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A ORDEM PÚBLICA COMO JUSTIFICATIVA AO ENCARCERAMENTO

PROVISÓRIO DE TRABALHADORES LIGADOS AOS MOVIMENTOS SOCIAIS


NO BRASIL: do inimigo da filosofia política ao inimigo no processo penal.
Daniela Felix Teixeira1
Patrick Mariano Gomes2

Resumo: O presente artigo tem como finalidade situar as contradições do Poder Público, seja pela via do Poder
Executivo, quanto do Poder Judiciário, no uso excessivo das prisões cautelares, por meio do indefinido conceito
de Ordem Pública, em face dos membros e ativistas políticos da luta pela terra e sua ocupação legítima, com
base na função social da propriedade. Para tanto, necessário se fez situar as principais lutas históricas e quais os
conceitos de ordem que estão em jogo no nosso modelo de sociedade moderna capitalista, bem como o que se
pretende com as prisões cautelares de representantes, no caso, do Movimentos dos Trabalhadores sem Terra
(MST).

Resumen: El actual artículo tiene como propósito de precisar las contradicciones de una fuerza pública,
cualquiera para la manera del ejecutivo, cuánto de la poder judicial, en el uso extremo de la acción para un
remedio provisional arresta, por medio del concepto indefinido de la orden pública, en la cara de los miembros
y de los políticos de los activistas de la lucha para la tierra y su ocupación legítima, en base de la función social
de la característica. Para, en tal manera necesario si hizo para precisar las luchas históricas principales y que
los conceptos de la orden que están en juego en nuestro modelo de la sociedad moderna del capitalista, así
como qué se piensa con la acción para las detenciones provisionales de un remedio de representantes, en el
caso, de los Movimientos de los Trabajadores Sin Tierra (MST).

Palavras-chave: criminologia crítica – ordem pública – movimentos sociais - Movimentos dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra
Palabra-llave: criminologia critica – orden pública - movimientos sociales - movimientos de los trabajadores
agrícolas sin la tierra

1. Introdução
O presente artigo tem a intenção de levantar algumas considerações sobre o uso
político da prisão preventiva e de instrumentos legais repressivos contra movimentos sociais
no Brasil. Para tanto é necessário se situar qual o conceito de ordem pública e de inimigo da
filosofia política, bem como analisar a prisão preventiva como elemento principal de um
direito penal que busca segregar e tornar inócuos sujeitos seletivamente escolhidos.
Diante destes elementos, concentraremos nossas análises nos movimentos sociais de
luta pela reforma agrária que, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT),

1
A Autora é Graduada em Direito pela UNIVALI/SC (2000), Mestre em Direito pelo CPGD/UFSC (2009),
Advogada da OAB/SC, Vice-Presidente da Advogados Sem Fronteiras (ASF-Brasil), Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa e Extensão Universidade Sem Muros (UFSC/CNPq) e Professora universitária. Currículo Lattes/CNPq:
http://lattes.cnpq.br/8302153504234332. e-mail: contato@danielafelix.com.br.
2
O Autor tem graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Presidente Prudente (2002). Pós-graduação
latu sensu em Estudos Latinoamericanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Advogado pela
OAB/SP, desde abril de 2002. E-mail: patrickmariano@atonfon.com.
constataram 204 (duzentos e quatro) prisões de trabalhadores rurais no ano de 20093. Muito
embora o relatório da Comissão não traga a fundamentação destas prisões (se foram flagrantes
ou decretadas preventivamente pelo Poder Judiciário), consideramos um parâmetro
importante para dimensionarmos o uso (ou abuso) das prisões contra estes ativistas destes
movimentos, lembrando que as pautas de reivindicação deles são universais e justas, qual
seja, direito à terra, ao trabalho, à dignidade, à justiça social e à inclusão.
Todas as lutas sociais pela terra e pela igualdade na sua distribuição, enquanto
instrumento de trabalho e sobrevivência, perpassam vários momentos históricos do nosso
País, porém infelizmente continuam no rol das promessas não solucionados do pacto da
modernidade.

2. Antecedentes históricos
Vários são os Movimentos de Lutas pela Terra no Brasil e na América Latina, da
mesma forma que são variadas as suas bandeiras de lutas e de realizações. No Brasil, os
parâmetros históricos são inúmeros, motivo pelo qual se faz um breve apontamento sobre os
principais fatos históricos que pautam a nossa análise neste trabalho.
Demarca-se, num primeiro momento, o surgimento das ligas camponesas no
Nordeste4, em 1954, dada a partir da exigência pelos trabalhadores rurais de garantia, pela
Prefeitura de Vitória de Santo Antão/PE, ao direito de sepultar seus mortos em caixões
individuais, pois até então, os enterros de camponeses pobres eram realizados em caixões
coletivos e reutilizáveis, demonstrando a completa negligência pelo Estado do direito à
memória.
Tanta era a precariedade das condições de trabalho no meio rural do nosso País, que
fez com que esta luta dos trabalhadores do Engenho Galiléia por caixões, se tornasse uma
centelha que despertasse uma grande organização social pela reforma agrária.
Nos anos que se seguiram ao episódio de Vitória de Santo Antão/PE, as ligas
camponesas conquistaram uma dimensão política nacional e internacional, que somente
cessou com o estado de exceção que se iniciou em 1964.

3
CANUTO, Antonio; LUZ, Cássia Regina da Silva;WICHINIESKI, Isolete (Coord.). Conflitos no Campo Brasil
2009. São Paulo:CPT/Expressão Popular, 2010. 200 p. Disponível em
<http://www.cptnac.com.br/pub/publicacoes/33404e4d06be2a90a8dd008d60b0fe6d.pdf >. Acesso em 23.ago de
2010.
4
MONTENEGRO, Antonio Torres. As Ligas Camponesas e a Construção do Golpe De 1964. Disponível em
<http://www.fundaj.gov.br/licitacao/observa_pernambuco_02.pdf> Acesso: em 23 ago de 2010.
Seu principal líder, Francisco Julião, acabou preso preventivamente por um ano com
base na Lei nº 1.802, de 5 de Janeiro de 1953, editada pelo Presidente Getúlio Vargas. Segue
trecho da denúncia5:

Assim, vitorioso o Movimento Armado de 31 de Março do ano


passado, as chamadas Classes Conservadoras de Pernambuco e alguns
militares do Exercito entraram a classificar o Movimento Social
organizado e promovido pelo Paciente como constituindo o crime do
art. 2º, III, da lei nº 1.802, de 5 de Janeiro de 1953, que diz: “Tentar:
‘III – Mudar a ordem política ou social estabelecida na Constituição,
mediante ajuda ou subsidio de Estado estrangeiro ou de organização
estrangeira ou de caráter internacional

Para justificar esta classificação diz a denúncia:

a) ‘sobre o que tem sido a atuação deste denunciado no Estado,


desnecessário seria fazer um retrospecto, pois, é sabida a desenvoltura
com que agitou sempre a zona rural, não só de Pernambuco como dos
Estados Unidos vizinhos, tudo no sentido de, fiel aos seus princípios
marxistas-leninistas do desvio chinês e extremamente ligado a Cuba e
ao seu ditador Fidel Castro, fazer a mudança do regime democrático
instalado neste País, uma Republica Socialista à sua feição ou gosto’;
b) ‘disputava com o sr. Miguel Arraes de Alencar a liderança no
Estado, tudo praticando para estar em evidencia, e com a maior soma
de forças sob seu controle’; c) ‘as suas Ligas Camponesas são
organizações auxiliares do Partido Comunista e as contradições
existentes são, exclusivamente, quanto aos métodos seguidos para
chegar ao Poder político; os objetivos são exatamente os mesmos:
marxismo-leninismo;” d) ‘tudo em Francisco Julião reflete agitação
popular, exclusivamente agitação. Nenhum programa de recuperação
ou ajuda. O lema é: tanto pior, melhor’; e) “nesse modo Julião
fermentava o ódio e a discórdia e o fazia, evidentemente, ligado ao
Partido Comunista que é internacional e subvencionado por potencias
estrangeiras, em particular, no seu caso, Cuba, conforme os registros
de Prestes’ f) ‘por tudo isto a sua ação foi altamente criminosa, a sua
posição foi de Chefe, não só no Nordeste, porém, em todo Brasil,
conforme é do conhecimento público. Ele é justamente o Chefe do
desvio cubano, no Brasil, como muito precisamente acentuou o ilustre
Encarregado do IPM às fls. 6.111, do volume XXVIII’; g) ‘suas

5
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e história. Francisco Julião, as ligas camponesas e o Supremo
Tribunal Federal. Um estudo de caso. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1557, 6 out. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10475>. Acesso em: 28 ago. 2010.
viagens aos paises comunistas era com o fito de recebendo instruções,
ajuda o material próprio, de retorno à Pátria que vilipendiou, cavar-lhe
a ruína, mudando seu regime político, a sua estrutura social’(...)

A inicial acusatória, datada de 1964, é recheada do contexto político da Guerra Fria e


foi o que justificou sua custódia cautelar que durou mais de um ano.
Não é nossa intenção discorrermos sobre a história das Ligas Camponesas no
Nordeste Brasileiro, mas sim sobre o uso das prisões cautelares, que são utilizadas contra
movimentos que reivindicam mudanças sociais.
A prisão cautelar de Francisco Julião é um exemplo paradigmático da discussão que
queremos realizar. O advogado permaneceu preso sem culpa formada por mais de um ano(!).
Nem mesmo sua notoriedade, nem seu cargo, então Deputado Federal, foi óbice para a
ilegalidade de seu cárcere.
Se o tratamento penal ao representante mais notório das Ligas Camponeses foi o
banimento, por meio da prisão cautelar, o que diremos dos trabalhadores e trabalhadoras
rurais que não detinham nem notoriedade, nem cargo político relevante(?).
O regime político de exceção impôs às ligas camponesas um completo banimento.
Centenas de camponeses foram presos, torturados e mortos.
O estado de exceção que o Brasil viveu após 1964 se manifestou em matéria legal de
maneira mais evidente por meio dos chamados Atos Normativos que cercearam direitos
fundamentais como o habeas corpus e a organização política.
O mais notório deles foi do AI 56 que fechou o Congresso Nacional e suspendeu os
direitos políticos de votar e ser votado.
Chama-nos especial atenção a parte dedicada à justificativa do Ato Normativo:

CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de


medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da
Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o
desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social
do País comprometidos por processos subversivos e de guerra
revolucionária; CONSIDERANDO que todos esses fatos
perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação
do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se

6
BRASIL. Senado Federal. Ato Institucional n° 5. Disponível em
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620 >. Acesso em: 19 ago de 2010.
responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências
necessárias, que evitem sua destruição (...) (sem grifo no original).

Se os atos normativos foram o substrato político que possibilitou ao Estado de


Exceção brasileiro combater o inimigo ou os que perturbavam a ordem pública, havia já,
entretanto, desde 1941 uma permissão legal que possibilitava o encarceramento de
perturbadores da ordem pública.
O artigo 312 do Código de Processo Penal Brasileiro vigente autoriza a prisão
cautelar (sem culpa formada) de qualquer investigado ou processado cuja liberdade cause
abalo à ordem pública.
Uma vez reconhecida a ordem pública como justificativa da contenção cautelar,
passamos, a um segundo momento, que é a sua conceituação e compreensão dentro do
ordenamento jurídico brasileiro.

3. A aplicação da Ordem Pública no campo internacional: Estados de Exceção


O conceito de ordem pública tem sua origem histórica no estado de exceção e está
intimamente ligada ao exercício da política.
Em 1919, na Alemanha, durante o conturbado período do entre guerras,
estabeleceu, no art. 48 da Constituição de Weimar7, que no caso de perturbação ou “(...)
ameaça grave a segurança e ordem pública na República compete ao Presidente decretar as
medidas necessárias ao restabelecimento da ordem e da segurança, mesmo com o recurso a
forca armada.” E continua: “Para este fim, pode suspender, total ou parcialmente, os direitos
fundamentais dos artigos (...)”.
Quem determinava, portanto, se a ordem pública estava ameaçada era o chefe do
poder político.
Para Agamben8, “não é possível compreender a ascensão de Hitler ao poder sem
uma análise preliminar dos usos e abusos desse artigo nos anos que vão de 1919 a 1933”. O
uso político do art. 48 da Constituição de Weimar possibilitou prisões em massa de milhares
de militantes comunistas, judeus ou daqueles assim considerados como “inimigos do estado”.

7
MIRANDA, Jorge. Textos históricos do Direito Constitucional. Lisboa: Editora Imprensa nacional-casa da
moeda, 1990, p. 277.
8
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2. ed. São Paulo: Editora Boitempo, 2004, pags. 28 e 29.
Foi com reforma nacional-socialista de 19359 que o processo penal alemão
incorporou a permissão para se determinar o encarceramento provisório com fundamento na
excitação da opinião publica que o delito provocou.
Há, portanto, uma ligação histórica entre o conceito de “inimigo” da filosofia política
de Carl Schimitt e do artigo 48 da carta Constitucional de Weimar e seu uso posterior para o
processo penal. Gunther Jackobs, com seu livro “Direito Penal do Inimigo”, publicado em
1985, se fundamenta na filosofia política de Schmitt para justificar o uso do Direito Penal
contra “inimigos”.
O contexto histórico do período entre guerras e a situação da Alemanha (que vinha
de derrota da 1ª das grandes guerras mundiais), exigia que se elegessem os culpados dessa
derrota e do infortúnio do povo Alemão e, que sobre estes caísse a segregação, o isolamento e
o banimento que só as prisões são capazes de possibilitar.
As reformas legislativas que se sucederam na Alemanha após a II Guerra retiraram
do ordenamento legal a possibilidade de se determinar a prisão para garantia da ordem
pública.

4. O conceito de Ordem Pública no Brasil


A palavra ordem, em seu sentido dicionário, no que compete a este estudo, pode ser
compreendida de três formas: ordem jurídica, ordem política e ordem pública propriamente
dita. Assim, por ordem pública temos

(...) O complexo das instituições, dispositivos e regras que visam a


manter o bom funcionamento do serviço público, a segurança e a
moralidade nas relações entre indivíduos e instituições, em princípio
não substituíveis por acordos ou convenções.10

9
BAROSIO, Vittorio. Il processo penale tedesco: dopo la riforma de 1965. Milano: Dott. A. Guiffrè Editore,
1967, p. 16: “La riforma nacionalsocialista del 1935 aveva aggiunto altri due motivi, consistenti, rispettivamente,
nel pericolo che <<l’imputato approfittasse della libertà per cometere nuovi reati>> (e.d. Wierderholungsgefahr),
e nella circonstanza che, <<per la gravità dell’azione commessa e per l’eccitazione dell’opinione pubblica da
essa provocata, non fosse tollerabile lasciare l’imputato in libertà>> (Erregubg der Öffentlichkeit) (4).Nelle 1945
venne eliminato il secondo motivi e, con la legge di unificazione de 1950, anche il primo (5).”
10
AULETE, Caldas. Dicionário digital contemporâneo da Língua Portuguesa.
Embora na leitura pura e simples do caput do art. 144, da Constituição da República
do Brasil, de 1988 (CRFB/88), a compreensão leve a se pensar que o antônimo de ordem11
seja tão somente o significado de desordem, mas a etimologia estabelece a ordem e a
desordem, no ponto de vista administrativo e institucional, como uma forma de regulação
entre os indivíduos e suas as relações, além, os indivíduos em relação com as instituições
públicas12.
Destaca-se, entretanto, que entender o conceito de ordem tendo como oposição a
desordem, é reduzi-la à lógica conflitual, o que torna preponderante a importância dos órgãos
policiais na solução dos conflitos entre o Estado e a Sociedade, seja ela a sociedade civil,
militar, jurídica, etc.
Assim, busca-se em Norberto Bobbio outra definição para ordem pública, que a
compreende sob dois aspectos distintos e igualmente relevantes, a ordem pública material e a
ordem pública constitucional. A primeira, dada pela circunstância fática tendo como
finalidade do ordenamento político e de Estado, estipulada, assim, nas disciplinas de direito
público e de organização estatal, “(...) como sinônimo de convivência ordenada, segura,
pacífica e equilibrada, isto é, normal e conveniente aos princípios gerais de ordem desejados
pelas opções de base que disciplinam a dinâmica de um ordenamento”13. Explicando que

(...) constitui objeto de regulamentação pública para fins de tutela


preventiva, contextual e sucessiva ou repressiva, enquanto que a
jurisprudência tende a ampliar o conceito "material" de Ordem pública
até fazer incluir nele a execução normal das funções públicas ou o
normal funcionamento das instituições como a propriedade, de
importância publicitária (ordem legal constituída).

Nesta perspectiva assinala o Autor que um dado sistema normativo que tem a ordem
pública material como fundamento pode ser modificado conforme “(...) a variação da
inspiração ideológica e dos princípios orientadores (democráticos ou autocráticos, por
exemplo), cada ordenamento dará uma disciplina própria (ampla ou restrita) das hipóteses
de intervenção normativa e de administração direta tendentes a salvaguardar a Ordem

11
AULETE, Caldas: Ordem “(...) 2 Disposição, colocação, arranjo metódico de coisas baseados em certas
relações entre elas ou em certos critérios de qualidade, conveniência, utilidade etc. (Antôn.: desordem.)”
12
cf. LAZZARINI. Estudos de direito administrativo, p. 53.
13
BOBBIO, Dicionário de Política, p. 851.
pública. é importante sob o perfil das possíveis repercussões conseqüentes sobre a esfera
jurídica dos vários sujeitos de um ordenamento”14.
O outro aspecto é a Ordem Pública Constitucional, enquanto

(...) limite ao exercício de direitos e assume particular importância


quando referida aos direitos de liberdade assegurados pela
constituição: neste caso se indica que não é possível questionar um
limite de caráter geral ligado à chamada Ordem pública constitucional
— que parece fazerem coincidir com o conjunto dos princípios
fundamentais de um ordenamento — porquanto dos princípios gerais
não se poderiam originar limites situados além dos já previstos no
âmbito da disciplina constitucional de cada um aos direitos. 15

Assim, conclui que em ambos os modelos de Estados, sejam de ordem pública


material ou constitucional, têm se estabelecido “(...) uma noção elástica de Ordem pública
que trouxe consigo a ampliação dos limites e permite uma maior redução dos direitos de
liberdade. Contudo, se bem que por motivos diferentes, observou-se sempre uma elasticidade
semelhante nos ordenamentos primeiramente lembrados”16, ou seja, é um conceito variável
que concorre entre regimes ditatoriais aos democráticos e que em termos práticos ele pode
ampliar as garantias ou restringi-las, bastando o interesse ideológico em jogo.
Dadas estas noções, visualizamos claramente as possibilidades de manuseio
conceitual, conforme o modelo de Estado que se institui, mesmo nos moldes mais
democráticos, pode-se incorrer no uso e supressão de direitos individuais e sociais, tendo-se
como finalidade uma noção de ordem autoritária e, até mesmo, arbitrária.
Diferentemente do que sustenta Álvaro Lazzarini, que diz ser “vaga a noção de
ordem pública”17, compreende-se que o Poder Constituinte brasileiro tratou de estabelecer, no
próprio art. 144, da CRFB/88, a forma administrativa que tutora esta ordem, ou seja, a via
legislativa infraconstitucional e executiva, definindo, assim, a ordem pública e sua
materialidade, diferentemente do modelo de ordem pública constitucional conceituado por
Norberto Bobbio, que se pauta tão somente em seus princípios constitucionais como garantia
de uma possível “paz social”.

14
BOBBIO, Norberto Bobbio; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. trad.
Carmen C, Varriale et al. Brasília: Editora UnB, 1998. v. 1, p. 851-852.
15
Ibid., p. 851.
16
Ibid., p 851-852.
17
LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: RT, 1990, p. 53.
Álvaro Lazzarini de forma lacônica e maniqueísta define, ainda, que a ordem pública
“é efeito de causa segurança pública (...) efeito da causa tranqüilidade pública ou, ainda,
efeito da causa salubridade pública (...) cada um tem por objeto assegurar a ordem
pública”18.
A carência de percepções políticas e ideológicas que estão inseridas nesta noção de
ordem acaba por produzir a maleabilidade conceitual e leva a segurança pública a um variado
rol de discursos e práticas institucionais. É dentro deste contexto que o Brasil está inserido,
principalmente quando se verifica a ambiguidade do modelo de Estado estabelecido e a
pluralidade de discursos em favor do estabelecimento desta dita ordem pública.
Depreende-se, como já aludido, que nossa Constituição estabelece por ordem pública
a forma material, deixando a cargo das disciplinas de Direito Público sua definição e
organicidade, ou seja, compete ao Direito Administrativo, Direito Penal e Direito Processual,
bem como outras legislações especiais e leis orgânicas institucionais que se fizerem
necessárias as formas e a condução da ordem e, por consequência, os caminhos da segurança
pública.
Com isso, o constituinte deixou a possibilidade da modificação conceitual, que foi
moldada na medida da adoção de políticas públicas direcionadas entre os modelos neoliberal e
social democrata.
Atualmente o que verificamos é um “nó” paradigmático e metodológico, uma vez
que nossa constituição está assentada num modelo que pressupõe o bem-estar social, por via
de direitos e garantias pétreas, e a política econômica galga a passos largos rumo ao modelo
de Estado liberal.
No Brasil, embora o Código de Processo Penal de 1837 já trouxesse19 o “clamor
publico” como fundamento para a prisão antes da culpa formada, ela estava ligada a prisão em
flagrante, ou ao chamado quase-flagrante, sendo que foi somente no CPP de 1941, na Era
Vargas20, que a ordem pública ficou atrelada a prisão preventiva.

18
Ibid., p. 53.
19
“Art. 131. Qualquer pessoa do povo póde, e os Officiaes de Justiça são obrigados a prender, e levar á
presença do Juiz de Paz do Districto, a qualquer que fôr encontrado commettendo algum delicto, ou emquanto
foge perseguido pelo clamor publico. Os que assim forem presos entender-se-hão presos em flagrante delicto”.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm>. Acesso em: 13 ago de
2010.
20
CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas, p. 37: “Chegamos
então, ao Código de Processo Penal de 1941, elaborado na ambivalência autoritária que caracterizou o Estado
Novo de Getúlio Vargas, influenciado pela matriz facista italiana de Mussolini, e, consequentemente, pelos
códigos elaborados nesse regime de cariz totalitário”.
Não existe na jurisprudência, uma definição do que seja ordem pública. Na maioria
dos casos o conceito vem atrelado à suposta periculosidade do agente, que por sua vez
também é outro termo vago.
A única definição legal para o conceito de ordem pública vem do artigo 2º da Lei
Federal 88.777/83, que regulamenta as Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros, aprovada
pelo então Presidente João Figueiredo:

14) Grave Perturbação ou Subversão da Ordem - Corresponde a todos


os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública, que
por sua, natureza, origem, amplitude, potencial e vulto: a) superem a
capacidade de condução das medidas preventivas e repressivas
tomadas pelos Governos Estaduais; b) sejam de natureza tal que, a
critério do Governo Federal, possam vir a comprometer a integridade
nacional, o livre funcionamento de poderes constituídos, a lei, a ordem
e a prática das instituições; (...)
19) Manutenção da Ordem Pública - É o exercício dinâmico do poder
de polícia, no campo da segurança pública, manifestado por atuações
predominantemente ostensivas, visando a prevenir, dissuadir, coibir
ou reprimir eventos que violem a ordem pública. (...)
21) Ordem Pública -.Conjunto de regras formais, que emanam do
ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações
sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um
clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de
polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem
comum. (...)
25) Perturbação da Ordem - Abrange todos os tipos de ação, inclusive
as decorrentes de calamidade pública que, por sua natureza, origem,
amplitude e potencial possam vir a comprometer, na esfera estadual, o
exercício dos poderes constituídos, o cumprimento das leis e a
manutenção da ordem pública, ameaçando a população e propriedades
públicas e privadas.

Há que se recordar as considerações sobre a manipulação conceitual de ordem


pública, explicitado anteriormente, vez que as definições legais embora claras, partem de uma
lei exarada por uma instituição predominantemente repressiva em uma época que precede a
Carta Constitucional democrática de 1988, e que não passou por reformas estruturais e
ideológicas desde que se constituiu – base sustentada no regime ditatorial do Estado
brasileiro.
Outra ponderação é sobre a tênue linha divisória entre ordem e disciplina, mesmo
imperando no senso comum que o antônimo de ordem é a desordem, que, por sua vez,
ensejaria a sinonímia com disciplina, típica das relações militares, a ordem que deve estar
presente conceitualmente é aquela que diz respeito às relações dos indivíduos com as
instituições públicas, por via das suas prestações jurisdicionais na esfera administrativa e nas
prestações de serviços públicos estabelecidos constitucionalmente, não, tão somente, por via
das agências de segurança pública.
A própria definição do conceito remete a outros conceitos vagos como “convivência
harmoniosa e pacífica”, “bem comum”, etc. O ideal de sociedade pacificada e harmoniosa
guarda relação com a ausência de conflitos e isto só é possível numa sociedade utópica em
que todas as necessidades humanas estejam satisfeitas ou, em regimes totalitários, que o
conflito é esmagado pela força da repressão.
A Lei de Segurança Nacional, também de 1983, foi o que fundamentou o ingresso,
em 11 de março de 2008, por parte do Ministério público Federal de Carazinho/RS ação
criminal contra oito trabalhadores rurais ligados ao MST. Segundo a denúncia21, nos anos de
2004, 2005, e 2006, os grupamentos dos quais faziam parte os acusados “constituíram um
‘Estado Paralelo’, com organização e leis próprias”, teriam resistido ao cumprimento de
ordens judiciais “ignoraram a legitimidade da Brigada Militar”, teriam utilizado táticas de
“guerrilha rural”, com o apoio de organizações estrangeiras , tais como Via Campesina e
FARC.
Há um sem número de leis ainda vigentes que poderiam ser chamadas de entulho
autoritário, pois pensadas e aprovadas por regimes de exceção.

5. Fundamentos da Pena Privativa de Liberdade


Inicialmente, relembramos o que dizem os dois Tratados mais notórios do século
XX, aos quais o Brasil é signatário, sobre a limitação da acusação criminal e da liberdade
individual.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, diz no art. 11 que “Toda a
pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique
legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias
necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”22.
E a Convenção Americana de Direitos Humanos, denominada também de Pacto de
São José da Costa Rica, de 1969, estabelece no art. 7° o Direito à Liberdade pessoal:

21
SCALABRIN, Leandro. Criminalização dos protestos e movimentos sociais. Publicação da Rede Social de
Justiça e Direitos Humanos e Instituto Rosa Luxemburg Stiftung. São Paulo, 2008, p. 247.
22
NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal de Direitos do Homem. Resolução 217ª (III).
1. Toda pessoa tem direto à liberdade e à segurança pessoal. 2.
Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e
pelas condições fixadas de antemão pelas Constituições Políticas dos
Estados Partes ou pelas leis ditadas conforme elas. 3. Ninguém pode
ser submetido à detenção ou encarceramento arbitrários. 4. Toda
pessoa detida ou retida deve ser informada das razões de sua detenção
e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas
contra ela. 5. Toda pessoa detida o retida deve ser levada, sem
demora, a um juiz ou outro funcionário autorizado pela lei para
exercer funções judiciais e terá direto a ser julgada dentro de um prazo
razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o
processo. Sua liberdade poderá estar condicionada a garantias que
assegurem seu comparecimento em juízo. 6. Toda pessoa privada da
liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a
fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão
ou detenção e ordene sua liberdade se sua prisão ou detenção forem
ilegais (...) 7. Ninguém será detido por dúvidas (...).23

Ambas as declarações internacionais sustentam o rol de princípios dos pactos


republicanos dos Estados Ocidentais do século XX, da mesma forma, presentes no nosso
ordenamento jurídico, como de base do modelo republicano-federativo-democrático,
consubstanciados pela Constituição de 1988.
Esta base de formulação de princípios de direitos e de garantias, refletem-se
diretamente em todo o arcabouço legislativo pátrio e, de igual forma, às legislações penais e
processuais penais.
Embora estes códigos, especificamente o código penal e processual penal, datem dos
anos de 1940 e 1941, respectivamente, o legislador24 foi ao longo do tempo fazendo as
alterações, pelas vias reformistas – consubstanciadas em leis ordinárias, decretos, medidas
provisórias, portarias, etc., afim de adaptar o ordenamento ao pacto democrático da
modernidade, ao direito internacional e às relações exteriores.

23
BRASIL. Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro
de 1969. Decreto nº 678, de 06 nov. 1992.
24
Cumpre salientar que a distinção entre legislador e legislativo. Ao primeiro é todo o sujeito competente de
emitir atos com características de leis, ao segundo, termo também utilizado para Poder Legislativo.
Dito isto, pois, o Brasil por meio de suas opções políticas e ideológicas sempre
cumpriu formalmente as obrigações internacionais, todavia, como delineado anteriormente a
condição de país em desenvolvimento, sob a perspectiva definida por Boaventura de Sousa
Santos de modernismo de oposição25, deixou um grande deficit no campo prático das políticas
sociais, aos quais estão as políticas criminais e penitenciárias.
As prisões, destinadas às penas restritivas de liberdade, desempenham historicamente
a função de seleção dos diferentes e dos socialmente menos “aptos” a galgar a pirâmide
social26.
Como aludido por Odete Maria de Oliveira, a reclusão enquanto confinamento
celular data do século V, o qual a Igreja, em alternativa à penal capital, aplicando a penitência
com o intuinto de resgate do arrependimento pela dor, tendo no século XVIII a sua aplicação
substituída pela pena de morte. Salienta, ainda, a aplicação de outros meios cruéis juntamente
às privações de liberdade, como privações à comida, uso de objetos de torturas, etc.27
Michel Foucault, abordando a importância do processo de humanização das penas,
diz que “A prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certamente um momento
importante na história da justiça penal: seu acesso à ‘humanidade’. Mas também um
momento importante na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe
estava desenvolvendo: o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária”.28
Demarcamos aqui a colonização das relações sociais pelo Contrato Social, o qual o
poder judiciário e o poder de punir, já atribuído ao Estado, passam a definir quais são as
condutas consideradas como crime na forma positivada, legitimando a pena privativa de
liberdade como retribuição disciplinar igualitária àqueles infratores das normas penais, sob o
manto do positivismo jurídico.29
“Pode-se compreender o caráter de obviedade que a prisão-castigo muito cedo
assumiu. Desde os primeiros anos do século XIX, ter-se-á ainda consciência de sua novidade;
e entretanto ela surgiu tão ligada, e em profundidade, com o próprio funcionamento da
sociedade, que relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do

25
Menciona-se cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: constatando-se a condição do Brasil
como país latino-americano colonizado e em desenvolvimento.
26
Cf. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Pena e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC,
2004, p. 124-136.
27
Cf. OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3. ed. Florianópolis: UFSC, 2003, p. 47-51.
28
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis,
Vozes, 1987, p. 195.
29
Cf. Ibid., p. 195.
século XVIII haviam imaginado. Pareceu sem alternativa, e levada pelo próprio movimento
da historia”30.
Assim se afirma e se firma o caráter utilitarista da pena.

Esse duplo fundamento - jurídico-ecônomico por um lado, técnico-


disciplinar por outro - fez a prisão aparecer como a forma mais
imediata e mais civilizada de todas as penas. E foi esse duplo
funcionamento que lhe deu imediata solidez. Uma coisa, com efeito, e
clara: a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se
teria dado em seguida uma função técnica de correção; ela foi desde o
início uma "detenção legal" encarregada de um suplemento corretivo,
ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação
de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal. Em suma, o
encarceramento penal, desde o inicio do século XIX, recobriu ao
mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos
indivíduos.31

Importa destacar que “as alterações da forma de punição revelam a subordinação


da pena às condições econômicas exigidas pela socidade. A trajetória do sistema punitivo
evidenciou esta subordinação (...)”32
No transcurso do processo, o utilitarismo dá espaço ao idealismo, que reveste à pena
um caráter científico retibucionista, pautando-se na filosofia de Hegel e Kant, o qual perpetua-
se até hoje, consubstanciando-se na “formulação de parâmetros precisos e calculáveis de
conduta” plenamente sustentado na legalidade, tendo como obejtivo único a retribuição.33
Assim, como consideram Rusche e Kirchheimer, “O cárcere tornou-se a principal
forma de punição no mundo ocidental no exato momento em que o fundamento econômico da
casa de correção foi destruído pelas mudanças industriais” 34
O que se verifica concretamente é que a pena privativa de liberdade desde a sua
concepção teve como único fim a contenção das massas improdutivas ou aquelas à margem
do sistema econômico, servindo à continuidade da exploração do homem pelo homem.

30
Ibid., p. 195.
31
Ibid., p. 196-197.
32
KATO, Maria Ignes Lanzellotti Baldez. A (des)razão da prisão provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005,
p. 21.
33
Cf. RUSCHE, KIRCHHEIMER. Op. Cit., p. 143-144.
34
Cf. Ibid., p. 146.
Modificou-se as estruturas de trabalho, mas as relações de exploração perpetuaram-se e se
perpetuam até nossos dias.
O modelo capitalista e liberal, aboliu o escravismo, tornando todos os cidadãos livres
formalmente, todavia, a liberdade encontrou o seu limite na renda e no trabalho, ou seja, as
bases ideológicas segregacionistas e excludentes continuaram intrínsecas as relações
humanas.
Nilo Batista assevera que se deve “Entender que a prisão moderna é inventada aqui,
dentro de um sistema sobre o qual o pensamento marxista ortodoxo fala. Um artigo definiu
essa economia como uma praça onde você tem de um lado uma prisão e do outro uma
fábrica. A similaridade arquitetônica entre as fábricas e as prisões não é por acaso. No meio
você tem a mão–de-obra reserva”35
Por outro lado, E. Raúl Zaffaroni lança ao debate uma questão muito importante, que
é a forma com que esta concepção européia foi recepcionada na América Latina, e diz que
“(...) en el Brasil, el proceso tiene ribetes más complicados, pues la estructura colonial quedó
vinculada a la producción esclavista, que sólo termino en vísperas de la proclamación de la
República, aunque no és posible negar el peso de una minoria criolla en el Imperio y de la
ideologia liberal (...)”.36
Ainda, como agravante, Camila Prando afirma que “Houve a adoção praticamente
literal das legislações dos Países Centrais, que se apresentavam de modo quase inadaptável
à realidade marginal. O Código Penal Brasileiro de 1830, por exemplo, combinou em sua
redação matrizes disciplinaristas e contratualistas, e produziu contraditoriedades,
especialmente quanto à regulação de conflitos em que os escravos eram parte” 37.
Assim, conclui que

(...) especialmente no século XIX, com o processo de urbanização


brasileiro, que se deu a passagem do controle punitivo privado
senhorial enquanto modelo exclusivo, para o controle punitivo público

35
BATISTA, Nilo. Criminalidade não existe. Afasta de mim este cale-se. Disponível em:
<http://www.uff.br/calese/entre_vista.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009.
36
A tradução da fala de Zaffaroni, diz: “(...) no Brasil, o processo tem maiores complicações, pois a estrutura
colonial estava vinculada á produção escravista, que só terminou véspera à proclamação da República, não sendo
possível negar o peso de uma minoria mestiça ao Império e à ideologia liberal (...)” (tradução livre dos autores) –
ZAFFARONI, E. Raúl. Criminologia: aproximación desde un margen. v. 1. Bogotá: Themis, 1988, p. 124.
37
Cf. PRANDO, C. C. M. A contribuição do discurso criminológico latino-americano para a compreensão do
controle punitivo moderno: controle penal na América Latina. Veredas do Direito. Belo Horizonte, v. 3, p. 77-
94, 2007.
(...) ocorreu não uma simples transferência do controle privado ao
público, ou antes, uma simples especialização e publicização do
controle punitivo, mas sim uma relação de complementariedade entre
essas duas formas de controle. Sob essa formação histórica do
controle penal brasileiro, tudo leva a concluir que em sua organização,
o alto grau de violência e, bem, a presença de um controle subterrâneo
em consonância ao controle oficial é antes uma formação endêmica
própria da estruturação marginal econômica e política e de suas
contraditoriedades. 38

Não diferente foi a concepção do Estado Democrático de Direito brasileiro pactuado


em 1988, que adaptou-se à legislação penal e processual penal emanadas de governos
historicamente autoritários e antidemocráticos, desenvolvendo-se, assim, em meio as
ambiguidades jurídicas e sociológicas que são estabelecidas, mesmo tendo como fundamento
os princípios liberais da modernidade, o que Alessandro Baratta denomina de “mito do
Direito Penal como direito igualitário”39.
É neste contexto atual que se enquadram os princípios garantidores de limitações às
penas privativas de liberdade, dentre eles o princípio da presunção de inocência (art. 5° inc.
LVII, da CRFB/1988), em que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória”.
Ainda, são estabelecidos outros princípios, também no art. 5°, conexos à preservação
da liberdade, da integridade e do devido processo legal, o qual sustetam o ordenamento penal
e processual penal40.
Todavia há de se pontuar as significativas diferenças entre as penas privativas de
liberdade e as prisões cautelares, dentre tantas, é a formação da culpa – comprovada autoria e
materialidade do delito –, por meio de uma sentença penal condenatória transitada em julgado
que justifique o aprisionamento.

6. A relação entre o conceito relativo de ordem pública e uso arbitrário das prisões
cautelares aos Membros de Movimento Sociais

38
Cf. IBID.
39
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC,
2002, p. 162.
40
Ver incisos: III, XXXIX, XL, XLV, XLVI, XLVII, XIX, XLVIII, XLIX, L, LIII, LIV, LV, LVI.
As leis como a que permite o encarceramento provisório com base no abalo à ordem
pública, a de segurança nacional, entre outras, representam o legado de regimes de exceção
pelos quais passamos.
Contraditoriamente é possível, dentro de um Estado Democrático e de Direito, que
tal aparato legislativo seja manejado contra movimentos reivindicatórios de políticas públicas
Constitucionalmente estabelecidas como a reforma agrária.
José Eduardo Faria41 usa o termo “armadilha” para designar essa situação do
legislador que ao se valer de “recursos retóricos” como o da “ordem pública” com vistas a
“superar a rigidez tipificadora da dogmática jurídica” não conseguiu evitar, “a ruptura dos
padrões de unidade e hierarquia inerentes aos princípios da constitucionalidade, da
legalidade e da certeza jurídica.”
Na Espanha, a utilização da ordem pública para prisão preventiva, foi declarada
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, ficando consignado no voto de Manuel Jiménez
de Parga que a utilização deste conceito indeterminado por parte dos Juízes e Tribunais leva a
que “seguramente um desconhecido ‘navajero’ produza mais alarma social em um pequeno
povoado que um famoso ladrão de colarinho branco em uma grande cidade”. 42
Essa permissão legal para se prender e segregar do convívio social sem o devido
processo legal e sem a culpa formada, ou seja, sem as garantias liberais Democráticas está
presente em nossas leis, desde os regimes de exceção até os Democráticos como o atual.
Dados do Departamento Penitenciário (DEPEN) apontam que 39,3 % da população
carcerária do Brasil são de presos provisórios sendo que em onze43 estados brasileiros a
proporção de custodiados cautelarmente é maior que o de condenados por sentença penal com
trânsito em julgado. O Piauí é o estado em que esta proporção é maior: 76,1 %.

41
FARIA, José Eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação
social. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/USP, 1988. Ref. Biblioteca de Direito da USP, p. 22.
42
SANGUINE, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva.
Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva, Sérgio Salomão Schecaira (Org.). São Paulo: Método,
2001, p. 286. Ver habeas corpus nº 84.498/BA, julgado em 14.12.2004, sendo relator o ministro JOAQUIM
BARBOSA.
43
BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN. Relatório de 2008/2009,
“Sistema Penitenciário no Brasil, Dados Consolidados”. Nos estados de PE, MA, AM, CE, PI, MT, PA, AL,
MG, SE, RR o número de presos custodiados cautelarmente é maior que o de condenados com trânsito em
julgado. Com destaque para os estados do Piauí (76,1%), Alagoas (70,9%), Sergipe (68,4%), Amazonas (65,2%)
e Pernambuco (64,9%). Com relação a 2008, houve um aumento de 13863 novos presos provisórios. Documento
encontrado no link: <http://portal.mj.gov.br/depen/data/Pages/MJC4D50EDBPTBRNN.htm> acesso em
11.08.2010.
Na América Latina, segundo dados do Instituto Latino-Americano das Nações
Unidas (ILANUD)44o país cujo fenômeno do encarceramento provisório se revela mais grave
é a Bolívia, com 79 % de presos do sistema penal sendo provisórios. No contexto latino-
americano oito países apresentam estatísticas piores que por a aqui encontrada45.
Ao analisar o fenômeno do aprisionamento cautelar em nosso continente, E. Raúl
Zaffaroni46 pondera que uma vez posto em marcha essa prática punitiva “todos passam a ser
tratados como inimigos, através de puros confinamentos de contenção, prolongados ou
indefinidos.” Assim, o processo penal acaba legitimando uma prática descontrolada do
exercício do poder punitivo estatal quando deveria servir para garantir direitos do acusado ou
indiciado frente a este poder.
Se o uso da medida cautelar é difundido como forma de prevenção geral e controle
social sobre determinados tipos de crime e grupos sociais, é ao tráfico de drogas que o uso do
conceito de ordem pública é mais utilizado na atualidade.
Como forma de barrar a atuação política de movimentos sociais que cobram políticas
públicas constitucionalmente estabelecidas, o Poder Executivo, por via do aparelho repressivo
do Estado, legitimado pelo Poder Judiciário brasileiro se valem das prisões preventivas com
fundamento na ordem pública para arrefecer a luta pela reforma agrária.
O Juiz de Pilar/PB47, ao determinar a prisão cautelar de trabalhadores rurais ligados
ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) assim se justifica:

Além do mais é público e notório nesta jurisdição, que os mesmos são


os líderes das invasões promovidas pelo Movimento dos Sem Terra, e
constantemente vêem desobedecendo as determinações de
reintegração de Posse emanadas do Juizado da 1º Vara de Conflitos
Agrários e do Meio Ambiente. O caso já descamba para a baderna,
para subversão da ordem pública e para o desrespeito a decisão
judicial, cabendo a este Magistrado como guardião na aplicação
da lei, adotar medidas coercitivas para conter as investidas
criminosas do supra mencionado movimento. Assim, ante o justo
do pleito do Douto Representante do Ministério Público e sendo os
réus portadores de péssimos antecedentes criminais, conforme acima
delineado, torna-se imprescindível as PRISÕES PREVENTIVAS de

44
CARRANZA, Elías (coord.). Cárcere e Justiça Penal na América Latina e Caribe. Instituto Latino-
Americano das Nações Unidas para a prevenção do delito e tratamento do delinqüente, publicação no Brasil
realizada pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, 2010, p. 68.
45
Segundo dados do ILANUD: Uruguai, República Dominicana, Peru, Honduras, Bolívia, Panamá, e Paraguai
possuem em seu sistema carcerário mais presos provisórios do que condenados definitivamente.
46
Zaffaroni, E. Raúl, O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007, p. 109.
47
Ver TJPB, Processo nº 028.2000.000.249-9, decisão de 4 de outubro de 2000.
todos os denunciados, como garantia da ordem pública, por
conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei.

No estado de São Paulo, na comarca de Teodoro Sampaio, o Poder Judiciário48 local


assim justificou o aprisionamento cautelar com base na ordem pública de integrantes do MST:

Até porque ainda que as mais altas esferas governamentais não


queiram reconhecer, assim como se fazia até bem pouco tempo em
relação ao denominado PCC, o conhecido MST, se constitui nos dias
de hoje um poder de fato nesta região do Pontal do Paranapanema.

Em Curionópolis/PA49, um trabalhador e uma trabalhadora integrantes do MST,


tiveram prisão provisória decretada pelo Juiz daquela Comarca pelo fato de realizarem um
protesto em rodovia:

Aliados à materialidade do delito e aos indícios de autoria, surgem


configurados elementos para a decretação da medida cautelar
solicitada. A liberdade dos representados prejudica a ordem pública,
pela continuidade da influência exercida sobre os acampados, que,
frise-se, permanecem às margens da via, incitando novas
manifestações, com possíveis obstruções da rodovia, além de fomentar
sentimentos de impunidade e indignação na região. Impunidade, pela
ausência de punição aos obsessores, que se misturam entre os
manifestantes: já que são conhecidas as ocorrências de agressões
físicas e verbais, ameaças, constrangimento ilegal e danos sofridos
pelas pessoas que necessitam passar pelo bloqueio. Indignação, por
não se poder exercer o direito individual de ir e vir, em via pública,
lembrando que tratamos de uma importante estrada, eixo de ligação
entre o sul do Pará, os Estados do Mato Grosso e Tocantins, com o
norte do país. Não podemos fechar os olhos para problemas sociais e
fundiários presentes, mas também não podemos admitir o
cometimento de inúmeros crimes, em prol da solução destes
problemas (fls. 53/54).

48
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Segunda Câmara Criminal. Habeas Corpus nº 386.660-
3/9, relator Des. Canguçu de Almeida. Acórdão de 10 de fevereiro de 2003, v.u.
49
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, processo nº 161.768, rel. ministro Napoleão Nunes Maia.
O paradoxo é que o protesto realizado na rodovia foi justamente para exigir punição
aos responsáveis pelo episódio que ficou conhecido como massacre de Eldorado dos
Carajás50, em que 19 trabalhadores sem terra foram assassinados pela Polícia Militar do
Estado do Pará, ao reivindicarem reforma agrária.
Passados 14 anos do episódio, nenhum dos 155 policiais denunciados cumpre algum
tipo de medida privativa de liberdade ou restritiva de direito, ou tiveram algum tipo de
reprimenda administrativa por abuso de autoridade, no entanto, os trabalhadores que
realizaram protesto para exigir punição pelo fato, na mesma rodovia em que seus pares foram
assassinados, a resposta do Poder Judiciário vem em forma de prisão cautelar, ainda, prisão
cautelar por contravenções (perturbação da ordem, obstrução de via pública, desacato à
autoridade), segundo nosso ordenamento material penal.
Posteriormente o STJ cassou a decisão de primeiro grau e possibilitou aos
trabalhadores responderem em liberdade ao inquérito instaurado.
A criminalização dos movimentos sociais de luta pela terra acaba por servir para
aumentar o abismo entre as lutas das demandas sociais históricas destes movimentos e está, na
maioria das vezes, ligada ao Poder Judiciário local, visto terem STJ e STF sistematicamente
rejeitado decretação de prisões preventivas contra integrantes destes movimentos.
Em sede do Habeas Corpus de número 4399/SP, o voto do ministro Luiz Vicente
Cernicchiaro assentou que:

Não vislumbro, substancialmente – não obstante o aspecto formal


respeitável despacho de prisão preventiva -, no caso concreto,
demonstração de existência de crime de quadrilha ou bando, ou seja,
infração penal em que se reúnem três ou mais pessoas com a
finalidade de cometer crimes. (...) Há sentido, finalidade diferente.
Revela sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja a
implementação da reforma agrária.

Em outra oportunidade o STJ, em voto (HC nº 27856/SP) do ministro Paulo Medina


assentou:

50
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Disponível em:
<http://www.mst.org.br/especiais/27/destaque >. Acesso em: 12 ago. de 2010.
(...) Registre-se, diversamente do afirmado no acórdão hostilizado,
que os pacientes são obreiros rurais integrantes do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra, que lutam e sacrificam-se por mais razoável
meio de vida, onde a dignidade social somente pode ser restaurada no
momento em que se fizer a verdadeira, necessária e indispensável
reforma agrária no País. Enquanto campear a incerteza de seus
resultados e for incerta a atuação política, encontrar-se-á a revolta
justa e a insatisfação crescente dos menos favorecidos nos contextos
econômico, social e político do Brasil.

O Supremo Tribunal Federal ao julgar ordem de Habeas Corpus (nº 91616/RS)


contra integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST da região de
Carazinho/RS, em processo que se determinava a prisão cautelar de 8 (oito) integrantes desta
organização política, rejeitou a argumentação de que a atuação dos trabalhadores frente ao
movimento importaria em risco à ordem pública:

1. A convivência das figuras da prisão cautelar e da presunção da não-


culpabilidade pressupõe que o decreto de prisão esteja embasado em
fatos que denotem a necessidade do cerceio à liberdade de locomoção.
2. Às instâncias colegiadas não é facultada a complementação do
decreto de prisão, eventualmente impugnado. No caso, o fundamento
da conveniência da instrução criminal foi acrescentado, pelo Tribunal
de Justiça, ao decreto de prisão preventiva. Ilegalidade caracterizada.
3. A simples afirmação de que os pacientes carecem de domicílio
certo e conhecido não tem a força de lastrear a segregação provisória
para assegurar eventual aplicação da lei penal. 4. É ilegal a prisão
preventiva para a garantia da ordem pública, baseada tão-somente na
gravidade do fato, na hediondez do delito ou no clamor público.
Precedentes. 5. A alteração da base empírica, existente no momento
da decretação da prisão, implica a mudança dos fundamentos da
custódia. 6. Ordem concedida, mediante o compromisso de
comparecimento dos pacientes aos atos processuais.

Mesmo tendo o STJ e STF reiteradamente rejeitado a criminalização realizada no


processo penal contra os movimentos, ainda se aplica, – e os dados da CPT demonstram isso
– muito comumente, esse recurso contra os integrantes de movimentos sociais.
A ordem pública, conceito vago e impreciso, fruto da legislação autoritária do
período entre guerras, é o que mais cabe ao julgamento conservador dos atores do direito que
visualizam como crime estas novas demandas sociais que se apresentam no regime
Democrático.
Entender que a ação coletiva de ocupação de terras dos movimentos sociais do meio
rural brasileiro coloca em risco a ordem pública e que, portanto, se pode indiscriminadamente
segregar cautelarmente seus integrantes é entender que na Democracia não cabe o conflito e
negar a existência de problemas sociais históricos que o capitalismo não conseguiu resolver.
Para Marilena Chauí51 aqueles que se vinculam à tradição liberal da Democracia vêm
como “o regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”, o que
redunda na nesta tentativa de conter os conflitos sociais. Esquecem, segundo a filósofa que
“democracia, mais que respeito às leis estabelecidas, é conflito.” A Democracia é “a única
forma da política que considera o conflito legítimo.”
Com Espinosa, Chauí52 aponta que a boa política se dá quando a esperança (“uma
alegria inconstante nascida da idéia de uma coisa futura ou passada”) vence o medo (“uma
tristeza inconstante de uma coisa futura ou passada”) e permite que a concórdia supere a
discórdia entre os homens. Mas, não qualquer concórdia, há que ser a uma concórdia
Democrática, ou seja, um regime em que os cidadãos não estejam submetidos a nenhum poder
tirânico. A paz não é a simples ausência de guerra. Uma cidade na qual a paz depende da
inércia dos súditos deve mais corretamente ser chamada de solidão que de cidade53.
Na decisão do Habeas Corpus de número 5574, o Superior Tribunal de Justiça fez
constar que movimento popular visando implantar a reforma agrária não caracteriza crime
contra o patrimônio, mas sim “configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a
implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do
Estado de Direito.”
O reconhecimento por parte do Poder Judiciário de que o conflito é inerente ao
regime Democrático, não é isolado, felizmente. Mesmo com o entulho autoritário ainda
vigente em nossa legislação, a tentativa de criminalizar as ações dos movimentos sociais não
recebe apoio de muitos setores da sociedade civil e autoridades dos três poderes da República.
A Constituição da República limita o exercício do direito de propriedade com a
necessidade de se respeitar a função social, só é propriedade, portanto, aquela que cumpre sua
função social. Em caso de não observância deste requisito ela deverá ser desapropriada para
reforma agrária. Além disto, a dignidade da pessoa humana é direito fundamental, portanto, o

51
CHAUÍ, Marilena. Chauí defende veia conflituosa da democracia. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 ago.
2006. Ilustrada, Caderno E-4.
52
Ibid.
53
Ibid.
contraponto legal para a luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra é a
Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.
Lembramos, por fim, que Ex-Presidente da República, Dr. Fernando Henrique
Cardoso, sancionou, em junho de 2002, a Lei nº 10.469, que instituiu o dia 17 de abril, como
dia nacional de luta pela Reforma Agrária, ou seja, trata-se de uma luta legítima pelo direito à
Terra àqueles despossuídos que buscam suas subsistência.
Há de se reconhecer, contudo, que a luta pela terra acompanha toda a história da
Humanidade e é o instrumento de dominação do Homem pelo Homem.

7. Conclusões
Inicia-se esta fala utilizando-se uma afirmação de Nilo Batista, em artigo recente para
uma agência jornalística, que traduz em parte os caminhos que seguem as políticas criminais
da modernidade: “Hoje a gente vive um sistema penal esquizofrênico”54.
Esta consideração torna-se compreensível à medida que se mergulha no universo de
discussão teórica e política da segurança pública. Por um lado verifica-se toda uma linha de
raciocínio teórica sustentada na etiologia que visa a legitimação do modelo neoliberal, por
outro, o discurso com vistas à emancipação social, e realização da “cidadania”.
Insertos neste cenário estão agentes de segurança pública e sociedade civil. O
primeiro grupo quer a violência, pois arrumar a casa precisa da ordem – compreendida
enquanto disciplinamento –, o segundo, embora cansado de tanta desigualdade, espera a
justiça, porém, o mais perverso é que o dito popular tem absoluta razão, pois mesmo
acometida de sua “cegueira” usual, ela “tarda, mas não falha”.
Embora a pena não devesse ter qualquer relação com as prisões cautelares, os
indícios da sua aplicação além do aceitável55, apontou para a necessidade de situá-las no
âmbito da legislação brasileira, assim, especificou-se o estabelecido por pena restritiva de
liberdade e, no seu interior, a pena de reclusão e a de detenção.
Verifica-se que todas as políticas de segurança pública empreendidas neste período
reforçam as condutas socialmente reprováveis de etiquetando seletivo dos sujeitos, em quem
recaiu a dura mão do Estado Policial.
Assim, verifica-se, pelas análises consubstanciadas na presente pesquisa, a
predominância e perpetuação dos discursos etiológicos, codificados para o senso comum, com
54
BATISTA, Nilo. Op. Cit.
55
Não se pode esquecer que um dos pressupostos que motivaram a pesquisa foi a média de 1/3 (um terço) de
presos provisórios no Brasil, cf. os relatórios Estatístisticos-Analíticos do Sistema Prisional pesquisados no ano
de 2008.
o intuito de digesto e “líquido” nos tempos de globalização, termos vagos e ideológicos, pois
têm o condão de perpetuar o status quo por meio domínio do poder político e de suas
instituições de controles formais e informais.
Neste fluxo do desenvolvimento, o poder de deturpação de conceitos e de afirmações
de preconceitos por estes mecanismos de controle social, fomenta e legitima a sedimentação
destas práticas de contenção e de extermínio, como solução para a violência rural, que reduz a
população à exclusão e impõe as prisões cautelares como o atual remédio de prevenção ao
crime, objetivando a baixa estatística da que se compreende como criminalidade e violência.
A criminalidade combatida é a criminalidade de rua, que atinge tão somente aos
mencionados etiquetados, selecionados por não terem na estrutura social o amparo nas esferas
de cidadania.
A estrutura social, rural e urbana está, em grande parte do mundo globalizado,
segmentada entre os bons e os ruins. Tal concepção maniqueísta da vida, não se restringe à
segurança pública e à definição do inimigo, ocorre em todos os estratos da vida em sociedade.
Desconsidera-se, por outro lado, que na sociedade globalizada, que possui a média
populacional de 6,5 milhões de pessoas56 que não há podium com 1ª colocação para todos os
seres, muitos, sequer, poderão se inscrever na “Competição de Acesso à Dignidade”, tantos
outros não sobreviverão para assistir ao final.
Desta forma, perpetua-se a visão de mundo bipolar, bem e o mal, sempre na esfera do
ponto de vista moral e dos bons costumes. Ocorre que esta lógica maniqueísta, que subtrai da
análise e do debate teórico-ideológico estrutural (micro e macrossociológico) de segurança
pública da construção dos conflitos penais, sustenta uma indústria57 muito rentável, mais
rentável até que a indústria das comunicações. Inclusive, os meios de comunicação passam a
ser veículos dentro deste conjunto de operações multimilionárias da economia neoliberal,
implementadas pela bandeira de solução à “segurança pública”.
O senso comum de criminologia (dominado pelo paradigma etiológico) afirma que
são necessários mais policiais nas ruas; os policiais afirmam ser necessário o aumento salarial;
o administrador público municipal diz que deve o Governo Federal municipalizar a segurança
e, assim, implementar as verbas destinadas a este fim, para pôr em prática a contenção dos
índices de criminalidade; o Administrador Penitenciário clama pela privatização do cárcere.

56
Cf. AZEVEDO, Carolina Gomma de (Brasil). ONU (Comp.). Relatório Mundial sobre Drogas 2008 do
UNODC.
57
A indústria do controle do crime cf. CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: o caminho dos
GULAGs em estilo ocidental. Trad. por Luis Leiria. São Paulo: Forense, 1998. 227 p.
Os presos do sistema penitenciário até onde se limitou a pesquisa sofriam de um
surto de afonia. As mães que tiveram seus filhos mortos pela “guerra de bandidos e
mocinhos” estavam velando os corpos.
No meio do caminho foram questionados os ébrios acadêmicos sobre o poder e a
segurança pública. Alguns não se atreveram, mas houve quem dissesse que o caminho não é
esse. Precisamos mudar o tom da prosa, a fim de não vermos as próximas gerações tendo
como único limite o cárcere.
Assim, subscreve-se a metáfora utilizada por Nilo Batista sobre a esquizofrenia que
prepondera no Sistema de Justiça Criminal, afirmando-se a utopia de construção de “um
outro Mundo possível”.
Os regimes de exceção deixaram não somente um rastro histórico de prisões em
massa, desaparecimentos, torturas e mortes. Seu aparato legal continua por aí, ainda vigente
em nossos Códigos e, o que é mais grave, no pensamento de muitos atores jurídicos que ainda
insistem em aplicá-los contra os mais pobres (desorganizados e organizados), aos primeiros,
como forma de controle e gestão da miséria de Democracias que ainda não solucionaram os
principais problemas do capitalismo.
E, aos segundos, - os mais pobres que ousam se organizar através de movimentos
reivindicatórios de direitos Constitucionalmente estabelecidos - o aparato legal repressivo é
acionado como poder simbólico, para que exemplarmente seja dado recado aos outros em
mesma situação econômica: não se organizem, nem participem da política, muito menos
expressem sua cidadania.

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