim? De fato, eu não a vi até alguns anos mais
tarde e, então, ela estava casada. Acho que com o homem que a atraiu para
fora do restaurante. Mas eu não perguntaria a nenhum deles. Inaceitável.
Haveria sido uma aventura romântica daquela noite, porém não estou certo
de que ouso defini-la como verdade.
Entretanto, alguma coisa aconteceu nessa noite. Como estava
começando a clarear, meu amigo, quem espero nunca mais encontrar, viu sua
fonte de palavras secando e disse que estava indo para o aposento, na Rue de
l'Ecole de Médecine. Estava indo por esse caminho? Estava, ou deveria ter
ido, pois moro próximo, mas falei não, estava indo por outro percurso,
então, finalmente, nos separamos.
Eu caminhei pelo cais, através de um parque pequeno na beira do rio,
depois fiquei sentado num banco. Minha cabeça estava vazia, ainda
perturbada com todos aqueles sons reverberando nela, como, às vezes, as
pernas ficam adormecidas quando alguém para depois de uma caminhada
longa.
Dois homens se aproximavam, cada um com um saco por trás dos
ombros, e começaram a colocar no chão os objetos encontrados nas lixeiras
da cidade durante um passeio matinal. Eles quebraram as lâmpadas
elétricas, separaram o soquete do vidro, e retiraram o filamento de
tungstênio. Eles tinham garrafas, pedaços de corda, peças de pano e
botões, num deles havia um rolo de papel embrulhado com uma fita.
Ele desatou a fita e desenrolou o papel. Havia várias folhas
encadernadas juntas e, pelo visto, cobertas por escritos. Eram tantos
que poderia vê-los de onde eu estava sentado.
Fiquei surpreso pelo que deveria estar escrito naquelas folhas revestidas.
Uma composição de algum garoto no colégio, sem dúvida: o esforço nobre de
um autor jovem cheio de aspirações. Ou algum relatório comercial, de data
ainda recente, talvez, sobre o uso da máquina de escrever continuar
desconhecido para muitos executivos franceses. Ou, então, uma outra
produção valiosa de um escritor famoso, um manuscrito que alcance preços
altos.
Mordido de curiosidade, me levantei e caminhei até os homens. Eles
olharam para mim agachados e responderam meu cumprimento. Fiz
alguns comentários genéricos sobre as dificuldades de se ganhar a vida.
Lembrem-se de que, neste momento, o franco estava despencando como
um cavalo selvagem, e um pouco de referência para isso me garantiu a sua
boa vontade. Não há mendigo tão pobre, mas, sim, o que ele aprecia a
pensar o status envolvido nas finanças internacionais.
Eu segurei o manuscrito, pedindo desculpas, “O que é esta coisa?”
Um dos homens me confirmou precipitadamente que, muitas vezes,
essas coisas trouxeram um bom dinheiro. O outro, vendo em qual direção
o vento soprava, entrou na conversa com uma rápida história, de um
Jean Alguma-Coisa que havia se aposentado com um único achado
dessa natureza. O primeiro soube de um caso ainda mais
surpreendente. Resumindo, parecia haver pouca dúvida de que os
homens ficariam ricos naquela manhã e já estavam bem preparados
para se aposentarem com os possíveis ganhos.
Uma olhada, todavia, me deixou ansioso para possuir o manuscrito. Esse
olhar havia acontecido nas palavras: Mais tarde, os templos lupercais
tornaram-se bordéis, ou lupanares. Ainda, hoje em dia, na Itália, lupa significa
loba ou prostituta.
Eu ofereci um franco. Os homens mexeram os ombros. Eles voltaram a
separar suas peças de metal e trapos, e trocaram algumas observações
rápidas, em sinais que eu não poderia compreender.
Assim, fiz uma coisa corajosa, e meu coração pulava de medo. Joguei o
manuscrito aos seus pés, dizendo, “Bonjour, messieurs,” e saí andando. Havia
dado uns dez passos, com dificuldade para inibir meu desejo de olhar para
trás, quando ouvi um deles berrar, “On vous le vend pour cinq, monsieur.” Eu
voltei e peguei as folhas escritas, dizendo o mais calma que eu poderia,
“Va, pour cinq,” e entreguei uma pequena nota de cinco francos.
Por isso, pela Eliane, de alguma maneira, entrei em contato com a
possessão do relatório de Galliez: trinta e quarto folhas muito bem escritas
de francês, uma defesa não solicitada do Sargento Bertrand Caillet na última
corte marcial de 1871.
A princípio, pensei em publicar a defesa como ela ficou, fornecendo essa
curiosidade com as notas necessárias para ajudar o leitor a compreender o
caso. Mas, segundamente, decide rever todo o material de uma forma mais
vívida, incorporando todos os resultados das minhas próprias investigações.
Devo confessar que o relatório de Aymar Galliez era de um interesse
convincente que deixei minha tese de doutorado de lado, para me concentrar
nele.
Desde suas primeiras palavras, o manuscrito exerce fascinação
instigante. Sua sabedoria é tão estranha quanto essas dos piramidologistas de
nossos dias, daqueles homens esquisitos que provam, muito veemente, que as
pirâmides do Egito foram construídas para serem, armazenados,
permanentemente, conhecimentos científicos, muito mais do que qualquer
um de nós possuímos no presente.
Galliez inicia:
“Os passos vastos da nossa geração na conquista do mundo material
não devem nos induzir a pensar que, ao mergulharmos nas profundezas do
mundo físico, também explicamos tudo o que há para explicar. Os cientistas
de um dia esforçaram-se muito para compreender a profundidade do mundo
espiritual, e para seus sucessos e conquistas não serão esquecidos.
Quem pode estimar o que devemos àqueles padres corajosos de
antigamente que foram às florestas drúdicas proibidas com um sino, um
livro, e balançando um incensário, exorcisaram os espíritos silvestras,
baniram os familiares, expeliram os elementares, expulsaram os monstros
e demônios da velha Gália? Quem pode estimar a dívida que devemos a eles
por ajudar a matar todas as bestas estranhas e inaturais que antes recolhiam-
se em toda fenda escura e recessos, sob samambaias e rochas cobertas de
musgo, esperando para saltarem para fora no vagante incauto que não
atravessou a tempo? Nem todos esses monstros eram igualmente maus, mas
todos constituíam inferteferências indesejáveis no destino do homem.
Se o viajante solitário de hoje pode caminhar destemido pelas sombras
da meia-noite das florestas silenciosas da França, é por causa da vigilância da
nossa polícia? Por que a ciência nos ensina a não acreditar em fantasmas e
monstros? Ou seria alguma gratidão justa à Igreja, que, após um milênio de
guerras, finalmente, conseguiu limpar a atmosfera da sua carga de terror
oculto e, assim, permitiu o desenvolvimento completo do ego humano?
Com isso, nós, que nos beneficiamos, não ficaríamos cegos de orgulho com
as nossas dívidas. Futuros pensadores, mais lúcidos, apoiarão minha
argumentação.”1
Antes de entrar nos demais conteúdos do escrito, deixe-me contar algo
de sua autoria. Quem foi esse Aymar Galliez? Quem poderia defender
tremenda teoria, como expressado no excerto acima? A Bibliothèque
Nationale falhou na minha instrunção. Oportunamente, eu pude consultar uma
Tout Paris do ano de 1918. Estava lá um Aymar Galliez, sous-lieutenant etc. Foi
tudo o que precisei. Eles devem ser parentes.
Em resumo, escrevi. Fui convidando a me introduzir e, então, agarrei a
oportunidade de fazê-lo. Não é muito comum que os franceses sejam tão
aprovados por um americano.
Eu descobri Aymar Galliez, agora, um lieutenant, um particular
companheiro elegante e agradável, com um bigode preto, sardas, olhos
escuros, contornados, na maioria, por cílios escuros, um sorriso pontual, que
sempre revelam dentes bonitos, de cor e textura das amêndoas descascadas.
Sua genialidade estava à frente do nosso tempo.
Por fim, eu indaguei (terminando, bruscamente, um debate enérgico
sobre Carpentier vs. Dempsey), “Aymar Galliez é um nome infrequente, não
é?”
Ele riu. “Eu acho que não houve mais de um ao mesmo tempo.”
“Acho que acertei, você deve estar se referindo a Aymar Galliez do
século passado.”
“Suponho que estamos pensando na mesma pessoa. Ele foi meu tio-avô.
Não acredito que houve qualquer outro Aymar Galliez'. Eu gostaria de saber
1
Alguma mão estranha rasurou na margem do manuscrito; “Quel cauchemar!” (Que
pesadelo!)
como você se deparou com o nome dele.”
Isso foi, exatamente, o que eu não quis contar. “Ah...” Hesitei. “Você
chegou a descobrir algum dos seus trabalhos?”
“Seus trabalhos?”
“Sim, as escrituras dele.”
“Não,” deixei escapar, pensando rápido: até que o trabalho dele é
conhecido. Mas as próximas palavras do lieutenant me confirmaram, “Na
Bibliothèque Nationale, eles têm muitos dos seus folhetos, mas todos
listados como Anônimo. Minha mãe está ansiosa para vê-los corrigidos, e à
procura das cópias assinadas, apresentadas aos amigos. Então, como você
descobriu o nome dele?”
“Porque... Veja, eu estou editando algumas correspondências e
encontrei o nome dele mencionado.” “Percebo.”
“E, como estou tomando notas do material, acho necessário dizer, pelo
menos, uma ou duas palavras sobre o homem.”
“Sim, claro. Bem, ele nasceu 1824 e morreu em 1890. Ele foi brutalmente
ferido, brigando na rua, em 1848, e minha mãe prefere pensar que ele ficou
um pouco maluco depois disso. Ele fez muita panfletagem política e, de
repente, decidiu estudar para o sacerdócio. Ele não foi um padre muito
exemplar. Frequentou sessões espíritas e mesa branca, e, depois que as
autoridades clericais franziram a testa para a sua inclinação, foi afastado da
Igreja. Ele teve uma paróquia em Orcières, viveu pelas proximidades até a sua
morte e está enterrado lá. Agora, isso é tudo o que eu consigo lembrar. Minha
mãe recorda muito mais.”
“Isso é mais do que suficiente,” disse. “Estou muito grato.” Guardei o
pedaço de papel em que havia feito minhas anotações.
“Eu posso perguntar em qual relação você encontrou o nome dele
mencionado? Minha mãe com certeza vai me perguntar isso.”
“Bem, ele apareceu como testemunha na defesa de um homem. Já ouviu
a respeito do Sargento Bertrand Caillet?” “Connais pas.”
“Bem, esse homem foi julgado pela corte marcial, e o tio-avô, sem
dúvidas, queria livrá-lo.” “Pelo que esse Sargento Bertrand Caillet estava
sendo julgado?”
“Ele estava sendo julgado por...” Quando minha voz falhou. Por nada no
mundo eu ousaria dizer isso. Eu não conseguiria ter arrancado essa palavra
pela minha língua se tivesse tentado. Algumas coisas não podem ser feitas.
Quem tem coragem de plantar bananeira na esquina da quinta av enida
com a quadragésima segunda rua? Determinadas atmosferas são
violentamente hostis a certas ideias, até mesmo as mais charmosas. Então,
finalizei de maneira incompleta, “...Por alguma infração.”
“Por alguma infração?”
“Por estupro,” disse, por fim. Estupro soou melhor no clima
reconfortante do pomposo lieutenant. Sim, estupro retumbou melhor. De
qualquer forma, melhor...
CAPÍTULO UM
Assim como Aymar Galliez inicia o trabalho com a lenda de
Pitavale e Pitamonte, devo fazer o mesmo, porém, atribuindo a mim,
com frequência, o privilégio de elaborar um tratamento muito raso.
O incidente descrito aqui parece haver, à primeira vista, nenhuma
relação com o caso. Assim como cavar um buraco embaixo de uma
casa não parece haver conexão com a febre tifoide, que le va uma
vítima atrás da outra. As fontes de doenças morais, muitas vezes,
também, despertam-se no passado.
Enfim, Pitavale e Pitamonte2 são dois castelos na França, em lados
opostos de um ribeiro, chamado Le Pit. Estou ciente de que, claro, no Joanne
Gazetteer não contém nenhuma citação de qualquer tipo de Pico. O fato é
que os dois castelos, dos quais dificilmente remanesceram vestígios,
agora olham um para o outro através de um vale seco. Quando o
desmatamento removeu o solo da superfície dessas colinas, o rio
secou. Mas o curso pode ser traçado por uma trilha de rochas subindo.
Os arqueologistas locais, se há algum naquela região montanhosa e
infértil, a 25 quilômetros oeste e sul de Grenoble, resolverão o
desaparecimento do nome desses locais.
Se o turista pode ver qualquer coisinha dessa região nos dias de hoje,
outro visitante, sem dúvidas, já viu abundância. Refiro-me a Viollet-le-Duc,
que ficou em êxtase nesse lugar e desenhou planos completos e uma
reconstrução imaginária. Isso, se não me engano, o leitor encontrará sob
2
Em Celta, pit significa ponto ou pico. Pitavale e Pitamonte podem ser entendidos
como Pico abaixo e Pico acima, ou Pico do vale e Pico da montanha.
o tema “barbeta.” Há uma referência muito próxima do assunto
“latrina.” Será retomado que Viollet-le-Duc sempre esteve engajado em
quaisquer vestígios da engenharia sanitária medieval. Possivelmente, havia
mais para se ver no próprio tempo.
Há tanto tempo quanto a história pode contar, os castelos de Pitavale e
Pitamonte foram armados pelas famílias, de uma casa original, onde era
constante a guerra de uns contra os outros. Nos dias mais recentes, as
duas casas foram divididas entre um território extenso e fértil. As
encostas renderam um vinho superior. As florestas engordaram os porcos e
produziram carvão e castanhas. O campesinato era difícil e disposto,
pagavam suas taxas ao senhor e padre, com generosidade e,
normalmente, muita paz.
Mas o estado de guerra entre as duas casas demonstrava, às vezes,
muita tentação para os camponeses da região, certos de que nada se compara
à paciência permanente de uma pobreza dolorosa. Eles abandonaram as
fazendas e migraram. Naquela época, ainda era uma terra livre na Europa.
Então, por que ficar onde a vida era insegura?
Como as propriedades começaram a produzir cada vez menos e menos,
os Pitavales e os Pitamontes, pressionados pelos custos de manterem os
feudos, iniciaram jornadas, descendo a colina, até a cidade de Grenoble,
onde havia uma agência Datini, ou até Avignon, onde a grande empresa
bancária da Datini fez sua sede. Pouco a pouco, eles hipotecaram o que
possuíam. O interesse também se acumulou. De vez em quando, os Pitavales
roubariam os Pitamontes e pagariam parte do que tinham para Datini. De
novo, foi a vez dos Pitamontes organizarem um golpe inteligente e
encontrarem dinheiro rápido por si mesmos.
Uma noite, um frade pedinte, perdido nessas montanhas, encontrou
hospitalidade no castelo de Pitavale. As mulheres, tratadas como miseráveis
pelos homens brutais do povoado, ficaram felizes pelo aparecimento de um
estranho com cara amigável. O monge venerável entretinha as senhoras
com as lendas da região da Itália, de onde veio. “O sol está irradiante e
quente lá para baixo,” ele disse, deslumbrado meditativamente com sua
barba comprida.
As senhoras estremeceram de excitação. Do lado de fora, o vento toava.
O sopro gelado entrava por baixo das portas e agitava o gramado no chão.
Um cachorro – ou era um lobo? – uivava além da floresta. Eles se
misturavam. O monge adicionou algumas palavras de latim.
Um jovem gigante de Pitavale bateu na mesa com sua mão robusta e
gargalhou em rouquidão. “Eu escuto esses homens lá, e em todos os
lugares, porque a moda pega, escrevem poesia, que eles cantam para as
senhoras, enquanto ressoam um alaúde. É isso mesmo? Homens fazem isso?”
O monge completou, “É um costume doce e gentil. Nosso Senhor
também amou muito a paz.”
As senhoras olharam com melancolia para o frade. Ele parecia carregar
aquele sol do sul e aquela poesia garbosa de amor consigo. Mas os
homens, vermelhos por causa do vinho, já haviam virado de costas para o
monge e discutiam suas próximas caçadas de javalis.
O fogo da chaminé apagou. A fumaça das velas queimava baixo. Os
homens e as mulheres saíram. O monge poderia esticar-se ao chão com
alguma pele de carneiro para se proteger da friagem.
O silêncio no castelo era extremo. A escuridão, absoluta. O monge
despiu-se da sua pele de cordeiro e se levantou devagar. Das dobras do
capuz, em puxou uma longa e afiada adaga. Ele, um Pitamonte, disfarçado
por uma barba franzida em segredo, estava livre no castelo de Pitavale
nesta noite. A respiração dele vinha e ía através dos dentes separados. Ele
marcara onde os homens e as mulheres foram dormir e, agora, dirigia os
passos lentamente pelas câmaras do sonolento Pitavale.
Parou na primeira sala. Uma claridade fraca brilhava das nuvens acesas
pela lua atrás delas, através da janela estreita. Ele caiu de mãos e joelhos e se
arrastou até a cama. As cortinas estavam abertas. Segurando sua adaga
com as duas mãos, ele a empunhou para cima e a fincou com toda sua
força no homem que estava dormindo ali. O único som foi atordoante,
como o que uma maçã podre faz ao pisar nela.
“O que é isso, Roberto?” a senhora atrás dele sussurrou com sono.
Pitamonte já havia soltado e embainhado a adaga de novo.
Silêncio.
Pitamonte fugiu suavemente daquela sala da morte e seguiu para a
próxima. Pela manhã, nenhum Pitavale foi deixado vivo no castelo. Esse
foi o fim deles.
Mas enquanto tateava o caminho de volta pela parede, o pé dele
enganchou numa fenda, e ele caiu de cara no chão. A sua adaga escapou de
suas mãos e rolou, aos ruídos, um pequeno lance de degraus.
“Holà! Hugues. Holà! Jouffroy. Explique-se!”
“É só eu,” disse o monge. O moço gigante Pitavale, pelado, veio e o
agarrou pelo pescoço. “E o que você está fazendo acordado aqui?”
“Só estava procurando por um lugar para me repousar,” explicou o
frade.
“As cinzas da lareira não estão boas o suficiente para você?” A esta
hora, todos no castelo estavam acordando, exceto os dois que
dormiram para sempre.
Na manhã, o novo mestre do castelo de Pitavale era o jovem gigante,
herdeiro da propriedade do pai. Pitamonte, o monge farsante, foi
trancado numa pequena cela, onde refletia sobre o desvio curioso que
arruinou os planos, tão próximos do sucesso. “Não estou com medo de
morrer,” disse para ele mesmo, com um deboche sobre os lábios.
No grande salão principal, o moço gigante sentou-se com sua adorável
esposa e cogitou. “Agora o que devemos fazer com o esse italiano feliz?”
zombou. Ela virou para o outro lado e chorou.
Ele convocou o pedreiro do vilarejo mais próximo. Os dois ficaram
sentados juntos por muitas horas, antes do serviçal chamar os assistentes e
começarem o trabalho.
Numa corte no interior do castelo, havia um poço antigo que não era
muito usado, um maior e melhor estava sendo construído num ponto mais
conveniente. Agora, o poço velho estava ampliado para o próximo nível de
água, um pouco mais permanente, com barras de ferro dispostas sobre o
buraco de água. A fossa foi construída perto da cisterna, com dois tubos, um
aberto ao nível de água rasa do poço, o outro, para ventilação, ligado à
superfície da terra. A quinze ou vinte metros acima da fonte, foi construída
uma cúpula. Antes de ela ficar concluída, o monge falso, meio asfixiado com a
fumaça, foi submerso na nascente. Logo a doma ficou pronta, por
completo, com um pequeno buraco central para ventilar. O negócio
inteiro foi estruturado com pedras firmes, polidas e cortadas para se
encaixarem sem rachas. Acima do terreno estava uma pequena estrutura,
também de pedra, barrada por uma porta de ferro pesada. Dentro dela, um
lance de degraus acessa a câmara de fumaça, logo acima da cúpula. Três
vezes na semana, um servo, acompanhado pelo mestre, entra na câmara,
atira um pedaço espesso de carne e ajoelha-se à entrada. Que cai com um
baque sobre as barras de ferro além do canal de água. Por meses, nenhum
som era respondido.
Quando Jehan Pitamonte acordou dos efeitos da fumaça, encontrou-se
dentro de uma câmara fria e escura. Ele estava pelado e arrepiado. O primeiro
pensamento dele foi que estava morto, e que isso era a vida depois da morte,
que os padres prometeram. Mas logo se desiludiu. Tateando aos redores,
descobriu que sua nova estadia era uma pequena cela circular. De pé no
centro, sobre uma grade de ferro, com os braços estendidos, suas mãos
tocavam os dois lados dela com facilidade. Havia apenas uma pequena fresta
sobre a continuidade circular da parede que contornava a cela, era um recuo
leve. No fundo dessa estrutura na parede havia um buraco circular, de meio
palmo de largura. Jehan supôs, imediatamente, para o que seria isso. A única
mobília da sala, se isso pudesse ser chamado de móvel, era um balde
preso à grade por uma curta corrente de ferro. Com isso, alguém
poderia estender a mão e pegar da água.
O suor frio que escorria do corpo de Jehan quando ele entendeu, por
completo, a natureza habitacional do lugar para onde foi transferido. Ele
estava dentro de uma masmorra, uma Fortaleza, por assim dizer . Ele já
ouviu sobre elas, mas nunca havia visto uma. Agora estava dentro de
uma. Mas não estava desesperado. Ainda houve momentos em que ria
ao pensar como enganou esses Pitavales idiotas. E como ele mesmo
matou o velho Pitavale e sua esposa durante o sono pesado.
Em breve, sairia desse lugar. O pai e os irmãos dele nunca o deixariam
aqui. Em qualquer momento, agora, ele esperava ouvir o barulho de um
machado contra a parede da prisão.
No entanto, nada aconteceu. Não houve nenhum som. E ele ainda
esperava ansiosamente. Eles viriam. Primeiro, claro, precisavam se
preparar. Viriam à força, derrubariam as paredes do castelo e matariam os
malditos Pitavales, homem e rato, cada um deles. Depois eles o
procurariam. E o encontrariam, não importa quão bem houvessem
escondido ele. Embora, certamente, a essa hora, dizia para si mesmo, uma
dúvida horrível surgiu em sua mente, eles já deveriam estar aqui, afinal,
deveriam vir. Talvez eles tivessem sido expulsos na invasão, e tiveram que
recuar para juntar mais homens. Com certeza eles não me deixariam
apodrecer aqui.
Não. Mas ele deve dar tempo a eles. Por quanto tempo estivera
aqui? Quem consegue contar o tempo na escuridão? Ele sobreviveu dois
dias na sala onde o prenderam na primeira vez. Então eles o deixaram
tonto com a fumaça e o trouxeram. Agora, quanto tempo faz desde que o
colocaram aqui? Pareciam dias, embora pudessem ser horas, porque
ainda não lhe deram qualquer comida, e ele sequer dormiu. Sem dúvida,
jogariam comida para ele uma vez ao dia, ele deveria sentir sono uma vez por
dia, e, assim, conseguiria contar o tempo. Ele queria porque queria manter a
sequência do aprisionamento.
O tempo passou. Ele cochilou e acordou, adormeceu de novo e acordou
mais uma vez. Estava faminto. Nunca o alimentariam? Colocaram-no aqui para
passar fome? Bom, assim, ele passaria. Melhor assim. Ele não estava com
medo de morrer.
O tempo passou. Ele estava fraco sem comida. Ouvia sons acima dele.
Um barulho de chaves. Alguém estava na câmara de cima dele. Ouviu vozes
exaustas sussurrando. Ele estava prestes a gritar, “Poton!” acreditando que
fosse o irmão dele. Então pensou nele mesmo. Esperaria para ver. Como
os outros prisioneiros caçoariam dele se cometesse esse erro.
Esperou. Não era Poton. Era o jovem Pitavale.
“Aqui, comida para você, meu solitário monge! Quer um banco para
rezar? Ou um alaúde para ficar tocando?”
Jehan não respondeu. “Argh! Se eu pudesse colocar minhas mãos
nesse pescoço gordo,” pensou. O cheiro agudo do frango assado
entrou em suas narinas. Alguma coisa caiu de cima e aterrissou na grade do
buraco de água. Os passos seguiram adiante. Uma porta bateu com força.
Suas mãos foram aproveitar o assado. Não. Ele não daria uma mordida
disso. Ficaria com fome até a morte. Também estava com sede. Sua garganta
doía. Precisava de água, não poderia prejudicá-lo e serviria como ajuda para
resistir à fome angustiante. Encontrou o balde no escuro e o deslizou pela
grade. A água estava fresca e agradável.
Essa carne estava tentadora. Essa crosta assada de frango gordo, com
que frequência teria mordido. Apenas outra noite como um monge à mesa
com os Pitavales... Mas esquecera de ajudar de se ajudar
deliberadamente. Sendo um monge, isso deve ser simples para ele.
Lembrou que não comia mais disso. O que conseguiria preveni-lo de
comer um pedaço enorme? A mesa ficou farta de comida quando havia
decidido ir pra cama. Era um frango e carne de veado. E um prato de verduras
picadas e camarões frescos num molho de vinagre. Bom, isso! Sua boca
salivou. Nos dois dias que estava trancado em outra cela, eles o
alimentavam com nada além de pão, pão velho e seco.
Por que estava pensando tanto em comida? Alimentação foi
importante no passado. Ele quis morrer. Acabaram as refeições. Mas ficou
em agonia com aquele frango assado enchendo a cela com o cheiro.
Ele se mataria e terminaria essa tortura. Se ele conseguisse pelo menos
levantar aquela grade e se afogar na água. Contudo, a grade estava presa com
muita segurança. Se pudesse se prender à parede e saltar para baixo. Porém,
enquanto ele conseguisse se segurar às paredes opostas, elas estariam
tentadoramente além do alcance de um bom desenvolvimento muscular.
Mediram ele para se certificarem das torturas extras desta prisão?
Ele bateu sua cabeça contra a parede. Começou a sangrar quando a
martelava contra a grade. Desmaiou. Mas, quando acordou, a primeira coisa
que o despertou foi o cheiro do frango assado. Dane-se essa carne. Atiraria
ela lá embaixo, na fossa. Livrar-se-ia. Sim, era isso. Lá embaixo, na fossa,
longe de todos os pensamentos de comida. Fora de alcance, fora da
consciência.
O frango era gordo demais. Um ganso, sem dúvidas. Não passaria na
abertura. Ele despedaçou em partes, desmembrando e lançando as peças
separadas abaixo. Ele as ouviu caírem longe. O grande corpo de frango,
entretanto, entalou no cano. Teve que empurrá-lo para baixo. Empurrou
tanto quanto poderia, e, logo, ele entalou de novo.
Lá, foi isso. Bom Deus! O que ele fez? Ele jogou fora sua única comida.
Estava começando a chorar de desespero. Não, ele não deve fazer nenhum
barulho. Isso seria vergonhoso. Eles estavam esperando-o chorar, em algum
momento, no qual iriam rir dele e provocá-lo. Não, nunca, nenhum som vai sair
dos lábios. Sufocou as lamentações em sua garganta, empurrando sua mão
para dentro da boca, para amortecer qualquer som que se esforçava a emitir
do corpo agonizado.
Ele começou a lamber as próprias mãos, vorazmente, esfregando os
lábios, passando com a língua entre os dedos para encontrar mais um
pedacinho de gordura que sobrou do frango que haviam jogado. Talvez, ele
ainda conseguisse acertar um pedaço grande, que acontecera de ficar difícil
para empurrá-lo abaixo pelo cano. Colocou o braço para baixo. Podia sentir o
frango debaixo da unha do maior dedo. Em vão, tentou prender alguma
projeção debaixo da sua unha do dedo e tirá-la. A carne estava muito mais
abaixo.
Um graveto! Só que ele não tinha nenhum. O balde! Só que estava
preso à grade por uma curta corrente. Porventura, sua perna. Alcançaria lá
embaixo. Só que, infelizmente, os dedos desajeitados serviriam apenas
para empurrar o assado ainda mais fundo. Lamentou, rangeu os dentes.
Gostaria do frango em alto e bom som. Mas nenhum barulho o traria até sua
boca. Ele rolou pelo chão gelado em agonia, quase, muito perto de desmaiar,
outra tortura que fora muito bem calculada.
Ele tentou se matar, em vão, respirando embaixo da água. Não
conseguiria fazer isso. O desejo dele de respirar ar era muito maior. Se
pudesse apertar a corrente ao redor do pescoço; mas não, não
conseguiria.
Passaram-se dias, semanas, meses, anos, antes dos novos sons lá em
cima. Dessa vez, nenhuma voz choramingou para aborrecê-lo. Ouviu como
se estivesse confuso, já que ficou fraco pela falta de alimentos, um corpo
pesado caiu dentro da sua cela. Logo os passos diminuíram, e a porta foi
fechada. Nenhum raio de luz entrou na prisão durante esse procedimento.
Atirou-se como um homem selvagem naquilo que havia caído na sua
câmara, tão rápido quanto a porta se fechou. Um pedaço enorme de carne
crua, gorda, com banha. Enterrou os dentes nele, ficou enjoado e arrotou
depois de tudo.
Ele ficou rigidamente faminto para contar o tempo. Descansou, em
seguida, e esteve tão esfomeado que acreditou que seria alimentado uma vez
na semana, ao invés de três vezes por semana, como achou que estava sendo
de verdade. Contou um ano em escassez, quando se passaram quatro meses.
Contou quatro anos, quando mal havia passado um. Então começou a
perder o cálculo. Parou de esperar, a cada dia, que um grande estrondo
irromperia lá de cima, do ferro sobre o ferro, depois a voz cansada de Poton
lamentaria, “Jehan, querido irmão, você está aí?” Isso nunca aconteceria.
Por estágios muito graduais da insensibilidade retratada, atingiu um
estado em que já não pensava em nada.
No subsolo da sua cela, a temperatura nunca mudou. Do lado de fora, as
tempestades de inverno devem ruir, e as trovoadas de verão bater na terra
seca. Dentro era sempre frio, sempre úmido, sempre escuro.
Nada mais importava para ele agora, além da comida. Cresceu para ficar
faminto no mesmo horário, três vezes por semana e, caso atrasassem para
atirar a carne na cela, latiria e uivaria como cachorro.
Passaram-se anos. De agora em diante, um Pitamonte inimizou os
Pitavales. De agora em diante, seria a vez dos Pitamontes executarem uma
vingança sangrenta. “Pelo irmão Jehan,” diriam eles, pensando que a morte
foi há muitos anos.
E, portanto, os anos passaram e foram acumulados em temporadas, e
agrupados em décadas. Passar am -se ci nq u enta anos comp letos
des de aq u ela noi te em q u e Jehan Pitamonte implorou para ser admitido
no castelo dos Pitavales, ainda do lado de fora, três vezes na semana. O
antigo mestre do castelo, com o dobro do tamanho pela idade, foi com as
chaves e o criado abrir a porta da superestrutura, levando a ventilação à
câmara acima da masmorra.
“Vamos esperar um momento, ou dois,” Pitavale dizia ao comissário dele
e sorria. “Ainda está cedo, pela sombra,” respondeu o criado.
“Se demorarmos mais um ou dois minutos, ele começará a uivar,”
pediu Pitavale e assentiu com sua cabeça.
Um dia, no escritório em Avignon, o velho Datini, o banqueiro, pegou
um maço de papeis das suas pastas e pronunciou que seria a hora de
resolver o negócio entre os Pitavale e Pitamonte. “Não tenho recebido um
centavo daqueles dois cães rosnentos. Está na hora de nos acertarmos as
contas.”
A viagem pelas montanhas era muito demorada, mas Datini não se
importou. Distraiu-se com uma cópia dos sonetos de Petrarca para Laura.
Além disso, prometeu para ele mesmo o prazer de parar em Vaucluse, no
caminho da volta, visitando sua fonte, imortalizada num dos versos de
Petrarca.
Até que um dia, os Pitavales foram privilegiados em entreter um
visitante que os despejou para fora da casa deles. Mesmo que não
houvesse muito o que ser despejado. Completavam-se anos desde que um
cavalo havia relinchado nos estábulos; da família, foi deixado apenas o
gigante enrugado pelos últimos tempos. Dos serviçais, estava, somente, o
comissário, muito idoso e enfraquecido para procurar fortuna em outro
lugar. Eles receberam Datini e os oficiais de justiça com cortesia.
“Que sorte que você veio,” disse o velho Pitavale. “Nós abatemos
nosso último porco ontem. Se você trouxe comida, estamos preparados para
recebê-lo.”
Datini carregava comida com ele. Comeram e discutiram negócios. “Eu
tenho parentes em Orange,” afirmou Pitavale. “Acho que eu deveria ir lá.”
Um uivo fúnebre, que parecia vir de fora, das entranhas da terra,
preencheu a sala.
“Não se assuste, Senhor Datini,” conjurou Pitavale com um sorriso. “É
apenas um lobo que mantemos numa fossa, no pátio. Aqui,” disse, virando-se
para o servo dele, “Leve esse pedaço de carne para ele.” Em seguida,
acrescentou, “Nós temos veneno para ratos? Coloque um pouco na carne e
nos livraremos desse animal inútil.”
“Um lobo,” sentenciou Datini, “gosta mais da morte do que cativeiros,
de qualquer maneira.”
“Isso,” Pitavale concordou. “Um lobo. Apesar de que esse tem um
pouco de espírito e só pensa na carne dele. Bem, estou pronto para
sair, vocês podem carregar tudo de uma vez só.” Levantou-se devagar. O uivo
cessou abruptamente.
“Não é necessária toda essa pressa sua,” Datini retomou, “Eu ainda
tenho negócios a fazer com os Pitamontes pelo caminho.”
“Então? Meus amigos estão lá fora para partilharem o meu destino?
Acho que eu terei uma companhia mais agradável na minha partida.”
“Você deveria se envergonhar por falar assim dessas duas senhoras,”
disse Datini. “Acho que vou deixá-las ficar pelo resto da vida delas. Elas estão
com mais de setenta.”
Algumas horas mais tarde, logo que Pitavale e o comissário estavam
prontos para partir, com os pacotes sobre as costas como os camponeses
mais pobres, uma senhora idosa veio até eles com pressa.
“Senhor,” ela chorou, atirando-se de joelhos e prendendo os
braços nas pernas do velho Pitavale, “Você não seria tão cruel de deixar
esta terra e não me contar onde meu pobre Jehan está enterrado?”
“Como eu poderia ser tão cruento?” Pitavale protestou, dando um
cutucão, em segredo, nas costelas do comissário. “Aqui,” ele disse, “é a
chave da sepultura em que foi enterrado. Nenhum rei sequer teve uma tumba
mais apropriada. Nem os monges,” acrescentou. “No pátio de trás você
encontrará uma porta à qual isso se encaixa.”
Pensando bem, é estranho que lá houvesse e funcionasse, em Genoa,
um asilo para crianças pobres, fundado por esse Datini, em que os bambinos
de narizes ranhentos dessa cidade deveriam ficar, às custas do
dinheiro que Datini fez sobre os Pitavales e Pitamontes. Pois foram os
genoanos mais sérios os homens de negócio, de quem Datini herdou as
propriedades das famílias rivais, em estado de guerra, que decidiram que o
desmatamento pagaria melhor e traria retornos mais rápidos. Os
resultados foram que Datini foi reembolsado, e a região ficou
permanentemente empobrecida pela erosão do solo.
Os registros de qualquer Pitavale nos séculos seguintes são escassos. De
fato, encontrei apenas um, Gayot de Pitavale, no século dezoito, que se
mudou de Lyon para Paris e levou uma existência desgraçada como
funcionário da lei, ou escrevendo trabalhos sensacionalistas. Na verdade,
não foi assim até ter a ideia brilhante de reunir, em um volume, os
contos brutais dos crimes e detenções que juntou pelos tribunais, o que
mudou o destino dele e o tornou conhecido por toda a Europa.
Sobre isso, havia somente um volume das histórias policiais no
continente. Em curto prazo, surgiram plagiadores demais, mas ele
conseguiu publicar umas vinte obras para continuar o sucesso. A
tradução alemã da compilação dessas histórias f oi introduzida por
Schiller. Hoje, apesar de ele ser quase desconhecido, o exército
dos escritores policiais que fi caram ri cos desde suas
descobertas cobrariam, deles mesmos, uma estátua dele em
ouro. 3
Quanto aos Pitamontes, nós devemos ficar na companhia deles pelo
resto deste livro e reconhecê-los, apesar dos disfarces.

3
Recentemente, em 1903, na Alemanha, apareceu uma série chamada Pitavale der
Gegenwart (Os dias atuais dos Pitavale). Mais tarde, as bancas de livros trari am
um compêndio Der Prager Pitavale (Histórias criminais de Praga).
CAPÍTULO DOIS
Quem examinou a excelente história de Favre, da polícia moral da
Europa, estou certo de que não falha em perceber e memorizar, em
particular, esse caso impressionante, em que Favre intitulou, com um senso
de humor impiedoso (alguns acharão comum): “Sofram criancinhas para vir a
mim...”
O caso que lieutenant Galliez considera, com brevidade, na página três
da sua defesa é, evidentemente, o mesmo, embora nenhum dos nomes
estejam mencionados, com exceção do de Pitamonte. Já a descrição de Favre
é muito completa e precisa, como os nomes e as datas. Sigo as considerações
dele nas partes principais.
No início de 1850, em Paris, morava uma viúva chamada Mme. Didier. O
marido e ela vieram das províncias, e ele se situou no mercado de joias. Foi
bem-sucedido de uma maneira justa, deixou sua mulher bem estabilizada
quando morreu. Eles se mudaram para um belo de um apartamento novo
no Boulevard Beaumarchais, não muito longe do Boulevard des Filles-du-
Calvaire.
Há uma razão pessoal para eu mencionar isso, pois nessa mesma rua
morava e trabalhava um padre, o confessor favorito da Mme. Didier, cujo
nome era Pitamonte.
Mme. Didier vivia muito sozinha, exceto pelas visitas frequentes de
um sobrinho, um homem jovem que foi ferido gravemente numa briga de
rua, em fevereiro de 1948 e, desde então, dedicou-se à panfletagem em
apoio a Napoleão. As últimas viradas rápidas entre conservadorismo e
imperialismo foram um pouco demais para o sobrinho da Mme. Didier,
que ainda mantinha o ódio da Igreja e da aristocracia. Até o momento,
ele estava indeciso sobre seguir o líder ou continuar o próprio
caminho.
Certa vez, Mme. Didier recebeu em sua casa uma garota jovem, de uns
treze ou catorze anos, uma órfã do próprio vilarejo natal. Josefina foi
recomendada para ela, pelo senhor da vila, como uma garota boa e obediente,
que poderia ser útil para ela nos serviços domésticos.
O sobrinho estava sentado perto da janela, olhando para a rua do lado
de fora. Estava um dia quente, fora da temporada do meio de março. De
repente, o tempo ficou sobrecarregado. “Quero dizer, vai começar a chover?”
ele exclamou.
“Você acha que vai?” Mme. Didier perguntou.
Então começou o estrondo dos trovões, e os relâmpagos, a distância,
ficaram visíveis. “Você ouviu isso?” o sobrinho respondeu.
“Bon Dieu,” Mme. Didier ejaculou. “E eu não tenho uma gota de água
benta na casa.”
“Água benta?” o sobrinho gargalhou. “Deus do céu, você não continua a
praticar essas coisas sem sentido, continua?'
“Guarde o seu sarcasmo para os seus panfletos, meu amigo,” a tia dele
retornou calmamente. “Eu sempre borrifei água benta quando uma
tempestade se aproxima. Você quer que todos nós sejamos atingidos por um
relâmpago?”
Ela colocou suas agulhas de tricô de lado. “Minha mãe fazia o mesmo. E
ela viveu até os oitenta anos de idade. Mas por quem eu posso chamar?”
pensou de repente. “Françoise está fora.” Françoise era o cozinheiro e a
única outra pessoa da casa.
“Chame Josefina,” ele sugeriu. “A não ser que queira esperar eu ir e
voltar.” “Mas só faz três dias que Josefina está aqui,” ela advertiu. “Ela ainda
não sabe o caminho dela.” “Meu Deus, você não precisa conhecer Paris inteira
para dar uma volta até a esquina.”
Então Josefina, a garotinha das províncias, foi chamada e dada direções
explícitas de como chegar à pequena capela da esquina e encontrar o padre
Pitamonte.
“E depressa, por favor,” disse Mme. Didier, enquanto mais um estrondo
de trovão ressoava pela sala. Josefina saiu correndo, direto àquele monte de
trovões violentos. Ela correu pela esquina, repetindo para ela mesma, de novo
e de novo, as orientações que Mme. Didier havia dado para ela. E, assim,
chegou à capela e atirou-se, quase de cabeça, para a escuridão do lado de
dentro.
Ela estava com molhada até a pele. Sua roupa, grudada, revelando sua
delicada feminilidade. Os seios já começaram a crescer. Eles enchiam o vestido
claro. Os mamilos estavam duros e pressionados, com arrepios. Mais
tarde, eles machucariam. Françoise já falou sobre isso, “Você tem dores do
amadurecimento, todo mundo tem.”
Iluminada pela luz dourada e trêmula das velas, ela fazia uma imagem
sedutora, pensou padre Pitamonte. Ficou por um segundo assistindo-a de pé,
em especial, os tumultuados seios eriçados. Antes que ele pudesse
perceber, foi tomado por uma onda de desejo, que calava a voz da sua
consciência.
“O que é isso, minha garotinha?” disse, vindo do pilar de trás, onde
estava observando. Assustada e, agora, completamente perdida, uma
inundação de palavras incompreensíveis saía dos lábios dela.
“Por que você está toda arrepiada,” ele simpatizou. “Venha, esquente-se
com uma taça de vinho.” Ele a conduziu de volta até a sacristia, com gentileza,
despejou duas porções generosas do vinho consagrado, e o fez beber uma
taça enquanto ele esvaziava a outra.
Confusa e atordoada, ela permitiu que ele a acariciasse e a pressionasse
em sua batina. Estava quente e confortável ali. Mas o seu pavor
aumentou quando o sentiu tocá-la, do jeito que Françoise, no dia
anterior, havia alertado para que ela não deixasse ninguém a tocar.
Agora ela queria se libertar, mas os membros pareciam paralisados.
Tentou soltar-se um pouco, mas a força dele era maior. E ele continuou
derramando estranhas palavras de consolo no seu ouvido. Deixou levá-
la para o sofá e fazer com ela o que ele quisesse.
Ela saiu sem dizer uma palavra da sua missão. Já devia ter esquecido o
propósito de sua vinda. Nos ouvidos dela, apenas ressoavam frequentes as
palavras do padre, e repetiram-se insistentemente na cautela de ela nunca
contar nada do que havia acontecido. Ele a fez jurar pela cruz.
As trovoadas já haviam cessado quando Josefina retornou. Ela veio
caminhando, olhando ao redor com os olhos bem abertos, um dedo
puxando para baixo o lábio inferior, como se ela não conseguisse mais
reconhecer os próprios pressentimentos.
“Por quê? O que acontece com você, Josefina?” Mme. Didier
questionou. Ela ficou apenas um pouquinho preocupada com a ausência da
menina, em grande parte porque se recusou a olhar que a garota
carregava o casaco. 'Enquanto Josefina não retornava, Mme. Didier presumiu
que, presa no temporal de raios e trovões, ela ficou refugiada e voltaria
quando a chuva acabasse. E foi exatamente o que aconteceu. Mas por que ela
retornaria como se tivesse visto o diabo em pessoa?
Mas Josefina não respondia, balançou somente – sua cabeça.
“Venha, Josefina, não crie problemas. Conte-me o que está chateando
você.” Ela continuou a balançar apenas a cabeça.
“Ela pegou um resfriado. É isso!” Mme. Didier exclamou. “Por que suas
roupas então secas? Não, elas estão um pouco úmidas. Diga-me, você ficou
presa na chuva? Ou você chegou à capela a tempo de escapar do seu pior?
Deus do Céu, por que a criança não vai responder?”
Josefina ainda não deu nenhuma resposta. Com isso, Mme. Didier
perdeu a paciência e declarou, repreendendo-a com grosseria, “Vá logo para
cama, de uma vez. E não me deixe ver você de novo até você encontrar sua
língua.”
“Aproxime-se, minha tia querida,” o seu sobrinho falou, da sua cadeira,
próxima à janela. “Dê uma chance para a pobrezinha. Antes, você estava
pensando que ela fosse incapaz de ir até a esquina. Talvez, ela se perdeu
mesmo no caminho. Deixe-me conversar com ela.”
Porém, suas tentativas não tiveram mais sucesso do que àquelas da sua
tia. Por fim, Mme. Didier disse, como se a ideia fosse uma inspiração do alto,
“Já sei, ela vai comigo ao padre Pitamonte. Claro que ela não se negaria a
conversar com ele.”
Assim que suas palavras foram inspiradas, uma torrente de palavras saiu
de Josefina, subitamente, tão misturadas com soluços, que ninguém
conseguiria compreender nem o início, nem o fim delas. Ao mesmo tempo em
que se atirou possessa no chão.
Mme. Didier estava tão surpreendida com ela mesma que não
poderia supor qualquer palpite. No entanto, o sobrinho,
alimentado pela literatura anticlerical, berrou de uma vez, “O que
ele fez para você?”
“Ele fez o que Françoise disse que não deveria,” Josefina chorou,
redobrando os soluços. O sobrinho riu com um cinismo sarcástico. “Então é
isso o que padre Pitamonte é. Um papa-anjo.”
“Ora, eu não entendo o que o padre Pitamonte tem a ver com isso,”
Mme. Didier explicou, perdida por completo.
Pelo sobrinho, isso estava resolvido imediatamente. Agora era a hora de
romper com Napoleão, que, no momento, estava de folga numa visita ao
Papa, e lançar esse escândalo saboroso à ceia pública. Ficou tão preocupado
com a sua própria solução, que esqueceu o mais importante debaixo do nariz,
e levantou-se da cadeira com ajuda da bengala, determinado a procurar o
editor da La Solidarité.
Mme. Didier, embora, não deixaria ele ir até ela entender o sentido de
todo esse trabalho. E quando ela ouviu, de novo, não o deixaria partir até que
ele prometesse não dizer uma única palavrinha a ninguém. O motivo dela era
que a criança ficou histérica, por isso nunca acreditaria nela até que o
principal fosse totalmente investigado. O argumento dele foi mais simples:
todo ou, pelo menos, a maior parte do seu dinheiro vinha da tia, e, mais
tarde, esperava herdá-lo algum dia. Ele não poderia ser um panfletário
político sem o apoio dela.
Entretanto, Mme. Didier foi até a capela e, como não viu ninguém por
lá, encorajou-se e bateu na porta da sacristia. Não tendo nenhuma resposta,
ela entrou. O padre Pitamonte estava dormindo num sofá. Com sono, ele
não aparentava mais o homem sagrado que ela estava acostumada que ele
fosse. Ele parecia velho e grosseiro. Suas características pesadas, em
particular, suas sobrancelhas espessas, juntavam-se com um forte
crescimento de cabelos acima do nariz, dando-o uma expressão estranha,
quase bestial. Nesse instante, Mme. Didier esteve perto de acreditar, mas
conteve-se por medo de cometer uma injustiça contra ele.
Sentindo o peso do seu olhar sobre ele, abriu os olhos. “Como?
Madame, é você,” exclamou e levantou-se em seguida.
Encurtando os seus cumprimentos, ela logo entrou na história. Ele
balançava a cabeça, como se o assunto fosse grave e sério, porém de
nenhuma atenção especial para ele.
“Uma menina de uns quatorze anos, você diz?” ele perguntou, como se
estivesse tentando lembrar, talvez, se havia visto ou não uma garota em
algum lugar.
Nesse momento, Mme. Didier espiou sua bénitier, o vasilhame
dado à Josefina para guardar a preciosa água benta. Estava jogado
no chão, próximo ao sofá. Assim que ele viu, também. Como ele
conseguiu esquecer-se de tirá-lo dali! Deixando de lado o papel que
havia assumido, jogou-se aos seus pés. Mas ela apressou-se a levantar
e fugiu correndo, dominada com terror.
Ela desobedeceu ao aviso do sobrinho e não fez nenhuma queixa para a
polícia, em vez disso, levou o seu caso para o bispo, antes do padre. Já havia
relatos, anteriores a essa noite, sobre o padre Pitamonte ter escorregado
da batina e, vestido com roupas cívicas, frequentado os becos mais
desonrosos da cidade.
Não houve remorso, da parte do bispo, contra chamar a polícia. Porém,
pela época, a lei entrou no caso, e o padre Pitamonte desapareceu junto com
alguns artigos valiosos, como pertencentes à igreja. 4
“Nós nos livramos dele,” pensou Mme. Didier. Na verdade, ela
estava muito longe de se livrar do padre Pitamonte, apesar de nunca
mais tê-lo visto de novo.
O seu sobrinho, Aymar Galliez, desistiu dos aposentos próprios e mudou-
se para o apartamento da tia. Isso aconteceu tanto para guardar dinheiro,
quanto para estar perto dela, no tratamento das suas graves feridas. Ela
deixou uma oração para os ataques de melancolia, nos quais ele não poderia
suportar a solidão.
Um dia, ele estava sentado no seu lugar favorito, próximo à janela,

4
O relatório desse roubo à polícia desvendou toda a história e, assim, chegou ao
conhecimento de Favre, que o incluiu, entre vários casos, ao capítulo: “Sofram
criancinhas para vir a mim...”
fazendo anotações ocasionais num bloco de papel. Ele tinha mania de se
distinguir no campo da literatura, mas ainda não estava muito certo da
forma que seria esse grande trabalho que se propôs a escrever. Muitas
coisas boas estavam aparecendo ultimamente, em todos os sentidos. Bem
recentemente o mais jovem Dumas eletrizou Paris com Dame aux Camélias,
e uma revolução na escrita estava ganhando espaço. Todos os intelectuais
estavam falando excitados sobre o novo jeito de escrever. A palavra
mágica era realismo.
Ele estava ficando aborrecido com o constante entra e sai de Josefina.
“Mas que diabos essa garota está querendo aqui a cada minuto?” perguntou
irritado. Como toda natureza melancólica e tanto quanto ele odiava a solidão,
estava nervosa com a presença de outros. No entanto, depois de um instante,
ficou interessado na menina por ela mesma, perguntando se aqui não estaria
o assunto para um pequeno e incisivo esboço: uma jovem garota seduzida
por um padre e, por causa disso, rejeitada pelo pretendente legítimo. Ou,
talvez, a garota seja muito apaixonada pelo padre, e ele deve abandonar
sua religião para se casar com ela. Contudo, isso era muito clichê, já leu
incontáveis coisas desse tipo. O problema com a literatura era que todo
tema já havia sido concluído. Não havia nada novo para pressionar a
caneta.
Conforme os pensamentos dele fluíam, quase se esqueceu da garota.
Aos poucos, no entanto, começou a perceber o estranho comportamento
dela. Não havia dúvida sobre ele, ela estava tentando chamar a sua atenção.
Então, enquanto arrumavam ostensivamente a sala e as coisas, ela se virava
para ele a cada momento, olhava-o com olhos grandes e, depois, para longe,
como se estivesse ausente. Entretanto, o corpo dela contorcia-se de
alguma maneira positiva e indecente. O tronco estava em constante
movimento sinuoso, como o corpo de uma serpente. Os seios dela
subiam e desciam enquanto suspirava audivelmente.
Quando ela viu que ele estava olhando para ela, parou. Mas, um
momento mais tarde, aproximou-se dele e pegou um papel do chão. Ela
perguntou, “É seu?” E quando ele a agradeceu, ela continuou, “Eu devo
abrir a janela mais um pouco?” E, de novo, “As cortinas estão voando em
você?” Tudo daquilo que ele achava mais irritante. Inclinando-se sobre a
pequena mesa para alcançar as cortinas e amarrá-las de volta, ela pôs o corpo
jovem contra o rosto dele. Ele respirou o calor da sua carne. Ao contrário de si
mesmo, sentiu uma compulsão forte. Encontrou umas desculpas ou outras
para dispersar a menina, perturbado por completo e, por um longo tempo,
incapaz de se concentrar nos afazeres literários.
CAPÍTULO TRÊS
Um dia, enquanto ele mancava, a porta da cozinha abriu, e Aymar ouviu
ser chamado por Françoise, “Sr. Aymar! Pssiu! “
Virou-se. Ela acenou misteriosamente para que viesse até a cozinha e,
então, assim que ele havia seguido o chamado, ela fechou a porta e murmurou
para ele, “Você sabe que coisas terríveis estão acontecendo aqui?”
“Por quê? Não” respondeu por sua inocência. “Eu me refiro à Josefina.”
“Como? Qual é o problema com ela?” Ele queria dizer, “Como? Qual é o
problema dela de novo?” mas se conteve, não tendo certeza de que Françoise
foi informado sobre o caso de Pitamonte, já que Mme. Didier havia ficado
muito preocupada em manter o assunto quieto.
“A conduta dela é... como eu posso dizer, monsieur... c'est une
dévergondee!” “O que você está falando?”
“Estou falando do menino do açougue, o filho caçula do porteiro, o
quitandeiro mesmo, todos, simplesmente todos eles ficaram com ela. E, se
eles não ficaram com ela, pois, foi porque seriam decentes o suficiente
para rejeitá-la. Sim, monsieur, eu nunca pensei que isso aconteceria nessa
casa. Uma garota jovem, do campo. Porque, quando ela chegou aqui, agia
como se não conhecesse A de B. Monsieur, a vizinhança inteira está falando
sobre isso!”
“Você tem certeza disso?” disse Aymar, apesar de que ele já estava
convencido. “Como você sabe que isso só não é uma fofoca maldosa?”
Então ela contou para ele como viu as coisas com os próprios olhos.
Como flagrou a garota e o filho do açougueiro se engalfinhando no sótão, de
uma maneira que não deixou dúvidas. Depois disso, ela proibiu a menina de
deixar a casa, mas ela fugiu para longe. Claro, as pessoas diriam se aparecesse
outra garota arruinada pela cidade amaldiçoada, mas ela sabia da sua razão.
Aquela menina deve ter trazido com ela aqueles hábitos do campo.
Aymar deixou ela continuar duvidando dele mesmo. Essa poderia
ser a primeira demonstração de perplexidade, tristeza e vergonha ou
mera atuação da parte de Josefina? Não. Impossível. A garota era pura
antes. Foi o padre Pitamonte que despertou essa besta no corpo dela. O
senhor, proprietário do vilarejo da Mme. Didier, nunca recomendaria uma
garota com mau caráter.
“O que eu quero que você me diga, monsieur, é como eu deveria falar
das notícias para a Madame. Tenho medo de ir até ela com todo esse
problema. Ela já sofreu bastante, podre Madame.”
“Deixe isso para mim,” Aymar a consolou. “Vou cuidar de tudo.”
“Sim, mas de uma vez por todas. Quem sabe o que vai acontecer? Na
noite passada, eu acordei e a encontrei em nossa cama. Eu esperei, pensando
que ela sairia da cama em breve. Devo admitir, monsieur, que ela não estava
em casa, afinal. Ela destrancou a porta e fugiu. Deve ser Jeannot, o filho
do açougueiro, quem abriu a porta debaixo da escada para ela. Eu caí no sono
de novo e, quando acordei, ela já estava de volta na sua cama e negou que,
sequer, esteve fora dela. O que a gente faz com essa criatura?”
“Deixe comigo,” Aymar disse, mais uma vez, duvidando do que ele
poderia fazer.
Mas, naquela noite, Josefina esperara eles na mesa de jantar, como de
costume. E, como sempre, olhava em contato irritante com Aymar. Mesmo
assim, a sua cara de garotinha expressava nada além de ingenuidade e
pureza. Como aquela ternura imatura traçariam algo mais? Quando ela
saiu da cozinha, estava ocupada com a própria refeição e com lavar as louças,
Aymar desabafou para sua tia.
“Você vê alguma mudança na Josefina desde aquele incidente terrível?”
“Felizmente, não. Ela parece ter superado isso e espero que logo tenha
esquecido por completo.” “Você acha mesmo que ela era inocente quando
chegou aqui?”
“Como? Sim, claro. Por que você está me perguntando isso?” “Só
perguntei.”
Ela procurou um argumento agradável para ela mesma: Josefina foi a
causa da sedução do padre Pitamonte, dele ter se atirado aos encantos dela.
Mas, assim que pensou nisso, então, percebeu que poderia não ter sido assim.
As ações subsequentes do padre não condiziam com essa visão. “Por que
você está me perguntando isso?” ela repetiu.
“O comportamento dela não tem sido irrepreensível ultimamente.” Ele
desviou o assunto, preparando-se antes de pisar em casa.
“O que ela tem feito?” Mme. Didier perguntou.
Ele contou para ela, em poucas palavras, reduzindo o caso ao mínimo e
omitindo todos os ornamentos que causassem muito mais aborrecimentos
para Mme. Didier. Por um momento, ela recordou-se pensativa e, então,
decidiu, sabiamente, que Josefina ficaria num lugar onde estivesse segura
e vigiada, onde se lembraria até dos próprios atos mais maldosos até
o caso dela. “Toque a campainha para Françoise e vamos ver se ela
conhece alguma casa boa, onde possamos deixar a garota.”
Françoise apareceu e ouviu a decisão da senhorita. Enquanto
ficava impaciente com o assunto e lançava certos olhares para o Sr.
Galliez, como se dissessem, “Há mais uma coisa que preciso contar para
você”, até que Aymar não conseguiu mais ajudar, exclamando, “Vamos
acabar com isso, Françoise!”
Françoise respirou fundo, como se criasse coragem; depois abaixou sua
cabeça com autoconfiança (ela não seria culpada por nada) e disse para ela
mesma: “Josefina está grávida.”
Houve um momento de silêncio profundo, que foi necessário, para
cada um. Desde quando? Françoise não poderia dizer, mas pelo que Josefina
contou para ela, havia dois ou três meses.
“Como? Ela está aqui só há três meses,” Mme. Didier confirmou. “Sim,
madame,” disse Françoise obediente.
“É aquele maldito pa...” Uma olhadela da tia logo fez Aymar interromper
a frase.
“Continue, Françoise. Eu vou falar com ela sozinha,” disse Mme. Didier.
Pouco depois, Josefina chegou. Simplesmente vestida, recatada, com a
flor da inocência rústica ainda nas suas bochechas. Só quando ela olhou para
cima, os olhos escuros e ardentes dela desmentiram a modéstia e
humildade.
“Minha pobre criança,” disse Mme. Didier e colocou suas mãos sobre os
ombros de Josefina. “Você sabe que vai ter um bebê?”
“Oui, madame.”
“E você é muito jovem.” “Oui, madame.”
“Pobrezinha.”
“É porque eu saio com garotos, como Françoise fala, madame?” “Ah,
criança, por que você faz isso?”
“Eu gosto disso, madame. Eu devo mesmo parar? Eu me esforcei
muito para não fazer isso, mas eu não posso parar eu mesma. Em casa eu vi
todos os animais fazerem isso e, ora, ninguém impediu eles.”
“Mas, Josefina, minha criança, nós não somos animais. Você nunca viu
humanos fazendo essas coisas, viu?” “Não, madame. Apenas a mamãe e eu
em casa...”
“Sim, para ter certeza,” disse Mme. Didier e mordeu o lábio. “Homens e
mulheres nunca fazem isso?”
“Shh.”
“Porém, o padre Pitamonte foi o primeiro a fazer isso contra mim.”
“Shh! Shh! Ele foi mesmo o primeiro?”
“Sim, madame.”
“Você infelizmente… Desgraça. O que devemos fazer com você agora?”
“Françoise fala que você me enviará para longe porque eu sou má. Não
me expulse.”
“Eu vou procurar um lar bacana para você.” Ela estava pensando na
casa da Duquesa de Angoulême para meninas rebeldes. Mas uma segunda
ideia fez com que mudasse sua decisão de colocá-la numa casa. Ela queria o
mínimo possível das explicações do caso. A melhor coisa a se fazer era
esclarecer o assunto com ela completamente, dar um aposento tão
bom para ela ficar quanto conseguirmos achar, e deixar que as coisas
sigam o curso natural delas. Todas as feridas cicatrizam com ao longo do
tempo, e aquelas que não são curadas são cobertas pela sepultura.
Josefina parecia muito resignada com ela mesma pelo destino dela. Foi
assim somente pelos primeiros dias, que ela sofreu pela falta de suas
escapadas noturnas. Aqui, na sala que eles encontraram para ela, já não
estava saindo de noite, nem em qualquer horário, para compensar. E,
durante todos os anos da vida dela, Josefina ficou ocupada dia e noite, não
como na pequena fazendo onde morou com a mãe viúva, mas, sim, como
no lugar de Mme. Didier, sob a direção Françoise. Havia uma constante
sucessão de tarefas para mantê-la ativamente em trabalho durante o
dia.
Esse prazer momentâneo foi o primeiro raio de sol em sua existência
curta e assombrada. Ela ficava por aí, fazendo nada, e muito feliz por isso.
Sentava-se perto da janela e fingia ser o Sr. Galliez. Ficava assim, sentada, em
silêncio, por horas.
Na hora das refeições, ela gostava de fartura. Não que ela fosse
glutona, mas, depois daquela experiência romântica, ela nunca teria o
suficiente disso. E, sendo chamada de Madame pela garota que ela
trouxe, uma jovem menina, muito parecida com o que ela foi poucos
dias antes! Josefina fazia o melhor para agir como Mme. Didier.
Sendo assim, Josefina passou um bom tempo com eles, um de cada vez,
Mme. Didier e Sr. Galliez. E, a cada dois dias, mais ou menos, Françoise vinha
visitá-la, e não conseguia evitar sua graça antes de Françoise, que ainda
era Françoise, mesmo que ela, Josefina, agora fosse Madame, sentindo-se
no papel dela, ficava aborrecida em considerar que, somente na frente de
uma serviçal, Françoise falaria muito abertamente de “nossa senhora.”
Josefina se sentia humilhada.
De vez em quando (mas não muito, para uma mulher de grande
peso) Mere Kardec subia ao andar superior da sua Maison
d'Accouchement para visitar a sua paciente mais curiosa, uma jovem garota
que não deu à luz por uns cinco meses. Mere Kardec era uma pessoa de
expressão séria, quadrada, como se um entalhador a houvesse deixado
inacabada. Ela não fazia perguntas. Sua fortuna foi adquirida pela ausência
absoluta de curiosidade. As mulheres que vinham à casa dela poderiam ter
certeza de que seriam bem cuidadas. Mere Kardec enviava um fluxo
constante de crianças para suas relações na Bretanha, e as mães que
deixam o lugar nunca mais precisam se preocupar com elas
novamente, além de pagarem a quantia cobrada. A condessa, cujo
nome é conhecido por toda a Europa, vai à Mere Kardec, registra o que
precisa e tem gêmeos, se a natureza assim ordenou, e Mere Kardec
regulamenta isso com as autoridades, sem que uma palavra passe para além
das suas portas. Milhares de romances à beira de escândalo ou tragédia
vieram para a salvação aqui, por trás do exterior imperceptível da casa dela.
Até mesmo o Almanaque de Gota deve ter sua fossa ou sistema de esgoto.
Quando Mere Kardec entrou na sala de Josefina, ela desamarrou o
rosto severo e emitiu um cumprimento àquela que ela esperava sem
respostas. Se alguém vem, como no caso presente, quando palavras
polidas saem da língua de Josefina, Mere Kardec não presta atenção. Ela
passou suas mãos pelos móveis para ver se a empregada estava
limpando direito, espetou a cama para verificar se o colchão de
penas estava bem sacudido e procurou embaixo da cama por
aqueles acúmulos macios de penas, cabelo e poeira , que tendem a se
juntarem ali. Ficando satisfeita com isso, ela perguntou, um tanto seca,
sobre a satisfação da comida e, sem esperar por mais que uma frase para a
resposta, desculpou-se e saiu.
Para disfarçar essas visitas frias, havia a chamada semanal da Mme.
Didier, acompanhada pelo Sr. Galliez. Aymar sentou-se logo embaixo da
janela. Às vezes, ele ficava muito abalado por subir os muitos degraus das
escadas, e isso não era só porque a subida era difícil, mas porque o corredor
ficava, quase sempre, cheio de gemidos de mulheres em trabalho de parto. Ele
sentou-se perto da janela aberta e limpou a testa com um lenço. Josefina não
conseguia tirar os olhos do rosto pálido e magro, dos longos e delicados
dedos, do lenço sedoso misturado com transpiração.
Depois ele ficou sozinho. Então ela estava tão tímida que ele não
poderia entender uma única resposta clara dela. No fim, levantou-se para
ir. Porém, ela se atirou na direção da porta, como se fosse barrar o
caminho dele e, segurando as suas mãos, ela implorou, “Não vá! Não vá
ainda!”
Ela colocou os braços em volta do corpo dele e aconchegou-se para
perto. Ele colocou suas mãos sobre os ombros dela e disse, com gentileza, “O
que? Josefina, contenha-se.”
Ela não respondeu, mas continuou abraçada com ele. Ainda segurando-a
pelos ombros, ele tentou afastá-la. Somente a cabeça dela foi para trás, e os
olhos dela encontraram-se com os dele. Sem saber o porquê, ele se inclinou e
a beijou castamente nos lábios.
Beije-me de novo, os olhos dela pediram. Ele obedeceu. Então a
língua dela saltou da boca e empurrou -se entre os lábios dele. Sua
língua quente e úmida o agitou até as profundezas das vísceras. Fraco
com a luxúria repentina, ele descansou na cama com ela.
No andar de baixo, diante do escritório, estava Mere Kardec como o
presságio das trevas, os braços apoiados à cintura, olhando para frente.
Aymar retraía-se enquanto vinha à visão dela. Pensou que ela diria algo
para ele, mas nenhum som saiu dos lábios firmes dela. Ela não
pretendia falar nada de fato, porém, ele, consciente da própria culpa,
afastou-se como um vira-lata maltratado.
No caminho para casa, ele tomou a decisão de que nunca mais veria
Josefina novamente, pois só havia um jeito para sair dessa. Ficando muito
determinado, a consciência dele acalmou, e o ego reviveu àquele despejo
arrepiante que Mere Kardec impunha.
Em casa, do outro lado da mesa, Mme. Didier disse, “Você parece
exausto, meu pobre Aymar. Você não deveria ir lá de novo.”
Ele controlou o expanto grande. “Pelo contrário,” assegurou para ela,
“Estou me sentindo extremamente bem. E, se a caminhada longa daqui para
lá e de lá para cá me deixou cansado, será melhor eu dormir.”
Após um momento, ele acrescentou, “Você que está olhando tão
cansada, minha tia. Por que você não vai passear um pouco pela cidade?
Você não devia desistir dos seus planos de férias neste ano.” Ela contrapôs
que, com as condições deles e com Josefina, mais o fato de que, em
qualquer situação, ela não voltaria para ao vilarejo, onde costumava
passar o verão, tudo isso impossibilitava as férias na cidade. Ele
argumentou persuasivamente com ela, e muito bem, como um
panfletário treinado que nem ele conseguia fazer, e ela reconsiderou.
Dois dias mais tarde, ele teve o prazer de ver sua tia e Françoise viajando
para o Sul. Logo depois que o trem partiu, ele tomou uma carruagem a
caminho de Josefina.
Dessa vez não houve preliminares. Eles se agarravam um ao outro como
dois competidores na água escura, prestes a serem afogados.
Ele não conseguia esconder o sentimento de felicidade quando soube
que Mme. Didier estava sentindo-se muito mal, e que foi alertada pelo
médico a estender sua estadia no meridiano o tanto quanto fosse possível.
Que tipo de monstro eu sou? Perguntou para ele mesmo, pasmado pelo
horror. Infurnou-se no apartamento, determinado a escrever e a trabalhar na
grande obra dele, na qual não colocava a mão por semanas. Olhou para o lado
de fora pela janela, para baixo, no movimentado August boulevard. Homens e
mulheres, cavalos e carruagens, encharcados debaixo do sol, apressados nas
duas direções. Qual era o significado de tudo isso? Sua mente estava vazia
de quaisquer pensamentos. O mundo inteiro não fazia sentido . Nada
além da poeira quente, cores chamativas, pessoas que não sabiam o que
estavam fazendo.
Ele mudou de ideia sobre ficar em casa, e o mundo ganhou ordem e
sentido de uma vez. Quando ele estava lá fora, na rua, de pé como os demais,
então descobriu que as ruas não eram tão quentes quanto havia sentido. Uma
brisa gélida soprava. Foi um dia ameno, com um clima que qualquer um
imagina que é no Paraíso eterno.
“Por que você nunca diz nada sobre Josefina em suas cartas?” A tia
repreende-o. “Você não está indo visitá-la? Você sabe que eu quero que você
fique de olho nela.”
Ele percebeu que havia cometido um erro grande. Ela não suspeitaria. E
havia Mere Kardec, que poderia contar para ela que ele esteve lá uma vez ao
dia, às vezes, duas.
“Eu lembro da sua preocupação com Josefina,” escreveu,
pontualmente. “Faço visitas com frequência. Quando vou ver meu amigo Le
Pelletier, como agora ou, então, quando vou ao grupo no Café Palissot, assim,
sempre que estou passando por lá, de qualquer maneira, eu costumo ver
como ela está. Além disso, ela está muito bem até agora.”
Os fatos eram verdadeiros o bastante. A implicação um pouco
mentirosa. Ele não gostava de usar esse procedimento. Não poderia
mais afirmar, “Aquele maldito padre Pitamonte, aquele demônio
disfarçado de padre!” Sentia-se muito malandro, tão vil, mais baixo até
que Pitamonte. No clube, perceberam que ele não esbravejava mais
contra o padre e o capitalista. Ele passou ao pensamento consolador de
“somos todos pecadores juntos.” Era a única desculpa que conseguiu
encontrar para ele mesmo.
Para Josefina, agora que ela estava com ele, não poderia lidar com a
sua falta. Ela não o deixaria escapar. Quando ele precisava sair, fazia ele
prometer que voltaria para lá, no horário definido, insistindo que se jogaria
para fora da janela, se ele chegasse um minuto sequer atrasado.
A criança que ela carregava foi um problema para ela, por causa da sua
energia que a impedia de dormir durante a noite. Mas quando Aymar estava
por perto, esquecia-se completamente disso. Por menor que fosse o
prazer que ela encontrou ao ser tratada como Madame, pela primeira
vez, sem ter que trabalhar para isso. Havia somente uma única satisfação
na vida: a de estar com Aymar.
No final de outubro, Mme. Didier retornou. Aymar logo entrou na
melancolia, da qual nada poderia tirá-lo. Ouviu as histórias da Mme. Didier
sobre suas experiências no Sul, pateticamente. Aventurou-se duas vezes
em fazer uma visita à Josefina, mas os nervos dele pularam de tanto
medo, de expor aquela conexão sórdida, que ele parou por completo
depois disso. Na última vez, aliás, ele viu Françoise subindo as escadas
enquanto ele estava descendo. Felizmente, ela ainda não havia visto ele,
assim houve tempo para se esconder num recuo escuro, no qual ela
passou sem percebê-lo. Arrasado pela sua experiência, ficou na cama o dia
todo.
Josefina, percebendo agora que tudo estava acabado, e incapaz de se
iludir mais com o pensamento agradável após o nascimento da criança, de
que pudesse voltar às antigas condições, humilhou-se como uma doida e
ameaçou cometer suicídio tantas vezes que, finalmente, Mere Kardec a
transferiu para outro quarto, onde a janela ficava trancada, e deixou, por
precaução, uma enfermeira no quarto dia e noite.
E, agora, com o bebê se contorcendo e chutando sem parar, não restou
uma segunda paz para Josefina.
CAPÍTULO QUATRO
Um dia, no final de dezembro, para ser preciso, no vigésimo terceiro,
Mme. Didier e Aymar se sentaram à mesa de jantar e comeram, com pouco
apetite, e conversaram sem propósitos. Aymar comia por algum senso vago
de dever, enquanto Mme. Didier, desde menina, foi acostumada a comer o que
era servido antes de se sentar e a terminar depois do último da mesa, um jeito
dos franceses instilarem suas crianças, porventura, darem a noção falsa de
que eles são uma raça de gourmets.
Repentinamente, Mme. Didier falou, “Sabe de uma coisa? Estou
começando a me preocupar.”
“Com o que?”
“Com certeza você vai me achar supersticiosa.”
“Sem medo,” respondeu Aymar, com ironia. “Você? Supersticiosa?
Nunca!”
“Não comece a fazer piada, Aymar. Eu já vi muito mais coisa deste
mundo do que você.” “O que, por exemplo?”
“Você acredita no Natal?”
“Claro que acredito,” disse Aymar. “Todo mundo acredita que o Natal é
no vigésimo quinto dia deste mês e é o único, e tudo.”
“Se você parar com sua brincadeira maluca, eu continuo.”
“Vai, continue, eu sempre quis saber sobre o Natal.”
“Você acredita que o mundo animal tem consciência do Natal?”
Apesar dele mesmo, Aymar sorriu. “Você está me dizendo que os gados
se ajoelham em seus estábulos na noite de Natal?”
“É isso mesmo o que estou contando a você. E mais, eu vejo isso com
meus próprios olhos.”
“Claro que vê. Ninguém vai ao estábulo a qualquer noite do ano para
ser algo ou, se ele estiver com sorte, todos os gados se ajoelhando.”
“Sabia que você iria me dizer isso. Mas não é verdade. E, além disso,
uma noite eu fui, como o nascimento do nosso Salvador estava
chegando, e ouvi as abelhas cantando nas suas colmeias.”
“Abelhas sempre cantam nas suas colmeias.”
“Qual é, Aymar? No final do inverno, as abelhas, certamente, não cantam
nas suas colmeias.” “E você diz que as ouve?”
“Se você não pode me convencer de um jeito, você consegue de outro.
Não é isso, Aymar?”
Desconcertado porque ela o havia derrotado, ele ficou em
silêncio por um momento, então retomou a conversa de volta ao
começo. “E é por isso que você está preocupada?”
“Não, claro que não. O que me preocupa é que Josefina está próxima
de ser devolvida e, querendo ou não, isso será perto da hora do nascimento
do Nosso Senhor.”
“Por que isso inquieta você? Eu acharia, pelo contrário, que você veria
razão para comemorar.”
“É porque eu sou supersticiosa, se me permite falar desta maneira.
Porém, me deixe contar. Eu conheci um homem que não teve um final bom,
e sempre foi dito isso sobre ele, que ele estava amaldiçoado desde o começo
por ter nascido na véspera do Natal.”
“E, naturalmente, todos fizeram um pouco para que fosse verdade,”
disse Aymar com frieza.
“Você está me contando entre eles?” Mme. Didier o reprovou e logo
continuou, “E na nossa e em outras vilas, onde as pessoas temem a Deus, as
esposas ficam distantes dos maridos durante a maior parte de março e uma
semana ou mais do mês de abril, para que não haja crianças a nascer nesse
dia.”
“Agora, você vai me dizer qual é o sentido que você vê para fazer isso?”
“Estou falando somente de superstição, meu querido Aymar, mas se
quiser me falar sobre sentido, que seria mais apropriado ao seu feitio,
eu suponho, então, que eu deva dizer isso: Quando as pessoas
acreditam numa coisa, elas gostam de mostrar respeito por ela. E eu
percebi que a primeira coisa que os revolucionários fazem, depois de
derrubarem um montão de estátuas velhas, é erguer um monte de
novas e, depois de desinstituírem muitos feriados, instituem um
monte de novos. Eu acho que isso não seria supersticioso para você?”
“Não é nem aqui, nem lá,” disse Aymar.
“Muito bem,” Mme. Didier continuou, “no entanto, você aceita que as
pessoas gostam de mostrar o respeito pelo que acreditam, e aqueles que
acreditam na vida bela e gentil de Cristo gostam de honrá-lo. Agora, diga-me,
elas podem praticar qualquer ato de homenagem menor do que a renúncia da
concepção carnal durante esse período, de quando a Virgem Maria concebeu
imaculadamente? Diga-me, nem mesmo o que você admira, refinando esse
seu gosto delicado de adoração, possui um paralelo com o seu apego
moderno e barulhento a um líder político após o outro?”
“Não está faltando beleza,” Aymar admitiu, “mas o que isso significa?”
“Significa tanto quanto todos seus cocares, cores e discursos,” Mme.
Didier retorceu. “O que você pretende? Quantas vezes na minha vida fiz
derramar sangue aqui na França para que as pessoas fossem mais felizes, para
que não houvesse mais pobres? Não consigo ver que ninguém é melhor fora
dessa luta.”
“Você me contou que não vê mais sentido em políticas, mas ainda não
me disse qual é o motivo dessa preocupação com uma criança nascer na
véspera de Natal.”
“Aymar, meu querido sobrinho, já não é bastante maligno que Josefina
gerasse o filho de um padre? Já não é bastante insulto aos céus que um padre
fosse culpado desse desvio de conduta, sem contarmos que nesse triste parto
está caracterizado uma chacota do nascimento de Cristo?”
Ao contrário de si mesmo, Aymar estava comovido. “Essa é uma história
da Mamãe Ganso,” disse irritado.
“Na minha opinião,” Mme. Didier prosseguiu, “Josefina era uma
garotinha inocente, mas quando o diabo tentou o padre Pitamonte, ele
não a evitou. O diabo agora está nela, e eu o vejo cada vez que vou
lá. Ela é perigosa.”
“Nonsense,” falou, apesar de estar surpreso. De um jeito nervoso,
e mais que um pouco oprimido, ele quis parar a conversa e, por isso,
levantou-se com a desculpa de que precisava voltar ao que estava
escrevendo.
Retirou-se ao aposento dele e acendeu uma lâmpada Quinquet. Porém
não tinha vontade de trabalhar na história que escolheu contar,
precisamente, de um homem jovem que se esforça para governar o
mundo à felicidade desde que todos consigam perder a vida dele.
Irritado, empurrou as folhas de papel para longe. “O mundo é muito
grande para ser resumido num livro,” disse. Então, indagou: Por que ele
não tinha nenhuma habilidade para continuar o que propôs a fazer?
Afinal, a ideia não era péssima, e as pessoas não esperam que você
coloque o mundo em um volume. Agora, essa já era a décima ou décima
segunda ideia que ele descartava. Cada vez surgia um livro novo, desenhando
os aplausos dos críticos, então ele percebia que já havia pensado em escrever
sobre o assunto, uma ideia que ele rejeitou por uma ou outra razão
insignificante.
Ele se deitou sobre a mesa em que estava, descansando sua cabeça nos
braços esticados. Ora, Josefina iria ter um bebê dentro de um ou dois dias?
Com o que ela parecia, agora, com o corpo inchado a termo? Ele não
conseguia imaginá-la. Ele não poderia visualizar nem mesmo o rosto dela na
sua mente. O que eu amava? Perguntou-se, distraído, se a imagem dela já
desbotou antes. O que ele amava era um calor sutil e sufocante, gentil e
vívido. E agora ela teria um bebê, que reclama como aqueles outros, de quem
ouviu enquanto subia os degraus da Maison d'Accouchement de Mere Kardec.
Encontrou-se pensando nesse bebê, pensando nele com ternura e
querendo que fôsse dele mesmo. Desejando que juntos, ele, o bebê e
Josefina formassem uma família.
Tarde da noite seguinte, Françoise retornou da casa de Mere Kardec.
“Então?” Mme. Didier perguntou.
“Nenhum sinal ainda,” reportou à sua senhora.
“Muito bem, Françoise, venha, apresse-se, ou não acharemos lugares
para a missa da meia-noite. E você, Aymar, não vai?”
“Acho que não, minha tia,” ele murmurou, com a mente ocupada num
plano secreto. Enquanto elas estavam na amarrotadas na igreja, ele escaparia
para Mere Kardec e estaria de voltar antes delas retornarem.
Assim que elas saíram, ele se apressou em direção à Maison
d'Accouchement. Por ser bem conhecido entre todos os serviçais, não houve
problema para ele ser admitido, apesar de ser tarde da noite, e subiu as
escadas tão rápido quanto suas pernas ruins poderiam carregá-lo.
Uma mulher movimentando de fora do quarto de Josefina com um balde
enorme de água tingida em vermelho o fez parar de desânimo. O primeiro
pensamento que o atingiu foi que ela morreu em agonia. Quando a mulher
voltou com um balde cheio de água fresca, ele implorou por alguma notícia,
mas ela apenas sorriu para ele e entrou, fechando a porta rapidamemte, antes
que ele conseguisse descobrir o que estava ali dentro. Entretanto, capturou
um vislumbre de Mere Kardec e um rapaz, o médico, pela evidência, pois,
embora Mere Kardec fôsse uma parteira talentosa, ela sempre solicitava um
doutor.
Aymar esperou pelo que lhe parecia horas. A mente dele esforçava-se
para interpretar os sons que ele ouviu, frases polidas, o movimento de água e
pés indo e vindo. De repente, foi um grito perfurante, um longo berro de
congelar o sangue, que feria e feria, aumentando mais e mais, parando
bruscamente com um gorgolejo sombrio e profundo, como se todo esse som
vasto estivesse sendo sugado de voltar para baixo, dentro de um cano de
esgoto. O silêncio que seguiu foi tão intenso, que o Aymar abatido conseguia
ouvir as respostas das pessoas na igreja pelas ruas. Até mesmo o soar dos
sinos anunciando o milagre da transubstanciação da água e do vinho em
sangue fresco poderia ser ouvido distintamente. Logo depois, mais um som
vinha da sala, o mais estranho chiado, o mais esquisito miado. Em seguida,
veio o mesmo padrão de comandos rápidos, o espirrar da água, o barulho da
cerâmica, tudo lento e baixo, como se ouvidos através de um sonho.
A porta foi puxada para trás de súbito, e um homem alto saiu. Aymar
espremeu-se contra a parede, como de quisesse afundar nela. Mas o homem
esbelto havia visto ele. “Então você é o pai sortudo?”
“Sim,” Aymar constatou.
“Bem, deixe-me ser o primeiro a parabenizá-lo pelo nascimento de um
filho.” “Ela está morta?” Aymar respirou.
“Quem? A mãe?” ele forçou um riso com satisfação profissional. “Nunca
tive um caso mais fácil. Dormiu como um gatinho. O trabalho seria um
momento de prazer para mim se todos fossem tão fáceis como esse.”
“Mas, e aquele grito...”
“Por causa de uma dor pequena, claro. Melhor não a ver agora. Ela está
dormindo. Volte pela manhã.” E com um tapa amigável nos ombros,
despediu-se de Aymar em pensamento e desceu as escadas depressa.
E Aymar retomou tudo repentinamente, como o tempo curto que tinha,
se quisesse estar de volta antes de Mme. Didier e Françoise retornarem da
missa, logo atrás dele.
Ele mal havia sentado em sua cadeira favorita, antes da janela, quando
um barulho na porta surgiu, e Françoise e Mme. Didier entraram.
“Foi maravilhosa,” disse Mme. Didier.
A pergunta óbvia de Aymar entalou na sua garganta. Tudo que saiu foi
um grunhido. Mme. Didier começou a olhá-lo desconfiada. Ele se reinterou e
questionou, “O que?”
“A missa, claro,” ela respondeu. “O sermão estava tão comovente, tão
tocante. Alguém teria se imaginado presente de verdade no nascimento…
Mas o que há com você, Aymar? Essa sua cara está com for de queijo!”
“Estou um pouco cansado,” falou tão calmo quanto poderia. “Acho que
vou pra cama.”
“Você está me evitando,” disse Mme. Didier rispidamente. “Conte para
mim agora onde isso dói. O que você precisa é um bom tisano ou um pouco de
ruibarbo.”
“Não, não,” protestou, “Eu estarei bem de tudo pela manhã.”
Ela balançou a cabeça. “Você não toma conta de você mesmo,”
declarou. “Vou precisar olhá-lo com mais atenção.” Ele estremeceu.
“Talvez,” ela insistiu, “Você precisa tirar uma folga. Sabe que não sai de Paris
há mais de um ano, e essa cidade, com mais lâmpadas fluorescentes a cada
dia, está ficando mesmo venenosa. Não admira a todos, principalmente as
mulheres, que estão sempre deslumbradas. Quando menina, uma mulher era
considerada tão forte quanto um homem. Estou me esquecendo de tudo com
você aqui, pensando sobre minha infância. Por sorte, estou começando a
devanear como uma velha. Espere, vou buscar um ruibarbo para você.”
Submeteu-se ao comprimido de ruibarbo por falta de coragem de
argumentar contra ela.
Cedo da manhã seguinte, ele já estava preparado para sair, mas nem
Françoise nem Mme. Didier pareciam ter qualquer ideia de ir à Mere Kardec.
A tranquilidade delas o irritou. Como elas conseguiam realizar os trabalhos
delas com tanta dificuldade? Mulheres de verdade não tinham corações. O
grito de Josefina continuou a ecoar nos ouvidos dele como se tivessem sido
a noite inteira. Durante toda a noite, ele ensaiava os sons da sua experiência
noturna. Ouvia o barulho dos baldes cheios de água. Ouvia a voz rouca e
agradável do médico cortando o grave de Mere Kardec. Viu a mulher saindo
apressada com aquele balde de água rosada, no qual achou que poderia ter
visto faixas de vermelho escuro circulando.
Até que finalmente ouviu Mme. Didier chamá-lo, “Françoise! Françoise!
Como haveríamos nos esquecidos?” Esvaziou-se incrédulo. Ele queria propor
de ir com elas assim que tocassem no assunto sobre visitar Josefina. Porém,
escutou sua tia continuar, “Todo esse linho está no cofre. Que é onde
aqueles lenços faltantes devem estar.”
Com desgosto profundo, ouvia as duas mulheres saindo em direção
ao cofre, o qual elas abriram com exclamações de surpresa. Elas riam e
conversavam sobre o que achavam divertido, dizendo sempre de novo e
de novo, até que Aymar pensou que pudesse morrer de raiva, “Como
haveríamos nos esquecidos… Eu nunca imaginei… Não sei o que acontece
comigo.
Ao anoitecer, a razão para a falta de interesse das mulheres foi revelada.
“Bem, é de partir o meu coração,” mencionou Mme. Didier para Françoise
enquanto servia a sopa.
“Oui, madame,” disse Françoise.
“O que é de partir o no seu coração?” Aymar interrogou. “O fato de que
não tivemos notícias de Mere Kardec.”
“Você esperava ouvir alguma dela?” Aymar conseguiu dizer, já
adivinhando toda a situação.
“Mas é claro, sim, ontem ela contou a Françoise que mandaria Uma
mensagem hoje de manhã se não acontecesse nada durante a noite. Bem,
meus piores medos acabaram. Não será um bebê de Natal.”
Aymar desabafou. “A sopa está horrivelmente quente,” disse mal-
humorado. “Pensei que já tivesse pedido o bastante de vezes para resfriar
minha sopa, Françoise.”
“Oui, monsieur,” Ela respondeu, visivelmente aborrecida e não
conseguia dizer mais nada, enquanto saiu apressada, o corpo dela inteiro
tremia de raiva, “A última vez foi há três anos.”
“Como pode ser tão rude?” disse Mme. Didier, que também estava com
muita raiva.
“Aff,” exclamou, muito desesperado para pensar em algo melhor. E
sabia que estava errado, o que era pior. “Agora, todo mundo vai ficar de mal
num canto,” ele reclamou.
“Bem, você tem que se desculpar, e quanto mais cedo se acertar com
ela, melhor.”
E, então, já não havia nada para ele fazer a não ser voltar para a
cozinha e deixar Françoise de voltar ao bom humor. Isso envolveu um fluxo
de lágrimas e muitas reminescências da parte dela, sobre como ela fôra com
a sua família por trinta anos e segurara Monsieur nos braços dela quando ele
era apenas um bebê, e costumava lavar as suas roupas sujas dele porque
Mme. Galliez era uma mulher frágil e não poderia disponibilizar um criado
sempre para ajudá-la, e muitos outroa detalhes assim, ad nauseam.
Aymar forçou-se a dizer, “Eu sei, você e a minha tia têm sido mais do
que mães para mim.” Esforçou-se para dizer isso, não porque fôsse
verdade, nem porque admirava o que essas duas mulheres haviam feito
para ele, mas porque são tipos de gratidão que sempre estarão
incomodando um homem.
Quando elas chegaram ao ponto de irem à Mere Kardec, Aymar declarou
que iria junto. Ele teve visões selvagens de si mesmo diante das mulheres, com
um ou outra desculpa, e alertando Mere Kardec para não dizer nada sobre a
sua visita na noite anterior, pois o plano seria a única razão para ela não enviar
a mensagem, porque ela considerou que ele traria as notícias para as
senhoras.
Porém, nenhuma oportunidade de “estar diante” das mulheres foi
concedida, e por uma desculpa plausível, a sua mente, não importa o quanto
ele a torturou, não rendeu uma única ideia de valor. Então ele caminhou pelo
dia levemente invernal, e tentou o melhor que pôde para parecer indiferente
enquanto seguia para a própria condenação. Pois a visita da última noite
estava à beira de ser descoberta, com todo aquele relacionamento secreto, a
relação na qual ele estava ardendo para retomar e já não poderia reconhecê-la
sem repulsão.
Mere Kardec cumprimentou as senhoras com sua habitual maneira
rígida, cedendo somente para dizer, “Veja, Madame, ela está amamentando o
bebê pela primeira vez.”
Em unissom, Françoise e Mme. Didier exclamaram, “O que? Filho dela?!
Quando ela teve o bebê? Por que você não enviou uma mensagem como
prometeu?”
Aymar observou com calma, como se o assunto não importasse para ele,
embora tivesse acolhido o bocejo proverbial da terra debaixo dos pés, a
engolí-lo por inteiro.
Mere Kardec proferiu não mais do que um “Mas pensei que
Monsieur...” Mesmo antes de ter terminado a palavra Monsieur, verificou-se
e, em vez de se explicar, desculpou-se. Os anos de experiência a ensinaram
que uma desculpa vale mais do que uma dúzia de explicações.
As senhoras, entretanto, não esperaram por muita desculpa e logo
subiram as escadas com pressa, seguidas pelo Aymar suado, mas feliz. Ele foi
salvo na ponta do precipício. Mesmo assim, ele estava Indo para casa
como um homem muito desapontado. Duas experiências brutais
aguardavam por ele.
Ele não imaginava que Josefina não reparasse mais nele. Estava pronto
para isso devido à presença de Mme. Didier e Françoise. Porém, não estava
preparado para aquele bebê. Cresceu com a crença em que recém-nascidos
fossem como aqueles que se vê, de Madonnas nas pinturas italianas, ou
aqueles retratados nas telas de Greuze, ele ficou chocado com o monstrinho
esquelético, raquítico, felpudo e enrugado que Josefina estava abraçando
gentilmente contra o peito. Também pelas senhoras, elas ficaram em êxtase.
Quando as três disseram adeus e desceram o primeiro lance das
escadarias, Aymar logo se suspeitou de um lenço que alegava haver esquecido
no bolso. E, antes que Françoise pudesse dizer que o buscaria para ele, subiu
as escadas correndo e reentrou na sala. O pequeno bebê foi colocado de
volta no berço, e, de certo, Josefina estava livre para dar-lhe um abraço
íntimo rápido, pelo qual ele esteve esperando. Ou, pelo menos, percebendo
que ela ainda afirmava estar inválida, um olhar de ternura e esperança.
Tudo que ele recebeu foi uma questão silenciosa sobre o motivo do
retorno. E os olhos dela, os quais fulguraram em ardor formidável, agora eram
poças quietas de afeição maternal, completamente sem sentidos para ele. Ele
não conseguia deixá-la assim. Parou e disse, “Bem...”
“Quoi, monsieur?” Ela reapondeu. Ela não queria dizer Monsieur. Veio
para ela de forma natural, de acordo com a sua mudança de atitude. Mas, de
imediato, para ele, isso foi revelatório do fato de que ela não seria mais a sua
senhora, mas sua serva. Cheio de pensamentos, fechou a porta e seguiu a tia
dele descendo as escadas.
Em casa, Aymar teve a coragem de repreender sua tia sobre o fato
terrível de crianças nascerem na véspera de Natal. Na verdade, estava meio
que disposto a acreditar que havia algo mágico em tudo que pensou. Sem
dúvida nenhuma, fora enfeitiçado. De que outra forma poderia ter se
envolvido num relacionamento assim, a um passo da porta de sua tia, por
assim dizer, não, na realidade, na casa dela? E Josefina, ela também estava sob
feitiço. E agora esse encanto acabou. Ele, também, sentia que não estava mais
encantado. Agora, poderia ficar em casa e trabalhar de novo no livro. Ele
conseguiria despertar um interesse renovado no partido de oposição, ao Qual
pertencia.
Repleto dos pensamentos particulates dele, ouviu apenas metade do
que sua tia estava dizendo, “Eu queria que pudesse afastar meus medos. Mas
confesso que ainda estou aflita.”
“A criança parece um bagulho assustador,” Aymar zombou.
“Bebês recém-nascidos dificilmente são bonitos. O que é estranho com
esse é que ele pôde levantar a sua cabeça desde o primeiro dia da sua vida. Eu
nunca vi ou ouvi uma coisa dessa. Mas Françoise disse que já havia visto isso
antes.”
“Essa é uma razão muito pequena de acreditar que o nenê nasceu para
ser enforcado.”
“Eu não tenho razão mesmo para pensar em nada, afinal, de você quer
me entender desse jeito. Mas eu tenho minhas intuições. E, francamente,
estou receosa.”
“Bem, vamos ver,” disse Aymar, mudando de assunto.
“Talves veremos e, talvez, não. Pode ser que nunca mais o veremos de
novo.” “Por quê?”
“Bem, ele vai ser mandado para Bretanha, à cunhada de Mere Kardec, e
nós traremos Josefina de volta pra cá, se ela continuar sendo boazinha, ou
ela deve voltar para o vilarejo dela também. O que resolverá este caso.”
Aymar achou o assunto de indiferença suprema. Um fato que o
surpreendeu. Como ele mudava tão rápido?
Mme. Didier providenciou a certidão de nascimento, o enxoval e o
batizado. Ela pediu Aymar como padrinho e deu o nome do bebê de
Bertrand, que hqvia sido do padre Pitamonte. Foi Aymar, por conta
própria, com a consciência pesada, quem adicionou o próprio nome:
Aymar. Então, assim, como Bertrand Aymar Caillet, o menino foi
registrado; Caillet ficou por causa do marido mítico de Josefina, que ficou,
supostamente, de fora numa viagem longa em alto mar.
De volta à igreja, Mme. Didier logo começou. “Agora, Josefina, vou
deixar você escolher. Ou você volta para o seu vilarejo ou fica aqui.”
“Eu suponho,” disse Josefina, “que se eu for para casa, as pessoas
vão rir de mim por ter um filho, não vão?”
“Eles não precisam saber que você teve um filho, porque nós
enviaremos a criança para ser cuidada na Bretanha.” “Então eu também
poderia ficar aqui,” ela respondeu, “porque quero ficar com o meu bebê.”
“Mas você também não pode manter o bebê aqui,” Mme. Didier
explicou. “Não podemos tê-lo aqui, nesta casa.” “Então, vou voltar para casa
com o bebê.”
“Mas, crianca, pense ao que você ficará exposta? E como você vai
ganhar a vida? O que dirá às pessoas quando perguntarem como aconteceu
de você ter um filho?”
“Por que, madame, eu tenho que contar a verdade a eles?” ela disse em
evasiva.
Isso deu uma pausa para Mme. Didier. A verdade era o que ela não queria
contar. O que eles pensariam dela em casa, quando eles entenderem que a
funcionária dela teve um filho ilegítimo como resultado de ser enviada para a
igreja numa missão? Independente do que acontecesse, ela não queria esse
assunto jogado entre as fofocas da vila natal dela. Sentou-se de volta e
cogitou por um momento. Se ela mandasse a garota se mudar, só Deus sabe
como isso voltaria voando a sua porta. Aonde quer que ela fosse, estava
muito certa de que Josefina a relacionaria, Mme. Didier, com a condição dela.
Isso era terrível, enfim, novamente, a conexão estava lá e para não ser
negada. Apenas ridículo isso de ser responsável pelo delito de outro. De novo,
se ela colocasse Josefina numa instituição de qualquer natureza, não
escaparia dos papéis oficiais a serem feitos, e de tais documentos Mme. Didier
já estava com as mãos cheias nesses últimos dias, e não queria mais deles.
Tomou uma decisão repentina, a qual, percebendo que foi imposta a ela, até
que não foi exagerada.
“Bem, por enquanto, você fica aq ui ,” informou a ela mesma.
Depois de tudo, os rumores de todo arrondissement conheciam sobre o
caso, até mesmo em mais detalhes do que ela mesma. Além disso, era
somente por uma caridade cristã que ela continuaria a cuidar de um
acidente, no qual ela não poderia se considerar sem culpa. Sim, era apenas
caridade cristã. Apegou-se a essa frase. Repetia-a para ela mesma, quando
aconteceu de encontrar alguém da vizinhança, diante de quem se intimidaria
de qualquer maneira e, com a repetição mental dessa frase salvadora,
encontrava a força para ficar de cabeça erguida e falar sem medo.
Na verdade, ela era mais que resignada às obrigações dela como uma
cristã. Ela não conseguiria viver muito bem na mesma casa com um bebê
prestes a cair, sob aquela influência estranha da qual todos eles exercem
desde cedo naqueles que os vigiam frequentemente. Essa influência, que
primeiro segura as mães, vai pegando e se liga a todos que estão dentro de
alcance. Assim como as trepadeiras, que tem tentáculos para agarrar firme o
que quer que entre em contato.
O pequeno Bertrand era um modelo de bebê verdadeiro. Nunca
chorou. De noite, ele dormia enrolado da maneira mais charmosa. Quando
acordava, entre suas longas sonecas durante o dia, ele respondia com muita
diversão àqueles que se curvavam sobre o berço e conversavam com ele. O
rosto inteiro dele se esticava num sorriso enrugado. Os olhos castanhos e
claros cintilavam de alegria. Ele abria a boca e um gluglu baixo de puro prazer
saía da sua garganta.
A saúde dele era igual ao espírito. Encheu sua barriga nos seios da mãe
e, quando desmamou, passou a prosperar, comendo tudo o que lhe era
dado. Cresceu numa boa velocidade, os dentes nasceram sem qualquer
problema. De certo, não haveria ninguém que quisesse melhor para a criança.
Mas estamos progredindo muito rápido.
Quando Aymar, que tinha o menor interesse, de todos da casa, no
amadurecimento do bebê, percebia a tia gorgolejando de volta na criança,
daquela maneira maluca e incompreensível àqueles que não a compartilham e,
assim, a amolaria pelos próprios medos anteriores.
Um dia ela disse para ele, abruptamente, “Vou falar com você mais
tarde.”
Naquela noite, quando a casa ficou silenciosa e depois que Françoise e
Josefina retiraram-se para o quarto que compartilhavam com o bebê,
atrás da cozinha, ela falou com o sobrinho e desabafou as observações
acumuladas dela.
“Estou londe de ter aberto mão de todas as minhas inquietações,”
começou. “Entretanto, estou mais do que certa de que Bertrand é uma
criança incomum.”
“Você diz pelo fato de que ele nunca chora? Ele pode ser burro,”
sugeriu Aymar. “Crianças normalmente nascem burras, disseram-me.”
“Sim,” ela admitiu, “ele deve ser burro. Nós não saberemos até daqui
uns meses, pois, então, quando for a hora dele começar a falar. Eu mesmo
acho que ele ficará normal a respeito disso.”
“Então do que você está com medo?” “Você já notou os olhos dele?”
“Sim, claro; os olhos dele são muito lindos, eu diria.” “Bem, não digo
tanto dos olhos como das sobrancelhas delel,” “O que você acha delas?”
“Elas são cheias e juntam-se pelo nariz.” “E o que você deduz delas?”
“Em nosso lado do país, isso era sinal de uma natureza baixa.”
“Mais uma superstiçãot,” Aymar disse. “Deve ser apenas herança.”
“Agora que você me lembrou disso,” disse Mme. Didier, “padre
Pitamonte tinha as mesmas sobrancelhas.” “Assim como eu falei. Tal pai, tal
filho.”
“É exatamente assim. Estou com medo de que ele também se torne uma
pessoa incontrolável.”
“Bem, ainda está muito londe do agora.” Aymar riu com a imagem
que veio em sua mente, de repente, do pequeno Bertrand tentando
estupro. “E o que mais você vê?”
“Algo muito mais assustador do que isso. Tão raro que eu mesma nunca
vi, apesar de ter ouvido pessoas mais velhas falarem disso como um sinal, o
mais fatal e terrível de todos, que marca a alma que pertence ao diabo.”
A voz dela ficou tão baixa que Aymar precisou inclinar-se para ouvi-la,
em especial, tanto quanto uma tempestade fria de março chacoalhava, mas
janelas duplas. Ao contrário do que aparentava, ele ficou comovido, e as
palavras dela, assim como a chuva gelada procurando uma rachadura na
janela, assopraram suas costas e fizeram suas espinhas arrepiarem.
“Então?” Ele incitou.
“Lembro-me de quando era menina, a minha avó costumava me
contar histórias das florestas e dos monstros que vivem lá. O cavaleiro
sem cabeça, que ataca insanamente quem o vê; a árvore onde os suecos
penduraram cinco homens. Agora, as almas deles estão naquela e é por
isso que ela nunca morrerá, até o Dia do Julgamento. O gamo branco,
que aparece numa noite do ano para encontrar uma companheira, que deve
ser uma garota juvenil e pura.”
“Essas histórias não deveriam ser contadas às crianças,” foi o
comentário de Aymar.
“De vez em quando, minha avó costumava dizer, que vinham homens
para a feira da vila, que nunca foram vistos antes e que jamais seriam vistos de
novo. São homens do mar e estão procurando presas para arrastarem até
suas moradias subaquáticas. Eles podem ser reconhecidos pelas bainhas
das roupas deles, que estão sempre úmidas, e pelas mãos, frequentemente,
enrugadas. Os dentes deles são afiados e pontiagudos. Às vezes, eles são
lobos das montanhas. Que podem ser reconhecidos pelos cabelos que
crescem da palma das mãos.”
Na quietude que prosseguiram as reminescências, ela acrescentou,
“Bertrand tem cabelo na palma das mãos.”
A primavera fria, com suas chuvas constantes e calafrios, havia provado
demais para Mme. Didier, cuja saúde ficou indeterminada pelos
aborrecimentos dos últimos anos. A morte do marido, os dias terríveis de
1948, quando descobriu Aymar internado num hospital e este evento mais
recente, a perfídia de padre Pitamonte e desgraça de Josefina, pela qual ela
havia assumido o fardo.
Um dia ela havia saído para comprar várias coisas. A manhã estava muito
bonita. Havia um toque da primavera no ar, e o céu estava esplêndidamente
azul, o azul claro refrescante que segue após um forte e duradouro inverno,
quando toda a natureza parece purgada da própria vileza. Mas, numa hora
breve, enquanto estava numa loja examinando materiais, o tempo sofreu uma
mudança repentina para o pior. O céu ficou sobrecarregado, um vendo gelado
levantou-se e logo rajadas de chuva estavam caindo em diagonal pelas ruas. A
manhã perfeita transformou-se numa tarde fúnebre.
Assim que saiu da loja, a primeira coisa que Mme. Didier percebeu foi
que o tempo estava mesmo muito ruim. Ela chamou por um táxi, embora
nenhum estivesse vazio. Aguardou do lado de dentro, que a chuva parasse a
qualquer momento, mas só parecia ficar mais forte. O ar abafado do
shopping, atravessado pelas rajadas do frio cade vez que a porta era
aberta, logo começou a afetá-la. Ora estava com calor, ora, com frio.
Sobre a garganta dela havia um pigarro doloroso. Queria ir para casa rápido e
que Françoise preparasse um tisano quente para ela enquanto fosse
descansar. Isso sempre funcionava.
Pelo menos, ela ficou determinada a enfrentar o temporal até depois da
avenida, onde poderia tanto pegar um táxi ou também ficar refugiada numa
cafeteria e tomar algo quente. Puxando firme o colarinho do casaco de
astracã no entorno do pescoço, ela saiu andando, de cabeça inclinada contra a
chuva forte. Dois passos além da porta, ela escorregou e caiu numa poça de
água. Num instante, ela estava encharcada. Algumas pessoas gentis
ajudaram-lhe a se levantar e providenciaram uma carruagem para ela, que,
então, logo chegou em casa.
Durante dias, ela ficou entre a vida e a morte. Pelo menos a sua força do
campesinato, ainda não esgotada totalmente pela sua existência duradoura
na cidade, veio socorrê-la, e ela melhorou. Por todo o período em que esteve
doente, ficou ansiosa para ver o bebê. Porém, ficou com medo de infectá-
lo de algum jeito, portanto negou-se a permitir que o trouxessem ao
cômodo dela. Françoise e Aymar, agora esquecidos por estarem próximos do
bebê, traziam para ela relatos extensos dos afazeres deles, os quais
mantinham protegidos de Josefina. A casa foi dividida em dois campos que se
comunicavam a distância.
Até que chegou um dia em que, definitivamente, ela sentiu que a
doença estava ficando para trás. Era um dia confortável e inspirador,
diferente daquele traiçoeiro, que a deixou doente. A janela estava
escancarada, e as cortinas mexiam numa brisa gentil.
“Hoje,” ela disse para Françoise e Aymar, “deveria ter trazido Bertrand
aqui.”
“Faria bem para você vê-lo,” disse Françoise com lágrimas nos olhos.
“E eu, também, poderia vê-lo, agora que você está muito melhor?”
“Claro, claro, minha querida Françoise. Como sou besta, esqueci
completamente que havia privado ele de você. Venha aqui, dê-me um beijo e
diga que me perdoa. Agora, vá correndo buscá-lo.”
Nesse momento, eles ficaram atentos a um barulho estranho e
sufocante, e o som de um soluço indescritível em palavras. Mme. Didier e
Françoise entreolharam-se surpresas. Então, Françoise saiu.
Aymar perguntou, “Deus do céu, o que foi isso?”
O barulhou ficou mais alto, mais fundo e ressonante, e menos sufocado.
Josefina voltou correndo com Françoise. “Madame,” ela chorou, “É
Bertrand! Ele deve estar fatalmente doente. Ó, chame um médico, rápido.”
“Logo o médico estará aqui,” Françoise respondeu. “Deve ser ele na
porta agora.” Ela correu para receber o Dr. Robyot, o qual já vinha vindo para
fazer a visita cotidiana de Mme. Didier.
“Eu não aprovo cachorros nas casas dos meus pacientes,” foram as
primeiras palavras dele, comentando sobre os uivos tristes que preenchiam o
apartamento.
“Oui, monsieur,” disse Françoise, tremendo cada membro e orientando-o
até o quarto da Madame.
“Ah, bem, a paciente está parecendo muito melhor, hoje,” declarou
otimista, segurando o pulso da Madame. “Agora, you deveria se levantar e
fazer um pouco de exercícios. Mas não muito”
“Eu não sou o paciente hoje,” disse Mme. Didier com seriedade, “é o
filho da Madame Caillet, ele parece estar sofrendo demais. Vocé não o
escuta?”
O médico, muito surpreso por descobrir que esses sons sinistros vinham
de um bebê, em vez de um cachorro, partiu, de imediato, para os quartos de
trás com Josefina e retornou pouco depois. “Não consigo encontrar nada de
errado com o menino. Pelo contrário, ele está com tudo no devido lugar. Um
pouco de medo ou histeria, talvez. Alguém assustou ele?”
“Não,” Josefina afirmou. “Eu sei porque sou a única que está olhando-o
desde que a Madame aqui ficou doente.”
“Bem, vou prescrever alguma dose de calmante, que deve acalmá-lo. E
quando ele acordar, acredito que ele já haverá esquecido do susto dele.
“Mas esse barulho é aterrorizante, monsieur le docteur,” disse Mme.
Didier.
“Ele vai parar já, assim que tomar um pouco disso,” o doutor respondeu.
“Enquanto isso, é melhor você deixar as portas fechadas para que não seja
incomodada. Lembre-se de que deve ser muito cuidadosa. Você ficou
gravemente doente, não esqueça disso.”
Logo depois, todas as portas foram encostadas e apenas um som fraco
procurava entrar no quarto da Mme. Didier. Assim que o barulho pausou,
Josefina retornou com a mistura necessária, e o bebê já havia caído num sono
profundo e silencioso.
Mme. Didier se levantou e sentou-se próxima da janela, na cadeira de
frente para Aymar. Colocou a mão magricela, com a pele pálida e sedosa
atravessada por veias azuis, sobre os joelhos dele e falou, “Você tem sido um
bom filho para mim, Aymar. É bom estar na sua frente.”
Ele quis responder “Nonsense,” áspero, como para a ocasião, no
entanto, as palavras foram apanhadas por um pigarro na garganta. Depois
de um momento, “Agora, cuide-se bem e não saia mais comprando
materiais inúteis com um tempo ruim.”
Pela noite, sentou-se aos pés da cama dela, e ela relembrou as
brincadeiras que ele costumava pregar quando saía para visitá-la em casa
durante os verões. Um barulho fúnebre começou a atormentá-lo,
aumentando. Evidentemente, o bebê havia acordado e começou a chorar de
novo. Pelo menos, todas as portas no caminho foram fechadas. A tia dele
parecia incosciente dos novos uivos da criança. Querendo certificar-se de
que a mente dela não voltaria animada com as recordações, ele fez perguntas
importantes para ela.
“Eu tinha uma lembrança vaga de algo sobre um porco-espinho; o que
foi isso?”
“Ó, isso foi muito divertido,” ela começou em seguida, segurando as
mãos dele com as dela. “Você sempre quis um porco-espinho e nós não
deixávamos você ficar com um. Então, num verão em que nós voltamos,
encontramos a casa infestada de baratas. Isso foi quando tínhamos aquele
zelador preguiçoso e a esposa bêbada dele. Você lembra deles?”
“Não muito bem,” disse. “Eu tinha uns quatro anos?”
“Faria cinco dentro de um mês ou dois, acho. Ó, sim, agora me recordo
nitidamente do seu quinto aniversário. Foi no mesmo verão. Mas deixe-me
contar sobre o porco-espinho. Você ficou aborrecendo sua mãe pelo ouriço de
estimação. Só Deus sabe onde você fazia noção. De qualquer jeito, quando
voltamos para nossa casa e encontramos o lugar infestado de insetos, você
defendeu que os ouriços comeriam todos eles. Claro que nós não acreditamos
em você, apesar de ter sido muito insistente. Porém, se não houvessemos
despejados-os de volta ao jardim, acho que as baratas acabariam devorando
tudo, com certeza, porque nunca encostaram. Sim, também me lembro que
numa única delas...”
A cabeça dele estava tão ocupada ouvindo o uivo horrível do bebê que,
por um momento, ficou desatentoao término repentino da fala da tia. Logo,
pois, admirou: no fim, ela também escutou isso? Foi um som apavorante,
mais parecido com o latido alucinado de cachorro numa fazenda solitária do
que com o pranto de um bebê humano. Não, ela não ouviu, estava dormindo.
Mal pensou nisso, quando um pavor enorme tomou conta dele. Um medo tão
doentio que ele levantou da cadeira em horror. A mão dele, na qual a tia
esteve segurando, escorregou direto ao punho dela. Por um segundo, ele
ficou sem saber o que fazer, em seguida, correu para fora.
No corredor próximo da cozinha, veio ao encontro de Josefina. “Eu
estava indo dar outra dose para ele, quando ele parou sozinho. Está tudo
bem com ele agora. Eu não sei o que fazer disso, monsieur. Só espero que
ele não acorde a Madame do descanso.”
“Não,” ele respondeu inutilmente. “Madame está morta.”
CAPÍTULO CINCO
Na defesa não oficial do Sargento Bertrand Caillet, Aymar Galliez
dedicou muito pouco espaço a um assunto que, se as intenções dele fossem
outras, sem dúvida alguma, ele aumentaria sua extensão.
Parece que durante os piores dias da sua doença, a tia dele havia
telefonado para o notaire dela e redigiu suas vontades. Entre elas, deixou toda
a propriedade para o sobrinho Aymar, com duas ressalvas, a saber, que ele
continuasse a cuidar de Françoise e Josefina e o pequeno Bertrand. A
outra condição era que estudasse para ingressar à Igreja e se preparasse
para acatar ordens.
É fácil de reconstruir a cena da leitura do testamento. O notário da Mme.
Didier foi Le Pelletier, um homem ainda desconhecido, porém destinado,
desde cedo, a ser totalmente amado ou odiado. Ele era um conhecido de
Aymar, com quem já havia encontrado em vários grupos radicais. 5
Le Pelletier era um homem um pouco prepotente, do lado exterior,
baixo, moreno, como se fosse amassado, sujado e jogado na sarjeta por
uma força vingativa. Ele era um argumento a favor dessa afirmação repetida,
mas não comprovada, de que os revolucionários estão constituídos por
aqueles maltratados pelo destino, pelas falhas na vida e no amor. Le Pelletier
dedicou pouco tempo à profissão dele e, grande parte dele, à Bibliothèque
Nationale onde esteve juntando materiais para os dois volumes de história e
elogio ao Reino de Terror, um trabalho publicado na época em que a
Revolução Francesa foi impopular ao extremo, instigou muitos comentários
5
Grupos políticos severamente reprimidos nesse momento, que continuaram,
mesmo assim, como encontros casuais de café.
e atribuiu-lhe a glória de uma sentença de prisão.
Depois de ele terminar a leitura do testamento para Aymar, inclinou-
se para frente e zombou, “Então, você vai ser um padre?”
Aymar ficou chocado. “Como minha tia pôde ser tão cruel?” foram as
primeiras palavras dele. “Ela sabia dos meus gostos.”
Maître Le Pelletier esfregou a mão na testa, franzida como sempre, e
sugeriu maliciosamente, “Deve haver maneiras de contornar isso.”
“Como?” disse Aymar com intensidade.
“Limite de tempo, por exemplo,” Le Pelletier opinou. “Limite de
tempo?”
“Sim. Como é boa uma vontade que não define limite de tempo? Por
exemplo, você deve projetar seus estudos para o sacerdócio até o dia do
juízo final. E se, por acaso, você morresse e quisesse seguir sua própria
vontade, quem poderia pará-lo? Você só foi incapaz de preencher as
demandas da sua tia no seu tempo natural de vida, e pode dispor da sua
fortuna como quiser.”
“Isso é um incômodo,” Aymar reclamou. “Odeio essas fraudes. Ainda
mais uma que eu teria que praticar por anos. É uma consolação saber que não
viverei por muito tempo.”
“Vamos, recomponha-se,” Le Pelletier insistiu. “Depois de tudo, quanto
isso vale? Logo você esquecerá disso. A única coisa que você não pode fazer
é casar. No entanto, até para isso deve haver um jeito, e deve ser a melhor
maneira de se fazer isso. Você apenas declara que não pode seguir as
provisões legadas da sua tia e, assim, você herdará como parente próximo,
sem qualquer arbítrio para sobrecarregá-lo.”
Aymar ficou pensando no que os amigos, que conheciam os antigos
pronunciamentos dele contra o clericalismo, diriam quando descobrissem que
ele havia entrado ao clero. Pois, não deveria estar lá, mas carregar a desonra
até o dia da própria morte.
“Você não precisa me agradecer para que o testamemto seja pior do que
já é,” disse Sr. Le Pelletier. “De acordo com minha profissão, eu avisei sua tia
que era inútil definir um testamento que não especifique nenhuma perda
devido à violação das suas disposições. Ela se recusou a considerar a
possibilidade de que você não quisesse seguir os últimos desejos dela. 'Ele Vai
fazer o que eu quero que ele faça,' assegurou. Em geral, foi mais incomum e
encantador. Você está mesmo livre para fazer o que quiser.”
As palavras do Le Pelletier forjavam Aymar como se fossem feitas para
repreendê-lo. Com o funeral ainda vívido na consciência, encontrou os olhos
marejados de lágrimas ao pensar que a bondade da tia não pôde providenciar
qualquer punição. Entretanto, como ele, comprometido cada vez mais
com o radicalismo intrasigente de Blanqui, conseguiria se forçar a entrar no
seminário? Seria impensável!
Não, nem tão impensável assim, afinal. Recordou que, muito
recentemente, ele estava lendo um artigo de Blanqui, no qual o autor
atacava o misticismo promulgado pelo clero, alegando que eles agiam
apenas para manter as classes mais baixas em melhor sujeição aos senhores
deles, e havia ficado aborrecido com isso. “Você não sabe tudo,” ele
exclamou e jogou o papel fora.
Você não sabe tudo? Como essa frase foi o início e o fim do misticismo.
“O que você pensa da religião?” ele contestou Le Pelletier.
“Moi? Je m'en fous pas mal,” foi a apreciação grosseira do Le Pelletier
sobre esse ramo das humanidades. “Quero dizer,” prosseguiu Aymar, “O que
você pensa, por exemplo, de… uma vida depois da morte?”
Le Pelletier sorriu ironicamente. “Esse velho dilema? Eu creio que as
pessoas já não acreditam nisso nos dias de hoje.” “E você, acredita que está
resolvido?”
“Olhe aqui,” disse Le Pelletier. “Aqui está o meu relógio.” Ele segurou a
peça do relógio. “Se eu girá-la, marca o horário. Ele existe. Está vivo. Se
quebrar a mola, ele para. Não marca mais o tempo. Está morto. As horas não
servem para isso. E o mesmo acontece com você, quando a sua mola principal
se foi.”
“E nada, além disso?” falou Aymar.
“Nada além, e para a nossa sorte,” Le Pelletier desabafou. “Imagine
poder marcar a passagem do tempo enquanto está descansando em seu
caixão por milhares de anos. Não seria divertido, seria?”
“Eu não havia pensado desse jeito,” Aymar disse com leveza. A mente
dele estava preenchida com a imagem da tia, como Ela estaria descansando no
caixão. Pálida, com um sorriso inexpressivo e virginoso. Ela estava marcando o
tempo? Contando segundo após segundo?
“Você tem à disposição o seu túmulo para deixar o melhor de você,”
respondeu o notário com simpatia.
Aymar encarou. “Você acredita,” perguntou, “que um cachorro
percebe quando a morte está se aproximando de um dos habitantes da casa,
e que, então, ele ficará latindo lugubriosamente?”
Le Pelletier levantou os olhos desconfiado. “Quanto à mim, estou crente
na ciência. Não tenho nada a ver com superstições. Sou um positivists, junto
com Comte.”
“Mas,” Aymar contestou, “a ciência não poderia descobrir que
cachorros são capazes de sentir o quase desaparecimento de alguma pessoa
próxima deles?”
“Aonde você quer chegar, enfim?”
Aymar hesitou. Agora ele estava falando como a tia dele costumava
falar, enquanto o papel do cético, que ele desempenhava, foi jogado por Le
Pelletier. “Francamente,” disse, por fim, “Alguma coisa do tipo aconteceu
aqui, na morte da minha tia, e ainda está me me deixando arrepiado.”
“Nervos, apenas nervos,” disse Le Pelletier confidente. “Todo mundo
tem momentos em que não consegue mais ver com clareza. O luto cega. Você
vai superar isso.”
E, enquanto matéria de fato, Aymar superou. O verão veio e Josefina,
Françoise e o bebê saíram da propriedade da Mme. Didier. Aymar teimou que
conseguissem dispor do apartamento na cidade o quanto antes. Não achou
necessário continuar como está. As mulheres poderiam ficar na fazenda onde
Guillemin, o fundador, levava uma vida simples, com um jardim exuberante
e um curral tranabordando de galinhas, porcos, coelhos e ovelhas. Quanto
a ele mesmo, Aymar providenciaria um pedaço de terra barato em algum
lugar da cidade e também gastaria a maior parte do tempo no país.
Ele não conseguiria sabotar a própria consciência para obedecer a tia ou
esquecer das vontades dela. De qualquer maneira, ele enfrentava um passado
de dor. Na verdade, a vida não guardava mais nenhuma possibilidade de
prazer. Não poderia trabalhar para os oprimidos, nem combater a
administração do pequeno Napoleão, que estava abandonando o trono da
França. Algumas vezes, uma presa do medo da morte, em outras,
ansiando pela paz da sepulture, na qual o mundo moral é o solvent
universal, assim como a água é no mundo físico – então atirou-se sobre
a cama da indecisão dolorosa.
Ele conseguiria, mesmo, estudar para a Igreja? E como seria a vida dele?
Ele tinha a coragem, um dia, durante um banho rápido para visitar a igreja.
Quando os olhos dele estivessem acostumados à escuridão, percebeu com
certa curiosidade os altares com crucifixos e estátuas, as velas cintilando em
dúzias de lamparinas vermelhas escuras.
Um padre veio aproximando-se pelos bancos. Com uma resposta rápida,
Aymar o abordou. “Mon père,” disse em voz baixa, “posso falar com você por
um minuto?”
“Você quer se confessar?” o padre perguntou de imediato, pronto para
se afastar da cabine próxima. “Não, não. Só algumas perguntas, que eu
gostaria de fazer.”
“Certo.”
Aymar ficou sem saber como começar, a princípio. Depois
perguntou, “Você gosta do seu trabalho? Desculpe-me, sei que é uma
questão difícil, e você não precisa respondê-la, se não estiver com
tanta vontade.”
O padre gargalhou com uma voz rouca e profunda. De modo geral, ele
era saudável, de companhia robusta, mais agradável e nem tanto pálida ou
monástica. A joie de vivre emanava do corpo firme, visivelmente tenaz
apesar da sotana. Os olhos e a boca dele mostravam linhas impacientes
juntando-se em sorrisos.
Eles conversaram, o padre descreveu o trabalho dele. Ele tinha um
jeito muito frio e fatual de olhar para as coisas. Explicou como gostava de
dirigir as missas e entrou em detalhes sobre diversas diferenças. Falou das
ambições literárias pessoais. Queria escrever sobre os Bolandistas e os
t rab al hos extensos q u e foram interrompi dos p ela R evolu ção.
Monsieur sabia dos serviços astronômicos dos jesuítas na China, das
construções arquitetônicas marcantes deles? Nesse dia, quando a Igreja
estava sendo atacada tão selvagemente, foi bom lembrar de que a ciência
e a arte perteceram à Ela. E as maiores glórias estavam para chegar. Ele quis
estar lá para compartilhá-las.
A avidez dele era contagiante. Aymar, também, quis estar lá.
“Vai ser a Igreja que, em algum dia, libertará o homem desse impasse
econômico,” ele afirmou. “Você vai ver. Roma, desapontada por todos os
lugares pelas dinastias vazias da fé, colocará sua força por trás do socialismo.
Então você verá uma nova era surgir para o homem.”
Com sucessivas entrevistas, Aymar foi se tornando cada vez mais
amigo do padre, e cada vez mais disposto a participar dessa
organização imensa, cuja história foi maior do que a de qualquer país.
Um dia, ele disse, “Eu quero me tornar um padre. O que eu devo fazer
primeiro?”
O padre balançou a cabeça. “Você não.”
Aymar confirmou, “É verdade. Tenho sido hostil até agora, mas você já
explicou muito para mim.” O padre ainda balançava a cabeça.
“Você acredita,” disse Aymar, “que minha decisão não dure muito?
Talvez esteja certo. Mas, ainda assim, pretendo me preparer para a ordem. Eu
devo, de fato.”
“Você não entende,” o padre respondeu suavemente. “Você manca.
E não pode celebrar missas com esse defeito físico.”
Aymar recordou de já ter ouvido isso muito tempo antes, mas ele ainda
estava ferido. De repente, quis se tornar um padre por teimosia, agora que a
possibilidade escapade dele. Explicou ao padre como, no início, ficou
perturbado pelo ultimo desejo da tia, aos poucos, foi crescendo mais ansioso
para preencher isso.
“Espere um momento,” disse o padre. Ele saiu e retornou com uma
revista. Procurou pelo anúncio que estava procurando. “Pierre-Paul Sgambati,
advogado, 165, rue Saint Honoré, au premier. Escritório de correspondência
para todas as agências do Dicastério em Roma.”6
“Vá ver esse homem,” disse. “Olhe, veja essa lista de coisas que ele
faz. Obtenha autorização para abençoar rosários, crucifixos, medalhas com

6
Devo me desculpar com o leitor pelo possível anacronismo . O
advogado para quem Aymar foi indicado, eu não posso dizer. Pierre-Paul
Sgambati não abriu o escritório no endereço mencionado acima até uns cinco
anos mais tarde. Ver l'Observateur Catholique, Paris, 1857. Este foi o mais próximo
que minha pesquisa chegou de encontrar o nome do advogado.
as indulgências de Santa Brígida. Garanta permissão para um padre careca
usar peruca quando rezar a missa, para um padre investir a fortuna pessoal
para benefício próprio, et cetera, et cetera. E aqui: dispensa pela falta do
olho esquerdo para ordenação. Custará um pouquinho para você,
negócios com Roma sempre custam, mas deve assegurar o que quer.”
“Como isso é ridículo,” chorou Aymar. “Vergonhoso!”
“Bem,” disse o padre e encolheu os ombros. “Alguns padres daqui
contestaram também. Porém, Roma é enorme e complicada. Aqui também
custa dinheiro, não importa o que você queira nas cortes da justiça. Pense
sobre o juíz que estudava para saber de todos as numerosas agências em
Roma, e os secretários, o papel e a caneta, entre outras burocracias. Acredito
que São Pedro não sonhou isso. No entanto, a vida está ficando cada vez mais
complicada. O simples parte, duplica-se, quadriplica-se e torna-se um
labirinto.”
Aymar não conseguia receber as notícias com tanta naturalidade. Ele
pensava sobre a questão por muitos dias, entretanto, indisponível para lidar
com a humilhação de obter uma dispensa para a perna aleijada dele,
parou de visitar o amigo, o padre, e, finalmente, determinou desistir disso
tudo, ao menos, por enquanto.
Ele já havia tido muitas pílulas minúsculas para engolir durante a vida
dele. E mais do que recentemente. ‘Que mundo é este que gosta de zombar
da ignorância dos homens? Havia mistério para isso ou era tudo um
plano? Por que ele estava coxo agora, e muitos dos companheiros das
barricadas ficaram vivos e saudáveis, intocados por uma única bala? Por que a
tia dele queria que ele fosse padre, enquanto a Igreja o rejeitava? Por
que, se ele desprezava a Igreja, ficou chocado ao descobrir uma série
de negócios nisso? E, por fim, havia alguma coisa um pouco mais
coincidental nesse padre contando como contornava a lei da Igreja,
poucos dias depois do notário haver contado a ele como persuadir a lei
do Estado. Vida e morte, sagrado e profane, tudo seria dócil ao
dinheiro e à artimanha.
Apesar da melancolia crescente, preparou-se para dispor do
apartamento uma boa vantagem da renda e empacotou os móveis para o
povoado. Um dia ficou no apartamento vazio e disse adeus para tudo o que
experienciou entre essas paredes. Estava abatido para descobrir que não
esteve profundamente impressionado quanto esperava, ou mesmo quanto
gostaria de estar. As paredes não significavam nada para ele. A janela onde
costumava se sentar, privada das cortinas e das almofadas, sem a cadeira
que foi dele por virtude de adoção, parecia como qualquer outra. Uma
comparação falha surgiu na cabeça dele e causou repulsa: a impersonalidade
de um esqueto. A tia, também, perderia as habilitações da carne e seria
como essa janela, sem significado para ele. O que acontece aos corpos
quando eles morrem? Os médicos devem saber, eles cogitam, com todas
aquelas autópsias macabras que têm de cumprir. A vida depois da
morte? Isso era a vida após a morte?
Conforme ele refletia desse modo sombrio, o olhar dele chamou a
atenção de um objeto metálico. Metade escondida atrás de uma asa da porta,
provavelmente, havia escapado dos olhos dos empacotadores na última hora,
pois a evidência da passagem mostrava que ele não foi ignorado por
completo. Aymar reconheceu esse objeto de metal com estranha emoção, era
o vasilhame no qual a tia guardava a água benta dela. Era uma pequena bacia
metálica, forjada no formato de uma concha e talhada na cobertura com
algumas cenas bíblicas indefiníveis. Presa por um anel na lateral, havia uma
corrente de curto comprimento, que suspendia desde a corrente até o tão
chamado goupillon, uma calda de raposa feita de metal e moldada como um
pequeno cetro. A cabeça perfurada com muitos buracos funcionava para
juntar a água e liberá-la num spray, quando o instrumenot fosse balançado
com a mão.
E todas as coisas que estavam quase ocupadas com as brumas da
irrealidade, das lembranças de um sonho, voltaram com todas as suas cores e
contornos afiados e frescos. A tia, mandando Josefina pela esquina para
buscar água benta, a tempestade e – qual era o nome daquele padre? – Ah,
sim, Pitamonte, e Mere Kardec e a mulher vindo daquela sala com um balde
cheio de água ensanguentada, e a noite terrível quando o bebê uivou e a tia
morreu.
O apartamento, que num breve momento atrás parecia não conter
nenhum significado para ele, agora estava repleto de memórias. Elas pareciam
descascar os lamentos cobertos com seda e rodopiavam ao redor dele. No
crepúsculo crescente, as sombras ganharam vida, ameaçando saírem dos seus
cantos, aproximando-se pelas costas dele, assim que ele se virasse, de
repente, com um pressentimento distinto de que alguém estivesse ali. Ele
enfrentou essa atmosfera hostil que o cercava com perigos. Um eco de um
uivo distante aproximava-se, ficando mais alto, reverberando pelos corredores
vazios, preenchendo-o até os ouvidos.
Tomado pelo terror, afastou-se o mais rápido que poderia. Desceu dois
lances de escadas até a entrada e saiu de lá para a rua, onde a carruagem
dele estava esperando-o com as malas prontas para viagem. No peito, um
pranto selvagem por ajuda ainda se completava, do qual ainda não
havia ousado ao todo. Mais um passo e estaria na segurança do táxi. Em vez
disso, encontrou-se rolando no meio-fio repetidamente, lutando com um
adversário.
Era Maître Le Pelletier, o atrofiado e pálido notário, que levantava-se
com a boca cheia de poeira e maldições. Então, ele reconheceu o oponente,
“Você, Galliez?” estendendo uma mão morena e ossuda para ajudá-lo.
“Que diabos tomou conta de você? Você ficou muito insandecido?”
“Eu só tenho alguns minutos para pegar o trem,” respondeu Galliez
ofegante, varrendo a poeira das roupas. “Vem comigo?”
“Não, obrigado. Desculpe-me mas também tenho negócios em outros
lugares. É melhor você se apressar e não perder o seu trem.”
“Bem, então, mil perdões, amigo,” e Aymar montou para dentro da
carroça. Na estação, teve um bom tempo para esperar e se distrair, antes
que o trem partisse.
Ele estava ficando verdadeiramente louco.
CAPÍTULO SEIS
Galliez diz:
“Em algumas manhãs, em que alguém acorda com os fragmentos de
um sonho tecendo as engrenagens das nossas consciências diurnas. Alguém
esteve com sono num mundo diferente. Alguém estava preso num meio
diferente. Devagar, alguém volta à luz do dia e ao mundo da lógica dos dias,
mas o gosto do sonho perdura, de imediato, para conscientizar alguém da
estranheza do nosso mundo habitual, uma estranheza que de tão fugaz
ninguém sequer conseguiu analizá-la. Porém, quem está nela e que nunca a
vivenciou?
No lodo, às vezes, alguém testemunha um fenômeno esquisito: a água
escura e silenciosa, que parece muito densa e oleosa para ser perturbada pela
brisa, surge em repentina agitação. A superfície sobe como se um corpo
estivesse em trabalho de parto embaixo, da confusão surge um baú velho
cheio de água que jazia no fundo do poço e, agora, que emergiu até a
superfície, afundará, lentamente, de volta para o fundo – no oceano, somente
alguns marinheiros foram privilegiados de testemunhar um evento
semelhante.
Um mastro foi visto saindo da água. Enquanto o barco estava passando,
diante dos olhos atônitos dos marinheiros, o mastro emergiu mais e revelou-
se ser a parte superior de um mastro. Um par em cruz mal pendurado dava
agora uma aparência de pedaços de corda presos a ele. Seguido por outro
pedaço de vela preso em farrapos molhados. Um mastro menor elevou-se
e, assim, o convés veio à tona, primeiro a arca de cima de uma
estrutura antiquada, ornamentada com um anjo, com água jorrando
dele como se trincasse a superfície do mar. E a embarcação inteira subiu
e flutuou por um instante sobre as ondas, derramando água de cada
rachadura. A própria nau foi identificada de prontidão como um velho
galeão espanhol, tal como não é visto pelos sete mares por quase um
século. E, aos poucos, a navegação que mergulhava e se erguia da água
como o patágio dos corcéis de Netuno, instalou-se novamente nas
ondas e, num momento depois, se foi. E foi, como se nunca estivera
estado.
Muitos dos marinheiros à bordo duvidaram com os próprios olhos, um
deles, invadido por um medo inominável, rastejou pelo convés de madeira de
teca. Os espertos debateram o fenômeno com plausibilidade científica,
enquanto os mais religiosos conteram-se com o sinal da cruz e uma ou duas
orações, murmuradas sob a respiração com uma promessa bem escolhida.
Mas o veredito geral alcançado foi que o grão ou outro material, preso num
reservatório de água parada, deu origem a um gás, que se acumulou sob
grande pressão e, assim, acabou quebrando o confinamento com tanta
força que propulsionou a navegação à superfície, onde flutuou até que o
gás estivesse escapado, e a água preenchido o porão da nau, afundando-a
mais uma vez.
Há tais navios e tais toras nos pântanos de nossas mentes, e eles
sobem à superfície dos nossos pensamentos por um momento, para,
então, afundar de novo. Há tais navios afundados nas reminescências das
nossas vidas. Na correnteza dos anos. Eles são esquecidos. E, ainda assim,
eles sobem, fantasmas de um passado que está terminado. Eles flutuam
diante de nós por um período, para a nossa grande admiração, depois
afundam de novo como se nunca existissem.”
Assim escreve Aymar Calliez na defesa minoritária do Sargento Bertrand
Caillet. E ele continua:
“No reino da natureza também há fenômenos que deixaram de ser por
muito tempo, do qual, mesmo assim, um exemplar deve sobreviver. No
interior da África, alguns monstros enormes do passado permanecem
vagando as florestas. Um mamute deve estar perambulando agora mesmo
sobre os resíduos congelados das nossas regiões árticas: o ultimo
representante solitário da grande raça. Um dinossauro na América do Sul, um
glyptodon numa área inexplorada do planeta. Essa bacia enorme de água
que cobre quase todo o nosso globo oculta animais nunca sonhados, quem
teria a ousadia de negar, ao menos, a possibilidade?
Nessa era horrível de descrença e credulidade, as pessoas engolem
qualquer história de monstros do passado, porém, ao menos que
encontremos os ossos de um centauro, ninguém acreditará nesse mito. O que
os cientistas têm feito além de substituirem dragões, sereias e esfinges com
um novo traço de bestas? As pessoas acham transposição fácil. Onde
pensaram uma vez em dragões, terão mamutes e outras bestas extintas para
ocuparem os mesmos bancos mentais: esses nunca mudam.”

***
O que alguém diria dessa língua? Alguém seria tão cético quanto
Thomas, que havia de ver o estigma, embora já houvesse muito sobre o
manuscrito de Galliez, que poderia ser verificado na consulta a jornais antigos,
etc., que alguém tentou acreditar, pelo menos, nos fatos verídicos,
guardando a decisão da existência verdadeira de uma criatura
sobrenatural. Enquanto os próximos capítulos respondem, quase
exclusivamente, todas as afirmativas de Galliez, há outros episódios que
podem ser reconstruídos por inteiro a partir dos documentos e das
gravações.
Se você for ao pequeno vilarejo de Mont d'Arcy, em Yonne, talvez
ainda escute lendas das grandes caçadas de lobo. Os antigos
habitantes superam-se nos detalhes arrepiantes com os quais
decoram as narrativas. Alguns desses vão se contrariar. O que é
inevitável. E não devem ser entendidos como se a história toda
fosse uma invenç ão dos charlatões locais, que fizeram os
invernos longos demais e começaram a caçar lobos simplesmente
para se entreterem durante as horas de lazer e garantirem a
diversão completa de suas imaginações. Na lenda, há um bom núcleo
central que deve ser aceito.
Bramond, o garde champêtre, foi o primeiro a encontrar vestígios de
lobo. Ele encontrou dois cordeiros caídos, mortos recentemente, do lado
da trilha da floresta. A garganta dos animais foi cortada, e, pelo visto, o
sangue havia sido lambido, pois o chão mostrava poucas manchas. Ou,
também, o assassinato havia sido em outro lugar, e os corpos arrastados até
esse local distante e vazio, presos com arbustos.
Um deles estava desmembrado, o outro, pelo contrário, intocado. O solo
seco ao redor apresentava poucos traços indistinguíveis de que estava sendo
pisado.
O último lobo visto por essa região havia sido morto há mais de vinte
anos atrás, portanto, a aparência de um lobo nesse quarteirão do département
era considerada incomum, para dizer o mínimo. Bramond, enchendo o
cachimbo, franzindo a testa e grunhindo como tentativa de raciocínio, chegou
à conclusão sensata de que o autor desses delitos era um cão pastor, por já
terem o gosto pelo cordeiro. E, então, chegou ao acordo de que o criminoso
não era ninguém além de César, o cão enorme do pastor de Vaubois, pois não
só era mal alimentado com a ajuda dele, como o próprio dono passava fome.
Sirva-o direito, pensou. Porém, um delicado grão de areia restou nesta
lambança: deve ter sido um lobo, enfim. Entretanto, se apenas ele fosse
astuto como aqueles sabujos indianos sobre os quais o filho dele lia todas as
noites, então não haveria dúvidas por um momento. Pegaria um pouco de
pelo e o identificaria de uma vez. Encontraria alguma evidência das garras e
diria se este ou esse animal foi o responsável. De fato, reconstruiria a cena
inteira. Reconheceria, a partir do estado dos animais mortos, quanto tempo
estiveram assim, em qual hora exata eles encontraram a morte, aqui ou em
qualquer outro lugar. E, por fim, ele consideraria, “Agora, amigos, eu
convido vocês à prova da correção nas minhas observações e deduções. Se eu
estiver certo, o animal aparecerá na terceira noite a partir de hoje, duas horas
depois do ascender da lua, neste mesmo local.”
O velho Bramond aproveitou o triunfo enquanto pôde e, assim,
preparou-se para apreciar a distribuição das partes reais das notícias,
numa terra sempre faminta por uma história boa. E a primeira pessoa que
atravessou foi o pastor de Vaubois, Crotez.
Eles trocaram cumprimentos e sentaram-se sobre uma rocha para
fumarem um pouco juntos. Então, Bramond disse, “Sentindo falta de
algum cordeiro?”
“Não,” respondeu Crotez, “Por que você pertgunta?” “Apenas
curiosidade. Onde está o seu cachorro?”
“Deve estar em algum lugar por aqui.” Ele sibilou. “Aqui, César!”
César veio trotando para fora de um mergulho no prado e correu
alegremente para cima do pastor. César era uma espécime maltratada
desses muitos vira-latas conhecidos como chien de berger. Eles levantam
facilmente alto, têm orelhas pontudas para cima, uma cauda peluda e um bom
casaco de pelos marrons encaracolados.
A língua vermelha de César desenrolou-se para fora das presas, para
refrescar. Ele arriou a cabeça por baixo dos braços do dono, que era a posição
favorita dele, com o braço do amigo humano apoiado no seu pescoço.
Bramond coçou a cabeça dele.
“O que você disse sobre cordeiros perdidos?” o pastor perguntou.
“Foram dois que morreram, ali no alto da montanha. Eu estava
pensando de quem eles seriam.” Logo que falou isso, Bramond percebeu
que deveria ter ficado quieto. Os eventos estavam para provar que ele havia
cometido um erro.
“Dois cordeiros mortos?” “Metade comida.”
“Metade comida?” “Lobo.”
“Lobo?”
“Exato.”
“Jésus!” Exclamou o pastor de Vaubois, finalmente encontrando uma
palavra dele mesmo.
Do pastor de Vaubois, Bramond desceu a encosta suave até chegar ao
lugar de Didier-Galliez.
O Sr. Galliez, ele mesmo, estava no fim do beco de alfarrobas, as
quais ocultavam a casa da estrada, ocupado com as roseiras.
Depois de poucos comentários sobre o clima, Bramond balançou a
cabeça. “Más notícias, monsieur.” “Qual é o problema, Bramond?” Aymar
perguntou, avistando-o por cima do seu trabalho.
“Lobos nesta área. Dois cordeiros encontrados mortos lá em cima,
metade comida. Não poderia ser nada além de lobos, apesar de que não
temos lobos por aqui há anos.”
“Você deve estar enganado,” disse Aymar. “Os lobos foram extintos
desse lado do povoado. Dizem que as raposas pegarão os carneiros recém-
nascidos.”
“Você sentiu a falta de algum cordeiro?”
“Você vai ter que perguntar ao jovem Guillemin,” respondeu Aymar,
“ele cuida das ovelhas. Entre,” ele convidou Bramond.
Bramond desceu o beco e seguiu por trás da casa. Josefina e Françoise
espalhavam o linho sobre a grama para alvejá-lo. O jovem Bertrand, com
quase nove anos mais velho agora, estava lutando com o cachorro dele,
um grande São Bernardo. Nenhum dos Guillemins estava por perto.
Bramond fez as mesmas perguntas, mas não assegurou nenhuma
informação. As mulheres também não ouviram nada de qualquer cordeiro
perdido.
“Sr. Galliez acredita que seja uma raposa. Ele diz que, às vezes, elas
roubam os carneiros recém-nascidos.”
“Uma raposa deve estar muito bem,” disse Françoise. “Nós perdemos
muitas galinhas e patos neste ultimo mês. O jovem Guillemin armou
armadilhas mas não consegue pegar o ladrão.”
“Vou pedir para o meu garoto armar uma arapuca. Ele faz umas ótimas.”
Bramond virou-se para Bertrand. “E você. O que acha de uma nova caçada?”
Ele disparou. “Ele contou a você como nossa última jornada de caça acabou?
Ele acertou um esquilo e quase desmaiou. Você tem que saber portar uma
arma se quiser ser um homem.”
Françoise riu. Mas Josefina respondeu, “Ele é muito frágil. E não vai
comer.” “Ele parece grande o bastante para mim. Qual é o problema com
ele?”
“Ele sempre está saudável,” disse Josefina, “e nunca tive qualquer
problema com ele até este verão. Não sei o que fazer com isso.”
“Um toque de ternura,” sugeriu Bramond. “Ele está um pouco chateado.
Mas eles crescem com isso.”
Bertrand, enquanto isso, o assunto dessa conversa, parecia
desatento a todas as coisas, com exceção do cachorro que estava
gracejando. Bramond pediu desculpas e apressou-se com as notícias.
Até agora, ele não havia recebido a apreciação que esperava.
A próxima pessoa com quem ele se encontrou foi o major da vila, um
produtor de vinhos importante e mercador da região.
“Monsieur le maire, tenho más notícias. Acho que...”
“Sim,” falou o major, “você é exatamente o homem que estou
procurando. O pastor de Vaubois acabou de me informar que encontrou dois
cordeiros comidos pela metade e, a julgar pelo que sobrou, foram atacados
por uma grande alcateia de lobos. Monsieur Bramond, parece que você não
está no trabalho.”
“Lobos...” Bramond confirmou.
“Sim, lobos. Onde você esteve vadiando durantes esses dias, em que
uma alcateia de lobos podem invadir nossa vila e matar nossos cordeiros
bem debaixo dos nossos narizes?”
“Como –”
“E quando nossos cidadãos suplicam por ajuda, ninguém pode encontrar
Bramond.” “Mas –”
“Vaubois estava procurando você por todos os lugares!” “Mas, monsieur
le maire, sou eu quem –”
“Nenhuma outra palavra. Nós deixaremos isso passer desta vez. Agora
volte ao trabalho e consiga exterminar aqueles lobos dentro de vinte e
quatro horas e entregue-os à mairie.”
“Oui, monsieur, só queria dizer que –”
“Não, nem mais um minuto além das vinte e quatro horas.” E, com
isso, o major saiu com sua majestosa pernosalidade, deixando furioso e
estupefato pela estrada.
“Eu sabia que não devia ter dito nada a esse imbecil de pastor. O ladrão –
como ele pôde pregar uma peça desprezível como essa?”
Enquanto ele estava lá xingando o pastor, chega Le Vallon, gritando,
“Bramond, mon vieux, onde você esteve? Você ouviu as notícias? Todos
estão procurando por você. Há grupos de lobos aterrorizando a vizinhança.
Vale tanto quanto a sua vida pegar o caminho da floresta.”
“Cale a boca!” Esbravejou Bramond.
Bem, essa é, pelo menos, a versão do Bramond de como o lobo foi
descoberto. O pastor de Vaubois, Crotez, claro, tinha outra história para
contar, e, assim que o povoado todo tivesse ouvido o conto excitante do
pastor, com exceção das pessoas pelo estado de Galliez, ninguém poderia
acreditar em Bramond, não importa o quanto ele explicasse.
“Por que Crotez trouxe os corpos para cá, para a prefeitura, eu vi...”
“Isso só mostra que ele não tem nenhuma razão. O mais apropriado a
fazer seria não provocá-los e esperar os lobos retornarem.”
“Mas eu mesmo contei para ele –” ele disse a outro.
“Ha, ha. Meu querido Bramond, nós acreditamos em você, claro. Que
vilarejo na França pode vangloriar-se de um garde champêtre como o nosso?”
“Eu posso apontar para você o lugar exato onde eu os encontrei.”
“Assim todos na vizinhança podem dessa vez.”
Bramond pausou e reconsiderou como um cão de caça indiano lidaria
com essa situação. Sem dúvidas, ele desmascaria o pastor de Vaubois por um
momento. Porém, ele, também, não conseguia enxergar nada para
recuperar o prestígio dele além de capturar aqueles lobos. Assim, ele
recarregou sua arma e foi embora.
Nos dias seguintes nada mais foi visto sobre lobo ou alcateia de lobos, a
não ser que o diabo abanasse o rabo enquanto estivesse falando, assim, os
lobos, certamente, também teriam que abanar as caudas, mas nada além dos
lobos aparecia nas conversas do vilarejo pela próxima semana.
Então, outro dia, mais um carneiro foi encontrado, com a garganta
rasgada do mesmo jeito, e a barriga estripada. E os patos e galinhas
continuaram a desaparer de várias lotes, em particular, do curral de
Galliez.
Diversas pessoas, em diversas vezes, afirmaram ter visto o lobo. Elas
acreditavam em partes, mas a grande maioria não. Pelo outono, ocorreu um
incidente que deixou o mistério do lobo mais próximo de casa.
A pequena Pernette, voltando da casa do tio, que estava doente, viu,
enquanto vinha através da cerca dos campos de trigo do Vaubois, um
cachorro enorme, tão grande quando um gado. Vinha pulando. Ela
gritou e fugiu. O corpo pesado do animal desmontou sobre ela e a
derrubou. Ela perdeu a consciência. Quando acordou, já estava muito
escuro, a lua cheia, em vermelho opaco, de pé acima do horizonte. Voltou para
casa tremendo e choramingando e contou a história.
No entanto, ela estava tão histérica que respondeu sim e não para
questões semelhantes ou contraditórias, assim ninguém conseguiu entender
algum sentido do relato dela. Contudo, um grupo da vila ficou entusiasmado
para a ação, logo pela noite, que estava cintilante com as tochas dos
camponeses armadas com forquilhas, todos procurando pelo lobo. Outros,
convencidos de que Pernette foi atacada por algum trabalhador da
colheita, duvidaram da ajuda migratória dos agricultores. E outros, ainda,
permaneceram em casa com medo, certos de que isso não era trabalho de um
lobo ordinário, mas, sim, do diabo.
Bramond, apesar da ambição dele de matar o lobo e reconquistar o
privilégio como um caçador, que, até então, nunca havia sido questionado,
não parava de vagar pelo distrito, dia e noite. As bochechas dele afundaram-se
pela privação do sono. Quando o filho queria ler para ele sobre os grandiosos
caçadores indianos da América, ele interrompia o pequeno companheiro,
bruscamente. Logo após o jantar, retirou a arma da parede e saiu. Mas
nenhum sinal do lobo, mesmo que perseguisse cada prova trazida para casa
pelos moradores nervosos, propensos a confundir todas as sombras com um
lobo agachado.
Certa noite, pouco antes do nascer do sol, ele estava atravessando uma
campina melancólica, um brejo escurecido com poças de água parada. O
terreno estava coberto de matagal e samambaia, entretanto, próximo à água,
formava-se uma massa densa de folhas murchas e juncos, entre os quais o
vento da madrugada suspirava tristemente. Ele estava em devaneio profundo,
almejando uma fantasia na qual ele exibia uma série de peles de lobos da
próxima estação. De repente, ficou como se estivesse paralizado. A menos de
quinze metros de distância estava um lobo, não havia dúvidas disso. Estava
preparado para matar, já conseguia ouvir os ossos esmagando-se entre as
mandíbulas no decorrer da noite fria.
Apesar do coração disparado, Bramond observou atentamente, calculou
a distância apropriada e atirou. O lobo saltou por uma poça de água e saiu,
com a barriga encostando no chão enquanto dava passadas longas. Assim
mesmo, houve tempo de Bramond recarregar a arma para um segundo tiro.
Precipitou-se, certo de que conseguiu, pelo menos, ferir o animal, esperando,
na verdade, voltar logo com o corpo. Por isso escapou com vida a uma
distância muito curta, que nunca ocorreu para ele.
E, mesmo que isso seja o que aconteceu, como Bramond não viu mais
o lobo, e o dia raiava, ele voltou ao local onde havia atirado na criatura e
não conseguiu encontrar nenhum sinal de sangue, a não ser essa
pobre perdiz que o lobo estava devorando. Ele levou o pássaro
mutilado para casa, impressionado com o pouco de penas, amassadas e
coaguladas com sangue.
Enquanto pensava e analisava, acometeu-lhe uma ideia e bateu na mesa
com um soco. “Esposa,” ele berrou, “um pouco de cêra!”
“Por que você está acordado a esta hora?” ela questionou. “Rápido,
agora,” ele insistiu.
“Roma não foi construída em um dia,” foi a réplica dela.
“Vamos, já,” disse, “e pare de falar. Desde o dia em que me convenceu
a casar com você, a sua língua não para dentro da boca.”
Ela levou um pouco de cêra para ele e ficou assistindo-o esculpir um
pequeno pedaço no formato de uma bala, entalhando com muito cuidado,
como o modelo que pegou do estoque pessoal de cartuchos. E ela abriu a
boca de novo.
“Eu me encontrei com Josefina na manhã de hoje, e peço o seu perdão,
Mme. Caillet. Que mulher alta e ponderosa ela se tornou. Quem imaginaria
que seria a mesma Josefina que contentava-se em beijar os seus pés por uma
fatia de pão. Afinal, o que você está fazendo? E ela me contou que Bertrand
estava dando muito problema para ela. Ele não tinha appetite, e ela
cogitou se deveria mandá-lo embora à escola. Claro que ele iria embora
em algum momento, desde que quis estudar medicina, contudo, por
enquanto, ele poderia continuar a frequentar a escola do vilarejo. Bem,
eu contei uma ou duas coisas para ela. A escola do bairro foi boa o suficiente
para ela, e ela nunca ganhou um único prêmio literário sequer, sempre foi essa
burra. O nervo dela. Você poderia, por gentileza, me informar para que está
fazendo isso? Está tentando esconder de mim? Bem, eles não podem vendar
meus olhos. O que você acha? Acredita que ela casou-se com esse homem,
Caillet, quem fosse, no dia que chegou em Paris? Quem mais traria para
casa um bebê de seis meses de idade? E desde quando os serviçais são
casados e fogem com os filhos? E por que o menino dela está indo estudar
medicina? De onde vem todo o dinheiro?”
“Do Sr. Galliez, mas é claro,” respondeu Bramond. “E pare de apoiar-se
nos meus ombros, não consigo trabalhar.”
“Só Deus sabe o que você está fazendo, oras. Ah, com certeza, Sr. Galliez
está dando o dinheiro. Pensa que eu não sabia disso? E, se você acredita
que eu não sei o porquê, você também está muito enganado. Aposto
que Josefina não tem as duas pernas numa meia.”
“Pare de tagarelar. Vocês, mulheres, sempre têm as coisas resolvidas.”
“Vocês, homens, são tão idiotas quanto os gansos. Acreditam em tudo. E
por que acha que o Sr. M. Galliez voltou do seminário em Langres? Ele não
foi ser padre? Só que o chamado dos laços da família foi um pouco
demais, suponho. A sua pequena Josefina precisava dele.”
“Pare de supor tantas coisas, e vá buscar para mim o seu pequeno
crucifix de prata. Vocês, mulheres, deveriam ter vergonha de vocês mesmas,
desse jeito, rasgando o caráter de um homem aos pedaços.”
“O que você vai fazer com o meu crucifixo? Não o quero
estragado. Pois foi abençoado para mim, pelo próprio arcebispo,
quando fui para Avallon.”
“Tudo do melhor. Não podemos ter muita benção nisso.” “Antes de dá-
lo a você, quero saber o que você pretende fazer.”
“Você vai descobrir mais cedo ou mais tarde, e há muito tempo para
conversar sobre isso.”
“Preste atenção, se você perdê-lo, nunca mais vai ouvir o final disso.”
Relutante, entregou o artigo desejado para ele. Assim, ele embebedou a bala
de cera num bolo de lodo molhado.
“Alguns cabelos da sua cabeça!” ele ordenou. Muito surpresa para
resistir, ela permitiu que ele arrancasse um tufo da cabeça dela . Ele
enterrou muitos deles em várias direções através da bala e, em cima
de tudo, colocou outro bolo de lodo molhado, pressionando
firmemente os dois dedos juntos. Por fim, soltou o cabelo.
“Pelo ar, para não escapar,” explicou com poucas palavras.
“Que ar?” interrogou. A língua estava começando a enfraquecê-la, pela
primeira vez.
Ele desconsiderou a pergunta, ocupado cavando um canal pequeno
através do lodo, por baixo da bala ao centro. Feito isso, montou tudo para
assar no forno. Quando o molde estava seco e duro, a cera havia derretido,
deixando um modelo oco perfeito no lugar, ele derreteu o crucifixo de prata,
aos berros e prantos altos da esposa. Eis, assim, a bala de prata fundida.
Precisava apenas de um pouco de recheio, lixa e polimento para ficar perfeita.
“Tente fugir disso,” Bramond abriu um sorriso. “Uma bala de prata,
abençoada pelo arcebispo, fundida por um crucifixo sagrado. O próprio
Belzebu desistiria antes disso.”
E prosseguiu procurando e esperando, sem fim. Um veado poderia
mordê-lo pelas costas, ele não gastaria uma única bala preciosa, das que
estavam no bordão da arma. Um braconnier poderia fugir correndo com
cinquenta camponeses. Os faxineiros poderiam, subrepticiamente,
empunhar a foice, pois Bramond não faria nada.
O inverno chegou, e o lobo continuava a não vir dentro do raio dos olhos
dele. Assim que ele deixou a vizinhança, os relatos de aves e cordeiros
sumidos voltaram ainda mais numerosos, como nunca estiveram. Entretanto,
o animal parecia estar evitando Bramond.
Numa noite gelada, quando o chão estava coberto de neve, e o céu
sobrecarregado, ele apareceu. O animal, com a inteção de matar, não
percebeu o guarda; além disso, o vento estava assoprando para longe dele.
Bramond murmurou uma oração curta e avançou o máximo que
conseguiu. Quando ficou há uns vinte passos de distância, tão próximo que
poderia ver cada detalhe do animal, o revestimento de pêlos marrom-
acinzentados, as orelhas apontando para cima, os olhos enormes, brilhando
na escuridão como um fogo-fátuo maçante, então ele dobrou os joelhos e
mirou. O animal, com consciência repentina de evitar o perigo, olhou por
cima e cheirou o vento. Preparou-se para fugir, no entanto, Bramond já
havia atirado. A besta desmoronou e, logo quando Bramond estava
exultando, “Peguei você dessa vez!”, ficou de pé e saiu, escapando pela mata
baixa entorno da floresta, recentemente aparada.
Depois disso, Bramond ficou abrasivo. Os rastos estavam fáceis de
seguir, a neve e a trilha de sangue densa deixaram isso ainda mais fácil.
Embora o lobo estivesse avançando rápido, apesar dos ferimentos, que
deveriam ser mortais, como Bramond imaginou, as manchas de sangue
reduziram-se a gotas, relevantes na neve em intervalos cada vez mais
raros. Então os rastos de sangue cessaram por complete, porém, as patas
do animal ainda deixavam suas marcas legíveis. Os arbustos baixos foram
favoráveis, mas a encosta caía numa estrada, e, do outro lado del a, havia
um campo aberto, com isso o animal não poderia ter ído muito longe, não
mais fora de vista. “Mancando com a perna esquerda, também,” o guardo
notou com satisfação.
Quando o garde champêtre desceu para a estrada, entretanto, observou
pelos campos que não havia nada para ver. Ultimamente, a estrada era muito
viajada e qualquer evidência ali seria impossível, e, para Bramond, não parecia
que uma besta selvagem pegaria uma estrada movimentada. Ele esperou
convicto de que ela teria atravessado, no entanto, do outro lado da pista,
não havia nenhum sinal de pegadas de qualquer animal. Elas foram pisadas
nelas mesmas e entraram de volta aos arbustos? Ou seguiam-se pela
estrada?
Perdido, Bramond permaneceu no meio do caminho, observando
ao redor. Nada além da noite silenciosa o cercava. Não conseguia
ouvir nada, exceto a própria respiração. Espantado pela quietude e
um pouco não convencido da veracidade do breve episódio, hesitou.
Qual caminho? Para casa? Impossível! Ele já estava com as mãos quase
no animal. Mas aonde ele iria? Continuou irresoluto, até que o frio o
alertou de andar. Devagar, os arrepios começaram a rastejar pelas costas
dele, no caminho para casa. Continuou olhando por cima dos ombros. Parecia-
lhe que, conforme os pés pisavam, eram colocados diretamente nas próprias
pegadas dele, assim que levantavam-se do chão.
Então, um medo genuíno o possuiu e ele começou a correr, e
continuou a ouvir o pisar suave das pegadas sobre a neve dura. Um conto
antigo veio à minha mente, dos cães de caça e de guarda, daqueles sabujos
terríveis que vivem nos túmulos abandonados dos cemitérios. E mesmo que
ele fosse, por ordenado, um homem de nervos fortes, todos os seus
músculos enfraqueceram. Ele cambaleou um pouco. A arma era pesada
demais nas mãos dele. Imprudentemente, a jogou fora. E, assim que fez isso,
então, viu um lobo na frente dele. Estava correndo ao lado da estrada. De vez
em quando, ele recuava no meio da escuridão pela estrada para reaparecer
logo depois.
Ele condenou-se pelo tolo e covarde que foi, juntou a última reserva de
forças e correu de volta à arma, que estava caída na estrada, aonde ele havia
jogado. Ele a pegou e voltou a correr. Onde esse lobo estava agora? Fugiu!
Não, estava ali. Apontou a arma e bang! A besta amarrotou-se entre as
pegadas. Rolou e não se mexeu mais. Com um grito rouco, Bramond veio
correndo, apertando a arma, a qual segurava pelo cano, e sentou em cima da
cabeça do lobo. Os ossos quebraram como papel, espirrando sangue,
cérebro e dentes para todas as direções.
Ele limpou o suor frio da testa. “Graças a Deus!” resmungou. Chutou o
corpo. Onde eu acertei na primeira vez? Somente quando percebeu que
por volta do pescoço do animal, profundamente escondido nos pêlos, havia
um colar. Ele reconheceu a besta.
Encontraram ele na manhã seguinte, deitado ao lado do corpo de César.
Bramond ficou seriamente doente por duas semanas. Depois começou
a se recuperar. Quando os visitantes foram permitidos, o próprio major
foi designado a entrar no chalé humilde do guarda e o congratulou.
“Nós devemos a você uma desculpa profunda,” disse, “e muito obrigado.
Você fez um bom trabalho, e vou providenciar para que ouçam sobre
isso na prefeitura.”
Fraco e feliz, Bramond só conseguia acenar. Havia muitas lágrimas nos
olhos dele.
O major levantou-se para sair. Mas, primeiro, foi à cabeceira da cama e
deu um tapa nos ombros de Bramond. “Quem sabe,” ele disse com um
sorriso enorme, “pode haver uma medalha para você.”
Inclusive a esposa ficou feliz com ele. “Só que eu quero essa bala de
prata,” ela falou, “pertence a mim. E agora vai ser querido por mim duas
vezes.”
“É estranho eles não a encontrarem no corpo,” ele respondeu. “Mas
quando eu estiver bem, posso ir procurá-la. Não deve ser difícil de encontrar.
Enfim, foi o cachorro do Vaubois o tempo todo,” devaneou. “Você sabe que
foi a minha primeira ideia. Nenhum sinal de lobo desde que eu matei César?”
“Nenhum,” ela confirmou. “Nem mesmo uma galinha faltando.”
CAPÍTULO SETE
E essa foi a grande caçada ao lobo de Mont d'Arcy, a qual durou
pouco mais de seis meses e fez de cada cidadão um detetive e herói, a
qualquer custo depois da descoberta do culpado.
Josefina, por exemplo, estava muito feliz quando, numa manhã, foi
contado a ela que o lobo tinha sido derrotado por Bramond e não era nada
além do cachorro do Vaubois, César.
“Essa caça ao lobo,” ela disse, “já estava ficando um pouco demais.
Reclamaram que Bertrand sonha com isso toda noite.”
Ela agilizou-se para o quarto de Bertrand e chorou, “Acorda,
preguiçoso. O lobo foi morto e você não tem mais pesadelos a temer.”
Bertrand ficou com o rosto corado na direção da mãe. “Eu não quero
levantar, mamãe. Não me sinto bem. E minha perna dói muito que não
consigo mexê-la.”
“O que é isso? O que é isso agora? Você sempre tem alguma desculpa
para ficar deitado na cama. Confesso que não sei o que acontece com o bom
Bertrand com quem estava acostumada. Ele costumava ser tão bem tratado.
Comia tudo o que era servido antes dele, sem nunca questionar, ía dormir
tranquilo e acordava sentindo-se bem. Vamos, criança, deixe-me ver sua
perna que dói, vamos sair e nos refrescar numa caminhada pelo vilarejo. Está
um dia frio gostoso.”
Ela afastou as cobertas dele enquanto ele gemia, “É esta aqui,” e
apontou para a perna esquerda. “Ó, Deus!” ela gritou. A perna parecia ruim
mesmo, havia sangue pela panturrilha e pelo que figurava ser uma ferida.
Ela foi correndo chamar pelo Sr. Aymar. Ele estava lá embaixo nos
estudos, mas respondeu o chamado imediatamente. Assim que viu o estado
da perna dele, mandou que ela fosse buscar o médico depressa. “Peça para
Guillemin parar os latidos, tudo o que ela possa fazer,” disse para ela,
enquanto descia as escadas.
Françoise resmungava, “Oh, mon Dieu, quel malheur, quel maheur!”
Ocupada buscando água quente e linho para lavar a ferida. Aymar
encarregou-se da última tarefa.
O machucado era um buraco fundo, como se, que foi o primeiro
pensamento de Aymar, o rapaz houvesse caído numa forquila, “Você esteve
pulando do sobrado no estábulo?” indagou.
“Ai!” disse Bertrand, “isso dói. Não, não estava pulando no estábulo.”
Havia uma ferida menor do outro lado da panturrilha, perto da canela, e
isso apenas confirmava a primeira impressão de Aymar. Assim que ele limpou
a área, percebeu que havia alguma coisa dura logo abaixo da pele. “Meu Deus
do céu,” disse para ele mesmo, “há um pedaço da forquilha preso na carne.”
Ele espremeu os polegares na pele para extrair o objeto. “Com certeza,” falou
enquanto algo brilhoso saía da abertura da pele, “é a ponta de um dente.”
Apesar dos uivos de Bertrand, ele pressionou mais forte, até perceber que as
unhas conseguiam agarrar o metal e puxá-lo para fora.
Felizmente, Françoise passou a ficar para fora nesse momento. Havia
ido buscar mais água e trapos. Isso foi mesmo sorte, pois Aymar não
saberia o que dizer se ela estivesse lá, quando ele retirou o que achou que
fosse a ponta do dente de uma forquilha, mas era uma bala, a bala de prata de
Bramond, da qual o vilarejo inteiro havia sido informado.
Para Bertrand, que continuava uivando alto e nem o percebera
assistindo, ele não disse nada. Colocou a bala no bolso do colete e
esperou pelo médico. Este último, quando chegou, encontrou o machucado
limpo e o prognóstico para uma boa recuperação rápida. “A forquilha,” disse,
“por sorte, penetrou somente o músculo de leve e não tocou os ossos. Ele
estará liberado com uma semana de cama, tendo mais nenhum problema, o
que eu acho improvável.”
Quando o doutor se foi, Aymar mandou Josefina e Françoise para fora
do quarto e interrogou Bertrand seriamente.
“Você deve me contar tudo, Bertrand. Não esconda nada. Onde você
esteve na noite passada?” “Por que ficou cama?”
“Enfim, como eu fiquei machucado?” “Eu não sei, tio Aymar.”
“Vamos, vamos, Bertrand. Você não se machuca desse jeito
descansando na cama.”
“Mas se eu contar a você, tio...”
“Bertrand,” disse Aymar, “olhe nos meus olhos. Olhe.” Então, assim
dizendo, ele pegou e segurou a mão do rapaz, para tranquilizá-lo. “Eu não
punirei você, quero somente que me diga a verdade.”
Ele já havia sentido essa mão antes, e isso significava pouco para ele.
Mas agora estava impressionado até o final da espinha. Os pêlos finos na
palma haviam crescidos. De repente, lembrou-se de como a tia, Mme. Didier,
havia contado para ele, com temor na voz dela, sobre os pêlos na palma da
mão do bebê, isso foi há dez anos atrás. Ele ainda podia ouvir, por um
momento em seus ouvidos, esse terrível uivo na noite que Mme. Didier
morreu.
Isso foi há muitos anos atrás, e muita coisa havia acontecido nesse
tempo. Ele foi para Langres estudar para o seminário. No último momento,
ficou incerto da força da própria vocação e não se formou. Enquanto isso,
Bertrand cresceu sem nenhum sinal sequer da fatalidade horrível que o
atingiu, de acordo com Mme. Didier.
Hoje, depois de dez anos, estava destinado a ultrapassar o rapaz? “Olhe
nos meus olhos e me conte que você esteve na cama durante a noite toda.”
“Tio,” disse Bertrand, “por que eu saíria da cama? Eu dormi aqui a noite
inteira. Eu sei porque eu levantei uma vez durante a madrugada, havia tido um
sonho ruim e estava coberto de suor. E eu me sentia muito doente e quis
chamar a mamãe, mas depois caí no sono de novo.”
“Com o que você sonhou?”
“Eu não me record muito bem, mas foi como qualquer outra noite. Eu
tenho sonhado quase todas as noites agora.”
“Eu sei, sua mãe me contou. Olhe, Bertrand. Conte-me. Você não
gosta de ter pesadelos, gosta? Claro que não. Talvez eu possa ajudar
você agora, mas você há de ser muito honesto comigo. Desde quando
você está tendo esses sonhos?”
“Posso dizer a você, pelo que me lembro bem, o que começou isso. Eu
fui caçar com o velho Bramond no verão passado, e ele me mostrou como
atirar. Então, ele apontou para um esquilo e disse para mim, 'Veja se você
consegue acertá-lo.' Eu puxei o gatinho, e o esquilo chiou e caiu. E Bramond
disse, 'Bem, se você não tivesse sorte de iniciante. Como fez isso?' Mas
eu fiquei tão magoado de coração, em pensar que que havia matado uma
pequena criatura, que eu a peguei e chorei. Depois eu a beijei e implorei para
me perdoar. Eu não quis matá-lo. Ele era tão fofo, bonitinho e quentinho que
partiu meu coração. E, como o havia beijado de novo e de novo, senti o gosto
de alguma coisa quente nele. Queimou minha língua como pimenta, só não
era amargo, nem doce como açúcar. Eu não consigo dizer qual é o gosto,
mas eu gostei tanto que eu o beijei mais uma vez e mais outra, não
porque só queria beijá-lo, mas porque queria provar seu sangue,
também não queria que Bramond soubesse o que eu estava fazendo. Estou
contando tudo a você exatamente assim como aconteceu, porque sei que foi
errado o que fiz.”
“Bem?”
“Sim. Bem, desde então eu sonho a noite que estou bebendo
sangue, e isso me assusta até morrer. Às vezes, penso que sou um lobo
como na figura do livro, e estou matando uma perdiz ou um cordeiro, como
mostra lá. E, às vezes, acho que sou o lobo que Bramond está procurando.
Posso vê-lo atirando em mim para me matar, e não posso falar com ele e
contá-lo que eu não sou um lobo. Ó, é horrível quando você quer contar e não
pode!”
“É sua imaginação que está exausta,” disse Aymar com gentileza e
bateu na palma peluda. “Onde você encontra esses cordeiros e perdizes?
Você os acha em seus sonhos?”
“Sim, parece que eu sou como um cachorro ou um lobo e eu pulo pela
janela e corro sobre minhas quatro pernas, e consigo correr muito, muito
rápido. Então eu pulo sobre as sebes e encontro uma ave ou um cordeiro…
Tudo isso parece tão real, como se eu fizesse de verdade.”
“Sim, normalmente os sonhos são muito realistas. Entretanto, não são
verdadeiros no fim das contas. Mas, se houvesse barras nessa janela, você
acha que continuaria a sonhar que estava pulando para fora dela? Veja,
supondo que colocaremos barras na janela, trancaremos a porta durante a
noite e olharemos o que acontece. Poderíamos tentar assim?”
“Sim, tio. Por favor, faça isso. Estou com tanto medo de ir para
cama. Sim, acho que se eu soubesse que a janela e a porta estariam
trancadas, eu não poderia sonhar em escapar do meu quarto.”
Nesse mesmo dia, depois de dar uma explicação razoável para
Josefina e Françoise, sem, no entanto, revelar a elas a natureza de todo o
sofrimento da criança, ele prosseguiu em colocar as barras pela janela e
lubrificar a tranca da porta.
Pela manhã seguinte, foi logo perguntar a Bertrand como ele havia
dormindo e teve o prazer de descobrir que o rapaz foi atormentado por
nenhum sonho. Desde então, o hábito noturno dele era tramcar Bertrand
antes de ir pra cama. Josefina sozinha não estava muito satisfeita com o
remédio. “E se pegar fogo?” ela sugeriu, “e Bertrand, trancado no quarto
dele, sem poder escapar? Nós precisaríamos correr e encontrar você para
pegar a chave.”
“Nós manteremos a chave bem aqui, nesse prego da porta e, se pegar
fogo, por acaso, então, alguém mais próximo pode deixá-lo sair.”
Assim Josefina ficou um pouco contentada. “Claro,” ela admitiu, “o seu
apetite volta, desde que não se incomode mais com os pesadelos, que
continuam trazendo desastres.” Após a conversa, ela acostumou a se levantar
de noite, preocupada pela chance de alguém haver esquecido alguma vela ou
lamparina acesa, ou se a lenha do forno ou da lareira foram apagadas
adequadamente.
Aymar também levantava de noite para escutar pela porta do quarto de
Bertrand. De vez em quando, sons estranhos eram ouvidos lá. Quando a casa
estava muito quieta – essa quietude total, que uma casa tem somente quando
está tarde e todos os moradores estão dormindo; esse silêncio, durante o qual
alguém consegue ouvir as vigas nas paredes espreguiçando preguiçosamente,
como se entivessem cansadas após um longo dia de trabalho; esse peso
plácido no qual a mobília ganha vida e começa a craquejar, falando, do seu
jeito, dos anos que esteve sentada, com paciência, no seu canto – em tal
quietude plena, que ele poderia ouvir Bertrand respirando. Adiantando uma
respiração lenta após a outra, como uma criança faz quando num sonho
repleto de paz. No entando, a respiração tornaria-se apressada. Mais rápida
e mais rápida, até que não fosse mais uma respiração, mas um arquejo. Às
vezes, portanto, mas com raridade, seguiriam-se aos ruídos agudos e
inconfundíveis de garras batendo contra a madeira do chão. Então, haveria um
fungar e bufar por baixo da porta, e as garras acertariam-na um ou duas
vezes. O silêncio perpetuaria, quebrado, talvez, por um lamento baixo ou
outro bufo. E, aos poucos, o arquejo pararia. A respiração regular de
Bertrand estava audível outra vez.
“Agora, não pode haver dúvidas disso,” Aymar murmurou, suspirando
profundamente, e parou com a espionagem. Entretanto, essa certeza nunca
bastou. Ele começou a duvidar de uma vez. “Se eu pudesse vê-lo de
verdade,” pensou, mas era difícil demais ouvi-lo. Precauções infinitas
deveriam ser tomadas a três metros da porta. “Ele sente o meu cheiro,”
acreditou Aymar.
Em algumas ocasiões, ele tentaria correr até a porta e entrar às pressas.
Outras vezes, mesmo quando pegava a maçaneta, ouvia-se uma comoção por
dentro, e quando a porta se abria, lá estava Bertrand aflito, rolando na cama
como se estivesse na agonia de um pesadelo.
Ele queixou-se com a mãe, e Josefina, por sua vez, para Aymar. “Você
deve parar de acordá-lo desse jeito, tão derepente,” Josefina insistiu. “Ele me
disse que você traz sonhos ruins. Por que você faz isso?” Ele desculpou-se
desconsertado. “Eu só quero ter certeza das coisas antes de descansar.”
Estudando no andar abaixo, Aymar reuniu todo material que
conseguiu encontrar sobre lobisomens. Doença estranha, essa
licantropia. Pelo mundo inteiro, onde quer que o homem habita, as
pessoas acreditam nisso. Do Ceilão à Islândia, todas os povos antigos têm
contos sobre isso. Desde os berserkir (peles de urso) da Escandinávia, os
homens-hiena da África, os homens-bufálo dos índios norteamericanos, as
mulheres-gato da Constantinopla (que comem arroz com grampo de
cabelo, sabendo que encherão a barriga com as carniças do cemitério) aos
homens-tigre da Índia, a temida superstição é conhecida e acredidata como
verdade.
Aymar leu sobre os terríveis surtos de lobisomens na França durante o
ano de 1598, quando a doença parecia se tornar epidêmica e famílias inteiras
foram atingidas. Na casa de um alfaiate em Châlons, barris de ossos humanos
foram encontrados. O julgamento dele perante o Parlamento foi tão macabro
que os documentos e registros foram queimados na fogueira com o
criminoso. Nesse mesmo ano, entretanto, outro homem, julgado pela
mesma acusação, teve a sentença de morte comutada para prisão no
hospital Saint-Germain-des-Prés, ou on a accoustume de mettre les fols.7
Também, no exato ano, toda a família Gandillon foi condenada e
executada.
São centenas de casos contados na França, Inglaterra e Alemanha, para
mencionar apenas três países. Um panfleto antigo com a epígrafe:
Um discurso, verdadeiro em maior parte, declarado a maldita vida e
morte de um tal de Peeter Stubbe, um alemão fino, nascido feiticeiro,
com a aparência de um lobo, cometeu muitos assassi natos, todos
em 25 anos; e pelos mesmos foi executado na cidade de Bedburg, próxima
de Colônia, em 31 de março de 1590. Publicado em Londres, Edward Venge.
Em todos esses casos horrendous, os criminosos, cientes dos seus erros,
estavam dispostos a confessar como transformavam-se em lobos e corriam
pela floresta e pastos, caçando presas de todas as espécies.
Tarde da noite, quando Aymar se afastava da leitura, com a cabeça
zunindo, encontrava-se dizendo, “Impossível. Ridículo.” Ele tiraria, então, a
bala de prata de uma gaveta secreta da mesa e a contemplaria. Depois ele

7
“Onde os loucos são comumente alojados.”
revisaria em sua mente todos os eventos estranhos desde a trovoada que
mandou Josefina para os braços do padre Pitamonte. Ainda
inconvencido, subiria as escadas e escutaria pela porta de Ber trand.
Se não ouvisse nada além da respiração normal de Bertra nd, iria para
a cama num esquema cético do raciocínio. Se, por outro lado,
escutasse baixinho um uivo estranho e os golpes das garras na porta,
rapidamente ele atravessaria e desceria correndo as escadas mais uma vez,
incapaz de encontrar descanso nessa noite.
Será que esses contos sanguinários da Idade Média não eram meras
ilusões? Havia esses fenômenos no reino da natureza, os quais pereceram
assim como os animais se tornaram extintos? Isso poderia ser uma
concatenação interessante das causas, ou um plexo raro e estranho de
eventos a serem encontrados somente em séculos, que deve produzir
uma exceção monstruosa no curso ordinário da natureza?
No manuscrito de Galliez, Aymar escreve. “Entre nós, existem espíritos
elementares, as almas das bestas que morreram, ou das mais terríveis
criaturas que nunca viveram. Quando o corpo de um homem cede, a alma
desse homem começa a se separar dos tentáculos da carne, e a se preparar
para voar no instante que o corpo morre. E, ao redor de um homem morto,
um círculo das almas bestiais ronda e aguarda. Elas gostariam desse
corpo bonito para uma casa, este corpo de homem, da maior criação
esculpida pelas mãos de Deus. O homem, o corpo com a coluna ereta,
diante do qual todos os animais do mundo, com colunas horizontais, devem
rastejar.
“É para proteger contra a invasão das almas penadas que os corpos
endurecem a rigor mortis, logo após a morte. Assim, as almas que penetram
a casca do homem encontram apenas uma carcaça dura deixada para trás.
Mesmo assim, em algumas ocasiões, acontece da alma bestial ganhar acesso
ao corpo do homem enquanto ele ainda vive. Logo, as duas almas guerreiam
uma com a outra. A alma desse homem deve partir completamente e
abandonar a da tal besta. Isso explica como há homens neste mundo que
são só monstros disfarçados, brincando enquanto homens, os reis da criação.
Assim como um servo joga com as roupas do mestre.
“De lobisomens,” Galliez continua, “são dois deles. A princípio, há
aqueles que têm dois corpos, mas apenas uma alma. Esses dois corpos
existem independentemente, um na floresta, o outro na casa. E eles
compartilham uma alma. Assim, o homem somente sonha com a vida de
lobo. Enquanto dorme na cama, ele acredita que está lá fora, vagando por
grandes pinhais num lugar distante, espreitando-se sobre patas macias e
acolchoadas, ou uivando numa alcateia para os cascos esvoaçados de três
cavalos arrastando um trenó num galopar pela planície nevosa. − E, da mesma
maneira, o lobo, saciado com a matança e sonolento dentro de toca, imagina
um sonho estranho. Ele é um homem, vestido com roupas e está caminhando,
ocupado com os compromissos da cidade.
“E também há lobisomens que têm só um corpo, no qual a alma do
homem e da besta estão em guerra. Assim, conforme a alma humana se
debilita, tanto o pecado ou a escuridão, quanto a frieza ou a solidão, leva o
lobo ao pódio. E conforme a alma bestial se enfraquece, tanto a virtude ou a
aurora, quanto o calor ou a companhia do homem, irradia a alma humana. Por
isso é sabido que o lobos se afasta daquilo que convida o homem.
“Essas grandiosas verdades estão esquecidas nos dias de hoje, porque,
na atualidade, esses monstros foram tão cruelmente caçados e expurgados,
que desfrutamos de liberdade e de imunidade comparativas desses perigos.
Cabe a nós assegurarmos que a raça da humanidade não entre em eclipse em
frente ao surgimento de uma raça das bestas, e a civilização do homem não
caia perante a anarquia dos lobos, ou dos leões ou de qualquer monstro ainda
não formado. Cabe a nós recordarmos os procedimentos da Idade Média,
quando os rivais desumanos do homem foram quase que extinguidos por
complete pelo cruel, mas necessário, uso do fogo.”
Algumas semanas depois do encontro da bala, Aymar considerou
mesmo a conveniência de destruir Bertrand com fogo. Como? Levando-o até a
floresta e queimando-o de uma vez com os carvões velhos das choupanas,
abandonadas até então? Esse era o risco. Então, colocar fogo na casa? Por que
não? Explodir a construção e achar Bertrand parecido com como se fosse por
um acidente nas chamas.
Numa noite, enquanto revisitava o assunto pela milésima vez, chegou a
uma conclusão. Ele juntaria os papeis mais importantes, as respostas das
cartas do inquérito sobre Pitamonte e os seus ancestrais, a pequena coleção
adquirida sobre licantropia, a bala de prata, o aspersório e várias outras
coisas, relacionando-as com Bertrand e montando pacotes diversos deles,
carregando-os fora de casa para um galpão de carruagem distante. Queria
mantê-las ali.
Depois subiu a escadaria, carregando uma lata de petróleo, como se
quisesse preencher a luminária. Parou no corredor escuro, em frente a porta
de Bertrand, ficando a poucos passos de distância, para não assustar o bruto.
Com certeza ele ouviria novamente os ruídos agudos das garras sobre o
carpete de madeira, o arquejo rápido e um bufo violento na fenda pequena
por baixo da porta.
“Ele sente meu cheiro,” Aymar disse para ele mesmo, “e está se
adaptando.” Por um momento, o seu coração esteve apertado, com simpatia
pelo pobre rapaz, que deveria sofrer por um pecado que não era dele.
Então zombou de si mesmo, ficou pronto para jogar o petróleo contra a porta
e acender um fósforo, quando ouviu passos se aproximando.
“Quem está aí?” chorou de nervoso.
“Sou eu,” Josefina respondeu e chegou mais perto.
“O que você está fazendo aqui?” ele exigiu com seriedade. “Ó, eu estava
muito chateada e não consegui dormir.” “Chateada com o que?”
“Incêndio,” ela respondeu.
“Quantas vezez preciso dizer a você que com a chave guardada ali,
próxima da porta, não há o que temer,” ele choramingou irritado.
“Eu sei,” ela disse humildemente, “só não consegui cair no sono nesta
noite, sem ter certeza.”
“Vocês, mulheres...” ele passou por ela e desceu as escadas de volta ao
estudo, onde arremessou-se sobre o sofá, num acesso de tremores. O seu
corpo suava frio. Os intestinos torturavam-se com cólicas. Após muitas
horas demoradas de insônia, ele caiu no sono.
Pela manhã, Guillemin o procurava. “Eu encontrei alguns pacotes de
livros, papeis e outras coisas na carruagem alugada. O que você quer fazer
com eles?”
Sem saber o que dizer, ele soltou algumas palavras que estavam presas
na língua, como se ficassem enroscadas na sua ponta, esperando para saírem
voando pelo ar, “Vão ser queimados, Guillemin.”
“Aquelas peças de metal não queimam, monsieur.”
“É? Bem, destrua todas elas e enterre-as com as cinzas do restante.”
“Oui, monsieur.”
Assim que ele deu a ordem, ainda sobrava muito tempo para se
questionar o porquê. Declarou com fatalidade, “Talvez seja melhor assim.” As
pessoas perdidas em dúvidas, torturadas pelos medos, incapazes de ver
uma saída, ou de escolherem um de dez caminhos possíveis que
aparercem para elas, essas pessoas enlouquecem ou viram fatalistas.
Não há descanso melhor para os nervos cansados do que uma pequena
folga em fatalismo.
“A evidência é destruída na vez do monstro,” disse para ele mesmo,
depois de um intervalo de tempo. “Vou lembrar disso.” Mas parou para de se
preocupar. Voltou para o sofá e caiu de uma vez no sono, novamente.
É estranho dizer, Bertrand começou a melhorar. Parou de reclamar dos
sonhos ruins. Nenhum som, além da própria respiração normal, foi emitido
do seu quarto de noite. No entanto, Aymar não relaxou a vigilância. “O lobo
nele está quieto, por enquanto.”
Josefina disse, “Bertrand está progredindo rápido. Espero que você não
precise mais trancá-lo.” “Quando eu achar que ele está melhor, farei o que é
necessário,” Aymar respondeu brevemente.
Devido à sua insistência, ele acabou compadecendo. E nada aconteceu.
“Talvez ele superou mesmo isso.” ele pressionou.
“Todas aquelas histórias sobre lobos o deixou assustado,” disse
Josefina. “Por que você não começa a ensiná-lo de novo? Você não dá aulas
para ele há meses. Ele não vai conseguir passar nos exames.”
Com isso, Aymar pediu que Bertrand retomasse aos estudos, duas horas
por dia, como antigamente.
Porém, Bertrand ficou bobo. Aprendeu devagar. Estava acostumado
a ser tão rápido para compreender. “Ele ficou muito tempo longe dos
estudos,” Aymar concluiu. “Ou, também, chegou ao fim. Não se pode ensinar
a um cachorro velho novos truques,” ele idealizou.
Conforme os meses passaram, tudo continuava quieto. Um dia,
Françoise interrompeu os seus estudos. “Qual é o problema, Françoise, você
parece triste?”
“Sim, monsieur.” Ela parou. “Acho que sim, monsieur,” ela disse
direta e brevemente, “Você deveria trancar a porta de Bertrand de
novo.”
Aymar ficou de boca aberta. Do que Françoise soube? “Ele voltou a ter
sonhos ruins?”
“Eu e você, monsieur, não precisamos falar dos sonhos ruins. Eu não
sou Josefina, cega pelo amor materno. Eu consigo somar um mais um
tão bem quanto você.” Ela esfregou o cabelho grisalho da testa.
“O que você sabe?” Ele exigiu.
“Eu já ouvi que as pessoas podem domesticar filhotes de tigre e como
mantê-los como seus mascotes. Só que, quando chega numa certa idade, você
tem que colocá-lo dentro de uma jaula.”
“O que você sabe?” repetiu exausto.
“Eu sei,” ela continuou. “Eu não tenho assistido ele crescer desde a
infância? Ele era fofo e divertido. Como são os bebês. Como, talvez,
também são os filhotes de tigre.”
“Mas por que você veio até mim com isso agora?”
“Porque Guillemin me contou hoje de manhã, 'Que a raposa voltou.' O
filho de Guillemin encontrou a cabeça de um pato, mastigada.”
Aymar limpou a testa cansado. “Onde isso vai terminar?”
Durante o almoço, ele não teve nenhuma ideia. Entrou pela cozinha,
onde Bertrand estava comendo. Ele levantou o garoto e puxou para
baixo a pálpebra inferior doseu olho. “Anêmico,” ele diagnosticou.
“Ele está sem fome de novo,” Josefina defendeu.
“Nós vamos dar a ele um pouco de carne crua, todos os dias,” Aymar
prescreveu. “Com sangue.”
Depois disso, ele gargalhou. Um bom truque. Nós vamos
alimentar o lobo nele e mantê-lo quieto. E, na verdade, ele
conseguiu. Bertrand comeu a carne fresca ávidamente. Melhorou na
aparência. O cabelo cresceu sedoso. A pele, macia. Olho cintilantes. Ganhou
peso e estatura. E Josefina, percebendo os resultados excelentes, mimou o
menino querido com porções de carne maiores e com mais sangue,
penduradas em grandes fatias de banha.
Nas lições, o seu desempenho também melhorou, e era admirável de ver
como ele brincava pelo pátio. Ele cansaria o cachorro com as corridas. Quando
brincava com lebres e sabujos junto dos meninos do povoado, ele sempre era
o último a ser capturado, se o pegassem afinal. E quando ele era isso, um eu-
espião, ninguém conseguia ficar escondido dele.
Como um todo, o vilarejo não suspeitava de nada sobre a condição
peculiar de Bertrand. Contudo, a esposa de Bramond cheirou algo um tanto
misterioro naquela casa, entretanto, atribuiu isso a um caso entre Josefina e
Aymar. Ela se permitiu brincar com língua, com a noção de que Bertrand era
um filho secreto de Aymar, porém, muito da sua malícia sobre isso foi devida
ao fato, como o marido havia de apontar de agora em diante, de que ela
estava com ciúme do filho de Josefina, destinado a estudar medicina, uma
profissão que ela gostaria fosse a do próprio filho, Jacques, mas que parecia
uma possibilidade incoveniente em vista do número de crianças na
família de Bramond – cinco – e dos recursos limitados da renda familiar,
resumida ao salário de Bramond, como garde champêtre.
No entanto, ela voltava insistentemente para conseguir o que ela queria.
Não, é verdade, não tudo diretamente, mas passo a passo. Primeiro, ela estava
permitida a mandar Jacques à escola local. Que era tanto quanto Bramond
aceitaria. Depois, ela poderia deixá-lo tentar o ingresso num lycée. E,
quando ele passasse no exame classificatório, bem, ele teria um ano para
isso, mas não mais. E, assim, até que os anos se passassem, e Jacques
estivesse pronto fazer o bacharelado, e depois do verão, ele sairia para Paris
a estudar medicina.
Bertrand iria realizar o exame classificatório para o bacharelado ao
mesmo tempo. Ele estudava em casa com Aymar, quem ele chamava de tio,
e não esperava ir tão bem quando o amigo, pois ainda que fosse genioso,
ele ficava doente com muita frequência. Principalmente no inverno, em
fevereiro. Assim, acabaria ficando burro nas lições e atormentado a noite
com sonhos horrendous. Ele sentia vergonha disso, a sua única fraqueza, e
diria ao amigo curioso não mais do que isso, de que sofria de enxaqueca.
Ele mesmo estava interessado naqueles sonhos estranhos, nos quais
ansiava correr sobre quatro patas pela floresta, subir morros e descer vales. O
tio o acalmava. “Não é nada. Às vezes, vocês, garotos, têm isso. Vocês vão
deixando pra trás.”
Então, ele perguntou a Bertrand, “O que os seus amigos dizem?” “Eles
não dizem nada. Não conto muito para ele.”
“Hum. Entendo. Bem, talvez seja melhor não dizer nada.”
A primavera dos vestibulares aconteceu em Auxerre. Jacques e Bertrand
foram juntos prestá-los. Foi uma prova de três dias.
No início, Aymar prontificou-se a ir com Bertrand, pois, apesar de todos
esses anos em silêncio, odiava deixá-lo fora de vista. No entanto, Françoise
havia dito, “Se ele for para Paris mais tarde, deixe-o ir sozinho desde já. Vai ser
um teste.” Isso pareceu inteligente e estava muito bem elaborado.
Depois de tudo, ele havia sido gentil nesses útimos seis anos, claro,
graças à artimanha de Aymar, de alimentá-lo com quantidades equivalentes de
carne crua.
Ao chegarem em Auxerre, Jacques e Bertrand hospedaram-se numa
pequena pousada, a qual estava tumultuada por garotos, todos com o
mesmo propósito. Nos dois primeiros dias, a estadia foi silenciosa. Nada
poderia ser ouvido por lá além das páginas virando e dos zumbidos de
muitos meninos recitando para eles mesmos, preparando-se para as
horas diárias das variadas avaliações. Porém, pelo terceiro dia, com
somente um teste mais fácil, a tensão relaxou. As vozes aumentaram aos
berros, eram gritos de risada, dois garotos começaram a se agredir com
socos pelo pátio.
E, quando a terceira prova finalmente chegou ao limbo do passado,
soltou-se o pandemônio. Os garotos irados pela cidade, onde os cidadãos,
sábios com longa experiência, haviam fechados as lojas. As cafeterias
serviam apenas a sua pior louça e estavam preparados para cobrar pelas
mercadorias quebradas, como se fossem de Sèvres.
Um pouco bêbado pela noite, um jovem moço, com quem Jacques
e Bertrand se tornaram amigos , sugeriu que eles fossem a uma casa
conhecida sua.
Jacques estava ansioso, pois, na vida mais livre do local mais pobre do
vilarejo, ele não se manteve totalmente puro. Mas Bertrand ficou chocado.
Não, ele não poderia ir.
Jacques o cutucou, “Com medo?”
O outro companheiro disse, “Garçom, um copo de leite quente para o
meu bebê.”
Bertrand disse com seriedade, “Não, não é isso. Não estou me sentindo
bem. Não dormi direito na noite passada.” “Quem dormiu? Nenhum de nós
conseguia dormir.”
“Então, e acho que minha dor de cabeça está voltando.” Por causa disso,
ele sentia essa estranha congestão e tensão, com as quais associou a uma
noite delirante.
Jacques bateu nas suas costas. “Aqui está a sua cura! Isso é o que você
estava precisando o tempo inteiro. Une petite femme...”
O outro colega começou a recitar alguns versos perversos, cujos
sentidos obscuros ficavam mais picantes:

Marc tine béquille avait


Faite en fourche, et de manière
Qu' a la fois elle trouvait
L'oeillet et la boutonniere.

D'une indulgence plénière


Il crut devoir se munir,
Et courut, pour l'obtenir,
Conter le cas au Saint-Père.

Qui s'écria: Vierge Mere,


Que ne suis-je ainsi bati!
Va, mon fils, baise, prospère,
Guadeant bene nati.
“Bem, até logo, Bertrand,” disse Jacques, “não esqueça o seu
cachecol ou você vai pegar um resfriado – Gaudeant bene nati!”
A provocação foi um pouco demais. Ele levantou e disse com rigidez,
“Eu vou com vocês.” Com isso, os dois o agarraram, cada um num braço, e
saíram andando rua abaixo e cantando juntos. Bertrand deixou contagiar-se
pela alegria imprudente deles. Ele elevou a voz e cantou mais alto do que os
amigos.
A casa para a qual foram estava numa travessa silenciosa. Uma mulher
pequena mas corpulenta abriu a porta e, cumprimentando os meninos com
muita simpatia, mostrou para eles o caminho até uma sala pequena. Pela
parede, foram arrumadas cadeiras douradas baixas. Um piano dourado
compacto ocupada um canto. Algumas figuras decoravam a parede, e jatos
de gás cintilantes revelaram mulheres gordas peladas, descansando nos
divãs ou próximas de fontes, acompanhadas de escravos negros. Uma
imagem sozinha ao canto apresentava Maria Madalena lavando os pés de
Cristo. Uma luz etérea queimava em frente a essa figura, num copo cor de rubi
escuro.
Três meninas entraram na sala. Não eram bonitas, nem alegres. Elas
estavam vestidas somente com muitos materiais escuros. Uma delas, de longe
a mais feia, vestia óculos pesados. Já que Jacques e o seu amigo, Raul,
abordaram as outras duas, Bertrand cumprimentou a garota míope e
começou a dançar polca, junto com os outros, enquanto Madame ficou
sentada, tocando o piano dourado.
Quando a dança terminou, o climar esteve um pouco mais convidativo.
As meninas estavam abanando seus rostos suados com lenços. Madame
havia ido buscar champagne. Raul mal havia acabado uma música barulhenta
e divertida e estava começando outra.
O champagne somou-se aos drinques anteriores, a dança e o cantarolar
inflamaram Bertrand um pouco.
Depois, Madame sugeriu com delicadeza que estava ficando tarde. Ela
abriu a porta e mostrou o acesso ao próximo andar.
Bertrand estava sozinho com a menina. Ao mesmo tempo em que ficou
preso a um sentimento terrível de fadiga. Ele quase não conseguia se
levantar. Os nervos não podiam suportar a excitação. Ele queria que as
preliminaries embaraçosas já estivessem terminadas; de fato, ele quis que o
negócio inteiro estivesse acabado.
A garota riu dele. Estava acostumada a envergonhar os homens jovens.
O seu método de ataque era provocá-los. Então, ela disse, “Monsieur deve ser
muito modesto, se ele quisesse fazer amor de roupas.”
Logo depois, ele começou a desabotoar a jaqueta dele.
“Olhe,” ela disse derepente, “primeiro você deve escrever alguma coisa
legal no meu livro de autógrafos.” Ela trouxe um exemplar pesado.
Ele abriu o livro e ficou surpreso de ver o nome de Victor Hugo,
assinado com um floreio enorme abaixo de um verso sujo.
Em outra página estava Horácio Vernet, abaixo de uma foto miserável e
imunda. A página seguinte apresentava um soneto, rubricado “Tout a vous,
Adolfo Thiers.”
Havia Dumas, Garibaldi, e até mesmo uma coroa grande e um selo
rascunhado às pressas, sob o nome: Napoleão III.
A princípio, Bertrand estava apreensivo, pelo fato de que esteve
sobrecarregado e, antes que percebesse o erro, ele já havia assinado o próprio
nome, Bertrand Caillet, Mont d'Arcy.
Logo, ele entendeu. Tudo isso era mera fantasia. Um truque cruel
imaginado pela primeira pessoa a colocar o seu nome e perpetuado por
aqueles que o seguiram.
“Você consegue ler?” Questionou.
Ela corou e acenou com a cabeça.
Ele entendeu vagamente. Ela usava óculos pela mesma razão que
mantinha um livro de autógrafos, para esconder a própria desgraça, uma
posição miserável.
“Você não vai escrever mais nada?”
Ele a agradou e adicionou abaixo do nome as linhas:

O mon amante!
O mon desir!
Sachons cueillir
L'heure charmante!

Enquanto Bertrand continuava tímido, a garota, Tereza, propôs um


joguinho. Ela tiraria duas peças de roupa dela para cada uma dele. Houve
uma discussão amena sobre se ele contaria com o boné. Não, ela disse,
pois, se ele contasse com os acessórios de roupa, então, ela também poderia.
Eles devem começar do zero, por assim dizer. Bertrand logo se apaixonou por
ela e despiu a jaqueta, a qual ele já havia desabotoado. Ela despiu um
babado e um bolero de renda. A roupa dela, aparentemente, sem os
adornos, consistia em peças inumeráveis, várias anáguas, corpete e
espartilho, ligas e o que não mais, para todos os quais ela deu nome ao
tirá-los com uma risadinha de triunfo. Porém, ao final, ela estava
somente com uma meia e um salto, quando Bertrand tirou a última peça
íntima e exclamou, “É um empate!”
“Não, não é,” ela discordou, despiu a meia e os óculos, e conteve
nos lábios. “Eu venci,” disse Tereza, apontando para o seu último traje.
“Mas e os seus óculos – isso não é justo,” ele reclamou.
“Sim, é sim,” ela afirmou. “Eu ganhei, e como sua punição, você deve
despir esta última parte sozinho, só que você não está permitido a usar suas
mãos.”
Ela curtiu Bertrand, pois, ainda um pouco modesto, retratava na própria
nudez a proteção da cama. “O que eu devo fazer?” disse, rindo de nervoso.
“Como posso tirar isso sem usar minhas mãos?” “Você tem os dentes e os
dedos do pé, não tem?”
Com um pouco de timidez, ele começou a fisgar o material fino com os
dentes. “Vai rasgar,” ele disse.
“Você vai me comprar outro, então,” avisou. “Mas é muito barato,” ela o
encorajou com uma risada. E ele voltou ao trabalho.
“Ai! Ó, você está me mordendo! Jésu-Marie!...”
Ele tinha um pedaço da pele dela presa entre os seus dentes, junto com
o material. Ouviu o grito dela e sentiu uma gota de sangue escorrer pelo
tecido. Os seus braços estavam amarrados ao corpo dela. Ele queria soltá-la,
mas uma fúria estranha havia tomado conta dele. Segurando-a com uma mão,
ele parou os seus gritos com as costas da outra mão. Ela, sentindo a mão dele
estrangulando o choro, também arrancou um pedaço seu e lutou
selvagemente com aos socos.
Logo cedo, na manhã seguinte, Jacques e Raul chegaram a um acordo.
“Vamos deixar Bertrand aqui, e fugimos juntos. Isso vai dar um susto danado
nele.”
Quando Madame apresentou a conta dela, eles pagaram apenas o que
haviam feito. Champagne, uso da sala de dança, todos os outros itens
com os quais a comanda estava decorada, e escaparam de Bertrand.
“Ele vai pagar,” eles garantiram a procura. “Ele é rico.”
“Sério?” ela duvidou. Ela percebeu que ele estava vestido muito melhor
do que os outros dois. “Muito rico,” responderam.
Ela cogitou para ela mesma, nesse caso. Verei se não há mais nada que
eu possa adicionar à conta. E completou o seu plano, desejou aos clientes um
até logo e retirou-se para escrever uma comanda mais nova e extravagante.
Os negócios locais não estavam nada bons, portanto, o tráfego dos visitantes
havia de ser feito para suportar tudo o que conseguisse.
Jacques e Raul voltaram aos aposentos, embrulharam os livros e
esperaram por Bertrand. Mas Bertrand não apareceu.
“Vamos voltar e ver o que aconteceu com ele,” Jacques palpitou.
Porém, o retorno à vida comum havia despertado um sentiment de vergonha
por terem fugido. Nenhum deles pretendia retornar para essa casa em plena
luz do dia.
Enquanto isso, o proprietário queria a hospedagem deles limpa. “Se os
cavalheiros forem ficar mais, haverei de cobrar por mais um dia.”
Raul, assobiando uma música animada, decidiu lavar as mãos de tudo
aquilo e partiu para a casa, sentindo que algo estava errado e que seria
melhor estar por for a disso o quanto antes, pois, se chegasse aos ouvidos
dos pais dele, ele seria o culpado.
O mesmo para Jacques, ele também estava muito inquieto. Pela fanfarra
da noite anterior haver causado pesos na consciência.
“Bem,” o dono interrompei os pensamentos de Jacques, “É melhor você
levar as coisas do seu amigo também, a menos que ele esteja reservando o
quarto.”
“Não, vou pegá-las,” Jacques decidiu, “e deixarei um aviso para meu
amigo, se ele vier.” Acreditando, então, na solução do assunto, Jacques fez
um embrulho com os livros do colega de quarto, escreveu uma nota breve
contando a Bertrand que ele havia pegado todos os livros e foi para casa,
logo em seguida.
De volta ao vilarejo, ele esperou ansiosamente pelas notícias de
Bertrand. Quando ele ouviu que Bertrand estava doente em casa, o receio
aumentou. “Agora tudo estava prestes a eclodir,” pensou. Entretanto, nada
aconteceu. Aventurou-se a perguntar para a sua mãe, “Qual é o problema com
Bertrand?”
“Ó,” ela disse com seriedade, “quem pode sequer dizer o que está
acontecendo nesta casa! Eu ouvi que o velho Galliez bateu no pobre rapaz a
um triz da vida. Que vergonha do velho libertino! De tudo que ele é!”
Ele não respondeu nada: já conhecia a atitude da mãe no
estabelecimento de Calliez e ficou feliz de manter a própria pele salva,
aguardou impacientemente a partida para uma fazenda distante, onde iria
trabalhar durante o verão. Voltaria pela metade de agosto e iria mais uma vez
à Paris, para se matricular na faculdade de medicina de lá. Embora a guerra
tenha começado nesse verão, isso não mudou os planos da mãe. Ela não
poderia imaginar nada importante o bastante a fim de atrasar a sua única
ambição.
CAPÍTULO OITO
Naquela manhã, quando Jacques e Raul haviam deixado Bertrand
encurralado com a maior parte da conta, a proprietária retirou-se para
desenvolver uma nova comanda, a qual era para ser a peça principal. Feito
isso, ela esperou o convidado aparecer. Já estava tarde, mas uma
menina acompanhada com o convidado dormia tarde, na maioria das
vezes, portanto, ela não pensou em nada menos do que o habitual e
continuou os afazeres.
Mas às dez horas da noite ela ficou impaciente e foi bater na porta de
Tereza. Não houve resposta.
“Aqueles ricos...” refletiu para ela mesma com desgosto, o senso da
proprietária indignada. Ela desceu as escadas de novo para adicionar mais um
dia de alojamento para a conta. O que rendeu a figura de mais de cem francos.
Ele teria toda essa quantia? Bem, ela se mostraria passível de barganha até o
limite dos bolsos dele. “Incluindo aquele relógio lindo que ele tem,”
determinou.
Às onze horas, ela foi bater na porta novamente. Não houve resposta.
Ela colocou a orelha pela porta. Um gemido fraco era audível. Ela abriu a
trance e entrou.
Tereza, mas que Tereza, estava deitada sozinha na cama e queixando-
baixinho. Manchas marrons de sangue cobriam os lençóis. Não havia
nenhum sinal do seu acompanhante.
O grito da Madame trouxe as outras meninas para o quarto de Tereza.
“Rápido, chamem um médico,” Madame comandou.
“Chame a polícia também,” disse uma das meninas.
“Não!” chorou a amante. “Ninguém se importa.” Ela não estava muito
bem com as autoridades e a última coisa que queria era ainda ser
implicada. Se a polícia fosse necessária, poderia esperar até o último
momento.
Quando Tereza teve os ferimentos limpos e bandados, e
conseguido conversar, a concubine questionou, “Mas como você pôde
deixá-lo fazer essas coisas com você?”
“Bem, acho que devo ter desmaiado.”
“E por tudo isso, você não conseguiu nenhum cêntimo?” “Como eu
saberia que ele estava indo fazer isso?”
“Homens que querem esse tipo de coisa pagam muito em Paris,”
disse Madame, para quem Paris era o arbiter elegantiarum em todos os
assuntos relacionados à tarifa, etc., nos estabelecimentos do seu tipo.
“Ele não parecia desse jeito,” Tereza reclamou fracamente.
“Se eu tiver apenas o nome dele agora!” Madame lamentou.
“Mas eu tenho no meu livro de autógrafos,” disse Tereza.
“Bah,” a senhorita exclamou com paciência desprezível. “Seu livro de
autógrafos!...”
“Sim,” Tereza respondeu para ela. Então, Madame deu uma olhada, só
pela possibilidade remota de encontrar, e lá estava, certo o suficiente,
Bertrand Caillet, Mont d'Arcy. Isso soou real demais. E Mont d'Arcy poderia ser
alcançada em duas horas de carro.
Nesse mesmo dia, ela subiu numa carruagem alugada e não foi difícil
descobrir que os Caillets viviam na bela casa do Galliez, atrás do vale dos
pinhais. Estes estavam assim, floridos e explêndidos com milhares de de flores
amarelas caídas. O chão era um carpete de pétalas. O ar, repleto de uma lenta
chuva amarela.
A corpulenta fornecedora de amor en detail não estava intimidada pela
elegância exterior, da qual ela já conhecia o bastante dos caros vícios
escondidos. Pelo contrário, sentia-se segura de um bom retorno financeiro
pela visita, e marchava corajosamente para tocar a campainha.
Aymar Galliez havia admitido a sua entrada, acreditando que fosse uma
colega de estudos do filho.
“Eu vim contar a você sobre o seu filho Bertrand,” a proprietária da
maison tolérée introduziu. “Bem,” respondeu Aymar.
Ela contou a sua história, embelezando-a com arte, mas sem se
preocupar em esconder a profissão, da qual, gostava mesmo de ostentar
perante a burguesia rica.
“E o que você quer que eu faça?” disse Aymar, irritado por dentro,
mas mantendo certa indiferença ao lado de fora.
“Parbleu, monsieur. Eu quero ser reembolsada pelos danos e
despesas. Quem pensaria que um garoto bonito, refinado...”
“Para mim, isso parece problema da polícia,” Aymar a interrompeu,
questionando-se se esta não seria a melhor oportunidaade que queria para se
livrar de Bertrand de uma vez.
Madame segurou o susto. Enquanto ela tinha o direito, de certo, e a
obrigação, na verdade, de ir à polícia, o fato de que Bertrand era menor de
idade, e que, assim, ela se envolveria numa investigação criminal, foi
o necessário para revogar o trajeto de saída, do qual não tiraria
nenhum cêntimo de proveito, além disso.
Enquanto pretendia considerar importância, na verdade, ela estava
ocupada pensando numa boa desculpa.
“Muito bem, monsieur,” ela disse de imediato. “Eu devo ir à polícia.
Pensei, a princípio, que apreciaria a oportunidade de resolver esse assunto
sem publicidade, mas vejo que estou gastanto o meu tempo e minhas
intenções de caridade.”
Aymar brigou com ele mesmo. Por que ele sentiu que um lobisomem
fosse uma desgraça? Que ideia de vergonha estúpida era essa, que o previniu
de encarar o mundo audaciosamente com esse monstro? Um monstro, além
disso, produzido por ele e não por um estranho, e selado nele por um
conjunto oportuno de circunstâncias.
Por que ele estava ajudando as coisas, escondendo esse homem-besta?
Ele ainda não poderia trazer Bertrand à exposição. As suas tentativas a
favor do garoto exitaram com tanto sucesso que ele já havia guardado todo
esse assunto, porém, estava esclarecido que, mais uma vez, o rapaz era uma
fonte permatente de perigo, e não, não, certamente não seria confiável
deixá-lo ir estudar medicina em Paris.
Com um suspiro, ele cedeu. “Quanto você quer?” perguntou. “Cinco mil
francos,” ela respondeu, comprimindo os lábios.
“Passe-me o seu endereço,” disse, com quietude, “e mandarei mil
francos antes de hoje à noite, e espero não ouvir mais nada sobre isso.”
A decisão silenciosa a intimidou. Mesmo que mil fosse alguma coisa.
Ela se recompôs e partiu. No caminho para casa, surgiu uma ideia brilhante. A
primeira coisa que ela fez quando chegou em casa foi contar para todo mundo
e, especificamente, Tereza. “Eu poderia matar você,” gritou para a pobre
garota, que sofria.
“Ó, madame,” Tereza lamentou pelos curativos.
“E nós não conseguimos nem mesmo ter as contas do médico pagas
para você. De fato, estava tratando com precaução por ter admitido um de
menor.”
Pela ocasião, ela facilitou. “Bem, acho que eu mesma terei que pagar
o médico,” disse. “Suas pobres idiotas nunca pensam em guardar o dinheiro
de vocês e, se não pago pelos seus tratamentos, provavelmente se
deixariam sozinhas.”
Tereza agradeceu a concubina com exageros. “Você vai ver, madame,”
prometeu, “trabalharei duro para você.”
“Vá embora,” ejaculou Madame, “você vai trabalhar tanto e tão bem
que, se alguém levar você para casa em matrimônio, você não deixará nem
mesmo o seu livro de autógrafos para nos lembrar de você.”
“Ó, madame, como pode dizer isso?” disse Tereza com reprovação,
enquanto deixou o pensamento acompanhar a oportunidade invejosa
dessa coisa fatídica acontecer alguma vez.
Essa peculiaridade da consciência da senhorita continuava a dar umas
pontadas que não acabariam até que ela trouxesse um vestido de dez
francos para Tereza, p elas desp esas das manchas de sangu e nos
l ençó is , já pagas do seu próprio bolso. Os mil francos, no entanto, seriam
destinados aos seus pequenos e árduos investimentos nas rentes, com a qual
espera aposentar-se um dia. O caminho para a independência financeira era
horrivelmente devagar e difícil.
Enquanto isso, Aymar andava para cima e para baixo nos estudos e
ponderou. Desde quando esse tipo de coisa estava acontecendo com
Bertrand? Essa poderia não ser a sua primeira visita? O lado sexual do crime
era, do seu ponto de vista, não inconsiderável. Não que ele esquecera
totalmente das próprias libertinagens da natureza, mas havendo, desde
os estudos no Seminário de Langres, satisfeito o apetite carnal particular,
não conseguiria mais apreciar o fato de que, nos outros, esses desejos
sejam insuportáveis. Quanto mais pensou sobre as ações do rapaz, mais
irritado ficava. Por fim, abriu a porta do local de estudos e berrou, mais alto
do que de costume, “Josefina!”
Ela veio correndo da cozinha e seguiu ao longo do corredor até a sala
dele.
“Oui, monsieur?”
“Bertrand voltou?”
“Non, monsieur, ainda não.”
“Deixe-me saber logo quando ele chegar.”
Não havia qualquer dúvida nos olhos dela, no entanto, ele ignorou e
fechou a porta. Recordou-se de uma carta imensa que alguém o enviou, a
respeito dos Pitamontes e Pitavales, de como um Pitamonte foi trancado num
poço e alimentado com carne e banha, e após muitos anos ele já não
conseguia falar mais, apenas uivava como um lobo; “e, de fato,” a carta
concluiu (Aymar se lembrava muito bem disso), “foi dito que nunca houve um
Pitamonte bom a não ser o esteve trancado. E mesmo este, ele matou duas
pessoas antes de o aprisionarem. Claro, ele havia matado Pitavales, logo,
ninguém sentiu tanta falta dele assim, nem ele mesmo, exceto a amada, que
esperou trinta anos ou mais para vê-lo. Porém, os Pitamontes eram notados
por deixarem um rastro de miséria espalhando-se pelos caminhos.”
E Aymar ponderou, “Isso aconteceria com Bertrand?”
Se isso perpetuasse, não haveria nada a fazer além de trancá-lo.
Enquanto imaginava sobre isso, duvidou do quanto o quarto de Bertrand
serviria como uma prisão exemplar. Deveria ser habitável, de certo, pelo
menos, tão habitável quando o calabouço em que Pitamonte esteve preso, ou
melhor.
Supondo que Bertrand crescesse na própria casa tão feroz quanto
havia mostrado-se em algumas ocasições, matando cordeiros e lacerando
pessoas, como a coitada da prostituta, por exemplo. Portanto, ele deveria
estar preso na polícia ou numa cela em casa.
Seguindo a linha do seu raciocínio, subiu as escadas e abriu a porta de
Bertrand. O jovem estava lá, dormindo na cama!
A visão assustou Aymar, como se ele estivesse cara a cara com um
tigre. Ele se controlou e foi até a cama. O rosto do estava muito corado. Ele
respirava fundo. A cabeça estava jogada para trás como se ele estivesse
esgotado de força. E o cabelo, bagunçado. Parecia que estava dormindo de
embriaguez.
Sob a influência do olhar de Aymar, Bertrand abriu os olhos. Eles
olharam surpresos, de imediato; depois, distantes.
“Quando você voltou?” Aymar perguntou.
“Eu – Eu não sabia que estava de volta. Ó, não posso me lembrar.” “O
que há com você?”
Bertrand não respondeu por um momento, então disse, “Tive mais um
dos meus sonhos terríveis; Eu não sei como cheguei aqui. Deixe-me
pensar, minha cabeça está muito travada, e o meu corpo como se eu
estivesse correndo durante a noite inteira. Eu me pergunto −”
“O que você se pergunta?”
“Se não foi somente um sonho dessa vez? Eu estava na cidade
fazendo as provas. Como cheguei em casa? Eu vim correndo mesmo
para casa, assim como sonhei? E o que aconteceu antes, isso também
foi um sonho?”
“Dessa vez, não!” Aymar trovejou derepente para o garoto, que se
levantou em terror. “Não dessa vez!” Os olhos de Bertrand estavam
saltando para fora da cabeça. Um medo imenso o sobrecarregou. Ele
recauchutou-se ao canto mais distante da cama e encolheu-se no ângulo da
parede, onde permaneceu tremendo como um cãozinho no frio.
“Espero por mim,” Aymar gritou para ele. Uma ideia repentina surgia.
Ele correu para fora, cuidando de trancar a porta, e seguiu pelo celeiro o mais
rápido que as suas pobres pernas permitiram, onde ele empunhou o chicote
usado para açoitar os potros até o arado. Ele subiu correndo de volta pelas
escadas, gritando para a mulher, “Longe!” trancou-se no quarto de
Bertrand.
“Eu vou domar o lobo nele,” Aymar pensou maldosamente e bateu no
rapaz, que estava na mesma posição. Conforme o chicote machucava o seu
corpo, Bertrand deixava escapar um grito, como se fosse contorcido no
fundo do seu ser.
O chicote levantou e caiu. “Eu vou dormer você!” Aymar enfatizou,
cerrando os dentes e invocando toda a sua força. “Vou domar você!” O
suor ressaltava o contorno das sobrancelhas.
Bertrand ganiu até ficar rouco, e sua voz, afinada num falsete. Então
ele chorou, em pequenos soluços interrompidos. Ao final, ficou em silêncio.
E Aymar parou.
Atordoado e mal sabendo o porquê ou o que havia feito isso, ele deixou
o quarto. Do lado de fora, Josefina estava deitada no chão, e Françoise estava
inclinada sobre ela com uma garrafa de sais de cheiro. A esposa de
Guillemin estava no andar de baixo, gritando, “O que é isso? O que é isso? Pelo
amor de Deus!”
“Ce n'est rien. Allez! Vaquez a votre besogne!” Aymar a despistou com
seriedade e, passando apressadamente, calou-se nos estudos.
A casa ficou em silêncio por dias, cheia de raiva irrestrita. Até que
Josefina, levantando os punhos, berrou para Aymar, “Você o matou!”
“Cale a boca!” respondeu Aymar.
“O que ele já fez para você?” ela perguntou com um tom obscuro de
ameaça na voz. “Não é da sua conta.”
“E você já é quase o pai dele.” Aymar esbravejou com desdém.
“Sim, e se ele morrer, eu também vou matar você!” ela chorou.
Porém, as paredes da proibidade ao redor da cólera de Aymar estavam
desmoronando aos poucos mesmo assim, e o deixando ainda mais exposto às
inquietações de remorse e simpatia.
Num determinado dia, ele foi até o quarto de Bertrand. O moço
jovem olhou para o tio com os olhos castanhos claros. Não havia ódio
naqueles olhos, nem vontade de vingança, apenas um apelo e um
pouco de brilho de terror. “Não...”
“Ele parece um cachorro maltratado,” Aymar pensou. “Talvez centeio
cure ele.” “Deixe-me ver as suas costas,” comandou.
“A pele do garoto estava listrada com linhas paralelas de amarelo,
Vermelho, roxo e verde. Aymar ficou assustado.“Como você se sente?”
“Estou melhor agora,” Bertrand disse gentilmente.
“E você tomará cuidado para não repetir sua – chamamos isso de
escapada?” “Vou tomar cuidado, tio,” ele prometeu.
“Vejo que vai.” Aymar virou-se para sair, mas Bertrand o chamou de
volta. “Tio, eu fiz mesmo o que eu somentre sonhei? Digo…”
“O que você sonhou?”
O menino hesitou. Sentiu-se acuado e com vergonha. “...Digo, morder e
arranhar... ela.”
“Sim, acho que você fez. – E tive que pagar por isso. Mas agora esqueça
e não vamos mais falar sobre isso.”
Bertrand ponderou por um instante. “Normalmente, tenho sonhos
como esse de morder e arranhar, e de pessoas atirando em mim.” Pausou.
“E?” Aymar indagou. “Mas são apenas sonhos.”
“Claro,” disse Aymar. “No entanto, prometa- me que ficará distante das
más companhias.”
“Eu prometo. − E,” ele continuou com receio, “conte para mamãe que
você não mandaria para Paris.” “Não acho que posso confiar em você sozinho,
pelo menos, popr enquanto,” Aymar decidiu e saiu do quarto.
Nos dias seguintes, o seu coração endureceu de forma deliberada. As
costas de Bertrand sararam, embora Aymar continuasse a não permiti-lo
deixar o quarto. Quando Josefina reclamou e implorou para ele, logo foi
interrompida. “No momento certo,” diria ele e, caso ela insistisse, a deixaria
falando sozinha. Ele não daria mais chances, determinou.
Até que num dia o velho rabugento Vaubois morreu, e, por haverem sido
os seus vizinhos por tantos anos, foi necessário que as pessoas de
comparecessem. Portanto, Bertrand foi liberado com esse intuíto, de acordo
com a promessa solene de que se comportaria de forma adequada. Pelo que
importa, o homem estava muito bem comportado, como sempre
sempre esteve em sua vida fora de casa. Ele era afável e dócil com Mme.
Bramond.
“Você esteve doente?” ela questionou. “Sim,” respondeu.
“Jacques deixou alguns dos seus livros na nossa casa,” disse. “Vou
mandar um dos meus camaradas buscá-los.” Ele a agradeceu e se
perguntou, Quanto Jacques saberia? Quanto ele contou para a sua mãe?
“Quando você vai para Paris?” ela perguntou. “Meu tio ainda não me
contou,” respondeu.
“Sabe, Jacques está voltando no décimo segundo dia deste mês, que é
agosto,” ela contou. “Você deve vir para a ceia de despedida. Ele vai partir
para Paris a pé, no início do próximo mês. Por que vocês dois, meninos, não
fazem essa jornada juntos?”
“Vou pedir para o meu tio,” ele respondeu de maneira evasiva.
Ela saiu pensando, Só porque eles têm dinheiro acham que podem ser
frios e pretensiosos. Bem, a sua mãe deve ganhar o dinheiro dela, e eu
apostarei com Galliez para que isso não seja nada fácil para ela.
Enquanto ele cogitavava, Graças a Deus, ela não fez mais muitas
questões complicadas.
A cerimônia do funeral estava começando a afetar Bertrand. Ele
estava tenso e desconfortável. Por alguma razão, a qual não conseguia
determiner, a ação demorada do padre e dos outros o aborreciam tanto
que ele quis gritar, Qual é, vamos sair dessa! Ele ficou quase feliz por
acreditar que logo estaria trancado de volta no quarto. Ideia estranha,
refletiu. No entanto, ele não era como as outras pessoas. Elas poderiam sair e
ser livres. Ele mantinha segredos, o peso do que o oprimia quando saía com os
outros, ele receava que soubessem do seu problema. Sim, estava mais seguro
no próprio quarto.
Mas, pela noite, como sentou-se na cozinha antes do jantar, pela
primeira vez em mais de um mês, sentiu -se diferente sobre
retornar ao quarto. Pelo contrário, queria estar lá fora, nos campos, e
sentir os agradáveis ventos do verão no frescor noturno.
Aymar entrou. “Hora de você subir,” disse.
Bertrand não respondeu, apenas olhou carrancudo para baixo, no
próprio prato. “Por que você não está comendo?”
“Não estou com fome.”
“E que tal carne crua, no lugar, para a sua anemia?” “Eu não ligo para
isso.”
“Você costumava gostar demais. Só que agora percebo que não vai nem
tocar nisso.” “Eu não ligo pra isso,” ele repetiu carrancudo.
“Então vá para o seu quarto!” ordenou rispidamente.
Bertrand não respondeu. Josefina, escutando a discussão, apareceu do
caminho da porta.
Aymar logo cogitou, Ele não está com fome, né?! Então ele está vindo
de novo. Claro, agora que pegou o gosto pelo sangue humano…
“Eu vou ensinar você!” Ele chorou em voz alta. “Onde está o chicote?” E
correu em direção ai celeiro.
Josefina deslizou até Bertrand e colocou os braços ao redor dele. “Meu
querido garoto,” ela susurrou, “faça o que ele diz. Ele vai matar você. Suba,
rápido. Vou destrancar a sua porta mais tarde, quando ele estiver dormindo.”
Quando Aymar retornou, Josefina tentava acalmá -lo,
apontando que o rapaz já havia subido a escadaria. “O que ele fez,”
ela disse, “não pode ser tão ruim assim. E não pense que eu não sei o que
ele fez. Ele me contou. Mas os meninos sempre fazem isso. Você fez
isso. Como se eu não me lembrasse.”
“Você não sabe de nada,” disparou para ela.
“Eu sei que vou falar com o major, se isso não parar.”
Ele ficou assustado, mas disfarçou. “O que estou fazendo é para o
próprio bem dele. E eu vou parar quando achar que ele aprendeu a lição. Se
quiserem juntar suas coisas e ir, vocês dois, estou disposto.” E, assim, ele a
deixou, subiu as escadas e trancou a porta de Bertrand.
No dia seguinte, Françoise apareceu durante os estudos dele.
“Você sabe que a sepultura do Vaubois foi encontrada aberta nesta
manhã, e o corpo dele, mutilado? Todo o vilarejo está falando sobre isso. Eles
prenderam Crotez, o pastor. Dizem que ele fez isso para pegar os dentes de
outro do Vaubois, que foram encontrados na casa dele também; mas ele
adirma que Vaubois, miserável que era, quando estava prestes a morrer e não
conseguia mais comer, deu os dentes para Crotez, em vez dos salários que
devia a Crotez, porque sabia que não poderia mais usá-los, de qualquer
maneira.”
“Hum,” disse Galliez, “Posso esperar isso desse homem.”
Françoise aparentava querer dizer mais alguma coisa, mas apenas
ficou ali de pé e ajeitou os cabelos grisalhos de volta, em afronta. “Bem,
Françoise?” incitou.
“Eu pensei que Monsieur gostaria de saber que Bertrand não esteve no
quarto dele na noite passada.” “Absurdo! Como ele poderia ter saído?”
Ela balançou os ombros. “Talvez ele mesmo tenha feito uma cópia da
chave. De qualquer modo, eu o vi descendo o vale logo cedo, nessa
manhã, quando estava quase de madrugada. Estou certa de que não
me enganei.”
“Bem, estou cansado de tudo isso,” ele respondeu e voltou ao
livro sobre política econômica. E assim ficou imerso num estudo de Karl
Marx, um alemão cujos panfletos estavam fazendo muito alvoroço no
momento.
Todavia, no meio da leitura, uma correlação voltou a ocupar
inconscientemente os seus pensamentos, mesmo que estivesse
trabalhando duro nas sentenças difíceis em alemão, surgiu a ideia.
Bertrand-Crotez-Vaubois – por que não? Sim, por que não Bertrand? Foi isso
que Françoise quis dizer? Não, impossível! E, ainda que ela não houvesse
implicado tanto quanto a possibilidade perdurava. Ele necessita de carne
humana, agora que já tem o gosto por ela! E, quanto à porta, poderia ter
sido apenas Josefina, com a desculpa doentia de incêndio, quem a abriu.
A curiosidade dele foi tão imensa que a raiva já não havia lugar nele. Foi
até o quarto de Bertrand. Como era nove horas, o rapaz ainda permanecia
dormindo. O seu rosto estava sério, com os lábios relaxados, e a respiração
pesada. Ele estava do jeito exato ao que esteve durante a manhã em que a
proprietária corpulenta do lupanar viera cobrar uma indenização.
“Está dormindo fora da sua orgia,” Aymar acreditou com horror e
desgosto.
A partir desse momento, a sua decisão estava definitivamente tomada.
Ele procurou por Josefina. “Você abriu a porta para o seu filho, eu quis
poupar seus sentimentos até agora, mas entendo que seu filho é uma pessoa
perigosa. E que, de agora em diante, carregarei a chave do quarto dele
comigo, com ou sem incêndio. Caso isso não convenha a você, deve ir à
polícia.”
“Com certeza, vou,” Josefina começou estridente.
“O resultado será que seu filho ficará atrás das grades de um instituição
do estado, e não preso em casa. Você decide!” Com isso, ele a deixou.
Ela correu até Françoise, porém, a última daria pouca informação.
“Faça o que Sr. Aymar diz,” ela alertou Josefina, “ou você ficará num
problema pior. Monsieur está fazendo o melhor que pode para ajudar
Bertrand e, se você deixá-lo sozinho, ele o levará para Paris por você.”
A situação estava além da resistência, sem dúvidas. Estavam
começando a circular rumores vagos pelo povoado, espalhados pelos
Guillemins, que Bertrand enlouqueceu e precisava ficar aprisionado no próprio
quarto.
Porém Josefina, sempre que estava pelo vilarejo, não escapou nenhum
pouco. O seu pobre Bertrand ficou doente de novo. Ele tinha um
temperamento delicado. Mas ficaria melhor, de certo, quando o clima
estivesse ameno, e em condições de ir a Paris. Se não fosse pela guerra, a
situação dos Calliez seria malhada ainda mais pelas fofocas na vila, porém,
logo contaram que Bertrand partiu para Paris e outros assuntos mais
importantes e surpreendentes vieram à tona.
CAPÍTULO NOVE
Bertrand, durante a hora de lazer forçada, ruminou sobre a própria
situação, sem chegar à conclusão alguma, porém. Às vezes, aparentava-lhe
que, se pelo menos pudesse sair para os vastos campos abertos, já se sentiria
melhor. Por ficar trancafiado nesses lugares tão confinados que o deixou
doente. Ele mal podia respirar. Um ressentimento forte cresceu nele. Mataria
o tio na próxima vez que Aymar entrasse! Outras vezes, contudo, nesta
manhã, em particular, enquanto acordava de um sonho, no qual fugia
insanamente pela própria vida, perseguido por um cachorro branco
enorme, ou alguma assombração parecida, experimentaria uma sensação
de prazer por estar seguro em casa. O corpo tenso poderia relaxar, aos
poucos, o peito ofegante voltaria à respiração habitual.
Impulsionado pelo tio, que prometia, de maneira vaga, levá-lo à Paris,
abriu os livros e estudou desultoriamente. Havia muitas coisas que gostaria
de perguntar a ele, quando este trazia as refeições para ele, ou vinha
buscá-lo para uma caminhada pequena. Mas Aymar sempre conduzia a
conversa para outros assuntos, discutiam a guerra, a economia, seguro de
vida do Estado e muitos outros, outrora questionava-o em latim ou
matemáticas. Bertrand não era brilhante. A sua memória falhava, às vezes. O
lobo conquistou o seu melhor mais uma vez, Aymar concluiu.
Entretanto, Bertrand consumiu a maior parte do lazer sonhando
acordado. Gostava de pensar em Tereza, se ela estaria disposta a vê-lo de
novo. Com frequência, ficava de pé na janela e olhava o paço lá
embaixo. Por ora, Françoise passaria por lá, mas ela nunca olhava para
cima. Então, a mãe, elegante e natural, passaria ali andando, olhava com
rapidez para os lados e, vendo ninguém por perto, mandava-lhe um beijo. O
que sempre o tocava profundamente. Ou seria, mais uma vez, Mme.
Guillemin, curvando-se sobre o poço, com o seu grande bumbum redondo
por baixo da saia vermelha, que flamejava sob a luz do sol. De algum jeito,
avistar essas mulheres sempre o fazia lembrar de Tereza. Não poderia
esquecê-la de pé na sua frente, provocando-o, “Tire com os seus dentes.” A
inlucidez de arrancar essa última peça!
Em algumas ocasiões, a mãe dele ficava de pé diante da porta do quarto
e dizia. “Eu vou tirar você daí,” prometia. “Você vai para Paris. Eu tenho o
dinheiro para você.” Como prova disso, ela estava guardando mais das
economias recentes.
Certo dia, no vilarejo, ela entendeu que Jacques havia retornado e
estaria preparando uma ceia de jantar antes de ir para Paris a pé.
“Não, acho que nós não poderemos ir,” desculpou-se para Mme.
Bramond. “Bertrand está partindo hoje à noite para pegar o trem de Arcy.
Sem dúvidas ele verá Jacques em Paris.”
Josefina prestigiou o próprio triunfo. Pobre Jacques estava
caminhando. Porém, Bertrand, estava indo de trem. E Mme. Bramond,
sentindo o gume afiado das palavras de Josefina, recuou, “O nome de
Jacques estava na frente do de Bertrand na lista dos aprovados nos exames.”
Ela estava esperando que a verdade a arrastasse para casa, apesar de ter sido
explicado a ela de que a lista era alfabética e, por natureza, Bramond viria
antes de Caillet. Quando o falso apontamento seguiu o próprio destino e
Josefina saiu, um pouco desconcertada, Mme. Bramond teve mais um
acesso de êxito: que a ignorante da Josefina sequer soubesse que a
ordem dos nomes não estava de acordo com o mérito, mas confrome o A
B C.
Com isso, Josefina ficou determinada que Bertrand deveria partir
nesta mesma noite. Em segredo, ela arrumou uma mala com roupas e
comida, colocou dinheiro dentro e aguardou impaciente pelo anoitecer.
Ela sabia que Aymar mantinha a chave do quarto de Bertrand no bolso do
colete e pretendia roubá-la de lá assim que ele caisse no sono. O plano era
arriscado, mas quis seguir com ele. Ela tentou cochichar pela porta para
Bertrand, “Espere por mim hoje à noite. Você vai para Paris.”
“Paris,” Bertrand imaginou. Nesse momento, ele estava mais ansioso
para encontrar Tereza. Embora também haja mulheres em Paris, decidiu e
assim o fez como um tópico excelente para sonhar durante o dia, até começar
a anoitecer.
Tarde da noite, enquanto ele estava deitado com cono, sentiu alguém
beijá-lo. Estava sonhando com Tereza e, naquele instante, não entendeu por
completo que seria a sua mãe, de camisola, quem havia aberto a porta do
quarto e agora estava dizendo, entre muitos beijos, “Meu querido menino.
Levante e saia rápido antes que o seu tio descubra que eu roubei a chave.”
Sonolento, ele voltou aos seus beijos. “Acorde, criança. Tenho uma mala
pronta com tudo o que precisa. Dinheiro, também. Depressa! Você deve
manter uma distância segura entre você e esta prisão. Ó, meu querido
bebê. Quanto vai demorar até eu ver você de novo? Eu tenho uma ideia
para ir com você.”
Ela havia sentado na cama ao lado dele, deixado ele de pé e abraçado
contra o seu peito. Ele estava tentando escapar desesperadamente da
vertigem do próprio sonho. Mas o seu enredo dificultava isso, como numa
bruma de teias de aranha. Estava abraçando Tereza, e ela estava atiçando-o
para despir a sua saia.
“Querido, bebê... Bertrand! O que você está fazendo?”
“Pare com isso, Bertrand!” ela murmurou tão alto arriscou. “Bertrand,
falei com você!” Ela lutou contra o seu corpo jovem e musculoso, depois
parou, sem mais resistência. Um ardor estranho de satisfação emanou do seu
sacrifício e a induziu ao relaxamento, num sorriso estático. Todos os anos da
sua vida coalesceram, Pitamonte, Aymar, Bertrand. Eles era um só. Estavam
juntos num único corpo, com muitos braços mexendo nela, mas com
somente um rosto.
Quando Bertrand acordou muitas horas depois, percebeu em distração o
corpo nú da mãe deitado ao seu lado, os membros dela estirados em
complete relaxamento. Violentamente perturbado, levantou-se devagar,
vestiu uma roupa e abriu a porta. O corredor estava silencioso e escuro, ao
contrário do seu quarto, vagamente luminado pelo céu noturno. Ele sentiu
mais uma vez aquela sensação familiar de querer fugir para a floresta. Ele
deveria. Não conseguia se lembrar do que havia acontecido, mas um
sentimento de medo e vergonha o preenchia daquilo que pensou que
escaparia abandonando a casa.
Enquanto saía pelo corredo, a imagem do tio, de pijama, apareceu logo a
frente e bloqueou a passagem.
“O que você está fazendo aqui fora? Como você saiu? Volte para o seu
quarto!”
Bertrand rangiu os dentes. “Você não pode me segurar como um
prisioneiro para sempre,” gritou. “Estou indo a Paris! Deixe-me ir, estou
pedindo! Quero sair! Estou morrendo!”
“Volte para o seu quarto. Volte –”
Bertrand abaixou a cabeça e olhou para frente. Ouviu o tio arfar
enquanto passou por ele, mas não quis esperar para entender o que havia
acontecido. Ele desceu as escadas correndo. A porta da frente estava
trancada, mas na sala ao lado, onde o tio estudava, as portas baixas da
varanda estavam escancaradas aos ventos da noite. Correu pela sala,
saltou o parapeito e caiu seis metros abaixo. Sem saber precisamente o
que estava fazendo, pegou a estrada principal e a seguiu.
O barulho dos movimentos despertaram Josefina. Já ciente do que
estava acontecendo, levantou para se colocar na segurança do seu quarto.
Segurou o pijama rasgado, viu a mala que Bertrand havia esquecido e supôs,
Ele vai escrever e mandarei o dinheiro, recolhendo a bagagem, dirigiu-se ao
seu quarto. Atirou pela janela, nos arbustos, a chave com a qual havia
destrancado a fechadura quando passou.
Bertrand galopava num trotar rápido, ofegando demais. Por
fim, atirou-se para baixo do banco de gramado na fronteira da estrada e
descansou por ali, respirando o orvalho e sentindo o sereno calmante.
Algumas lâminas da grama estavam contra o rosto. Ele abriu a boca e as
mordeu pelo reflexo.
Embora, pouco tempo depois, já estivesse se tremendo inteiro. Com o
corpo tenso. Alguém estava vindo pela estrada. Levantou-se em alerta e
recuou por trás da cobertura de um campo. O tio o estava caçando! Não. Pela
escuridão, uma forma indistinguível se aproximava, um homem com uma
mochila nas costas, em passos uniformes, marcando cada passo seguinte com
o toque da bengala no chão.
Um desejo selvagem de colocar as mãos sobre esse homem passou pelo
corpo de Bertrand e deixou o cérebro em chamas. Os olhos estavam tão
quentes que não conseguia piscar sem uma pontada de dor. Cada parte do
corpo estava dolorida e tão sensitiva, que cada parte de roupa nas costas
pressionava a pele como a ponta de uma agulha. Despiu-se, a partir daí,
rasgando os botões para fora na sua pressa. Conforme as roupas dele
caíam num monte, sentia-se muito melhor. Entretanto, o contato
repentino da nudez com o vento gelado chamou atenção para um
sentimento de distensão na bexiga. Aliviou-se distante das roupas,
fazendo um arco da urina.
Agora que se sentia livre e insucumbível de verdade, com passos
longos e silenciosos, correu atrás do homem, que havia desaparecido
entre a noite. Em poucos minutos, havia alcançado a figura, visível na
escuridão. Institivamente, as mãos coçaram a estar naquela garganta.
Com um grito, aproximou-se da cerca e saltou no homem, que se virou,
assustado e indefeso, e encolheu-se antes da violência do ataque.
Apesar um momento antes das mãos de Betrand coçarem para estar na
garganta do homem, elas não fizeram nenhum movimento para agarrar e
segurar a presa. A tensão não estava nos seus membros, mas no rosto, sobre
o músculo masseter das mandíbulas. A sua boca ficou totalmente aberta. Os
dentes cravaram através das roupas e da carne. A face estava inundada por
uma fonte de calor, a qual ele lambia com ganância.
Ele arrastou o morto até a cerca na fronteira da estrada. Não lhe ocorreu
usar as mãos para isso. Usou os dentes e o puxou. Com os braços e as
pernas desatados do corpo, empurrou o chão e, assim , puxando-o
pelo caminho da volta, chegou no acostamento da estrada. Ali,
começou a devorar pedaços da carne rasgada da garganta. O que ele queria
era o sangue fresco, porém o tecido pesado do terno dificultou. Por mais forte
que puxasse, não conseguia rasgá-lo, e os dentes não podiam cortar através
do material resistente. Entretanto, já havia saciado muito o apetite. O que
desejava agora era dormir. A cabeça caiu sobre o corpo do morto. Ele
cochilou. Não saberia por quanto tempo.
Mas quando acordou, foi de uma vez. Ele estava gelado e houve um
sonho ruim, um sonho confuso com carne e sangue, luta, gritos e saltos.
Estendeu a mão para alcançar o corbertor, que, na perturbação do sono, seria
evidente que esteve empurrando-o para fora. A coberta não viria, porém.
Devia estar preso entre a cama e a parede. Ele puxou. Como era pesado
esse cobertor. Que objeto pesado era este, branco como uma cabeça
de repolho do inverno mastigada por minhocas?
O rosto devastado do amigo, Jacques Bramond, surgiu logo a sua
frente. “Esses pesadelos nunca param?” ele reclamou, e soltou as mãos do
cobertor. A cabeça caiu para trás. “Dedisivamente, isso é real demais. Como
eu posso me acordar agora? Eu sei que vou sair da cama.”
Só que não havia um passo para descer da sua cama. Ele estava
acordado. Essa era a realidade. Na superfície da escuridão, ele viu o cadáver
mutilado. A sua própria boca estava com sangue seco grudado.
“Deus, é real?” choramingou. “Ou eu ainda acordarei deste pesadelo
mais horrível do que qualquer outro que já tive?”
O som da sua voz foi claro demais para ser negado.
Ele caiu sobre o defunto e estourou-se em lágrimas violentas. “Jacques!
Jacques!” Mas Jacques não responderia.
“Ó! Eu sabia que era de verdade, sabia que era! Sabia que fiquei trancado
por um motivo melhor do que o tio me contaria.”
Ele chorou. Rangeu os dentes. E arrancou os cabelos. Quando a emoção
passou um pouco, o seu primeiro desejo foi correr para casa, para a sua mãe.
Mas uma recordação vaga de haver feito algo horrível para a mãe o conteve.
“Essa também é a realidade? Não, não! Nunca! – E ainda...” Não, ele não
poderia ir para casa.
Aquilo seria tão verdadeiro quanto isso. Isso fez com que ele explodisse
num choro novamente. Que monstro ele era! Só caberia o viés de ficar
trancado para sempre. Mas com a luz do dia peneirando, aos poucos,
através da atmosfera, ele começou a pensar na providência. Deveria ir
para algum lugar. Se fosse encontrado aqui, pelas pessoas do povoado – até
mesmo pelo próprio velho Bramond! Deus me livre!
Preenchido agora por menos horror de si mesmo do que pelo medo da
própria segurança, levantou-se às pressas e considerou. Há algumas centenas
de metros distantes havia uma floresta. E se ele pudesse arrastar o corpo para
lá?
Ficou surpreso com a própria compostura. Carregou o cadáver pelos
ombros e o serpenteou até uma fenda no acostamento, atravessou o
campo até as árvores. Você era um companheiro bronqueado, Jacques,
ele se pegou pensando. Quase cem metros adentro da floresta sentiu-se
seguro. Com as próprias mãos, cavocou o molde de folhagem macia até
que houvesse feito uma cova rasa.
Uma nova ideia o atormentou. Talvez devesse remover as roupas de
Jacques. “Não consigo voltar para casa por mim mesmo.” Então, lembrou-se,
como se fosse um sonho, que ele havia deixado as próprias roupas lá na
pradaria, atrás do acostamento. “Se todos os meus sonhos fossem
realidade,” disse para ele mesmo, “ali eu acharia as minhas roupas.”
Ele abandonou o corpo e correu de volta. Não havia tempo a perder.
Uma distinta névoa perolada da aurora permeou o céu oriental. Daquela
distância vinha o canto dos galos. Estava quase desejando que as roupas não
estivessem por lá. Isso significaria que, pelo menos, parte dos seus sonhos
não era verdadeira. Mas as roupas, agora molhadas e encolhidas, estavam
ali, onde ele as rasgou do corpo febril. Vestiu-se e correu de volta para
terminar a tarefa.
A cada momento a luz do dia aumentava, e a missão de enterrar o velho
companheiro ficava mais repugnante e macabra. Era difícil manusear o corpo
endurecido. A mochila estava no meio do caminho. Ele a retirou. Uma
ótima ideia, pensou com ele mesmo. Eu precisava de algumas coisas
dali. Ele fez uma procura minuciosa pelos conteúdos. Comida, linho
e, escondida, uma carteira com dinheito dentro.
Ele teve a noção súbita de despejar o pão, o vinho e a carne fria na
mochilha e embrulhar um ou dois membros do cadáver. A ideia o revoltou
tanto que quase vomitou. “De onde essas ideias me vieram?” exclamou em
terror.
Ele terminou a cova às pressas e apagou os vestígios da atividade tão
bem quanto pôde ficar espalhando folhas sobre ela. Depois, assumindo o
fardo, correu de volta à estrada.
Caminhou durante o dia inteiro, descansando ocasionalmente, seguindo,
tanto quanto poderia julgar, ao nordeste, em direção à Paris. Ele evitou
pessoas e caseríos. Ao anoitecer, já estaria numa distância considerável de
casa e com um certo sentimento de segurança.
Ao meio-dia, a fome obrigou-lhe a interromper a fuga pelo momento.
Procurou um lugar propício, isolado, e investigou com mais cuidado o que
havia dentro do fardo. Havia uma quantidade ótima de diversas guloseimas,
frango frio e lebre. O velho Bramond iria comer lebre, Bertrand imaginou.
Havia uma garrafa de vinho, muitas fatias de pão e um par de maçãs
amadurecidas. E também havia um frasco pequeno cheio de alguma pasta,
provavelmente de fígado e verduras picadas. Deu um banquete delicioso de
verdade. O vinho estava excelente e as carnes frias muito saborosas. Ele
comeu com um apetite genuíno.
“Deixarei um pouco para esta noite,” elocubrou. “Ainda tem muito para
outra refeição.” Satisfeito, tanto com o presente quanto com as perspectivas
do future imediato, ele tirou uma soneca e prosseguiu na sua jornada.
A noite o flagrou faminto, mas incapaz de pensar em mais galinha e lebre
para o jantar. Encontrava-se rodeando um pensamento estranho em mente,
Por que eu não peguei um braço do Jacques? Sim, ele era o meu bom amigo
Jacques, quem conheci por toda a minha vida, mas, afinal, ele estava morto,
não estava? O que meus escrúpulos poderiam fazer de bom a ele, depois
do que já fizeram? Impassivelmente, ele ruminava: Já sei o que fazer na
próxima vez.
As dores de fome começaram a ficar agudas, e percebeu que estava
contornando os povoados mais próximos, esperando por alguma criança
desgarrada e olhando as igrejas mais de perto, os metros adjacentes,
escaneando-os atrás de coroas, fitas e outros sinais de um funeral recente.
Porém, a noite ainda o encontrava vagando, insatisfeito, pelas fazendas
sombrias, onde os cachorros latiam estranhando o cheiro dele. Ele procurou
o abrigo das árvores, com o corpo atormentado de fome. Ele gritou e
lamentou para a lua que brilhava friamente, cortada pela silhueta de folhas e
galhos.
Somente a alguns minutos depois de Bertrand haver deixado a cena do
crime naquela manhã, um jovem fazendeiro vinha descendo pela estrada. O
sapato deve encontrou um objeto duro que estava jogado a frente, devido
à força do tranco. Ele pegou uma bengala emaranhada. Imagino quem perdeu
isso? Pensou, enquanto andava, utilizando a desenvoltura e o seu toque para
gracejar e acentuar a caminhada.
Ao chegar no local de trabalho, mostrou a bengala para os
companheiros. “Vejam o que eu encontrei. Legal, né?” Os trabalhadores
admiraram; mas um dos homens disse, “Onde você achou isso? É do
velho Bramond, o garde champêtre. Melhor devolvê-la.”
“Vou devolver, acho que terei,” falou o jovem homem, um pouco
deprimido, odiando deixar a peça de madeira polida para quem a mão já havia
adquirido amizade.
“Vejo que vai,” respondeu o homem mais velho. No entanto,
intencionalmente, o rapaz jovem deixou vários assuntos o atrasarem uma
semana antes de devolver a bengala ao dono.
“Onde achou isso?” Bramond perguntou surpreso. “Do lado de fora da
estrada.”
Bramond balançou a cabeça. “Hum.” Ele mostrou a vara para a esposa.
“O que isso significa?” ela perguntou instintivamente.
“Hum. Nada, eu acho. Lembra que ele não queria ela e a enfiou
pelas alças da mochila? Deve ter caído sem ele perceber.”
“Mas não temos notícias dele, nem da tia Luíza. Ele já chegou em Paris,
com certeza.”
“Dê tempo a ele, mãe. Você sabe que ele não tem um cêntimo para
desperdiçar. Com os outros quatros que nós conseguimos, ele vai ter
que economizer. Ele também sabe disso. E tia Luíza está mais pobre do
que nós. Não se preocupe agora.”
“Mas eu estou preocupada. Ó, eu queria que pudéssemos mandar o
nosso garoto estudar em grande estilo. Sr. Galliez me contou que Bertrand
pegou o trem em Arcy. E Sr. Galliez vai segui-lo assim que puder. Ó, espero
que esteja tudo bem com Jacques!”
Com saudade da querida casa, o fazendeiro partiu em seguida. Ele já
estava disposto a perder parte do salário por não estar trabalhando a
semana. Isso comprovou um argumento forte contra ele quando, depois de
uma semana ou mais, o corpo do pobre Jacques foi descoberto, e o
fazendeiro jovem foi levado ao julgamento. Pelo horário daquela manhã,
foi demonstrado que ele havia encontrado Jacques logo pela estrada, no
ponto mais próximo à cova na floresta.
Se ele não estivesse convencido, seria somente porque, além da bengala
e do momento no local pela estrada, os quais explicariam tanto o encontro
da bengala quanto do assassinato, a evidência foi muito escasa. E
nenhum motivo poderia ser estabelecido, apesar da acusação apontar
fortemente o roubo.
Foi ouvido o velho Bramond murmurar, “Se ele não for condenado, eu
mesmo o matarei!” Mas a esposa conseguia pensar apenas na tristeza disso:
ela repetia cada vez mais, enquanto balançava a cabeça, “Apenas imagine,
ele nem saiu da vista do povoado. E nós pensávamos que ele estava em Paris
há tempos.”
Inclusive a garota do fazendeiro havia alguma suspeita em casa e se
separou dele, e o moço, ainda que absolvido pela Lei, encontrou-se
condenado pela comunidade. Somente Galliez havia sido decente com ele,
mas quando entrou pela porta da sua casa, compreendeu que Monsieur
estava em Paris. Ele cogitou emigrar, mas não tinha dinheiro, mesmo
que o povoado culpasse-o por esconder o dinheiro de Jacques. Pensou
em servir ao exército, que estava chamando homens para se integrarem a
derrotar os prussianos sitiando Paris, mas, antes de fazer isso, ele ficou
bêbado numa noite e enforcou-se.
“Salvou a minha arma do problema,” Bramond resmungou. “Bem, isso
revela a maldade da sua consciência.” Ele foi informado sobre um bilhete
deixado pelo jovem. Dizia:
Eu sou inocente, mas até minha mais querida Helena acredita que sou
culpado. Como posso viver?
“Hum,” disse Bramond em surpresa. “O feitio dessas mentiras, mesmo
quando estão prestes a aparecerem diante do tribunal de Deus.”
Somente Aymar sabia. Que aquela manhã em que Jacques foi
assassinado era a manhã em que Bertrand havia fugido. A maneira do
assassinato, o rasgo na artéria carótida, a mutilação, etc. Não havia dúvidas
disso. E, aliás, que prova ele tinha?
A sua primeira intenção foi a de ir correndo direto para Paris, onde
suspeitava que Bertrand estaria, mas ele procrastinou por muitas semanas.
Houve o julgamento do fazendeiro infeliz. Ele veria que lá não há falha da
justiça. Viajou para Auxerre, onde o julgamento aconteceria, tendo
assegurado para ele mesmo, por uma conversa com os advogados da defesa,
que esse homem não poderia ser condenado, e acreditou haver feito o melhor
deslizando cinquenta francos ao pobre colega e prometendo fazer mais, se
necessário.
Por subsequência, em Paris, quando novas notícias começaram a
surgir de novo, meses mais tarde, ele soube da verdade e se arrependeu
amargamente. Se ele apenas houvesse colocado fogo na casa naquela
noite, pensou. A frase na carta estava sendo verdadeira: os Pitamontes
deixam um rastro de miséria espalhados pelo seu caminho venenoso. – Se ele
pudesse apenas fazer uma confissão completa à polícia. Mas havia um pudor
peculiar nisso, que ele não conseguia superar. Ó, que desgraça terrível, que
infame – possuir um monstro mítico na própria família, nesta era da ciência e
da comprovação!
CAPÍTULO DEZ
Aymar desceu em Paris, no terceiro dia de setembro, um dia antes das
investidas dos alemães estarem completas. Muito antes de chegar em Paris,
ele veio a entender que, sem provas para continuar, seria difícil encontrar
Bertrand. Como, de fato, descobriria alguma pista? Assim pensou triste,
mas realisticamente, Ele deixará uma trilha de crimes .
A primeira obrigação de Aymar, então, seria a de haver uma visita à
polícia. Mas ele lutou naturalmente tímido sobre isso. O que ele diria aos
policiais? Por exemplo: “Eu sei de alguma coisa. Há um homem que, em certas
noites, anseia por sangue, por isso transforma-se em um lobo e sai para matar
a presa.” Se eles não ridem de mim fora do tribunal, perguntarão, de qualquer
jeito, “Você viu isso com seus próprios olhos?” E eu responderia, “Não, mas
tenho provas desse fato, porque vivi com esse homem por dezenove anos.”
– “Quais provas você tem?” – “Tenho uma bala de prata, que foi atirada contra
um lobo, e encontrada na perna dele. – “A visão simples dessa bala não nos
convenceria, mas onde ela está?” – “Eu não trouxe, mas ele nasceu na véspera
de Natal, e as sobrancelhas dele se encontram…”
Não, isso era doentio. Ele não conseguiria mesmo ir longe assim, e
se fosse, que bem faria? No fim, ele só poderia ser preso por uma
idiotice, e “sirva-me bem, pois eu teria que ser um tolo para fazer isso,”
Aymar concluiu esses pensamentos.
A melhor coisa seria esperar pelas circunstâncias para deixar o assunto
fácil para um número de pessoas. Assim, posso aparecer com minha outra
confirmação. E haverão crimes, assim como esse, em que o assunto será
esclarecido, ou, também, eles não venham a existir, logo não preciso
me preocupar.
E assim foi tantas vezes até que, num dia, Aymar olhou por todos os
documentos. Sem paciência, afastou-se das notícias da guerra e buscou pelas
de crime. No entando, a guerra havia infestado até a última. Antes da
questão grandiosa de milhares de pessoas morrendo, antes de um
lobisomem magnífico bebendo o sangue dos regimentos, de que
importância seria um lobisomem pequeno como Bertrand?
Entretanto, num dia, surgiu uma pista. Um General Danmon havia
morrido. A morte dele despertou simpatia, pelo final trágico. Num dia,
perdera a filha única. No dia seguinte, sofrera o ataque mais brutal,
o criminoso chegou ao ponto de profanar a criança morta e, um dia
depois, ele mesmo havia se matado. Ele estava preso em Dépôt e seria
transferido em breve à prisão de La Grande Roquette para aguardar o
julgamento.
A matéria permite-se ser reconstruída a partir dos dados levantados por
Aymar no seu manuscrito, o jornal da época, a pasta de um tal João Roberto,
etc.
General Danmon foi uma figura popular na Paris imperial. Depois de uma
vida gasta procurando a satisfação dos seus instintos mais básicos, conquistou
tanto uma posição estável e uma nova fortuna pelo casamento perfeito com
uma herdeira. Apesar das fofocas, ele estava profundamente apaixonado e
disposto a ser domesticado por complete, o que não é surpreendente, vendo
que ele estava próximo de aposentadoria. O seu copo transbordou quando
foi abençoado com uma filha, de quem não poderia duvidar ser o último
fruto da sua vida.
Em novembro de 1870, quando a garota estava com quase cinco anos
de idade, foi abatida por uma doença tão rápida que houve pouco tempo para
chamar um médico que, com certeza, poderia fazer nada mais do que
testemunhar as últimas respirações sufocadas do corpo quente e torturado,
cuja febre esfriou velozmente até o frio da morte.
A cerimônia da igreja foi impressionante. O cortejo fúnebre, daqueles
dias quando os cavalos estão faltando, foi, no entando, um ficheiro
interminável, de tão grande que era a sociedade. Mulheres e crianças
envolvidas em xales contra o frio das ruas, esperando em filas longas para
obter mantimentos pequenos de carne, assistiram a procissão triste e
encontraram o lote deles, um pouco mais fácil de suportar. Até mesmo o
calafrio da friagem é uma manifestação de vida. É quando o frio não faz mais
você tremer...
O cadáver pequeno foi levado para descansar em Père-Lachaise. Os
operários removeram os lajões enormes de pedra da cripta e, por conta do
atraso e do frio amargo, foram para casa, esperando para fechá-la no dia
posterior.
O pai arrasado, com lágrimas escorrendo pelas bochechas, não pôde
conter-se em chorar alto e informar aqueles ao seu redor de que foi um pai
cruel, por haver gritado bravo com a própria filha angelical, pois ela rabiscou
uma correspondência importante. Ele nunca se perdoaria por isso. Por que
ele não guardou aquelas folhas rasuradas e as emoldurou? Agora elas
seriam as lembranças mais queridas da sua vida.
Entre os enlutados estavam muitos dos colegas antigos do General, que
não puderam deixar de lembrar que esse velho miserável com sua história
infantile de aflição havia sido, por vinte anos, o charlatão mais notável das
histórias da França, sendo mais de uma delas da própria experiência. O jeito
que esse homem conseguia quebrar uma castanha na companhia dos jovens,
homens e mulheres, para que, assim, as garotas não entendessem nenhuma
palavra enquanto os homens seguravam os próprios pontos! Esse era o seu
truque favorito, de fato, o seu forte.
Os corações mais frígidos derreteram-se ao ver o pai sendo arrancado à
força da cova que havia engolido a filha num caixão branco. A esposa
perturbada, meio inconsciente, sofreu para ser levada de volta à fila comprida
das carruagens, sem resistência. Entretanto, o General provou um problema
aos amigos.
Ao fim, ele ficou na porta da carroça. Resolvido, de repende, foi para
frente dos cavalos de pelagem preta e falou com o cocheiro. “Você vai me
chamar amanhã às cinco horas da manhã. E todas as manhãs, daqui em diante
até eu morrer. Verei o sol nascer aqui todos os dias da minha vida.” O
cocheiro assustado retirou o chapéu alto e preto e murmurou alguma
coisa incompreensível.
Logo pela manhã, o General estava preparado para o cocheiro, que o
chamou de prontidão. Dirigiram-se num ritmo acelerado pelas ruas
escuras e silenciosas, onde apenas alguns caminhões carregados de
repolhos e cenouras distribuíam as rações escassas do período de cerco .
Os motoristas acenaram dos assentos, enquanto burros e cavalos pacientes
trotavam filosoficamente. Atrás, uma mulher ou um garoto roncava, estofado
por muitos xales contra o sereno da manhã. Era uma imagem caricata de uma
cena da qual o General já havia testemunhado muitas vezes enquanto voltava
para casa de alguma festividade tardia, sempre no final da noite, nunca no
início do dia.
O General sentou-se ereto, com os olhos secos. Ele estava cumprindo um
voto, cuja execução, devido às demandas colocadas sobre ele, já estava
ajudando-o a suportar a carga do luto. Enquanto dirigia, então, ocorreu-lhe
que estava fazendo de um homem estranho um evento para voto. Um homem
que, de agora em diante, sofreria a mesma punição que ele. Essa ideia, a qual
nunca ocorreria nos seus dias formais, agora estava tão insistente que ele
precisou agir. Chamou pelo cocheiro para parar. Depois saiu e içou sobre a
carruagem.
“Dirija” disse.
O cocheiro perplex levantou as rédeas e deixou que batessem nas costas
das bestas. O vento da madrugada passou pelos dois homens. Com o tranco, o
General sentou-se reto. O cocheiro enrijeceu-se fora da sua inclinação natural.
“Qual é o seu nome?” O General perguntou por gentileza. “João
Roberto, ao seu dispor.”
“Você é casado?” O General prosseguiu. “Sim, vossa excelência.”
“Algum filho?”
“CInco, vossa excelência.” “Meninas?”
“Duas.”
“Você as ama?”
“Ah, bem, veja, monsieur, elas são minhas.” “Claro.”
“E, então, elas custam uma bela quantia.”
“Elas custam mesmo,” o General confirmou e acenou com a cabeça.
“Quando elas eram minúsculas é claro que não custavam nada, por um
tempo, mas quando você atua como parteira...” “Para ser exato.”
“Elas têm bocas pequenas, mas barrigas grandes e estão sempre
famintas.” “Estranho, não é?” O General questionou com educação.
“Ainda assim, quando eles crescem e viram homens e mulheres e se
casam, logo, naturalmente, você espera que eles o levem e cuidem de você na
velhice.”
“Nenhuma criança boa esquece essa obrigação,” disse o General
severamente.
O cocheiro respondeu de imediato, “Eu não esqueci dos meus velhos,
posso contar a você, mas as crianças dos dias de hoje não são o que
costumavam ser. Já não têm nenhum respeito com os mais velhos. E os jornais
cheios de histórias de crimes.”
“Sim, os bons e velhos tempos,” disse o General e suspirou. “A
propósito,” ele disse, como se o pensamento que esteve ocupando a
cabeça durante todo o momento simplesmente surgisse para ele , “é
uma vergonha que você tenha que levantar tão cedo para me levar até o
cemitério. Daqui em diante, vou acordar uma hora mais cedo e ir andando.”
O rosto do motorista murchou. A sua voz revelou o desapontamento.
“Ó, não exagere, vossa excelência. Estou muito feliz e lisonjeado...”
“Está tudo bem, meu bom homem,” disse o General e deu um tapinha
nas suas coxas. “Você tem um bom coração. Mas não tenho o direito de
privá-lo da companhia dos seus filhos pela manhã, simplesmente porque eu
perdi a minha. Eu vou andando.” suspirou.
Eles moviam-se pela escuridão por um momento de silêncio total.
“Então está acabado,” disse o motorista, que também suspirou.
“O que você quer dizer?” O General interrogou. “Digo que está
terminado.”
“O que está terminado?”
“O trabalho bom, com o qual me comprometi tanto.” “Eu não entendo.”
“Nos pagam muito pouco, senhor,” explicou o cocheiro. “E aqui eu
tinha um serviço extra todo dia, num momento em que ninguém mais me
requeria. Além disso, eu arranjei todos os detalhes necessários e também
prometi ao zelador um dinheiro pela abertura dos portões mais cedo, nesta
hora.”
O General caiu num devaneio.
Conforme a carruagem estacionava em frente ao portão fechado do
cemitério, o General, motivado por determinação repentina, entregou ao
carroceiro o devido e bem recheado portefeuille.
“Aqui. Nisso você encontra o salário para um ano bom. Pegue-o.
Eu me sentiria livre para caminhar todas as manhãs e suportar meu luto
sozinho.”
O motorista não conseguiu pensar em nenhum outro jeito de expresser
gratidão além de ficar de joelhos e, murmurou algumas palavras que foram
incompreensíveis.
“Venha, meu amigo,” disse o General, para quem a cena era
desgostosa, “levante-se e vamos voltar aos negócios.”
“Holà! Holà!” Gritou o cocheiro. “Qual é o problema?”
“Devo acordar o atendente que dorme ali na cabine. Ele prometeu abrir
a porta para nós.”
“Não, não. Não vai. Por que você atrapalharia o sono dele? Além de ser
impróprio gritar neste lugar. Dei-me sua mão e logo estaremos do outro lado
do portão.” Para facilitar a subida, que não era inconsiderável, o cocheiro
apoiou o veículo contra o portão.
A hora agora era quase seis. Uma manhã nublada, um cinza-
esbranquiçado luminescente anunciou um amanhecer frio. As árvores
molhadas e sem folhas chovia pelos percursos de paralelepípedos. Os dois
homens mal caíram do outro lado quando um cachorro passou correndo por
eles, alcançou o alto da grade, no limite, descansando por um segundo nas
barras superiores e se foi.
“O que foi isso?” o General perguntou, assustado. “O cachorro do
zelador, acho,” disse João Roberto.
“Meus nervos são ruins,” disse o General. Eles desceram o caminho
através do muro de neblina, no qual as lápides brancas pareciam porções mais
concretas da névoa geral, esculpidas grosseiramente em forma de figuras
curvadas contra o frio.
Os pés dos pedestres deixaram para trás as ruas de pedras duras, que se
quebravam ao longo de um caminho de pedras ainda mais estreito – esse
triturar era o único som amigável na atmosfera sombria. Porém, ainda que
esse barulho amigável repetisse muitas vezes, por fim, atingiu uma nota
alarmante, sinistra, parecia um agouro. E por ser o único barulho no cemitério,
passou a ser o único som no mundo. Crunch, Crunch! Crunch! Os ritmos dos
dois caminhantes agora concordavam e se reforçavam, ora interrompiam-se e
discordavam num conflito de crunches, e depois se enroscavam de novo,
como dançarinos rodopiando numa figura complicada, como amantes
brigando e se beijando.
As orelhas do General estavam cobertas com o barulho, o coração, o
corpo e a mente estavam atentos à nada além do crunch, crunch até que
percebesse a tumba da criança à vista, um túmulo numa desordem esquisita.
Os olhos dele procuraram penetrar a névoa. Os pés apressaram-se. Ó,
Senhor! Ó, Deus! Tenha piedade de mim. O caixão branco descansava de um
lado, a tampa foi arrancada e quebrada. Do cadáver da sua garotinha
restaram apenas restos, horrivelmente mutilados e espalhados pelo chão. À
distância soou o primeiro canhão das tropas prussianas sitiadas, disparando
no forte de Mont-Valérien.
Duas horas mais tarde, o zelador descobriu a cena terrível no turno
daquela manhã. O cachorro, uma besta velha que raramente latia, corria à
frente, e estava rosnando animado, farejando o corpo de um homem, General
Danmon, e os restos espalhados do defunto enterrado no dia anterior.
A polícia, notificada, já estava ocupada com o caso. A posição do
General na sociedade e a atrocidade do crime exigiam atenção imediata. O
General havia sido transportado para casa, onde descansou em febre alta,
incapaz de responder qualquer pergunta, mas a notória esperteza da polícia
de Paris levantou-se à ocasião. Em menos de três horas, um official e quatro
homens estiveram sentados, armados com um mandado, para uma
pequena rua perto do Porte Saint-Martin. Eles pararam em frente a uma casa
de dois andares, baixa e de exterior desagradável. Um arco central deu acesso
para uma escadaria escura. Tendo disponibilizado os seus homens, o official,
embora tímido por natureza, sentiu-se compelido pela própria liderança a
subir os degraus, o que ele fez, com a pistola engatilhada. Tomou a
precaução mais frequente de para rem quase todos os degraus, gritando
no volume mais alto da voz, “Em nome da lei.”
Finalmente ele chegou no destinho e bateu na porta em frente. Um
estrupício de mulher, com duas crianças agarradas às suas saias e outra
segurando-a pela dobra do braço, abriu a porta. Com a mão livre, ela
empurrou os fios pretos do cabelo para longe do rosto sombrio e não
desajeitado. E com um rosnado de desbrezo na boca, ela falou, “O covarde
está embaixo da cama!”
O oficial, cuja timidez tornou-se coragem até mesmo nesta bravata,
antes de exibí-la maior do que realmente era, assobiou aos homens, que
vieram cercando de uma só vez.
“Arrastem-o para fora!” E apontou para uma cama enorme, desfeita e
amontoada com colchões de penas e travesseiros.
O que eles arrastaram era obviamente um homem louco de terror.
Uma carteira pesada, de couro vermelho, estava segura na mão dele,
ornando um brasão de armas trabalhado em fios de ouro.
“Hum,” disse o oficial e arrancou a carteira.
Quatro mil francos em notas do Banque de France.
“Ora, ora,” o oficial gargalhou e disse em alegria, provocando o homem
que agora estava de joelhos. “Seu, claro?”
“Meu!” berrou o cocheiro selvagemente. “Meu, meu. Ó, não leve
embora. Nós precisamos tanto dele. É meu, juro diante de todos os
santos do céu. Não vê como somos pobres?”
“Claro que é seu, meu amigo. E você achou que fôssemos tão crueis
assim para tirá-lo de você? Não, vocês devem vir, os dois juntos. Allons, mon
cher croque-mort! En route!” Os homens empurraram o cocheiro da sua
posição ajoelhada.
João Roberto lançou um olhar de desprezo para a esposa. “E você, até
você.” Ela virou a cabeça para longe. “Levem-o embora. Esse ladrão! Esse cão
imundo! Eu me sacrifiquei por ele até os ossos e dei-lhe cinco filhos
porque o amava, porque eu acreditei que ele não nunca roubaria de
novo.”
“Roubar de novo,” repetiu o oficial e murmurou. “Então é assim, é?
Quando?”
“Ele esteve na penitenciária de Besançon por três anos,” ela respondeu.
“Mas como ele jurou por todos os santos do céu que nunca mais roubaria se
eu o trouxesse de volta. Deus, como fui cretina o bastante para acreditar nele?
Agora saiam, vocês todos!”
Depois de uma visita à Permanence, onde nome, endereço, etc., foram
retirados, o cocheiro, João Roberto, foi levado embora, a uma distância
curta pelas muralhas imensas e sombrias, molhadas pela chuva gelada,
para Dépôt, onde a prefeitura da polícia estava ocupada dia e noite. Por lá,
Roberto voi deixado numa cela pequena, para tentá-lo a confundir o destino
curioso que o havia vencido. Derrepente rico, e agora mais pobre do que
nunca. Ele não teve muito sucesso com esse problema. Mas recordou-
se de um pensamento dado a ele, há muito tempo atrás, por um padre
que costumava visitá-lo na prisão em Besançon. Lá, quando Roberto
reclamasse que havia cometido apenas uma parte pequena do crime ,
pelo qual os seus associados, no entanto, receberam sentenças
menores, esse curandeiro de almas velho dizia, “Meu filho, muitas vezes,
um homem culpado deve suportar a punição que pertence a outro
criminoso. E o pecado destem undo é tão grande que, às vezes, até mesmo
uma pessoa inocente deve sofrer; e a virtude destem mundo é tão grande
que, outras vezes, uma pessoa pecaminosa desfrutará da vida em paz. Mas
essas são as exceções. Em geral, é o grupo principal de culpados que sofrem
pela culpa dos semelhantes, enquanto a maioria dos inocentes são
recompensados. As poucas exceções não devem nos cegar à regra. E esta
regra é: se você não transgredir nenhuma lei moral, nunca precisará temer a
retribuição.”
Tantas vezes havia acontecido isso e o padre benevolente assegurava-
lhe sobre o fato, que Roberto memorizou as palavras, senão o conteúdo.
Mas, agora, ele via os significados delas: Se você não viola nenhuma lei, se
você não comete nem mesmo a minima infração das regras, você estará
totalmente seguro, isso é o pessoal limítrofe, aqueles que não são
criminosos grandes, nem santos grandiosos, possuem razão para
reclamarem da gravidade da justiça, por atingí-los, com frequência, mais do
que merecem. “Meu filho,” o padre costumava prevenir Roberto, “evite até
mesmo a aparência do pecado.”
Roberto foi forçado a lembrar dessa cautela, quando um oficial veio
orientá-lo antes do juge d'instruction, numa câmara pequena ali por perto.
Poucos bancos, uma cadeira especial para ele, um greffier ocupado em
escrever, “Par devant nous, Gustave Le Verrier, juge d'instruction, sont
comparus: João Roberto, cocher attaché aux services des pompes funèbres,”
etc., apesar de Gustave Le Verrier, o juiz examinador, ainda não esta em
nenhum lugar à vista.
Quando ele chegou, entretanto, não havia como escapar de vê-lo. Ele
era imenso. Ele era montanhoso. As suas vestes largas balançavam pelo
corpo com grande liberdade e dobras magníficas das cortinas do palco. O
enorme rosto rosado com barba clara, através do qual o rosa da carne
brilhava, estava envolto de sorrisos. Ele olhou para o prisioneiro com tanta
bondade, que o sol da esperança nasceu no interior obscuro deste.
“Quel temps, quel temps affreux,” ele murmurou, mas numa voz
exaltada, e procurou os olhos do prisioneiro para confirmação.
E quando Roberto não sabia o que fazer ou dizer, o juíz inclinava-se
para frente, vindo com o rosto gigante para mais próximo de Roberto, a
boca cavernosa forrada com dentes lustrosos e gengivas rosadas, nas
quais a saliva brilhava, e parecia exalar um imenso, “ENTÃO? Você não tem
nada a dizer?” até que Roberto se engasgasse, “Oui, monsieur le juge...
Tempo horrível, tempo horrível, de fato!”
Em seguida, o corpo robusto saiu, a coroa de sorrisos se formou
novamente, os lábios gordos alardearam, enquanto os olhos minúsculos e
brilhantes enterrados na gordura prendiam o prisioneiro, “Mas foram devido
a uma mudança,” com um gesto depreciativo dos dedos brancos como
salsichas. Um pronunciamento que Roberto apoiou entusiasmado.

Após algumas formalidades preliminaries e questões endereçadas ao


comissário e a um cavalheiro austero, o zelador do cemitério (Roberto o
conhecia de vista), o juíz exigiu do acusado, “Você não conhece o Artigo 37
do Capítulo 7?”
“Não, monsieur.” Roberto tremeu.
“O que?! Você é um cocheiro no serviço funerário e não sabe
que essa contratação privada de cocheiros é proibida ?”
“Sim, monsieur, eu sei disso.”
O juíz olhou para esse homem que ao mesmo tempo sabia e não sabia.
“E o Artigo 38? Você conhece este?”
“Não, monsieur.”
“No qual a entrada num cemitério durante a noite está proibida?” “Sim,
monsieur, eu sei disso, mas...”
Felizmente, isso foi demais para o juíz. “Você sabe ou não?” ele gritou.
“Eu sei, eu sei,” Roberto repetiu fracamente.
“Então me conte, quais são os Artigos 48 e 49 do Capítulo 10?” Incapaz
de se expressar habilmente, Roberto gaguejou, “Eu não sei.”
Com isso, o juíz desistiu. Sentou-se de volta, encolheu os ombros e
disse num tom de desgosto total, “O 48 proíbe cachorros; O 49 proíbe que
pulem os muros. E já que você não conhece nada das muitas regras que
são aplicadas a sua própria ocupação, as quais estão informadas em
todos os lugares para que você familiarize-se com elas, eu duvido que
você conheça o Artigo 360 do Code d'Instruction Criminelle.”
Como Roberto não respondeu nada, a voz do juíz aumentou. “Fale!”
Roberto confessou a ignorância às pressas.
“Sera puni d'un emprisonnement et cetera,” o juíz entonou. “Quem se
apresentar culpado da violação de tumbas ou sepulturas deve ser punido com
prisão de três meses a um ano, e com multa de dezesseis a duzentos francos.
Isso não é para limitar a sentença concedida a quaisquer outros
crimes ou infrações com as quais possa esta associada. – Esta última
frase aplica-se ao roubo da carteira,” ele acrescentou à explicação,
generosamente.
“E deixe-me ler para você a decisão da Cour de Cassation de vinte e três
de junho, de 1866: 'Pela violação de sepultura ser um crime, a intenção do
culpado deve ser apresentada. Mas a simples violação da sepultura implica
necessariamente a intenção de insultar os mortos.'
“A lei nos fornece pinceladas delicadas, aqui,” o juíz admirou. “O
crime da violação de tumbas deve recair sobre as intenções do culpado. Para
ter certeza. Porém, essas intenções são plenamente culpáveis se a tumba foi
violada.” Ele sorriu satisfeito. Apreciava a sutileza da lei. Mais uma vez, o seu
rosto esvaía amizade, irradiante de amor, dirigiu-se ao prisioneiro, “Você
percebe como nossa lei beneficentes estendem a sua proteção até mesmo
sobre os mortos. Nenhum cadáver tem o que temer na França.”
Humildemente, Roberto apressou-se a confirmar isso.
Em seguida, a questão do roubo foi retomada e, quando a lei foi exposta
a respeito desse assunto, Roberto foi solicitado a fazer uma declaração. O
greffier coletou a versão dele, de como havia sido acusado de querer ganhar
um dinheiro extra e planejado divider essa quantia com alguns poucos
funcionários, cuja ajuda ao caso foi indispensável. Fora isso, entretanto, ele
não fez nada. O General lhe deu dinheiro. O túmulo já estava violado quando
foi descoberto. O General ficou desmaiado, e ele fugiu em terror.
Com isso, a audiência estava completa. Agora o juíz não tinha mais
obrigação além de decidir se haveria necessidade de manter o prisioneiro para
um julgamento ou não.
Essa decisão não estava longe de achar. Honestidade e inocência nunca
envolveram contradição. Somente o crime envolve os homens em tal
emaranhado de saber e não saber. Enquanto isso, ele foi transferido à prisão
Grande Roquette: “...dentro de um arremeçar de pedra da cena do crime em
Père-Lachaise,” assim o juíz expressou, e lá estava Roberto para aguardar a
recuperação do General, quem iria testemunhar contra ele.
Roberto juntou as mãos em oração. “Mas o General sabe que sou
inocente!”
Para a qual o juíz atribuiu um dos seus sorrisos mais gentis. O rosto
enorme quase explodiu com tal jovialidade. “Então, é claro, ele dirá isso no
julgamento.”
“Mas e o meu trabalho − minha família?”
“Isto é um tribunal, meu amigo, não o céu. A lei pune o crime, não
recompensa a inocência.”
Enquanto João Roberto estava sendo levado para fora, o juíz observou,
“Por que a ignorância da lei é tão universal?” Ele recolheu os ombros. Foi
como se um terremoto houvesse levantado montanhas. As dobras grandiosas
do seu manto fluiram como a maré. E a majestade da lei levantou para se
retirar por um momento, aos lavatórios recém-instalados, molhados pela
água, da melhor maneira inglesa.
Infelizmente, nesse momento inoportuno, o General escolheu respirar
o último suspiro. Os jornais recordavam, naturalmente, o destino árduo que
o atingira nos últimos dias, por isso, o assunto chegou ao conhecimento de
Aymar. “Bertrand fez isso,” observou para ele mesmo, pensando em
Vaubois. Quanto mais ele pensava sobre isso, mais convencido ele
ficava. Apressou-se para a penitenciária para ver o juíz Le Verrier.
Apresentado, ele começou de uma vez “Acho que conheço o criminoso
de Père-Lachaise. Digo, acredito que sei quem é o responsável pela mutilação
do corpo da criança.”
“Mesmo?” o juíz sorriu largamente, mas sem o calor que poderia
iluminar o seu rosto como a entrada de uma fornalha.
“Um homem jovem, com que eu vivi por muitos anos e que tem
mostrado essa propensão em ocasiões anteriores.” “Qual é o nome dele?”
“Bertrand Caillet.” “De Paris?”
“Acho que ele está vivendo em Paris agora. Ele fugiu de casa.” “E? – Mas
você sabe que nós já prendemos o criminoso?” “Eu sei, mas o homem que
está com vocês pode não ser o culpado desse ato.”
“Esse será um assunto para o júri e os juízes decidirem,” o juge
d'instruction ponderou friamente.
“Mas talvez o homem que você está prendendo saiba alguma coisa do
culpado de verdade. Quero dizer, de Bertrand Caillet. Há um homem que
deveria estar atrás das grades. Até que ele comece a cometer crimes, você
não ouvirá sobre o seu fim; haverá uma série inteira.”
O juíz inclinou-se para frente até que o queixo da cabeça imensa
descansou em cima da mesa dele. E, assim, ele falou, enquanto balançava a
cabeça para cima e para baixo, conforme o queixo se mexia na formação das
palavras.
“E se eu prendesse you, haveria mais crimes?” “Eu? Por que? O que eu
tenho a ver com o assunto?”
O juíz levantou a cabeça para trás. Decididamente, o mundo dos
homens, desabituados na lei, estava replete de contradições. Primeiro,
sabiam, depois não sabiam; primeiro uma coisa, em seguida, o seu oposto.
“Achei que você tivesse algo a ver com este caso! Mas se você não tem
nada a ver com o assunto, então, por que você está metendo o seu
nariz aqui?” A sua voz aumentou ao volume de trovão.
Aymar encolheu-se para trás, murmurou algumas desculpas e mancou
para for a o mais rápido que conseguiu.
No entanto, ele continuou a consultar os jornais e foi recompensado no
dia seguinte com outra violação de um túmulo fresco em Père-Lachaise.
Depois, houve especulações no cemitério de Montmartre e mais um em
Lachaise. Apesar da recepção grosseira do juge d'instruction (ele
estremeceu ao pensar o que haveria acontecido se ele explicasse a natureza
real do caso para esse homem), Aymar decidiu ver o conservateur no
cemitério de Montmartre. Este era um homem velho e gentil e, quando o
funcionário lhe trouxe o propósito da sua visita, logo o admitiu e apresentou-
lhe ao conservateur de Père-Lachaise, que aconteceu de estar presente.
“Nós ficaremos interessados em ouvir o que você tem a dizer, pois
chegamos a uma conclusão surpreendente.” “Qual é ela?” Aymar perguntou,
relutando às pressas para presumir que descobriram o lobisomem. “Conte-nos
primeiro o que você tem para dizer.”
“Há um homem jovem, um parente distante, que pelas redondezas da
nossa província demonstrou uma inclinação igual.” “Hum.”
“Recentemente, ele veio para Paris, e estou procurando por ele, já que
sei, um pouco, como contê-lo.” “Hum.”
“Bem, e eu imagino que isso seja seu trabalho.” “Receio que o seu caso
há pouco a ver com o nosso.” “Por que?”
“Um exame muito cauteloso das pegadas ao redor das sepulturas
profanadas mostra que, tanto aqui como em Lachaise, o caso involve não um
homem jovem, mas −”
“Mas um lobo,” Aymar interjeitou, “− ou um cachorro,” acrescentou
rapidamente.
“Como você sabia? Nós não tínhamos pensado num lobo. O que faz você
dizer isso?”
“Ora, veja, ele, ah, ora, ele tem um cão treinado (meio lobo, entende), e
esse cachorro o ajuda.”
“Entendo,” disse um dos dois cavaleiros. Ele pediu a Aymar muitas
informações, nomes, detalhes, etc., para quem este o respondeu o melhor
que pôde, enquanto o conservateur fazia anotações.
“Bem, esperamos ver o final disso em breve,” ele confessou para
Aymar. “Todas as noites, nós estamos colocando armadilhas pesadas perto
de cada cova recém-cavada, e o saqueador, homem ou cachorro ou lobo, os
todos os três, logo estará dentro de um par de aletas poderosas e
desconfortáveis.”
“O único problema,” disse o outro, “é que a guerra logo se mudará
para nossos cemitérios. Tanto aqui ou em Lachaise, canhões são montados,
para que Paris esteja numa posição de resistir, se as fortificações de fora
falharem, que Deus me livre!”
“Você acreditaria,” disse o primeiro dos dois cavalheiros, “que as
pessoas estão com muita pressa para morrer, do jeito que há uma guerra atrás
da outra neste mundo. Eles imaginam que, caso não se matem, estarão
prestes a morrer nunca? Garanto que eles estão com uma noção equivocada,
se tiverem. Desde que me lembro, nunca vi um dia sem funeral.”
O turno lúgubre e reminescente da conversa permitiu que Aymar
escondesse o pavor: coitado de Bertrand, deformado numa armadilha de aço
ponderosa. Ora, por que não? De um jeito ou de outro, isso tinha que terminar.
Ele foi para casa e aguardou. Porém, nada aconteceu. Aparentemente,
as violações tinham parado. Passaram cinco dias, e a investigação no cemitério
revelou nenhuma outra tentativa de desacomodar qualquer túmulo.
O conservateur disse, “Ou nos enganamos sobre a teoria do cachorro, ou
ele também consegue farejar nossas armadilhas. Mais do que provável, você
está certo, Sr. Galliez, e é um homem. Talvez um dos nossos próprios
funcionários ou relacionado de alguma forma com nossa equipe. Que
outra consideração para o fato dessas espoliações quase diárias
pararem de repente, colocando-se armadilhas, e nos últimos cinco
dias não haver sequer uma única repetição?”
CAPÍTULO ONZE
O artigo do décimo sétimo dia de novembro do Messager de Galignani,
continha, entre outros faits divers, um item imperceptível que chamou a
atenção de Aymar, enquanto ele estava olhando essas páginas e,
naturalmente, fisgou-lhe de vez.
“Em tempos de guerra, contos de lobos depredando Paris estão
sempre à tona. Eis aqui uma lenda que nunca morrerá. A brutalidade
do inverno chegando, anunciada pela friagem recente e a fome que
agora reina nas mazelas da nossa cidade conspiravam para reviver,
mais uma vez, esta lenda imperecível. Nos bairros mais periféricos,
fala-se de um lobo, alguns dizem, até mesmo, de bandos de lobos (!), e
um informante nos faria acreditar que uma espécie de lobo fosse mesmo
protegida e levada ao Jardin d'Acclimatation para identificação. O que
aconteceu por lá ficou vago. Nunca é sábio subjulgar uma lenda com o
o nosso cientista estimado A. Geoffroy Saint-Hilaire.”
O assunto provocou um espasmo repentino em Aymar. Logo, ele já
estava certo de que a história tinha fundamentos da verdade e que estes não
eram nada menos do que Bertrand. Conexão remota, na verdade. Mas no
estado mental em que estava, após semanas em Paris, sem nenhuma
prova de Bertrand, exceto uma série de crimes horrendos, aos quais
ninguém além dele mesmo atribuiu a um monstro homem-lobo, ele era
capaz de medir até mesmo a menor pista e encontrar tudo nela, como
um microscopista descobre populações inteiras numa gota de água suja.
“Como um lobo viria à Paris?” perguntou a ele mesmo. Pela fronteira
com a Alemanha? Ridículo! Ergo que o lobo era nosso Bertrand. Ele formou-
se em Paris! Um salto distante, mas não tanto quanto Newton fez da
gravidade da lua a partir da queda de uma maçã. Sim, isso era uma pista.
Definitiva e direta. Mais do que isso, valeria a pena investigar até a menor
chance. Ele concluiu.
A fome em Paris, da qual o artigo do jornal falava, havia atingido
proporções consideráveis, se estivéssemos autorizados a falar que mais nada
atingiria essa magnitude. Apesar do problema da alimentação em Paris haver
surgido assim que começaram as hostilidades, sendo quase uma cidade
fronteiriça e exposta ao avanço do inimigo através da distância curta do
território francês, nada foi feito até a noite de quatro para cinco de agosto,
quando o perigo ficou mais agudo. O governo recebeu uma mensagem
anunciando a derrota em Wissembourg.
Mister Henri Chevreau, quem substituiu recentemente o infame
Haussmann, embelezador de Paris, como Prefeito do Sena, reuniu-se à
comissão dos conselheiros e funcionários municipais, para arrecadar
suprimentos alimentares suficientes, carnes, feno e grãos para
cavalos, sal, vinho, etc. Embora o corpo legislativo fosse
assegurado repetidamente de que tudo havia sido feito para
salvaguardar Paris da fome durante um longo período de cerco, e apesar
de decorrerem mais de seis semanas desde que a cidade foi investida por
completo, contudo, declararam por vez escassez de comida e aumento
consequente nos preços. O racionamento do governo não conseguia
ajudar. Os pobres logo tomaram o assunto filosófica e indulgentemente
como sempre. Perceberam que toda vez, depois do anúncio das
negociações de paz, falso como todos anúncios devem ser, a comida
reaparecia em quantidades nas barracas, e os preços despencavam. Todos
que estavam numa posição para fazer isso, acumulavam comida, esperando
por lucros maiores, porém, assustados em parte para soltarem os próprios
estoques na perspectiva do cerco terminar de repente. Havia mesmo
quantidades enormes de comida em Paris, mas o lucro privado estava
manipulando o mercado.
O nome de Geoffroy Saint-Hilaire também chamou a atenção de
Aymar. “Saint-Hilaire?” disse para ele mesmo. “Justamente esta
combinação: Geoffroy Saint-Hilaire. Agora me pergunto. Esse poderia ser o
mesmo sujeito que estou acostumado a conhecer?” Se sim, o seu trabalho
seria mais fácil. Geoffroy Saint-Hilaire não poderia tê-lo esquecido e extenderia
a ele cada cortesia. Deve ser o mesmo. Os Geoffroy Saint-Hilaires sempre
estiveram relacionados com zoologia.
Naquela mesma tarde, Aymar, por ele mesmo, entrou em contato com o
escritório do director do Jardin d'Acclimatation. O director estava muito
ocupado, pelo visto.
“Conte para ele,” disse Aymar, “que eu o conhecia desde quando ele
nunca estava muito ocupado.”
O funcionário retornou ao escritório do director. Em seguida, Geoffroy
Saint-Hilaire – neto do famoso Geoffroy Saint-Hilaire, cujas notícias das
descobertas pareciam para Goethe mais importantes do que o destino dos
reinos – surgiu e disse com pressa, “Monsieur...” como se quisesse acelerar
as coisas e voltar ao trabalho o mais rápido possível. Assim, exitou,
“Tiens, c'est toi, Aymar!”
Eles se cumprimentaram. “Et alors?”
Após algumas frases sobre os seus respectivos destinos, Aymar quis
chegar ao ponto. “Eu ouço dos jornais,” disse, “que um lobo foi trazido para
cá.”
O diretor riu de nervoso. “Um lobo? Ó, sim. Ha, ha! Os jornais, claro.”
Então, ele ficou muito sério. “Você está interessado nesse lobo?”
“Sim, profundamente,” Aymar exclamou. Atingindo, assim, a sua própria
emoção, tentou explicar, “É exatamente por isso que liguei. Entenda, vou
explicar.”
“Não precisa,” disse o directeur calmo e sério, “meu amigo, tenho
medo de ver tudo muito bem.” Ele hesitou, enquanto Aymar estremecia.
“Deixe-me ver agora,” continuou. “Hum. Estou muito ocupado agora,
mas sua visita é muito oportuna. Estou convidando -o para o jantar
com Maubert. Você o conhecia? Maubert, o grande Maubert? Não? Ora, de
qualquer jeito, ele não pode vir, então você pode ir comigo. Encontre-
me daqui duas horas. Nós vamos jantar juntos. Sim, você deve me
encontrar aqui,” ele concluiu apressadamente. Um pouco nervoso, Aymar
refletiu.
“Mas e o lobo?”
“Sim, precisamente. O lobo,” repetiu um tanto misterioso e voltou ao
escritório.
Aymar, pasmo e entusiasmado, revirando em vão mais de cem
especulações mentalmente, retornou para casa para se vestir e seguir direto
ao encontro com o velho amigo, dali duas horas. “Ele sabe de tudo,” era o seu
pensamento, mas quando o directeur apareceu, de certo, não deu nenhum
sinal disso.
Geoffroy Saint-Hilaire recebeu Aymar amigavelmente debaixo dos
braços e levou-o ao portão onde uma carruagem esta esperando. Eles
partiram com um bom tempo.
“Aonde?” Aymar questionou.
“Ao Dr. Anatole de Grandmont.” “O lobo?” Aymar perguntou. “Shiu!” O
amigo respondeu.
O trajeto foi curto. Em pouco tempo, eles já desembarcaram e entravam
num casarão antigo. A sala de jantar, visível pela sala de estar, estava
esplendidamente Iluminada, a mesa para dez reluzia com porcelana fina e
vidro, com pratos de prata e de ouro, tudo colocado sobre um pano de neve.
Aymar foi apresentado. “Pobre Maubert não pôde vir. Tomei a
liberdade de trazer um velho amigo, Sr. Aymar Galliez, um republicano
antigo. O Sr. le docteur Anatole de Grandmont, nosso anfitrião, Sr. de
Quatrefages, e Sr. Richard du Cantal, vice-presidentes da nossa sociedade.8
Sr. Demarets, o famoso −”
“Nós nos conhecemos,” disse Aymar. Eles apertaram as mãos.
“Sr. Decroix, nosso propagandista celebrado pelo uso da carne de
cavalo.” “Mais rico, mais forte e melhor para a saúde,” disse Sr. Decroix com
seriedade. “Sr. Graux, cujo pai fez as ovelhas produzirem seda.”

8
A Sociéte impériale zoölogique d'acclimatation.
“Sr. Degient.”
“Sr. Giraudeau.”9
Ocorreu para Aymar que havia algo sobre esta reunião. Era natural,
claro, que estivessem interessados na criação de animais, mas havia algo mais.
Um sussurro constante, risadas e, em geral, algo importante para este
encontro que não conseguia entender. Até que ele ouviu “Você vai continuar
com isso, é claro.” − ”Receio que estou cedendo rápido,” respondeu a pessoa
para quem ele se dirigiu.
Tentando ficar próximo do amigo, Geoffroy Saint-Hilaire, portanto, em
segurança, Aymar falou. “E sobre aquele lobo.”
“Você vai aprender na hora,” o directeur o interrompeu com pressa.
Poderia ser, Aymar se questionou, que todo o mistério foi descoberto e
isso era o que provocou esse zumbido de excitação reprimida?
Nesse momento, o anfitrião chamou à companhia para falar.
“Cavalheiros! Atenção, por favor! Vejo que o propósito do nosso
jantar nesta noite não permaneceu tão secreto quanto gostaríamos
que fosse. Pouco importa. Todos sabem que este é um momento de
perigo grandioso para nossa patrie amada e nossa querida cidade de
Paris, a joia da Europa. Aqui estamos nós, próximos aos dois milhões
de nós, e há uma infeliz falta de comida. Nossos inimigos sabem disso e
dependem desse fator para provocar a nossa decadência. Mas, se Deus quiser,

9
Foi este Sr. Giraudeau quem alcançou espécies de notoriedade durante a
fome, quando o queijo era absolutamente improcurável por amor ou
dinheiro, por carregar uma pequena fatia de fromage de Brie num cachecol de
ouro.
conseguiremos resistir até que as províncias reúnam as próprias forças e
venham correndo ao nosso resgate sob a liderança do leal Gambetta.
“Nós, também, temos nosso pequeno trabalho para fazer. Nós,
também, podemos ajudar. Nós, também, cavalheiros, temos um plano
pequeno. Não é uma invenção que derrotará exércitos, nem um esquema
para uma sortie en masse, não é nenhum dos planos do nosso querido Trochu
ou qualquer outro dos nossos generais valentes. Isso é, meus
queridos amigos, uma contribuição da ciência zool ógica para a
humanidade. Não somente para a nossa cidade arrasad a, não. Para o
mundo inteiro, limitado atualmente pela escolha dos alimentos a um
número muito pequeno de animais.
“Esta é uma ocasião histórica. Todos nós temos razões para lembrar
disso. O mundo nos honrará por este passo de coragem. Essa explosão
de amarras que só o preconceito ridículo forjou, e a tradição
temperou.
“Cavalheiros, que esta seja uma ocasião alegre. Nós, todos colombos,
prestes a explorar um novo mundo, a descobrir um novo gosto nas
refeições e novos nutrientes nas comidas. Que esta seja uma ocasião
alegre, como eu disse. Já ouviram a piada que está tomando Paris numa
tempestade? Ela anuncia uma era nova. Vamos jogar fora nossas noções
velhas de ocultar-limitar e mergulhar com um sorriso.
“A piada? Sim, aqui está: Nosso bom burguês de Paris, fortemente
pressionado a colocar uma mordida entre os dentes, sacrificou o seu
cachorro no altar do apetite grandioso de Deus. Ele e a esposa
sentaram-se em silêncio e consumiram o querido fox terrier. Ela olha para
cima depois de um tempo e percebe o marido colocando os ossos ao lado do
prato com cuidado, assim como ele sempre fez.
“'O que você está fazendo?'
“'Ah,' depara-se com ele mesmo e suspire. 'Que pena,' ele diz,
balançando a cabeça. 'Fido iria gostar desses ossos, com certeza.'”
Embora a piada não fosse nova para alguns convidados, houve uma
explosão de gargalhadas gratuitas, e a sociedade encheu a sala de jantar
vizinha e ocupavam os assentos. Aymar estava começando a entender.
Apenas começando.
A sopa estava excelente. Os convidados continuaram dizendo tanto de
novo e de novo, em especial Sr. Decroix, o Defensor da carne de cavalo como
comida humana. E a razão já estava muito simples. Assim que o curso foi
liberado, o anfitrião anunciou que a sopa era, “Consommé of horse, with
millet.”
Entraram os relevés (os aperitivos). Mais exclamações de deleite. O
cozinheiro foi chamado para receber as congratulações. Aymar, um pouco
confuso, provou os pratos, achou todos agradáveis e se surpreendeu. Depois
de uma discussão animada entre os convidados, o anfitrião, lendo um pedaço
de papel, anunciou, “Nós tivemos um espeto assado de fígado de cachorro, a la
maître d'hôtel; e picadinho de gato, com molho de maionese.”
Aymar controlou o estômago. Mas claro que foi só uma
brincadeira. Ele virou-se ao amigo, por assistência, mas Geoffroy Saint-
Hilaire estava ocupado anotando no verso de uma carta. As entradas vieram.
As quais foram reveladas em seguida, como: Ombro assado e bife de cachorro
com molho de tomate; Ensopado de gato com cogumelos; Costela de cachorro
com ervilhas verdes; Ragu de carne de veado e rato, ao molho Robert.
Seguiram-se os assados, servido em pratos grandes, enquanto Aymar
estava pronto para afundar debaixo da mesa. Se os companheiros
científicos não fossem objetivos demais em comportamento,
degustação, crítica, discussão e comparação, ele haveria dado um jeito
há muito tempo e desmaiado. O assado era perna de cachorro e
guaxinim, ao molho de pimenta; Salada: Begônias com molho e frios de
ratos cozidos; Sobremesa: Pudim de ameixa com rum e medula de cavalo.
E ainda chegavam, prato atrás de prato.
Finalmente o repasto foi encerrado. Os mais espertos apenas provaram
de cada comida, para que não fossem engolidos. Quando todos sentaram-se,
com os apetites saciados, Geoffroy Saint-Hilaire foi convidado a ler o seu
relatório.
“A sopa estava excelente. Alguns acharam o milheto um pouco duro,
mas ninguém tinha nada além de elogios ao sabor.
Nossa repugnância pelo fígado de cachorro, assado nos espetos, logo
foi esquecida quando provávamos esse preparo delicioso de verdade. O rim
de cordeiro foi considerado ser o equivalente mais próximo, mas abaixo do
fígado de cachorro na ternura.
Sugestões secundárias foram frequentes para o picadinho de gato. É
uma carne branca, lembrando vagamente frios de vitela, porém, mais
prazeroso. Recomendado aos inválidos.
O ombro assado e o bife de cachorro foram apreciados em demasia e
julgados não diferentes da carne de camurça.
O ensopado de gato, apesar de um pouco duro, estava tão saboroso
que não havia um número grande de pratos, muitos pediriam por mais,
satisfeitos.
Muito vinagre (acredito que os outros convidados vão concordar comigo
sobre isso) foi usado nas costelas de cachorro. Essa carne é muito pegajosa,
mas não ruim.
Nenhum de nós haveria outra palavra além dos elogios para o ragu
requintado de ratos. É comparável apenas à carne de andorinhas.
A perna de cachorro é extremamente comestível, mas um pouco grossa
na textura. As melhores partes foram aquelas mal passadas, com sangue;
poucos se importavam com o guaxinim, pois estava sem sabor.
A salada de begonia tinha uma reminescência de castanha. Acredito
que temos um corretivo excelente para uma dieta de carne salgada
muito exclusiva. Isso deve ser investigado; frios de rato são
enganosamente como carne de camarão; alguns acusaram o cozinheiro
de pregar um truque em nós.
O grande sucesso da noite continua sendo o ragu de ratos. Eu não
consigo entender como o mundo rejeitou essa comida deliciosa. Eu, por
exemplo, estou convertido. Daqui em diante, com ou sem fome, meu cardápio
deve estar frequentemente adornado com carne de rato, e meus convidados
aprenderão a amá-lo tanto quanto eu. Sim, vejo uma nova indústria grandiosa,
os ratos selvagens estão exterminados de uma vez pela nossa gastronomia,
eles serão criados nas fazendas, e a reprodução irá melhorá-los, se, de fato,
pode-se pensar em qualquer melhoria.
Deixo a palavra para o público desta sala. O rato é uma comida boa! Não
imagino que alguém tenha tantos ratos para fazer uma refeição. Um rato, pele
e osso, pesa cerca de duzentas gramas de carne, das quais trinta gramas são
do fígado, muito gordo e suculento. E um julgamento irá convencer e
convertê-los.
Uma única crítica e um único aviso antes de concluir:
A crítica: Nosso cozinheiro agiu corajosamente, mas errou na
tentative de esconder um sabor diferente da carne com molhos
pesados. Essas carnes se tornarão apreciadas, em breve, pel a
peculiaridade de sabor delas.
O aviso, que deveria estar postado pelos muros da nossa cidade: 'A
carne de rato deve ser cozida antes do preparo para evitar trichinosis,
conforme observado em algumas ocasiões.'”10

10
Aqui, como em todos os lugares, deve-se observer o percurso dos negócios.
Como a Société of the Jardin d'Acclimatation determinou ser cada vez mais
difícil de assegurar comida animal sob cuidados, elas foram vendidas para
empresas açougueiras e restaurantes finos, os quais poderiam, como
resultado, oferecer, apesar dos preços altíssimos, carnes raras e aves, como
casuar, ostra, dingo, anta, canguru, etc. Por curiosidade, a venda de dois
elefantes, Castor e Pollux, os quais foram vendidos ao encarecido açougueiro
Deboos por 27,000 francos. Essas feras pesadas, por vinte e cinco anos
adoradas pelas crianças de Paris, que cavalgavam 50cm nas suas costas,
foram apreciar os pratos do Jockey Club e outros locais de alimentação para
ricos. Os dois elefantes, enfrentando a própria desgraça, não desconfiaram.
Sendo submetidos a tanta bondade durante a vida toda, eles não podiam suspeitar
de nada além de bondade na motivação e nas ações daqueles que lidavam com eles
no matadouro. Houve discussão sobre como a matança poderia ser melhor feita.
Geoffroy Saint-Hilaire sentou-se em meio à salva de palmas. Agora era
servido o vinho do porto, no estilo inglês, e Aymar pegou uma taça e bebeu,
ansiosamente, para aquietar o estômago rebelde.
O jantar foi consumido por tanto tempo que os convidados logo se
separaram. Aymar preparou-se, apto para expressar agradecimentos
efusivos pelo jantar delicioso e por uma experiência singular.
“Claro,” disse Geoffroy assim que eles saíram, “esse foi apenas o
início. Nós ainda não tocamos no mundo dos insetos.” Ele estufou o
peito com orgulho e satisfação. “Venha, vamos caminhar um pouco. A brisa
da noite está refrescante.” Aymar também achava isso.
“Sim, insetos. Você já provou um percevejo? Docinho, sabe! Fedido,
porém. Mas gafanhotos! Nada como você já provou. Precisamos de novos
termos quando chegarmos nisso. Sim, o homem é onívoro. Os zoologistas
sempre o classificaram o homem e o urso juntos nesse quesito. Mas por que
eles são tão tímidos quando precisam estender as mãos? Colombo! O velho
Colombo atingiu a nota certa aí.”
Aymar hesitou em interromper esse fluxo quase elegético dos
cientistas, que por um momento pareciam falar com o dom da profecia.
Vergonhoso, ele arriscou, “E o lobo...”

Por fim, um sujeito poderoso bateu um martelo enorme com todo a força dos
seus músculos volumosos. A madeira pesada partiu na testa de um dos elefantes.
A fera cambaleou, enquanto o sangue jorrava de um amassado enorme na frente
da cabeça dele. Ele olhou confuso por um momento, mas apenas pelo momento,
e, então, recuperou a garantia de vida que emanava do animal de duas pernas
apenas carinhos e comida. Pelo evento, um atirados professional foi contratado
para matar os brutos com balas certeiras. A carne foi vendida por mais de 142
francos o quilo.
Então Geoffroy Saint-Hilaire fez uma coisa curiosa. Virou-se para o
companheiro, e segurando as suas mãos, declarou com emoção, “Eu
sei, meu amigo, entendo. Não vamos dizer mais nada.”
O que ele entendeu? Aymar perguntava. Ele entendeu mesmo? Desde
a ceia, Aymar chegou a duvidar disso. Todos eles viraram lobos, ele
pensou. Bertrand os infectou, embora não saibam nada do meu lobo.
Mesmo que um homem falasse para ele “entende,” você abaixaria sua
cabeça em gratidação. Aymar abaixou a cabeça. Eles caminharam em
silêncio.
“Se eu soubesse, meu caro Galliez, você pode confiar em mim… Acha
que foi cruel da minha parte? Mas, ah, ah, vamos pensar assim: foi como a
piada que a vovó nos contou.”
“Foi o que?”
“A piada sobre o cachorro.”
“A piada do cachorro?”
“Veja, eu já sabia, quando você chegou com essa de lobo, que você
compreendia que não havia lobo. E quando disse o quanto estava interessado
no assunto, logo entendi.”
“O que você entendeu?” Aymar perguntou, ainda sem acompanhá-lo.
“Que ele era o seu cachorro. Claro, qualquer um poderia ver que não
havia lobo além do cara do jornal. Ele queria uma história. E nós queríamos um
cachorro para nossa cozinha. E, então, pensei. Se eu não disser nada, isso não
seria maldoso? E um pensamento feliz me surpreendeu: eu poderia levar você
e, pelo menos, estaria no funeral dele. Melhor do que nada, não seria? Muito
triste, com certeza, mas − ”
O “pensamento alegre” perfurou Aymar como uma lâmina de aço frio. O
lobo ou cachorro foi servido na ceia infernal! Bertrand! Eles comeram
Bertrand! A carne dele era delicada no sabor, mas um pouco pegajosa! Deus
Todo-Poderoso!
Com o terror formigando em cada nervo do corpo, ele saiu correndo sem
nenhuma palavra.
“Mas, Galliez... me perdoe,” ele ouviu a voz do diretor gritando para ele.
Entretanto, Aymar fugiu, como se uma matilha de lobos estivesse mordendo
os calcanhares, o estômago embrulhando. Ele parou num interval escuro e
vomitou até que ficasse fraco e limpo.
No entando, apenas quando jornais da manhã vieram com outro crime
horrível e sangrento que ele se sentiu melhor. Eles não tinham matado
Bertrand. Bertrand ainda estava vivo. Testemunho disso: “Na Rua de
Budapeste, vivia La belle Normande, assim chamada, ou melhor, assim
se autointitulava, a fim de atrair a clientele da província, uma
prostituta honesta, altamente respeitada na própria vizinhança, se
não em qualquer lugar. Ontem à noite, um jo vem de aparência
extrangeira, com o uniforme da Garde Nationale, como afirma o
porteiro, foi para casa com La belle Normande. Os dois descansaram e não
foram mais ouvidos até que o seu serviço foi desvendado. Nesta manhã, La
belle Normande requer um successor para os afetos numerosos dos
compatriotas de Paris. Ela, ela mesma, está morta. Cortada por um
instrumento áspero e grosseiro. Despedaçada, literalmente. Assim ele foi
encontrada, deitada numa poça de sangue, no chão do apartamento dela.
Parece que nada foi roubado. Será que o londrino Jack, o Estripador,
atravessou o canal? A polícia está vasculhando os batalhões da Garde.”
A natureza do ação traiu o verdadeiro culpado. Então, Bertrand estava
na Guarda Nacional. Mas é claro. Todos os jovens estavam lá.
CAPÍTULO DOZE
Aymar deduziu corretamente. Bertrand estava na Guarda Nacional.
Onde qualque jovem estaria durante o cerco em Paris, mas na Guarda
Nacional, como teve certeza do seu solde11 diário? As oficinas estavam
vazias, não havia serviço a ser feito, e nenhum homem precisaria se
preocupar com a Guarda Nacional preparada para assumir qualquer um
que estivesse disposto a assinar o nome. Quanto ao trabalho atual, isso
era outro assunto. Quando foi decretado que os soldados elegeriam os
próprios oficiais, a disciplina estava feita, uma vez que grande parte dos
oficiais ficou mais interessada em agradar os homens e em conservar os
cargos do que em planejar uma resistência efetiva contra os prussianos.
Bertrand, tendo esgotado logo o dinheiro com rodadas de
deboches na busca de repetir o prazer que teve com Tereza, foi
persuadido com facilidade por um conhecido a participar da Guarda Nacional,
o que ele fez sob um nome levemente alterado, explicando, assim, como
Aymar não conseguiu encontrá-lo nos registros.
Naquele período tumultuado não havia muito tempo para os
funcionários fazerem as investigações. Muitos homens inscreveram-se nos
batalhões diversos com nomes diferentes e, então, recebiam muito mais
pagamentos. Somente alguns poucos imbecis negaram ter esposas e filhos,
por isso perderam os aumentos, por irem com uma família para sustentar. Os
oficiais eleitos, também estavam tentando tapear as listas e receberem
pagamentos por mil homens, quando poderiam reunir apenas oitocentos,

11
Equilíbrio (nota da tradução).
embolsando as diferenças, ganhos bem-merecidos pela astúcia.
Porém, não é certo exigir virtudes dos pobres que morreriam de fome
para praticá-las. Seria melhor perguntar o que os parisienses ricos estavam
fazendo. Sem dúvidas quanto a isso, eles estavam fazendo a parte deles no
trabalho patriótico e sendo bem recompensados por isso, como os ricos são,
em geral.
Bertrand, durante esses dias, esteve muito pressionado a satisfazer
esse apetite escondido, o qual vinha entendendo com clareza há
pouco tempo. Porém, agora, consciente por completo do lado oposto da
sua natureza, regulou o modo de vida a fim de satisfazer essa necessidade
sem riscos contra a própria segurança. Ele alugou um quarto barato num
porão, nos fundos de uma casa. Uma janela, a qual poderia deixar
aberta, permitia-lhe escapar e retornar despercebido pela noite.
Durante o dia, ele a fechava com cuidado, tendo o trabalho de comprar e
instalar um novo trinco. Ele fez o mesmo com as porta, resguardando-se,
então, de qualquer intrusão possível da porteira, uma intrometida que queria
ser a sua mãe, cuidar do quarto e consertar as suas roupas.
Ele sabia quando um ataque estava vindo. Durante o dia ele não teria
apetite. Em particular, era a ideia do pão com manteiga que o nauseava. Pela
noite, sentia-se tenso, cansado e sem sono. Depois arranjava a janela e
trancava a porta, e tendo tomado essas precauções, deitava-se. Muitas vezes
ele acordava pela manhã, na cama, sem recordações do que havia acontecido
durante a noite. Apenas uma rigidez no pescoço, uma lassitude nos membros,
que poderiam vir de nada além dos quilômetros percorridos, arranhões nas
mãos e nos pés, e um gosto pungente na boca indicavam que havia passado a
noite em outro lugar. Numa dessas ocasiões, entretanto, essa plena convicção
o aguardava quando se levantou. Debaixo da cama, ele vislumbrou um flash
branco. Era um antebraço humano! De um homem. Os dedos estavam
agarrados firmemente num punho. Cabelos, como se arrancados de um
casaco de pele, escapava dos interstícios entre os dedos.
Ele vasculhou o cérebro. Onde? Quem? Evidentemente, um homem
com um casaco de pele. Imagens vagas dele mesmo saltitando em alegria
pela neve e pela lama, com um vento carregado de cristais congelados
tomando as ruas desertas da noite, uivando entre o topo das chaminé e
capturando o fôlego dos pulmões arredores, voltavam para ele. Mas um
homem com um casaco de pele? Ele não conseguiu lembrar de nenhum
homem com um casaco de pele.
Conseguiu, no entanto, lembrar-se de uma concessão à sua natureza
inferior, que ele seguiu um funeral recente pelo Cimetière Montparnasse. Era
um dia frio e triste, muito nublado, com a sensação da neve no ar. Os
enlutados marcharam tremendo para trás, e Bertrand marchou com eles.
Os familiares e amigos não se importaram com o jovem de uniforme da
Guarda Nacional, que parecia estar de luto no seu jeito quieto. Nesses
momentos, respeita-se a dor dos outros e se fica satisfeito com qualquer
desculpa mental: um amigo do café, alguém para quem o falecido se virou
uma vez na vida, e assim em diante. Isso inclusive acrescentava um
glamour a Bertrand. O qual era reforçado pela sua timidez, pela saída
rápida quando a cerimônia acabou.
Apenas um idoso havia falado com Bertrand. Ele não fez muitas
perguntas. Aparentava estar mais ansioso para falar dele mesmo.
“Você é amigo da Madame ou de Blaise?” foi a sua única pergunta,
quando, por acaso, Bertrand respondeu precavido, “de Blaise,” e o
homem continuou em seguida. “Um estudioso, se alguma vez houve um. O
homem mais gentil que você já encontrou. Somente Deus sabe o que o levou a
se casar com uma garota tão jovem, quando ele tinha quase cinquenta anos! E
eu também alertei: 'Blaise,' eu repeti, mais uma e outra vez, 'você é um
velho besta. Uma garota jovem e animada como esse matará um velhote
como você. Ela vai sugar o sangue da sua vida. Você não será capaz de
suportar o ritmo.' Mas ele estava apegado nisso. Ela o enfeitiçava. – Mesmo
assim, nunca imaginei que o fim chegaria tão cedo. Quase três meses
casados.
“E saiba de uma coisa,” o velho prosseguiu, abaixando a voz a um
tom confidencial, “há alguma coisa com isso que eu não gosto. Dois dias
atrás, ele estava ótimo de saúde. Eu mesmo o vi e também conversei com ele.
No dia seguinte, morto, e no outro, enterrado. Por que essa pressa
incoveniente? E quanto à viúva, ela aparenta estar mais preocupada em
ficar numa pose elegante de luto do que abatida genuinamente pela
tristeza. Ah, ora. Blaise, meu amigo antigo, vai demorar muito até eu esquecê-
lo.”
Quando Bertrand lembrou-se dessa conversa, todos os outros
detalhes da noite voltaram para ele. A cova aberta, que foi deixada
sem preenchimento, por causa enterro tardio, o caixão, que agora
estava coberto com uma camada fina de terra e neve. E, depois, a briga
aterrorizante com um cadáver se recuperando de alguma droga pesada!
E, com isso, ele compreendeu mais alguma coisa. Não era a pele de um
casaco, mas a dele mesmo! Aqueles cabelos castanhos e cinzentos eram dele!
Logo, a sua mudança não era apenas uma maturação; nem uma simples
alteração do desejo dos próprios músculos, mas uma transformação
verdadeira!
Alguém acreditaria nisso? Como ele poderia arrancar uma tampa pesado
do caixão, com patas?
Havia um ponto nisso com o qual ele gostaria de se assegurar, porém, a
decisão de fazer anotações do assunto numa próxima ocasião foi de pouca
importância. Mesmo quando acordou do lado de fora e se viu deitado ao lado
de uma outra sepultura, ou de alguém que, por evidências, ele atacou pelas
ruas, ele não conseguia relembrar se foi uma besta ou só um homem agindo
como uma. Durante essas excursões, parecia que ele ficava incapaz de
pensamentos racionais e humanos, apesar de toda a esperteza necessária
para cumprir os propósitos.
Quando veio à Paris pela primeira vez, ainda possuía o que sobrou do
dinheiro roubado de Jacques e frequentava as maisons toléreés. Porém, logo
precisou abandonar essa forma de entretenimento, pois as garotas
parisienses eram experientes com o que tinhas e, assim como os
barbeiros, cobravam exorbitantemente por cada desvio do normal, por
cada atração adicional.
Com o salário pequeno de um soldado, Bertrand não podia pagar por
divertimentos caros. Ele procurou pelas ruas por material barato. Às vezes, foi
bem sucedido, mas na maioria delas, não. Depois, explodindo de raiva e
mau-humor, decidiria enganar alguma mulher das ruas, com grandes
promessas. Com frequência, essas façanhas amorosas terminavam em
assassinato. Exatamente por isso, tornou-se impossível encontrar
túmulos novos para despojar.
Há pouco a ser dito da vida dele como soldado. Os anais militares da
Guarda Nacional são vazios de interesse. Bertrand viu pouca luta. Desfilava,
por costume, via as festividades, escutava muita conversa sobre isso e o plano
de salvar Paris.
Ele fez poucos amigos dos companheiros. No final da tarde, quando os
deveres estavam concluídos, ía até uma cantina, bebia uma taça de vinho e
ruminava morosamente sobre a sua doença.
Uma cantina para a qual estava acostumado a ir era a favorita dos
soldados, não tanto pelos vinhos, mas pela jovem que doava muitas horas de
serviço à ela, quase todas as tardes. Ela era mais do que a beleza humana.
Era leve de estatura e não teria mais do que dezessete anos de idade; dentre
esses limites, o físico dela era de perfeição variada, daquela que transcende
roupas, e parecia cheio de graça, forte, envolto num manto selvagem, como
fazia com as roupas caras.
O seu rosto sombrio era um deleite perpétuo, de um sorriso
permanete transformava-se e revelava dentes cuja brancura era impecável.
Os olhos pretos e rápidos vagavam de homem em homem, ela tinha uma
palavra simpática e um riso para todos. Ela era Mila. Sophia de Blumenberg,
filha do famoso banqueiro.
Muitos dos homens, em particular, os oficiais, fizeram tentativas
óbvias de atraí-la para algo mais do que mera brincadeira, mas ela não se
deixaria ser desorientada. Quando o seu motorista chegou, e o lacaio
desceu para abrir a porta, ela despiu o avental, tirou o chapéu militar,
envolveu-se com os seus mantos, acenou com um regalo num gesto de
adeus e saiu.
Muitas vezes, um oficial, reconhecível pelo uniforme espalhafatoso
como um militar de importância, e algum, conhecido de verdade, por ser o
Capitão Barral de Montfort, apareciam para escoltar Mila. Sophia. Formavam
um par distinto. Ele, perfeito com um porte military inteligente, ela, com um
tipo de beleza exotica.
Inveja-se tais pessoas, embora, no mesmo fôlego, deseja-se todos os
prazeres que a vida pode oferecer, tumultuados na cabeça, e mesmo assim,
com muita insistência, a maioria de nós se recusa. Pois, parece que essas
pessoas foram selecionadas pela natureza a ser agradadas com os melhores
presentes.
Ela, ela mesma, queria da vida uma sucessão interminável de novas
maravilhas, prazeres e surpresas. E, de fato, toda a sua vida foi essa sucessão.
Ela tinha essa capacidade infinita de curtir, sem a qual qualquer princesa
deveria ficar infeliz até mesmo no melhor palácio do mundo.
Durante os passeios juntos, ela gostava de provocar Barral. Contou-lhe
como todos os homens a adoravam. Descreveu alguns. Insistiu no físico
atraente deles. Declarou que eles ofuscariam Barral se fossem permitidos
a usar o uniforme azul brilhante com adornos dourados.
Vendo que ela ficava satisfeita se ele parecesse incomodado e com
ciúmes, fez o melhor para franzir a testa e encontrar palavras enraivecidas a
dizerem a ela. Mme. Hertzog, a tia Luíza da Sophia, que tentava estar
presente o máximo que poderia para acompanhá-la, ficou congelada e
indignada durantes essas brigas lúdicas, porque as achava de muito
mau-gosto mesmo. E todo o negócio da cantina como vergonhoso para uma
filha da aristocracia, pois não poderia aprovar de um patriotismo carregado
desses excessos. Este patriotismo, ela adivinhou corretamente, era uma
simples desculpa para o afrouxamento da conduta.
No entanto, o Barão de Blumenberg era incapaz de rejeitar qualquer
coisa para a sua filha, a única menina. Além disso, uma demonstração do
patriotismo sempre foi uma estratégia boa na política. Ele foi patriota
patriota pelo Império, e foi mais uma vez pelo governo de quatro de
setembro. E faria até mesmo um gesto patriótico para a Comuna. Boas
estratégias exigiam tanto assim.
Ele contribuíu com uma grande quantidade de dinheiro para a
manutenção das cantinas, porém, a aparência pessoal da filha era uma ação
ainda mais eficaz. Além disso, as filhas e esposas das melhores famílias
parisienses estavam engajadas no trabalho da cantina ou da enfermaria.
Durante o jantar, tia Luíza nunca deixava de comentar sobre Sophia, a
negligência da sua educação, o seu trabalho na cantina, a sua liberdade,
“Pode-se quase dizer promiscuidade.”
E mais tarde, pela noite, enquanto preparava-se para voltar ao
apartamento, havia mais brigas porque a família permitiu que Sophia ficasse
acordada até tarde. Barral de Montfort despediu-se e acompanhou Mme.
Hertzog. Na carruagem, ela confidenciou a ele, “Você é bom demais para essa
multidão, ainda que fosse cristão.”
Ele não soube se estava se sentido lisonjeado ou insultado.
“Desde que aqueles artistas deixaram a má moral na moda, o mundo
está se degenerando rapidamente. Essa guerra é só mais uma prova disso.”
Ele murmurou num acordo educado com a hipótese dela.
“Eu me lembro,” ela disse, desenhando no queixo a própria indignação,
“quando aquele colega Courbet colocou a foto de uma mulher nua no Salão.
Eu estava lá quando a Imperatriz virou as costas para ele, decepcionada. Claro
que toda Paris estava reunida em frente àquela imagem. Desde então, não
houve como parar o dégringolade. Fotos horríveis, livros ruins e o mais
vergonhoso continuando.”
Ele disse, “Terrível,” com num tom adequado.
Ela o olhou séria. “Eu me diverti muito na minha juventude, sem ser
imprópria.” Estava na ponta da sua língua perguntar como.
“Suponho que a sua geração me ache muito antiquada.”
Ele gostaria de dizer, “Talvez Sophia fosse mais antiquada do que você,
se você apenas a conhecesse.”
Quando ele retornou ao seu apartamento e retirou a capa e a espada,
sentou-se e pensou em Sophia. O seu vestido de veludo branco, bem
apertado e tingido com limão, a saia justa de cetim branco e babados,
como se ela acabasse de surfar, e uma onda se formava atrás dela
com uma crista de espuma branca. E fora deste cálice de brancura, as
curvas esbeltas dos ombros e dos seus seios, como se fosse bronze polido,
os braços morenos e pelados, o rosto escuro rindo, o cabelo em cachos de
ébano.
O seu dever, assim como o prazer e o privilégio, era escrever para ela
todas as noites, e pensar em novas formas de descrever as sobrancelhas
engraxadas percorrendo curvas delineadas através da sua testa,
perfeitamente modelada. Era obrigação dele encontrar comparações novas
aos dentes dela, brancos como pétalas de gardenia ou, ainda melhor, como
raízes forasteiras recém-arrancadas e cintilando do chão. Era o seu
compromisso noturno anotar todas essas coisas, intercaladas entre o
trabalho de amar e de enviar cartas que ela haveria de ler pela manhã.
Quando os poucos convidados para o jantar partissem, o Barão se
retirasse para ao aposento onde ele dormia, e a baronesa para o seu boudoir,
então Sophia procurava o que fazer. Mas o que havia para fazer? Se ela fosse
até o papai, ele a receberia com um sorriso, a acariciaria e falaria das
inanidades dos dias quando ela era um pequeno bebê. Se fosse conversar com
a mamãe, ela a receberia com perguntas sobre a saúde e as suas roupas,
muito certamente com uma bronca interjeitada em algum ponto do diálogo.
O apartamento enorme estava tranquilo. Os móveis brilhavam em
massa, os encaixes de latão dos pergaminhos e esfinges reluziam sob a
lamparina. Em algum lugar por trás de uma porta, ela sabia que um servo
sonolento estava bocejando e esperando que ela saísse, para que ele
pudesse apagar as luzes.
Ela pegou algumas revistas da mesa da sala, alguns livros da biblioteca e
saiu para o seu quarto. Ela leu até que os olhos doessem, e ainda não havia
nada para interessá-la. Despiu-se e leu na cama, até adiar para o último
momento possível de desligar a lamparina da parede, e de soprar a vela sobre
a mesa da cabeceira.
Por fim, ela tomou coragem nas duas mãos, estendendo-as e desligando
o jato. O barulho contínuo do gás escapando, do qual ainda não estava
consciente, parou. O grande porta-fuligem de porcelana deixou transbordar a
brancura e a reduziu às cinzas. De repente, o quarto inteiro estava como se
fosse arrancado do presente e voltado à Idade das Trevas. A única vela acesa
bocejava penumbras. Os cantos do quarto, envolto na escuridão, recuavam a
uma melancolia misteriosa e distante. Restava um pouco de vida, amontoado
sobre a vela.
Ela a apagou. A escuridão a engoliu. Até a Idade Média desapareceu. Ela
regrediu ao campo obscuro dos tempos pré-históricos. Lançou-se de volta
entre os travesseiros e rezou para que o sono viesse logo. Mas os seus nervos
estavam muito tensos. Precisou ouvir uma dúzia de barulhos incompreensíveis
e rastrear cada um até a sua fonte. Houve de dissecar uma contagem de
sombras vagas, pesando formas ameaçadoras e determinando a realidade de
cada uma delas.
Suspeitou de cada sombra nova que os olhos esculpiam à espreita do
apagão geral e não se contentava com a garantia de que havia errado umas
cem vezes antes. Ela olhava e olhava até que toda a penumbra do quarto
estivesse viva, girando com figuras sombrias, resultantes da fadiga visual. E
contava isso a ela mesma, porém, cada forma nova parecia mais real do que a
última. Esperavam ela fechar os olhos para descerem sobre ela. Não, ela
passaria a noite inteira acordada. Ela não se atreveu a fechar os olhos de
sono.
Da mesma maneira em que a escuridão encerrava o dia, a morte
concluía a vida. Ela exauriu-se nas tentativas estéreis de penetrar o mistério
da tumba. Como seria estar morta? Era assim: escuridão. Escuridão intensa.
E sombras entre sombras. E um medo vasto. Não. Não era nada disso. Era
como um nada completo. Vazio absoluto. Além desse nada, algo mais
horrível do que a mente possa imaginar.
Isso era a morte. Deitada debaixo da terra num caixão. A sua imaginação
já a colocou ali milhares de vezes. Em Père-Lachaise, na parte judaica do
cemitério, não muito distante da entrada, próxima ao monumento
lamentoso de Rachel, a tragedienne. Havia as tramas pertencentes aos
Blumenbergs e aos Hertzogs. Ela lembrou do dia em que o tio Molse, marido
da tia Luíza Hertzog, morreu. O velório passou através da rue du Repos. A rua
do descanso. Um nome estranho, fascinante e revoltante ao mesmo tempo.
Ela repousaria lá. A mãe e o pai descansariam lá. Talvez ela deitasse
primeiro. Ela conseguia escutar, com os próprios ouvidos, o pai e a mãe
chorando. Ouvia a mãe dizendo, “Tão jovem! E recém-casada!” E o seu marido,
Barral, estava lá. Ela o ouvia jurando vingança.
Quando ela chegou nesse pensamento, decidiu que todas as suas
imaginações eram bestas mesmo. Por que ele estaria jurando vingança e
contra quem? Mas o seu coração ainda sangrava desses pensamentos
horríveis. Claro que isso tudo era muito bobo. Como ela poderia estar casada
com Barral e ser enterrada no terreno da antiga família? Ela seria
enterrada com ele, claro. Como as esposas fazem.
De alguma forma isso era reconfortante. Ser enterrada com Barral.
Além disso, mostrava que não havia verdade na sua imaginação. Nenhum
poder profético. A imagem dele jurando vingança no Cimetière Israelite de
Père-Lachaise não poderia ser verdadeira.
Assim ela pensou, mas os pais de Barral, que viviam no país e eram
conhecidos por estarem pouco satisfeitos com o caso do filho, não deixariam
ela, uma judia, ser enterrada num cemitério cristão. E a história toda assumia
mais uma vez o aspecto ameaçador e descia sobre o seu peito como uma
pedra pesada.
De manhã, já não havia um fragmento dos seus sonhos. A luz do dia
filtrava através das cortinas da janela. Ela estava deitada na sua cama
adorável com cupidos dourados. Acima da cabeça estava o familiar azure-ciel-
de-lit, decorado com estrelas de ouro e iluminado por uma lua branca,
costurada com seda.
Os sonhos malucos se foram, dos cemitérios, de Barral jurando vingança,
todas as artimanhas estúpidas com as quais a escuridão fertiliza o cérebro. Se
ela levantasse cedo, antes da sua mãe, teria a empregada da mãe para ajudá-la
a se vestir e arrumar o cabelo. E logo o carteiro chegaria e traria a descrição de
Barral sobre a sua beleza na noite anterior e a sua garantia do amor eterno.
Esses foram os sonhos do dia.
As noites se tornariam ainda mais terríveis. Os alemães moveram a
posição das armas dentro de poucos quilômetros do anel dos fortes e jogaram
bombas pela própria cidade. Depois, alguém teve que ir para cama sem
qualquer luz ou, pelo menos, com a iluminação minima, e dormir foi quase
impossível. As noites de inverno eram frias e demoradas. O que requeria
esforço para não gritar de angústia. Mas depois o dia vinha para ser ainda mais
apreciado. Cada segundo oferecia-lhe uma risada, caso contrário a vida não
traria nenhuma compensação pela noite inevitável.
Portanto, os seus dias eram repletos de gargalhadas, e as noites cheias
de angústia. Porém, ela estava acostumada a pensar assim, Eu, pelo menos,
tenho a compensação da riqueza. Mas e os pobre? Ela tinha Barral. O que
aquelas meninas pobres fariam, sem as suas cartas?
Durante as horas na cantina, ela pensava em Barral. Ele viria buscá-la. Ela
o reconheceria de longe. Seja a pé ou a cavalo, mas sempre num uniforme azul
brilhante com adornos dourados.
Os homens também veriam ele chegando. Ele cutucariam uns aos outros
e sorririam. Entretanto, havia um homem jovem, nem muito bonito nem feio,
só com olhos castanhos grandes para indicá-lo. Todos os dias Sophia percebia
que, enquanto os outros sorriam, ele permanecia mal-humorado.
Uma vez, quando inclinou-se para enxaguar um copo, ela olhou em
cheio aqueles olhos tristes. Havia algo movendo-se estranhamente neles.
Algo que trouxe os pensamentos noturnos à sua mente. Ela olhou para o
outro lado porque temia que ele visse os seus olhos e lêsse neles as ideias
que o atraía, as reflexões de terror e morte.
No entando, de novo e mais uma vez, na cantina, quando achou que ele
não estaria olhando, ela olhava àqueles olhos, bem abertos, sob sobrancelhas
grossas. Quase sempre o seu olhar mudava rapidamente em direção ao dela, e
ele o encontrava. Então ela desviava. Mas, num momento mais tarde, ela
olharia novamente. Havia algo convincente nos seus olhos. Algo dessa
compulsão estranha de um abismo. Esse convite do vazio, de alturas
grandiosas: Venha, jogue-se. Deixe-se ir. Como sabe que não é mais doce do
que qualquer coisa que você já imaginou ou experimentou na vida? Por que
você tem medo? Por que tem medo do que você ainda não conhece?
Venha! Venha!
Ó! O ópio doce da atração da morte!
Ela conhecia essa atração. Quantas vezes ela não havia revirado essas
ideias na cabeça à noite, quando já havia desligado o gás da lamparina e
soprado a vela. Durante o dia, quando estava longe da cantina, raramente
pensava naqueles olhos, mas pela noite eles a assombravam. Eles estavam lá
antes dela na escuridão, e tinham aquele brilho estranho e fosforescente, que
os olhos de alguns animais têm. Aqueles olhos misturavam-se aos
pensamentos noturnos. Eles eram os companheiros durante a demorada noite
repulsiva. Eles estavam com ela lá no cemitério judaico em Père-Lachaise. Ela
não estava mais sozinha à noite. Aqueles olhos resgatou-lhe dos seus
pesadelos solitários.
Ela perguntou àqueles olhos: E o túmulo? E os corpos moldados na
cova? E eles tinham uma resposta. Os olhos disseram: Onde você estiver,
estarei com você. Dia e noite. Vida e morte.
Pela manhã essas reflexões foram embora. Ela tinha a carta de Barral,
e, enquanto planejava o que visitar e o que compraria durante o dia, o seu
riso leve ressoava repetidamente. Até mesmo no escritório o pai poderia
ouvi-la. Ele sorriu e balançou a cabeça. “Garotinha alegra. Como alguém
pode sempre ser de coração leve? Em especial, a nossa Sophia, nascida
fora do túmulo, por assim dizer. Deus a abençoe.”
Contudo, pela tarde, quando ela entrou na cantina, os seus olhos
começaram a procurá-lo de imediato. Se ele não estivesse ali, ela já ficaria
quase completamente feliz. Ela se pegou olhando em volta com expectativas,
esperando vê-lo entrar. Esperando com esse tremor de medo e desejo
misturados. E, enquanto sorria aos outros homens como se não houvesse
nenhuma outra ideia no mundo além do prazer, da felicidade e do
entretenimento, ela olhou ao redor.
Ele veio. Sempre vinha. Sentou-se sozinho e cismou. Cismou com o
destino maluco que o deixou meio homem e meio animal. Às vezes, acreditou
que precisava consultar um médico. Pode ser que houvesse uma cura para
casos como o dele. Mas não. A condição dele era única.
Além do mais, era besteira pensar nessas coisas. Ele não poderia ir a um
médico. Não se atreveu. O número de seus crimes impediam isso para sempre.
Talvez, se ele fosse ferido e levado a um hospital, haveria a possibilidade de
perguntar para um doutor.
Ele costumava parar nas livrarias e vasculhava os textos médicos, porém,
o que descobria era de pouco valor. Aprendeu que a sua doença era
conhecida, ou seja, tinha um nome, mas os examinadores classificaram-na
como fraude ou como ilusão, e quanto à cura, ninguém tinha qualquer
sugestão a oferecer, exceto a de que o método medieval de queima era uma
crueldade desmerecida.
Começou a pensar que essa rejeição da cura pelo fogo foi uma decisão
tão superficial quanto às que rejeitaram a própria doença, e que, pelo
contrário, era muito recomendada a estaca. Ele contemplou seriamente a
necessidade de tirar a sua vida.
Essas reflexões se tornaram mais frequentes quando ele entrou por
acaso na cantina onde Sophia trabalhava. Ele a viu e logo ficou apaixonado por
ela. Depois disso, ele veio todos os dias. Ela representava para ele tudo o que
ele não era. Tudo o que nunca poderia ser. Ela era o epítome do que ele
perdeu e jamais poderia recuperar: a joie de vivre.
Até que ele passou a perceber que ela estava observando-o. E um dia,
quando os olhos deles se encontraram, teve o sentimento de que havia um
laço entre ela e ele. Ele estremeceu ao pensar na obscenidade com a qual
atreveu-se a olhar para a sua pureza, e prometeu seriamente a ele mesmo que
mudaria. Decidiu que, daqui em diante, comeria apenas alimentos humanos
durante o dia, para que o apetite medonho da noite diminuísse. Porém,
nessa primeira noite, apesar do que havia devorado, ele acordou durante o
sono, com o corpo tenso, roubado de toda o desejo de mais descanso, a
pele doendo ao sentir a liberdade do vento noturno, os membros ansiando
por tocar o chão, as mandíbulas por morder e dilacerar. Por um momento,
lutou com ele mesmo para manter em mente a imagem superior dela.
Ele ofegou de boca aberta. Sentiu a própria língua, a sua língua, curta e
grossa, de homem, ficar achatada e comprida. “Deus me ajude!” ele gritou.
Mas agora a língua estava saindo da sua boca, pendurando-se sobre os seus
dentes. Incapaz de resistir mais, ele saltou da cama. Foi até um canto do
quarto, amordaçado por um peça de roupa, e arrastou um braço, um braço
humano. O último dos dois braços que ele havia arrancado de La belle
Normande.
Ele afundou os dentes nele. Os olhos espiaram em torno de suspeitas.
Rosnados baixos vieram da sua garganta. Houve silêncio por um breve
momento, e depois mais barulhos, o tapa da mão dura e morta ao bater no
chão, o triturar de um osso e, de vez em quando, um tique agudo, como
quando um anel no dedo atinge a madeira.
Por fim, a fome estava apaziguada, porém, sem que ele tivesse qualquer
recordação disso. A manhã encontrou-o na cama, com a cabeça pesada, o
pescoço doendo, e a língua furada. Foi difícil para levantar, mas assim que
conseguiu, enfim, começou a tarefa desgostosa de limpar os restos mortais do
chão. Vestiu-se e foi se juntar ao regimento.
Enquanto atravessava o pátio, a porteira gorda veio correndo.
“Monsieur, monsieur. Deixe-me a sua chave, finalmente. Eu gostaria de
limpar o seu quarto.”
“Aqui está,” respondeu sombriamente, “mas por causa disso eu estou
mudando.” “Ah, monsieur...” ela teimou.
“Quantas vezes preciso dizer que não quero o meu quarto limpo? Para
que você acha que eu coloquei minha própria fechadura? Assim você poderia
entrar e me importunar sempre que quisesse?”
“Ah, mais −”
“Bem, você quer a chave ou não?” “Ah, mais, voyons...”
“Merde alors!” ele exclamou e saiu.
“Peuh!” ela arfou. “Quelle bête féroce! Você acha que eu queria espioná-
lo. Ora, acho que tem algo a esconder, se deixa a porta trancada desse jeito.”
Autocrítica e com os lábios comprimidos, ela voltou à lavagem interrompida.
Quando as suas obrigações terminaram, Bertrand foi para a cantina e
sentou-se de mau-humor, preenchido com o horror de si mesmo. “Você está
vacilando que nem besta. Como ousa entrar no mesmo cômodo deste ser
puro?”
Ele desejou com toda a força que pudesse se transformar num inseto
repugnante, uma aranha, por exemplo, e que conseguisse correr debaixo do
seu pé e morrer esmagado sob a sola. “Não,” refletiu, “ela nem sequer
pisaria em mim. Até mesmo um inseto venenoso ela deixaria viver. Ela é
boazinha demais.”
Embora tentasse se conter, ele acabou olhando para cima. Os seus
olhos estavam sobre ele, mas ela desviou o olhar rapidamente. No entanto,
eles vagaram de volta. Como se estivessem magnetizados, os seus olhos
olharam para os dele, e os dele para os seus. Durou apenas uma fração de
segundo, mas pode ter sido anos.
Nessa noite ele fez um juramento profundo e, quando chegou no
quarto, embrulhou toda a carne e os ossos que tinha adicionando uma pedra
como peso, fez um pacote apertado, com o qual maquinou sem perceber
afundá-lo no Sena.
“Basta disso,” falou. “Não mais. Nunca. Eu juro pelos seus olhos.”
Ele estava apaixonado. Ele estava apaixonado. Enquanto voltava para
casa, uma mulher o abordou, mas ele balançou a cabeça com violência.
“Coisa feia,” disse para ele mesmo. Estava cansado desses coisas. De
repente, havia ficado muito antiquado. Foi para casa e dormiu
pesadamente. Na manhã, acordou de um sono sem sonhos.
“Estou curado!” Quis gritar para a luz do sol que encontrava o próprio
caminho no início do dia pelo quarto. “Estou curado! Ela me curou. Com a
ajuda dela, precisei apenas de um bom esforço.”
Pela tarde na cantina, ele foi correndo agradecê-la, mas não teve
coragem. Mas encontrou um pedaço de papel e escreveu: Você me resgatou
dos meus pesadelos. Você é um anjo. Porém, ele carregou o recado de papel
por dois dias e não se desafiou a entregá-lo para ela.
Finalmente, numa tarde, quando ele viu o seu motorista dirigindo e a
oportunidade prestes a ser perdida por mais um dia, ele caminhou às
pressas até o balcão e empurrou o papel através dela. Ela o pegou e
escondeu na manga, como se estivesse esperando uma mensagem sua,
como se estivesse segredando o seu bilhete obstinado pela vida toda.
Antes de partir com Barral, ela teve a chance de espiar o bilhete: Você
me resgatou dos meus pesadelos. Você é um anjo. O efeito nela foi
elétrico. Como ele sabia? Como ele sabia dos seus sonhos?
Ela não estava com humor para o entusiasmo de Barral. Mas ela
disfarçou. Tornou-se natural para ela estar sempre sorrindo e rindo. Ela
conseguia fazer isso apesar do coração atordoado.
“Sophia,” disse tia Luíza balançando a cabeça, “você nunca fica séria?”
Sophia parou de rir. Ela foi tomada pela semelhança dos pensamentos.
Ela, assim como a tia, pensaram, É tudo o que você tem, Barral, piadas,
respostas inteligentes e tantas sem noção? O que você pensa de noite?
Ela poderia formular a resposta que ele daria para essa pergunta. Eu
penso em você durante a noite toda e, se Deus é bom, eu também sonho com
você no meu sono. Um palpite pequeno e presunçoso, nada mais. Um bom
sujeito, esse Barral, mas superficial e bobo. E ela segurou essa resposta
contra ele sem jamais dar a ele a oportunidade de fazê-la.
Por muitas semanas Sophia e Bertrand se condicionaram à troca de
recados. Mas as manifestações dos sonhos dos dois e o amor mútuo logo
pararam de satisfazer. Ela ansiava por mais intimidade.
Durante as noites em casa com Barral e, em geral, sob o olhar
observador da tia Luíza, Sophia quase bocejava. Se Barral apenas saísse, ela
cogitou, Então eu poderia ir para a cama e ficar com os olhos do meu
Bertrand. Ela não estava mais com medo do escuro, desde que soube que
o seu destino era compartilhado.
Uma vez, a tia Luíza os deixou sozinhos por um minuto. E Sophia, sem
saber o que estava fazendo, parou de falar sutilmente. Ela estava pensando,
Pobre Barral, logo vou deixá-lo. E num impulso súbito de piedade, ela
colocou a sua mão na dele. Assustado por essa declaração de afeto
aberta, uma prova maior do que qualquer outra que ela já havia mostrado
a ele, ele apertou os seus dedos em volta dos dela e era tão fraco com o
amor que não conseguiu dizer nada. Com espanto e uma alegria dolorosa
de tão profunda, ele viu os seus olhos encherem de lágrimas, ele a ouviu
dizer: “Pobre Barral.”
A tia Luíza entrou e sugeriu que estivesse tarde. Ele a levou pra casa,
sentindo-se o tempo inteiro como se estivesse flutuando nas nuvens, e
quando chegou no seu apartamento, esqueceu de tirar a capa na pressa de
se sentar e escrever para Sophia. Ele preencheu mais páginas do que
nunca. Descreveu as próprias emoções uma dúzia de vezes, jurou amor em
cada parágrafo, e quando saiu para postar a carta eram três horas no
relógio, mas ele não estava no clima para dormir naquela.
Durante a manhã, Sophia levou a carta até o quarto e sentou-se, com
a intenção de lê-la. Porém, os seus pensamentos a levaram até Bertrand.
Perguntou-se qual seria o melhor modo de conseguir um encontro com
ele. Tudo estava muito rápido e a tempo de apressar as coisas a um rótulo
bobo, no qual ela sempre acabava se arrependendo de tê-lo feito, exceto
este, no qual tais compromissos impediam as pessoas de descobriram o
seu segredo.
Contudo, antes de sair de casa, ela precisava escrever um recado para
Bertrand. Por que não dizer que iria à sua casa? Sim, ela deveria fazer isso.
Logo, a qualquer momento, o cerco poderia terminar e, com isso, as cantinas e
grande parte da sua liberdade. Ela escreveu o bilhete e estava prestes a se
apressar. Então lembrou-se de que ainda não havia lido a carta de Barral.
“Bali,” ela disse, “em outra hora,” e jogou sem abri-la numa gaveta da
escrivaninha.
De noite, Bertrand mal conseguia se controlar para nãe gritar em alegria.
Ela estava vindo para a casa dele. Ela, sim, ela. Na verdade, ela estava
entrando no quarto dele. Ela podia ficar somente meia hora, mas ela chegaria
direto ao ponto, e eles ficariam juntos e sozinhos.
A noite não tinha mais sentidos para ele. Ele sabia que passaria
dormindo e, se sonhasse, seria com ela. De manhã, enquanto ele estava
saindo, admirou-se, “Mme. Labouvaye!” berrou num buraco escuro.
“Oui, monsieur! Oui, monsieur!” A porteira gritou de volta e saiu
correndo, com os seios fartos dançando com o movimento transmitido pelos
seus passos.
“Voilà la clef,” ele disse. “Por favor, limpe minuciosamente.”
Ela ficou muito espantada para falar.
Ao contrário de si mesmo, ele sorriu. Ele podia sorrir agora que pertencia
novamente à raça humana. “Alguém está vindo me ver.”
Ela entendeu e gargalhou com ele. “Ah, monsieur,” ela respondeu,
medindo as palavras. Depois ela riu. “Vou limpá-lo. Vou deixar o seu quarto
tão limpo que você vai poder comer no chão.”
Ele estremeceu, controlou-se e, sorrindo um adeus, saiu. Ela continuou
olhando para ele, de pé no ar frio do inverno. “Hum. E isso era tudo o que
ele queria para fazê-lo agir mais humano? Os jovens levam essas coisas
muito a sério. Mas, afinal, o que mais há para viver?”
Sophia chegou na hora. Ele a encontrou na esquina da rua e mostrou a
ela o labirinto de quarteirões e corredores escuros até o seu quarto.
“Vou me lembrar, da próxima vez,” ela disse e corriu para ele.
Dentro, ela notou a feiura do seu aposento. A janela que não dava para o
céu, mas para as paredes. As cadeiras que eram duras e desconfortáveis.
Sentaram-se juntos na cama e seguraram as mãos um do outro. E
ficaram em silêncio, cheios de pensamentos ligeiros e emoções, mas
envergonhados. O que eles fariam agora que estavam juntos? Não fizeram
nada, apenas sentaram e olharam um para o outro.
Por fim, numa voz rouca por causa do peso desse amor, desculpou-se
pelos cômodos desajeitados. E ela, numa voz quente e pulsante, expressou
algum apontamento igualmente banal.
Eles devem ter ficado uns vinte minutos sentados ou mais, trocando
comentários que estavam longe de inspiração, quando uma ideia estranha
interrompeu o pensamento dela. O que ela estava fazendo aqui neste quarto?
Quem era esse jovem de quem ela estava segurando a mão, apertando-a com
força como se ela tivesse se separado da sua vida? Por que…?
Um teor esquisito tomou conta dela, um tipo de medo que se tem
quando, pouco antes de acordar de um sonho ruim, todo o ser grita: Isso não
pode ser verdade! E ele ainda teme que possa ser.
Abruptamente, ela largou a mão dele e levantou. “Você já está saindo?”
Ele exclamou. “Eu devo,” ela respondeu.
“Não,” ele pediu.
Os olhos dela estavam correndo ao redor da sala como se imaginasse
que estava presa numa jaula. E, de fato, sentiu-se pêga. Ela devia sair! Ela
havia se colocado num pesadelo vivo. Sepultou-se viva. Fez um
movimento em direção à porta, mas ele pegou a sua mão de novo e a
segurou.
“Deixe-me ir,” ela chorou baixinho.
Ele queria deixá-la ir, porém os seus dedos não se soltavam. Ele tentou
virá-la aos poucos para ele. Ela segurou a própria mão em frente ao seu rosto
como se fosse afastá-lo. Os seus olhos estavam bem abertos em terror.
“Não me machuque!” ela implorou. “Ó, por favor, não me machuque!”
Em seguida, ele a soltou. “Eu não ia machucar você,” ele explicou numa
voz aflita, “Você pode ir se quiser. Eu deveria mostrar o caminho até a rua
para você?”
O seu terror momentâneo desapareceu. Do que ela estava com
medo? Ao invés disso, ela estava cheia de contrição. Impulsivamente,
colocou os braços em volta dele.
Os braços dele continuaram no próprio lado. Agora era a vez dele de
ficar assustado. Ele percebeu que, pelo menos num momento, havia perdido o
controle dele mesmo. Ele não arriscou agarrá-la nos seus braços. Seria melhor
se nunca mais a visse. Melhor ainda se ele se matasse logo.
“Bertrand,” ela disse com suavidade, suplicando. Ele não respondeu.
“Bertrand,” ela berrou em desespero, “você não me ama?” Ele suspirou,
“Eu amo você tão loucamente que seria melhor eu −” “Então, rápido, coloque
os seus braços em volta de mim,” ela interrompeu. Ele obedeceu.
“Você deve me segurar mais apertado,” disse. Mais uma vez, ele
obedeceu.
“Mais apertado ainda,” sussurrou. Esse êxtase fluía através dela
desde a sensação dos braços dele em volta dela, e do corpo dele
pressionado para perto do dela, que a sua cabeça ficou tonta, a
respiração veio e se foi. Então o corpo tenso parecia dissolver-se em
líquido. Prestes a dissolver, mas ainda não. Se ele ao menos apertasse
mais forte. Se ao menos ele a esmagásse. Rasgasse! Mutilasse!
“Abrace-me, abrace-me mais apertado,” ofegou. E ela ainda estava
nesse ponto de se dissolver e não poder. Em desespero, ela gritou,
“Machuque-me! Bertrand, me machuque!”
Então, ela sentiu os braços dele apertando ao seu redor como um torno.
E dentro desse círculo de dor, ela experimentou uma exultação esquisita,
como se um pássaro dentro dela houvesse sido libertado e estivesse
enchendo os ouvidos com um canto selvagem. E foi como se todo o seu corpo
se dissolvesse. Ela respirou com dificuldade.
Eles ainda estava de pé, próximos da cama.
“Você está me machucando,” ela disse, enfim. Os braços dele se
soltaram imediatamente. Ela olhou para ele. Olhou primeiro para um dos
olhos e depois para o outro. Estava procurando neles por uma explicação
do prazer que havia acabado de viver. Não havia nada além dos estranhos e
grandes olhos castanhos, abaixo de sobrancelhas grossas que estavam fora
de lugar num rosto muito infantil.
Ela estava muito grata a ele. Queria dar-lhe algum sinal dessa gratidão. O
que ela poderia dizer? O que poderia fazer? Eles estavam sentados na cama
novamente e de mãos dadas.
“Que unhas grossas você tem,” ela exclamou.
“Não repare nelas,” ele respondeu, “elas são feias.”
“Você não devia dizer isso. Elas não são feias. São bonitas e tão
brilhantes. Mas por que são tão grandes?” “Porque...” disse e parou. “Porque
é – é uma doença.”
“Uma doença?” “Sim.”
“Que tipo de doença?”
Ele estava à beira de atirar-se aos seus pés, contando tudo. Mas ele se
deteve e busco um jeito de mudar o rumo da conversa. “É chamada de
onichogryphosis,” afirmou.
“Onicho... O que?” perguntou. “Onichogryphosis,” ele repetiu.
O riso dela tilintou pelo quarto. “Você precisa soletrar pra mim.”
“Em vez disso, vamos olhar para suas unhas,” ele sugeriu. “Como joias
polidas.” Ele as colocou na boca e beijou. Sentiu-se tentado a morder as
pontas dos dedos dela com os seus dentes, e assim ele fez, ainda que com
muita gentileza.
E mesmo assim ele a machucou. Ela queria gritar e afastar os dedos, mas
não fez. Não era desse jeito que ela conseguia mostrar a gratidão? Ela insistiu.
“Pode mordê-los, se você quiser.” Ele hesitou, e ela perguntou, “Você
quer?”
Sentiu-se como quando era um garoto pequeno e confessava a mãe uma
dor na virilha e ela queria ver.
Ele conquistou a própria vergonha e respondeu. “Sim, quero.” Porém,
com isso, o desejo sumiu. “Numa outra vez,” acrescentou.
“Na próxima vez,” ela corrigiu. “Amanhã.”
Ela se levantou. “Ó, como está tarde! Eu não vou mais conseguir ir até a
cantina.”
A breve tarde de inverno havia desbotado num crepúsculo cinza e frio.
Eles correram até a rua para encontrar um táxi para ela.
Barral estava esperando-a na casa dela. A tia Luíza também estava lá
e mantinha o silêncio da indignação intensa. A sua mãe começou a
repreendê-la. Barral, entretanto, estava tão aliviado da preocupação que só
pôde dizer, “Graças a Deus, você está segura. Graças a Deus.”
“Onde você estava?” A mãe questionou. “Você deixou todos
desesperados; a casa inteira ficou chateada por conta de você.”
“Apenas caminhando por aí,” ela respondeu imprudentemente e saiu
para o quarto. Após o jantar, sentou-se sozinha com Barral.
“Eu estava muito aborrecido,” ele confessou. “Pensei que uma bomba
alemã tivesse acertado você e decidi causar uma vingança sanguinária
naqueles hunos.”
Ela sorriu. “Bom Barral.” E pela segunda vez nesse namoro demorado,
ela colocou a sua mão sobre a dele.
Profundamente comovido, ele a apertou e falou numa voz trêmula e
séria, “Querida, o que você achou da minha carta? Achou que eu fui
atrevido?”
“Não, por quê?,” ela respondeu hesitando. Ele confundiu o significado
do seu constrangimento. “Por que eu acharia?” “Então, eu fui? Fui?” ele
chorou.
“Ora, Barral!” exclamou.
“Você deixaria, por favor... Digo, eu posso… beijar você?”
Ela sorriu novamente. Sentia-se muito imensamente superior a ele.
“Claro, que pode,” disse com gentileza.
Ele segurou a cabeça dela com as mãos e olhou para o rosto. “Minha
querida Sophia,” ele disse numa voz sufocante. Ela pretendia saber o que
aconteceria. Eledeu o beijo mais tranquilo naqueles lábios doces, cuja pureza
virginal temia sujar. Nada aconteceu. Nenhum pássaro assobiou uma
canção ensurdecedora nos seus ouvidos. O seu corpo não ficou tento,
nem ameaçou se dissolver. Nada. O beijo dele era os restos do leite
diluído com água doce morna, que a sua enfermeira costumava dar para
ela beber de noite.
Ele foi para casa e escreveu para ela a carta mais apaixonada que já havia
escrito. Abriu todo o coração nela. Pediu o perdão dela milhares de vezes,
confessou uma dúzia de pecados escolares, que deixavam os seus lábios
impróprios para tocar a boca pura dela. Ela poderia perdoá-lo por esconder
esse passado miserável? Ele jurou, pelo Altíssimo Céu, que desde que havia
posto os olhos nela, há dois anos atrás, ficou limpo feito um bebê recém-
nascido, como jamais permaneceria.
Ela atirou a carta sem abrir na gaveta da escrivaninha.
À medida em que o novo amor crescia e cada vez que ia ao quarto de
Bertrand, o seu corpo experimentava uma nova exultação, e ela parou de se
importar se alguém sabia. Mais do que isso, queria ostentar o seu amor
diante das outras pessoas. “Vejam!” ela queria chorar. “Vejam o que
acontece comigo quando meu amante me segura nos seus braços.” Por
vezes, ela sentia como se gostaria de nada melhor do que convidar todo
mundo para o quarto de Bertrand, despir a roupa na frente deles e perguntar,
“Você me acha bonita? Veja, então, toda essa belezura que dou para ele.
Veja como ele me abraça, me beija, acaricia cada parte do meu corpo. Mais
alguém no mundo tem um amante desses?”
Os homens da cantina não demoraram a descobrir o seu segredo. Eles
diziam uns aos outros, “Ela já estava madura para nós. Não entendo por que
deixamos isso para esse jovem depravado do Bertrand. Qualquer um de nós
poderia ter expulsado esse azul-bebê egocêntrico de Montfort.”
Eles ficaram mais ousados e espalhavam comentários que estavam
longe de insinuações. Ela riu, e isso os sensibilizaba. Deve ser uma garota
ótima, essa Sophia de Blumenberg, mesmo se o pai dela fosse um
milionário. “Ela é do nosso tipo,” eles gargalharam e sorriram uns aos
outros. A boa vontade e a diversão reinavam na cantina quando ela estava
lá.
Por outro lado, Barral demorou para entender o que ele certamente não
queria compreender. Claro que ele havia percebido como os olhos da Sophia
atrasada brilhavam e, em seguida, obscureciam como se ela estivesse em
febre. Percebido que nunca antes ela fora tão enfeitiçantemente bonita.
Que ficou mais gordinha, afinal, ela estava cheinha. Mas ele atribuiu isso à
realização natural da maturidade. E quando ele entendeu, já estava tarde
demais para fazer alguma coisa. O cerco estava terminado, o armistício foi
declarado, a França deve ceder Alsácia e Lorena, e pagar bilhões de
indenização. E logo veio a revolução e a declaração da Comuna de Paris, e
Barral ficou encarregado de uma tarefa delicada, a da espionagem, a qual o
impedia de qualquer ação violenta nos assuntos pessoais.
CAPÍTULO TREZE
Como ele escreveu, quando os cataclismas pelos quais Paris estava
passando chegaram no auge e frescos na mente de todos, Galliez faz
poucas tentativas de preencher os eventos históricos do momento.
Venho me esforçando para remediar essa omissão, pois nossos dia
esqueceu esses assuntos. Além disso, parece a mim que o
temperamento da época tem uma relevância fundamental neste conto.
Galliez, também, de vez em quando, deixa uma pista de que a
atmosfera desses tempos participam de um modo considerável entre
tais eventos peculiares. Outrora, entretanto, inclina-se ao oposto; isto é,
ele insinua que os tempos foram uma infecção espalhada no exterior por
Bertrand, e por outro como ele.
Ele diz, “Eu reconheço agora um significado das palavras de minha tia,
Mme. Didier, do desejo, expressos no testamento, para que eu estude
ao sacerdócio. Esse era o germe da crença religiosa que me protegia
de Bertrand? Eu não sei. Mas isso eu observei. Poucas pessoas
entraram em contato com ele sem sofrimento.
Sempre me perguntei se vários desses monstros não poderiam, por
progressão geométrica, infectar nações inteiras em poucos dias. Como aquela
imagem ambulante e persecutória da cólera no romance de Eugene Sue. Sim,
isso explicaria muito o que é inexplicável na história.”
Assim seria e, certamente, Paris parecia estar infectada, embora a causa
seja mais facilmente relacionada aos horrores da guerra do que a lobisomens.
O inverno amargo, com multidões famintas, bebês morendo como
moscas, com cápsulas estourando em todas as direções, foi uma
experiência a enfraquecer muitos personagens. A cidade estava cheia
de ódio e suspeitas. Um homem de nome muito germânico ou muito
carregado de características germânicas provavelmente sofreria pelo
pouco que era a sua culpa. Toda casa estranha era povoada com
espiões. As pessoas pobres que íam aos esgotos para se aquecerem e
se refugiarem de uma noite invernal poderiam acordar de modo brutal
e se depararem, veementemente, suspeitas de plantar bombas para a
cidade explodir.
Uma mulher idosa, prestes a cometer uma indiscrição ordinária aos seus
tantos anos, pendurou a própria saia rasgada na janela para tampar a luz da
vela e prevenir-se de traição. Porém, a connfiguração estranha da luz, como
vista do lado de fora, reuniu muitas pessoas na rua, que viram nessa mistura
de pontos e traços de onde vinha a luz através da roupa rasgada um Código
secreto, um sinal para admitir os prussianos em Paris. Em vez de manter a sua
vergonha secreta, a pobre mulher teve o quarto invadido, e o pecado
perdurou até a última piada da rua.
Numa noite escura durante um bombardeio, uma luz distante no
leste, uma lâmpada sinalizadora pendurada em alguma estrutura alta, pela
evidência, causou uma mobilização a perseguí-la através de Paris. Em vão,
um astrônomo Amador tentou convencê-los de que estavam caçando um
planeta do sistema solar, ligado ao interesse mundano somente pela força
da gravidade.
Uma vez, após o relato de um espião patriótico amador, um esquadrão
prosseguiu para casa, nos apartamentos do número três do Place du Théâtre
Français, armados com mandados de busca e apreensão. Foi um negócio
sério. Foi dito que, em determinados momentos, uma bandeira preta e
branca foi vista pendurada no quarto andar. A brigada retornou um
tanto envergonhada. Na verdade, a bandeira era azul e branca e foi
pendurada no Consulado de Honduras.
Se essas suspeitas terminassem, por vezes, em gargalhadas, no geral,
elas acabavam com mortos.
Ainda que todas as coisas devem ter um fim. Louis Adolphe Thiers
tornou-se chefe executive, o armistício foi assinado, o tratado de paz foi
ratificado, e os alemães fizeram a breve marcha triunfal deles por Paris. Pelo
menos, o longo cerco acabou. O coração de Paris demarcado. Os oportunistas
que mantiveram os estoques de alimentos agora estavam capturados pelo
crescimento do cerco e obrigados a lançar os produtos no mercado, enchendo
as barracas. Os preços caíram. Havia uma pitada da primavera pelo ar. A vida
era um prestígio.
Mas o balde de ódio e suspeitaas não sustentaria. As mobilizações
destruíram as lojas e cafés que permaneceram abertos para negociar com os
alemães. Falava-se que o governo traiu a cidade. Os homens da Guarda
Nacional, próximos dos quatrocentos mil, reclamaram de que a traição os
impediu de serem devidamente empregados. E eles não queriam ser
desmobilizados. Desmobilização significava fome.
Mas o governo novo provou-se estupidamente reacionário. A moratória
sobre os débitos que salvaram os pobres durante a guerra deveria ser
levantada. Por enquanto, que o inimigo nacional não ameaçava mais, era hora
de colocar o pobre de volta na coleira, e do feitiço momentâneo de fazê-los
acreditar que a escravidão econômica francesa fosse preferida, para que a
escravidão econômica alemã não fosse mais perpetuada.
No entando, a noção popular de que os políticos Thiers traíram o seu
país para a Prússia estava errada. Por decisão, não era verdade. Um político de
verdade, e eles eram os verdadeiros, nunca trai o país a um estranho. Ele
engana ele mesmo. Ele é o inimigo interior.
Bismarck havia proposto desarmar a Guarda Nacional ao oferecer uma
fatia de pão por cada rifle. A oferta dele foi recusada por Favre, que mais tarde
se arrependeu. Pois a Guarda Nacional recusou se desmanchar e recomeçar o
negócio árduo de procurar um trabalho com salários reduzidos, longas
jornadas e nenhum future. Apresentaram-se em frente ao Hotel de Yule.
Armaram barricadas. Atiraram em dois generais. O governo dos Thiers fugiu
para Versalhes, juntou forças e voltou à cidade para implementar o
segundo cerco. Paris tinha a Comuna. Não era o que as pessoas estavam
atrás. Mas elas são sempre assim. Como um homem justo levantando um
machado para cortar uma cobra e acaba machucando a própria canela em vez
disso. Eis uma fotografia a ser encontrada em quase todas as páginas da
história.
Os russos criaram um feriado nacional em dezoito de março, quando a
Comuna foi formada. Mas eles estão adorando uma lenda, pela qual a
verdade é que a Comuna foi um erro do qual uma geração nova de
revolucionários aprenderia bastante. A Comuna era um governo
proletário, sim, mas isso é um campo desapropiado. A Comuna nunca foi
nada além do ranger de dentes dos homens revoltados com a sua impotência
e frustração. Entre esses homens, haviam muitos amantes da humanidade,
muitos trabalhadores antigos no campo, homens que gastaram grande parte
das suas vidas na prisão por causa das opiniões políticas, homens que vieram
aqui para o próprio martírio, porém, havia também muitos incompetentes,
oportunistas, pessoalmente ambiciosos e mais traidores do que a maioria dos
governos com os quais tiveram que lutar.
Para Aymar, assim como à maioria dos republicanos antigos, em
particular, àqueles que participaram da revolução de 1848, foi oferecido um
posto no governo da Comuna. Ele recusou muitas vezes e, por fim, aceitou um
cargo menor, envolvendo poucos deveres e nenhum pegamento, abaixo de
Courbet, o pintor, que foi apontado Diretor das Belas Artes pela República, e
continuou como tal na Comuna. Aymar estava feliz de reencontrar um
conhecido, que remontava aos dias de Balzac na brasserie da rue Hautefeuille.
Contudo, uma ruptura havia distanciado ele da maioria dos antigos
associados. Entre eles, ele não via mais a questão religiosa como antigamente,
olho a olho. Estava mais ansioso do que nunca para divorciar o sacerdócio da
política, educação e indústria, sem encontrar a frase: Religião é apenas uma
superstição, o argumento vigoroso de que ele já havia pensado. Porém, nesse
assunto, ele mantinha a boca fechada. Não era seguro falar, como ele teve a
oportunidade de descobrir, mais de uma vez. Por exemplo, durante o caso
Picpus.
Um dia, Aymar acompanhou Courbet logo após a insurreição até o
hótel magnífico, em que o Barão de Blumenberg vivia, na Place Saint-
Georges. Eles encontraram o palácio quase vazio da sua coleção famosa de
objetos de arte. A fama de Courbet deu-lhe o direito, mais do que o seu
comportamento francamente grosseiro, de ser recebido pelo próprio
Barão, o qual desculpou-se pela aparência da casa. Eles estavam saindo
em férias de verão no país, ele indicou. O gênio atarracado e juvenil tirou -
lhe o cachimbo da boca e soltou uma gargalhada áspera. Muitas pessoas
achavam conveniente antecipar as férias de verão, comentou. Ainda que
muitos estivessem desocupados e fora de Paris, atentos ao que viria,
estavam se refugiando antes do estouro da tempestade.
A visita de Courbet era relacionada ao seu cargo como Presidente da
Sociedade de Artistas, e como Diretor de Artes. Ele estava preocupado com a
segurança, da fúria da mobilização, das obras de arte próximas à casa de
Adolph Thiers, e nas casas de outros colecionadores famosos. Por trás da
sua consciência estava o pensamento de que todas as coleções de arte
deveriam passar à guarda do Estado. Ele queria enriquecer a coleção no
Louvre, em particular.
Foi nesta ocasião que Aymar Galliez foi apresentado e viu, pela
primeira vez, uma certa Mme. Sophia de Blumenberg, uma beleza
encantadora de uns dezessete anos de idade.

No próprio manuscrito, Aymar Galliez relembra essa visita brevemente,


apenas em conexão com sua relevância subsequente. Portanto, seria bom
ao leitor ficar aqui, neste momento, na companhia do autor e dar uma
olhada mais de perto na casa do Blumenberg.
O Barão de Blumenberg foi um dos mais proeminentes cidadãos de
Paris. O patrocínio à arte, a caridade e a hospitalidade luxuosa escondida por
um verniz forte, disfarçavam a maneira nefasta em que ele acumulava
milhões. A sua generosa mão direita era estendida num gesto tão amigável ao
povo parisiense, ricos e pobres, que as ações da mão esquerda passavam
despercebidas.
Com a verdade, os panfletos o haviam descoberto. Ele era o alvo da
própria ingênua, mas mordedora inteligência. Eles exageraram a sua pança, o
que o enfureceu. Diz-se que Courbet permitiu ser subornado para tratar
essa sua barriga leniente num retrato pelo qual foi contratado a
fazer. 12
O Barão ficou muito satisfeitos em ver artistas caros retratá-lo mais
como ele queria ser visto. Ele era muito infantil nas próprias emoções. Mas ao
inventar um esquema de negócio astuto através de um contrato, em que uma
cláusula de aparência branda, enterrada no fundo do mandado, significava um
milhão à sua conta privada, assim, não haveria nenhum cérebro melhor em
Paris.
A revolução de setembro e a queda do Império não perturbaram o seu
cargo. Com um florescimento gracioso, tornou-se republicano. Algo sem

12
Muitas dessas histórias são contadas pela vontade de Courbet em prostituir o seu
Realismo afamado por dinheiro. Por exemplo: que um muçulmano famoso o
empregou para fazer uma mulher retratada realisticamente num ato de amor.
Nessa pintura, dita ainda ser existente, todos os detalhes sem importância
como cabeça, membros, quadris, seios, etc., foram omitidos por não terem
qualquer influência sobre o tema principal.
dificuldade maior do que pisar de um pasto de vaca a outro. Ele ainda era
o Barão de Blumenberg. Ainda tinha dinheiro e poder.
Até mesmo a Comuna não o atrapalhou seriamente. Conhecendo as
finanças ruins do partido revolucionário, ele, enquanto Barão Rothschild,
doou rapidamente um milhão em dinheiro e, em troc a, faria o que
quisesse. A Comuna não teve muita coragem para opinar. Na
verdade, as opiniões dela ainda estavam em disputa, desde o dia em
que morreu.
No dia da visita de Courbet, o Barão estava se colocando em
segurança. Havia grande comoção na casa. Cem bronzes estavam sendo
embalados em caixas, cem tapetes e tapeçarias enroladas, mil pedaços
de linho e renda dobrados em troncos. Um fluxo interminável de vasos
abafados, pinturas, cadeiras, etc., saíam por baixo dos portais
encontravam um lugar em vans enormes. O chicote do motorista
quebrou, e os objetos de arte saíram correndo de férias.
Mme. de Blumenberg correu de quarto em quarto, recolhendo os bibelôs
preciosos dela, sobrecarregava o transporte de peles, fãs e plumas de
avestruz. Debaixo do braço, ela carregava uma bolsa valiosa, abarrotada com
joias. Era uma mulher miúda, como um pássaro, de movimentos rápidos e
repentinos. Ela pulava os arredores, subia e descia escadas, do sótão ao porão,
não havia uma migalha que escapou dela. Nenhuma empregada contratada
conseguiu subtrair tanto assim num minuto, nem mesmo um cêntimo da
propriedade. Ela dizia que se fosse governante da França, o governo estaria
falido com metade do orçamento dela. Pode haver pouca dúvida disso. Só que
não lhe ocorreu que, se ela fosse chefe das finanças francesas, a política
econômica rigorosa dela reduziria o marido a mendigo.
“Odeio deixar isso para trás,” ele estava dizendo um dia depois, quando
Courbet e o assistente dele sairam com certos presentes valiosos para o
Louvre, e a casa estava quase vazia dos seus conteúdos, “mas acho que não
podemos levar tudo.” Ele contemplou tristemente o piano enorme e espaçoso
de jacarandá e revestimento de marfim.
“Edmundo, mon cher,” a esposa dele exclamou em tons de
desespero, “você não pode achar algo mais útil para fazer? Claro que não
podemos levar isso. Ninguém poderia também – Aqui, vocês dois,” virou-
se a um par de homens de avental, “isso vai e isto. Rápido, agora! Não
temos o dia todo.”
“Você lembra de quando dei isso a você?” O Barão suspirou. Ele
levantou a tampa, a superfície interna mostrava um navegação afundando
numa tempestade violenta, feita em marfim e uma variedade de madeiras
naturais, rodeada por um rolo de folhas no qual sereias amorosas estavam
lapidadas. Ele suspirou e bateu numa chave. Na sala vazia, emitia-se uma nota
melancólica, vibrando pensa pelo ar.
“Edmundo!” ela advertiu. Ele segurou o braço dela e a puxou para o
piano. “Lembra?” perguntou.
“Claro, claro,” ela respondeu, irritada.
“Que maravilhoso e terrível naufrágio.” Ele admirou novamente.
“Como você é romântico,” zombou e tentou soltar o braço dela.
“Não,” ele pediu. “Não vá. – Depois de tudo, foi a única vez na minha
vida que você se entregou a mim.” A voz dele falhou um pouco com
emoção.
“Você vai me lembrar disso outra hora.” Mas ele passou o braço em
torno da cintura dela e apertou. “Eu sempre vou lembrar.”
“Como você pode, entre todas as outras?” brincou.
“Você sabe que elas não significam nada para mim. Apenas a distração
de um homem ocupado. Você é o meu único amor. Sempre me perguntei,
como seria se você pudesse retribuir todo meu carinho?”
“Eu não arrumei a sua casa? E quanto a dormir com as mulheres, você
pode ter tudo por alguns francos. Garotas experientes, também – do jeito
delas.”
“A única vez,” ele ponderou, meio para ele mesmo, e passou a mão livre
sobre a cena do náufrago. “Todos nós acreditávamos que estávamos
amaldiçoados. Aquela tempestade terrível, o aprestos varridos, o casco
vazando em todos os remendos, o capitão e a tripulação em desespero. E
nós dois, certos de que iríamos morrer naquela viagem, que era para ser a
nossa lua de mel. Durante os primeiros dias a bordo, pensei que fosse
somente uma modéstia que fez você se recusar de me receber, mais tarde
fui entender melhor. – Porém, com a morte à vista, você estava simpática
demais para se entregar a mim, porque foi meu último desejo. Ah! Todos esses
dias da sua frigidez não apagarão este único abraço.”
“Para mim também,” ela disse, secamente, “Eu me arrependo disso até
hoje. – Venha, você vai ficar relembrando?”
“Como pode se arrepender disso,” ele questionou, “vendo que Sophia
veio disso? Nunca vou parar de duvidar que a vida, essa alegria na vida, que
Sophia mostra, poderia ter vindo dos dois que acreditavam que estavam
prestes a morrer.”
“Tudo que você pensa é na Sophia,” afirmou. “E o quanto você me
machuca, você já esqueceu, convenientemente. E todos aqueles meses
assustadores, vendo o corpo inchado e sabendo que o dia em que deveria
parir estava cada vez mais próximo. Isso é o que você deveria ter na sua
parte, por todo o seu prazer. Tudo o que tive foi a dor.”
“E pensar,” o Barão continuou, “que dessa experiência tão horrível,
arrancada de um túmulo como ela foi, surgiria nossa contente Sophia, de
coração leve, insinuante como um pintarroxo, sem um único momento
sombrio, nunca, nunca uma ideia de morte.”
“Já que estamos no assunto da Sophia,” a Baronesa disse, “você deveria
ter uma conversa com ela.”
“Qual é o problema agora?” reclamou e, lamentando, abaixou a tampa
e a cena do navio afundando, que comemorava o momento mais pungente
da vida dele, quando, por milagre, a morte transformou-se em vida.
“Outra das maluquices dela. Ela quer ficar em Paris!”
“Quer ficar em Paris? Que ridículo! Onde ela ficaria?” “Com tia Luíza.”
“Que besteira!”
“Ora, veja o que você pode fazer com ela. Eu esgotei minha arte.”
O Barão atravessou os grandes corredores até o quarto da filha. Ela
estava sentada num banco liso na janela. Quando ela escutou o pai entrar,
olhou com um sorriso.
Criatuda radiante e quente, disse para ele mesmo. Sortudo é o homem
que a terá como esposa. Como ele vai amá-la. Barral surtudo. – O Barão ficou
comovido por uma emoção estranha que não era ciúmes, mas estava
relacionado à inveja.
“Você está tendo outra briga com sua mãe,” ele disse. “Não. Por quê?”
“Ela acabou de me contar que você se recusou a vir conosco. Bem, estou
feliz que está resolvido.” Ele estava mesmo feliz. Gostava tanto da filha
dele que o menor desentendimento entre eles estragaria o dia dele.
“Claro que está resolvido,” ela respondeu descuidadamente. “Eu não
vou. Ficarei com tia Luíza.”
“Mas, filha,” ele expôs, “por que você não disse isso antes? Nós
ficaríamos juntos. Ora, nós mudamos cada madeira dos móveis. Além disso,
nunca serei capar de persuadir sua mãe a mudar os planos dela. Você conhece
sua mãe. Agora, por que vocês duas nunca concordam?”
“Mas, papai, querido, você não precisa mudar seus planos, eu serei bem
cuidada pela tia Luíza. “Ah, entendo,” sorriu de repente. “Claro, por que não
pensei nisso? Ele também vai ficar. Não vai?” Ela corou e mordeu o lábio
inferior. “Sim,” respondeu. “Ele vai ficar também.”
Barral sortudo, o Barão teve que pensar de novo. Sim, fique, ele os
abençoou mentalmente. Entregue-se, entregue todo o seu eu ao homem da
sua escolha e faça-o feliz, como eu fui uma vez na minha vida. A linha de
raciocínio quase encheu os olhos dele de lágrima, e sentiu-se impelido a
sentar-se ao lado da filha e a colocar os braços em volta dela. “Você não se
lembra de quando eu costumava pegar você nos braços no berçário e a
carregava pela sala. Ah, você foi o bebê mais doce do mundo. Não ía para a
cama, não comia, e ah! Você não fazia suas tarefas simples, a menos que eu
desse uma volta com você pelo berçário. – Ai! Como eu queria poder fazer isso
agora.”
Ela escondeu o aborrecimento e sofreu as carícias dele por um
momento.
“Então você vai cuidar da mamãe e cuidar bem dela?” ela disse e
aproveitou a ocasião para se soltar dos braços dele.
Ele levantou-se com um suspiro. “Verei o que posso fazer.” A
perspectiva desagradável fez com que ele franzisse a testa.
Ela saltou e deu um abraço e um beijo nele. “Meu querido papai!”
exclamou. Ele saiu do quarto pisando sobre uma nuvem.
Logo ao lado de fora, ele encontrou Barral e, impulsivamente, apertou
a mão dele. “Tem uma surpresa pra você,” ele disse. “Uma grande
surpresa! Vá, Sophia está esperando para contar a você.”
Barral, que parecia preocupado, olhou para frente com alívio. “Que tipo
de surpresa, senhor?”
“Sophia contará,” o Barão insistiu, não seria surpresa, ele refletiu,
privá-la do prazer de contar a Barral ela mesma, que iria ficar na cidade.
Assim, Barral precisou dizer adeus para que não fosse o principal
causador da preocupação dele. Pelo contrário, nos últimos dois dias ,
ele sentiu tanto prazer de que Sophia estava partindo, por encarar a
convicção crescente de que havia alguma verdade (não muito
verdadeira, mas é claro) no que todos os homem estavam repetindo
sobre Sophia, que ele não conseguia imaginar solução melhor do que a
saída dela de Paris. Isso colocaria um tempo na amizade dela com
aquele soldado jovem.
Qual seria a surpresa? Barral duvidou. Talves ela decidiu me aceitar
quando a pedi. O pensamento era quase demais para ele. Com o coração
batendo audivelmente, ele bateu na porta dela.
“Sophia,” ele bufou, enquanto entrava, e não pôde dizer mais nada.
Eles conversaram em frases curtas. Também não estavam à vontade.
Barral estava questionando, ele deveria ficar de joelhos? Deveria falar
atrevidamente? Enfim, decidiu falar. “Agora que você está prestes a deixar
Paris, minha querida Sophia, e eu continuarei por aqui, longe de você, e
ocupado com trabalho perigoso – há uma coisa que gostaria de perguntar a
você.”
“Mas eu não vou, Barral,” negou.
O fluxo de linguagem com que ele estava fluindo tão limpidamente
parou de uma vez. Jogado sobre um trilho, então, de repente, ele ficou
perdido por completo.
“Você não parece satisfeito,” ela comentou.
Ele virou a cabeça e murmurou. “Se eu pudesse ter certeza de que fosse
por mim que você estivesse ficando...” Ela não ouviu.
“O que você disse, Barral?”
“Eu disse – eu disse...” conjurou a própria coragem. “Os caras da cantina
estão falando tantas coisas feias sobre você.”
“Sério?” ela perguntou. “O que, por exemplo?”
A coragem dele acabou. “Só... ora, só coisas feias,” ele concluiu sem
jeito. “Mas é claro,” ele acrescentou com muita pressa, “Eu não acredito
numa única palavra disso.”
“Mas o quê?”
“Mas pensei que devesse contar a você.” “Entendo,” ela respondeu.
Houve um momento de silêncio. Ele teimou, insatisfeito.
“Claro que é apenas fofoca,” disse, e esperou a confirmação dela. “O
que é apenas fofoca?”
“O que dizem.”
“Mas você não me contou o que eles dizem,” foi a resposta mais calma e
sensata dela. Nervoso, ele implorou, “Só me diga que não é verdade!”
Porém, ela insistiu relutante, “Que não é verdade?” Estimulada por um
espírito malicioso, ela queria trazer as palavras da boca dele. Ela
ansiava uma satisfação estranha de ouvir o amor dela por Bertrand afirmado
pela boca dele. Ela teria esse contentamento, pelo menos, garantindo a
impossibilidade de levantar provas mais íntimas desse amor na frente dele. Ela
experimentou muitas sensações novas pelas últimas semanas e, ainda assim,
queria mais. Agora que ela havia invadido um novo mundo, estava insaciável
a prazeres cada vez mais novos.
Uma onda grande de dor lhe atravessou. “Então é verdade,” murmurou.
“Mas como pode ser verdade?” Ele era como um homem foragido pelo porto,
que encontrou o navio para embarcá-lo em alto mar, e agora ficava pela praia
repetindo, como se uma mentira bem revirada pudesse agir como um bálsamo
para a dor da verdade, “Não pode ser verdade. Não, não pode mesmo ser
verdade.”
E, então, a raiva subiu nele. “Já sei o que vou fazer,” declarou. “Vou
matá-lo. Vou descobrir onde ele mora e matá-lo.”
Inspirado pela crueldade dela, ela o encorajou. “Encontre nós dois de
uma vez, quando estivermos juntos e você pode nos acertar numa tacada só.”
“Não você!” gaguejou, decidido. “Mas vou matá-lo.”
“Que é a mesma coisa,” ela disse. “Pois nós dois somos um só, e se ele
morre, então, eu também” “Muito bem,” ele respondeu. “Pois, então, você
pode morrer também, mas vou pegá-lo.”
“Assim que você tanto me ama?” ela debochou. “Esse tanto que valem
suas cartas? Depois de todas as vezes que você me jurou amor eterno. E
pensar que fui iludida por essas promessas baratas.” Ela virou a cabeça
para o outro lado, como se estivesse em desgosto.
Ele estava chocado. A ousadia do argumento dela tirou-lhe bastante
fôlego. A deserção dela foi empurrada ao segundo plano. Agora a questão era:
Ele mentiu nas cartas dele, ou ele contou a verdade? Qual?
Totalmente arrebatado, ele reclamou, “Então o que devo fazer?”
“Se o seu amor fosse verdadeiro mesmo, você continuaria a me amar,”
ela respondeu. “Meu amor por ele nunca vai acabar, posso afirmar isso para
você.”
Esse foi mais doido do que o primeiro argumento dela. Mas ele aceitou.
“Eu sempre vou amar você,” declarou em voz alta.
“Você é bom, Barral,” elogiou. “E continuarei a dar para você tudo o
que sempre dei: minha companhia. Nunca dei mais, nunca prometi mais. E
pera o meu bem e o bem do seu amor, você será gentil com Bertrand e
nunca dirá nada disso para meu pai ou minha mãe, ou tia Luíza, ou qualquer
um.”
Ele engoliu seco e prometeu.
Numa confusão, ele encontrou o caminho para casa. Quando tirou o
uniforme, atirou-se na cama. Mas sentiu-se muito desconfortável. E não quis
dormir. O que era que ele queria? Algo estava faltando no quarto. Ele olhou
em volta, com os pensamentos numa admiração confusa.
Depois ele soube. A carta dele. Deveria escrever uma carta para Sophia.
E sentou-se e escreveu. Escreveu sobre o amor dele e a beleza dela, da dor e
angústia, e a fidelidade eterna. E logo cedo, na manhã seguinte, quando havia
postado a carta, sentiu mais do eu habitual.
Captão Barral de Montfort, frustrado no amor, de coração partido,
afundou no trabalho vilmente. A tarefa de espionar para o governo de
Versalhes era delicada. Encontrou nos meandros dela o antídoto necessário
para a própria miséria.
Além disso, se ele não conseguisse ser fiel à promessa, teria vingança
diretamente com Bertrand ou com aqueles outros soldados fofoqueiros do
204º batalhão, ele poderia atacá-los de outro lado. Ele ele estava atrás de
sangue. A ideia de que eles sofreriam do trabalho o motivou. Eram essas
pessoas do serviço que ele destruiria.
Apesar de ter ido ao serviço com muita energia, não deixou de se
proteger de qualquer suspeita. Por exemplo, embora como um membro da
equipe ele pudesse garantir informações valiosas nas reuniões do grupo,
ele evitava deliberadamente estar presente e conseguia o conhecimento
delas em outro lugar. Desse jeito, ninguém pensaria que ele estava
xeretando.
Cluseret, chefe do patrulhamento,13 percebendo a ausência de
Montfort nas reuniões, acusou-lhe de negligência e ameaçou demiti-lo. Ele
foi rebaixado a ser um oficial comum de coração leve, mais interessado no
uniforme e em fazer uma aparição efetiva nas costas de um cavalo do que na
guerra.

13
Cluseret, soldado famoso de fortuna, lutou por Garibaldi e, mais tarde, na
Guerra Civil Americana, do lado do norte. Lincoln o promoveu ao cargo de
general. Participou da guerra francoprussiana e da Comuna, sendo,
subsequentemente, sentenciado a morte, fugiu para o México, onde
permaneceu até a anistia. Ele retornou, entrou na política e serv iu na legislatura
da França por um tempo. Tinha talento como pintor.
CAPÍTULO QUATORZE
Eu já me referi ao caso Picpus. Embora ele não seja relevante por si
mesmo, exceto como contexto, a atmosfera da época é tão ilustrativa que
vale a pena debruçar-se sobre a matéria por um tempo. Aymar Galliez, nos
escritos dele, faz diversas referências aos mistérios de Picpus. E,
tornando-os famosos na história, não há dificuldade em preencher as
observações dele e dar-lhes o sopro de vida. E, ainda, outras razões
para entrar no caso Picpus com mais detalhes:
Aymar estava em Paris há oito meses exatos e ainda não havia visto
Bertrand. Além do mais, pelos últimos três meses não houve um único
crime sequer que ele pudesse atribuir confidencialmente a Bertrand. Dizia
a ele mesmo, com frequência, “Bertrand está morto. Sim, deve estar
morto.” E como era fácil estar morto nessa época. Os alemães
bombardearam Paris por muitos e longos meses. Centenas morreram. E,
nas poucas batalhas em que a Guarda Nacional fez parte, a ineficiência
militar sacrificou milhares. Bertrand está entre aqueles pobres demônios,
Aymar cogitou e ficou emocionado. Ele lembrou do bebezinho pelo qual a tia
foi tão afeiçoada. Relembrou do garoto. Da palma macia e peluda dele. Dos
grandes olhos castanhos, líquidos e atraentes como os de um cachorro.
E assim, de repente, ele ficou cara a cara com Bertrand. Aymar
perseguiu tantas pistas que, finalmente, veio a se considerar um
espectador permanente de todas as cenas dos crimes. A amizade com
tantos revolucionários, trabalhando em escritórios importantes,
garantiram a ele um grau de imunidade nestes dias tensos, embora, em
algumas ocasiões, foi levado diretamente a um espião e chegou perto de
ser colocado na cadeia.
No segundo dia de abril, o governo de curta duração do Hotel de Vile
(a Comuna) decretou a estatização de todas as propriedades
detidas por “mãos mortas” – ou seja, as terras e construções das
instituições religiosas que foram repassadas por mortmain – e a polícia estava
ordenada a pesquisar e listar todas essas propriedades e todas as
organizações que tinham, até então, a posse delas.
Alega-se que o prefeito da polícia, Rigault,14 estava muito ansioso
para deter clérigos importantes como reféns, para trocar por Blanqui,
preso pelo governo de Versalhes, mas a acusação era ostensivamente
que tais sociedades, como as jesuítas, etc., ocultavam estoques
enormes de armas e munições, um boato efetivo ainda hoje.
A noção que deve haver algo misterioso dentro das paredes cinzas de
pedra de um convento ou monastério; alguma vítima secreta enclausurada,
rezando aos monges inflexíveis, clamando por liberdade e encontrando
apenas escárnio debaixo dos capuzes marrons; ou alguma donzela delicada,
escondida onde as paredes absorverão os lamentos dela, uma dama forçada a
ceder à luxúria brutal dos celibatários que conformariam-se explicitamente
aos votos impossíveis; ou mais um tesouro, ou fantasmas, ou aparições
inexplicáveis acompanhadas por barulhos misteriosos – Eu digo, essas noções

14
Devo dizer tanto do delegado quando do ex-Prefeitura de Polícia, desde que a
odiosa prefeitura de polícia do Império foi abolida. Entretanto, a ex-prefeitura
continuou funcionado, sob um nome novo, com Raul Rigault delegado a assumir o
comando.
têm séculos e não morrerão.
Os jornais daqueles dias, aparentemente sem nada melhor para dizer,
reviveram essas antigas histórias. “O delegado da ex-Prefeitura de Polícia,”
somos informados por uma das folhas , “tem evidência de que o alto
clérigo de Paris estava traindo a França aos inimigos, agindo como
espiões para os alemães.”
Entre as igrejas que foram procuradas, por armazenarem armamentos e
balas, estava a dos Padres e Irmãs do Sagrado Coração de Picpus, duas
sociedades proprietárias das construções adjacentes na rue de Picpus. O rumor
dizia que mil e oitoscentos chassepots (um rifle recém-introduzido) estavam
escondidos lá, juntamente com o grande “tesouro dos padres,” uma
vasta relíquia secreta de ouro e pedras. No dia sete de abril, o local foi
submetido a uma investigação policial. Nada foio encontrado. Isso não
impediu um dos jornais de declarar a evidência existente de que
“armas, munições e uma oficina para a fabricação de bombas” foram
descobertas.
Com o público clamando por mais notícias, em doze de abril uma
segunda investigação foi instituída para localizer a misteriosa “câmara
subterrânea”, supostamente usada como arsenal. Valas foram cavadas por
todos os lugares, paredes perfuradas em dezenas de locais, mas o armazém
secreto não pôde ser encontrado.
Nessa conjuntura, com todos rumores prestes a sumir, um golpe de
sorte de um operário descobriu ossadas humanas no jardim de um convento.
Antes dessa descoberta terrível, bombas e chassepots estavam esquecidos.
Apesar do sopro de loucura que agora varria a cidade sitiada, um espírito
tentado ousou enviar à polícia uma cópia marcante da História de Paris, de
Dulaure, mostrando que não somente o Sagrado Coração, mas muitas outras
construções da Rue de Picpus poderiam apresentar ossos humanos enterrados
abaixo delas, uma vez que o local havia sido um cemitério anteriormente e, de
fato, uma seção deste ainda era uma área de sepultamento aprovada, o
restante foi construído sobre ou convertido em área de jardim.15 Porém, a
polícia não conseguia ler ou não tinha tempo para trivialidades e,
assim, não soube que durante o Reinado de Terror da Revolução
Francesa, no ano de 1793, mil trezentos e seis aristocratas
guilhotinados haviam sido enterrados naquele antigo cemitério, num
enorme fosso.
Talvez essas duas instituições religiosas não fossem culpadas com o
crime de enterro fora dos cemitérios oficiais, nem suspeitadas pelas
tentativas de assassinato, pois nenhuma outra descoberta estranha e
assustadora foi feita. Um oficial, explorando os sótãos, encontrou três
pequenas câmaras com barras de ferro, abrigando, cada uma, uma mulher
de cabelos grisalhos. Nenhuma das prisioneiras foram capazes de explicar
o motive do encarceiramento. Todas elas falavam bobagens, vociferavam
ameaças estranhas, ou proferiam gritos penetrantes.
Já era muito sabido que a Igreja antiga havia tido as próprias prisões,
mas que ainda tentava continuar com esse costume bárbaro nos tempos
modernos foi realmente eletrificante. As três mulheres que, sem dúvidas,

15
O cemitério Picpus ainda existe, está aberto para turistas, e retribuirá pela visita.
haviam sido jovens prisioneiras bonitas do convento, foram sentenciadas por
expressarem alguma opinião própria delas, obviamente, ou por negarem
obedecer algum ditado cruel dos padres e, por muitos anos de solidão,
perderam a razão. A fim de mostrar ao público quais práticas nefastas a
Igreja se rebaixaria, as mulheres enlouquecidas foram colocadas em
exibição. No quartel, em Reuilly, a mulher da cantina cobrou uma admissão
de dez cêntimos para ver uma das pobres vítimas.
Logo as piores acusações seriam niveladas no convento e, desta vez,
com provas incontestáveis: entre os bens das feiras, foi encontrado um
berço! Sim, essas mulheres supostamente castas possuíam um pequeno
berço de bebê!
É verdade que entre as famílias da vizinhança havia muitos que
relembrariam todos os anos que as freiras davam uma representação teatral
do Nascimento de Cristo e da visita dos Magos, e eles tentariam explicar que o
berço deveria ser, com certeza, parte das propriedades permanentes do
palco, armazenado para uma utilização a cada ano. No entanto, não era uma
boa hora para conversas. Uma jovem que se atreveu-se a emitir opiniões
céticas foi mesmo presa e trancafiada, acusada de fazer parte da conspiração.
Além de que evidências adicionais de práticas não castas dentro dessas
igrejas edificadas logo vieram à luz. Na cela alocada ao padre reverend
Bousquet, superior geral dos irmãos, que, na época, estava ausente de Paris,
foi encontrado um tratado: um manual das práticas obstétricas, entre todas as
coisas!
O fato de que esse tratado foi escrito por alguém também chamado
Bousquet e, por coincidência, não era apenas sobrinho do padre reverendo,
mas, inclusive, um estudante de medicina que havia acabado de submeter
esse tratado como a sua tese, como cumprimento parcial dos requisitos para o
diploma da Escola de Medicina de Paris, não foi notado por ninguém
aparentemente. Se fosse chamada a atenção da polícia pelo Dr. Paillet,
médico das irmãs, muito provável que fosse negligenciada como
opinião preconceituosa, até que o doutor rendesse como “cúmplice dos
crimes de Picpus.”
Talvez o público não tivesse perdido o último vestígio do seu poder
racional se não surgissem ainda mais evidências. Em primeiro lugar, um baú de
ossos humanos! E, depois, num passado remote e quase inassecível, uma
quantidade de instrumentos metálicos de formas estranhas e assustadores,
com correntes e algemas, entre camas peculiares, equipadas com catracas e
guinchos. E, então, finalmente, uma descoberta alarmante: na cripta da
capela das freiras, dezoito cadáveres encaixotados em todos os estados
avançados de decomposição!
Agora o caso estava completo!
Os jornais apresentaram isso com todos os detalhes lúgubres pintados
em cores vivas: “Por que a pobre irmã Bernadina foi trancada numa espécie
de gaiola, tão pequena que se derrubasse uma agulha não poderia pegá-la?
Qual é o significado e o propósito dessa coroa de ferro, essa cama violenta,
esse espartilho de aço? Estas são partes do arsenal de tortura necessários
para uma seita da Inquisição Medieval, florescendo em Paris do século XIX.”
Outro jornal recordou que, dez anos antes, um homem acabou
dormindo na igreja Picpus, ficando despercebido e preso durante noite.
Horas depois, foi acordado na escuridão por um gemido indescritível.
Um repórter observador reparou que todos os dezoito corpos eram de
mulheres e pareciam desarranjados nos caixões. Estava evidente que eles
eram recentes. A abundância de cabelos loiros acinzentados de uma delas
era particularmente impressionante. Foi dito que um vendedor de vinhos do
bairro reconheceu o cadáver como da própria filha, que havia desaparecido
há alguns anos. “As mandíbulas escancaradas desses restos humanos,”
escreveu o jornalista, “quando trazidos à luz do dia, revelam com surpresa
aparências fantásticas. Parecem que esses ossos sem carnes quisessem falar,
como se ansiassem contar as tragédias que acabaram com a vida deles.” E
cheio de inspiração, o próprio repórtes escreveu o que esses corpos não
conseguiriam dizer. “Veja,” eles (os restos mortais) disseram, “veja nossas
pobres cabeças, todas viradas para a direita e para a esquerda. Isso não é
prova de que fomos enterrados antes dos nossos corpos enrijecerem com a
morte?” Ele passou a descrever orgias medonhas da meia-noite, realizadas
pelos monges nas criptas, sob as chamas vacilantes de tochas. Era um conto
para meninas iludidas pelas promessas de festivais religiosos especiais, nos
quais a presença delas levaria salvo-conduta ao céu.
Por mais desejável que fosse essa nota promissória para a felicidade
futura, não houve nenhuma garota que que quisesse solicitor pelo
pagamento, por muitos anos. Mas o vinho estava fortemente drogado. A
óstia sagrada era formada de farinha misturada com o pó das ervas secas
soporíficas. E os sacerdotes causavam perversa luxúria com donzelas que,
entorpecidas pelas drogas, resistiam sem forças, até a cortina da perda total
de consciência descessem sobre elas.
Quando o efeito narcótico desaparecesse, o sentimento da vida
retornava, e as garotas acordavam confinadas num espaço escuro, onde a
natureza terrível amanhecia, gradualmente, sobre elas, para somente
extinguirem-se no borrão da morte. E lá, nas próprias sepulturas
prematuras, permaneceram, juntas às evidências da luta final, corpos
contorcidos, mandíbulas distendidas, dedos tortos, sinais da agonia,
peitos afogados pelo ar, as mãos na busca da liberdade.
“Porém, a justição,” diz nosso escritor, “avança inexorável e
majesticamente! Por mais profundo que o crime estivesse escondido,
algum dia viria à tona. Avancem! Todos vocês, cidadãos bons e gentis de
Paris, e olhem para esses atos hostis do clero infame. Vejam! E deitem em
seus caixões vivos como Carlos V, ou levantem como Lázaro dos seus longos
repousos de laissez-faire. Aqui, diante deste cemitério, montem guarda! E
deixem isso ser o faro luminoso a guiar a humanidade à associação sublime do
harmonioso,” etc., etc., etc. 16
Outro jornal inflamava expansiva e retoricamente sobre o berço no
convento. Esses bebês coitados, produtos da união de um monge com uma
freira, estiveram alojados aqui para dormir, separarados apenas por poucos
metros, algumas paredes, do altar da Virgem? O que aconteceu com essas
crianças? O objetivo dos monges, de certo, não era mantê-los vivos, como
testemunha viva de uma violação maldita dos votos sagrados. Não, a intenção

16
Journal Officiel, 21 de maio de 1871.
deles era simples demais. Infelizmente! Quando as mães, freiras privadas
vilmente do direito à paternidade por uma religião imbecil, cresciam
afeiçoadas à prole, conseguiam olhar para a imagem de Maria e do menino
Jesus e entendiam algo que nunca conheceram antes: o puxão da boca de um
bebê no mamilo do peito, um puxão que alcança o coração, então, os monges
arrancavam o bebê do seio materno, matavam ou o lançavam em alguma vala.
E se a pobre irmã Bernadina, ou Celestina, ficasse ensandecida de pesares, eles
a trancaria numa gaiola pelo sótão, onde os ninares loucos, misturados com
gritos frenéticos pelo filho, morreria entre as vigas do telhado.
Mais tarde, os monges armaram-se com um sistema melhor.
Estudariam obstetrícia e aprenderiam a arte do aborto, protegendo-se,
assim, contra os bebês. O berço vazio foi deixado de lado. Não era mais
necessário. Agora, freiras e monges poderiam esconder os delitos por trás
dos permanentes sorrisos angelicais.
Decisivamente, um sopro de loucura estava varrendo Paris. O público
reuniu-se na rue de Picpus. Aymar entre eles. Etienne Carjat, “empregando a
milagrosa ajuda da luz elétrica,” fotografou os esqueletos na cripta. Nas
lojas, um desenho do funeral secreto era exposto à venda. Outros
conventos foram saqueados, outros mosteiros. Mais descobertas horríveis!
Correntes penduradas nas paredes, algemas, camisas de força, etc., tudo
evidentemente destinado para a adoração das vênus recalcitrantes.
Claro, Paris inteira não era muito estúpida, mas a massa irracional,
acostumada aos jornalistas tocando a placa de som, respondendo primeiro a
um sentimento e depois ao oposto, foi persuadida afundo por esses contos
românticos de terror.
Qual ignorância estava no exterior para que um cofre de ossos não
fosse reconhecido como um relicário, com restos de um santo dentro?
Alunos antigos do convento pareciam declarar, de fato, que os
instrumentos de tortura e as camas de Procusto para as vítimas de uma
“seita da Inquisição” fossem apenas dispositivos ortopédicos, empregados
no tratamento de crianças aleijadas, que eram cuidadas pelas freiras. Foi
mostrado que as três loucas eram antigas irmãs que perderam a razão e
eram bem tratadas pelo convento. Mas esta evidência não foi espalhada
pelos jornais no exterior.
Dr. Piorry, professor na Academia de Medicina, foi encomendado
pela Comuna para elaborar um relatório médico-legal. Ele atrasou o envio
dos resultados das observações até que a Comuna fosse questão do
passado, e a liberdade de opinião ficasse segura. Depois ele publicou o seu
artigo. Os dezoito cadáveres eram de senhoras idosas, não de mulheres
jovens. Estavamam enterrados há muito tempo. O médico não poderia
dizer há quanto tempo, mas um número grande de anos, de certo. Não
havia evidências de nenhum crime recente.
Mas quando esse artigo apareceu, a comédia de Picpus já não alcançava
o destino final, trágico e predestinado há muito tempo. Raul Rigault,
baixinho, sempre pronto a oferecer rapé aos amigos, surgiu na cena um
dia e ordenou prisões em massa. Rigault era um gênio, detetive nato, desde
os primeiros dias dedicou um tempo de vida para ser chefe de polícia. Ele
conseguiu isso, mas a ambição inicial e a sua disposição maliciosa também
eram a própria ruína.
Rigault queria religiosos importantes como reféns, como o governo
de Versalhes estava mantendo o tradicional revolucionário, Blanqui, o
chefe de polícia pensou que fosse possível efetuar uma troca de
prisioneiros.
Uma fila enorme de monges e freiras foi levada para a ex-prefeitura.
Aqui, também, muitos outros clérigos foram trazidos, em particular,
Monseigneur Darboy, Arcebispo de Paris, Lagarde, o seu grande vigário e uma
série de sacerdotes menores.
Rigault os examinou pessoalmente.
“Qual é a sua profissão?” perguntou a um jesuíta. “Servo de Deus.”
“Deus? Qual é o endereço de seu mestre?” “Ele está em todos os
lugares.”
“Escreva,” solicitou Rigault para um dos secretários. “Elemento
designando-se servo de Deus. Cidadão de Deus, um vagabundo sem
endereço fixo.” Ele acariciou o crescimento luxuoso da barba e do bigode.
O arcebispo tentou fazer um apelo. “Meus filhos −” ele iniciou,
estendendo os braços. Rigault o interrompeu. “Não há filhos aqui. Somente
cidadãos.”
O arcebispo parou e depois quis prosseguir.
Mais uma vez, Rigault o interrompeu. A polícia tinha informação
suficiente, ele disse, para mostrar que os padres estavam tramando contra
o governo de Versalhes, que os sacerdotes eram responsáveis pelos
conflitos recentes em que a Guarda Nacional foi derrotada pelas tropas de
Versalhes. Havia traidores, isso era certeza. A informação estava vazando.
Finalmente, eles tinhas os culpados e pretendiam segurá-los.
E, conforme o abade quis responder, “Basta,” interrompeu Rigault
secamente. “Vocês, companheiros, lidam com isso há dezoito séculos. Já que
recusam-se a confessar a conspiração de vocês, o assunto será investigado.
Enquanto isso, vou segurá-los.”
Ele arranjou uma folha de papel e escreveu, “O diretor da Dépôt manterá
incomunicáveis os dois, autodenominados Darboy e Lagarde.” Pelas
paredes das igrejas vazias, foram colocadas placas: Estábulo para
aluguel.17 As casas religiosas foram entregues como locais de reuniões
aos clubes políticos.
A polícia estava certa num aspecto: houve traição e houve conspiração.
Nenhum governo foi mais conspirado contra e mais repleto de traições
do que a Comuna, mas ao procurar a infecção no sacerdócio e nas
organizações religiosas, a polícia perdeu o ninho de cobras verdadeiro,
o Café de Suede, de onde a rede espalhava-se por toda a Comuna.
Paris estava cheia de homens para quem a revolta foi uma oportunidade
de especulação pura. O governo Thiers em Versalhes sabia dos preços a serem
pagos e estava preparado com esse dinheiro. Os homens ocupando cargos
altos na Comuna vinham ao Cadé de Suede e recebiam o ouro. Capitão Barral
de Montfort, entre o pessoal da sétima legião, um oficial honrado das
forças militares da Comuna, sentou-se lá, numa pequena mesa, e

17
“Se até Jesus Cristo nasceu num estábulo,” escreveu Rochefort, o jornalista
sábio, “pode não ser ofensivo para a maioria dos religiosos ver as igrejas
transformando-se em estábulos.”
conversou, com casualidade, sob uma nuvem pesada de fumaça de
cigarro. Ao que tudo indica, era apenas uma hora de lazer, e um
momento para respostas enérgicas.
Contudo, todos os que vieram vê-lo por lá eram agentes. Ele os recebia
como amigos, conversavam sobre diferentes assuntos, dava para eles
algumas notas do Banque de France. O preço era acordado: Por abrir um
portão, cinco mil francos, a ser debitado ao prefeito da polícia de Versalhes;
dez mil francos para um batalhão, a ser cobrado pelo Ministério de Guerra;
três mil francos para um homem – o Ministério do Interior pagou por isso. Essa
era a atividade que continuou enquanto a polícia se esgotava caçando por
alguma comunicação subterrânea com Versalhes, dezenas de túneis possíveis
suspeitos, mas nenhum encontrado. Esta foi a atividade seguida enquanto a
polícia perseguia assassinos inexistentes de cadáveres mortos há cem anos.
Quando a reunião de negócios no Café de Suede terminou, os copos
esvaziaram-se e os cinzeiros cheios das cinzas prateadas de cigarro,
então Capitão Barral de Captain Barral de Montfort levantou e, antes de
retornar aos deveres militares, pegou um táxi e andou até a cantina,
onde o ducentésimo quarto batalhão congregou.
Uma surpreendende beleza de cabelos escuros olhou à sua entrada.
“Bem, qual é a novidade de hoje, Sophia?” disse com casualidade.
Ela olhou ao redor para ter certeza de que não era observada e depois
sussurrou, “Ouvi dizer que as tropas estão sendo retiradas do reduto em
Hautes Bruyères e do posto avançado de Cachan.”
“Hum! Que filme idiota.” “Tudo bem com você?”
“Pode ser. Se eles estiverem fracos por lá, assim, essa é a nossa vez de
atacar.”
Ela sorriu levemente. “Deixe-me saber como funciona. E se eu fiz o meu
trabalho direito, se eu paguei, você faz a sua parte.”
“Você pode confiar em mim,” ele declarou em solenidade. Depois
falou sobre diferentes assuntos. Ela tirou o avental que protegia o
vestino fino, e foram passear de mãos dadas.
“Você ainda o ama?” questionou. Havia uma expressão amarga ao redor
da sua boca. “Claro,” respondeu sem cuidados.
“Você é mentirosa,” ele retrucou. Parou num canto solitário e
agarrou-a pelos ombros. “Por que você mente?” Ele a sacudiu e levantou a
voz, “Diga-me por que você mente?” Ele gritaria se houvesse tentado.
“Não seja idiota,” disse, aborrecida.
“Huh! Você que não tenho olhos para ver? Seu rosto está ficando
cada diam ais pálido. Cada vez mais como uma mascara laqueada.”
“Por que você sempre precisa ser irritante?”
O seu rosto distorceu como se ele fosse começar a chorar. “Você não
sabe que eu amo você?” interrogou triste e quietamente.
“Você é um bom menino, Barral. Eu gostaria de amá-lo também. Mas
agora é muito tarde.”
“Não diga isso,” exclamou. “Por que é muito tarde? Venha, vamos deixar
esta cidade terrível. Posso sair daqui a qualquer hora se eu quiser.” E como
ela não deu nenhuma resposta além de olhar distante, como se esperasse
por algo fora de alcance, ele continuou às pressas, “Venha, vamos juntos
pelo país, para o meu pequeno local em Vallauris.”
Ela o cortou rápido. “Vamos pegar um táxi. Preciso me apressar; ele
ficará me esperando. Ele está fazendo guarda no Picpus e será descontado por
esse tempo.”
Ele murmurou algo com a respiração. Ela não entendeu as suas palavras,
mas demonstrou a importância delas. “Não se atreva a encostar num fio de
cabelo da cabeça dele! Coloque-se no seu lugar. Se qualquer coisa acontecer
com ele, tenha você feito ou não, eu vou matá-lo.”
“Prometo que não farei nada para ele,” disse, “e manteria minha
promessa. – Olha, você vai me dar o seu endereço?”
“Para que?” ela perguntou, desconfiada.
Ele não responderia por um momento. No entanto, mais tarde, sentado
no táxi, ele repetiu o pedido.
“Eu não sei para que você está querendo o meu endereço. Suponho que
queira contar para tia Luíza aonde vou.”
“Não,” respondeu sombriamente. “É outra coisa. Quero escrever para
você. Você sabe há quanto tempo tenho o hábito de escrever para você todas
as noites. Bem, não posso parar. E quanto a entregar minhas cartas
pessoalmente, não é a mesma coisa. Haveria tanto prazer ligado a esse ato, de
sair tarde da noite para postar uma carta para você.”
“Isso é doce de você, Barral. Você sempre é muito dócil.”
Um nódulo subiu para a sua garganta. Ele tirou vantagem. “E, claro,
como você saiu da casa da Mme. Hertzog, não funcionaria enviar as cartas
para lá, porque eu sei que você quer que ela pense que nós estamos
juntos.”
“Você é mesmo muito dócil, Barral,” ela repetiu, profundamente
comovida. E colocou as suas mãos na dele. “Você é muito bom para mim. Ó,
você não faz ideia de como sou podre. Das coisas horríveis que eu faço. Ó,
Barral, você deveria ser grato por eu estar saindo da sua vida.” Assim que ela
disse isso, ficou consciente de algo mais do que simpatia por Barral. Estava
consciente de um toque de orgulho. Sentiu-se superior ao “doce” Barral. Ela
era muito, muito ruim mesmo.
CAPÍTULO QUINZE
O escritor pede desculpas pela confusão dos últimos capítulos. Pela
cronologia do manuscrito não estar muito clara, e também pela elucidação
dos eventos históricos não ser nada fácil.
Como já falamos, Aymar primeiro ficou cara a cara com Bertrand
durante o caso Picpus, e mesmo com a nossa elaboração dos escritos
de Galliez, seguimos com a pista no último capítulo e pretendemos
voltar ao nosso dever neste.
Aymar estava vagamente familiarizado com o Comissário de Polícia
Clavier, que era do comando em Picpus, e um dia ficou por um momento
conversando com ele do lado de fora dos prédios que estavam sendo
investigados, quando um soldado veio correndo informar o comissário da
descoberta dos cadáveres na cripta. Clavier apressou-se para dentro, e
Aymar seguiu. Alguns operários, auxiliados pelos soldados da Guarda
Nacional, traziam os caixões para a luz, o mais rápido que conseguiam ser
retirados debaixo do chão da cripta.
A over um dos soldados, um calafrio percorreu pelas costas de Aymar.
Não foi apenas o reconhecimento de Bertrand, do seu rosto vermelho e
transpirado, trabalhando sob a carga pesada de um caixão, que o fez tremer.
Era outra coisa.
Poucos meses atrás, ele esteve caminhando por uma rua da seção da
Bastilha e, enquanto isso, pensava em Bertrand, que foi algo natural, e
questionava se não estaria totalmente enganado e Bertrand não estivesse em
Paris, afinal, talvez nunca esteve, e de tanto pensar, Aymar de repente notou
uma placa grande e vermelha sobre uma loja. Cartas brancas proclamadas,
Guerre a outrance!18 Era um açougue de gatos, cachorros e ratos, de uma
rede que existia na cidade.
Conforme ele passou pela porta, espiou o interior. Um grupo de donas
de casa enroladas em xales esperavam para fazer as compras. A esposa do
açougueiro estava colocando a carne no papel velho. Ele balançava o cutelo
pesado que estava cheio de sangue. O seu rosto enorme e simpático estava
tenso e vermelho, satisfeito com o esforço do braço balançando.
Aymar prosseguiu a caminhada, mas a visão daquele rosto permaneceu
com ele, repousando como uma imagem em papel transparente sobre a
tensão dos seus pensamentos. Três quarteirões depois, ele exclamou, “Nossa,
era o padre Pitamonte!” Apressou-se de volta para se assegurar disso, mas
quando olhou novamente, o açougueiro parecia mesmo com o padre
Pitamonte, mas Aymar já não estava certo de que era ele. Afinal, já faz
muitos anos que ele não vê o padre. Enquanto olhava, Aymar sentiu,
alternadamente, certeza e incerteza. Deve ser o padre Pitamonte, e depois,
mais uma vez… Desconcertado, ele foi embora.
E agora, enquanto olhava para Bertrand esforçando-se sob o peso de
um caixão pesado, teve essa mesma sensação alternada: Deve ser o padre
Pitamonte, e depois, mais uma vez… Porém, era apenas Bertrand crescido,
um pouco mais velho e mais pesado. O sangue de Aymar estava pulsando.
Este era o momento pelo qual esteve esperando. O que ele faria? Gritaria?
Pularia em cima de Bertrand? Inflamaria a capela abobadada com maldições

18
Guerra até o fim amargo!
lançadas contra o monstro? Em vez de anátemas, somente palavras irônicas
vieram à mente.
Ele ficou entre a multidão próxima ao caixão, enquanto a tampa estava
sendo arrancada. Bertrand estava logo à sua frente. Ele tocou no braço do
jovem soldado e, quando Bertrand virou, disse calmamente: “Trabalho
apropriado.”
Bertrand, assustado, ofegou, “Tio...” “Esse é o seu talento especial,
heim?!” “Tio...”
“Quero dizer, a sua especialidade, né?”
Bertrand empurrou-se para fora do tumulto, que estava feliz em
fluir ao espaço que ele deixou. Foi até um banco e Aymar o seguiu.
“Sabia que encontraria você aqui,” Aymar conduziu.
Bertrand olhava para cima com uma expressão inocente nos olhos
castanhos. O rosto barbeado, visto de perto, ainda era jovem e
atraente, assim refletiu Aymar. Mas quando Bertrand abriu a boca
para perguntar, “Como você sabia disso?” logo a visão dos dentes brancos,
com os caninos grandes se cruzando, deixou Aymar consciente do que estava
escondido por baixo daquele exterior elegante.
“Você está me perguntando como eu sabia que encontraria você aqui? E
você acha que eu esqueci você e os seus gostos?” “Você é cruel.”
Aymar riu ao acaso. “Evidentemente, você não é nada além de
bondoso.” “Eu sofria,” Bertrand respondeu.
“E aqueles que você matou? Eles não sofreram, eu suponho. Você acha
que eu não observei você, mesmo que fosse de longe? Havia, deixe-me ver:
Jacques, em primeiro lugar. Como? Você se esqueceu dele? Bem, suponho
que quando você tem muito a lembrar, quando está muito terrivelmente
ocupado…”
“Tio,” Bertrand implorou, de cabeça abaixada.
“E aqui está alguém que você pode adicionar à sua lista,” Aymar disse
relembrando de repente. “Quando o correio voltou, depois do armistício,
recebi uma carta de Françoise. A propósito, você nunca pensou em
escrever, pensou? Dezessete anos de bons cuidados e comid a, e depois
vai embora.”
“Você estava me mantendo um prisioneiro,” Bertrand defendeu-se
humildemente, ainda cabisbaixo. “E eu fiz errado, suponho?”
“Não,” o soldado expirou.
“Hum. Bem, estou feliz de ouvi-lo admitir isso tudo. Isso ajuda. Ah,
sim. Como estava dizendo, Françoise escreveu para me contar que o
fazendeiro acusado pela morte de Jacques foi absolvido. Mas a cidade
inteira ainda permaneu unida, considerando-o culpado. A vida tornou-se
insuportável para ele. Enforcou-se.”
Bertrand suspirou.
“Sobre o assunto de desenterrar o miserável Vaubois, você nunca
suspeitou de que o pastor, Crotez, seria acusado pelo serviço? Ou no caso
da filha do General Danmon, que um pobre croque-mort, o cocheiro, João
Roberto, iria para a prisão por isso, e a família dele seria destituída? Quantos
outros sofreram por você, não posso dizer. Culpo-me por ficar calado sobre
essas coisas. Eu deveria ter gritado sua culpa de cima das casas. Mas estava
envergonhado. Sim, envergonhado. Como um homem que tem medo de ser
surpreendido numa cumplicidade. É isso. Eu não quis que as pessoas
soubessem que eu estava ligado, ainda que distante, com um monstro como
você.”
“Tio,” Bertrand suplicou.
“Sim, monstro,” Aymar continuou, trabalhando a própria raiva, elevando
a voz a um sussurro rouco. “Sim, um monstro, o homem que poderia matar
prostitutas como La belle Normande. Que também foi você, não foi?
Confesse! Todos esses assassinatos foram seus!”
Bertrand abaixou a cabeça. O seu corpo inteiro começou a tremer.
“Sua besta,” Aymar choramingou numa voz subjugada. “Você − seu
loup-garou!”
Com isso, Bertrand empurrou os dedos contra os dentes para
estrangular um desejo selvagem de gritar, um grito que viria somente como
um gemido. O público, clamando ao redor dos crimes recém-descobertos dos
monges, os dezoito caixões das jovens, não presto atenção aos dois que
sentavam-se distantes. Nem os oficiais, bastante acostumados com a
disciplina frouxa da Guarda Nacional, preocupavam-se com Bertrand.
O corpo do jovem rapaz estava abalado pelos tremores violentos. “Não
é isso!” ele soluçou. “Ó, não é ruim o suficiente saber que é um
lobisomem, desde que isso não esteja escancarado como uma censura? ”
Aymar ficou comovido. Ele foi muito cruel. Era um infortúnio do garoto,
não o seu pecado. “Sinto muito, Bertrand. Por anos eu tentei poupar você de
saber. Tentei ajudá-lo. Nem mesmo contava para sua mãe o que havia de
errado. Muitas vezes, foi uma tarefa difícil.”
“A mamãe nunca soube?” “Acho que não.” “Como ela está?”
“Bem, acho que ela está bem,” Aymar lamentou.
“O que você quer dizer?” Bertrand perguntou, com o despertar das
suspeitas. “Nada. Entende, não se recebe tantas mensagens hoje em dia.”
“Conte-me,” Bertrand insistiu, “Eu quero saber.”
E Aymar cogitou, Por que eu tentaria esconder dele a vergonha
da mãe? É uma questão tão pequena comparada com as outras. – “Sua
mãe,” ele disse, tomando uma respiração profunda, “foi vista grávida e isso
causou um escândalo pelo povoado, a mãe de Jacques, especificamente,
falava muito e acusou-me de relações pecaminosas com sua mãe, o que,
claro, não era verdade, quero dizer, não era tanto −” Ele parou, preenchido
com memórias.
“Continue.”
“Bem, Françoise não suportaria isso, e assim que viu o jovem Guillemin
esgueirando-se ao redor de casa, aproveitou a chance enorme e o acusou. Sua
mãe também confessou que foi isso, mas, a princío, Guillemin negou. Mas a
verdade foi tão evidente que, um dia, eles fugiram juntos. ”
“Aonde?”
“Ninguém sabe.” Aymar balançou a cabeça e suspirou. Bertrand
também balançou a cabeça. “Essa também,” ele disse lentamente.
Outra vergonha para o rapaz suportar, Aymar pensou e acenou a
cabeça em tristeza. Depois, num piscar de olhos, ele entendeu. “O que?
Mais essa! − Bon Dieu!”
“Sim,” respondeu Bertrand, olhando para frente e, de imediato, para o
tio. “Mais essa. Mas é tudo passado. Está tudo acabado agora. Graças a
Deus, por isso.”
“O que você quer dizer com passado?”
“Terminou. Estou curado,” retrucou simplesmente.
Eles estava tentando escapar? Aymar indagou, ou ele estava mesmo
curado? “Como?” ele teimou.
“Não sei. Sim, estou curado. Uma garota. Estou apaixonado. Ela me
curou. Ela me impede de −” Ele não terminou.
Poderia ser verdade? Não, impossível. E, além do mais, Aymar
argumentou, os crimes caíram de repente. Então, essa era a explicação? Amor?
O milagre do Amor? O amor por uma mulher boa.
“Quem é ela?”
“O nome dela é – Bem, eu prefiro não dizer. Mas você vai vê-la, porque
ela me encontrará aqui. Saio do trabalho às cinco. Não vou apresentar para
você. Mas poderá vê-la à distância. Ela é rica, muito bonita e boa demais. Ah,
você não imagina o quanto ela é boa. Não, não pode ter nem ideia.”
“Hum,” disse Aymar e sorriu. Curado por um caso de amor. E, assim
como Bertrand, transformou-se num pretendente do amor. Pois essa é a
ironia da vida. Aymar não duvidava de que essa relação era pura e doce, com
sentimento doentio.
Uma série de contos de fadas antigos, conectados pelos Grimm19 aos
lobisomens e, por esse motivo, chamavam a atenção de Aymar durante o

19
Mitologia alemã. Göttingen, 1835.
estudo sobre o assunto, saltaram sobre a sua cabeça. Era uma história de
variações infinitas, o príncipe transformou-se num lagarto asqueroso ou num
sapo, ou em algum outro animal repugnante e perigoso, e requer o amor de
uma virgem pura para transformá-lo de volta à forma humana. Claro, ninguém
vai aceitar se casar com um sapo. Porém, finalmente, uma garota pura e
inocente, cheia de piedade, consente com o casamento e leva-o para a cama –
o sapo, então, deixa de ser sapo para se tornar um príncipe. E os dois, de
certo, viveram felizes para sempre.
E esse pesadelo também terminaria com um amanhecer todo cor-de-
rosa pérola e perfumado? E Bertrand viveria feliz para sempre? Qual seria a
verdade nessas histórias antigas? Seria esse o jeito de curá-los?
A Bela e a Fera. Sim. Havia uma sabedoria profunda naqueles contos.
“Vejo ela ali, agora do lado de fora,” Bertrand declarou num sussurro
animado. “Venha e olhe para ela, tio, à distância. Ela é a coisa mais linda que
você já viu.”
Bertrand saiu correndo e cumprimentou Sophia com um beijo. Eles
agarraram um ao outro como se estivessem separados há um ano.
Aymar observou da entrada da igreja. Viu um policial jovem pagar o
cocheiro e sair de perto, de cabeça baixa, como se não houvesse nada a
ver com essa cena, mas atento a este detalhe. Evidentemente, o irmão
dela. Ela era mesmo uma coisa linda. Ele já não a havia visto em algum
lugar antes? Mas onde?
E Aymar viu Bertrand e a amada sairem de mãos dadas. “E as ovelhas
deitarão com os lobos,” citou, “e eles baterão as próprias espadas nos
arados.” Um verdadeiro amor de bezerros, ele pensou. E depois disse para
ele mesmo, com cinismo, “Duvido...”
Ocorreu a ele, Suponha que eu fale com aquele oficial. Talvez descubra
se fiz o certo em deixá-lo ir, depois de estar caçando por ele há muito tempo.
Ele abordou o policial, que estava parado na calçada, como se estivesse
esperando outro táxi chegar, para que pudesse pagar outro cocheiro.
“Com licença,” disse Aymar. “Você se importaria se eu fizesse uma
pergunta para você?”
Capião Barral de Montfort deixou, naquele instante, de ser um
amante infeliz e tornou-se um espião. “Não mesmo,” ele respondeu.
“Mas se vai conseguir uma resposta é outra questão.”
“Entendu,” disse Aymar. “Você conhece aquela jovem dama?” “Talvez.”
“Você conhece o rapaz jovem?” “Não.”
“Bem, muito obrigado pela sua cortesia,” disse Aymar. “Espero não
haver incomodado muito o senhor.”
“Pas de quoi,” disse Montfort. Porém, assim que Aymar virou-se para
sair, o capitão repensou, “A mon tour maintenant: Você conhece a jovem?”
“Não.”
“Você conhece o rapaz?” “Talvez.”
Aymar sorriu, e o Capitão retribuiu.
“Eu acho,” falou Aymar, “que se nós juntarmos nossas partes de
conhecimento, alguma coisa pode vir disso. Venha, vamos nos sentar em
algum lugar.”
Eles encontraram uma cafeteria por perto, sentaram-se e pediram as
bebidas. Mas a conversa não queria seguir em frente, a razão, pois, cada um
queria receber mais do que dava. Barral não estava ansioso para revelar a sua
história de amor triste, nem Aymar estava pronto para divulgar a verdade
sobre Bertrand. Ele falou vagamente de uma natureza misteriosa e detestável,
mas não disse nada dos crimes.
“Entendo,” Barral disse num certo momento, “que você não tem
nenhuma opinião muito ávida do seu sobrinho. Isso coincide por complete
com a minha. Deixe-me falar de algo que eu mesmo tenho observado,”
continuou. “Quando ela começou a sair com esse camarada, ela mostrava
um rubor incomum nas bochechas. Fiquei impressionado com isso, pois isso
aumentou a sua beleza, mas também estava assustado. Essa pigmentação
arisca acrescentava um brilho forte e estranho àqueles olhos. De início,
pensei que poderiam ser sintomas do princípio de alguma doença. Mas não,
na verdade, ela estava em perfeita saúde. Eu fui entender mais tarde. Ela
estava enfeitiçada. O que mais explicaria essa garota linda, a criatura mais
feliz e engraçada que você já viu, mimada a vida toda dentro de uma casa
luxuosa, ficar com um menino pobre e mal-humorado desses??”
Por alguma razão obscura, isso irritou Aymar. Agora ele assumiu a defesa
de Bertrand, não muito vigorosa, mas até um limite determinado.
Como se se desculpasse, ele disse, “Por que você não comunicou aos
pais dela?” “Bem, veja,” disse Barral, obviamente confuso, “ela me fez
prometer não contar.”
Empaticamente apaixonado por ela, Aymar concluiu. Coitado. E o pior,
eu, idiota, por deixar Bertrand ir sem obstáculos.
Após uma hora desse tipo de conversa desconexa, levantaram-se, tão
poucos satisfeitos com os resultados do falatório e ambos imbuídos de um
senso de fatalidade. Barral, que havia começado o diálogo com muita
esperança, vendo o fim se aproximando, não conseguiu prender o choro:
“Mas, monsieur, não há algo que você possa dizer para seu sobrinho? Não
há algo que você conseguiria fazer?”
Aymar bateu no ombro dele. “Meu amigo, esse é o seu trabalho. Porém,
deixe-me alertá-lo. Faça algo! E faça rápido.” E, com isso, ele saiu mancando,
sentindo-se tão satisfeito que, se Bertrand ainda fosse um criminoso, então,
por causa dessa última advertência, haveria cumprido o dever, nisso o jovem
Capitão estaria incitado a um movimento desesperado e, portanto,
resolveria o problema todo; e que, por outro lado, se agora Bertrand
estivesse mudado, então ele havia feito o certo de novo por não forças as
coisas. Porém, a longo prazo, temeu que essa indecisão não provasse o
melhor curso. Anos de timidez, entretanto, tornavam a dúvida de Bertrand um
caso permanente.
Barral, observando Aymar sair, quis correr atrás dele e berrar, Por que
você diz isso? Por que insinuou somente coisas terríveis? Venha, você tem que
me ajudar. Devemos trabalhar juntos!
Apesar disso, foi para casa e começou a escrever a carta para Sophia,
como o costume das noites. Esse era o único momento mais tranquilo e
bonito do dia. Logo a duplicidade desse serviço secreto terminou, Bertrand
desapareceu dos seus pensamentos, concentrava-se em recordar
exatamente como Sophia parecia a cada dia, deveria ser há dois anos
atrás. Ele queria relembrar do vestido certo, a cor do taffeta, a
natureza no design das fitas que prendiam em guirlandas, de arco em
arco, em torno da saia volumosa. Qu eria lembrar as palavras precisas
da conversa deles naquela noite e intrigava -se em ideias para
encontrar citações da carta daquela data.
Tudo estava de volta ao passado e impossível de colocar as mãos, mas
era surpreendente como as coisas saltavam de repente do escuro e pairavam
diante dos olhos como se houvessem acontecido ontem.
Revivendo o passado, assim, ele teve o prazer de cortejar Sophia mais
uma vez e de pensar que o amor dela havia voltado. A sua memória era
naturalmente boa. Fez quase o trabalho inteiro de espião de boca a boca e
memória, pois, assim, evitava manter papéis que forneceriam evidências
incriminatórias.
Tarde da noite, quando terminou sua missiva, saiu e postou-la. Então
ocorreu-lhe: Havia mesmo esse endereço? E ela morava lá? Se houvesse de
verdade um número assim na rua, então, provavelmente, ela havia contado a
verdade.
Ele foi vagando pelas intermináveis ruas silenciosas e arrepiantes até
o endereço indicado. A distância era considerável, porém ele não se
importava. Por fim, encontrou o local. O número estaca correto. Qual era o
apartamento deles? Interrogou-se. Ele atravessou a rua e olhou para cima.
No escuro, todas as janelas eram quadrados pretos maçantes contra o
edifício de pedra. Ao lado, havia uma passage estreita. Talvez a janela dela
fosse de frente a essa direção? Não. Tudo estava escuro. Provalvelmente,
eles estavam dormindo. Com sonos. Em uma cama. Lado a lado. Ou sem
sono – deitados acordados na escuridão.
Ele quase gritou de dor. Naquele momento, um brilho fraco vinha da
base do prédio. Atrás da janela semi-subterrânea alguém acendeu uma vela.
Ele foi ouvido, e agora as pessoas estavam abrindo as janelas e olhando.
Estava próximo de fugir. Mas não. A janela permanecia fechada e brilhando,
pela luz das velas filtrada através de uma cortina branca densa, uma possível
peça de lençol.
Supondo que fosse o quarto deles? Inclinou-se e olhou. Dava para
enxergar através um interior, mas tão sutilmente que nada era
reconhecível. Havia vozes. Elas vinham por um vão feito para ventilação.
Homem e mulher, pelo que parecia. Mas diziam em tantos sussurros que foi
impossível identificar de quem seriam as vozes ou o que estavam dizendo.
Emocionalmente exausto, Barral finalmente saiu. A vela ainda queimava.
“Bah!” disse Barral, “provavelmente a mãe e o filho doente.” Mas ele não
acreditava nisso. Pelo contrário, ele estava certo de que essa era a janela
deles. Cambaleou pelas ruas como um bêbado. Com a mente tumultuada.
“Eu nunca mais devo fazer isso,” disse a ele mesmo, “Se eu fosse visto,
isso seria contra mim. E depois de todas as preucauções que tomei para não
ser suspeito de espionagem!”
Sim, atrás desse cortinado soupirail, eles descansavam. Os abraços da
noite os cansaram. Dormiram.
De repente, Bertrand acordou. Com frequência, ele havia um sono leve.
O menor barulho lá for a iria despertá-lo. Estava deitado, bem acordado,
esperando o sono pegá-lo de volta.
O quarto estava escuro e aconchegante, apesar de não conseguir
encontrar qualquer sono nele mesmo. Ficou irritado com isso, aborrecido. O
seu corpo estava pegando fogo.
Ela o ouviu e virou-se. “Você não pode ficar quieto?” ela disse,
impaciente. Todas as células do corpo doíam para dormir.
Ele suspirou.
Logo a sua pena despertou. “Coitado de você,” disse em compaixão
e colocou os braço em volta dele. Eles se beijaram. Ele mordeu a sua
orelha, brincando. Abraçaram-se firmemente. “Por favor...” ele
murmurou, estava chateado com ele mesmo pela pergunta. Por que ele
fez isso?
“Se você precisa,” ela renunciou. “Está na mesa.”
Irado com ele mesmo, e com ela, por concordar, mas incapaz de se
conter nesse momento, levantou-se e acendeu uma vela. A lâmina afiada da
faca piscou laranja.
Ele a descobriu. Havia uma parte do seu corpo que não havia mais
cortes. Os mais antigos estavam curados, em cicatrizes que
atravessavam a sua pele escura com linhas visivelmente mais claras do
que a superfície circundante. Os mais recentes eram vergões vermelhos
horríveis ou com crostas duras das casquinhas. À luz de velas, estes
eram últimos eram como joias antigas ou casco de tartaruga polido.
Suprimindo a hesitação momentânea, inclinou-se sobre o seu corpo… O
sangramento aumentou, vermelho-rubi. Ele colocou a boca diretamente nisso
e bebeu em ganância. Os lábios faziam uns barulhos feios, chupando,
enquanto esforçavam-se para extrair todo o sangue que ele conseguia.
Enquanto isso, os dedos dela brincavam com o seu cabelo. “Pobre
bebezinho,” murmurou. A sua cabeça cambaleou, repleta de imagens
infundadas, numa sequência fragmentada de pensamentos
desconexos.
Agora eles estavam presos um nos braços do outro novamente.
Finalmente o sono separou-lhes. Eles ficaram exaustos, os membros
ainda emaranhados, o suor dos abraços secando na brisa da noite. A vela
queimava distraída, até que a chama expirou numa massa de cera
derretida.
De manhã, quando a luz do dia os acordou, ele era uma pessoa
diferente. Parecia honrado pelos últimos atos. Com a ponto dos dedos, ele
tocou-lhe nas feridas e chorou.
“Estou matando você,” lamentou. “Que destino!” Ele deu um tapa na
própria testa com a palma da mão, aquela palma felpuda.
Ela gargalhou entre suas lágrimas. “Não seja besta, Bertrand. Além
do mais, eu morreria fel iz por você.” Uma apunhalada
inexplicável acompanhava a ideia de morte.
Ele não seria consolado. “Se eu tivesse qualquer humanidade, eu me
mataria o quanto antes de arranhasse você.” “Não, Bertrand! Não! O que eu
faria se você me deixasse?”
Os dedos tateavam atrás da última ferida que ele havia feito. Fechou
os olhos para que não fosse tentado a olhá-la, quando a havia encontrado.
“Eu fiz isso?” murmurou. “Fiz. – Como você me deixou? Por que não me
matou de uma vez?”
“Não seja besta, Bertrand,” ela repetiu e afastou os seus pensamentos
sombrios com beijos.
O sol estava lá fora, e era hora dos pensamentos prazerosos. A noite
terminou, e as ideias malucas dos momentos obscuros retornariam de volta às
tumbas que as exalam.
A porteira vinha correndo até eles enquanto estavam atravessando o
pátio de paralelepípedos. “Madame,” ela gritou, “uma carta para você.”
“Uma carta?” Bertrand perguntou.
“Sim, uma carta,” disse a porteira e sorriu para eles.
Sophia logo reconheceu a letra. Era a carta do dia, de Barral.
“Não é nada,” ela respondeu a desconfiança no rosto dele. “Você pode
ler ou, melhor ainda, jogá-la fora.” “Eu deveria?” questionou, com as mãos
prestes a rasgar a carta ao meio.
“Se não fizer, eu o farei, assim está resolvido. – Agora vamos tomar o
café da manhã. Estou faminta.” O som do papel rasgando foi agradável aos
seus ouvidos.
Ambos estavam de alto astral durante o café matinal. Ele falou sobre o
que faria quando a guerra acabasse. Voltaria a estudar medicina. “Meu tio tem
muito dinheiro,” disse.
“E eu. Não tenho dinheiro?” ela retrucou. “Meu pai me daria milhões, se
eu apenas dissesse isso. Além disso, de qualquer modo, tudo será meu algum
dia. Nós iremos e moraremos no meu quarto, em casa.” Ela pensou numa
cama explêndida, com dossel azure. Havia momentos em que ela perdia a
luxúria polida do seu ambiente ancestral, as pinturas, os tapetes, os mármores
coloridos, o bronze e o ouro, e as madeiras refinadas ao brilho de um
espelho.
“Talvez,” ele pensou alto, “Eu consiga aprender a me controlar, ou
encontrar mais alguém para os meus momentos ruins e deixar o meu amor
puro para você.”
Isso a machucou. Machucou-lhe no fundo dos intestinos. Em seguida,
percebeu como se já houvesse experimentado essa sensação antes, na qual
estava com ciúme dessa “outra pessoa” que daria parte de si mesma para
Bertrand.
“Nao diga isso. Nunca diga isso,” ela disse baixinho. “Você é todo meu.
“Mas −” ele tentou.
“Shiu,” ela advertiu. Ela esfregou a imagem de Bertrand e da outra
garota dos pensamentos e retornou a ideia anterior: Então isso era ciúmes,
uma dor terrível que deixou toda comida desagradável de repente. E ela
pensou em Barral. “Pobre alma,” disse. “É isso o que ele sofre?” Nesse
momento, ela seria capaz de entregar-se para ele, ou para todos que já
precisaram dela. Para todo o batalhão, que olhava para ela com olhos
famintos e gananciosos. A todos aqueles rostos barbudos e sem barbas, que
queriam a maciez das suas bochechas. Àqueles braços duros, que
obstinavam esmargar o corpo leve. Àquelas mãos calejadas e sujas, que
desejavam tocá-la com carícias íntimas.
E todo esse amor pelo mundo masculino inteiro, que jorrava de dentro
dela, amarrotou-se e ascendeu aos lábios. Ela inclinou-se sobre a mesa
pequena e plantou-a cheia na boca de Bertrand. Ele sentia a dádiva.
Sentiu que o seu amor, o qual poderia dar a qualquer um, a todos, que o
maior amor que ela escolheu ser habitava nele, e sobre ele sozinho. Ele
ficou profundamente comovido e sem palavras em meio ao turbilhão das
emoções.
“Nunca, nunca fale de colocar outra entre nós, Bertrand,” ela disse.
“Você não sabe como isso machuca.” “Eu sei,” ele respondeu, “apenas −”
“Shiu. Não fui eu a primeira a se oferecer para você? Se não fui eu
de novo, quem comprou a faca porque você estava com medo de que
seus dentes fossem muito dolorosos? Não há nada que eu não faria por
você.”
Em seguida do silêncio, ela pensou no seu pai e na sua mãe,
repentinamente. Eles amavam um ao outro desse jeito? A sua mãe já havia
oferecido o corpo dela para o seu pai dessa maneira? Havia pungência nessa
ideia. De algum modo, ela não conseguia acreditar nem mesmo que o pai e a
mãe foram para a cama juntos. E, ainda, devem ter ido uma vez, pelo menos.
Porém, não poderia ter sido uma cama como à que ela e Bertrand
compartilharam, num porão, num mísero sofá, tão estrei ta que os
corpos ficariam íntimos durante a noite toda. O seu pai e a sua mãe já
acordaram e encontraram a vela queimada no pescoço da garrafa de
vinho em que estava presa?
CAPÍTULO DEZESSEIS
Eles apertavam um ao outro como duas crianças no escuro, quando são
oprimidas pelo destino, que sentem dever ultrapassá-lo algum dia ou outro. E
continuaram a se agarrar com todo o desespero de uma pessoa afogando.
Sentiram-se sendo sugados adentro desta noite enterna de nada, seguida do
breve dia de vida. As almas deles estavam fracas demais para ter garras
afiadas sobre seus corpos, como se soubessem que tão logo a morte roubaria-
lhes deste abrigo aconchegante da carne, que protegia a chama enfraquecida
dos espíritos respectivos, como se soubessem que essa vida deve ser breve,
não importa quanto tempo dure, pois nada que fôsse chegar a um fim seria
rápido, que eles entrelaçaram os braços, não se soltando mais, que juntaram
os lábios, um sobre o outro, temendo separá-los por algo escorregadio entre
eles, que não desejaram nada, dia e noite, além de ele inflingir dor, e ela sentir
o corpo ferido e cortado, de modo a perceberem que estavam vivos de
verdade, vivos pelo menos neste momento pequento do agora, sem importar
o quão mortos ou privados de humanidade eles estariam em todos os
momentos futuros que virão.
Uma noite de amor e um dia de companheirismo não os satisfaziam. Os
pensamentos deles brincavam uns com os outros durante as horas de
repouso. Ele ficava insaciável. O corpo dela era uma fonte de sangue
para ele. Como se respondesse a suas necessidades. Ela ficava vil e
sensual com sangue, que nem uma mãe amamentando com o leite
materno.
Quando ela andava, o seu corpo balançava. Ela não conseguia controlar
o movimentos dos seus quadris. Como se ainda o tivesse entre seus braços e,
de fato, nos hematomas sobre seu corpo, ela ainda carregava o sentimento
dele. É por isso que, quando ela estava sozinha, e ele de plantão onde ela não
podia seguir, o que era raro já que agarravam-se até mesmo pelos muros, ela
trazia o seu braço à boca e beijava em algum lugar que ele havia machucado.
Curiosa, mas compreensivelmente, essa intimidade perpétua permitiu-
lhes encarar a perspectiva da morte com coragem. Agora ela implorava a
ele, com frequência, para não se expor ao perigo, já que as tropas de
Versalhes estavam cercando a cidade e travando um estado de guerra
vicioso contra os Comunas.
Mas quando ele perguntou para ela, “O que você vai fazer se eu levar
um tiro?”, ela respondeu, “Vou atirar em mim, também.” E nenhum deles
estremeceu. Eles poderiam morrer juntos. O que quer que houvesse
além do túmulo, mesmo que fosse nada, pelos menos seria
compartilhado. A ideia de sobreviver ou ter sobrevivido tornou-se
intolerável.
Tal era o humor deles que muitas vezes falavam de cometer sucídio,
pulando de um telhado enquanto um abraçava o outro. Uma morte assim não
haveria sido uma morte de verdade, seria somente uma forma de carinho mais
selvagem do que qualquer outra que já haviam praticado até então.
Ela havia afiliado-se permanentemente ao 204º batalhão como cantinière
assistente, cuja função os homens já estavam afeiçoados mais do que
nunca. Adaptou-se bem a sua nova posição. Ela havia crescido, a uma
certa medida grosseira. Seus lábios estavam mais pesados e curvados
num beicinho frouxo, como se estivesse prestes a expelir um agouro.
Seu cabelo abundante, sobre o qual já havia esbanjado muita atenção,
ela agora juntava num nó apressado. A pele dela não estava mais
bronzeada do que morena. Mas essas mudanças não diminuíram sua
beleza, apenas alteraram.
Havia um certo desespero pelo ar. Dava para sentir a aproximação do
fim. Neste ponto, muitos da Comuna começaram a perder a cabeça. Courbet
teve o grandioso bronze da coluna Vendôme, glorificando as vistórias de
Napoleão, demolido. Uma fábrica grande de munição foi explodida por um
traidor. Muitas vidas foram perdidas. Nessa atmosfera de violência, não é
estranho notar que uma delegação científica foi indicada, cuja tarefa principal
parece ter sido a coleta dos materias inflamáveis, petróleo, enxofre, dinamite,
resina, entre outras quantidades de fusíveis rápidos, dos quais todos serviriam
para queimar Paris até o chão, caso estivesse prestes a ser tomada.
E pior ainda. Bombas de gás, designadas para asfixiar, ou outras feitas
para respingar ácido foram manufaturadas, apesar do pouco sucesso.
Anéis, cada um com um pequeno saco de veneno e uma pequena agulha
oca foram projetados para serem usados pelos prisioneiros contra seus
captores, sendo um pequeno arranhão suficiente para matar. Poucos
destes foram realmente produzidos e nenhum parece ter sido usado,
porém, o pouco que veio desses dispositivos continha sinais
impressionantes da condição desesperada dos Comunas.
E os dois no quarto pequeno do porão conseguiram sentir a tensão mais
do que os outros. Bertrand especialmente. O cheiro da morte fez ele querer
uivar. Encontraria um lamento selvagem formando-se pela garganta dele, mas
conteve-se em tempo. Sua mente continuava repetindo, “Estou curado.
Estou curado,” mas ele sabia que não estava e que mantinha a besta de
dentro dele distante apenas às custas de Sophia.
Ele acordava de noite e dizia para si mesmo: “Não me deixe fragilizado!
Deus! Não me deixe fragilizado!” Ele repetiu todos os trechos das orações que
conhecia e chamou todos os santos. Por fim, desesperado, ele agarrava a faca.
Sophia caiu no sono. Ultimamente, ela nem sempre acordava quando ele fazia
exigências dela. No sono, o corpo dele pressionava contra o seu gentilmente.
Em lentidão, ela mexia seus músculos relaxados, como se atuasse num sonho.
Quase em seguida, via-se insatisfeito. Então, um desejo maluco passava
por ele, pelos goles pequenos que fez, continuava até a fonte principal,
naquela parte macia do pescoço, e de novo ele sentia a sensação de ser
inundado por um dilúvio quente conforme o sangue jorra da artéria carótida.
Depois, ele balançava a sua cabeça insanamente. “Não, não!” Chorava
por trás dos seus dentes cerrados. “Ó, Deus! Afaste-me disso!” E pela noite
inteira era uma luta, para esmagar um desejo que levantava-se cada
vez mais forte após cada queda. Repetidas vezes, ele tentava saciar
sua sede doentia, mas o tanto que conseguia garantir era insuficiente.
“De todo jeito, estou matando-a aos poucos,” esbravejou, “por que não fiz
com ele?!”
Numa das vezes, inclusive, o desejo dos seus dentes prenderem-se
naquela garganta foi tão irresistível que ele pulou da cama, vestiu as roupas
com pressa e saiu correndo. Se precisasse, ele pensou, que seja, pelo menos,
outra pessoa além dela.
Dentro de alguns quarteirões ele encontrou um homem. Deparou-se
com suas mãos e seus pés saindo do chão, impulsionando seu corpo através
do ar. E com seus dentes caçando por uma garganta. O homem lutou com
força tremenda, invocada pelo terror. Gritos guturais e rosnados abafados
escaparam de Bertrand. Suas roupas atrapalhavam-lhe. Sabia que fez errado
ao colocá-las. Viu-se desabando sobre os paralelepípedos escorregadios, um
joelho pesado empurrado no seu estômago, e um punho sovando através da
defesa dos seus braços e batendo contra sua cabeça.
Quando Sophia acordou, tarde, pensou, a princípio, que Bertrand saiu
rápido para comprar alguma coisa pro café da manhã. Porém, quando um
tempo considerável havia passado, ela começou a se sentir
incomodada. Ele havia saído para se juntar ao batalhão no combate,
revolto agora próximo ao Porte Saint-Cloud? Mme. Labouvaye, a porteira,
não havia visto Monsieur. Sophia correu para a sede do batalhão. A loja
que servia para isso estava fechada. Ninguém poderia dar qualquer
informação. Ela ficou pra lá e pra cá, olhou em cada cantida e
interrogou todas as pessoas de roupas oficiais. Perseguiu uma dúzia de
direções erradas.
A noite constatou-lhe exausta física e mentalmente. Suas
esperanças aflorarvam centenas de vezes somente para serem
destruídas com frequência. Enfim, com fome e dor nos pés, contudo
despreocupada com o próprio conforto, retornou para o quarto deles.
Quando atravessou a quadra, estava certa de que ele estaria lá, esperando por
ela. Entretanto, o quarto estava escuro e vazio, e a bagunça estava
exatamente como ela deixou.
Jurou-lhe sucesso melhor pela manhã e deitou em busca de descanço.
Porém o sono não vinha. Sentiu falta do corpo atrás do seu. Da presença
garantida de Bertrand. Descobriu-se fazendo o que não fazia há vários
meses, esculpindo a escuridão em formas aterrorizantes, apavorando
as sombras com figuras agachadas, prestes a saltar sobre ela. Ela
conseguia vê-los, mexendo-se em posições de ataque, esperando por
um momento oportuno para pularem na garganta dela e matá -la. Por
que Bertrand não estava aqui para protegê-la? “Bertrand, Bertrand!” ela
gemeu.
Ela nunca mais o veria? Esse era o fim? Eles iriam para túmulos
separados? Então ela acabaria mesmo descansando no Cimetière Israelite? E
a imagem que ela sonhava muitas vezes tornaria-se verdade? Seus pais
chorando ao lado do caixão dela. Barral jurando vingança. Ela
conseguia ouvir o choro realmente. Sim, ela quase podia ouvir as
palavras de Barral. E agora eles a enterraram no chão. Ela podia
ouvir, sim, agora ela conseguia ouvir, podia ouvia ouvir
distintamente, pá após pá, jogarem a terra sobre a tampa que a
cobria.
Ela levantou em horror. O suor cobria seu corpo. Engasgou-se para
respirar.
Que estupidez a dela! Foi apenas alguém andando no andar de
cima. Algum trabalhador com botas reforçadas e pesadas.
Ela ouviu outro barulho. Este, finalmente, era Bertrand chegando em
casa. Até que enfim! Graças a Deus! Os passos ficaram mais altos. Ela
estava quase berrando, “Bertrand!” Então eles pausaram, diminuíram ao
longo do corredor. Extintos.
A escuridão fechou-se sobre ela de novo. Ela levantou e acendeu uma
vela. Havia apenas um resto pequeno dela, que logo queimou. A lamparina de
petróleo tinha um pavio curto que não se sobressaía. Além disso, o composto
à base de óleo estava quase acabando.
A vela piscou até acabar. Sophia não tinha deixado mais nada além de
alguns fósforos que economizou, acendendo-os em intervalos demorados.
Inevitavelmente eles deveriam ser usados. Mas, de algum jeito, ela
adormeceu com eles em sua mão úmida e quente, as cabeças de enxofre
dos fósforos amoleceram e se uniram. Ela acordou de manhã, com a massa
malcheirosa de produtos químicos aderindo à palma da mão. Não havia
nenhum sinal de Bertrand.
Na realidade, ele havia sido preso. Como ele e o seu captor eram
soldados, o caso foi deixado para a corte marcial.
Naquela manhã, enquanto Aymar estava caminhando, encontrou-se com
o Coronel Gois. Aymar o parabenizou. “Eu vi, alguns dias atrás, que você foi
nomeado presidente da nova corte marcial.”
“Como acontece,” Gois respondeu, “vamos ter a nossa primeirra sessão.
Há alguns casos interessantes a serem julgados. Muitos traidores, um homem
doente que tentou morder um camarada −”
Em seguida, Aymar interrompeu. “Um doido que tentou morder um
camarada?”
“Não sei de nada sobre isso,” esclareceu Gois, “mas se o caso interessa a
você, venha junto.”
No caminho, revelhou suas intenções para Aymar: restabelecer a
severidade do tribunal revolucionário. “Qual é o sentido de uma corte
marcial, se é para ser uma simples diretório de perdão?” ele reclamou.
“A corte marcial está perdendo o seu caráter revolucionário de
rapidez e severidade, e a culpa é do público que comparece à sessão.
Deveríamos funcionar atrás de portas fechadas, e matar cinco
inocentes antes de permitir um traidor escapar. Eu garanto a você que
nossos revezes militares acabariam de imediato.
“Sim,” ele continuou, “o erro que nós cometemos foi abolir a
guilhotina. Jogamos fora a ferramenta mais valiosa que os revolucionários
já tiveram à disposição deles.”
Ele não estava preocupado com o interesse particular de Aymar no
homem maluco que seria julgado nessa tarde. Talvez a mente dele estivesse
cheia com outros assuntos. As centenas de lençóis confiscados, capas de
travesseiros, etc., todos dos melhor linho damasco e mobília fina, etc., os
quais foram transportados para Londres, para ser um tipo de ninho de ovos no
caso da Comuna falhar. Ou também estaria questionando-se sobre a
especulação do alho, de que havia uma escassez séria. Ou esses contos são
meras invenções anticomunistas? Quem pode dizer? Certo de que seus amigos
mais próximos tinham pouco respeito por qualquer coisa que lhe pertencesse,
exceto sua garganta, que era capaz de aceitar bebidas sem pestanejar tanto
quanto ele se importava em engoli-las, e isso não era insignificante.
Distraído, preocupou-se com seus papéis e finalmente forneceu a Aymar
um passe para ver o louco. Il est permis au citoyen Galliez de communiquer
avec le citoyen Bertrand Caillet detenu pour la cour martiale a la prison du
Cherche-Midi, assinou e passou-lhe por Aymar, que, vendo o nome, agora
estava certo do conteúdo.
“É um negócio bom poder contar para você sobre esse homem” ele
confessou. “Eu também gostaria de escrever um pequeno relatório a você.”
“Será bem-vindo,” disse Gois. No entanto, não estou certo de que
haverá tempo para ir muito afundo no assunto. Em casos como esse ,
prefiro mostrar clemência para balancear minha severidade nos
assuntos mais importantes.”
Aymar correu para ver Bertrand. Um homem da Guarda Nacional
o levou até uma sala pequena, originalmente não destinada a uma
cela. Dentro dela, sentado num leito, es tava Bertrand, suas
caractrísticas quase irreconhecíveis por trás de manchas roxas . Uma
camisa de força imobilizava seus braços. Ele não ergueu a cabeça da
sua posição reprimida.
“Bertrand,” disse Aymar baixo.
“É você, tio?” Bertrand perguntou sem se mexer.
“Bertrand,” Aymar repetiu com compaixão. “Você, aqui? O que
aconteceu?”
“Nada. Deixe-me aqui. Quero morrer.” “Inde está Mile de Blumenberg?”
“Eu não sei. Nem quero saber. Nunca mais devo vê-la. Já causei mal o
bastante na minha vida.” “Ela está salva?”
“Espero que sim. Mas eu sei que arruinei a vida dela. Você lembra de
quando costumava me dar carne crua e dizia que era para minha anemia? Bem,
agora eu sei foi apenas um ardil. Só que não funcionou.”
“O que você está insinuando?” Aymar indulziu. Durante o
interrogatório dele, Bertrand explicou rapidamente o sacrifício de Sophia
por ele. E concluiu, “Não tente mais me salvar e não deixe Sophia saber
que estou aqui, pois não posso confiar em mim mesmo. É melhor que eu
morra.”
“Faz tempo que não tenho a intenção de salvar você. Bien au contraire.
Se você não houvesse me assegurado, aquela vez em Picpus, de que estava
curado, posso contar que colocaria você onde está agora. E farei o meu
melhor para que não fuja desta vez. Adeus, Bertrand.”
“Adeus, tio,” o garoto respondeu, ainda sem olhar para cima.
O coração de Aymar estava apertado. Ele poderia mesmo deixar o
rapaz assim? Não estava somente sacrificando Bertrand, mas todas
aquelas horas de instrução, todos aqueles anos de treinamento.
Alguém poderia esquecer dessas coisas totalmente e separar-se assim,
com tão poucas palavras?
“Não há mais nada que eu possa fazer por você?” Nenhuma resposta.
“Leve uma mensagem para Sophia?”
Bertrand balançou a cabeça em vigor. Então disse, “Diga adeus para
Françoise, ela sempre foi boa para mim, e para minha mãe, se você a vir.”
Aymar, com os olhos cheio de lágrimas, saiu mancando para for a e
pegou um táxi para casa. Sim, deixe isso ser o fim disso, ele refletiu, e
começou a trabalhar de imediato para preparer um relatório de condenação.
A princípio, havia proposto limitar-se a um esboço rápido dos crimes
implicados. Não tinha a intenção de fazer mais do que um resumo. Mas foi
levado pelo assunto e permitiu uma parte dos seus sentimentos pessoais no
texto breve. Era algo ridículo de se fazer e estava com vergonha disso. Mas
essas questões estiveram fermentando nele por muito tempo. Romperam-se
em frases frias, pelas quais gostaria de estabelecer uma narrativa simples da
carreira criminal. Nisso e naquilo, foi varrido por um fluxo de emoções que
traduziam-se num discurso inflamado, cheio de retóricas equivocadas, no
entanto natural mesmo assim, pois fluía direto ao ponto como se houvesse
nascido da caneta e não do seu cérebro.
E conforme ele continuava, esquentava o assunto. Permitiu-se
observações que eram blasfêmias para as mentes da Comuna, desenvolveu
argumentos que eram, neste ponto da história, clara heresia. Assim, deixou
de lado todo o medo e lançou-se sobre o assunto com todo o fogo e vigor
que poderia comandar.
Afinal, havia um ponto a ser ganho. Coronel Gois havia dito, “Em casos
como esse, prefiro mostrar clemência para balancear minha severidade em
assuntos mais importantes.” Isso não deve ser permitido. Bertrand deve ser
sentenciado à morte. Para este fim, Aymar fez uma demonstração de toda a
sua pesquisa, tentou mostrar que a punição de queimar na fogueira, que a
Igreja havia eliminado, não deveria ser rejeitada como simples crueldade
medieval, mas examinada pelos seus próprios méritos.
“Os passos vastos da nossa geração na conquista do mundo material
não devem nos induzir a pensar que, ao mergulharmos nas profundezas do
mundo físico, também explicamos tudo o que há para explicar. Os cientistas
de um dia esforçaram-se muito para compreender a profundidade do mundo
espiritual, e para seus sucessos e conquistas não serão esquecidos.
Quem pode estimar o que devemos àqueles padres corajosos de
antigamente que foram às florestas drúdicas proibidas com um sino, um
livro, e balançando um incensário, exorcisaram os espíritos silvestras,
baniram os familiares, expeliram os elementares, expulsaram os monstros
e demônios da velha Gália? Quem pode estimar a dívida que devemos a eles
por ajudar a matar todas as bestas estranhas e inaturais que antes recolhiam-
se em toda fenda escura e recessos, sob samambaias e rochas cobertas de
musgo, esperando para saltarem para fora no vagante incauto que não
atravessou a tempo? Nem todos esses monstros eram igualmente maus, mas
todos constituíam inferteferências indesejáveis no destino do homem.
Se o viajante solitário de hoje pode caminhar destemido pelas sombras
da meia-noite das florestas silenciosas da França, é por causa da vigilância da
nossa polícia? Por que a ciência nos ensina a não acreditar em fantasmas e
monstros? Ou seria alguma gratidão justa à Igreja, que, após um milênio de
guerras, finalmente, conseguiu limpar a atmosfera da sua carga de terror
oculto e, assim, permitiu o desenvolvimento completo do ego humano?
Com isso, nós, que nos beneficiamos, não ficaríamos cegos de orgulho com
as nossas dívidas. Futuros pensadores, mais lúcidos, apoiarão minha
argumentação.
Sim, se hoje nos sentimos seguros dos terrores diabólicos que afligiram
as criaturas noturnas de antigamente, não vamos nos orgulhar como se
houvéssemos superado um medo infantil. Vamos examiner o assunto sem
preconceitos.
O mal existe. E o mal gera o mal. Os horrores e crueldades da história
dão as mãos através dos tempos. Uma ação leva à outra, ou melhor,
multiplicam-se. Um autor de crime infecta outro. A espécie deles aumenta
como moscas. Se nada resiste a essa praga, ela executará o mundo numa
massa fervente de corrupção.
Ficaremos atentos para não julgarmos às pressas. Diz-se que a Igreja
Católica queimou 300.000 de bruxas, até que o mundo exclamasse de
horror: 'Que superstição grosseira! Não existem bruxas.' E realmente não
havia nenhuma. Em qualquer aspecto, não havia mais.
Mas agora que os bares foram esvaziados, as portas estão se abrindo
para os monstros de antigamente que, com novos disfarces, logo lotarão o
mundo. As novas trevas não se esconderão pela floresta, mas viajarão
mercado afora; não atacarão disputas solitárias, mas arrancarão a garganta
das nações. Haverão guerras como o mundo nunca viu, e desumanidades
como ninguém sonhou. E o sangue escuro da vida fluirá em cataratas, e os
gritos dessas 300.000 bruxas serão apenas como assobios de pássaros para as
lamentações em massa da humanidade morrendo.”
Aliviado do trabalho, pois escreveu às pressas para finalizá-lo antes do
julgamente e, também, pelo constrangimento que vinha da descoberta de
lugares secretos no seu coração, correu até o prédio reservado aos conselhos
de guerra, na esquina da rue du Cherche-Midi com a rue du Regard.
O Coronel Gois estava visível, mas ocupado. Já passava das sete horas, e
a sessão da corte marcial começaria às nove da noite. O Coronel pegou o
resumo de Aymar, fez algumas perguntas, as quais Aymar respondeu o melhor
que pode, dizendo, “Você encontrará tudo aqui,” e, tendo recebido a
garantia do coronel de que o documento seria lido, ele saiu.
Bem, estava feito e terminado. Se foi um erro, agora era irreparável. E
com esse fato não havia mais consolação do que rebater se deveria ou não.
Aliviado, Aymar sentou-se pelo grande salão desinteressante, onde os
julgamentos ocorreriam em breve. Até o momento, a sala estava vazia.
Algumas lâmpadas suspensas no teto atacavam a penumbra. As sombras
recuaram ligeiramente e se tumultuaram nos cantos como se juntassem suas
forças e voltassem um enxame de morcegos, para estrangular as luzes
fracas.
Alguns homens da Guarda Nacional, baionetas fixas, observavam os
assentos assentos ordenados ao público, que começou a preencher os
bancos. Senhoras, bem vestidas, tomaram a primeira fileira.
Por fim, Gois entrou e imediatamente os casos surgiram. Questões
mínimas: roubo, falta de respeito, brigas. Depois chegou a carne do jantar.
Jean-Nicolas Girot, Capitão do 74º, acusado de insubordinação pelo
chef d'escadron Gandin. Os advogados discutiram. E Girot falou.
Ele admitiu os fatos. Esteve de plantão pelo Porte Maillot, em meio ao
fogo do inimigo por três dias. Foi prometido a eles que seriam soltos. Osh
omens ficaram fracos devido ao esforço constante e pela falta de comida. Mas
assim que foram libertados e marcharam para fora, então eles foram
mandados de volta. “Na minha consciência,” Girot concluiu sua defesa,
“Julguei-me no direito de desobedecer. Como chefe da minha compania, eu
arrogo toda a responsabilidade.”
O Presidente Gois suspendeu a audiência por um momento e deliberou
com os juízes associados. Logo produziram um veredicto, que Gois leu em voz
alta. Foi uma sucessão de Attendu que... attendu que, para dizer “na medida em
que o acusado admite a acusação; na medida em que Porte Maillot é onde o
inimo está concentrado agora; na medida em que o passado político do acusado,
independente do quão glorioso (Girot era um velho republicano), não pode
desculpá-lo de cumprir os deveres militares que aceitou desempenhar, etc., etc.
Declaramos o réu culpado por ter se recusado a marchar contra os rebeldes
armados de Versalhes.”
“Considerando que o tribunal, após a devida deliberação, condena o
cidadão Girot, Jean-Nicolas, à punição de morte, que ocorrerá −”
Em voz alto, o homem condenado interrompeu a leitura de Gois com
uma impertinência afiada, “Obrigado, senhores.”
Outro caso foi rapidamente retomado para que o público não reagisse.
E um público, uma vez convidado a demonstrá-la, aceita essa arma muito
seriamente.
Já era quase meia-noite antes antes de Bertrand ser trazido. A sala
naquela hora havia ficado infernalmente quente. As lâmpadas
esfumaçavam. O ar estava sufocante. Os espectadores contorciam -se
um tanto impacientes. A visão de Bertrand não os comoveu. Não havia
nada de incomum nele, nem sua expressão de cachorro preso, nem
suas mãos amarradas por trás nas costas, e a camisa de força ter sido
removida.
O caso foi revisto rapidamente. A única testemunha, com curativos nos
braços, seu rosto com cortes graves de unhas e dentes, foi convidada a
recontar a história. Depois, uma declaração foi solicitada a Bertrand, mas ele
recusou-se de fazê-la. Por consenso, ambos os lados dispensaram os
advogados, de modo que o assunto logo foi concluído.
Após um momento da deliberação, o Presidente Gois levantou-se para
falar, o coração de Aymar começou a acelerar conforme o presidente estava
segurando o manuscrito dele, como se estivesse para lê-lo, e de fato era para
lê-lo, mas de uma forma que alterou a intenção de Aymar em todos os pontos.
“Aqui,” ele concluiu depois de um rápido e tênue resumo dos fatos
dados por Aymar, “está um caso relevado a dias remotos. A Igreja Católica,
senhoras e senhores, queimou trezentos mil desses. Pensem nisso! Trezentas
mil pessoas foram aflingidas por uma doença, pessoas, portanto, que
deveriam ter sido entregues aos medicos competentes, não à execução. A
Comuna, iluminada e guiada pela ciência, não se propõe a confundir doença
física e mental com violação deliberadas das leis sociais. Na verdade, o
objetivo da Comuna é tartar, eventualmente, todos os criminosos como se
fossem pessoas doentes e curá-los pela aplicação de medicamentos e higiene.
E esse dia de sorte chegará, assim que todos os rebeldes de Versalhes
e seus aliados, padres e monges, estiverem exterminados.
É essa ninhada que por séculos está fomentando a crença de que
apenas cruzes e orações, câmaras de tortura, bandeiras flamejantes e
estacas, poderiam manter o demônio sob controle. E este jovem, iludido por
não sei qual doença, acreditou ser ele mesmo um cachorro louco, o que
serviria como um exemplo para exibirem como prova da existência do diabo
e da necessidade dos padres e aristocratas em manter todo o Mal sob
controle.
Nós lidamos de forma diferente. Aqui não há interesse próprio em
oprimir um povo e mantê-lo astutamente em sujeição pela imposição
recalcada da ignorância e da superstição. Aqui está o progresso, a liberdade e
a inteligência. Portanto, este tribunal concorda que, na medida em que o
acusado sofre de uma patologia que o leva à insanidade temporária; na
medida em que ele demonstra pelo comportamento presente o caráter
temporário da sua violência; na medida em que este tribunal lida apenas com
crimes e não se propõe a curar doenças pela prisão ou execução, portanto,
este tribunal decretal que o acusado seja entregue à enfermaria da prisão de
La Sante para tratamento e que fique resguardado lá até ser curado.
Lido em audiência pública pela corte marcial…” etc.
“Blá! Blá! Blá!” Aymar murmurou em desgosto ao ver suas próprias
palavras citadas contra ele. “Fale de um jeito ou de outro. Todas as palavras,
palavras, palavras de luta, e ninguém aqui sabe de nada.”
Havia mesmo o dever de falar naquela dia. Na mesma noite, no Hotel de
Vile, o “americano” Cluseret, ex-chefe dos assuntos militares, estava sendo
julgado por traição grave. O julgamento parecia nunca querer chegar ao
ponto. O comitê, formado com o propósito de julgar esse professional
revolucionário que trazia sua espada para enfrentar uma dúzia de guerras em
tantos países do velho e do novo mundo, estava em maioria para libertar o
General, mas ainda mais ansioso para empregar essa ocasião para atacar a
minoria que havia embasado uma acusação contra ele.
Havia oradores infinitos, conflitos sem fim. Todos os detalhes dos
eventos das últimas semanas íam e vinham de uma vez.
Era tarde da noite. Vermorel estava falando. O inquérito, ele
declarou, havia mostrado a falsidade da acusação contra Cluseret, no
entanto “a facilidade com que podemos prender um chefe militar quando ele
parece estar causando danos à causa é o ponto relevante desse julgamento.
Que é, parece-me, um dos melhores sintomas da solidez da Comuna, a melhor
prova da sua força!”
Um homem pálido e agitado entrou no tribunal. Ele segurava um
telegram ana mão e esperava impacientemente Vermorel parar de falar, mas
como este último mostrava todos os sinais de enrolação ao longo de um
endereço, ele gritou irritado, “Mais rápido!”
Todos viraram-se para olhar ao interruptor rude. Era Billioray, membro
do Comitê Central. No silêncio seguido, ele ordenou que todos os oficiais
irrelevantes saíssem e fechassem todas as portas. Então, ele leu o
telegrama. Era do General Dombrowski e anunciava que as tropas de
Versalhes forçaram uma invasão na cidade e estavam chegando.
O julgamento foi retomado, mas os oradores estavam com a cabeça em
outro lugar. Nenhum discurso fluiu. Em frases curtas, o assunto foi concluído e
levado para votação. Vinte e oito contra sete votaram à favor da libertação
imediata. Depois Cluseret foi admitido para ouvir a decisão.
Ele supôs incubido a dizer algumas palavras, mas ninguém ouviu. O salão
esvaziou-se. Os dias de blá-blá-blá chegaram ao fim.
Os membros do Comitê Central saíram durante a noite. Alguns estavam
pensando nas suas famílias ou neles mesmos, e apressaram-se para encontrar
bairros mais seguros. Porém, outros, heróis até o final, foram
superintendenciar o lançamento das barricadas e procuraram uma última
residência para morrerem pela causa deles.
CAPÍTULO DEZESSETE
Num período posterior, Aymar acrescentou vários pós-escritos à sua
defesa de Bertrand Caillet, conhecido como do 204º batalhão da Guarda
Nacional. Citamos em outras partes o efeito que a revolta da Comuna
causou devido a uma espécie de doença contagiosa. Os seguintes
parágrafos também são do interesse:
“Após o tribunal e a convicção de Bertrand, o Coronel Gois respondeu o
meu manuscrito.
'Mon cher M. Galliez,' disse, 'há ideias nessa sua tese de que seria melhor
você não se expressar, e é por isso que estou devolvendo isso a você. Destrua.
Essas coisas são perigosas.'
Eu respondi firmemente, pelo seu plágio do meu trabalho não haver me
aborrecido nem um pouco, e sua presente represália de professor me
arrebateu num aspecto sensível. 'Eles parecem ter sido bons o suficiente
para você tê-los usado,' eu respondi; 'mas você está certo. Eu mesmo percebi
tem medo de ideias. Entretanto, nunca permiti que a timidez me impedisse de
exercer essa liberdade de pensamento e expressão conquistada por nós,
numa Comuna anterior e mais bem sucedida.'
Para minha surpresa, pois eu sabia da sua intrasigência, ele sorriu e
colocou o braço em volta de mim. 'Venha, Aymar, você não acredita
mesmo em todas as coisas que escreveu lá, né?'
Na verdade, eu acredito e não acredito, então respondi evasivamente, 'E
se eu acreditar?' 'Hum,' ele respondeu. 'E você vai virar padre?'
'Talvez,' retruquei.
'Você? Aymar Galliez? Você numa batina com um crucifixo penso na
sua barriga? Não, não posso acreditar!' Ele riu.
Nós tivemos algumas palavras de uma discussão muito amigável.
Conhecendo-me do partido, ele não estava disposto a ser muito sério, mas
ele me alertou para eu ter cuidado para não falar fora de hora. Inclusive, ele
mesmo, era um homem perigoso, um daqueles que eu classifiquei como
infectado por Bertrand, já que estava imparcial ao provar isso.
Não pensei, então, que eu iria vê-lo por baixo de uma batina, com um
crucifixo pairando sobre a barriga, mais cedo do que eu mesmo me descobriria
em tal traje.”
Essa conclusão bastante curta para o destino de Gois no manuscrito de
Aymar Galliez está prontamente expandida, pela história dos últimos dias da
Comuna estar compilada de modo meticuloso.
O leitor lembrará que o delegado da ex-Prefeitura de Polícia havia
prendido muitas pessoas, principalmente do clero, para mantê-las como
reféns. A ameaça declarada e amplamente publicada foi que a Comuna de
Paris mataria dois reféns para cada pessoa dos partidos baleada pelo governo
de Versalhes.
O objetivo principal da Comuna, contudo, parece haver sido o de
intimidar Adolphe Thiers a devolver Blanqui, que estava mantido como
prisioneiro pelos versalhistas. O Arcebispo cativo de Paris, ameaçado de morte
caso Blanqui não fosse devolvido, escreveu uma carta a próprio punho para
Thiers, na qual ele implorou para que Blanqui fosse trocado por ele mesmo.
Entre outras coisas, disse que Blanqui, o comunista, não valia nada para a
Comuna e não era temido, porque a Comuna não seguia nenhum dos seus
princípios. “Se ele fosse associado à Comuna, longe de ser uma ajuda, seria
apenas um elemento novo de discórdia no partido.”
Porém, Thiers recusou. Os esforços do embaixador americano
falharam, assim como os muitos outros. Alguns comunistas alegaram
que Thiers queria o arcebispo morto para despertar a população
contra a Comuna. Isso parece muito provável, e se a Comuna
suspeitasse demais, nada seria mais fácil do que executá-lo. Mas talvez
fosse muito tarde para exercer clemência. O exército de Versalhes
estava marchando por Paris. Um portão foi tombado, o exército
espalhou-se e barricadas foram erguidas. Seguidas por briga de rua.
Todas as janelas escondiam um comunista com uma arma, lutando
como um rato encurralado. Essa última semana passou sem piedade.
Havia uma coisa parecida com uma bebedeira que vem do excesso
sanguinário. A mobilização de Paris, indignada com assassinatos infinitos,
uivava, mas apenas por mais sangue, como um homem bêbado lutando com a
bebida, que mesmo arrasado e vomitando debaixo da mesa, ainda anseia por
outra bebida e mais uma.
No dia 24 de maio, no terceiro dia de lutas de rua, um pelotão de
fuzilamento chegou à prisão de La Grande Roquette e exigiu seis reféns,
entre eles o arcebispo, para serem executados de imediato. Para quê?
Agora já era muito tarde para um alerta dramático a fim de Versalhes
soltar Blanqui. Esse era o fim. O exército de Versalhes, circulando
como uma píton, estava esmagando lentamente a Comuna até a
morte. As costelas da cidade estavam rachando. O ar pairava replet o
de mortes. “Como ainda estamos na posse do arcebispo, vamos executá-lo.
Amanhã pode ser tarde demais.,” pensaram os comunistas.
No dia 25, Clavier, o comissário que estava no commando do caso
Picpus, veio soltar o banqueiro Jecker da cela. O ciretor da prisão quis
ver uma ordem antes de concordar em libertá-lo. Clavier não tinha
nenhum, mas sendo de uma natureza compatível, escreveu um no local e
também assinou. O diretor aceitou o papel na ponta de uma pistola e acho o
argumento combinado válido ao extremo. O banqueiro, que era suspeito de
ter feito e escondido milhões, havia sido arruinado de verdade na sua
especulação mexicana pelos companheiros do banco, pois não havia a
lealdade de casta entre os capitalistas mais do que em qualquer outro estrato
social, apesar de mais poder para o bem e pelo bem.
Clavier saiu marchando com o seu prisioneiro, e depois de uma longa
caminhada, encontrou um local tranquilo e conveniente, colocou o seu cativo
contra uma parede, enquanto este implorava baixo, “Não me faça sofrer,” a
ordem foi dada para atirar. Alguns the order was given to fire. Alguns
meninos da rua se divertiram chutando o corpo morto.
Curiousamente, o disparo foi ouvido pelo Coronel Gois, que passava
por uma rua adjacente. Ele sentiu que isso era uma espécie de busca iledal na
sua província especial, sendo ele o chefe da corte marcial. Os dois
concordavam em unir forças.
Ele e Clavier almoçaram primeiro, depois encontraram-se por acaso e
prosseguiram mais uma vez para a prisão de Roquette. Revólveres foram
soltos nos coldres e uma lista dos prisioneiros exigidos. Dessa vez, o diretor
aprendeu a sua tarefa e cumpriu de imediato.
Gois leu os nomes e marcou cinquenta, sendo dez clérigos (quatro
dos monges presos na comédia em Picpus), quarenta sendo guardas e
agentes dos dias do Império. Cinquenta. Era tudo o que ele queria. Ele não
tinha homens suficientes para manipular mais.
Na prisão houve muita comoção. Os prisioneiros viram sete irem para a
morte e ficaram assustados. Para acalmá-los e evitar resistência, os guardas
repetiram que esta seria apenas uma mudança da prisão. Muitos acreditaram.
“Nós vamos levá-los para a prefeitura de Belleville, porque eles não têm
mais pão aqui para tantos presos.” Além disso, o número de nomes
chamados era, em si, reconfortante. Um, inclusive seis, poderiam ser
colocados diante do esquadrão de fuzilamento, mas cinquenta!
Os carcereiros, passando pela fila, desbloquearam muitas celas das
quais nenhum preso foi chamado. Isso foi feito porque vários prisioneiros
mais velhos haviam fugidos, e os homens deixados não conheciam a prisão.
Assim foi aberta a cela na qual João Roberto, o cocheiro no funeral da filha do
General Danmon, estava trancado. O mandato dele havia expirado há muito
tempo, mas ele continuava na cadeia. E por isso o nome dele não foi chamado,
ele achou uma ideia excelente escapar como se ouvisse ser chamado. Pode ser
uma possibilidade de escapar. Há meses não tem notícias da família. Ele viu
homens fazendo as malas às pressas entre seus efeitos. Rapidamente ele
arrebatou o próprio casaco, sua única posse, e correu para fora.
Nenhum esforço foi feito para controlar os prisioneiros, os homens
simplesmente foram empurrados para uma fila e marcharam ao som de pífaro
e tambor. Alguns estavam descalços. Mas a maioria teve tempo para arrumar
suas coisas num lenço e se vestir. Os guardas presos dos dias imperiais
orgulhavam-se de marchar astutamente. Os padres, atrapalhados pelas suas
batinas, arrastaram-se atrás. Ao redor estavam os Fédérés, os homens da
Guarda Nacional, aderindo à Comuna, armas em prontidão. − João
Roberto, seus membros enrigecidos com os anos sentado na Caixa e
meses na prisão, caminhou entre os clérigos.
A primeira surpresa de Roberto foi notar as multidões de cada lado da
rua. Os gritos de raiva, os vegetais que vinham voando, acompanhados de
chutes e socos. Do que se tratava? Por que eles gritavam, “Morte aos
reféns!”?
“Aonde estamos indos?” ele perguntou ao monge andando do seu lado.
“Para Golgotha,” respondeu com reverência e continuou suas preces
murmuradas. O cocheiro, embora houvesse trabalhado por anos em Paris,
não conseguia lembrar de nenhum lugar com esse nome. Ele queria mais
informação mas estava um pouco tímido de interromper as orações do
monge uma segunda vez.
Os guardas, temendo que a mobilização arrebatasse os prisioneiros a
uma morte mais cedo, garantiram reforços numa barricada tripulada pelo 74º
batalhão. A partir daí, o caminho ficou mais quieto. A coluna subiu a rue de
Paris e virou à rue Haxo, escoltada por uma multidão enorme e crescente.
“Não há escapatória para mim. Bem, outra prisão, então,” João Roberto
disse para ele mesmo, e resignou-se com um suspiro. De fato, o número de
homens armados e o número de garotos que juntavam-se à marcha cresciam a
cada minuto. Uma centena de par de olhos estavam constantemente fixos
sobre cada prioneiro. João Roberto encolheu-se um pouco para dentro de si.
E se fosse descoberto que não deveria estar com esse grupo e excluído? Até
mesmo uma mudança de prisão foi uma novidade aproveitada.
Nesse momento, a coluna inteira marchava por um arco amplo e
comprido num pátio, passando por diversas casas pequenas até o que seria
metade um jardim ornamentado e metade horta. Os prisioneiros estavam
agrupados contra uma parede na extremidade mais alta. A multidão que
estava espalhada continuou a uivar pela morte dos reféns.
A mente lenta de João Roberto começou a entender. A escolta da
Guarda Nacional havia protegido eles da violência do tumulto somente para
trazê-los até aqui, para morrerem num estilo mais militar. Surpreso, ele gritou:
“Mas eles vão atirar em nós!” Um medo enorme fincou-se pelo seu coração
com garras de aço. Ele fez um movimento para seguir em frente.
Um guarda, com uma expressão distante e sonhadora no rosto,
empurrou Roberto para trás, próximo à parede e o prendeu ali com o cabo da
sua arma, enquanto continuava a pensar em outra coisa.
“Mas eu não sou culpado! Estou −” Roberto chorou.
“Nenhum de nós somos culpados,” disse o monge jovem
tranquilamente e procurou colocar uma mão consoladora sobre ele.
“Mas −” Roberto berrou e sacudiu com raiva essa mão gentil que queria
forçá-lo amigavelmente à morte. Seus olhos estavam saltando da sua
cabeça. Havia um nódulo na sua garganta tão grande que não podia falar
sem grande dor. A saliva babava da boca dele. “Eu não quero morrer!” ele
explodiu em brutalidade.
“Shh,” disse o monge. “Nós todos devemos aprender a morrer.”
“Mas eu não quero morrer,” Roberto chorou de novo. O suor estava
cintilando da sua testa pela tensão terrível ao proferir as palavras.
Abaixo do jardim, os soldados estavam disputando sobre o tiroteio.
Alguns membros da Comuna fizeram o último esforço, em vão, para parar o
crime, mas já haviam ido longe demais. Por muito tempo o público instado
pelos seus líderes a gritar por sangue ficou contagiado com o luxúria do
assassinato. “Vamos sair daqui,” os membros do Comitê Central sussuravam
uns aos outros. No momento seguinte, quando os tiros começaram, não havia
nenhum oficial importante à vista.
Os guardas deixaram os prisioneiros para juntarem-se ao pelotão de
fuzilamento.
“Aqui!” Roberto gritou, prestes a correr por trás do guarda que estava
se afastando. “Não sou um dos −”
Ele não chegou longe. O guarda, agora distintamente irritado, forçou-lhe
a voltar com um golpe violento na boca do estômago. Roberto pressionou as
mãos sobre a sua barriga, a boca bocejou por uma respiração que seus
músculos paralizados recusavam lhe dar. Numa agonia de dor, ele caiu de
joelhos.
E o guarda afastou-se e saiu de alcance.
O monge, vendo Roberto ajoelhado ao lado dele, virou-se em silêncio
com os dedos levantados: “Ego te absolvo ab omnibus...” A formula para
absolvição condicional. Roberto ainda estava lutando por ar quando o tiroteio
começou. Algumas árvores frutíferas, metade ainda florida, estavam no
caminho. Logo a bela folhagem da primavera foi rasgada aos pedaços, seus
galhos pendurados quebrados, suas cascas marcadas e queimadas. Em
calmarias enquanto os homens recarregavam, o vento trazia rajadas de uma
valsa, de um acampamento da ocupação próxima dos soldados alemães, que
estavam se divertindo no clima agradável fora das portas.
Quando as vítimas estiraram-se aos montes, os revólveres foram
arrancados e golpes intermináveis empregados de graça. Baionetas foram
trazidas para o jogo. Mais tarde, as autópsias revelaram corpos com sessenta,
setenta balas, e muitas feridas de baionetas.20 Muitos disparos do partido,
também, provocaram machucados, infligidos pelos seus próprios
companheiros.
Quando a execução foi considerada complete, Coronel Gois e Clavier
investigaram. Eles tinham cinquenta homens alinhados, mas contaram
cinquenta e um corpos.
Gois balançou os ombros. “Decididamente, há um a mais.”21
Eles não esperaram para examinarem o assunto com mais cautela. Havia
necessidade da pressa. Passo a passo, barricadas após barricada, as tropas de
Versalhes estavam arrancando a cidade dos comunas.

20
Portanto, essas figuras enormes são muito crivelmente explicadas: O gemido do
grande monte de reféns mortos ou morrendo não acabaria. E era impossível dizer de
onde vinham os sons, por isso não havia nada a fazer além de continuar atirando e
esquartejando até que estivesse silêncio completo.
21
Ver Laronze, Histoire de la Commune, p. 625, e Vuillaume, Mes cahiers rouges au
temps de la Commune, p. 116 et seq.
Ainda restavam trezentos 315 reféns na prisão La Grande Roquette. No
dia seguinte, um homem chamado Ferré tentou prendê-los como voluntários
para lutar nas barricadas ou para o pelotão de fuzilamento. Entretanto, os
combates nas ruas vizinhas estavam se aproximando tanto que ele desistiu no
meio das coisas e deixou a cadeia com quase todas as portas abertas. A
maioria dos prisioneiros acreditava que a prisão seria mais segura do que o
lado de fora e, para maior segurança, prosseguiu com barricadas pelas
próprias. Alguns tentaram escapar e estes ousados caíram nas mãos dos
counas que os executaram imediatamente. Na manhã seguinte, os fuzileiros
invadiram o distrito e os reféns foram libertados.
Então começaram aqueles momentos terríveis, muito parecidos com
cataclismos da natureza, como terremotos e avalanches, que as palavras
parecem incapazes para descrevê-los. A retirada dos comunistas havia
incendiado várias construções públicas. Grupos de homens e algumas
mulheres seguiram destruindo as melhores estruturas pelos bairros, que
houveram de ser evacuados. Entre essas mulheres malucas que estavam
alardeando fogo no melhor que Paris continha, estava Sophia Sophia de
Blumenberg.
Com isso, no último dia antes do fim, Sophia não havia deixado o 204º
batalhão. Ela pegou um par de botas de um garoto morto. Eles acomodaram-
se nos seus pequenos pés. Por algum lugar, também, ela havia pego o
sobretudo de um uniforme Zouave.
Muitos dias antes, o 204º havia sido chamado para proteger as
barricadas da 9ª ala. O pelotão foi quase dizimado para fora de lá, pois as
forças de Versalhes tomaram a parte de trás da barricada, na rue Caumartin,
e atearam um incêndio mortal pela retaguarda desprotegida.
Dezesseis da companhia, feitos prisioneiros, foram exterminados de
uma só vez e à vista dos poucos que restaram, pois foram capazes de
recuar a outro bloqueio.
Agora os poucos sobreviventes do 204º estavam de pé, próximos à
mairie em Place Voltaire, e conversando sobre o evento, como eles
estavam desde quando isso começou. Sophia, desenvergonhada do seu
amor, continuava a fazer apontamentos abertos. Mesmo que ninguém
se lembrasse agora de ter visto Bertrand naquela manhã, eles, contudo,
adicionaram o nome dele à lista dos mortos. O que deixou o desastre
ainda mais impressionante e formidável. “Morto junto com os outros,”
comentaram rapidamente e balançaram a cabeça. Eles não fizeram
nenhuma tentativa de provocá-la. O desejo grandioso deles agora era
descobrir como uma calamidade dessas pôde ultrapassá-los. Parecia-
lhes impossível que a derrota deles fosse um resultado natural das
chances da guerra. Suspeitavam de traição. E essa suspeita, depois de elevar-
se a qualquer número de pessoas, recaiu por fim sobre o Capitão de Montfort,
que havia ordenado-lhes para esse cargo, determinado o local das barricadas e
deixado o rapaz na parte de trás delas, insuficientemente tripulado, e, sem
dúvidas, de propósito.
Tão logo os homens começaram a elocubrar até essa suposição,
encontraram razões cada vez mais válidas. Três era excelentes. A primeira, a
ascendência aristocrática de Montfort, sua paixão em andar de cavalo com
seu uniforme azul e dourado, gritando suas ordens superiores, todas
evidências convincentes das relações com Versalhes. Segunda, o ciúme natural
de Bertrand, que provavelmente o levaria à traição, a fim de eliminar o rival.
Terceira, sua insistência naquele dia, durante uma pequena discussão entre os
oficiais, que os bloqueios deverias ser aqui e ali e tripulados assim.
Normalmente, ele pouco participava das conversas sobre a estratégia militar.
Foi adicionada a isso uma história verdadeira, que alguém pensou agora,
pela primeira vez. Alguns dias antes, Capitão de Montfort veio ao Ministério na
rue Saint-Dominique. Ele estava um pouco bêbado e mau humorado. Seu
jeito selvagem fez com que o guarda levantasse sua baioneta e impedisse
a entrada do Capitão. Montfort ficou fora de si, com raiva. Ele conjurou
maldições sobre a guarda inteira. E, percebendo que eram do 204º
pelotão, que ele sabia ser o de Bertrand, ele zombou: “O ducentésimo
quarto, heim? Companheiros, vocês parecem um bando de salafrários. É um
batalhão que precisa de uma boa purificação.”
Sophia pouco importou-se com a dizimação do 204º na Madeleine, mas
o fato de Barral livrar-se de Bertrand dessa forma a deixou doente de remorso.
Uma dor que ferveu rapidamente num desejo selvagem de vingança.
Foi o infortúnio do Capitão Barral de Montfort, que vinha montado a
cavalo na direção da barreira no Boulevard Voltaire. E Sophia, vendo-o
primeiro, apontou-lhe com o dedo, alarmando, “Aí está o traidor sujo!”
Ele ouviu a voz dela e domou o seu corcel, empinando-o.
Com gritos de, “Matem-o! Matem o traidor!” uma dúzia de soldados
correram até ele com as armas apontadas, agarraram-lhe e o puxaram da sua
sela. Ele foi derrubado, jogado paro o lado, arrastado em direção à mairie, até
que o seu uniforme bonito fosse uma uma massa de trapos, suas feições
perdidas entre a carne machucada e inchada. Sophia, vislumbrando-o pela
multidão que o cercava, abriu a boca em honra. Ela queria fugir, mas
conteve-se. “Façam justiça com o traidor!” Havia esquecido completamente
que muitos meses atrás, ela mesma estava ajunda Barral, com precisão, nesse
tipo de traição.
A mairie estava lotada com mulheres costurando sacos de terra para as
barricadas. Ferré e Genton, dois oficiais por lá, decidiram que um julgamente
devesse ser realizado. “Isso deve ser comum, homens,” gritaram sobre o
tumulto. O Capitão foi levado para fora da praça, onde estavam reunidos
soldados e espectadores curiosos. Muitos não sabiam o que estavam
acontecendo. Porém, escutaram o grito de traidor e o entoaram.
Foi um negócio lento atravessar a mobilização com um prisioneiro que
todos queriam ferir. Logo o progresso foi impedido por uma fila enorme de
carros funerários, cobertos por bandeiras vermelhas, que subiam o morro até
Père-Lachaise. “Sua vez agora!” Alguém berrou. E a multidão impaciente
repetiu a frase de cem jeitos diferentes.
Genton e Ferré repetiam aos homens que bloqueassem o avanço,
“Tem que ser normal. Devemos ser justos. A Comuna decideu trazê-lo diante
da corte marcial.” Essa garantia e a posição de comando que Genton
aparentava ocupar, com sua faixa escarlate sobre a cintura, permitiram à
escolta e ao prisioneiro que, finalmente, atravessassem a praça e
chegassem à rue Sedaine.
Uma loja dessa rua tornou-se a nova sede para muitos batalhões. Um
tribunal revolucionário foi improvisado no momento da notícia. Coronel Gois
assumiu o commando. Genton e Ferré assumiram o papel dos assessores.
Foi uma paródia trivial da justiça. Não houve nenhuma evidência para
acusar Barral de Montfort. Ele foi vaidoso, sim; imperioso, sim; e
negligente, talvez; mas conversar com Versalhes ou traição de qualquer tipo,
nada.
Os juízes quiseram salvar Montfort, quem eles conheciam muito bem e
cujo primo Eduardo Moreau era um membro do Comitê Central e um homem
grande para a Comuna. Mas diante da multidão, eles não se atreveram a
proclamá-lo inocente. O próprio prisioneiro não queria falar, talvém não
conseguisse. Seus olhos estavam cerrados pelos hematomas inchados; pelo
canto da sua boca fechada escorria sangue. Sentou-se num silêncio impassível.
Ele murmurous somente uma única vez, mas tão baixo que sua voz mal
chegou aos juízes: “Sou inocente. Quem se atreve a me chamar de traidor?”
Nenhum dos juízes poderia acreditar que ele fôsse o culpado. De fato,
eles tinham certeza da inocência dele e, sendo este o caso, deveriam não
apenas dizer o bastante, como também deveriam ampliar a proteção dele.
Eles não fizeram nenhum dos dois. Na verdade, ele foi acusado apenas por
negligência e rebaixado da sua capitania, porém eles o enviariam à barreira
mais próxima para que tomasse parte da luta. Um dos assessores
acrescentou, como uma colher de chá para o tumulto, “Se ele apresentar
sinais de covardia, acertem na cabeça dele.” A dica foi o suficiente. E a
mobilização viu isso ser realizado. Ele foi abandonado deitado para morrer
numa vala, coberto por lama e catarro, que foram jogados e escarrados sobre
ele pelo povo. O mesmo povo que apenas oito semanas antes fizera da
guilhotina uma fogueira, nesse mesmo Place Voltaire, e foram bem
recebidos com aclamações vorazes de alegria, com a notícia de que os
legisladores da Comuna aboliram a pena de morte.
Todavia, o cheiro de sangue estava no ar. A sensação de estar
aproximando-se da morte despertou o pior escondido por trás do homem. As
tropas de Versalhes ocuparam toda a margem esquerda. Estavam começando
a cercar o restante da cidade, ainda nas mãos da Comuna e onde quer que
seus assaltos formassem bloqueio, em seguida, eles montaram cabines
temporárias de total repressão metódica e impiedosa: corte marcial,
execução sumária. E a vingança deles foi de 50 para 1.
Com essa crise da Comuna expirando, era natural que muitos dos
membros mais violentos tomassem as rédeas da ação, pois nesses momentos
os homens mais leves pensam em recuar, ou então ficam desesperados com
os outros. A culpa pelo acendimento de Paris nunca recairá sobre qualquer
homem, mas a Comuna pode ser responsabilizada num todo, e
desculpada, se tais ações demandam retratações, pela tensão do
momento. Foi errado queimar os tesouros de Paris, bibliotecas valiosas,
documentos insubstituíveis. Foi errado não porque essas coisas valem
metade do valor atribuído a elas, mas porque o incêncio foi um simples
gesto de um homem derrotado dando um golpe rancoroso nos filhos do
oponente. Sim, se o incêndio das bibliotecas, museus, documentos,
acabasse com a pobreza, eu chamaria isso de uma troca barata. Contudo,
não havia nenhum significado simbólico nisso, nem qualquer valor real.
Ainda assim, o incêncio foi planejado com determinada quantidade de
planejamento. Como os homens foram necessários nas barricadas, as
mulheres eram escaladas para o trabalho. Muitas receberam petróleo e
tochas, que antes faziam parte dos equipamentos dos policiais. A missão era
perigosa, mas muitas se voluntariaram para ela. Algumas foram atraídas por
dez francos ao dia, que era o pagamento aolcado. Dentre elas, estava a esposa
do cocheiro João Roberto, que trabalhava na companhia dos seus dois filhos
pequenos (os dois que sobraram dos cinco), os quais ela não poderia
simplesmente deixar para trás. Agora que estava ganhando dinheiro, seus
filhos recebiam, cada um, um corte gordo de cervela e os mordiscavam. Eles
ficaram famintos por meses e agora, por uma vez, já não estavam mais com
fome. E embora suas barrigas rebelassem contra mais comida, eles não
poderiam impedir seus dentes de quererem sentir a comida de novo e de
novo, como se para se assegurarem de que fosse verdade.
Outras juntaram-se porque estavam enfurecidas em Versalhes. Os
maridos delas foram mortos, ou alguma outra perda grande as atingiu, e agora
estavam ansiosas para darem um golpe, sem importar como e onde, mas de
preferência contra os ricos, seus opressores permanentes. “Essas coisas que
nunca podemos ter, essas mansões enormes, esses salões de móveis
refinados,” elas disseram, “vamos queimá-los! Eles também não deveriam tê-
los!”
E Sophia? Ela participou porque queria morrer. Juntou-se porque
estava prestes a enlouquecer. Ela tomou partido porque aqueles de
Versalhes, a quem ela havia ajudado por tantas vezes com suas
informações, traíram seu Bertrand e o mataram nos bloqueios; Sim, e se
pudesse ter certeza de que ele estava morto e visto o seu corpo, ela
também haveria se matado de uma vez.
Aymar, durante esses dias terríveis, manteve-se o máximo possível nos
seus aposentos. Mesmo assim, não conseguia conter-se de sair às vezes para
dar uma bisbilhotada nas coisas. Ele costumava subir o Boulevard des
Batignolles para um local onde se poderia ter uma ótima vista de Paris. Muitas
pessoas costumavam se encontrar lá. Eles assistiam os incêndios gigantescos
que, no crepúsculo, mudavam de fotografias em preto e branco para
litografias coloridas. A fumaça espessa adquiria primeiro semblantes
vermelhos e laranjas e depois, quando a noite estivesse completa, acabava
desaparecendo, somente algumas chamas e faíscas à vista.
As pessoas adivinhavam o que estava queimando. De longe, era difícil
dizer. As Tuileries, o Louvre, o Palácio da Justiça, O Salão de Contas, o Palávio
da Legião de Honra, o Palácio Real, etc., etc. O calor da conflagração era tanto
que alcançava bairros que ainda estavam sendo defendidos. Houve incêndio
no Château d'Eau, no Boulevard Voltaire, no Grenier d'Abondance. O Sena
quase vermelho de sangue cortava Paris como um dragão de escamas
ardentes refletindo. Palhas do celeiro e papeladas de registros voavam
queimando pelo ar.
À medida que os soldados de Versalhes assumiam novas posições, eles
organizavam o patrulhamento dos bombeiros, auxiliados pelo
departamento, o qual os comunistas haviam impedido de funcionar
enquanto permanecessem no comando desses distritos.
Enquanto a grande maioria da cidade logo esteve nas mãos dos
versalhistas, os comunas ainda mantinham uma série de posições, a prefeitura
do 11ª pavilhão, Belleville, o Buttes Chaumont, etc.
Durante a noite do dia 27 para 28 de maio, o último combate feroz
ocorreu. Uma guerrilha terrível retroceder de Fédérés, de lápide em lápide em
Père-Lachaise. Ao fim, os últimos remanescentes dos 128 comunistas
foram forçados contra uma parede e baleados. Quando o sol raiou,
no dia 28, um domingo pentecostal, a guerra civil havia terminado,
exceto por uma casa aqui e outra ali, nas quais ainda houve alguns
tiros casuais disparados, e exceto por uma única barricada na rue
Romponneau, onde um comuna solitário pantou uma bandeira vermelha
e defendeu sua posição por um período curto de tempo. Ele fugiu; a
bandeira vermelha foi derrubada, e a tricolor içada.
Por outro lado, no lado dos versalhistas que, devido à vitória, tornaram-
se os legitimacionistas, a crueldade não foi menor; pelo contrário, apesar de
ser levemente passada pelos historiadores, suas ações foram muito mais
impressionantes.
Por que a arrastar oitenta homens feridos para fora dos leitos no
hospital improvisado em Saint-Sulpice e atirá-los até morte, já que muitos
estavam morrendo de qualquer maneira? Por que atirar no médico
atendente, Faneau, junto com eles, sendo sua única culpa o crime de
ficar para cuidar deles?
Alinhem e atirem neles! No mercado da Place Maubert, no pátio de
Cluny, na rue Charonne, na rue Brézin. Os corpos atirados em valas, não em
pequenos números, no máximo cinquenta, assim como os comunas
fizeram. Isso era desprezível. Não, em centenas.
Então a ordem foi introduzida. A regra era: sem mais assassinatos. Os
prisioneiros devem ser julgados pela corte marcial. E eles foram julgados pela
corte marcial. A velocidade da morte foi reduzida ligeiramente. Pelo menos,
para os tribunais, houve a formalidade de marcar nomes. Mas alguns poucos
escaparam. Por um interrogatório rápido. Sem testemunhas, sem defesa.
Algumas perguntas e mais um grupo de miseráveis saiu para um muro
conveniente.
Erros? Ora, mas é claro, considerando a pressa. Vuillaume foi baleado
por dois pelotões diferentes, na verdade ele escapou para escrever seus
livros famosos. Quem eram os dois baleados no seu lugar? − Délion escreveu,
“Eu o vi perecer. A sua conduta foi muito covarde. Ele mal conseguia falar de
raiva.” Como alguém pode entender direito essa covardia e essa raiva.
Coubert, lê-se em outro lugar, foi baleado após sua identificação. Quem foi
esse? E qual era a natureza da identificação?
O jornal Gaulois surgiu com a história. “Eles prenderam Billioray em
Grenelle. Ele defendia-se, contorcia-se pelo chão, implorava por
misericórdia. Assim ele ficou até a morte, onde ele estava. Em outro
distrito, alguém gritava, “Lá vai Billioray.” Assim que o homem em
questão foi preso. Ele negou sua identidade vigorosamente. Trazido
diante do Capitão Garcin, ainda persistiu na sua negação, mas uma
dúzia de testemunhas estavam prontas para jurar isso. O Capitão Garcin
perguntou, “Você ainda nega −”
“Sim, sim,” o homem gritou sem controle. Todo o assunto foi
resolvido de maneira tão rápida que passaram apenas alguns segundos
antes do sujeito cair mortalmente ferido numa poça de sangue. Foi
então que, embora um pouco tarde, alguém revistou os bolsos dele. As
cartas mostravam que ele era um assistente de tecidos chamado
Constâncio, que não havia nada a ver com a Comuna. Porém estava tão
gravemente machucado que foi aconselhável acabar com ele.
Quem era o homem em Point-du-Jour, que também foi executado
como Billioray? O verdadeiro Billioray foi preso uma semana depois e, por
consequência, condenado à prisão perpétua.
Um viajante holandês, incapaz de se expressar bem em francês, foi
levado à corte marcial estabelecida em Le Châtelet. A grande soma do
dinheiro em sua pessoa foi considerada prova de que ele era um
comuna importante tentando escapar pela fronteira. Ele foi
executado no quartel de Lobau.
Varlin foi executado naquele domingo pentecostal. Preso, julgado e
baleado em poucos minutos. A multidão era tão grande que o pelotão de
fuzilamento ficou incapaz de manusear seus rifles direito. O homem
permanecia de pé. Uma segunda saraivada. Ele caiu. E o povo bateu palmas.
Aymar não fez nenhum esforço para escapar. Ele caminhava, v ia e
sentia uma exultação estranha. “Queime!” ele gritou dentro de si
mesmo, com as chamas ardentes que saltavam para o céu. “Mate!”
gritou para si mesmo quando os homens alinharam-se de frente a uma
parede derrubada pelo guizo do mosqueteiro.
“Eu não fui muito errado,” ele refletiu e derivou uma alegria curiosa
da violência que se espalhava ao seu redor. Ele queria que fosse pior.
Queria que o mundo inteiro subisse em chamas e sangue. Não era digno
de qualquer jeito. “Levantem! Danton! Marat! Robespierre! Por que vocês
não estão aqui para ver que o trabalho é feito direito?”
Aymar logo descobriu que estava falando coisas sem sentido. A
Comuna atirou em cinquenta e sete na prisão de La Roquette. Versalhes
retaliou com mil e novecentos. Para essa comparação, acrescente mais esta.
Todo o famoso Reinado de Terror em quinze meses guilhotinou 2.596
aristocratas. Os versalhistas executaram 20.000 plebeus antes dos seus
esquadrões de fuzilamento em uma semana. Esses números representam a
eficiência comparative da guilhotina e do rifle modern, ou a crueldade
comparative das massas da classe alta e baixa?
Agora Bertrand parecia para Aymar que era somente um caso leve. O
que era um lobisomem que matou um casal de prostitutas e que
desenterrou alguns cadáveres, comparado com esses bandos de tigres
rasgando uns aos outros com crescent ferocidade diária! “E vai ser pior,” ele
disse, e de novo teve aquele disparo maravilhoso do coração. Em vez de
milhares, o future matará milhões. Isso vai continuar, as figuras vão aumentar,
e o processo acelerar! Viva à raça dos lobisomens!
Um dia ele estava pensando nessas coisas e exultando enquanto
caminhava pelas ruas da cidade. As execuções já havia terminado. Somente
prisões estavam sendo feitas. Bandos de soldados e policiais estavam
sistematicamente saqueando todas as casas. Todos os suspeitos eram presos
de imediato. A menor suspeita era o suficiente. Um carteiro denunciou uma
família por receber mais cartas do que o habitual. O mercadinho denunciou
outro porque comprou salsichas extras. E assim ela foi devolvida porque ele
não respondia rápido o bastante. Outro, porque andava muito rápido, ou
então muito devagar. Nenhuma razão era insane para provocar um
encarceramento. Nenhuma desculpa minima para suspeitas. Em três semanas,
a polícia recebeu 379.823 cartas anônimas de denúncia.
Esses eventos, esses vislumbramentos e ideias cresceram não só
pena no coração de Aymar, mas também um senso feral de satisfação. O
bálsamo grande e delicioso de “Eu avisei.” Afinal, essa era a prova do pudim.
Vê aqueles soldados ocupados limpando os cadáveres das ruas? Vê aqueles
corpos sendo jogados numa fundação que foi preparade para a construção de
uma escola? Ou talvez para uma igreja, ou para a construção de uma casa, na
qual mais famílias de lobisomens se reproduziriam?
O serviço policial ainda estava desorganizado, mas esquadrões de
soldados viram que os corpos foram colocados discretamente fora de vista,
para dizer que foram despejados lado a lado, fora das vias principais, e que
algumas pás de terra foram lançadas sobre eles para esconder as roupas sujas
de sangue. Um pouco de terra e de tempo foram suficientes. E a raça de
lobisomens esqueceria.
Homo economicus levantou-se no meio das ruínas latentes e começou a
florescer novamente. Um homem subiu e desceu rua após rua com um
carrinho de mão. Ao ver um corpo, ele pararia, desvendado em piedade, e
murmuraria uma oração breve. Então acenaria com seu chapéu antes de
colocá-lo mais uma vez, a fim de afastar as moscas, e com uma mão rápida e
prática, ele tiraria o calçado do cadáver e lançaria as botas ou sapatos para
dentro do seu carrinho. A colheita estava farta.
Algumas pessoas o pararam em suspeita e o interrogaram. Ele
respondeu com educação, “Para identificação oficial,” e voltou aos seu
trabalho. Aymar, vendo-o, disse brevemente. “Dezoitos, senhor,” e apreciou a
expressão assustada no rosto do homem.22 “Um pequeno lobisomem,”
pensou e gargalhou para ele mesmo.
Ao todo, esses foram dias agradáveis para Aymar. Ele viu um padre
descendo uma rua e assobiou. Debaixo da batina e da cruz, Aymar
reconheceu Coronel Gois, o matador terrível dos reféns, de quem todos
estavam à procura. “Vou dar um susto nele, o lobo em pele de cordeiro,”
Aymar pensou e aproximou-se dele com uma frase em latim, “Pax
vobiscum! Se não é nosso velho paster fidus Gois.”
Gois estremeceu. “Pelo amor de Deus, Galliez!” ele implorou numa voz
trêmula.
Mas Aymar não poderia segurar nem mesmo uma piada. “Pelo visto,
você teria atirado em você mesmo nos velhos tempos! Bem −”
Sim, esses eram dias agradáveis para Aymar, agradável até ele ser preso.
E até mesmo para isso houve algum prazer. Em grupos de cento e cinquenta a
duzentos, amarrados, de mãos em mãos ou de cotovelos em cotovelos, em
fileiras de quatro, os prisioneiros foram marchando para fora das celas de
22
Um trocadilho em Francês. Sapatos são duas vezes novos, ou seja, “deux fois
neufs,” que também é duas vezes nove ou dezoito.
Luxemburgo até as muralhas, e de lá para baixo ao longo da estrada para
Versalhes. Dia após dia, até que cerca de 40.000 houvessem feito a viagem.
Lado a lado, marchavam lutadores velhos, alguns em uniformes, outros
em trajes de operário customizados às pressas. Os rostos deles eram
alinhados e febris, e todos pareciam bêbados, como todos os homens quando
não estão barbeados. Os idosos tropeçavam, ligados a crianças chorando, ou a
meninas em uniformes fantásticos, que haviam carregado um rifle para
defender os bloqueios, ou a matronas de cabelos grisalhos, preservando a
dignidade delas com dificuldade, enquanto elas caminhavam ao lado de servos
em chita e aventais, todos capturados de alguma forma na rebelião, ou
contados por engano entre os prisioneiros. E aqui e ali, uma figura de casaco,
ereta, sóbria, um homem com semblante de estudante ou artista, que havia
adicionado aos seus sonhos lindos de Utopia o fiasco triste da Comuna.
Essa coluna de trapos e restos movie-se lentamente pelas estradas
empoeiradas, sob o calor feroz do sol de junho. Os guardas cavalgavam
montados nas costas dos cavalos, carregavam armas nos joelhos, como
gaúchos conducindo o gado ao matadouro. Paradas instantâneas foram
feitas em Sèvres e novamente em Viroflay. E depois as tropas entraram em
Versalhes através do portão de Paris.
Agora vinha a parte mais terrível da jornada. A marcha pela cidade real
de Versalhes, entre becos lotados de pessoas próximas, uma multidão
fanática, vazia de todo senso de equilíbrio, piedade e inteligência. A cidade
dos ricos também demonstrou aqui que poderia formar mobilizações tão
insanas quanto as dos bairros mais pobres de Paris. Nenhum punho nú, sujo
ou caloso foi mexido na coorte, mas mãos muito bem enluvadas, mãos de
demi-mondaines em luvas rendadas e mãos de banqueiros em pelica amarela.
E vozes que falavam francês corretamente, uivaram, “Sem prisioneiros! Morte
aos bandidos!” e as roupas finas perderam a linha, quebraram a fila de
proteção dos cavaleiros. E as senhoras elegantes e esnobes, aproveitando a
oportunidade para acertarem um golpe destemido de retaliação, atacaram. Os
homens cutucaram com suas bengalas, e as mulheres balançaram seus lindos
guarda-sóis, ou retiraram uma luva para arranharem com suas unhas afiadas o
rosto de uma jovem. “Pétroleuse!” Eles gritavam. Embora somente um
punhado de mulheres havia causado incêndio de verdade, todas as mil
e tantas mulheres presas eram suspeitas de terem queimado um ou
dois palácios. Até as seiscentas e cinquenta crianças pareciam
demônios.
E Aymar zombou. “Mais lobisomens!” exclamou, alheio dos golpes que
chovia sobre ele. “O mundo está cheio deles. Como é que pensei que
fossem raros? Eu mesmo já fui um – e não sabia disso.”
Versalhes não poderia acomodar todos esses prisioneiros. Eles foram
guardados em grandes salões, corredores, porões, debaixo de bocas de
canhões, enquanto Thiers desbravava seus livros de história em vão, para
encontrar uma solução ao problema de controlar essa massa. Grandes lotes,
transportados em trens enormes de gados, foram enviados às fortalezas no
litoral e convocador separadamente para seus julgamentos. Dezenas seriam
sentenciados à prisão perpétua, milhares seriam deportados para ilhas
tropicais.
CAPÍTULO DEZOITO
Por onde devo encerrar a minha história?
Esta não tem começo, nem fim, apenas um desabrochar perpétuo, de
um botão com muitas pétalas de estranha botânica.
Por que eu não termino por aqui? Por que você quer saber da morte
deste lobisomem em vez de outro? Consultem os registros do seu mortuário.
Eram homens e mulheres? Ou eram apenas disfarces, que escondiam
monstros sem nomes, incubadoras quentes de infâmias que congestionariam
seu sangue se fossem retiradas das suas entranhas à luz do dia para você ver?
A terra não engole os mortos, mas somentes os corpos deles, que foram os
embrulhos dos seus crimes e ódios. Estes nunca são enterrados, mas vivem
imperecíveis para escrever registros mais horríveis a cada geração.
O que você saberia? Sophia? Os registros do Ministérios da Guerra e do
Gazette des Tribunaux nos informam que ela foi condenada a ser deportada,
como implicada no caso de Barral de Montfort. Ele mesmo veio ao
julgamento, mancando e com o braço direito atrofiado por um tiro
através do nervo. Ele chorou por um olho. O outro estava seco e
fechado. Foi comido por moscas, enquanto ela estava morrendo nav ala
ao lado das barricadas da Place Voltaire.
O transporte Danaë navegou em sua interminável viagem para Nova
Caledônia, uma jornada que durou cinco meses, sem Sophia. O pai dela
levou sua riqueza ao jogo e a salvou da colônia penal.
A surpresa dele foi grande quando voltou para Paris e soube do que
havia acontecido. Somente uma carta havia chegado até ele. Era da tia Luíza
Hertzog e contava sobre o desaparecimento de Sophia. “E Barral de
Montfort,” escreveu tia Luíza, “não me contará onde Sophia está, no entanto,
obviamente, ele deve saber.”
O barão leu a carta com os sentimentos revirados. Mas depois de
reconsiderar por um tempo, decidiu. Deixe o fogo queimar. E pensando na
esposa e em tia Luíza Hertzog, ele acrescentou, “E deixe o gelo seguir as
regras de gelo, se assim deseja.” E depois ele riu. “Sorte de Barral. Se eu
apenas estivesse no lugar dele. − Ah, bem, a vida continua. Mais alguns
anos, ou talvez algumas semanas somente, e onde nós estaremos? Deixe-
a ter o vôo dela.” Ele olhou através da mesa para um espelho pendurado na
parede e notou a brancura crescent do que restava dos seus cabelos esparsos.
– E quanto a Sophia, ela teve o seu vôo.
Ela não sabia se Bertrand estava vivo ou morto. Ela não se importava. Ela
queria se matar, mas não podia invocar coragem para encontrar-se com a
morte. O horror noturno era tão forte nela que teve o cuidado de não ir para a
cama muito sóbria. Nem sozinha, se ela conseguisse lidar com isso.
O coração de Barral ficou dormente de dor ao ver a conduta dela. Um
dia ele conversou com ela, numa censura gentil, quando estavam sozinhos.
“Aqueles homens −” ele gaguejou, “aqueles – como você pode?”
“Como, você também, seu pobre insensato!” ela disse alegremente e o
arrastou até ela num sofá.
Ele foi para casa confuse, entusiasmado, todo seu amor antigo
despertado e dobrado. Ele perdoou tudo dela. E no dia seguinte, implorou-lhe
para casar com ele.
“O quê?” ela perguntou, espantada. Depois chorou. “Barral fiel e leal,”
disse. “Depois de tudo que fiz para você.”
Eles definiram a data do casamento no dia seguinte, e isso deu o impulso
necessário para ela se matar com gás naquela noite.
Em vez de acompanhá-la até o cartório para o casamento civil, ele o
corpo dela até o Cimetière Israelite em Père-Lachaise. O pai dela chorou em
silêncio, a mãe ruidosamente. Como a terra estava jogada sobre ela, Barral não
pôde conter a raiva. Ele apontou seu braço bom para o céu e jurou vingança.
Aymar logo foi solto em virtude de um non-lieu, mas foi convocado
novamente para testemunhar no julgamento do pintor, Courbet. Este
gênio do blefe foi responsável durante a Comuna pela demolição da
Coluna Vendôme. Enquanto a coluna estava sendo puxada para baixo aos
aplausos da população, Courbet foi ouvido dizendo, “Essa coluna está brava
comigo. Aposto que ela vai cair em cima de mim e me esmagar.” Ela não caiu
sobre ele, mas precisamente na cama que os engenheiros haviam
construídos para pegá-lo e os esmagou.
Perante o tribunal, Courbet sustentou que havia agido sem ódio pelo
Pequeno Cabo, mas puramente por motivos artísticos. “Essa imitação ruim da
Coluna de Trajano me irritou. Eu tive vergonha de pensar que os visitantes
olhariam para isso como uma das glórias da arte francesa. E nenhuma
consideração pela perspectiva – de que a estátua feita de Napoleão atinge
sete metros e meio de altura, só porque as regras dizem isso, independente
de quaisquer que sejam as proporções reais do pequeno companheiro.”
O presidente disse, “Você foi movido apenas pelo zelo artístico, então?”
E Courbet respondeu, “Isso, simplesmente.”
Ele foi condenado a seis meses de prisão. E o custo da reconstrução, que
ultrapassou os 350.000 francos, foi cobrado dele. Ele não tinha tanto dinheiro,
então suas pinturas foram apreendidas e vendidas em leilão. Hoje elas
valeriam muito mais e até mesmo nos melhores dos seus próprios dias, mas no
momento a fama dele estava em eclipse. Mesmo com suas obras leiloadas,
somente 12.000 francos foram conseguidos. E o salão recusou-se a exibí-lo
mais, considerando-o moralmente indigno. Ele fugiu para a Suíça, porém a
França continuou a persegui-lo e a cobrá-lo. Enfim, ele morreu de coração
partido. E sua morte foi passada sem uma palavra. Courbetismo e realismo
estavam fora de moda nesse momento. Os impressionistas estavam dentro.
Assim que Aymar foi libertado, ele visitou Bertrand em La Sante. O
médico-chefe estava em dúvida sobre a possibilidade de soltura para o
prisioneiro.
“Ele está em boa saúde, mas tem momentos de raiva. Então ele quebra
os móveis ou ataca os guardas.” Os médicos não viram nada misterioso em
Bertrand. Ele era apenas mais um caso.
“Momentos de raiva?” disse Bertrand amargamente para Aymar. “Por
que não? Quem não ficaria neste buraco horrível?” “Você não parece mais
muito ansioso para morrer, não é?!” Aymar duvidou.
Bertrand balançou a cabeça, como se uma relutância para morrer
fosse vergonhosa. A prisão o prontificou para a vida e a liberdade. “Por
favor, tio,” ele implorou, “me tire daqui. Eles me tratam muito
miseravelmente.”
Aymar sorriu. “Tirá-lo daqui? Como eu posso? E você acha que deveria
estar aqui fora? Lobos pertencem a uma jaula no jardim zoológico.”
Porém, então, ele pensou, Por que este lobo deveria ser calador por
um crime individual, enquanto crimes em massa ficam impunes? Quando
toda a sociedade pode virar um lobo e celebrar com pífano e tambor e
bandeiras ondulando ao vento? Por que, então, esse cachorro também não
teria o dia dele?
“Você já pensou na Sophia?” Aymar perguntou.
Bertrand fechou os olhos como se estivesse com uma dor profunda.
Mas, após um segundo, balançou o ombro. “Sophia. Sim, Sophia. Ou qualquer
mulher, para este assunto,” concluiu ferozmente.
“Eles não fornecem mulheres aos prisioneiros, heim?” Aymar perguntou.
Bertrand respirou fundo.
“Bem,” disse Aymar. “Vou ver o que pode ser feito, mas, primeiro, me
diga. Você já… ora… mudou?” Bertrand balançou a cabeça de novo.
“Pergunta indelicada, hã? Como perguntar a uma garota se ela – Sim, eu
já entendi.”
Embora amargo por fora, Aymar sentia muito por Bertrand. A prisão de
La Sante era considerada um modelo, sendo construída recentemente, mas
metal e pedra fazem, na melhor das hipóteses, uma morada fria. O diretor,
com quem Aymar consultou, sugeriu que, se ele quisesse retirar seu sobrinho
para um dos asilos pagos, licenciados pelo Estado, provavelmente a permissão
poderia ser garantida.
Foi assim que Bertrand foi transportado ao sanatório do Dr. Dumas em
Saint-Nazaire. O próprio Aymar havia inspecionado vários lugares e escolhido
esse retiro tranquilo. Aqui, se em algum lugar, Bertrand estaria confortável e
bem cuidado.
O primeiro aspecto do lugar era convidativo. Havia um grande jardim
com árvores velhas e espaçosas sombreando gramados macios. Uma parede
de tijolos antiga, coberta de hera, cercava a propriedade com suficiente, mas
gentil, barreira. Dentro da área fechada, havia um edifício principal, bonito
por fora, e várias estruturas menores. Dentro delas havia quartos grandes e
agradáveis, com vistas da janela para o parque.
Os pacientes eram criaturas mansas. Talvez tivessem uma tendência a
pensar uma ideia repetidas vezes, como uma roda girando ociosamente
depois da correia soltar. Ou suas mentes seguiam alguma estranha lógica
pessoal, os pensamentos ficavam de fora num mundo de ilusão, calados
num universe privado, ou afundados num stupor permanente.
Alguns sentavam0se em cadeiras confortáveis no terraço. Outros
passeavam sobre o gramado, esforçando-se para performarem
Shakespeare ou Alexandre, ou perseguirem borboletas imaginárias. – Quando
os visitantes vinham inspecionar o estabelecimento do Dr. Dumas, esses eram
os pacientes que eles viam. E era quase bonita: crianças brincando num jardim.
Esse era o show dos pacientes. Era para que os visitantes imaginassem
seus entes queridos na cena. Sim, aqui seria um lugar excelente para uma mãe
que perdeu a capacidade de dirigir seus próprios músculos, que não pode mais
controlar sua bexiga ou suas entranhas, ou levantar um copo até a sua boca.
“E você pode curá-los?” Dr. Dumas é questionado.
Ele é um camarada atraente. Bem vestido, sereno, com o rosto barbudo
de um estudioso distinto. Responde de maneira evasiva, mas majestosa.
“Isso depende do caso individual. Nós podemos curar alguns. Nós
podemos melhorar tudo.” Ele aponta alguns dos pacientes sentados à
sombra das castanheiras enormes e conta histórias dos seus casos. É o
suficiente para convencer seus visitantes. E, assim, a última morada da
pobre mãe é decidido. Ela ficará melhor aqui do que em casa, os filhos
e filhas garantem a eles mesmos. “E podemos vê-la a cada segundo
sábado pela tarde e qualquer outra hora após aviso prévio, por escrito.
Claro, o preço é alto, mas mãe merece o melhor. A boa e velha mãe. Algum
dia ela ficará curada e nós viremos levá-la de volta para casa.”
Mas há mais neste hospital do que no parque e nesses trovadores
hilários que são exibidos aos visitantes. No último andar, por exemplo, há
certos quartos que nunca são mostrados à visita e, nesses dias, eles são
trancados e barrados, com as janelas bem fechadas. Se os parentes de um
paciente dessas salas vêm visitar, os aflitos são lavados às pressas para
ficarem apresentáveis, os violentos são drogados, se necessário, e levados a
uma sala de visitação abaixo.
“Sim,” diz o doutor. “Posso perceber melhorias. Claro, para os
medicamente destreinados −” E quando os parentes estão saindo: “Agora
sem visitas tão frequentes, por favor. Isso os perturba muito
emocionalmente. Para melhores resultados, nossa rotina trabalhada aos
cuidados não deve ser quebrada.”
Nesses quartos de cima estão os pacientes com hábitos repugnantes e
bestiais. Aqueles que se sujam, que fazem movimentos obscenos constantes,
aqueles que discutem e brigam acriminiosamente com um inimigo
imaginário. Aqueles que devem ser impedidos de se matarem e, assim,
roubarem o pagamento do médico.
Num dos quartos você pode ver um coitado miserável que rasteja pelo
chão, agarrando-se ao chão com suas unhas, com um pavor mortal de cair
sobre o teto. Ele perdeu o senso de direção por completo, devido a uma
doença no ouvido interno, e não sabe distinguir acima de abaixo, nem
esquerda de direita. Não consegue andar, nem mentir. Não existe mais
equilíbrio nele. Mas Dr. Dumas conseguiu manter esse homem vivo por três
anos.
Em outro quarto está uma paciente que deve ser alimentada, que deve
ter todas suas vontades atendidas. Ela é filha de um nobre. Parece uma
chinesa anã. Ela tem mais de quarenta anos e esteve em vários asilos a vida
toda. É inofensiva, mas nojenta, e não faz sentido tentar cuidar de cada um
dos seus desejos. De vez em quando, quando seu pai, de cabelos brancos,
sobe na sua carruagem fina, um enfermeiro atira a nanica dentro da banheira
com água, ela é despojada das suas roupas fedorentas, escovada até ficar
limpa e trazida para a sala de visitas. O próprio pai dela contenta-se com um
olhar superficial, deixa um cheque e sai. Ele ouviu falar de pessoas pagando
ao longo de muitos anos pelo cuidado de um paciente que partiu, há muito
tempo, para um mundo melhor e está determinado a não participar.
Em outros lugares, nos abrigos dos porões, estão os epilépticos,
dados à violência e aos gritos horrendos, portadores de seringomielia,
cujos membros deterioram-se e caem sem dor, indivíduos melancólicos
que devem ser acorrentados para prevenirmos o suicídio, e os mais
horríveis tipos, sem rótulos, que são simplesmente bestas infelizes de um
útero humano e, portanto, creditados com uma alma, são apenas mantidos
numa jaula, nos seus quartos trancados, onde a comida é jogada, não são nada
mais do que isso.
Para Bertrand, jovem inteligente e de aparência calma como ele
era, Dr. Dumas primeiro designou um bom quarto no segundo andar.
Bertrand ficou imensamente satisfeito. E naquela primeira noite tentou
escapar. Mas o Dr. Dumas não era idiota. Ele deu a todos os seus
pacientes essa mesma oportunidade somente para ver como eles
reagiriam. O enfermeiro, Paulo, um sujeito corajoso que havia
conseguido seus músculos na loja de um ferreiro, estava de guarda. À
meia-noite, ele viu Bertrand saltar da varanda baixa e ir correndo
pelos arbustos. Paulo correu para capturá -lo, atacou-lhe e pensou em
imobilizá-lo no chão com facilidade. No entando, Bertrand tinha um
vigor além da sua aparência e uma força inexplicável nos seus músculos
macios. Além disso, ele colocou seus dentes em jogo, e suas presas
rasgaram as roupas do uniforme de Paulo e rasgaram a carne dele em
tiras. Paulo uivava de for, mas conteve-se. Os outros dois enfermeiros
vieram correndo para resgatá-lo e Bertrand foi finalmente dominado.
“Então é desse tipo que você é,” disse Dr. Dumas. “Tanto quanto eu
pensei. Bem, nós ensinaremos você. Leve-o para o último andar. Dê-lhe a sala
do canto. – Se você conseguir aprender a se comportar, você descerá de
novo.”
Não demorou muito para Bertrand perceber que havia trocado a cela
confortável do hospital-prisão de La Sante por um verdadeiro buraco do
inferno. O seu novo quarto continha somente o mínimo de móveis, um
leito estreito, uma cadeira e uma mesa pequena. Ao ficar de pé sobre a
mesa, mal conseguia alcançar o parapeito da única janela, oval,
vendada oeil-de-boeuf.
Ele manteve sua raiva sob controle por um tempo. Prometeu a si mesmo
que ainda pegaria o companheiro Paulo. E se colocasse as mãos nele
novamente, esse seria o fim. Ele lambia os dentes com a ideia. E é claro que
contaria a Aymar tudo sobre isso quando ele viesse, e o tio faria com que ele
tivesse um quarto melhor.
De fato, não fazia sentido esperar duas semanas pela visita do tio. Ele
poderia escrever para ele de uma vez. Não tinha caneta e papel. Bertrand
pediu uma ao enfermeiro. Não houve resposta. Ele bateu na porta. Mas os
sons não viajavam muito longe nesta casa solidamente construída. Além disso,
o terceiro andar era completamente isolado pelas portas na parte superior e
inferior da escada. E quanto aos barulhos, e quanto aos gritos e batidas e
todas maneiras de som, eles eram muito comuns para perturbar os
enfermeiros, mesmo que tivessem a chance de estar no andar de cima.
Enlouquecido pelo fracasso dos seus esforços, Bertrand entrou em
fúria. Atirou a cadeira contra a porta, até que aquele móvel frágil estivesse
aos pedaços. Rasgou a coberta da sua cama em partes. Então, caiu em
lágrimas. Prometeu ser mais esperto no futuro. A controlar-se e ativar a
maneira educada e jovial que havia aprendido em La Sante e alcançado os
melhores resultados.
Uma luminária redonda, parecida com um barril na porta, clicou. Sobre
uma prateleira pequena estava sua comida. Nenhum enfermeiro entrou no
seu quarto. Talvez um enfermeiro nunca entraria no quarto. Eles o deixariam
aqui para sempre e contariam ao tio que ele havia morrido. Sim, agora
relembrou da cela bacana que tinha em casa. De que adiantava ele fugir? Só
conseguiu em La Sante. E de lá veio para esta. De mal a pior.
No entanto, o segundo sábado chegou e com ele a perspectiva de ser
capaz de descarregar a miséria dele para o tio. Ele não contava com seus
anfitriões.
À noite, deparou-se deitado na cama. O quarto havia sido limpo. Tinha
roupa fresca na cama. A mente dele tateava pelas névoas límpidas de alguma
droga e relembrou, como se num sonho, a visita do seu tio. Lembrou de ter
sido levado para baixo por Paulo. Sim, por Paulo! Recordou-se da sala de
visitas, seu tio sentado do lado oposto, questionando-o, enquanto ele mesmo
estava sentado impassivelmente ali, incapaz de fazer mais do que sorrir.
Desta vez ele perdeu a cabeça completamente. Ele quebrou, rasgou e
uivou até cair exausto no chão e dormir. Quando acordou, com febre e tenso,
gemeu para se reconhecer sozinho e incapaz de encontrar libertação.
Ele ouviu: Houve um barulho da câmara ao lado. Poderia ser ouvido
baixinho. Era a pequena mongoloide arrulhando para ela mesma. Bertrand
não sabia qual era a origem do som, mas a voz feminina e suave o encantava,
chamava-lhe com o poder de uma sirene. Jogou-se contra a parede. “Uma
mulher!” gritou. Ele chutou e arranhou. Impossível. A parede não era apenas
uma simples partição, mas uma parede de contenção da casa, de tijolos
sólidos e superfície de gesso pesado.
O barulho que ele havia feito obviamente assustou a dona da voz.
Bertrand caiu de joelhos. “Por favor, cante mais um pouco! Por favor... por
favor... Eu vou ficar quieto.” Mas a dona da voz permaneceu em silêncio.
A necessidade dele de ouvir aquela voz, a única ligação dele com o
mundo feminino, foi tão grande que aprendeu a se controlas, principalmente à
noite, quando, em geral, ela cantava tons suaves, gentis e monótonos. De
certo, o timbre dela era só um pouco como a voz rica e ressoante de Sophia,
mas Bertrand chegou a pensar nisso e a falar dela como Sophia.
“Cante para mim, Sophia,” ele dizia. “Cante para mim. Você lembra
como costumávamos andar à noite, de mãos dadas? Você se lembra...?” E a
mongoloide arrulhava baixo um acompanhamento para as memórias dele.
A perspectiva de ver seu tio era outra esperança que o ajudava a manter-
se em controle. Ele ficou intrigado com o mistério da droga. Claro que
administravam-lhe pela alimentação dele. Só era necessário acompanhar bem
os dias que passavam-se e evitar comer no sábado.
O truque dele funcionou. No sábado, ele não tocou na sua comida,
faminto como ele estava. Em vez disso, esperou com calma o horário de visitas
da tarde. Por fim, ouviu os passos do lado de fora. A chave guinchou na
fechadura, e a porta se abriu.
Era Paulo, o enfermeiro imenso que, há um mês atrás, havia derrotado a
tentativa de Bertrand escapar. E agora Bertrand cometeu um erro terrível. Ele
deveria ter sido, evidentemente, humilde com Paulo, como se estive drogado
de verdade e, assim, revelaria suas queixas para Aymar. Em vez disso, cego
pelo seu desejo de vingança, ele saltou sobre o enfermeiro surpreso e o teria
matado, de certo, se os gritos dele não atraissem outro enfermeiro, que
correu para a assistência do companheiro. Entre os dois, Bertrand foi
imobilizado e amarrado.
Então o Dr. Dumas foi convocado. Era uma questão simples de injeção
de uma droga por uma agulha hipodérmica, e um Bertrand manso, tranquilo,
estupidamente sorridente e muito atraente, foi levado para baixo.
Quando o efeito da droga passou, Bertrand soube que havia perdido sua
segunda oportunidade e que outra seria difícil de encontrar. Louco de
decepção, afundou os dentes numa perna da mesa e lascou a madeira.
Quando fez um monte de ruínas dessa, atacou os lençóis e cobertores da sua
cama. Tirou os sapatos e mastigou o couro, quebrou os botões das roupas. Ele
torceu a colher em nós, o único instrumento que foi servido junto com a
comida dele, e esmagou o prato de lata.
E a quinzena seguinte deparou-se com ele drogado por um truque fácil.
Nos dois dias anteriores, ele estava faminto. Ele uivava de fome. Sua barriga
vazia rosnava. Ele caía em sonos leves, nos quais acordava de sonhos vívidos
de comida. E então, lá na bandeja giratória, estava uma refeição abundante e
apetitosa. Ele sabia, sim, que era dia de visitas e que não deveria dar nenhuma
mordida dela, mas não conseguia resistir. Engoliu cada pedaço. Enquanto
através de um vidro escuro, viu Paulo entrar e sorrir para ele.
Dr. Dumas estava irritado com toda essa destruição. “Chega de
lençol ou cobertores para ele. Tire a roupa dele depois do horário de visitas.
Deixe-o pelado. E quanto à comida, jogue-a no chão. Chega de pratos!”
Você não pode jogar muito bem sopa no chão. Mas pode atirar um
pedaço de carne. E os enfermeiros descobriram o amor de Bertrand pela
carne. Era um esporte bom deixá-lo faminto por um dia, abrir sua porta de
repente e arremessar-lhe um osso coberto com pedaços de carne.
Os funcionários, armados com chicotes ou tacos, ficavam na entrada e
assistiam Bertrand atacar a própria comida e agachar-se no chão para roer e
devorar a carne em pedaços, e então quebrar o osso pela gordura da medula.
Para maior entretenimento, os enfermeiros gostavam de oferecer a ele alguns
ossos duros, em específico, o osso pesado da coxa do cavalo, por exemplo. O
som de lacas moendo contra o osso enchia a sala num estalo sinistro. Os
ajudantes tremiam e recuavam para o mais distante que conseguissem. E
seguravam a maçaneta da porta, prontos para fechá-la ao menor sinal de
perigo.
Sobre isso, eles forem bem aconselhados, pois em diversas ocasiões
Bertrand, irritado com as risada ou excitado com os aplausos, saltava de
repente sobre eles. Uma vez, ele foi recompensado por ter seu rosto preso
entra a porta e a armação, de modo que os ossos da sua bochecha quase
foram esmagados por dentro. Contudo, em outras ocasiões, seus dentes
conseguiram alcançar a perna de Paulo e cortaram-lhe a roupa, mas sem
pegarem a carne.
Paulo já teve o bastante. Ele estava há muito tempo sedento por
vingança a qualquer custo. Um dia, sabendo da ausência do doutor, ele
arranjou um chicote pesado do estábulo. Bertrand foi drogado com
clorofórmio e amarrado ao poste, onde caiu sobre as cordas que o
sustentavam, pois estava completamente inconsciente. Eles revezaram-se
para bater nele, primeiro chicoteanto-o à queima roupa, e depois batendo na
bunda dele. Bertrand gemeu baixo. Mas não acordou, apesar do sangue
esguichar pelos ferimentos das costas rasgadas. Depois, por semanas, seus
dias e noites tornaram-se uma longa tortura.
De todos os pacientes, os homens tiveram um prazer peculiar em irritá-
lo. Nos dias em que estava faminto, preparatório para ser drogado, eles
costumavam ficar ao lado de fora da porta ouvindo seus gritos insandecidos.
Isso os entretinha. E quando havia sido drogado, encontravam algum prazer
estranho em manuseá-lo. Ele ficava dócil como uma criança doente. Os
ajudantes escovavam-lhe, passavam sabão nos olhos dele ou cutucavam seu
nariz. Ele respondia com um sorriso bobo. Uma vez, um deles pensou num
truque esperto. Ele colocou tachinhas afiadas na sola dos sapatos de Bertrand,
para que fossem pisadas. E assim Bertrand, alheio à dor, caminhou ao longo
do corredor e desceu os lances de escada até a recepção, onde o tio
esperava por ele.
Ele não deu nenhuma resposta ao cumprimento do tio. Ficou
carrancudo, de pé, até Aymar forçá-lo a sentar. O tio tentou questioná-lo. Mas
ele continuou observando com raiva. Ou, caso o rosto dele quebrava-se num
sorriso besta, o efeito em Aymar seria ainda pior.
Ele tentou simpatia. “Responda-me. Responda-me. Por favor,
Bertrand, me responda. Bertrand, olhe para mim. Você está com raiva de
mim? Eu não fiz sempre o meu melhor a você? Nenhum pai se esforçaria mais.
E o que eu tenho a ver com você, afinal? Nem sua mãe nem seu pai eram meus
parentes. Mas você veio ficar comigo, e eu vim para amá-lo e me sentir
responsável por você. Você era meu, mas apenas como um cão perdido que,
às vezes, prende-se a um transeunte porque não será maltratado.”
Bertrand sorriu.
“Fez bem, você sorrir,” Aymar continuou. “Fui eu que tive toda a dor e
decepção. Sou eu que agora suporto toda afronta da sua ingratidão.”
O sorrido de Bertrand desapareceu. Seu rosto escureceu numa carranca.
“Isso, feche a cara se quiser. Mas você ficará arrependido. Porque eu não vou
vê-lo por muito tempo. Recebi dispensa papal e logo receberei ordens
sagradas. Assim, posso ser mandado para longe. Para a China, para a América
do Sul. E você será deixado aqui. Você vai escrecer para mim, ao menos?
Provavelmente não. Você não respondeu a nenhuma das minhas cartas até
agora. Sua natureza brutal engoliu todo o aprendizado que lhe dei. Você
lembra de quando eu ensinei a você as letras, recortando o alfabeto de vários
papéis coloridos, e como você aprendeu primeiro que cada letra do papel
vermelho seria A, porque A havia sido cortado do papel vermelho?”
“Então você não vai me perdoar por tê-lo trazido aqui, onde você
certamente está melhor do que naquele asilo da prisão? Aqui é caro e bonito,
você tem a liberdade desse jardim imenso, os cuidados de um médico famoso
que quer ajudá-lo, se ele puder, mas que duvido, de qualquer forma.
“Ora, enfim, fale! Responda! Ou você é mudo?” Aymar levantou-se e
gritou àquele impasse carrancudo. Ele postulou, gesticulou, implorou.
Então ele limpou sua testa. Eu também estou enlouquecendo, pensou. É
claro que o garoto coitado está totalmente fora.
Ele saiu no corredor e chamou um ajudante. “Adeus, Bertrand. Quem
sabe eu o veja de novo.” Bertrand seguiu o enfermeiro humildemente sem
dar, sequer, outro olhar para o seu tio.
Aymar bateu na porta do consultório do médico. Dr. Dumas o saudou-lhe
com um sorriso. “Entre, Sr. Galliez. Entre. Beba uma taça de porto comigo.
Aymar estava feliz demais para sentar e conversar com um ser humano
para variar. Dr. Dumas era um homem muito gentil e inteligente, com quem
sentia-se em casa ao mesmo tempo
“E o que achou do seu sobrinho, Sr. Galliez?”
Aymar bebericou seu porto e respondeu tristemente, “temo que ele
não esteja muito bem.” Ele balançou a cabeça e suspirou.
“Ora, ora,” disse o médico, “esses casos, você sabe, são diabólicos e
difíceis de tratar. Você deve reprimir o lado bestial deles e isso rouba-lhes da
alegria da vida deles. Eles ficam bravos com o mundo inteiro e mal-humorados
ou então zombam de você em segredo. − Aqui, deixe-me encher sua taça.”
Após algumas taças de porto, Aymar estava sentindo-se mais calmo. “O
que me incomoda, o que, de fato, me machuca profundamente, é que ele nem
mesmo conversa comigo. E por que ele nunca responde as minhas cartas?”
“Ah, bem, Sr. Galliez, deve-se aturar certas coisas. A gratidão é rara o
bastante até mesmo entre os sãos. Para mim, não posso me aproximar dele
sem levantar uma carranca em seu rosto. E, mesmo assim, você sabe o quanto
de cuidado e atenção damos aos nossos pacientes aqui. Que tipo de vida é
essa, afinal, para se dedicar, sacrificar todas as coisas, para aliviar o
sofrimento...”
“Você deveria se sentir enobrecido por isso, meu caro médico. Tentar
aliviar os males do mundo, de qualquer lado. − Ó, de qualquer jeito, você
sabe, pretend seguir ordens sagradas logo.”
“Mesmo?” o doutor ficou chocado, mas recuperou-se rapidamente.
“Então, permita-me parabenizá-lo. Posso beber pelo seu future? Não há nada
melhor do que a carreira do sacerdócio. Eu não sou um daqueles
medicos descarados que são tão vociferantes em suas denúncias da
Igreja. Como um homem da ciência, eu devo estar embasado, como um
estudante da alma, eu sei que a religião é uma força potente .”
Aymar estava satisfeito. Havia algo que ele havia tido em seu coração
por muito tempo. Ele poderia confiá-lo ao Dr. Dumas?
“Eu me questiono. Eu sei, claro, que seus pacientes podem ter uma
missa para eles, se é o que eles desejam, mas você tenta, ah,
sistematicamente, abrir o coração deles para a religião? Você, por exemplo,
tenta ensiná-los a orar?”
“Você acertou bem numa das minhas teorias de estimação, monsieur.
Estou trabalhando aos poucos para isso.”
“Eu mesmo me negligenciei isso, nos anos anteriores,” confessou
Aymar, “mas, desde os terrores do último ano, tornei-me convencido de que
o homem deve retornar à fé simples dos seus ancestrais, voltar ao que nós,
em nossa sofisticação moderna e orgulhosa, temos como superstição
vulgar.”
Dr. Dumas acenou com sua cabeça em acordo e encheu as taças.
“Existe alguma coisa,” disse Aymar, “que eu estava querendo perguntar
a você.” “Certamente.”
“Você tem observado meu sobrinho com cuidado?” “Ora, monsieur!”
“Não estou insinuando nenhuma crítica,” Aymar declarou em seguida,
“mas você sabe, claro, que eu tive meu sobrinho sob meus cuidados por
muitos anos?”
“Sim.”
“Bem, você já reparou ele mudar?” “Mudar? O que você quer dizer?”
“Digo, num lobo.” “Num lobo?”
“Sim, ora. Você sabe, claro, que ele está enfermo com licantropia?”
“Com certeza, mas esse é um mero nome.”
“Peço seu perdão, é a verdade.”
“Ah, venha, Sr. Galliez. Você não me faria acreditar que seu sobrinho
faz mais do que se iludir? Sabe, a doença dele é muito comum. Na verdade,
fiz um estudo sobre isso. E dei atenção considerável à enorme massa de
testemunhos sobre lobisomem nos julgamentos medievais. Em todos eles,
há provas completas de que ninguém nunca viu um lobisomem, e os
próprios pacientes confessam que apenas sentiam-se como lobos.”
“O que quer que tenha sido o caso,” Aymar retomou, “− e não estou
preparado para concordar com você, pois estudei o assunto por mim mesmo –
estou certo de que meu sobrinho age como um lobo e transforma-se num
lobo.”
“E você o viu fazer isso?” o médico sorriu. “Não. Mas estou convencido
do que ele faz.”
“Você já viu o lobo?” Dr. Dumas insistiu. “Não, mas −”
“Você parece facilmente convencido, então.”
Os dois homens, um pouco corados por causa do vinho, aumentaram
lentamente suas vozes. O médico não conseguia mais finger ser um amigo da
religião. Ele começou a repreender a Igreja Católica por haver queimado os
lobisomens. Aymar defendeu a Igreja, alegando que a fogueira era um tipo de
dispositivo sanitário para parar a infecção.
De qualquer forma, D. Home23 entrou na discussão. Eles desviaram-se
por um momento aqui, enquanro o médico lembrou como Home costumava
dar sessões perante Impératrice Eugénie. Ele costumava fazer gaitas
flutuarem no ar e tocarem músicas sozinhas. “Você acredita nisso?” o médicou
perguntou.
“A Igreja diz que isso é trabalho do diabo, embora fenômenos
semelhantes ocorressem na vida dos santos. Em todo caso, eu queria vê-los
com meus próprios olhos.”
“Bem, claro,” Dr. Dumas concordou. “Exatamente. Porém, aqui, nós
temos um caso que você confessa que ninguém nunca viu. Nem mesmo
você!”
“Eu nunca vi o lobo, realmente,” Aymar voltou. “Mas tenho tantas
provas boas quanto eu quiser. Ou melhor, eu tive uma vez uma bala de prata
que foi atirada num lobo pelo garde champêtre da nossa cidade, e essa bala

23
Famoso espiritualista americano e médium físico (1833−1886). Ele foi examinado
por Lord Crookes, o físico célebre, que esteve convencido do poder de Home se
levitar, etc.
de prata eu extraí da perna do meu sobrinho. Eu vi seus depoimentos. Ouvi
sobre seus sonhos. Eu vi, muitas pessoas viram suas pegadas. Ouvi sua
respiração e o seu ronco. Existem coisas muito estranhas. Devo mencionar
uma dela? Depois que ele tira suas roupas, quando a transformação está
prestes a ultrapassá-lo, ele sente necessidade imperativa de urinar. Ele me
contou isso. Agora, pergunto para você, minha vítima de licantropia leu
Petrônio e outras fontes mais obscuras para saber que esse é um traço
universal dos lobisomens antes da metamorfose? E por que ele iria querer
seguir as pistas deles sobre o modo da cerimônia? Não faz sentido.”
“Eu não consigo ver onde você quer chegar, monsieur. Não nego que
os sintomas da ilusão sejam parecidos em todas as suas vítimas. Pelo
contrário, eles seriam parecidos. E se urinar é um deles, porque, assim
deveria ser lá, como uma febre na difteria. Além disso, o ato de urinar
pode ser explicado, para ser mais didático, pelo ar frio que atinge a
pele do corpo. Uma redução de temperatura traz, invariavelmente, o
desejo de livrar o corpo da maior quantidade de umidade, necessária
num clima mais quente. É semelhante a uma condensação súbita e
precipitação.”
“Por que não à necessidade súbita de livrar-se de um excesso de
umidade, porque um lobo carrega naturalmente menos? Bom Deus, doutor,
você acha que vivi vinte anos com essa coisa sem debater comigo mesmo a
cada minuto? Dez anos não bastariam aqui para recapitular toda a história da
origem e mistério dessa criatura. Eu não estava tão relutante quando você
para aceitar os fatos. Eu não sou, por natureza, ingênuo.”
“Eu tomo como certo a sua incredulidade original. Só me pergunto como
você mudou. Como pôde acreditar que ele foi metamorfoseado num lobo? Por
si isso é absurdo!”
“Certas coisas. Muitas coisas, algumas pequenas nelas mesmas, mas
todas elas, juntas, apresentando um argumento invencível, fizeram-me
mudar de ideia. O nascimento dele em véspera de Natal, por exemplo.”
“As estatísticas mostrarão, tenho certeza,” disse Dumas
ansiosamente, “que milhares de nascidos naquele dia tiveram vidas não
diferentes do resto de nós. Você vai trazer à tona a astrologia?”
“Não neste momento,” respondeu Aymar, “mas a ciência ainda não
explicou muitos fenômenos do caráter e da emoção humana.”
“Você definiria limites para a ciência?” Dumas levantou a voz. “O homem
é um compost de produtos químicos e algum dia escreveremos a reação
química do amor!”
“Besteira!” Galliez retorquiu. “O homem é uma união de matéria e
espírito. No instante entre vida e morte, por exemplo, o que deixa o corpo: a
química?”
“Não, mas a ordem química ou agregação é alterada lá.” “Ha, ha! Então
nós temos uma mudança de forma notável aqui.” “O que você quer dizer?”
“Simplesmente que a alteração do homem para lobo não é maior do que
da vida à morte.” “Retórica, monsieur!”
“Isso não é resposta. Você perdeu para o argumento científico?”
“Mas, cara,” Dumas gritou, “considere o que está dizendo: que um
homem pode se transformar num lobo. Um lobo, comenta você, que não tem
glândulas sudoríparas, cujos ossos e dentes, corpos duros, imagine você, são
todos de formas diferentes, cuja cada célula e cada cabelo e nervo −”
“E por que não?” retrucou Galliez, erguendo a taça de vinho. “Essas
mudanças não ocorrem na natureza? Você nunca viu a água virar gelo?”
“Ora, vamos.”
“Você nunca viu dois gases unirem-se de repente num pó de neve?”
“Sim, mas −”
“E uma lagarta transformar-se numa borboleta?” “Sim, mas num mês
inteiro.”
“Que diferença isso faz? O tempo não é infinitamente divisível? Se
uma roda pode girar uma vez ao ano, ela também não pode girar um
milhão de vezes por segundo? A vida de alguns animais é um piscar dos
olhos, enquanto a de outros é um século.”
“Eu admito isso,” disse Dumas lentamente, “mas você mencionou
borboleta. Você já viu ela virar lagarta de volta?”
“Não, mas se, como você disse, a vida é uma reação química, há alguma
razão para não ser reversível?”
“Não,” o doutor disse devagar, pois estava começando a recordar sua
discrição professional. É melhor ele não perder a paciência aqui. Ele
cambaleou ao redor até que estivesse concordando com Aymar.
“E aquelas sobrancelhas que juntam-se,” Aymar perseguiu.
“Sim, eu reparei nisso, mas considerei como um sinal de sífili
hereditária.” “De jeito algum,” disse Aymar. “E aquelas unhas.”
“Um sinal comum o bastante.”
“Intercalando dentes com pequenos espaços entre eles.”
“Claro, há variedades grandiosas na dentição do homem.” “E a palma
felpuda.”
“Muito estranho isso, não é?”
“Nem tanto qualquer um desses sinais, mas todos juntos. É como se
a besta nele espiasse aqui e ali. − E, logo, claro, suas ações, mais do que
qualquer coisa.”
“Hum,” disse o médico. “Sabe, Sr. Galliez, que o que você diz lá me
interessa muito. Revela uma teoria nova notável para todas as
manifestações inexplicáveis da psicologia mórbida e anormal. A
intrusão, mesmo em graus parciais, das formas de vida mais baixas à
forma humana. Claro, embora a ideia seja atraente, não posso aceitar
suas conclusões ao todo. Porém, pretend estudar a questão .”
A partir desse ponto, a discussão ficou cada vez mais unilateral e ainda
mais lisonjeira para Aymar. Quando levantou-se para ir, estava com a fé
renovada que, no sanatório do Dr. Dumas, ele havia encontrado o local
ideal para Bertrand. Na verdade, sentiu-se um pouco preocupado com
o médico. “Espero que você possa fazer algum bem para ele, Dr. Dumas, mas
deixe que eu lhe dê um aviso amigável. Tenha cuidado. Ele é um criminoso
perigoso. Cuidado com ele. E se você deve aproximar-se dele, lembre-se de
cruzar a si mesmo.”
“Obrigado pelo seu conselho,” o médico respondeu. “Vou me aproveitar
dele. E posso comunicar a você os resultados das minhas observações?”
Ele ficou na porta, observou Aymar sair mancando instável, mais do
que o usual, e bufou silenciosamente, “Posso ter dois pacientes ainda, fora
dessa família.”
Bertrand, quando não estava com raiva nem drogado, agora não
tinha prazeres na vida além desses dois: o canto de Sophia e a
esperança de vingança contra Paulo. Quanto à comunicação com seu
tio, foi melhor mesmo ter desistido, como nu m sonho. Pois era claro
que eles nunca deixariam Aymar aqui, e igualmente claro que nunca
iriam decepcioná-lo a menos que ele fosse drogado. Se não por
comida, então por uma injeção. E quanto à escrita, não havia
possibilidade disso: não apenas faltava material, mas como postar
uma carta mesmo se deve-se ter successo em escrevê-la?
Muitas vezes, ao ruminar assim sobre seu destino miserável, Bertrand
era tomado pela tristeza, e acontecia do cantro fraco de Sophia soar através
da parede. A amargura sumiria da sua mágoa. As lágrimas alcançariam seus
olhos. “Sophia,” ele diria para ele mesmo, “Sophia.” E deitava-se sobre o
colchão, que estava sobre o chão e constituía toda a sua cama, na
verdade, toda a sua mobília, e imaginava que ela estivesse em seu s
braços. Os cachos pretos dela estavam sobre o rosto, os lábios macios e
úmidos contra os seus, e os braços esbeltos sobre o seu corpo. E o
sonho duraria até que o canto cessasse. Então ele imploraria. “Cante de
novo, Sophia. Cante mais uma canção.” E se, como acontecia às vezes,
por decreto, as notas desenhadas aumentassem de novo, então ele
estaria quase certo de que ela sabia que ele est ava aqui, na sala ao
lado, e que ele queria ouvi-la cantar.
Depois de um tempo, cantar sozinho não foi o suficiente. O mero sonho
com Sophia não seria mais realizado. Ele precisa entrar no quarto ao lado. Mas
como? Ele formulou cem planos ousados e rejeitou todos. No entanto, ele
descobriu que poderia conseguir saltar até a janela oval, agarrar-se ao
parapeito e, afundando seus dedos na parede, quase engata uma posição de
assento. Se ao menos os dedos segurassem melhor na parede. Com as unhas
deles, com uma lasca de osso, ele remediou isso. Dois pequenos nichos
serviam agora para dar-lhe uma boa vantagem na parede e, na verdade, para
sentar sobre o parapeito.
As chances o favoreu por lá. Toda a estrutura da janela oval, barras e
tudo, estava solta do seu molde de pedra. Evidentemente, o operário que
havia feito uma abertura permanente acima do vidro, para ventilação,
afrouxou a estrutura do gesso e não se preocupou em arrumar seu dano. Ou
então o tempo havia encolhido a madeira para o seu tamanho atual. De
qualquer forma, pode-se pegar as barras e puxar toda a janela como se fosse
uma rolha. Tendo certeza disso, Bertrand esperou em febre até tarde da noite
para explorar mais.
Do lado de fora da janela oval, à direita, havia um telhado íngreme, e a
partir disso projetava uma trapeira. Isso levada, pelo visto, ao quarto de
Sophia. Do outro lado, havia uma parede em branco, de modo que a fuga por
aquele lado fosse impossível. Mas a trapeira pode ser alcançada. O telhado
íngreme era perigoso, mas acessível. Tremendo de emoção, Bertrand fez seus
preparativos. Enrolou o colchão longitudinalmente, num cilindro, e o
empurrou através da abertura até que caísse no chão abaixo. “Nós pularemos
sobre isso,” determinou. “Ou acertamos e fugimos juntos, ou erramos e
morremos juntos em suicídio, como planejamos tantas vezes.”
Aconteceu que, nessa noite, Paulo estava com vontade de ficar com uma
mulher, e isso era lamentável, pois o paciente que estava acostumado a
recebê-lo há vários anos havia acabado de ser removido pelos seus parentes.
As únicas outras possibilidades eram as duas pacientes do sexo feminine que,
por assim dizer, eram propriedade dos outros dois ajudantes. Paulo debateu a
fim de afrontar o ciúme e a raiva de um dos seus companheiros, ou de tentar
sair do asilo e chegar à aldeia. Então a pequena mongoloide ocorreu-lhe. Vai
ser divertido, prometeu a ele mesmo. Ele sabia que ela gostava de doces, logo,
levou alguns com ele e não esperava nenhuma dificuldade: e também não
encontrou nenhuma.
Entretanto, o prazer dele durou pouco. Ele ouviu um barulho na janela,
olhou para cima e não teve tempo de escapar de uma forma escura que atirou-
se nele. Em um segundo o combate acabou. O sangue jorrou da sua artéria
rasgada num arco alto e largo e espirrou pelo chão. O arco diminuiu e
estancou de volta à sua origem, onde agora o sangue só aumentava em
pulsações cada vez mais lentas.
Bertrand estava lá, numa espécie de estupor do excesso de êxtase.
Finalmente, despertou-se, lutou contra a lentidão da sua mente e olhou ao
redor da sala escura. Nesta câmara, Iluminada apenas pela luz da lua ao
lado de fora, ele viu uma mulher estranha e anã, com um rosto moreno
escuro e cabelos grisalhos. Ela estava sentada na cama, nua, chupando
uma vara de açúcar de cevada e, como de costume, começou a arrulhar
para ela mesma.
A mente dela era incapaz de aceitar isso. “Sophia!” ele disse, perplexo.
“O que eles fizeram com você?”
Houve um barulho do lado de fora, no corredor. Sem desviar do
assunto, ele a agarrou e berrou, “Venha, Sophia, vamos morrer juntos.” E
segurando-a firmemente em seus braços, ele pisou no parapeito e
saltou para o colchão deitado no gramado abaixo. −
“Meu paciente mais rentável, também,” Dr. Dumas disse e suspirou.
Sendo as investigações coisas irritantes na melhor das hipóteses, o
médico omitiu a morte tripla tanto quanto podia, preencheu certidões de
óbito apropriadas, datou-lhes de forma diferente e realizou os funerais no
intervalo de uma semana. Houve somente dois funerais. Dr. Dumas estava
ansioso para dissecar a mongoloide e escreveu por uma permissão ao
marquês, dizendo que pagaria o preço habitual. “O velho cascudo ficará
contente por ganhar um par de francos.”
Contudo, o velho cascudo não ficou. “Os restos mortais da Mme. la
Marquise de la Roche Ferrant devem descansar no jazigo da família,” ele
declarou com orgulho e seriedade. E ao pensar nisso encerrado, por
que não? Viva e no castelo da família, ela pode ter sido uma fonte de
aborrecimentos. Mas quem ela poderia perturbar na tumba da família?
Barral de Montfort chegou ao asilo apenas uma semana mais tarde
para o asilo, em busca de Bertrand. Ele havia sido adiato por um
problema com seu olho. Quando ouviu que Bertrand havia acabado de
morre, amardiçoou seu destino. Havia prometido tanto essa vingança
para ele mesmo. “A morte,” ele exclamou amargamente, “rouba-me tanto o
meu amor quanto o meu ódio.”
Ele queria ver o túmulo. Como de costume, um ajudante o levou para o
cemitério e apontou-lhe o monte dele. Barral abaixou-se sobre o solo fresco
e, furioso por esse clímax de frustração, murmurou com violência, “Eu
gostaria de desenterrá-lo, seu cachorro, e cuspir na sua cara.”
Isso completa a elucidação no manuscrito de Galliez.
APÊNDICE
Nesse período, ou seja, 1875-1880, a questão da higiente municipal foi
muito importante. As grandes pesquisas em microbiologia, nas causas da
doença e na engenharia sanitaria exigiram que os municípios tomassem
mão ativa na melhoria das condições higiênicas dos centros populosos.
Entre outras questões, a eliminação dos mortos provocou muita
argumentação. A prática do enterro foi atacada como anti-higiênica, e os
defensores da cremação exigiram a ação do Estado para tornar a incineração
de cadáveres não só lícitas, mas necessárias. A prática há muito seguida, e
ainda hoje, de enterrar natimortos e embriões em latrinas, ou de descartá-los
de outra forma privada, foi proibida por lei em muitos lugares.
A história do governo municipal mostra que pouca atenção foi dada a
esses assuntos até o século XIX. Aparentemente, uma das primeiras tentativas
de mostrar a insalubridade dos enterros Intramuros nas grandes cidades foi a
dos Drs. Fernel e Houllier de Paris, que em 1554 expressou temores acerca do
do Cemitério dos Inocentes, um campo grande de sepulturas que, em 1186, foi
alocado para o enterro do parisiense falecido. Aqui, valas enormes foram
cavadas, e os caixões colocados solidamente lado a lado e um sobre o outro
até que quase dois mil estavam enterrados, ou melhor, expostos, pois
somente com a colocação do último caixão a vala seria coberta com solo.
Durante sua existência, esse cemitério, inchado pela adição de dois
milhões de corpos, aumentou dez metros acima do nível do território
circundante e, em alguns lugares, transbordaram pelas paredes. As covas
antigas eram frequentemente abertas, e os ossos jogados em grandes
montes. Posteriormente, parte dessa massa grande de relíquias humanas foi
colocada nas catacumbas de Paris, as quais eram jazidas verdadeiras de onde
pedras finas foram extraídas.
Para piorar a situação, esse grande Cemitério dos Inocentes foi Cercado
por uma sarjeta imensa, na qual os bairros aos redores da cidade estavam
acostumados a lanças o ordenamento das casas. Naqueles dias, as latrinas
geralmente tinham somente dois andares superiores, e quando foram limpas,
a matéria foi jogada no foço próximo ao cemitério, de onde era removida pela
ocasião.
Tal era a natureza mefítica do solo e do ar nesta região, que os cidadão
reclamaram que não podiam manter os pássaros em gaiola, os pobres animais
morriam logo na primeira semana que eram trazidos às casas do vizinhança.
Além disso, era impossível descer aos porões com uma vela, ou uma
lamparina; qualquer chama era extinta de imediato naquele hálito subterrâneo
nocivo. Os fabricantes de barris e outros trabalhadores, que trabalhavam nos
porões, muitas vezes, foram apreendidos com esses feitiços que chegavam
prestes a morrer e, com isso, essas regiões foram sendo abandonadas,
principalmente quando descobriram que o suor das paredes era venenoso e
causava furúnculos supurantes e mal cheirosos se entrasse em contato direto
com a pele.
Apesar disso, a cidade ficava lotada de pobres que não conseguiam
encontrar outro abrigo além deste cemitério horrível. Muitos cavavam o
subsolo em que praticamente viviam, cujo efeito geral pode-se imaginar.
Talvez, pior do que isso era o hábito de enterrar pessoas nas igrejas. O
espaço limitado e o desejo de ganho financeiro entre o clero fizeram com
que os corpos fossem retirados o mais rápido possível, mesmo antes da
decomposição complete, e ficavam em qualquer outro lugar na igreja, no
sótão, etc.
Em 1870, a obra de De Freycinet sobre saneamento municipal, junto
à necessidade de prover mais espaço para cemitérios em Paris, causou
discussões consideráveis sobre a questão do sepultamento higiên ico.
A recente Guerra Francoprussiana, também, precipitou a questão da
eliminação dos grandes números de mortos de modo sanitário.
Entre outros, Sr. Coupry fils, um arquiteto de Nantes, patenteou uma
construção do cemitério higiênico, o “système Coupry”, com o qual se
propôs a instalar em seu Cimetière de l'Avenir. 24 Um teste do método de
Coupry foi realizado numa parte do cemitério de Saint-Nazaire. Neste, vários
corpor foram enterrados segundo o dispositivo, o que facilitou a
circulação de ar por baixo dos caixões e drenou o solo das águas, e o
mesmo número de cadáveres foram enterrados o mais próximo
possível da porção de teste, autorizados a permanecerem por vários
anos no solo. Nesse Sistema, os gases deletérios que coletam pelos
tubos subterrâneos são levados a um forno e queimádos lá. Para
melhor operação, o Sistema Coupry exige o enterro em caixões
simples de madeira, sem o uso de substâncias antissépticas,
embalsamento, serragem impregnada ou carvão, uma vez que o
propósito do Sistema é a rápida desintegração do corpo ao esqueleto,

24
Cemitério do Futuro.
com o desaparecimento total de todas as partes de carne
corruptíveis.
Naturalmente, é conhecido que a Revolução Francesa começou a prática
de proibir o enterro da igreja pela legislação estadual do dia 23, do mês
pradial, do ano XII, e limitou a criação de cemitérios novos para além das
fronteiras da cidade. Proibiu o enterro de um caixão sobre outro e limitou o
sepultamento a cinco anos, exceto aqueles que desejavam pagar quantias
exorbitantes para enterros perpétuos. Além disso, a profundidade do enterro
foi estipulada para que gases nocivos não chegassem e contaminassem o ar
externo.
Desde então, a França, em particular, a Prefeitura do Sena tem se
interessado constantemente no aperfeiçoamento dos cemitérios, e logo
nomeou uma comissão para investigar o sistema Coupry. O relatório publicado
pelo Dr. P. Brouardel e Sr. du Mesnil contém um estudo completo25 desse
sistema.
Para efeitos do relatório deles, os membros mencionados acima da
comissão nomeada pela Prefeitura do Sena, Commission d'Assainissement
(Conselho da Saúde), exumaram dez corpos, cinco pelo método Coupry,
e cinco simples, dos quais eles submeteram a uma análise completa.
Assim:
Sieur C.... (Baptiste), 53 anos de idade.
Morte: 20 de março de 1876.
Enterro: 21 de março de 1876.
Exumado: 25 de maio de 1881.
Exumado de novo: 9 de junho de 1891
Duração da inumação: 5 anos. Em parte não tratada do cemitério.
Esse corpo (ver fotografia)25 está absolutamente intacto. Foi
transformado em gordura de cadáver. Mau cheiro.
A autópsia foi realizada pelo Professor Brouardel.
Todas as vísceras ficaram mais finas e estão achatadas contra o o
caminho do tórax e abdomen. Somente o coração ainda permanece volumoso
e perfeitamente reconhecível.
Todo o processo de decomposição parece estar interrompido. Pela
aparência, o corpo continuará neste estado indefinidamente.
Um único inseto da família Staphilinides: a Philonthus ebeninus é
encontrado no caixão. Compare isso com um corpo desenterrado de uma
seção tratada, onde estiveram por apenas um ano:
Sieur B... 66 anos de idade (ver fotografia).26
Morte: 21 de maio de 1880.
Enterro: 22 de maio de 1880.
Duração da inumação: 1 ano e 18 dias.
Causa: congestão cerebral.
O corpo não foi coberto. Nenhum odor espalhou-se pelo cadáver.
O esqueleto está quase totalmente livre das partes macias. A cabeça
está separada do corpo.
A destruição da carne e partes moles está completa.
Numerosos insetos são encontrados no caixão. Anthomysides, Ophria
25
Não reproduzido aqui. O leitor deve consultar o original.
26
Não reproduzido aqui. O leitor deve consultar o original.
cadaverina e lemostoma. Uma mosca, bastante viva, acabou de sair das
numerosas ninfas de Ophia.
Entretanto, o leitor deste livro dificilmente pode se interessas pelos
detalhes acima. A razão do autor para introduzir este relatório é citar uma
parte pequena dele que parece haver alguma relação com a nossa história.
Entre os corpos exumados havia um:
Sieur C... (Bertrand) (não ilustrado).
Morte: 9 de agosto de 1873.
Enterro: 10 de agosto 1873.
Exumado: 10 de junho de 1881.
Duração da inumação: 8 anos e 2 meses.
Causa: hemorragia cerebral.
O caso seguinte foi reportado ao conservateur do cemitério e
encaminhado por ele ao departamento de justiça criminal. Evidentemente, um
caso de roubo dos túmulos, ou uma brincadeira nefasta dos fossayeurs
(coveiros).
O corpo de Sieur C... não foi encontrado no caixão, em vez disso, o de
um cachorro, que apesar de oito anos enterrado ainda permanecia
parcialmente destruído.
As partes de carne e a pele peluda são encontradas misturadas a uma
massa gordurosa de composição indistinguível (adipocere) Um cheiro
nauseante espalha-se do corpo.
Sem insetos.

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