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São Paulo
Novembro de 2010
RAFAEL GALVÃO DE ALMEIDA
São Paulo
Novembro de 2010
2
RESUMO
É falado sobre a importância de Friedrich Hayek, já que ele tem o modelo mais conhecido de
ordem espontânea, como ele começou a elaborá-lo a partir da sua pesquisa sobre o papel da
Karl Polanyi. Ele divergia de Hayek sobre o papel do mercado na sociedade, ao afirmar que a
sociedade se protege da invasão do mercado nas demais esferas sociais através do processo de
duplo movimento. Por fim, conclui-se que a ordem espontânea existe, que o duplo
movimento, porque inicia-se com indivíduos antes de tomar forma legislativa, tem as
3
ABSTRACT
This work is dedicated to introduce the concept of spontaneous order, its development
through many schools of economic thought and its importance to today’s society. It is talked
about the importance of Friedrich Hayek, since he has the most known model of spontaneous
order, how he started to elaborate from his research about the role of the information on the
economy and his maturation in Law, Legislation and Liberty. As a counterpoint to the
hayekian model, it is included criticism to the concept and the work of Karl Polanyi is
analyzed. He diverged from Hayek about the role of the market in the society, when he
affirmed that society protects itself from the invasion of the market in the other social spheres,
through the process of double movement. Lastly, it is concluded that there is spontaneous
order, that double movement, because it is started with the individuals before taking
Keywords: spontaneous order, double movement, Friedrich Hayek, Karl Polanyi, tacit
4
ÍNDICE
5
DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E TEÓRICO
1. Introdução
O que têm em comum um movimento de preços numa feira de tomates de mesma qualidade,
um grupo de skatistas que usam uma área para andar de skate e não trombam entre si
frequentemente (KLEIN, 2006), regras sobre como pegar lenha após uma tempestade em um
vilarejo costeiro da Inglaterra (SUGDEN, 1989) e uma vizinhança segregada com moradores
indivíduos que estavam pensando em si mesmo e assim eles puderam criar uma organização
adequada para seus fins entre si. Essa é a definição mais concisa de ordem espontânea, a
poder superior, comumente identificado como o governo, mas sim através de interações
individuais. A mais famosa metáfora é a de Adam Smith, em que se referindo aos resultados
industriais explica que “é só levado a um fim que não era parte de sua intenção” (SMITH,
2003, p. 203). O termo “ordem espontânea” foi primeiramente usado pelo economista
2. Definição do termo
1
Está implícito que todas as traduções foram feitas pelo autor.
6
Uma das características da teoria da ordem espontânea é que não há teoria sistematizada da
ordem espontânea. Os autores, tanto defensores quanto críticos, falam sobre “conceito”,
“idéia”, “doutrina” da ordem espontânea, mas nenhum deles utiliza a palavra “teoria”. O
único elemento que é consenso para todos os estudiosos do tema é que deve ser incorporado o
Para Barry (1982), uma teoria da ordem espontânea precisa englobar individualismo
metodológico, racionalismo construído por um processo natural e lei natural, embora não no
economia2.
Enquanto isso, Mulligan (2004)3 organiza fatos estilizados que caracterizam ordem
espontânea, nas ciências sociais (ou na sociedade) entre eles, a) referência proeminente aos
aos indivíduos escolher livremente de acordo com suas preferências; d) foco no planejamento
individual dos processos, não do resultado; e) algum nível de incerteza para deixar que o
resultado final seja determinado pelos participantes; f) e um tipo de seleção natural entre as
instituições.
conhecimento tácito, conceito elaborado por Michael Polanyi (2009), irmão de Karl Polanyi.
Neste trabalho, ele inicia com uma discussão sobre o papel do Estado no progresso científico,
2
Hayek faz uma distinção eloquente entre esses dois em seu ensaio Individualism: True and False em seu livro
Individualism and Economic Order.
3
Mulligan cita sete características em seu artigo, mas considerei que a primeira e a sexta característica eram
praticamente idênticas.
7
narrando como, devido às doutrinas de Lysenko, a pesquisa científica na União Soviética
ficou extremamente prejudicada; não houve nenhum progresso a não ser na área relativa à
indústria bélica e nuclear (que, a propósito, não estavam sob o efeito das doutrinas
lysenkoistas). Isso ocorreu porque a busca pelo progresso científico deixou de ser um fim em
si mesmo. Isso, para ele, prejudica o desenvolvimento científico porque pressupõe que um
corpo de governo como o Estado consegue ter domínio sobre a direção do progresso
científico. Não pode ocorrer isso, porque, para Polanyi, o conhecimento adquirido através de
vias não-técnicas, como experiência e até intuição, é tão importante quanto o teórico, ou
explícito, como ele próprio coloca: “uma teoria matemática só pode ser construída se for
precedida de elementos que contenham conhecimento tácito” (POLANYI, 2009, p. 21), como
renovar e desenvolver o conhecimento científico, em que os cientistas vigiam uns aos outros
(princípio do controle mútuo), sem precisar de uma autoridade central, embora ela esteja
presente quando for útil; o ponto principal é que, com a presença do conhecimento tácito, os
3. O conceito na história
A noção de ordem espontânea pode ser traçada até alguns filósofos da antiguidade4. Boehm
(1994) afirma que há indícios de idéias semelhantes em Aristóteles e Tomás de Aquino. Mas
os primeiros esboços de uma teoria de ordem espontânea surgiram na Espanha do século XVI.
4
O antigo economista Monchretién amaldiçoou Platão e Aristóteles por acreditarem que certas coisas podiam ser
organizadas sem planejamento.
8
3.1. Escola de Salamanca
XVI e XVII foi conhecida por suas análises econômicas da época. A escola escolástica estava
alinhada com o pensamento comercial nascente da época. Como era o período de transição
suas práticas. Nos países protestantes, a própria Reforma já provia uma legitimação ao elevar
Espírito do Capitalismo, de Weber). Nos países católicos, o comerciante ainda era visto como
um profissional inferior, assim como foi durante todo o período medieval, mas a Escola de
A Escola de Salamanca nunca sistematizou suas idéias, mas seus escritos demonstravam
entendimento avançado dos processos econômicos, como na teoria do valor5, quando eles
verificaram que o influxo de metais preciosos das colônias espanholas aumentava o nível de
português Luis de Molina, apenas “faziam com que público ficasse pior” (apud BARRY,
Outro aspecto importante para se entender porque o escolasticismo de Salamanca pode ser
5
Para Diego de Covarrabias, “o valor de um artigo não depende de seu valor natural, mas da estimação dos
homens, mesmo que seja falha” (apud BARRY, 1982).
9
salientado por Hayek. Eles eram antimonopolistas porque acreditavam que o monopólio do
Durante o século XVIII, houve dois eventos muito importantes para a tradição da ordem
o sistema legal da Grã-Bretanha, que baseia a jurisprudência nos costumes e regras de bolso,
graças aos esforços do jurista sir Matthew Hale. Hoje em dia, há vários estudos sugerem que a
O segundo foi a revolução científica, pela qual vários progressos científicos permitiram uma
maior compreensão do mundo e entre eles se destaca a física newtoniana. Uma característica
importante do modelo newtoniano é que permitia dar uma explicação racional da natureza
10
Em 1705, o médico holandês radicado na Inglaterra Bernard de Mandeville chocou a opinião
pública com seu poema The Grumbling Hive6. A polêmica reside no fato de que Mandeville
nos conta a história de uma colméia na qual suas habitante aladas eram interesseiras,
invejosas, egoístas, verdadeiras patifes, mas que os vícios naturais de cada uma contribuíam
Muitas interpretações já foram feitas sobre esta obra. Barry (1982) reconhece que é difícil
encaixar Mandeville em um grupo de pensadores. Como a obra dele tem uma natureza
satírica, ele não tinha muita preocupação em ser cientificamente claro. É possível deduzir que
Mandeville desafiou a noção de que boas leis fazem bons cidadãos, que data desde
Aristóteles7, ao propor que “a noção moderna de que regras certas de governança podem fazer
com que motivos egoístas possam promover bem-estar geral” (BOWLES, 2003, p. 475),
Basicamente ele acreditava numa sociedade mista em que o governo poderia fazer com que o
egoísmo humano inato trabalhasse a favor da sociedade, porém considerava que “o indivíduo
moral. Para ele existe um mecanismo automático do sistema econômico que conduz ao bem
público e, quando ele não pudesse ser demonstrado, em outras palavras, falhava, o mecanismo
6
Comumente mal-traduzido como A Fábula das Abelhas, que é o título do livro posterior dele, sobre o mesmo
assinto. A tradução literal seria A Colméia Barulhenta.
7
Aliás, o primeiro a desafiar esse conceito foi Maquiavel, em sua obra-prima O Príncipe.
8
Ele mesmo considerava a moralidade algo “desenvolvido por políticos habilidosos para fazer com que os
homens fossem úteis e tratáveis uns com os outros” (apud BARRY, 1982).
11
a ordem social sob a forma de regras morais, cada uma definindo sua
conduta indiretamente, ao se referir à sociedade como um todo. No sistema
econômico, pelo contrário, cada sujeito define sua conduta apenas relativa a
seu próprio interesse, e assim a sociedade não é nada mais que o mecanismo
– ou a Mão Invisível – pelo qual os interesses se harmonizam. Este
mecanismo estava implícito no início e que, uma vez descoberto, como por
Mandeville, justifica condutas egoístas e não sociais de todos. (idem, P. 75).
Portanto, pode-se concluir que no sistema econômico, Mandeville acreditava numa ordem
espontânea, porém de nada valeria se não tivesse instituições morais fortes, e, para ele, essas
(embora ainda não seja exatamente o individualismo metodológico), e tem seus principais
expoentes David Hume, Adam Ferguson e Adam Smith. A sociedade seria explicada em
interferência de um planejador.
David Hume, um dos mais abrangentes filósofos do Iluminismo escocês, era também um
cético, principalmente em relação à razão humana. Ele não acreditava muito na idéia de que
regras poderiam ser criadas e impostas para melhoria da sociedade e acreditava que isso só
ocorreria se as regras que servem ao interesse das pessoas fossem observadas e estudadas.
Porém essas regras surgiriam espontaneamente, no sentido de Hayek, em suas palavras, “auto-
12
Outro expoente importante é Adam Ferguson, considerado o pai da sociologia moderna. Em
sua obra An Essay on Civil Society, ele defende que a sociedade comercial surgiria
descrição está na segunda seção do terceiro livro, chamada The history of political
stabilishments, e se encaixa muito bem com as definições modernas de ordem espontânea. Ele
busca descrever como a sociedade evolução, desde o estágio da barbárie até a sociedade
comercial, mas, diferente de Hobbes, não há contrato social, apenas através do intercâmbio e
combinação de seus interesses. Como ele mesmo falou, “nenhuma constituição é formada por
Ainda assim, Ferguson era cético em relação ao resultado social decorrente; ele acreditava
que a sociedade comercial poderia alienar o homem dos valores éticos, como espírito público
e cavalheirismo, enfim, que o auto-interesse não conseguiria sozinho segurar uma sociedade.
Adam Smith é outro grande pensador que, se fossem empilhados todos os livros e artigos que
tentam interpretar sua obra, daria para se ter um prédio de uns 10 metros. Sendo partidário do
iluminismo escocês, ele demonstra sua sabedoria em duas obras: Teoria dos Sentimentos
Morais e A Riqueza das Nações, e o ponto que une ambas é a análise das paixões humanas e
como isso explica a sociedade. A ordem é criada, independente da vontade dos estadistas ou
13
mercantes, mas só poderia se tornar uma ordem boa se o Estado pudesse calibrá-la. Camargos
Portanto, Adam Smith, diferente de Hobbes e Mandeville, e também de Hayek, acreditava que
a intervenção estatal deve vir após a criação por ordem espontânea, não antes.
de lado durante quase todo o século XIX. O utilitarismo, como colocado por Jeremy Bentham,
e os dois Mill pregava que o objetivo do governo era aumentar o bem-estar da sociedade
Bastiat e Herbent Spencer, mas, no final do século XIX, surgiu a Escola Austríaca, de Carl
Carl Menger, em sua obra Problems in Sociology and Economics, contrariando o pensamento
corrente, dizia que “o comportamento [dos agregados sociais] é explicável apenas em termos
14
individualistas... Língua, religião, lei, até mesmo o Estado [...] não se pode falar que houve
ação proposital da comunidade para estabelecer essas coisas” (apud BARRY, 1982)9.
O foco de toda a escola austríaca está no indivíduo. “Apenas o indivíduo é real; a sociedade é
o efeito líquido de ações individuais” (CLARK, 1993), e é, portanto o indivíduo que melhor
pode escolher o resultado social, ou seja, se cada indivíduo agir em seu próprio proveito, o
resultado social será benéfico. Assim ele não deve sofrer interferência em suas ações, por isso
os austríacos vêem o governo com tantas suspeitas. Para eles, o governo jamais deve interferir
verdade, uma vertente de pensadores ainda mais radicais se separou da escola austríaca e
Assim, sendo influenciado pela escola austríaca, Hayek pôde criar um sistema no qual o
diametralmente oposto ao de pensadores como Karl Polanyi, mas por enquanto apenas vou
citar o fato; o desenvolvimento do argumento dos dois autores estará nas próximas seções. Por
fim, será discutida a importância do conceito de ordem espontânea para a teoria dos jogos.
Desde os jogos mais simples até os mais complexos que são utilizados para modelagem
9
Um ponto a favor de se considerar a linguagem como surgida de um processo espontâneo é o fracasso de uma
língua construída, como o esperanto, de se difundir.
10
Embora existisse no começo os jogos com um jogador, em que este “jogava” contra a natureza, não são mais
ensinados aos graduandos.
15
resultado que não tem interferência externa. Um exemplo básico é o jogo do dilema dos
prisioneiros. O resultado é que se os dois prisioneiros cooperam, eles ficariam melhor, mas
como o incentivo à não cooperar é muito grande, suas situações finais acabam sendo de fato
piores. Não se tem objetivo nesse jogo, apenas o resultado11. Um dos formalizadores da teoria
diretoria do instituto que o último ajudou a fundar e, apesar de nunca se referir como
economista da escola austríaca, é considerado por várias vertentes desta escola como um
inovador da área. Schotter escreveu que “em termos econômicos [a teoria de Von Neumann-
Morgensten] deve ser apreciada como um marco na evolução da Escola Austríaca” (apud
FOSS, 1999).
Como a interação social dos indivíduos nesses jogos não tem objetivo definido, isto é
extremamente útil para se fazer simulações. Uma simulação não tem um objetivo definido,
apenas testa o que acontece se uma variável de um modelo for modificada. Os modelos
econômicos de agentes computacionais fazem exatamente isso. Vriend relata que Hayek dizia
que “para entender um rato e porque ele faz o que faz, devemos nos tornar como um rato”
(VRIEND, 2002), e num modelo computacional pode-se simular o que um rato teórico faria12,
11
Jogos com objetivo seriam os leilões, por exemplo, que obrigatoriamente necessitariam de um desenhista.
12
Vriend também realça que os modelos são abstrações da realidade, não uma replicação dela.
16
HAYEK E A ORDEM ESPONTÂNEA
Friedrich Hayek foi sem dúvida o maior propagador do conceito de ordem espontânea. Mas,
para entender como se originou, é necessário pesquisar sua biografia, entender o que ele tinha
Friedrich Augustus von Hayek nasceu em 1899, numa família de intelectuais. Seu pai era
botânico e professor na Universidade de Viena e era primo em segundo grau de Ludwig von
doutorou-se em Direito e em 1923, em Ciência Política. Nesse período, ele entrou em contato
com as idéias de Ludwig von Mises, que rejeitava o socialismo como alternativa para reduzir
e reverter a pobreza austríaca do pós-guerra (um dos motivos primários que levou Hayek a
estudar Economia).
Ciclos de Comércio), que mais tarde serviu para propagar a teoria austríaca dos ciclos de
17
comércio. Em 1931, ele assumiu uma cadeira na London School of Economics, instituição na
qual ficaria quase duas décadas. Estando nessa escola, ele entrou em controvérsia com Keynes
Após a publicação da Teoria Geral de J. M. Keynes (1936), Hayek ficou fora de cena por
alguns anos, período no qual publicou sua Pure Theory of Capital (1941), que procurava dar
aparecer para o público em geral quando foi publicado O Caminho para a Servidão, em 1944.
Neste livro, Hayek defendia o mercado livre e procurava dar um embasamento econômico à
guerra contra o fascismo. Foi também durante esse período que ele compilou o livro
Individualism and Economic Order (1948), que organizava as primeiras idéias do conceito de
ordem espontânea.
Em 1950, ele se mudou para a Universidade de Chicago, e permaneceu lá até 1962, quando se
mudou novamente, desta vez para a Universidade de Freiburg. Durante esse período, até
1974, ele ficou relativamente esquecido. Nesse período, ele desenvolveu trabalhos em
psicologia, no qual ele explorou transversalidades entre esta ciência, economia e direito, como
qual ele desenvolve estudos em complexidade e ordem espontânea. Também, em 1973, ele
começa a escrever a sua magna-opus Law, Legislation and Liberty, que seria completado em
18
Como já foi dito, Hayek era apenas um intelectual não muito badalado, especialmente entre os
economistas, cuja atenção nesses anos estava voltada aos teóricos macroeconômicos da época,
walrasiana, como Arrow, Debreu ou Hahn. Isso mudou quando Hayek recebeu o prêmio
Nobel de Economia em 1974, dividido juntamente com Gunnar Myrdal, “pelo trabalho
denominou A Pretensão do Conhecimento, no qual ele alerta para a atitude “cientista” (que
contribuindo mais do que deveriam para a crise da década de 1970. Hayek reafirmou sua
teoria de que os preços representam essencialmente informação, e que esta é escassa, e que a
economia clássica trabalha com variáveis em que é difícil ou até impossível obter informação
precisa. Ele também afirma que a economia é uma ciência em que se deve considerar
propriedades dos elementos individuais de que elas são compostas, e da frequência relativa
com que eles ocorrem, mas também na maneira que os elementos estão conectados” (Hayek,
1974). E, Hayek declara, esses fenômenos são impossíveis de serem totalmente computados
13
http://nobelprize.org/nobel_prizes/economics/laureates/1974/index.html ; o interessante é que Myrdal era um
dos mais conhecidos teóricos social-democratas, ficando indignado com o fato de ter que dividir o prêmio com
alguém com visões tão opostas à dele, tanto é que ele só fez sua palestra sete meses depois de Hayek. Isso
também originou a observação irônica de que a economia é a única ciência que dá um Nobel para duas pessoas
que falam coisas opostamente diferentes (a redundância é intencional).
14
Atualmente, com os avanços na física quântica, muitos físicos passaram a contestar a solidez da física como
ciência exata.
19
Para entender como Hayek deu origem ao conceito de ordem espontânea, é necessário discutir
sobre uma controvérsia que se deu durante a década de 1930: o debate do cálculo econômico
O debate começou um pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial, mas tomou força
quando Ludwig von Mises publicou em 1920 um artigo em que afirmava categoricamente que
é impossível uma economia planejada funcionar eficientemente. Caldwell (2003) afirma que o
teórico que Mises tinha em mente era Otto Neurath, que afirmava que o planejamento
econômicos dos tempos de guerra poderia ser levado adiante em tempos de paz, através de um
sistema de “contas nacionais” (não relacionado com o termo atual) que faria com que
que o dinheiro seria dispensável e uma economia poderia funcionar sem moeda. Como Mises
era um teórico monetário, e um dos fundamentos da Escola Austríaca é que a moeda emergiu
uma economia sem moeda também não teve boa acolhida entre outros socialistas).
Contrariamente, Mises afirma que “quando não há um mercado livre, não há mecanismo de
preço; sem um mecanismo de preço, não há cálculo econômico” (MISES, 1920), ou seja,
apenas num mercado que não fosse controlado por um poder como o Estado é que os agentes
poderiam livremente estabelecer preços, fazer transações e alcançar estabilidade, algo que um
Hayek, quando entrou para a universidade, era um socialista fabiano mas, após conhecer
sobre teoria do capital e ciclos econômicos contra Keynes e Sraffa, o qual não obteve bons
20
Critical studies on the possibilities of socialism, um livro que procurava refutar o
O argumento dos socialistas da época era que o governo socialista podia emular as qualidades
que eles consideravam positivas do mercado através do poder do governo voltado para a
preços ótimos em qualquer economia, tanto socialista quanto capitalista. O problema, então,
economista socialista pioneiro foi Oskar Lange. Em seu livro On the economic theory of
socialism, ele argumentava que se preços fossem entendidos como custos de oportunidade,
isto é, “termos no qual alternativas são fornecidas”, a fixação de preços seria apenas uma
peculiaridade do sistema capitalista. Então, numa economia socialista, os preços seriam dados
por um certo “comitê de planejamento central”. Com isso, as firmas não existiriam para
maximizar lucros, mas para fornecer bens à sociedade seguindo o critério “a cada um segundo
sua necessidade”, e o mecanismo de entrada e saída de firmas seria emulado por meio de
15
Ele se tornou posteriormente um dos pais da econometria. Para uma defesa do ponto de vista marxista, ver
COTTRELL & COCKSHOTT (1993).
21
uma economia”. Uma tentativa de levar a cabo essa idéia foi o projeto Cybersyn, que foi
Em sua resposta, Hayek17 colocou a dificuldade de se obter a informação necessária para tal
completo da economia para criar artificialmente um sistema socialista de preços justo para a
nação. Em seus dois artigos, Economics and Knowledge (1937) e The Use of Knowledge in
Society (1945) ele argumenta que nenhum planejador central tem informação suficiente para
dada”, que é um conceito relevante para modelos teóricos, mas não se aplica à realidade.
Então, Hayek começou a desenvolver uma teoria com ausência de um equilíbrio geral na
Sua mais conhecida investida contra o pensamento socialista foi o livro O Caminho da
Servidão (1944). A tese principal do livro é que se a sociedade entregar o controle dos meios
ideologia estatista teria que passar por cima do indivíduo para realizar suas políticas. Para ele,
a liberdade individual é inviolável18, porque só através dela uma sociedade com um mercado
16
Para mais informações, ver MEDINA (2006).
17
Ele também colocou o problema de incentivos, abrindo caminho para a pesquisa da teoria da escolha pública,
que não é o foco do presente trabalho.
18
Para ele, uma das funções necessárias do Estado é garantir a liberdade individual, ao, por exemplo, impedir
energicamente a formação de monopólios (diferente do que vários economistas austríacos argumentam, Hayek
admitia a possibilidade de monopólios, talvez seja por isso que ele afirmou que “nada tenha sido mais prejudicial
22
competitivo pode florescer. Embora neste livro ele não tenha tocado muito na questão do
conhecimento, seus pressupostos estão implícitos, como quando fala que a concorrência é um
O saldo do debate foi que Lange provou que uma economia socialista planificada poderia
funcionar teoricamente, tanto é que posteriormente, em 1967, ele escreveu que simplesmente
em alguns segundos” (LANGE, 1967, p. 158). Porém, pode parecer fácil falar, mas a crítica
de Hayek ainda é relevante na era da economia digital. Medina (2006), ao comentar sobre o
fracasso do projeto Cybersyn, fala que “[o] Trabalho, não se comportou como um fator de
reagir em resposta a choques imprevistos, ainda seria melhor do que uma economia planejada.
E então, como o mercado é uma ordem que não necessita de um planejador, seria capaz de se
auto-regular, com isso lançando com isso as bases do conceito de ordem espontânea, que ele
3. O papel do indivíduo
Na visão econômica de Hayek, o indíviduo tem um papel importante, como se fosse um tijolo
acreditava que o Homo oeconomicus deveria ser adotado como base de análise teórica, por ser
irreal e levar ao conceito de competição perfeita que, na opinião dele, empobrecia a análise
à causa liberal... do que o laissez-faire” (HAYEK, 1990, p. 39). Caldwell (2003) sugere que Hayek não aprovaria
eventos como a mal-fadada privatização russa pós-soviética.
23
econômica ao induzir a um entendimento falho de competição. Para Hayek o indivíduo não é
perfeitamente racional, não tem informação incompleta, mesmo que persiga seus próprios
interesses não precisa ser sempre considerado egoísta, seus gostos e preferências não são
289, 290). Apenas duas proposições pertencentes ao conceito de Homo oeconomicus são
mantidas: a idéia a origem dos gostos e preferências não é importante, pelo menos para a
maior parte da análise econômica, e a visão de que no indivíduo é onde começa a análise
social.
Caldwell também argumenta que Hayek não era muito focado no individualismo, preferindo a
análise social de agregados por meio do processo evolucionário de ordem espontânea; nessa
perspectiva “os indivíduos estão lá, mas eles são mantidos implicitamente” (ibid.). Hayek
escreveu poucos textos que falavam diretamente sobre o individualismo19, mas a preocupação
Em seu artigo Individualism: True and False, ele argumenta que o termo “individualismo” é
termo tão abusado e pouco entendido com os ideais em que acredito” (HAYEK, 1980, p. 3).
Neste artigo ele também afirma que a primeira coisa a ser dita sobre o verdadeiro
individualismo é que é “uma teoria da sociedade, uma tentativa de enterender as forças que
determinam a vida social do homem” (ibid., p. 6, grifo no original). Ele utiliza esse argumento
para refutar o que considera um conceito errôneo de individualismo, o que postula que os
indivíduos devem ser considerados como unidades isoladas, sendo autossuficientes. Essa
noção de individualismo possibilita entender o indivíduo como um agente que interage com
19
Caldwell diz que ele só cita o termo “individualismo metodológico” apenas uma vez em toda a sua obra.
24
todos a sua volta e essa interação é o que possibilita a formação de um sistema complexo
Hayek. Galeotti (1985, p. 178) escreve que “A teoria social de Hayek afirma que o indivíduo
isolado, sem regras e elos que agem como ligações com o contexto e o ambiente, perderia sua
significância.”
Aliás, a importância do indivíduo se verifica porque, para Hayek e para a Escola Austríaca em
geral, o equílibrio ocorre no nível individual, só tem um significado claro quando “aplicado às
representante Austríaco, escreveu que “a noção de equilíbrio geral deve ser abandonada, mas
ação racional” (apud CLARK, 1994). As ações de um indivíduo devem estar em equilíbrio
com as de outro, porque só assim as transações podem ocorrer e a ordem social se realizar.
conhecimento relevante e informações fazem com que ocorram mudanças na ordem social,
4. Liberdade e informação
Como a quantidade de conhecimento relevante é diferente para cada indivíduo, Hayek conclui
que,
20
Como discutiu-se na apresentação dos modelos de jogos evolucionários e computacionais, no primeiro
capítulo.
25
...praticamente todo indivíduo tem alguma vantagem sobre todos os outros porque
ele possui uma [quantidade] de informação única à qual pode dar um bom uso, mas
cujo uso pode ser feito apenas se as decisões a esse respeito são deixadas para ele ou
se são feitas com sua cooperação ativa (HAYEK, 1948, p. 80).
Ribeiro (2002) analisou a obra de Hayek sobre a ótica da teoria da informação21 e concluiu
linguagem. Como há um feedback negativo, quando o indivíduo não tem suas expectativas
liberdade, existindo um trade off entre lucratividade e nível de certeza, ou seja, quanto maior
acreditava que a liberdade suprida pelo mercado faria com que os custos decorrentes da
representa a tentativa de Hayek de criar diretrizes para uma sociedade baseada no liberalismo.
A importância dessa obra para o presente trabalho é que nela há uma definição mais
amadurecida de ordem espontânea e sua aplicação para aquilo que Hayek tinha em mente
21
Devido aos seus estudos sobre conhecimento e informação durante o período de debates das décadas de 1930 e
40, Hayek, como já demonstrado, desenvolveu trabalhos precursores da teoria da informação.
22
Nas palavras citadas pelo autor, “o mapa não é o território”, ou seja, teria que haver uma mudança muito
grande no “mapa”, isto é, a reação do indivíduo frente a mudanças no “território”, isto é, condições econômicas.
26
Para Hayek, existem duas maneiras de considerar as estruturas das atividades humanas: o
como sendo imprópria para a análise social. O racionalismo construtivista23 teria sua origem
no pensamento de Descartes, mas sua origem pode ser traçada até a filosofia grega antiga24.
Para Descartes “a razão se definia como dedução e lógica a partir de premissas explícitas,
ação racional veio também a significar apenas aquela ação inteiramente determinada pela
ação conhecida e demonstrável” (HAYEK, 1985, p. 4). Com isso, podemos inferir que uma
ser superior. A ação racional e intencional do ser humano poderia criar instituições melhores e
substituir as antigas que, derivadas de costumes e tradições, seriam deixadas de lado se não
pudessem ser incluídas, pois elas também seriam derivadas de um planejamento antigo e que
É exatamente por isso que Hayek rejeita esse modo de pensar, explicando que muitas
instituições da sociedade resultavam, na verdade, “de costumes, hábitos ou práticas” (p. 5).
Devido ao fato de que a sociedade é regida por fenômenos complexos, é impossível ter
Para fazer uma explicação melhor sobre o desenvolvimento das instituições, ele recorre à
23
Termo criado por Hayek e usado como umbrella term apenas, pelo que parece, pelos seus seguidores.
24
Principalmente Aristóteles, que pregava a superioridade da razão sobre os sentidos (ver RIBEIRO, 2002).
25
Lembrando que Descartes também era matemático e é creditado por ter elaborado o plano cartesiano e a
geometria analítica. Levar para a política os seus avanços na área matemática seria meramente um passo lógico
de sua filosofia.
26
Como foi discutido anteriormente.
27
Ou, como diria Caldwell, lamarckiana, embora Hayek tenha se referido à darwiniana.
27
ambientais únicas e complexas e seria impossível prever a direção da linha evolucionária28,
ele fez uma adaptação para explicar a cultura e instituições. Na sociedade, as condições são
dadas pelo ambiente e pelo desenvolvimento das normas e são transmitidas de indivíduo para
utilidade que gera ao grupo. As normas que regem a sociedade podem ou não ser verdadeiras
Com isso Hayek conclui que há uma falsa dicotomia entre “artificial” e “natural” existente
desde os filósofos gregos29. Porém, essa dicotomia é falsa no sentido em que existe uma
terceira categoria de fenômenos que, utilizando as palavras de Adam Ferguson, “são resultado
de ação humana, mas não de intenção humana” (ibid. p. 17; original30, FERGUSON, p. 222).
Para Hayek, pode se dividir o conceito de ordem em dois tipos, emprestando os termos
gregos: taxis, para designar ordenamento planejado, chamado por nós de “organização”, e
com que os soldados ajam independemente um do outro sem sofrerem grandes baixas. Por
outro lado, a ordem espontânea é o foco de Hayek. A importância do conceito reside no fato
de que, como já foi explicado ao longo do trabalho, a ordem é obtida através da interação
individual de milhares de indivíduos, sem que isso crie uma situação de anarquia.
28
Hayek provavelmente consideraria projetos como a série Futuro Selvagem não muito diferentes da astrologia.
29
Os termos gregos eram physis e thesis (ou nomó), que significavam, respectivamente, “por natureza” e “por
convenção”.
30
Na verdade, Ferguson atribui essa frase ao cardel Jean Gondi de Retz (1612-1679).
28
“Não há dúvida de que para muitas tarefas limitadas a organização é o método mais
poderoso de coordenação eficaz, porque nos permite adaptar muito mais plenamente
a ordem resultante aos nossos desejos, enquanto nas ocasiões em que, dada a
complexidade das circunstâncias a serem consideradas, temos de confiar nas forças
que propiciam uma ordem espontânea, [pois] nosso poder sobre o conteúdo
específico dessa ordem é necessariamente limitado” (ibid. p. 48).
Porém, para Hayek, as organizações estão integradas numa ordem espontânea maior e mais
complexa que forma a sociedade e é essa complexidade, Hayek argumenta, que faz com que o
29
A INTERVENÇÃO HUMANA NA ORDEM ATUAL
Falamos até aqui sobre a ordem espontânea, que, para seus defensores, emerge naturalmente.
Sendo essa uma afirmativa ampla e que envolve vários aspectos da vida, ela não pode ser um
consenso. O que se exporá nesse capítulo será o contraponto a essa perspectiva: a visão de que
próprio homem31. Desde que Adam Smith enunciou seu princípio da mão invisível, sempre
houve críticos a esse conceito. Malthus, em seu livro Principles of Political Economy,
escreveu que é impossível para um governo deixar estritamente que as coisas tomem seu
curso natural. Além disso, ele também argumentava que a existência de eventos de excesso de
Marx (1996) afirma que, para que o processo de acumulação primitiva consiga se efetivar e
nascente precisa e emprega a força do Estado para ‘regular’ o salário, isto é, para comprimi-
trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência” (MARX, 1996, p.
359). Portanto, à medida que o governo vai sendo cada vez dominado pela burguesia, mais as
31
Embora nesse capítulo não seja analisado o planejamento econômico “racionalista construtivista”.
30
leis vão moldando a sociedade à imagem capitalista, na qual “a situação do trabalhador,
qualquer que seja seu pagamento, alto ou baixo, tem de piorar” (idem, p. 275). Nessa visão, o
mercado não é criado por meio de um processo de ordem espontânea, mas impera a imposição
argumenta que, de forma um tanto hostil, o conceito de ordem espontânea não passa de “um
mecanismo de conto de fadas” (p. 41)32. “Todo mercado é uma construção social, e mudanças
nos parâmetros que o constroem – novos arranjos institucionais – também são criações
humanas” (p. 33). Para ele, de maneira semelhante à defendida por Hayek, a ação coletiva
geral. Porém, a ação coletiva só pode florescer sob um regime legal, com participação ativa
deve interfirir, criando instituições para lidar com elas34. Por isso, “as instituições constituem
uma ordem construída” (p. 41). Também “costumes evoluem para leis quando há razões
suficientes para essa evolução” (p. 48). Diferente do que é comumente argumentado, Bromley
sugere que as instituições não servem apenas para limitar a ação humana, mas também servem
para expandi-la, criando um novo campo de ação humana, em outras palavras, elas podem
32
Tanto é que o autor não pára para analisar o conceito e suas implicações, trata-o como algo, de certa forma,
não importante para o pensamento econômico, apenas um erro, na melhor das hipóteses.
33
O que também pode ser inferido do pensamento de Hayek.
34
Porém, Bowles (2002) construiu um modelo que indica que os direitos de propriedade podem ter surgido
espontaneamente, sem interferência de um governo.
31
Em uma linha de argumentação parecida, Sandefur (2009a) conclui que não há como
observador. Ele dá um exemplo: uma escola tem que construir caminhos num gramado para
caminhos de acordo com o que achar melhor, mas um arquiteto confiante nos princípios de
Hayek esperaria um ano para observar onde a grama estaria mais pisoteada pelo ir e vir
espontâneo dos alunos para só então despejar o concreto. O problema é que o arquiteto tem
que despejar o concreto algum dia e, no momento em que ele fizer isso, ele poderá ser
Para Sandefur, o grande problema da ordem espontânea é que, apesar de ser um excelente
conceito descritivo, não tem poder normativo algum e não há como condenar a coerção,
porque a coerção pode estar presente em arranjos ditos espontâneos. “A razão pela qual
planejamento centralizado e coerção governamental são errados não é porque eles perturbam
a ordem espontânea e sim porque a liberdade é um bem, um bem para o qual todos têm o
filho de pais húngaros, também intelectuais nobres. Seus irmãos também foram intelectuais,
sendo que o mais conhecido foi Michael Polanyi, citado anteriormente. Em 1909, forma-se
Durante a primeira guerra mundial entra no exército austro-húngaro como oficial. Depois da
35
Curiosamente, as visões ideológicas desses três autores, Marx, Bromley e Sandefur, são bem diferentes. O
primeiro escreve com base na economia política socialista, o segundo com base no institucionalismo antigo e o
terceiro no conservadorismo clássico americano.
32
guerra, envolve-se em debates econômicos, como jornalista e economista. Com a ascensão do
fascismo em seu país, muda-se para a Inglaterra, e lá, durante a década de 1940, começa a
escrever A Grande Transformação. Diferente de Hayek, que tem uma obra muito mais difusa,
a popularidade de Polanyi se concentra nessa única obra, embora ele tenha escrito mais livros
Para Polanyi, uma economia de mercado “é uma economia dirigida pelos preços do mercado e
nada além dos preços do mercado” (POLANYI, p. 62). Porém, ele argumenta que nenhuma
sociedade teve sua economia controlada pelo mercado até a Revolução Industrial. A economia
era parte da sociedade, por isso não haveria propensão a buscar exclusiva e principalmente
lucros, mas haveria também uma preocupação social com a situação de todos os membros;
dentro dessa perspectiva, não seria correto falar em uma propensão natural à barganha, tal
como sugerira Adam Smith. A troca entre as sociedades teria começado através
principalmente da guerra e da pirataria, mas teria evoluído para o mercado, uma forma de
adquirir bens mais pacífica em vários casos. Polanyi enfatiza que os mercados existem desde
as economias primitivas, porém seu papel estava controlado pela sociedade. Mas
“em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, as relações sociais estão
O mercado auto-regulado estava fora das preocupações dos formuladores de política até o fim
do século XVIII, e só pode ser formulado quando a parte econômica se separou da sociedade,
fictícias, pois “não foram feitas para serem compradas e vendidas”. Isso também enfatiza a
33
artificialidade da economia de mercado, que só poderia ser alcançada através de mudanças
para justificar aqueles que detêm o poder no mercado (CLARK, 1993) e para obter uma
(THOMASBERGER, 2006).
mudança foi substituída por uma pronta aceitação mística das consequências sociais do
progresso econômico, quaisquer elas fossem” (POLANYI, p. 51, grifo nosso). A linha de
argumentação de Polanyi é semelhante àquela dada por Marx, citada anteriormente36, já que
assim como Marx, utiliza a sociedade inglesa de meados do século XIX como ponto de
análise.
Para Polanyi, a sociedade comercial moderna não surgiu de um processo evolucionário, mas
de uma imposição das classes mais ricas. Ele reconstrói a história britânica, porque lá é onde
que foi desenvolvida a sociedade comercial e a Revolução Industrial. A começar pelo século
XVI, nos cercamentos foi onde surgiram as primeiras sementes da Revolução Industrial, na
medida em que terras eram cercadas, acabando com as terras comuns, para a criação de
36
Embora Polanyi critique os marxistas por terem uma abordagem semelhante à liberal para analisar o fenômeno
(ver POLANYI, 1947). Polanyi também parece ter rejeitado a teoria do valor objetivo, fundamento da economia
marxista, quando falou que a maior contribuição do utilitarismo seria “que o valor provinha da utilidade”
(POLANYI, 2000, p. 146), o que faz sentido quando ele trata das mercadorias fictícias.
34
para fomentar a Revolução Industrial a partir do setor têxtil, ao custo do desmonte do sistema
anterior.
Nesse ponto, Polanyi aponta que, graças à intervenção estatal, a Inglaterra pôde suportar o
legislação (e até mesmo desrespeitando-a) para poder controlar o processo. Porém essas ações
ao poder com Cromwell. Existia uma clara contradição entre progresso econômico e
mudanças, houve “um movimento bem estruturado para resistir aos efeitos perniciosos de
uma economia controlada pelo mercado” (idem, p. 98). Esse processo, de impor restrições,
quer seja pela regulação ou outros instrumentos com ou sem a presença do poder estatal, às
ajuda do governo e outras vezes sem, para proteger o povo e a terra contra as forças
sociedade poderia atingir níveis suportáveis, que não precisassem envolver a sociedade em
uma conflagração, como uma guerra civil ou outro tipo de crise social37.
37
Obviamente, houve registros de agitação social na Inglaterra do século XIX, mas, em nenhum momento,
houve ameaça de guerra civil, nem de guerra mundial, conforme Polanyi demonstra no início do livro. O
conceito de duplo movimento deve ter alguma influência de Marx, porém para este autor a sociedade capitalista
iria se enfraquecer e cair em si mesma devido às suas contradições, à medida que o proletariado fizesse uma
revolução para tomar os meios de produção (MARX, p. 381). A história demonstrou que a reação capitalista era
muito mais eficiente em atender as demandas da sociedade por causa, exatamente, do duplo movimento, que
35
Para Polanyi, o mercado auto-regulado só começou a tomar força com Quesnay e os
fisiocratas38, mas foi a partir de John Townsend e sua Dissertation on the Poor Laws que o
tema se tornou relevante. Nesta obra ele demonstrou que havia equilíbrio entre predador e
presa num ilha do Pacífico39 e que isso deveria ser aplicado à sociedade, e ela precisaria do
o que haveria de ser natural. (Porém, como Polanyi explica e foi referenciado no primeiro
Assim, lentamente o liberalismo se tornou em um credo. Começou apenas como uma tentativa
de eliminar algumas leis e regulamentações na produção até atingir a economia inteira. Mas,
repetindo, nada disso evoluiu naturalmente. “As décadas de 1830 e 1840 [sic] presenciaram
não apenas uma explosão legislativa que repelia as regulamentações restritivas, mas também
participação firme do estado para atingir um nível de regulação que tornasse o laissez-faire
outro. Enquanto [que] a economia laissez-faire foi o produto da ação deliberada do estado, as
foi planejado; o planejamento não” (idem, p. 172). No fim, Polanyi conclui, os liberais
tiveram que se voltar contra o liberalismo. O duplo movimento estava funcionando a todo
vapor.
permitiu que a sociedade capitalista e um mercado relativamente aberto existisse, pelo em alguns países.
Também, ironicamente, a história demonstrou que os regimes socialistas caíram em si mesmo por causa de suas
contradições muito mais rapidamente do que os regimes capitalistas.
38
Ver capítulo 1 deste trabalho, embora Mandeville fosse o primeiro a causar agitação com essa idéia (ver
KAYE, 1922. Eram comuns as fogueiras feitas com exemplares de seu livro). Porém os fisiocratas foram os
primeiros a aplicar em políticas públicas.
39
Precedendo o conhecido modelo Lotka-Volterra na biologia.
36
No fim, Polanyi irá argumentar que esse processo de duplo movimento foi o que destruiu a
sociedade criada no século XIX, danificada durante a Primeira Guerra Mundial e solapada
(idem, p. 290).
poder, porque estes reconheciam a realidade da sociedade e, para isso, eles rejeitam o
postulado da liberdade. O mercado estava ameaçando tanto a sociedade que ela preferiu trocar
a liberdade autônoma e pessoal pela proteção do Estado. Polanyi argumenta que uma
sociedade na qual o mercado volta a participar da esfera social é possível preservar todas as
liberdades, incluindo as que são defendidas pelos liberais, de forma coletiva, com a inclusão
de todos indivíduos na sociedade, moldada pela vontade e desejos humanos. Esta seria a real
Grande Sociedade.
40
Qualquer semelhança com o conceito de “racionalismo construtivista” de Hayek pode não ser mera
coincidência.
41
Quando Thatcher disse que “não existe essa coisa de sociedade”, era exatamente isso a que Polanyi se referia.
O liberalismo tende a considerar a sociedade como uma multiplicidade, isto é, apenas o indivíduo tem existência
real, e as ordens sociais são resultado das interações individuais (CLARK, 1993).
37
CONCLUSÃO
Por fim, chega-se à conclusão deste trabalho e se pergunta novamente a questão: porque
comparar dois autores tão distintos? Tanto Hayek quanto Polanyi eram contemporâneos
durante a era final do Império Austro-Húngaro (Hayek era austríaco e Polanyi húngaro);
economia para tentar prover soluções para a pobreza da região vienense, em que havia um
contraste entre a erudição e opulência das classes altas e pobreza nas classes baixas, durante o
expressivismo alemão, que, de acordo com Özel, estuda as instituições como realizações de
expressões sociais42. Ambos tiveram que se exilar da sua terra natal e adotaram a Inglaterra
evitando cair naquilo que Midgley chamou de “mito da escada rolante43”, de que toda
progresso, “um processo inexorável de melhorias” (MIDGLEY, p. 6). Migone (2006) resumiu
42
Ver Özel (2007) para mais detalhes.
43
Apesar de que ambos sugeriam políticas que melhorariam a situação humana, como em Direito, Legislação e
Liberdade, e o último capítulo de A Grande Transformação, eles não colocavam suas sugestões como
movimentos naturais da humanidade; lembrando que a ordem espontânea nos deu costumes como o sati e o
duplo movimento nos deu o fascismo.
38
reprodução da classe trabalhadora, tudo de acordo com as restrições da
democracia liberal e economia de mercado” (MIGONE, p. 106)
Isso também evidencia as disparidades entre os dois falantes de língua alemã. Hayek era um
anarco-capitalismo. Para Hayek, um Estado forte era um Estado mínimo, a economia poderia
prover um nível de bem-estar maior se não houvesse interferência na economia, nem mesmo
para a criação de moeda (Hayek propôs um sistema complexo em que os bancos iriam
idéia de justiça social por completo, o que é uma consequência lógica e inegável de sua
filosofia44. Michael Polanyi (1949) criticou-o por “falar a uma sociedade apavorada com o
Polanyi, por outro lado, era um socialista não-marxista; ele defendia que se a sociedade
deixasse o mercado se auto-regular, estaria cavando a própria cova. Seu principal argumento
era que a sociedade se defende da intrusão do mercado nas esferas da vida social através do
processo de duplo movimento, e esse argumento sobreviveu até mesmo a falhas de sua
Mundial dificultaram sua argumentação sobre o papel do mercado nas sociedades antigas, já
que essas descobertas denunciavam um mercado bem mais desenvolvido e até mais auto-
44
“Para Hayek, as reivindicações por ‘justiça social’ não estão de acordo com a disciplina adquirida sobre a qual
se constrói a riqueza da sociedade. O exame que ele faz do conceito de ‘justiça social’ leva-o a rejeitar
totalmente essa noção enquanto sóldo princípio da ação [...] ‘Justiça social’ não é, de forma alguma, a expressão
inocente da boa vontade para com os menos afortunados que normalmente aparenta ser, mas sim a demanda, por
parte de grupos específicos, de uma posição privilegiada. Talvez pior que isso, na opinião de Hayek, é ela oposta
da verdadeira justiça, que é orientada por regras gerais aceitas por todos e imparcial quando diante dos diversos
indivíduos e grupos.” (BUTLER, 1987, 107-108).
45
Hejeebu & McCloskey (1999) citam vários estudiosos das culturas antigas que encontram pouca evidência de
preços largamente administrados. North (1977) reconsidera o exemplo dos Kula, que Polanyi usou, e dá uma
interpretação diferente, baseado em estudos posteriores.
39
regulado do que ele supunha. Polanyi era um primitivista, que acreditava que “fatores
2009), e o primitivismo é largamente rejeitado hoje em dia. Peter Drucker, um dos maiores
teóricos em administração e amigo pessoal de Polanyi, observou que, no fim de sua vida, ele
Este trabalho conclui que há, de fato, instituições que surgem através do processo de ordem
espontânea, mesmo que não exista uma definição única de ordem espontânea. Utilizando-se
novamente da definição de Adam Ferguson que, apesar de ter sido proposta no século XVIII,
é a mais simples e explicativa das definições, ordem espontânea seria o processo pelo qual
certas instituições surgem através da ação humana, mas não de sua vontade. Isso porém não
nos permite determinar até que ponto as instituições são criadas por um processo de ordem
espontânea, isto é, que partes da sociedade devem ser deixadas para se auto-regularem e que
partes devem ter intervenção ativa do governo ou qualquer outro mecanismo de coerção,
como cooperativas46?
Porém, uma última conclusão é que nada deve ser subestimado; o mercado, se estiver
funcionando relativamente bem, até mesmo quando apresenta um certo nível de falhas de
mercado, realmente é um lugar no qual trocas pacíficas e justas para as partes podem se
realizar sem qualquer intervenção, como diria Coase. A principal decorrêcia dessa visão é que
isso permite aos indivíduos agirem independentemente uns dos outros, ou seja, isso dá
liberdade para agir como eles bem entenderem, o que emanicipa o indivíduo. Talvez seja por
isso que socialistas como Lange defenderam uma certa autonomia aos mercados, a ponto de
46
Boehm (1994, p. 300) menciona que a única instituição a qual pode se afirmar que há consenso em dizer que
surgiu e evoluiu por ordem espontânea é a linguagem.
40
considerar o mercado “um mecanismo de computação [de preços] da era pré-eletrônica”
(LANGE, 1967), e que seus defensores defendam o livre mercado tão intransigentemente. E
para deixar o mercado na sua área designada, ocorrendo o processo de duplo movimento,
descrito por Polanyi47. Mecanismos de planejamento e coerção não são exclusividade apenas
do governo, como bem colocou Sandefur (2009), em seu exemplo comparando o governo que
determina que os empregados devem ter um plano de saúde e o executivo que determina que
Como foi proposto anteriormente, um dos maiores defeitos da argumentação de Karl Polanyi
rejeitado por nenhuma das escolas rivais ao primitivismo; mais ainda, pode se argumentar que
que os indíviduos se dirigem a um ponto focal em questão e podem demandar proteção, seja
espontâneo poderia auxiliar a tapar buracos nas teorias dos dois austro-húngaros: o duplo
movimento teria uma base bem mais sólida do que o primitivismo e haveria uma justificativa
para dar espaço a questões sociais na teoria de Hayek, porque a demanda por justiça social
47
Polanyi provavelmente ficaria horrorizado com livros como Freakonomics.
48
Até porque, de acordo com a teoria de evolução cultural hayekiana, pode se sugerir que o Estado evoluiu
naturalmente, mas isso já não está no escopo do projeto.
49
Nota-se que aqui também ocorre o dilema de Sandefur aqui, a partir do momento que a ordem espontânea é
reconhecida e instituicionalizada (cimentada), ela deixa de ser espontânea.
41
Uma conclusão secundária do trabalho é que, como o Estado é o principal agente capaz de
atender às demandas da sociedade, seja por maior liberdade para a auto-organização dos
mercados ou por uma maior restrição à ação dos mesmos, ele não pode ser desconsidera, o
que faz com programas de pesquisa baseados ou com fim no anarquismo político
década de 1930, por isso a sociedade deve tomar cuidado com o próprio processo de duplo
Espera-se que esta discussão evolua50 para realmente se entender o que está por trás das
instituições que temos hoje. Sugden (1988) enumera três razões para o estudo desse conceito:
surgem as crenças da sociedade. Esse é um problema que envolve grande parte dos
50
Ainda está para ser escrito o livro A Theory of Spontaneous Order.
42
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