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POSES E FLAGRANTES: ESTUDOS SOBRE HISTÓRIA E

FOTOGRAFIAS

Área de Conhecimento: Ciências Humanas

História

Categoria: Coletânea de Ensaios

1
Sumário

Apresentação 3

Parte I 7
Capítulo 1 - Através da Imagem: fotografia e História interfaces 19
Capítulo 2 - História e Semiótica: sobre o conceito de intertextualidade
na análise de fontes de memória. 46
Capítulo 3 - Passado Composto: Fotografia e Memória 56

Parte II 65
Capítulo 4 - As fronteiras da cor: imagem e representação social na
sociedade escravista imperial 75
Capítulo 5 - Na mira do fotógrafo: o Rio de Janeiro e seus espaços
através das lentes de Gutierrez 93
Capítulo 6 - A Inscrição na cidade: paisagem urbana nas fotografias de
Marc Ferrez e Augusto Malta 114
Capítulo 7 - Imagens de passagem: Fotografia e os ritos da vida católica
da elite brasileira, 1850-1950. 127

Parte III 150


Capítulo 8 - Janelas que se abrem para o mundo: fotografia de
imprensa e distinção social no Rio de Janeiro, na primeira metade do
século XX. 157
Capítulo 9 - Flávio Damm, profissão fotógrafo de imprensa: o
fotojornalismo e a escrita da história contemporânea. 191
Capítulo 10 - Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem
(Brasil, 1941-42). 222
Capítulo 11 - O mundo como comunidade imaginada: Diversidade
cultural nas representações fotográficas de Flávio Damm e Sebastião
Salgado 264

Lista de Ilustrações 287


Bibliografia 289
Notas 294

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Apresentação.
“Em relação a muitas dessas fotos, era a História que me separava delas. A
História não é simplesmente esse tempo em que não éramos nascidos?”
(Barthes, R. A câmara clara, p.96-97).

Em relação às minhas próprias fotografias venho mantendo uma prática herdada

de minha avó: a coleção. Vovó Mariana as guardava num grande caixa de papelão,

misturada aos recortes de jornais, santinhos de primeira comunhão, relicários e muitos

outros retalhos de lembranças. Eu, de minha parte, desde o momento que me dei conta

que já havia criado uma descendência passei a organizá-las, cronologicamente, em

álbuns. Ao poucos as fotografias em papel estão sendo substituídas pelas imagens

digitais, mas ainda assim, preserva-se a narrativa temporal acrescida da legenda

temática designada para distinguir cada arquivo: férias no Chile, 2006; aniversário

Katharina, 2005.

Entretanto, a experiência de conviver com as muitas fotografias que a minha avó

guardava imprimiu em minha consciência uma dimensão de temporalidade, gravada em

rostos, objetos, lugares, situações, que já não mais se apresentavam. Não sei se por isso

resolvi fazer o curso de história, mas sei que foi por isso que tomei a coleção de

fotografias de minha avó como um dos objetos da minha pesquisa de doutorado.

Chegar àquilo que não foi revelado, imediatamente, pelo olhar fotográfico e,

como Alice diante de seus espelhos, ver através da imagem, foi o desafio que me propus

em relação às fotografias. Entretanto, diante de tal desafio, não podia me manter na

condição de colecionadora, protegida pelo universo da intimidade familiar. Havia de me

lançar à multiplicidade de fotografias, buscando decifrar seus usos e funções, mapear e

diferenciar suas formas de agenciamento e representação. Enfim, compreender a

experiência fotográfica como prática de produção de sentido social. Múltiplos sentidos,

no entanto, todos históricos.

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Relacionar a prática fotográfica a sua historicidade foi o caminho escolhido para

analisar a presença da fotografia na experiência histórica dos séculos XIX e XX. As

fotografias e suas histórias.

As reflexões reunidas neste trabalho foram feitas ao longo da minha prática de

pesquisa no Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, bem como pesquisadora do

CNPq, e na docência em Graduação e em Pós-Graduação, no curso de História.

O volume é composto por textos apresentados em simpósios e seminários,

escritos como forma de sistematizar a pesquisa de dados e ao mesmo tempo consolidar

uma reflexão teórico-metodológica, sobre um campo da historiografia que veio se

definindo juntamente com estas reflexões: a história da imagem ou ainda história visual

(Meneses, 2003). As relações entre História e Imagem, longe de definirem um campo

autônomo de estudos, coloca-se como um fórum para se debater a história social. Assim

busca-se dimensionar o estatuto epistemológico do social, pela valorização das

diferenciadas experiências que definem as práticas sociais, dentre essas a relação entre

ver e conhecer, ou ainda, ver e imaginar.

Animada pelos pedidos reiterados de alunos e colegas sobre trabalhos que

publiquei em periódicos esgotados, Anais de congressos de edição limitada, enfim,

textos de difícil aquisição pelo público, dediquei-me a organizar esta coletânea.

Entretanto, não me limitei a reproduzir as reflexões datadas, empenho-me aqui em

travar um diálogo de idéias entre tempos. A cartografia do volume se orienta por duas

temporalidades, a da minha própria trajetória como pesquisadora no campo de estudos

da história da imagem, e uma outra, delimitada pelos tempos da história, nos quais, a

prática fotográfica se inscreveu como objeto de estudo. Neste sentido, se distribuiu os

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textos por três partes, sendo que cada uma delas é introduzida por uma reflexão sobre a

problemática histórica na qual ela se inscreve:

A primeira parte concentra um conjunto de reflexões de caráter teórico-

metodológico, associadas à concepção da fotografia como fonte e objeto da história.

Nesta parte são apresentados os princípios da metodologia histórico-semiótica para a

análise da fotografia, desenvolvida em minha tese de doutorado. A ordenação

cronológica dos textos e os comentários a cada um servem de medida para se avaliar a

aplicabilidade de tal metodologia, suas contribuições para o campo de estudos e os seus

limites. As reflexões que acompanham esta parte buscaram ampliar o enquadramento

estritamente semiótico incluindo-se, as temáticas sobre narrativa, tempo e memória.

A segunda parte é composta por análises da fotografia na sociedade oitocentista.

Ressaltam-se nos trabalhos a dimensão da fotografia como prática de produção de

sentido social, bem como seus os usos e funções na sociedade imperial. Nesse sentido, a

produção fotográfica na cidade do Rio de Janeiro é objeto de estudos cuja abordagem

valoriza a centralidade do olhar como forma de representar a sociedade brasileira nos

Oitocentos. As experiências sociais tratadas são variadas como seus espaços e os

sujeitos históricos. O comentário sobre os trabalhos ordenados, cronologicamente,

serve de ponte para um diálogo com a historiografia.

Na terceira, e última parte, as questões mais recentes da pesquisa com fontes

orais e visuais orientam as reflexões apresentadas. São textos que se debruçam sobre a

relação entre mídia e história, tomando como objeto de estudo o fotojornalismo

brasileiro no século XX. Avalia-se o mercado editorial das publicações ilustradas, a

relação entre imprensa e cultura visual burguesa, bem como a narratividade da imagem

fotográfica na construção do acontecimento histórico. O texto que, acompanha essa

5
parte, oferece uma visão, em perspectiva, sobre a relação entre experiência fotográfica e

os sentidos da história contemporânea.

Por fim, a título de uma conclusão precária, buscou-se refletir sobre a

problemática da imagem fotográfica na sua relação com os tempos da história.

6
-I-

A primeira parte é composta por três textos voltados para a reflexão teórico-

metodológica sobre os usos das fontes visuais na história. Busquei incluir um exemplo

de cada uma das associações teóricas tecidas na construção de uma metodologia de

análise que articulasse a substância visual das fontes aos problemas historiográficos

levantados pela pesquisa.

O capítulo 1 apresenta a sistematização dos princípios metodológicos da análise

histórico-semiótica de fotografias. A metodologia havia sido desenvolvida ao longo do

meu doutorado (1986-1990) e até esse momento, sua apresentação ficava limitada à

introdução da tese. Aproveitei a oportunidade de escrever para o dossiê sobre

metodologia da revista Tempo de Departamento de História da UFF, para dar um corpo

a esses princípios metodológicos, acrescentando-lhe novas discussões. Dentre as quais,

aquela apresentada pelo filósofo francês Philipe Dubois, a respeito do realismo

fotográfico e a natureza fundadora do ato fotográfico.

A leitura de Dubois permitiu-me ampliar o escopo das reflexões deslocando para

dentro da mensagem fotográfica a natureza complexa do seu ato de fundação: a

fotografia registra, apresenta e representa, sendo ao mesmo tempo índice, ícone e

símbolo. A polissemia da mensagem visual ficava explicada pela natureza complexa da

sua criação, cujas possibilidades de interpretação estavam abertas à dimensão histórica

da sua recepção e apreensão.

O problema de ver e conhecer orientava o princípio da análise proposto. Dubois

entende a fotografia como uma operação racional que fornece sentido às experiências

sociais, mas que ao mesmo tempo, as dignificam e hierarquizam tornando-as

memoráveis. Não se fotografa qualquer coisa, a escolha do que será é fotografado segue

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alguns protocolos que são perpassados pelas experiências sociais compartilhadas,

apropriadas e ou ainda, expropriadas (se pensarmos em todas as formas de apagamento

das imagens). O ato fotográfico foi assim concebido, como experiência visual inscrita

nos tempos históricos, cujos ritmos diferenciados qualificavam a própria natureza da

imagem fotográfica.

Dentro desse contexto de análise valorizava-se o aspecto comunicativo da

imagem fotográfica foi concebida como mensagem. Tal procedimento engendrou alguns

desdobramentos teórico-metodológicos; dentre os quais se ressalta, os processos de

produção de sentido visual na sociedade contemporânea, com destaque para os

seguintes aspectos: o papel desempenhado pela tecnologia; a definição do circuito social

da produção de imagens técnicas, enfatizando historicidade dos regimes visuais; o papel

dos sujeitos sociais como mediadores da produção cultural, compreendendo que a

relação entre produtores e receptores de imagens se traduz numa negociação de sentidos

e significados; a capacidade narrativa das imagens técnicas, discutindo-se aí a dimensão

temporal das imagens, os elementos definidores de uma linguagem eminentemente

visual e por fim o diálogo estabelecido entre imagens técnicas e outros textos, tanto de

caráter verbal, como não verbal, a partir do princípio de intertextualidade.

Deste conjunto de desdobramentos podemos sintetizar os quatro aspectos ao

considerarmos as imagens fotográficas:

1. A questão da produção – o dispositivo que media a relação entre o sujeito que olha

e a imagem que elabora, através dessa atividade de olhar, (se dá) ocorre à manipulação

de um dispositivo de caráter tecnológico, que possui determinadas regras definidas

historicamente integrada às tecnologias da visão (Meneses, 2005).

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2. A questão da recepção – associada ao valor atribuído à imagem pela sociedade que

a produz, mas também recebe. Na medida em que este valor está mais ou menos

balizado pelos efeitos de realismo da imagem, vai apontar para a conformação histórica

de um certo regime de visualidade. Portanto, se a questão da relação da imagem com o

seu referente e o grau de iconicidade dessa imagem é uma questão estética, seu

julgamento (ou apropriação) tem a ver com as condições de recepção e como, através

dessa recepção, se atribui valor a imagem: informativo, artístico, íntimo, etc.

Problematiza-se aqui o domínio do visual (idem).

3. A questão do produto – entende-se aí, a imagem consubstanciada em matéria.

Ainda a capacidade de a imagem potencializar a matéria em si mesma, como

objetivação de trabalho humano, como resultado do processo de produção de sentido

social e como relação social. Compreendida como resultante de uma relação entre

sujeitos à imagem visual engendra uma capacidade narrativa que se processa numa

dada temporalidade. Estabelece, assim, um diálogo de sentidos com outras referências

culturais de caráter verbal e não verbal. As imagens nos contam histórias, atualizam

memórias, inventam vivências, imaginam a História. O campo que define a ordem do

visível (e do invisível).

4. A questão do agenciamento - relacionada ao processo social que envolve a

trajetória das imagens como artefatos, tais como coisas que são guardadas, distribuídas,

manuseadas, arquivadas e destruídas. A biografia das imagens, sua vida social importa,

pois implicam relações sociais diferenciadas. Uma fotografia tomada no Centro do Rio

dos anos 1950, cuja legenda refere-se à Copacabana, possui uma trajetória cujas

histórias revelam experiências sociais só reveladas pelo estudo das condições de seu

agenciamento, pelos guardiões da memória, pelos colecionadores, pelas instituições de

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guardas, enfim, pelos diferentes sujeitos sociais que operaram sobre essa imagem. Tal

dimensão supera em grande medida a compreensão da imagem fotográfica como texto

e a concebe materialização de uma prática social.

Vale considerar que se esses quatro aspectos visam orientar de forma ampla a

análise histórica de fotografias, a ênfase em um ou em outro variará de acordo com

problematização proposta para o desenvolvimento do estudo. Ainda assim, não é demais

ressaltar, seguindo a trilha aberta por Meneses (2003), que os estudos históricos, ao

tomarem a imagem visual como fonte, devem discutir seu estatuto epistemológico. Dito

de outra forma, a noção de fonte histórica há de ser problematizada a luz de uma crítica

que a considere como suporte de práticas sociais, superando a visão ingênua de que as

fontes contêm o passado, se revelado ao olhar do presente, por sua pura existência. Toda

a fonte histórica é resultado de uma operação histórica (Certeau, 1979), não fala por si

só é necessário que perguntas lhes sejam feitas. Tais questionamentos devem levar em

conta a sua natureza de artefato e de objeto da cultura material, associado a uma função

social e a sua trajetória pelos tempos.

Neste sentido, toda a fonte é também objeto de estudo na problematização do

passado, definindo-se também pelo problema proposto para a análise. Tal perspectiva,

longe de recuperar um empiricismo mecânico, busca dialogar com as questões

levantadas pela micro-história (Levi, 1992). Segundo essa abordagem, o contexto

histórico não deve ser concebido como pano de fundo de uma mise en scène política ou

cultural, completamente dissociada do problema proposto. Ao contrário a elaboração

dos quadros de historicidade, ou como propõe Levi das lógicas de racionalidade, devem

partir da materialidade das experiências sociais, dos seus indícios, vestígios, restos e

pistas. Os documentos, dentro desta perspectiva, devem urdir a trama da experiência

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passada, elucidando no presente sua alteridade. As imagens visuais, como documentos

/monumentos permitem-nos conhecer por ângulos poucos habituais, a urdidura das

relações sociais. No entanto, não basta olhar é fundamental estranhar.

O capítulo 2 aborda o estudo da relação entre palavras e imagens. Ta

preocupação inscreve-se no âmbito das pesquisas que vêm sendo realizadas ao longo da

minha participação como pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da

UFF. Criado em 1982, pela iniciativa das professoras Ismênia Lima Martins e Eulária

Lobo, o LABHOI foi um dos primeiros grupos de pesquisa a valorizar o uso de fontes

não tradicionais, a saber: fontes orais e visuais na pesquisa histórica. Desde 1994, com a

ampliação dos seus participantes, o grupo foi reafirmando a sua vocação precursora.

Do ponto de vista teórico o trabalho desenvolvido, pelo LABHOI, com fontes

visuais e orais associa pesquisa de dados, discussão conceptual e prática docente. Meu

trabalho dentro do grupo vem priorizando os estudos sobre a relação entre fontes

visuais, em especial a fotografia e as fontes orais, compreendidas como mediadores

privilegiados para o estudo das memórias sociais. O texto em questão consiste numa

primeira sistematização de um conjunto de conceitos para se operar na pesquisa com

suportes de natureza distinta.

A escolha da perspectiva semiótica para apoiar a análise histórica das chamadas

fontes de memória, implica na compreensão de que tais registros, longe de se

apresentarem prontos à análise histórica, são resultados do trabalho de pesquisa e da

orientação teórico-metodológica. Tal orientação implica que a construção do objeto de

estudo; a elaboração da problemática teórica; bem como o estatuto epistemológico das

fontes de memória são resultados de uma operação historiográfica (Certeau, 1979).

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Oriento-me, portanto, desde um lugar social, segundo certos protocolos aceitos

pela comunidade, na qual me reconheço como sujeito do conhecimento, a comunidade

de historiadores. Assim, o pertencimento a um grupo de pesquisa, o LABHOI, implica

também numa prática social fundamentada em princípios de investigação. Na linha das

fontes de memória, discute-se o estatuto da visualidade e da oralidade como fonte e

objeto da história, a relação entre memória e sociedade, o papel do sujeito na produção

social da memória e os usos sociais do passado. Desta forma, a amplia-se o ponto de

vista estritamente semiótico, sem, entretanto, abandoná-lo.

Vale ressaltar, assim, outros investimentos nos estudos da relação entre fontes

orais e visuais, dentre os quais, a capacidade narrativa de ambos os meios de expressão

e o reconhecimento da pluralidade do tempo histórico. Tempo e narrativa são conceitos

que se associam na problematização das fontes de memória.

Do ponto de vista das narrativas destaca-se a produção do documento oral. A

perspectiva das histórias de vida, em geral adotadas nos roteiros das entrevistas, implica

na definição de um fio condutor do ato de rememoração que coloca o sujeito como

elemento central da enunciação. No entanto, longe da individualidade e transparência do

indivíduo liberal, esse sujeito é sempre coletivo, pois como categoria histórica mantêm

uma relação de pertencimento (conflitiva ou não), como o grupo do qual provém.

Assim, os enunciados elaborados por esse sujeito no ato de rememoração são compostos

por tramas narrativas cujas lógicas cabe ao pesquisador investigar.

Tais lógicas são tributárias da forma como a categoria temporal é acionada. Em

geral, a cronologia dos acontecimentos e das experiências compartilhadas, domina a

forma como a narrativa é construída. Entretanto tal dimensão, apesar de ser a mais

evidente não é exclusiva, há que se considerar os lapsos, as interrupções, os

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esquecimentos, bem como as alusões, as digressões e associações a ritmos diferenciados

de passagem do tempo dentro da enunciação.

Em relação à narratividade da imagem visual, opera-se principalmente com a

noção de série, na qual o conjunto de imagens estabelece a lógica de representação do

objeto fotografado. Tal lógica segue um princípio temporal que é cronológico, mas não

exclusivamente, pois há de se considerar a capacidade evocativa da imagem e os usos

simbólicos aos quais pode servir. Assim, as múltiplas durações do tempo histórico são

consideradas. É o caso das fotorreportagens, dos álbuns de família, das coleções

autorais, ou ainda das seleções temáticas, nestes exemplos à narrativa visual é garantida

pela relação entre as imagens e das imagens com outros textos, inclusive de caráter

verbal.

Entretanto, recentemente, venho me aventurando a buscar a trama narrativa

inscrita em uma só imagem. Nesse caso, ao contrário do trabalho com as séries, a

dimensão temporal não é diacrônica, ou seja, não se movimento pelos eixos de longa,

média e curta duração (Braudel, 1978). A temporalidade inscrita em uma única foto é

resultado do ato fotográfico, portanto, ela é sincrônica. Reúnem-se no seu quadro, da

mesma forma que nas séries, níveis temporais diferenciados entrevistos pela forma

como os elementos da cena são combinados. Assim, sua condição histórica é referida

pelos objetos, figuração, vivências, temas fotografados e recursos técnicos adotados

para a produção da imagem fotográfica.

No entanto, sua trama temporal inclui também uma relação entre sujeitos – o

fotógrafo e o fotografado. No século XIX a negociação da pose evidenciava o estúdio

fotográfico, como espaço onde as disputas, pelos sentidos atribuídos às representações

sociais, eram travadas. O tempo da pose delimitava a inscrição na imagem de uma

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duração. No século XX, o imperativo do instante e a noção de flagrante transferiram o

tempo de duração da imagem da pose para a espera, concentrando no sujeito fotógrafo à

tarefa de capturar no fluxo temporal a imagem desejada (Lissovsky, 2003).

Neste sentido, a análise de uma única foto deve partir dos indícios, dos rastros

temporais deixados dentro do quadro, resultantes do ato fotográfico e partir para o fora

de quadro, rumo ao mundo no qual essa imagem se insere, como narrativa sintética.

Cabe, ainda, considerar como na produção do texto histórico as palavras e as

imagens adquirem força explicativa evitando seu uso acessório ou ilustrativo. Nesse

caso, o recurso às novas tecnologias da imagem torna-se uma possibilidade, mas ao

mesmo tempo, um desafio a quem está acostumado a trabalhar com o texto escrito.

Nesse âmbito, o LABHOI vem buscando desenvolver aquilo que denominamos

escrita vídeo-gráfica. Utilizando-se dos recursos de edição conjunta de fontes orais e

visuais, segundo um roteiro pré-estabelecido, se tem conseguido elaborar, em diálogo

estreito com o campo do documentário cinematográfico, narrativas nas quais o

cruzamento de palavras e imagem cria um texto historiográfico que incorpora a natureza

do documento nas diferentes formas de expressão (sonora, visual e escrita). Um

exercício que implica na efetivação de uma formação interdisciplinar para o profissional

de história.

O capítulo 3 debruça-se sobre o tema da memória que, no bojo do processo de

redemocratização da sociedade brasileira dos anos oitenta, entrou para a pauta de

discussões dos diferentes grupos organizados. Neste contexto, um amplo espectro de

movimentos sociais (negros, mulheres, homossexuais, sem-teto, sem-terra, entre

outros), partidos políticos, associações civis, etc., voltou-se para a organização de sua

memória. Multiplicaram-se casas, centros, institutos consubstanciando-se, ao longo

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desses últimos anos que se passaram, àquilo que Pierre Nora chamou de memória-

dever.

Preocupação que denotava claramente o papel desempenhado pela apropriação

do passado na construção das identidades sociais. Paralelamente refletia a salutar

emergência da consciência política, ao mesmo tempo em que organizava e conservava

indicadores empíricos, preciosos para o conhecimento de fenômenos relevantes e

merecedores de uma análise histórica mais detida. No entanto, é necessário ultrapassar

os limites do senso comum do qual a memória emerge e encontra sua inspiração

primeira, abrindo caminho para a avaliação crítica da história.

Neste sentido, o estudo da memória, através de seus diferentes sistemas,

suportes, agentes e da sua relação com os processos socioculturais vem integrando

trabalhos acadêmicos de procedências disciplinares variadas e ocupando um lugar

privilegiado nos debates das Ciências Humanas, notadamente nos espaços

interdisciplinares da História Oral e dos Estudos Culturais.

A crise dos espaços legítimos de representação, a mundialização da cultura, a

fragmentação dos sujeitos sociais são temas colocados na pauta da contemporaneidade,

devendo ser adensados a partir de uma reflexão profunda sobre a nação e seus

significados históricos. Sendo assim, o estudo da memória de grupos que tiveram um

papel significativo na elaboração dos quadros culturais de uma época é peça chave para

a compreensão das dimensões da história do tempo presente.

Quero aprofundar nesta reflexão, a problemática que associa a imagem,

notadamente a fotográfica, e a memória social, na sua dimensão pública, tendo em vista

que o tema do artigo associou-se a experiência de construção de memórias familiares.

Tal preocupação associa-se as minhas pesquisas recentes sobre a construção das

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memórias do mundo contemporâneo através do fotojornalismo e sua relação com o

regime de historicidade no qual vivemos.

Tendo em vista que, os grandes e não tão grandes fatos que marcaram a história

do século XX foram registrados pela câmera fotográfica de repórteres atentos ao calor

dos acontecimentos. Qual a natureza destes registros? Como fica a narrativa dos

acontecimentos elaborada pela linguagem fotográfica? Quais são as imagens que

compõem a memória social do século passado? É possível falar de uma história feita de

imagens? Qual o papel do fotógrafo como criador de uma narrativa visual? E da

imprensa como uma ponte entre os acontecimentos e sua interpretação? Na busca de

respostas a esse conjunto de questões é fundamental enveredar pela proliferação de

imagens técnicas que substituem a experiência pelo seu simulacro, inventando uma

memória compartilhada como quem implanta um “chip” na mente de um andróide – a

alusão ao filme Blade Runner é proposital.

Creio ser possível considerar que as fotografias produzidas pela imprensa sejam

suporte de uma memória coletiva que registra, retém e projeta no tempo histórico, uma

versão dos acontecimentos. Essa versão é construída por uma narrativa visual e verbal,

ou seja, intertextual, mas também, multitemporal: o tempo do acontecimento, o tempo

da sua transcrição pelo modo narrativo, o tempo da sua recepção no marco histórico da

sua publicação (medido pela permanência do tema na pauta das publicações), e o tempo

da apropriação historiográfica, ou seja, o momento quando a memória se torna objeto da

história.

Antes do ato de problematização do registro pelo viés da crítica histórica as

imagens fotográficas são registros visuais, expressões de um regime de visualidade,

suporte de relações sociais, mas não a memória dos acontecimentos em si mesma. A

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memória não é inerte, ela não se deposita nas coisas, é, ao contrário, resultado do

investimento das sociedades humanas em fazer lembrar, em evitar o esquecimento,

diferencia-se da história, operação racional e cognitiva, por ser da ordem da emoção, da

ação coletiva, do mito. De onde as fotografias conformam os quadros da memória social

que, acionados pelo trabalho de memória também servem para fazer lembrar.

Neste sentido, o conhecimento histórico produzido sobre o passado - categoria

sempre definida e reconstruída como objeto - tem, na própria produção de memórias,

uma de suas fontes e também um de seus objetos privilegiados. Por outro lado, a

imagem fotográfica como suporte de memórias sociais, relaciona-se ao campo de

estudos da história visual, segundo o qual, seria fundamental deslocar a atenção das

fontes visuais para o campo da visualidade como objeto detentor de elevado interesse

cognitivo (Meneses, 2003).

Dentro dessa perspectiva, alguns aspectos devem ser considerados ao se tratar da

problemática social da memória, seguindo as diretrizes da história visual, a saber: o

regime de visualidade, as imagens fotográficas e seus significados, e os fotógrafos que

atuam na esfera pública.

Neste sentido, ao se eleger o fotojornalismo como matéria fundamental de

estudo, elege-se também um sujeito histórico: o fotógrafo, que atua como mediador

cultural do processo comunicativo. A noção de mediação cultural tal como apresentada

por Raymond Willians (1979) e apropriada por diferentes pensadores latino-americanos

tais como: Martin-Barbero (1987) e Nestor Garcia Canclini (1989), permite que se

rompa com a ultrapassada teoria do reflexo e se desvende a intricada rede de influências

sociais que consubstanciam a produção cultural na sociedade capitalista. A idéia

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defendida por Willians propõe associar mediação ao próprio ato de conhecer e elaborar

expressões, no âmbito do ativo processo de produção de representações sociais.

As fotografias e suas histórias integram os quadros de rememoração desse grupo

profissional que atuou na imprensa, em diferentes momentos da História do século XX.

Suas memórias, aludindo à experiência fotográfica fundamento da sua trajetória social,

permitem que se amplie à capacidade cognitiva das imagens fotográficas, associando

visão, informação e imaginação. Desta forma as fotografias produzidas pelos fotógrafos

no calor dos acontecimentos, servem não só para lembrar, mas também para visualizar e

imaginar a própria história.

Os três textos foram escritos em momentos diferentes, mas convergem para uma

discussão comum, a da valorização de uma metodologia pertinente aos trabalhos de

pesquisa com fontes visuais e orais.

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Capítulo 1.

Através da Imagem: fotografia e História interfaces.

Qual é a relação entre história e fotografia? Será a história puramente a duração e

a fotografia seu registro? Existem dois caminhos para operar sobre tal relação. O

primeiro é tomar a direção de uma história da fotografia que, mais recentemente, além

de inventariar os processos de evolução da técnica fotográfica, busca dimensionar sua

inserção social naquilo que se convencionou chamar de circuito social da fotografia1. Já

a segunda alternativa busca compreender o lugar da fotografia na história. É justamente

nela que nos inserimos.

Esta reflexão pretende discutir o uso da fotografia na composição do

conhecimento histórico, dividindo-se em dois momentos. Inicialmente, o objetivo

fundamental é apresentar as principais questões teóricas que envolvem a compreensão

histórica da fotografia, sua relação com a experiência vivida e com o conhecimento

constituído pelas diferentes áreas das ciências humanas. A idéia central, nesta parte, é

apresentar a fotografia como uma mensagem que se elabora através do tempo, tanto

como imagem/ monumento quanto como imagem /documento (Le Goff, 1985), tanto

como testemunho direto quanto como testemunho indireto do passado (Bloch, s/d,

2001).

No segundo momento, procede-se à exposição de uma metodologia histórico-

semiótica para análise da imagem fotográfica, elaborada com base nas reflexões

propostas anteriormente. Trata-se de um texto eminentemente metodológico, no qual se

buscou sistematizar as etapas de um método aperfeiçoado, na medida em que vem sendo

aplicado em diferentes tipos de fotografias.

A ilusão da realidade.

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A fotografia surgiu na década de 1830 como resultado da feliz conjugação do

engenho, da técnica e da oportunidade. Niépce e Daguerre - dois nomes que se ligaram

por interesses comuns, mas com objetivos diversos - são exemplos claros desta união.

Enquanto o primeiro preocupava-se com os meios técnicos de fixar a imagem num

suporte concreto, resultado das pesquisas ligadas à litogravura, o segundo almejava o

controle que a ilusão da imagem poderia oferecer em termos de entretenimento (afinal

de contas, ele era um homem do ramo das diversões). É bem verdade que no século XIX

a distinção entre técnica e magia não era tão clara quanto hoje, como bem ilustra o

nome de uma das primeiras lojas de venda de material para eletricidade no Rio de

Janeiro: “Ao Grande Mágico”.

Desde então e ao longo de sua história, a fotografia foi marcada por polêmicas

ligadas aos seus usos e funções. Ainda no século XIX, sua difusão provocou uma

grande comoção no meio artístico, marcadamente naturalista que via o papel da arte,

eclipsado pela presença da fotografia, cuja plena capacidade de reproduzir o real,

através de uma qualidade técnica irrepreensível, deixava em segundo plano qualquer

tipo de pintura.

O caráter de prova irrefutável do que realmente aconteceu, atribuído à imagem

fotográfica pelo pensamento da época, transformou-a num duplo da realidade, num

espelho, cuja magia estava em perenizar a imagem que refletia. Para muitos artistas e

intelectuais, dentre eles o poeta francês Baudelaire, a fotografia libertou a arte da

necessidade de ser uma cópia fiel do real, garantindo para ela um novo espaço de

criatividade. Baudelaire expõe, nesta passagem de seu artigo ‘O público moderno e a

fotografia’, qual era, para ele, o verdadeiro lugar da fotografia dentre as formas de

expressão visual de meados do século XIX:

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“Se é permitido à fotografia completar a arte em algumas de suas funções, cedo a

terá suplantado ou simplesmente corrompido, graças à aliança natural que achará na

estupidez da multidão. É necessário que se encaminhe pelo seu verdadeiro dever, que é

ser a serva das ciências e das artes, mas a mais humilde das servas (...). Que ela

enriqueça rapidamente o álbum do viajante e dê aos olhos a precisão que faltaria à sua

memória, que orne a biblioteca do naturalista, exagere os animais microscópicos,

fortifique mesmo alguns ensinamentos e hipóteses do astrônomo; que seja enfim a

secretária e bloco de notas de alguém que na sua profissão tem necessidade duma

absoluta exatidão material. Que salve do esquecimento as ruínas pendentes, os livros as

estampas e os manuscritos que o tempo devora, preciosas coisas cuja forma

desaparecerá e exigem um lugar nos arquivos de nossa memória; será gratificada e

aplaudida. Mas se lhe é permitido por o pé no domínio do impalpável e do imaginário,

em tudo o que tem valor apenas porque o homem lhe acrescenta a sua alma, mal de nós”

(Apud. Dubois, 1992, p.23)

Baudelaire enfatiza a separação arte/ fotografia, concedendo a primeira um lugar

na imaginação criativa e na sensibilidade humana, própria à essência da alma, enquanto

à segunda, é reservado o papel de instrumento de uma memória documental da

realidade, concebida em toda a sua amplitude.

Mas será a fotografia uma cópia fiel do mundo e de seus acontecimentos como

queriam os positivistas dos Oitocentos? Por muito tempo esta marca inseparável de

realidade foi atribuída à imagem fotográfica, sendo seu uso ampliado ao campo das

mais diferentes ciências. Desde a entomologia até os estudos das características físicas

de criminosos, a fotografia foi utilizada como prova infalsificável. No plano do controle

social a imagem fotográfica foi associada à identificação, passando a figurar, desde o

21
início do século XX, em identidades, passaportes e os mais diferentes tipos de carteiras

de reconhecimento social. No âmbito privado, através do retrato de família, a fotografia

também serviu de prova. O atestado de um certo modo de vida e de uma riqueza

perfeitamente representada através de objetos, poses e olhares.

No entanto, entre o sujeito que olha e a imagem que elabora há muito mais que os

olhos podem ver. A fotografia - para além de sua gênese automática ultrapassando a

idéia de analogon da realidade - é uma elaboração do vivido, o resultado de um ato de

investimento de sentido, ou ainda uma leitura do real realizada mediante o recurso a

uma série de regras que envolvem, inclusive, o controle de um determinado saber de

ordem técnica.

Fotografia, história e conhecimento.

A história da fotografia confunde-se com as diferentes abordagens que, em

diversos momentos do pensamento ocidental, aplicou-se à imagem fotográfica. A idéia

de que o que está impresso na fotografia é a realidade pura e simples já foi criticada por

diferentes campos do conhecimento, desde a teoria da percepção até a semiologia pós-

estruturalista (Dubois, 1992, cap. 1). A própria crítica à essência mimética da imagem

fotográfica já envolve um exercício de interpretação desta imagem, datado e, por

conseguinte, historicamente determinado. Percebendo tais injunções, o filósofo francês

Philipe Dubois, apresenta dois momentos desta crítica:

1. A fotografia como transformação do real (o discurso do código e da desconstrução)

2. A fotografia como o vestígio de um real (o discurso do índice e da referência).

A primeira postura, predominante no século XX, compreende três setores do

saber:

22
* Estudos relativos à teoria da percepção, representados pelos escritos de Rudolf

Arnhein em seu livro Filme como arte. O ponto de partida das considerações de

Arnhein é a desnaturalização da representação fotográfica, estabelecendo uma

comparação entre a imagem fotográfica e o objeto concreto. A fotografia é

bidimensional, plana, com cores que em nada reproduzem a realidade (quando não é em

preto e branco). Ela isola um determinado ponto no tempo e no espaço, acarretando a

perda da dimensão processual do tempo vivido. É puramente visual, excluindo outras

formas sensoriais, tais como o olfato e o tato. Enfim, a imagem fotográfica não guarda

nenhuma característica própria à realidade das coisas. Vale lembrar que, uma

desconstrução como a do realismo fotográfico, detém-se, exclusivamente, sobre os

efeitos que os recursos da técnica fotográfica exercem sobre a percepção, não

considerando os aspectos de conteúdo da mensagem fotográfica.

* A vaga estruturalista da década de 60 esforçou-se em denunciar os efeitos

ideológicos produzidos pela imagem fotográfica, tanto pela expressão estética embutida

neste tipo de imagem, quanto pelo seu conteúdo. Do ponto de vista da estética da

imagem fotográfica, Hubert Damisch e Pierre Bourdieu, ambos escrevendo entre 1963 e

1965, denunciam o débito da fotografia à noção de espaço perspectivo, própria ao

pensamento renascentista e fortemente marcada por uma determinada visão de

representar o mundo. Para esses autores, a fotografia é baseada em convenções

socialmente aceitas como válidas e, sendo assim, constitui um importante instrumento

de análise e interpretação do real. Dando continuidade às criticas da década de 60, a

revista Cahiers du Cinema, na década de 70, investe na denúncia do caráter ideológico

das fotografias de imprensa. Num artigo histórico - ‘Le Pendule’, datado de 1976 -,

Alain Bergala aborda as fotografias históricas, denunciando aquilo que chamou de “à

23
parte ‘encenada’ das imagens que marcaram a história”. Para este autor, tal encenação

seria garantida pelos modos de integração do fotógrafo na ação, pelo efeito de paragem

da imagem, pelo papel da grande angular, etc., elementos que, conjugados ao texto

impresso, produziriam uma determinada versão dos fatos históricos que, pelo realismo

fotográfico garantiriam o estatuto de verdade anunciado.

* A terceira e última postura ligada à concepção da fotografia como a

transformação do real remete a uma postura antropológica, cuja principal preocupação é

apontar que o significado da mensagem fotográfica é convencionalizado culturalmente.

Neste sentido, a recepção da fotografia e sua compreensão pressupõem uma certa

aprendizagem, ligada à interação dos códigos de leitura próprios à imagem fotográfica.

O grande problema deste primeiro momento da crítica à imagem fotográfica

apontado por Dubois é desconsiderar a realidade empírica que fundamenta os discursos

imagéticos, operando, exclusivamente, sobre eles. Neste sentido, não haveria realidade

fora dos discursos que a revelam.

Já a segunda postura crítica em relação ao realismo fotográfico ultrapassa os

processos de desconstrução discursiva, retomando, em outro nível, a questão do

referente, ou ainda da materialidade da imagem fotográfica. O ponto de partida é

compreender a natureza técnica do ato fotográfico, a sua característica de marca

luminosa, daí a idéia de indício, de resíduo da realidade sensível impressa na imagem

fotográfica. Em virtude deste princípio, a fotografia é considerada como testemunho:

atesta a existência de uma realidade. Como corolário deste momento de inscrição do

mundo na superfície sensível, seguem-se as convenções e opções culturais

historicamente realizadas.

24
Portanto, o segundo passo é compreender que entre o objeto e a sua representação

fotográfica interpõe-se uma série de ações convencionalizadas, tanto cultural como

historicamente. Afinal de contas, existe uma diferença bastante significativa entre uma

carte-de-visite e um instantâneo fotográfico de hoje. Por fim, há que se considerar a

fotografia como uma determinada escolha realizada num conjunto de escolhas

possíveis, guardando esta atitude uma relação estreita entre a visão de mundo daquele

que aperta o botão e faz ‘clic’.

É, justamente, por considerar todos esses aspectos, que as fotografias nos

impressionam, nos comovem, nos incomodam, enfim imprimem em nosso espírito

sentimentos diferentes. Quotidianamente, consumimos imagens fotográficas em jornais

e revistas que, com o seu poder de comunicação, tornam-se emblemas de

acontecimentos, como aquela já famosa foto do bombeiro carregando o corpo inerte de

uma criança no atentado do edifício em Oklahoma, em abril de 1995. A simples menção

da foto já nos remete aos fatos e aos seus resultados.

Por outro lado, também faz parte da nossa prática de vida fotografar nossos filhos,

nossos momentos importantes e os não tão significativos. Um elenco de temas que vai

desde os rituais de passagem até os fragmentos do dia-a-dia no crescimento das

crianças. Apreciamos fotografias, as colecionamos, organizamos álbuns fotográficos,

onde narrativas engendram memórias. Em ambos os casos é a marca da existência das

pessoas conhecidas e dos fatos ocorridos, que salta aos olhos e nos faz indicar na foto

recém-chegada da revelação: “Olha só como ele cresceu!”.

Desde a sua descoberta até os dias de hoje a fotografia vem acompanhando o

mundo contemporâneo e registrando sua história numa linguagem de imagens. Uma

história múltipla; constituída por grandes e pequenos eventos, personalidades mundiais

25
e gente anônima, lugares distantes e exóticos e intimidade doméstica, sensibilidades

coletivas e ideologias oficiais. No entanto, a fotografia lança ao historiador um desafio:

como chegar ao que não foi imediatamente revelado pelo olhar fotográfico? Como

ultrapassar a superfície da mensagem fotográfica e, do mesmo modo que Alice nos

espelhos, ver através da imagem?

História e iconografia, problemas e soluções.

Não é de hoje que a história proclamou sua independência dos textos escritos. A

necessidade dos historiadores em problematizar temas pouco trabalhados pela

historiografia tradicional levou-os a ampliar seu universo de fontes, bem como a

desenvolver abordagens pouco convencionais, à medida que se aproximava das demais

ciências sociais em busca de uma história total. Novos temas passaram a fazer parte do

elenco de objetos do historiador, dentre eles a vida privada, o quotidiano, as relações

interpessoais, etc. Uma micro-história que, para ser narrada, não necessita perder a

dimensão macro, dimensão social, totalizadora das relações sociais. Neste contexto uma

história social da família, da criança, do casamento, da morte etc. passou a ser contada,

demandando, para tanto, muito mais informações que os inventários, testamentos,

curatela de menores, enfim, tudo o que uma documentação cartorial poderia oferecer. A

tradição oral, os diários íntimos, a iconografia e a literatura apresentaram-se como

fontes históricas da excelência das anteriores, mas que demandavam do historiador uma

habilidade de interpretação com a qual não estava aparelhado. Tornava-se

imprescindível que as antigas fronteiras e os limites tradicionais fossem superados.

Exigiu-se do historiador que ele fosse também antropólogo, sociólogo, semiólogo e um

excelente detetive, para aprender a relativizar, desvendar redes sociais, compreender

26
linguagens, decodificar sistemas de signos e decifrar vestígios, sem perder, jamais, a

visão do conjunto.

Michel Vovelle, na primeira parte de Ideologias e mentalidades, discute a relação

entre iconografia e história das mentalidades, destacando a sua utilização por parte dos

historiadores da Idade Média que - ao analisarem ex-votos, altares, estátuas etc. -

buscaram traçar tanto uma geografia do sagrado como o perfil das sensibilidades

coletivas no passado. Os problemas levantados por Vovelle (1987) convergem para uma

única questão: "Pode-se, efetivamente, elaborar uma verdadeira semiologia da

imagem?” (p.93).

A esta pergunta o coro de respostas não é unívoco, muito menos consensual, e

englobam propostas das mais diversas, que incluem o estudo do mito, o trabalho

lingüístico, uma abordagem filosófica, a avaliação estética, a discussão sobre o tipo de

mensagem que as iconografias transmitem, segundo a abordagem da comunicação,

métodos quantitativos etc.

Neste âmbito, como no anterior, a diversidade converge para um ponto único: a

questão da grade interpretativa. Que unidades comporiam a grade de interpretação das

imagens do passado? Mais uma vez, tal como no jogo infantil de encaixe, ao tirarmos

uma caixa encontramos outra. Cabe, portanto, as perguntas: como interpretar as imagens

produzidas no passado? Qual a natureza da produção visual? Esta produção é invariável

ou possui condicionantes históricos? Será a imagem das pinturas, dos desenhos, da

estatuária sagrada, dos vitrais das capelas medievais, da mesma natureza que as imagens

técnicas, a exemplo das do cinema e da fotografia? Questões e mais questões que

complicam e enriquecem o trabalho do historiador dedicado à análise de fontes não-

27
verbais. Desta forma, como bem aponta Michel Vovelle, "as interrogações que hoje se

colocam são antes uma prova de saúde do que de enfermidade” (Idem, p. 102).

Fotografia e história: apontamentos para uma abordagem transdiciplinar.

No que diz respeito à fotografia, alguns problemas merecem atenção especial.

Problemas que envolvem tanto a natureza técnica da imagem fotográfica como o

próprio ato de fotografar, apreciar e consumir fotografias, entendendo-se este processo

como o circuito social da fotografia. Deve-se acrescentar ainda, é claro, o problema

relativo à análise do conteúdo da mensagem fotográfica que envolve questões

específicas aos elementos constitutivos desta mensagem: existe a possibilidade de

segmentar o contínuo da imagem? Caso afirmativo qual a natureza das unidades

significantes que estruturam a mensagem fotográfica? Entendendo-se a fotografia como

mensagem, quais os níveis que a individualizariam?

Para tentar solucionar este feixe de problemas há que se assumir uma proposta

transdisciplinar. A aproximação da História da Antropologia e da Sociologia é bastante

profícua. Em relação à Antropologia destacam-se algumas importantes contribuições,

tais como: a abordagem antropológica do conceito de cultura; o estudo da dimensão

simbólica das diversas práticas quotidianas; a análise da extensão ideal das práticas

materiais, etc.

Tais preocupações, associadas a uma perspectiva sociológica que distingue, entre

outros aspectos, a importância em considerar a dimensão de classe da produção

simbólica, bem como o papel da ideologia, na composição de mensagens socialmente

significativas, e da hegemonia como processo de disputa social que se estende à

produção da imagem. Não se deve descartar também o fato de que a avaliação das redes

28
sociais da fotografia envolve uma abordagem em que produtores e consumidores da

imagem fotográfica possuem um "locus" social definidos.

Tudo isso, aliado a necessidade de se analisar o conteúdo da mensagem fotográfica

que demanda, por sua vez, conceitos de disciplinas, cujo diálogo não se faz com a

freqüência das acima indicadas, compondo, assim, metodologias coordenadas, tais

como uma abordagem histórico-semiótica da fotografia.

Nessa perspectiva, a fotografia é interpretada como resultado de um trabalho social

de produção de sentido, pautado sobre códigos convencionalizados culturalmente. É

uma mensagem, que se processa através do tempo, cujas unidades constituintes são

culturais, mas assumem funções sígnicas diferenciadas, de acordo tanto com o contexto

no qual a mensagem é veiculada, quanto com o local que ocupam no interior da própria

mensagem (Mauad, 1990). Estabelecem-se, assim, não apenas uma relação

sintagmática, na medida em que veicula um significado organizado, segundo as regras

da produção de sentido nas linguagens não-verbais, mas também uma relação

paradigmática, pois a representação final é sempre uma escolha realizada num conjunto

de escolhas possíveis.

Portanto, ao redimensionar o papel da interpretação dos conceitos, conjugando uma

série de disciplinas na elaboração da análise, a abordagem das mensagens visuais é

transdisciplinar. Nesse sentido, se é a associação da História à Antropologia ou à

Sociologia (ou às duas juntas) que indaga sobre as maneiras de ser e agir no passado, é a

Semiótica que oferece mecanismos para o desenvolvimento da análise. É ela que

permite que se compreenda a produção de sentido, nas sociedades humanas, como uma

totalidade, para além da fragmentação habitual que a prática científica imprime.

29
Desta forma, para a análise das ideologias, mentalidades ou práticas culturais, a

utilização de fontes não-verbais deve ter em pauta o imperativo metodológico, sugerido

pelo historiador americano Robert Darnton: "Ao invés de confiar na intuição numa

tentativa de invocar um vago clima de opinião, seria o caso de tomar pelo menos uma

disciplina sólida dentro das ciências sociais e utilizá-la para relacionar a experiência

mental com as realidades sociais e econômicas" (Darton, 1990, p.254).

Fotografia como fonte histórica: leitura e interpretação.

A fotografia é uma fonte histórica que demanda por parte do historiador um novo

tipo de crítica. O testemunho é válido, não importando se o registro fotográfico foi feito

para documentar um fato ou representar um estilo de vida. No entanto, parafraseando

Jacques Le Goff, há que se considerar a fotografia, simultaneamente como imagem/

documento e como imagem/ monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia

como índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas,

lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado; - condições de vida,

moda, infra-estrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc. No segundo caso, a

fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única

imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é

monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de

mundo.

Tal perspectiva remete ao circuito social da fotografia (Fabris, 1992, cap. 1) nos

diferentes períodos de sua história, incluindo-se, nesta categoria, todo o processo de

produção, circulação e consumo das imagens fotográficas. Só assim será possível

restabelecer as condições de emissão e recepção da mensagem fotográfica, bem como as

30
tensões sociais que envolveram a sua elaboração. Desta maneira, texto e contexto

estarão contemplados.

Os textos visuais, inclusive a fotografia, são resultado de um jogo de expressão e

conteúdo, que envolvem, necessariamente, três componentes: o autor, o texto

propriamente dito e um leitor (Vilches, 1992). Cada um destes três elementos integra o

resultado final, à medida que todo o produto cultural envolve um locus de produção e

um produtor, que manipula técnicas e detém saberes específicos à sua atividade, um

leitor ou destinatário, concebido como um sujeito transindividual cujas respostas estão

diretamente ligadas às programações sociais de comportamento do contexto histórico no

qual se insere, e por fim um significado aceitado socialmente como válido, resultante do

trabalho de investimento de sentido.

No caso da fotografia, é evidente o papel de autor imputado ao fotógrafo. Porém,

há que se concebê-lo como uma categoria social, quer seja profissional autônomo,

fotógrafo de imprensa, fotógrafo oficial ou um mero amador “batedor de chapas”. O

grau de controle da técnica e das estéticas fotográficas variará na mesma proporção dos

objetivos estabelecidos para a imagem final. Ainda assim, o controle de uma câmara

fotográfica impõe uma competência mínima, por parte do autor, ligada

fundamentalmente à manipulação de códigos convencionalizados social e

historicamente para a produção de uma imagem possível de ser compreendida. No

século XIX, este controle ficava restrito a um grupo seleto de fotógrafos profissionais

que manipulava aparelhos pesados e tinha de produzir o seu próprio material de

trabalho, inclusive a sensibilização de chapas de vidro. Com o desenvolvimento das

indústrias ótica e química, ainda no final dos Oitocentos, ocorreu uma estandardização

dos produtos fotográficos e uma compactação das câmaras, possibilitando uma

31
ampliação do número de profissionais e usuários da fotografia. No início do século XX,

já era possível contar com as indústrias Kodak e a máxima da fotografia amadora: “You

press the botton, we do the rest”.

É importante levar em conta também que o controle dos meios técnicos de

produção cultural envolve tanto aquele que detém o meio quanto o grupo ao qual ele

serve, caso seja um fotógrafo profissional. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que

o controle dos meios técnicos de produção cultural, até por volta da década de 50, foi

privilégio da classe dominante ou frações desta.

Paralelamente ao processo de desenvolvimento tecnológico, o campo fotográfico

foi sendo constituído a partir do estabelecimento de uma estética que incluía desde

profissionais do retrato em busca da feição mais harmoniosa para seu cliente e o

paisagista que buscava a nitidez da imagem e a amplitude de planos, até o fotógrafo

amador-artista, geralmente ligado às associações fotoclubísticas, que defendia a

fotografia como expressão artística, baseada nos mesmos cânones que a pintura (por

isso, não poupava a imagem fotográfica de uma intervenção direta, tanto através do uso

de filtros, quanto do retoque, entre outras técnicas). Técnica e estética eram

competência do autor.

À competência do autor corresponde a do leitor, cuja exigência mínima é saber

que uma fotografia é uma fotografia, ou seja, o suporte material de uma imagem. Na

verdade é a competência de quem olha que fornece significados à imagem. Essa

compreensão se dá a partir de regras culturais, que fornecem a garantia de que a leitura

da imagem não se limite a um sujeito individual, mas que acima de tudo seja coletiva. A

idéia de competência do leitor pressupõe que este mesmo leitor, na qualidade de

destinatário da mensagem fotográfica, detenha uma série de saberes que envolvem

32
outros textos sociais. A compreensão da imagem fotográfica, pelo leitor/ destinatário,

dá-se em dois níveis, a saber:

* Nível interno à superfície do texto visual, originado a partir das estruturas

espaciais que constituem tal texto, de caráter não-verbal;

* Nível externo à superfície do texto visual, originado a partir de aproximações e

inferências com outros textos da mesma época, inclusive de natureza verbal. Neste

nível, podem-se descobrir temas conhecidos e inferir informações implícitas.

É importante destacar que a compreensão de textos visuais é tanto um ato

conceitual (os níveis externo e interno encontram-se necessariamente em

correspondência no processo de conhecimento) quanto um ato fundado numa

pragmática, que pressupõe a aplicação regras culturalmente aceitas como válidas e

convencionalizadas na dinâmica social. Percepção e interpretação são faces de um

mesmo processo: o da educação do olhar. Existem regras de leitura dos textos visuais

que são compartilhadas pela comunidade de leitores. Tais regras não são geradas

espontaneamente; na verdade, resultam de uma disputa pelo significado adequado às

representações culturais. Sendo assim, sua aplicação por parte dos leitores /destinatários

envolve, também, a situação de recepção dos textos visuais. Tal situação varia

historicamente, desde o veículo que suporta a imagem até a sua circulação e consumo,

passando pelo controle dos meios técnicos de produção cultural, exercidos por

diferentes grupos que se enfrentam na dinâmica social. Portanto, se a cultura comunica,

a ideologia estrutura a comunicação e a hegemonia social faz com que a imagem da

classe dominante predomine, erigindo-se como modelo para as demais.

No caso da fotografia, os veículos incluem desde os tradicionais álbuns de retrato

até os bytes de uma imagem digitalizada, podendo a circulação limitar-se ao ambiente

33
familiar ou ampliar seus caminhos navegando pela Internet. Já a situação de consumo é

direcionada para um destinatário, seja ele um apaixonado que guarda o retrato de sua

amada como uma relíquia, seja um banco de memória que armazenará a imagem

fotográfica, até que alguém acesse a informação e assuma o papel de leitor/ destinatário.

Na qualidade de texto, que pressupõe competências para sua produção e leitura, a

fotografia deve ser concebida como uma mensagem que se organiza a partir de dois

segmentos: expressão e conteúdo. O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, tais

como enquadramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor etc. Já o segundo

é determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que compõem a

fotografia. Ambos os segmentos se correspondem no processo contínuo de produção de

sentido na fotografia, sendo possível separá-los para fins de análise, mas compreendê-

los somente como um todo integrado.

Historicamente, a fotografia compõe, juntamente com outros tipos de texto de

caráter verbal e não-verbal, a textualidade de uma determinada época. Tal idéia implica

a noção de intertextualidade para a compreensão ampla das maneiras de ser e agir de um

determinado contexto histórico: à medida que os textos históricos não são autônomos,

necessitam de outros para sua interpretação. Da mesma forma, a fotografia - para ser

utilizada como fonte histórica, ultrapassando seu mero aspecto ilustrativo - deve compor

uma série extensa e homogênea no sentido de dar conta das semelhanças e diferenças

próprias ao conjunto de imagens que se escolheu analisar. Nesse sentido o corpus

fotográfico pode ser organizado em função de um tema, tais como a morte, a criança, o

casamento etc., ou em função das diferentes agências de produção da imagem que

competem nos processos de produção de sentido social, entre as quais a família, o

Estado, a imprensa e a publicidade. Em ambos os casos, a análise histórica da

34
mensagem fotográfica tem na noção de espaço a sua chave de leitura, posto que a

própria fotografia é um recorte espacial que contém outros espaços que a determinam e

estruturam, como, por exemplo, o espaço geográfico, o espaço dos objetos (interiores,

exteriores e pessoais), o espaço da figuração e o espaço das vivências, comportamentos

e representações sociais.

Do ponto de vista temporal, a imagem fotográfica permite a presentificação do

passado, como uma mensagem que se processa através do tempo, colocando, por

conseguinte, um novo problema ao historiador que, além de lidar com as competências

acima referidas, deve lidar com a sua própria competência, na situação de um leitor de

imagens do passado. Retomamos, neste ponto, a pergunta anterior: como olhar através

das imagens? Por tudo que já foi dito, considerando-se a fotografia como uma fonte

histórica que demanda um novo tipo de crítica, uma nova postura teórica de caráter

transdisciplinar, algumas pistas para responder tal questão já foram dadas. Resta, no

entanto, indicar, nesta cadeia de temporalidades, qual o locus interpretativo do

historiador.

Já foi dito que as imagens são históricas, que dependem das variáveis técnicas e

estéticas do contexto histórico que as produziram e das diferentes visões de mundo que

concorrem no jogo das relações sociais. Nesse sentido, as fotografias guardam, na sua

superfície sensível, a marca indefectível do passado que as produziu e consumiu. Um

dia, já foi memória presente, próxima àqueles que as possuíam, as guardavam e

colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No processo de constante vir

a ser recuperam o seu caráter de presença, num novo lugar, num outro contexto e com

uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador entra em

contato com este presente/ passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele

35
dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio à problemática ser estudada. Aí

reside a competência daquele que analisa imagens do passado: no problema proposto e

na construção do objeto de estudo. A imagem não fala por si só; é necessário que as

perguntas sejam feitas.

Olhando através da imagem.

Todas estas reflexões inspiraram à elaboração de uma abordagem histórico-

semiótica que, sem a pretensão de ser definitiva, vem sendo aplicada, com sucesso, em

diferentes tipos de fotografias.

As imagens fotográficas foram utilizadas como a principal fonte histórica em

diversas situações: fotografias da guerra de Canudos, produzidas e organizadas pelo

Exército, em um álbum representativo da memória da vitória e de uma certa versão de

história; as imagens fotográficas das revistas ilustradas de crítica de costumes da

primeira metade do século XX, avaliando o tipo de educação do olhar que elas

imprimiam em seus leitores; a construção do outro nas fotografias de escravos; os

álbuns de família dos séculos XIX e XX, permitindo penetrar na privacidade da

memória através dos retalhos do cotidiano nele contidos; as fotografias oficiais, que

permitem a construção da representação simbólica do poder político. Em todos estes

estudos, foi utilizada uma metodologia histórico-semiótica na análise de imagens

fotográficas, cujos princípios básicos compõem a exposição que se segue.

A fotografia deve ser considerada como produto cultural, fruto de trabalho social

de produção sígnica. Neste sentido, toda a produção da mensagem fotográfica está

associada aos meios técnicos de produção cultural. Dentro desta perspectiva, a

fotografia pode, por um lado, contribuir para a veiculação de novos comportamentos e

36
representações da classe que possui o controle de tais meios, e por outro, atuar como

eficiente meio de controle social, através da educação do olhar.

Partindo-se desta premissa, a fotografia não é apenas documento, mas também,

monumento e, como toda a fonte histórica, deve passar pelos trâmites das críticas

externa e interna para, depois, ser organizada em séries fotográficas, obedecendo a uma

certa cronologia. Tais séries devem ser extensas, capazes de dar conta de um universo

significativo de imagens, e homogêneas, posto que numa mesma série fotográfica há

que se observar um critério de seleção, evitando-se misturar diferentes tipos de

fotografia (por exemplo, pode-se trabalhar com álbuns de família e revistas ilustradas

para recuperar os códigos de representações sociais e programações de comportamento

de uma certa classe social, num dado período histórico; no entanto, cada tipo de

fotografia compõe uma série que deve ser trabalhada separadamente). Feito isso, parte-

se para a análise do material.

O primeiro passo é entender que, numa dada sociedade, coexistem e se articulam

múltiplos códigos e níveis de codificação, que fornecem significado ao universo cultural

dessa mesma sociedade. Os códigos são elaborados na prática social e não devem ser

considerados como entidades ahistóricas.

O segundo passo é conceber a fotografia como resultado de um processo de

construção de sentido A fotografia, assim concebida, revela-nos, através do estudo da

produção da imagem, uma pista para se chegar ao que não está aparente ao primeiro

olhar, mas que concede sentido social à foto.

A fotografia comunica através de mensagens não verbais, cujo signo constitutivo

é a imagem. Portanto, sendo a produção da imagem um trabalho humano de

comunicação, pauta-se, enquanto tal, em códigos convencionalizados socialmente,

37
possuindo um caráter conotativo que remete às formas de ser e agir do contexto no qual

estão inseridas como mensagens.

O terceiro passo é perceber que a relação acima proposta não é automática, posto

que entre o sujeito que olha e a imagem que elabora existe todo um processo de

investimento de sentido que deve ser avaliado. Portanto, para se ultrapassar o mero

analogon da realidade, tal como a fotografia é concebida pelo senso comum, há que se

atentar para alguns pontos. O primeiro deles diz respeito à relação entre signo e

imagem. Normalmente caracteriza-se a imagem como algo “natural”, ou seja, algo

inerente à própria natureza, e o signo como uma representação simbólica. Tal distinção

é um falso problema para a análise semiótica, tendo em vista que a imagem pode ser

concebida como um texto icônico que antes de depender de um código é algo que

institui um código. Neste sentido, no contexto da mensagem veiculada, a imagem - ao

assumir o lugar de um objeto, de um acontecimento ou ainda de um sentimento -

incorpora funções sígnicas.

Um segundo ponto remete à imagem fotográfica enquanto mensagem, estruturada

a partir de uma dupla referência: a si mesma (como escolha efetivamente realizada) e

àquele conjunto de escolhas possíveis, não efetuadas, que se acham em relação de

equivalência ou oposição com as escolhas efetuadas. Dito em outras palavras, deve-se

compreender a fotografia como uma escolha efetuada em um conjunto de escolhas então

possíveis.

Finalmente, o terceiro ponto concerne à relação entre o plano do conteúdo e o

plano da expressão. Enquanto o primeiro leva em consideração a relação dos elementos

da fotografia com o contexto no qual se insere, remetendo-se ao corte temático e

temporal feitos, o segundo pressupõe a compreensão das opções técnicas e estéticas, as

38
quais, por sua vez, envolvem um aprendizado historicamente determinado que, como

toda a pedagogia, é pleno de sentido social.

A partir destes três pontos, foram organizadas duas fichas de análise no intuito de

decompor a imagem fotográfica em unidades culturais, guardando a devida distinção

entre forma do conteúdo e forma da expressão.

Ficha de elementos da forma do conteúdo

Tabela 1

Agência Produtora
Ano
Local retratado

Tema retratado

Pessoas retratadas

Objetos retratados

Atributo das pessoas


Atributo da paisagem
Tempo retratado
(dia/noite)
N° da foto
Ficha de elementos da forma da expressão
Tabela 2
Agencia produtora
Ano
Tamanho da foto
Formato da foto e suporte
(relação com o texto escrito)
Tipo de foto
Enquadramento I: sentido da
foto (horizontal ou vertical)
Enquadramento II: direção da
foto (esquerda, direita centro)
Enquadramento III: distribuição
de planos
Enquadramento IV: objeto
central, (arranjo e equilíbrio).
Nitidez I: foco
Nitidez II: Impressão visual
(definição de linhas)
Nitidez III: iluminação
Produtor: amador ou
profissional
N° da foto

39
Cada um dos campos das duas fichas deverá ser preenchido por itens presentes

nas fotografias, concebidos como unidades culturais. O conceito de unidade cultural,

sob o angulo semiótico, é assim apresentado por Umberto Eco:

“Uma unidade é simplesmente toda e qualquer coisa culturalmente definida e

individuada como entidade. Pode ser pessoa, lugar, coisa sentimento, estado de coisas,

pressentimento, fantasia, alucinação, esperança ou idéia [...] uma unidade cultural pode

ser definida semioticamente como unidade semântica inserida num sistema. [...]

Reconhecer a presença dessas unidades culturais (que são, portanto, os significados que

o código faz corresponder ao sistema de significantes) significa compreender a

linguagem como fenômeno social” (Eco, 1974, p.16)

Feito isso, tais unidades culturais serão realocadas em categorias espaciais,

estabelecidas para a estruturação final da análise, a saber:

* Espaço fotográfico: compreende o recorte espacial processado pela fotografia,

incluindo a natureza deste espaço, como se organiza, que tipo de controle pode ser

exercido na sua composição e a quem este espaço está vinculado - fotógrafo amador ou

profissional -, bem como os recursos técnicos colocados à sua disposição. Nesta

categoria estão sendo considerados as informações relativas à história da técnica

fotográfica e os itens contidos no plano da expressão; - tamanho, enquadramento,

nitidez e produtor - que consubstanciam a forma da expressão fotográfica.

* Espaço geográfico: compreende o espaço físico representado na fotografia,

caracterizados pelos lugares fotografados e a trajetória de mudanças ao longo do

período que a série cobre. Tal espaço não é homogêneo, mas marcado por oposições

como campo/ cidade, fundo artificial/ natural, espaço interno/ externo, público/ privado

40
etc. Nesta categoria estão incluídos os seguintes itens: ano, local retratado, atributos da

paisagem, objetos, tamanho, enquadramento, nitidez e produtor.

* Espaço do objeto: compreende os objetos fotografados tomados como atributos

da imagem fotográfica. Analisa-se, nesta categoria, a lógica existente na representação

dos objetos, sua relação com a experiência vivida e com o espaço construído. Neste

sentido, estabeleceu-se uma tipologia básica constituída por três elementos: objetos

interiores, objetos exteriores e objetos pessoais. Na composição do espaço do objeto

estão incluídos os itens tema, objetos, atributo das pessoas, atributo da paisagem,

tamanho e enquadramento.

* Espaço da figuração: compreende as pessoas e animais retratados, a natureza do

espaço (feminino/ masculino, infantil/ adulto), a hierarquia das figuras e seus atributos,

incluindo-se aí o gesto. Tal categoria é formada pelos itens pessoas retratadas, atributos

da figuração, tamanho, enquadramento e nitidez.

* Espaço da vivência (ou evento): nela estão circunscritas às atividades, vivências

e eventos que se tornam objeto do ato fotográfico. O espaço da vivência é concebido

como uma categoria sintética, por incluir todos os espaços anteriores e por ser

estruturada a partir de todas as unidades culturais. É a própria síntese do ato fotográfico,

superando em muito o tema, à medida que, ao incorporar a idéia de performance,

ressalta a importância do movimento, mesmo em imagens fixas. Ou, para utilizar-se a

terminologia do fotógrafo francês Henry Cartier-Bresson, trata-se do movimento de

quem posa ou é flagrado por um instantâneo e do movimento de quem monta a cena ou

capta o “momento decisivo”.

Pelo exposto, fica patente que a mesma unidade cultural pode estar presente em

diferentes campos espaciais e que tais campos não são estanques. Na verdade, eles

41
possuem interseções, à medida que representam reconstruções de realidades sociais. Daí

os campos espaciais permitirem o restabelecimento dos códigos de representação social

de comportamento, no seu marco de historicidade.

Vários autores - dentre os quais o já citado Umberto Eco, a artista plástica e

teórica da arte Fayga Ostrower (1988, 1989), e a historiadora Míriam Moreira Leite, que

de longa data reflete sobre a utilização da fotografia como fonte histórica - são

unânimes na escolha da noção de espaço como chave de leitura das mensagens visuais

devido à natureza deste tipo de texto. Vale a referência ao trabalho de Míriam Moreira

Leite, pela dimensão histórica que tal escolha assume:

“Chegou-se à conclusão de que a noção de espaço é a que domina as imagens

fotográficas explícitas. Não apenas as duas dimensões em que a imagem representa as

três dimensões do que comunica. Mas toda captação da mensagem manifesta se dá

através de arranjos espaciais. A fotografia é uma redução um arranjo cultural e

ideológico do espaço geográfico, num determinado instante” (Leite, 1993, p.19).

Por fim, a minha própria experiência vem demonstrando que, a cada novo tipo de

fotografia e objeto a ser estudado a partir da imagem fotográfica, o pesquisador vê-se

obrigado a atualizar o método de análise e adequá-lo à sua matéria significante,

guardando os imperativos metodológicos apresentados. Nesse sentido, é sempre

importante lembrar que toda a metodologia, longe de ser um receituário estrito,

aproxima-se mais a uma receita de bolo, na qual, cada mestre-cuca adiciona um

ingrediente a seu gosto.

Conclusão.

Nunca ficamos passivos diante de uma fotografia: ela incita nossa imaginação,

nos faz pensar sobre o passado, a partir do dado de materialidade que persiste na

42
imagem. Um indício, um fantasma, talvez uma ilusão que, em certo momento da

história, deixou sua marca registrada, numa superfície sensível, da mesma forma que as

marcas do sol no corpo bronzeado, como lembrou Dubois (1992 p.55). Num

determinado momento o sol existiu sobre aquela pele, num determinado momento um

certo aquilo existiu diante da objetiva fotográfica, diante do olhar do fotógrafo, e isto é

impossível negar.

Discute-se a possibilidade de mentir da imagem fotográfica. A revolução digital

provocada pelos avanços da informática torna cada vez maior esta possibilidade,

permitindo até que os mortos ressurjam para tomar mais um chope, tal como a

publicidade já mostrou. Não importa se a imagem mente; o importante é saber por que

mentiu e como mentiu. O desenvolvimento dos recursos tecnológicos demanda do

historiador uma nova crítica que envolva o conhecimento das tecnologias feitas para

mentir.

Toda imagem é histórica. O marco de sua produção e o momento de sua execução

estão indefectivelmente decalcados nas superfícies da foto, do quadro, da escultura, da

fachada do edifício. A história embrenha as imagens, nas opções realizadas por quem

escolhe, uma expressão e um conteúdo, compondo através de signos, de natureza não

verbal, objetos de civilização, significados de cultura.

O estudo das imagens, como bem ensinou Panofsky (1991) no seu método

iconológico, impõe o estudo da historicidade desta imagem. O objetivo central deste

trabalho, embora sem seguir uma linha iconológica, foi refletir sobre a dimensão

histórica da imagem fotográfica e as possibilidades efetivas de utilizá-la na composição

de um certo conhecimento sobre o passado. O caminho proposto é também uma

escolha, num conjunto de reflexões possíveis.

43
Capítulo 2.

História e Semiótica: sobre o conceito de intertextualidade na análise de fontes de


memória.

Em um artigo já clássico intitulado: “Imagens através de palavras”, a

historiadora Miriam Moreira Leite (1993) discute a relação entre palavra e imagem, a

partir de um questionamento simples: “uma imagem vale mais de mil palavras?”.

Egressa do senso comum, a simplicidade de tal pergunta não se sustenta numa

abordagem mais crítica da relação entre palavra e imagem. Isto porque palavra e

imagem cumprem duas funções diferentes no processo de comunicação e de construção

de memórias coletivas.

No âmbito da comunicação verbal e não verbal, a diferença imposta referenda-se

no modelo da lingüística estruturalista que, imputa a língua natural à função estrutura

modelizante de todas as linguagens, verbais e não-verbais. Neste sentido, a estrutura

comunicativa composta por imagens ficaria sujeita as regras da palavra, sendo, por

conseguinte, dependente desta. Em última instância todo o processo de decodificação,

interpretação, ou leitura de imagens se processaria via a tradução para a linguagem

verbal. De acordo com este pressuposto ao vermos uma imagem imediatamente a

traduzimos em palavras.

No entanto tal argumento não se sustenta diante das pesquisas ligadas tanto, a

psicologia da percepção, quanto à semiótica dos sistemas não verbais, que incluem

desde os processos de comunicação entre os animais até os objetos da cultura material,

ampliando o universo de produção de sentido social para além do que a palavra possa

traduzir. Portanto para se operar legitimamente com a relação entre palavras e imagens,

há que se romper com a lógica da dependência e pensar ambas as formas comunicativas

44
como textos autônomos que se entrecruzam na construção da textualidade de uma

época.

Do ponto de vista da construção das memórias coletivas, palavras e imagens2

também podem ser trabalhadas de forma cooperativa, pela natureza distinta do suporte

que veicula os significados engendrados por tais memórias. A palavra pode ser emitida

por um discurso oral ou por um texto escrito, o grau de controle racional do sujeito

sobre o produto final de cada um destes dois tipos de discurso variará em função:

1. Das condições de enunciação do discurso verbal (narrativa biográfica,

entrevista, discurso público, etc.).

2. Das possibilidades de recepção (diálogo, público amplo identificado,

público amplo desidentificado, etc.).

3. Do local de emissão do discurso (âmbito privado, doméstico, âmbito

público institucional, rua, etc.).

4. Do objeto discursivo (temas específicos, rememoração espontânea,

entrevista preparada em torno de um problema prévio, etc.).

5. Do registro do discurso (ao vivo, gravado em videocassete, em fita cassete,

transcrito, etc.).

Todos estes elementos interferem no contexto de interpretação das palavras,

organizadas em discursos concebidos como textos.

A imagem, por sua vez, apresenta também variáveis semelhantes, ligadas a uma

forma de expressão que se utiliza fundamentalmente do signo visual. Neste caso o

resultado dos investimentos de sentido com base imagens variará de acordo com:

1. O tipo de dispositivo (fotográfico, fílmico, plástico, digital).

2. Relação entre sujeitos (produtor e consumidor de imagens).

45
3. Relação entre tempos (produção, circulação e consumo de imagens).

4. Tipo de estoque (álbuns de família, memória RAM, caixas de sapato,

arquivos públicos, arquivos particulares, etc.).

5. Objetos da imagem (fragmentos cotidianos, narrativa ficcional, função

comprobatória, notícias públicas, etc.).

Tais variáveis devem ser consideradas no processo de interpretação dos textos

visuais, no marco das sociedades históricas.

Os textos verbais e não verbais, considerados a partir dos aspectos acima

relacionados devem ser dimensionados na sua inter-relação, ainda que:

“Estudar, conjuntamente aqueles dois aspectos fundamentais da atividade

humana significa recusar admitir que o verbal e o não-verbal constituem dois domínios

independentes. A produção e o uso de palavras de mensagens verbais sem a produção e

o uso concomitantemente de objetos sígnicos não-verbais, simplesmente não existem

[...] ambos constituem as duas maneiras fundamentais de objetivação e da comunicação

humanas. Abaixo dessas maneiras não se pode descer sem que o discurso cesse de ter o

homem como seu objeto” (ROSSI-LANDI, 1985, p.127).

Neste sentido, ambas as formas comunicativas podem ser compreendidas a partir

de uma abordagem histórico-semiótica, cujo objetivo fundamental é “o estudo dos

fenômenos sociais sujeitos a mutações e reestruturações” (ECO, 1980, p.22).

Semiótica e História, alguns esclarecimentos.

A lição dos Annales e dos recentes trabalho em História Cultural, nos apontam o

caminho da transdisciplinaridade como o mais corrente para o historiador que trabalhe

com fontes pouco tradicionais. Mesmo àqueles afeitos aos documentos notariais, tais

46
como inventários, censos, curatelas, etc. buscam ler nas entrelinhas do entrançado social

que sustenta a legislação, reeducando seu olhar para avaliar a dimensão de alteridade do

passado.

Da parceira mais antiga, a Sociologia, até as bem pouco comuns, como a

Semiótica, a História vem reavaliando seu estatuto como forma de conhecimento. Neste

sentido, a escolha de uma disciplina oriunda da lógica deve apresentar algum atrativo ao

historiador. Sem dúvida Umberto Eco, a partir da definição acima exposta, cria atrativos

bastante interessantes àqueles interessados em compreender os fenômenos históricos

segundo lógica dos processos de produção de sentido social, tanto das práticas quanto

das representações, vale a reflexão de Eco:

“A pesquisa semiótica será guiada por uma espécie de princípio de

indeterminação: uma vez que significar e comunicar são funções sociais que

determinam a organização e a evolução cultural, ‘falar’ dos ‘atos’ de palavra, significar

a significação ou comunicar a respeito da comunicação não pode deixar de influenciar o

universo do falar, do significar, do comunicar” (ECO, 1980, p.22).

Continua rejeitando a suposta neutralidade científica e destacando quais seriam

as motivações da pesquisa:

“Quem quer conhecer algo o faz para fazer alguma coisa. Se afirmar desejar

conhecer pelo puro prazer de conhecer (e não para fazer), isto significa que ele quer

conhecer para não fazer nada, o que representa uma forma sub-reptícia de fazer algo,

isto é, deixar as coisas como estão” (Idem).

Conclui identificando na Semiótica um projeto teórico que ao explicar como e

porque as pessoas se comunicam, num determinado tempo, significa indicar as maneiras

47
e as razões pelas quais procederão no futuro. Para Eco o projeto da Semiótica é

revolucionário, do ponto de vista que reúne teoria e prática.

Alguns anos atrás (1995), Eco foi tema do suplemento Mais! Do jornal Folha de

São Paulo. Dentre o conjunto de artigos sobre o autor publicou-se uma entrevista, onde

o próprio Eco revia a tendência imperialista da Semiótica e sua vocação para o

pansemioticismo, ou seja, todos os fenômenos sociais se reduziriam às produções

simbólicas e às convenções. Projeto megalômano de viés idealista que reduziria todos

os fenômenos sociais a fenômenos do espírito, quando sabemos que a dinâmica social é

bem mais complexa.

O movimento dos sem-terra, por exemplo, não disputa a terra por uma simples

vocação política. Aliás, tal vocação provém de uma necessidade concreta: o acesso a

terra para sobreviver, alimentar os filhos e reproduzir a vida. Refletir sobre o processo

de produção de representações associadas a este movimento que envolve exemplos

como: a música composta pelo Chico Buarque, o texto de Saramago, as fotos do

Sebastião Salgado, a premiação do líder pelo governo belga, a rejeição do governo

brasileiro em dialogar, a violência física, etc., não deve perder de vista o pressuposto de

materialidade fundamental: o acesso a terra. Caso contrário perde-se mesmo a

legitimidade ideológica do processo.

Esta digressão foi feita propositadamente para pensarmos, no marco das

sociedades históricas e suas problemáticas, qual o projeto semiótico a ser proposto?

Tendo a compreender a semiótica muito mais como uma metodologia adequada

ao estudo de uma História Cultural preocupada com a análise dos comportamentos

sociais e das representações a estes relacionadas, do que um campo teórico autônomo.

Ela nos oferece um raciocínio lógico, uma forma de interpretar os fenômenos sociais,

48
com base em categorias que recompõem estruturas significativas. Tal procedimento

valoriza, tanto a dimensão processual, propriamente histórica, visto que o processo de

produção de sentido é contínuo e contextual, como também valoriza o papel ativo dos

sujeitos históricos:

“A semiótica deve definir o sujeito da semiose através de categorias semióticas.

A semiótica possui o seu sujeito (no duplo sentido, argumento e protagonista): a

semiose. A semiose é o processo pelo qual os indivíduos empíricos comunicam, e os

processos de comunicação são tornados possíveis pelos sistemas de significação

(códigos) [...] Se se aceita criticamente este seu limite metodológico a semiótica escapa

o risco idealista. Em vez disso, inverte-o: reconhece como sujeito verificável único do

seu discurso à existência social do universo da significação, tal como ela é exibida pela

verificabilidade física dos interpretantes, que são, e deve-se insistir nesse ponto pela

última vez, expressões materiais” (Idem, p.257-258).

Portanto a relação entre História e Semiótica se processa no marco dos estudos

dos processos de produção de sentido social, considerando-os a partir das práticas e

representações dos sujeitos históricos. Sendo que tal processo traduz-se, via de regra,

em produtos textuais fundamentais na composição de textualidades e contextos.

Sobre a noção de intertextualidade.

Texto, contextos, sentido, são noções que pressupõem a discussão sobre o

quadro de referência no qual se tornam inteligíveis como categorias analíticas. Sem

dúvida tal quadro referencial é a própria cultura, compreendida como categoria

semiótica. Nesta perspectiva, cultura é comunicação, é informação, enfim, o resultado

de uma pratica social criativa. É fundamental ter-se em conta que a cultura, ao realizar-

se no dia-a-dia, coloca em funcionamento uma série de códigos que permitem expressar

49
esta “realidade diária”, através de objetos, pensamentos, comportamentos, palavras, etc.,

que assumem funções sígnicas variadas no processo de semiose social. O sociólogo

italiano Rossi-Landi é claro na sua avaliação da cultura como categoria semiótica:

“[...] nós continuamente ‘dizemos coisas’ mesmo não verbalmente,

comunicamos pensamentos e sentimentos ou mesmo apenas reações e atitudes

inconscientes pela ‘linguagem de nosso comportamento’. Isso ocorre de modo diferente

dentro de cada cultura. Neste sentido, cada cultura é uma vasta organização

comunicativa distinta de todas as outras, uma espécie de ‘enorme língua histórica’ [...]

sendo que a instituição dos quadros comunicativos se faz sempre através da instituição

de sistemas sígnicos” (Rossi-Landi, 1985, p.110-111).

A cultura como uma enorme “língua histórica” pressupõe a existência de regras

de ordenamento dos significados, sem as quais o ato de comunicar e significar não se

processaria. Portanto, cultura pressupõe códigos que, por sua vez criam condições a

partir das quais objetos, comportamentos e sentimentos assumem funções sígnicas. De

acordo com Eco “há signo toda vez que um grupo humano decide usar algo como

veículo de outra coisa” (ECO, 1980, p.11).

No processo de semiose social, compreendida pela dinâmica social de

investimento de sentido, existem condições fundamentais para que o ato comunicativo

se realize. A produção de textos é uma delas. No entanto qual a diferença entre signo e

texto? O signo não existe como entidade em si mesmo, possui uma natureza relacional e

dinâmica, daí tal noção ter sido atualizada para função sígnica, a partir das reflexões do

filósofo da linguagem Louis Hjelmslev (1975). A expressão da dinâmica de produção

sígnica inerente aos processos de significação das realidades sociais, se faz através de

textos de diferentes tipos, tanto verbais quanto não-verbais.

50
O texto é considerado uma unidade macroscópica do processo comunicativo

(Vilches, 1992, Cap. 2). Do ponto de vista de uma abordagem semiótica, o texto é um

conceito misto, porque além de ser um sistema de significação, é também uma

realização comunicativa. Neste sentido, há que se considerar as condições de sua

produção, ou seja: as circunstâncias de sua emissão, a posição do enunciador, os canais

de emissão, etc. elementos destacados pela gramática gerativa do texto desenvolvida por

Noam Chomsky (1975).

A partir de tais elementos o texto pode ser considerado como mensagem,

elemento importante no processo comunicativo, por serem veículos da significação.

Sobre isso, Eco nos esclarece:

“[...] usualmente um único significante veicula conteúdos diversos e interligados

e, portanto aquilo que se chama ‘mensagem’ constitui, o mais das vezes, um texto cujo

conteúdo é um discurso em vários níveis” (ECO 1980, 48).

Um texto seria então o resultado da coexistência de vários códigos e subcódigos,

sendo o texto a escritura que produz a expressão oral. Para o semioticista espanhol

Lorenzo Vilches, os textos devem ser compreendidos na sua dimensão plural, na

condição de uma série, daí a possibilidade de se considerar a fotografia, o cinema, a

arquitetura, etc. como textos. Tal pluralidade é a condição necessária para se operar com

a noção de intertextualidade, pela qual análise textual é compreendida como uma prática

social realizada sobre outra prática social, num processo continuado. (Vilches, 1992,

p.32).

Vilches, seguindo a senda aberta por Eco e Verón, elabora a noção de

intertextualidade a partir da semanálise de Julia Kristeva e da semiologia de Christian

Metz. Segundo tal noção só é possível interpretar um texto a partir de uma série de

51
textos precedentes, neste processo o receptor da mensagem a interpreta, atualizando o

significado emitido a partir de sua competência de receptor. Tal competência pressupõe

uma experiência sócio-cultural, na qual os sujeitos históricos interagem na produção de

variados textos sociais. Daí Kristeva empregar a noção de ‘trabalho’ sobre o texto para

explicar o processo de semanálise:

“Transformando la materia de la lengua (su organización lógica y gramatical), y

llevando, allí, la relación de las fuerzas sociales desde el escenario histórico (en sus

significados regulados por el pasaje del sujeto del enunciado comunicado) el texto, se

liga - se lee -, doblemente, con relación a lo real: a la lengua ... a la sociedad”

(KRISTEVA, 1978, p.10)

Eco ressalta a existência de uma relação intertextual pouco trabalhada que se

relaciona aos textos que integram os discursos, sem, no entanto, estarem aparentes em

sua superfície, tais como: croquis, projetos de arquitetura, roteiros de entrevistas, etc.

Para este autor a análise deste material é de fundamental importância, pois: “oferece-nos

esclarecimentos fundamentais sobre o processo de produção e sobre a leitura do

discurso ao nível da recepção. Estes discursos ocultos desempenham um papel

fundamental na produção de certos objetos discursivos e, em tal sentido, constituem

lugar privilegiado onde transparecem certos mecanismos ideológicos que funcionam na

produção” (ECO, 1980, p.122)

Portanto, na condição de noção operativa sobre práticas discursivas a

intertextualidade, possibilita uma reflexão mais aprofundada sobre o processo de

produção de sentido dos relatos orais bem como da imagem visual. Ambos concebidos

como fontes de memória.

Conclusão.

52
Fala-se muito hoje em dia de crise, do advento de um pós-modernismo que

dissolve o sujeito numa história sem face. Por outro lado, fala-se também da renovação

dos métodos da história, de novos objetos e novas abordagens, que definitivamente se

consolidam no Brasil. Entre o dito e o feito existe ainda uma grande distância, cabe-nos

diminuí-la em nossa prática acadêmica cotidiana. Para tanto a aproximação com as

demais disciplinas das ciências sociais é quase um imperativo. A opção apresentada

neste trabalho deve ser entendida, não no quadro de um modelo teórico que reduz todos

os fenômenos sociais a sua dimensão de convenção cultural, num relativismo

irracionalista, mas no contexto de um paradigma semiótico ou indiciário que não perde

a dimensão material das representações simbólicas. Fica, portanto, a título de conclusão

a importante reflexão de Rossi-Landi:

“Uma semiótica retamente entendida pretende formar parte de uma ciência

global do homem e de suas relações com o resto do mundo. Sua importância decisiva

para a desmistificação ideológica e para a teoria da ação política reside no fato de que

todas as operações da prática social, em sua mesma essência, são operações sígnicas.

[...] Isto não quer dizer que a realidade social fundada sobre a necessidade, o trabalho e

exploração se esgote nos sistemas de signos. Quer dizer sim, que o conteúdo de tais

sistemas são sociais. O conhecimento desses sistemas de signos que precisamente a

ciência da semiótica reúne sob tal denominação, é portanto necessário para operar sobre

a realidade, especialmente em uma situação de altíssimo nível de elaboração sígnica

reacionária, como da sociedade neocapitalista ocidental” (Rossi-Landi, 1985, p.208).

53
Capítulo 3.

Passado Composto: Fotografia e Memória.

Gosto de tirar fotografias, gosto herdado de meu avô paterno que, registrou em

imagens, uma boa parte da nossa trajetória familiar. Desde pequena acostumei-me a

posar para fotos e a esperar ansiosamente a sua revelação. Aos poucos se revelavam

momentos vividos em formas monocromáticas que, com o tempo, foram ganhando cor e

diversidade de formatos e texturas.

Depois de crescida, o interesse pela fotografia ampliou-se, inclusive para tarefas

mais sérias, mas continuei fotografando e organizando álbuns onde podíamos

acompanhar o nascimento dos filhos, as viagens de férias, as variadas comemorações,

os passeios matinais, retalhos do cotidiano que eram costurados, de tempos em tempos,

pela apreciação conjunta das imagens. Sentados com os álbuns sobre as pernas

recontávamos as histórias nas quais fomos os principais personagens.

Por ocasião do nascimento do meu terceiro filho, mais uma vez, repetimos o

ritual de descer os álbuns das prateleiras e começando pelo primeiro, com as fotos mais

antigas, a recontar a nossa breve história. Nesse hábito de ver e rememorar se inscrevem

duas atividades complementares, na qual, palavras e imagens atualizam como memória

à experiência vivida.

O interessante é constatar como este hábito tão pessoal e familiar é

compartilhado por diferentes famílias de lugares e procedências sociais variadas. Na

minha própria família, meu pai, imigrante português, era o encarregado do ato

fotográfico. Atualmente, o responsável pela atividade fotográfica familiar é o Alejandro

que, veio do Chile há anos atrás, e trouxe com ele a sua máquina fotográfica.

54
O ato fotográfico arraigou-se de maneira tal na construção das memórias

familiares, na sociedade ocidental, que é impossível falar sobre o passado sem ter como

incentivo de rememoração as imagens fotográficas. Uma atividade que estabeleceu

responsabilidades em relação à preservação do passado, criando a figura do guardião de

memórias. Este personagem, além de organizar as fotografias em álbuns, ou

simplesmente guardá-las em caixas, é o depositário de muitas histórias.

A idéia deste texto é refletir sobre a relação entre imagens e palavras na

construção das narrativas históricas pautadas no ato de rememorar.

Sobre a memória.

O entrecruzamento de imagens fotográficas e narrativas de trajetórias de vida

permite a atualização de memórias e, por conseguinte, a imagem que àquele grupo quis

perenizar para todo o sempre. A fotografia, devido ao seu caráter técnico, é o estatuto de

uma verdade anunciada e conclamada a ser preservada da ação do tempo, nos álbuns de

família, ao mesmo tempo em que confirma o relato de vida. Por outro lado, estes

mesmos relatos concedem elementos para que tais imagens possam ser devidamente

lidas e interpretadas.

Materiais da memória coletiva, os documentos são monumentos, na medida em

que para além da simples descrição traduzem valores, idéias, tradições e

comportamentos que permitem tanto recuperar formas de ser e agir dos diferentes

grupos sociais, em diversas épocas históricas, como também operar sobre as

representações que deles ainda hoje perduram e atuam como elemento de coesão social

para seus descendentes (Le Goff, 1985).

A memória possui um papel específico na coesão social da família que a constrói

e transmite, uma memória que, ao definir o que é comum ao grupo e o que o diferencia

55
dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-

culturais. Geralmente tal coesão é realizada pela adesão do grupo à uma "comunidade

afetiva", criada a partir de um processo de conciliação entre memória individual e

coletiva, alcançada através da preservação de determinadas lembranças narradas de

geração em geração, de objetos preciosos e das próprias fotografias familiares.

Longe de ser o somatório de memórias individuais, a memória coletiva é,

justamente, a reconstrução de narrativas individuais a partir de um enquadramento

coletivo, guardando os determinantes temporais e espaciais como elementos

fundamentais em tal processo. Desta forma, entende-se por memória coletiva o passado

que se perpetuou e ainda vive na consciência coletiva. A base comum das memórias

individuais é consusbstanciada por uma compreensão comum dos símbolos e

significados, transmitidos pelos objetos de memória e pelas noções de comunhão que os

membros do grupo familiar compartilham ao se reconhecerem em tradições e valores

socialmente aceitos como válidos. Acrescida pelo sentimento de realidade transmitido

pela caracterização espaço-temporal das lembranças; sentimento, este, na maioria das

vezes disponível, ou através da própria visita aos lugares, ou através de fotos de eventos

significativos.

A família, ao guardar determinados objetos, ao relatar certos eventos, ao organizar

um álbum de fotografias, determina o que deve ser lembrado e preservado da ação do

esquecimento. Nenhum grupo social tem a sua perenidade assegurada, há que se

trabalhar neste sentido, daí a preocupação da família em manter a identidade do grupo

através da preservação e transmissão de sua memória. Por outro lado, a família, ao

mesmo tempo em que é o espaço onde tais recordações podem ser avivadas é também o

objeto destas lembranças. Neste sentido, a família, enquanto agente de memória,

56
constrói uma determinada representação de si mesma que perdura no tempo e é

reiterada pelo ato de recordar. Recorda-se em família, os feitos de família, através dos

objetos guardados pela própria família, preservando o lugar social a ser ocupada por ela

e pelos seus descendentes.

O álbum de fotografias torna-se o objeto de memória por excelência, pois alí, em

imagens tão reais, retornam do passado; bisavós, avós, tios, primos, etc., retomando,

através de poses e trejeitos, crônicas familiares apreendidas no decorrer de muitas vidas

e tradições, transmitidas por tantas gerações. Sem dúvida, a fotografia desempenha um

papel simbólico na legitimação da família, mas há que se saber ler nas "entrelinhas",

principalmente das fotografias posadas e tão bem arranjadas do século XIX. Ao

historiador é interditada uma visão contemplativa, como nos avisa a historiadora

Miriam Moreira Leite: "convém distinguir, na leitura da fotografia, o que ela reproduz

da condição do retratado, o que silencia desse grupo e os indícios que permitem o

observador perceber ou sentir outros níveis de realidade: sentimentos, padrões de

comportamento, normas sociais, conformismo e rebeldia" (Leite, 1993).

Cruzando relatos e dados e recuperando o texto significativo.

Os estudos sobre visualidade e tradição oral investem na elaboração de uma

reflexão aprofundada sobre memória, como o caminho por excelência para se operar

sobre as narrativas do passado. Fotografias e relatos orais são utilizados para “resgatar”

a memória, como se esta estivesse oculta dentro destas simulações do passado. Em

artigo bastante interessante, “História cativa da memória”, o historiador Ulpiano

Bezerra (1992), rejeita tanto as idéias de resgate como de recuperação da memória,

57
investindo na noção de construção da memória. Caminho aberto a uma reflexão

profícua.

Nas idéias de resgate e recuperação deixa-se de lado a avaliação dos intertextos

do discurso presente que engendra a construção da memória. O relato oral rememora o

passado, mas o faz a partir de um diálogo com textos presentes, investindo nesta relação

num vir a ser, num futuro, geralmente planejado e desejado. É fundamental ao se

recuperar a textualidade de uma época avaliar-se a coexistência temporal. A

descontinuidade do tempo é patente na relação dialógica que o sujeito do discurso

estabelece com suas memórias. Os discursos de rememoração são narrativas presentes

que, por sua vez, dialogam com as demais narrativas contemporâneas, bem como com

um conjunto de referencias temporais acionadas pelo ato de lembrar.

No jogo de entre tempos e entre imagens, o sujeito social ao relatar o passado no

presente, elabora um passado composto pela contemporaneidade, pelo diálogo que

estabelece com a sociedade no qual está inserido e da forma pela qual se insere. Aliás, é

a forma de inserção social que estabelece o marco da competência do receptor, atuando

de forma decisiva na elaboração do discurso oral e visual.

Venho, há tempos, trabalhando com a fotografia como fonte histórica e, em

todos os momentos deste trabalho, utilizei-me do relato oral como forma de estabelecer

os intertextos relativos ao corpus fotográfico que analisava. Em duas oportunidades,

relacionadas ao trabalho com álbuns de família, as entrevistas com os guardiões das

fotos determinaram a estrutura da composição do corpus bem como a resignificação do

objeto fotográfico para a sua condição de mensagem que se processa através do tempo.

Relatarei, brevemente, ambas as experiências.

58
A primeira experiência realizou-se na pesquisa de meu doutorado. Trabalhei

com dois tipos de séries: a) fotografias de uma família de imigrantes libaneses; b)

fotografias de três periódicos ilustrados publicados na cidade do Rio de Janeiro (Fon-

Fon, Careta e O Cruzeiro). O objetivo foi o de recuperar os códigos de comportamento

e representações sociais de uma cidade em fase de aburguesamento. O objetivo central

foi cruzar dois tipos de agência de produção da imagem, tanto privada quanto pública,

para avaliar tal processo. Não cabe aqui relatar o trabalho como um todo, mas centrar na

parte da organização das fotografias de família.

Encontradas em um enorme baú, as fotografias de D. Mariana, tiveram de ser

limpas, identificadas, datadas e organizadas em álbum. Todo este processo se fez

acompanhar da dona das fotos que identificava pessoas e lugares, situava

temporalmente as fotos, num moto contínuo de construção de uma memória que estava

fragmentada dentro do baú. Não a entrevistei, gravei nossas conversas sobre as fotos,

das fotos saíam histórias, das histórias referências a outros textos. Junto com as

fotografias havia muitos recortes de jornais, misturando o passado mais remoto com o

passado mais recente, sem continuidade temporal, mas com unidade temática, eram

todos sobre os “fatos que marcaram a história do Brasil” segundo expressão de D.

Mariana, guardados com a preocupação de uma testemunha ocular da História.

Não trabalhei com os jornais, pois investi no trabalho com memórias de vida,

prioritariamente, assim nos dedicamos a organizar cronologicamente as fotografias

identificadas, em seus personagens e lugares. Na construção de nosso álbum de fotos as

marcas do presente, foram índices da competência histórica de quem constrói memórias.

Nosso álbum compôs um texto que dialogava tanto com o passado, como experiência

59
vivida, trajetória familiar consumada, quanto com o presente, dimensão temporal na

qual o passado se potencializa alimentando projetos de futuro.

A segunda experiência relaciona-se a uma pesquisa que realizei sobre o circuito

social da fotografia no século XIX. Trabalhei com a coleção de fotografia da família

Werneck de Vassouras, guardada por um de seus descendentes, o genealogista Roberto

Menezes de Morais.

Desta vez o trabalho foi completamente diferente do anterior. Dono de uma

memória fantástica Roberto guardou e registrou, em um caderno, todas as histórias que

sua avó, a anterior guardiã das fotos, lhe contou sobre a família. Somou às histórias de

sua avó, seus estudos sobre genealogia, seu interesse por história do Império e seu

próprio projeto de vida, na construção de um texto sobre as fotos que, por vezes, me

deixou aturdida com tantas informações.

Ele próprio havia recuperado as fotos e as acondicionadas em um álbum, do

período apesar de não ser o original, na organização das fotos no álbum surge o texto da

genealogia. Ao folhear as páginas do álbum identificando as pessoas e a época, o texto

do descendente responsável pela perenização da memória surgiu de forma clara. Na

avaliação do verso das fotos para identificar os fotógrafos, era revelado o conhecimento

profundo sobre a história da cidade no século XIX, suas relações sociais, seus quadros

de poder, enfim, uma análise crítica sobre a sociedade de corte brasileira. Passado

composto no presente como um projeto de vida, de vir-a-ser.

Em ambos os casos o relato oral e a fotografia estabeleceram uma relação

dialógica fundamental para a construção do corpus de análise que, de forma alguma,

limita-se a uma justaposição de imagens. Textos orais e visuais complementam-se na

elaboração do material histórico a ser analisado.

60
No entanto esta é uma opção entre outras possibilidades de relação entre

oralidade e visualidade. Dependerá do tipo de objeto de estudo a escolha da estratégia

adequada para se estabelecer tal relação.

Conclusão.

O escritor inglês, Bernard Shaw, parafraseando o provérbio chinês que originou

a nossa pergunta inicial – “uma imagem vale mais do que mil palavras”; escreveu “uma

imagem vale mais do que mil palavras desde que elas tenham as mil palavras para

acompanhá-las”. A colaboração entre palavras e imagens é tão antiga quanto a

necessidade de comunicação da espécie humana. Ambas atuando tanto no sentido de

relatar, compor narrativas e registrar como no de indicar, apresentar e ilustrar. No

entanto, tanto a fotografia como os relatos dela provenientes, compõem imagens-

monumentos selecionando o que deve ser lembrado.

No que diz respeito ao significado das fotografias familiares fica claro as

diferenças entre as referências escrita e oral em relação às imagens fotográficas. O título

no verso da foto, ou no álbum pode simplesmente dizer: Mamãe e papai, Vassouras,

Agosto, 1893, e oferecer simplesmente um registro da época e do lugar. Já as histórias

provenientes dos relatos pessoais, contadas a partir da apreciação de uma imagem, são

sempre mais densas e complexas, indo muito além do enquadramento da foto e

revelando um extracampo bastante significativo.

“Nesta foto, aponta a saudosa sobrinha, aparece a tia Mariazinha e o tio

Antônio, os biscoitos amanteigados que ela fazia eram simplesmente o máximo! E ele,

adorava uma conversa”. Por outro lado, diante da mesma foto, o filho do casal, nos

relata como sua mãe era superprotetora, ou como o seu pai o tiranizava. As fotografias

de família não mudam, mas as histórias que elas ensejam, sim.

61
Neste texto tomei como referência o relato de dois guardiões da memória, e

desse relato busquei pistas e indícios para a compreensão de toda uma história que

inclui o vivido, o retratado, o lembrado e o que foi herdado, passado de avó para neto,

de geração em geração compondo um mosaico feito de fragmentos de memória.

O trabalho intertextual, com fontes de memória visual e oral, impõe como

imperativo a busca de outras evidencias através de diferentes tipos de registro histórico,

tais como: anúncios, crônicas e notícias veiculadas na imprensa ilustrada, fotografias de

outras famílias, etc. No entanto, esta premissa não tem como objetivo a busca de uma

verdade que estaria oculta no entrelaçado histórico, ou ainda que evidenciasse que o que

foi dito “realmente aconteceu”. O que se coloca como fundamento epistemológico desse

tipo de trabalho é o caráter transindividual das memórias sociais construídas a partir da

oralidade e da visualidade.

Por outro lado, busquei refletir também de que forma as convenções sociais

foram sendo assimiladas, ao longo do tempo, por diferentes grupos em como forma de

identificação e de construção de memórias sociais. Neste sentido a fotografia de família

não é somente uma motivação para fazer aflorar saudades e pesares, é também um

conjunto de regras visuais que molda a nossa experiência e memória.

62
- II -

Os artigos sobre o século XIX apresentados em seminários e congressos,

publicados em veículos de circulação restrita, e que serviram de base para outros

trabalhos publicados como capítulos de livros de maior alcance público compõe essa

segunda parte. Escolhi textos que buscassem dialogar com a renovação historiográfica

associada, principalmente, aos estudos de história cultural. O diálogo se processa no

âmbito da problemática dos sujeitos históricos, na centralidade da visualidade como

dimensão das práticas sociais e, por fim, na discussão sobre os espaços sociais da

história – identificados pelas noções de privacidade, intimidade e cotidiano.

O capítulo 4 tem como tema principal à representação visual do negro na

sociedade oitocentista. As reflexões sobre a escravidão no império brasileiro do século

XIX vêm, desde os anos 1980, renovando a sua perspectiva de análise num duplo

movimento. O primeiro movimento emerge do bojo sociedade brasileira, que em seu

processo de redemocratização, vai redefinindo as políticas de identidade e de construção

de suas memórias. O movimento negro organizado não data desse momento, mas ganha

força nos combates pela história que se travavam na arena pública. Não tenho condições

de me alongar sobre esse processo histórico, mas creio ser importante registrá-lo, na

medida em que se associa como fenômeno histórico, à renovação dos estudos brasileiros

sobre a condição de ser escravo no Brasil, notadamente, na área de História3.

Nos anos 1980 surgiram os primeiros frutos da ampliação dos programas de pós-

graduação na área de História (Falcon, 1996), com a defesa e publicação de dissertações

e teses, que buscavam, dentro de um movimento mais amplo da historiografia

internacional, dar conta de uma “história que vem debaixo” (Burke, 1992). A tradução e

leitura de textos de E.P Thompson (1998) e dos historiadores do grupo do “marxismo

63
britânico” (Negro & Silva, 2001), foi fundamental para a incorporação do escravo como

sujeito da sua própria história.

A história de ponta cabeças, na feliz expressão de Christopher Hill, permitiu a

toda uma geração de historiadores, romper com os padrões de uma sociologia que

tomava ao pé da letra o que diziam os documentos, dos quais, retiravam a famosa frase

de Antonil, que dizia ser o escravo, os pés e as mãos, do senhor de engenho. Assim, a

existência social do escravo ficava limitada a sua condição de força de trabalho, de um

objeto animado.

O corolário de uma revisão epistemológica do estatuto do sujeito oitocentista foi

uma verdadeira revolução documental, encetada pela postura interdisicplinar da história

social de inspiração serial, ou da história antropológica, e seus estudos de redes de

parentesco. O que se observou foi a superação do documento único, que embora não

tenha sido abandonado, passou a ser reconsiderado à luz das séries documentais, tais

como: inventários, matrículas de escravos, registros paroquiais, processos crimes, farta

iconografia, etc.

Vale lembrar, dentro desse ambiente, a presença cada vez mais marcante da

micro-história nos estudos sobre o oitocentos, investindo na configuração das lógicas de

racionalidade, próprias deste período histórico, através de composição de uma trama

documental de natureza variada, que serve a análise desses casos particulares. Segundo

essa abordagem, indício é a pista para desvendar o entrançado de relações sociais que

teceram a sociedade brasileira dos Oitocentos4.

Foi dialogando com os trabalhos produzidos nesse ambiente de renovação que

escrevi o texto “Fronteira da Cor”. Seduzida pela possibilidade de encontrar a pulsão de

vida nos vestígios do passado, fui recolhendo registros visuais e escritos sobre a vida no

64
século XIX. Em tais registros negros e negras, adultos ou crianças, na sua condição de

escravo ou de liberto tinham uma expressividade que era fundamental avaliar, para se

ter uma visão completa da experiência contraditória e conflitiva do cotidiano da

escravidão.

As fotografias produzidas no século XIX, a um primeiro olhar se mostravam

estáticas e silenciosas, as poses pré-figuradas, a ambientação codificada, eram de uma

incômoda e ilusória objetividade. Compreender as estratégias da representação visual,

dialogar com o regime visual do qual essa produção era tributária, inserir a fotografia no

seu circuito social, foram procedimentos fundamentais, para fazer surgir os sujeitos

sociais ocultos na imagem.

Assim a imagem, antes de aparência imutável, ganhou o movimento das ruas nos

pregões, batuques e cantorias, adentrou o recôndito das casas aconchegando-se ao colo

sob o som das canções de ninar, no abraço terno, na posse do corpo, enfim, no cotidiano

perpassado por sentimentalidades contraditórias. As fotografias se revelaram um

precioso suporte de relações sociais, que para se olhar com precisão, há de se atentar

para os detalhes: um olhar, um objeto, uma expressão, um deixar-se estar.

Jogos de cena que encenam vidas que conformam histórias, mais uma vez as

imagens só falam se perguntas lhes forem feitas. Perguntas elaboradas no diálogo com a

historiografia e em sintonia com os demais textos de época.

O capítulo 5 volta-se para a análise da produção fotográfica de Juan Gutierrez

procurando relacioná-la a experiência visual do século XIX. Neste contexto, a prática

fotográfica oitocentista, tanto aquela especializada no retrato, quanto à voltada para a

produção de vistas panorâmicas e registros de eventos, guardava uma estreita relação

65
com as práticas ilusionistas que tanto encantavam audiências teatrais em diferentes

partes do mundo.

Ambas as práticas associavam o uso da imagem para colocar em questão a

relação entre realidade e ilusão, ou o real e o imaginário. O século XIX momento, no

qual, as disciplinas acadêmicas definiam suas fronteiras e a institucionalização do saber

científico demandava protocolos precisos de aferição do valor de verdade das

proposições, as artes da ilusão e da fotografia, fomentavam debates que englobavam

desde o objetivismo cientificista até a metafísica mística.

O fotógrafo e o ilusionista dividiam, portanto, a imagem como dimensão espaço

temporal da imaginação. Enquanto o primeiro prometia, pela imagem fotográfica

capturar a realidade tal qual era vista, criando a ilusão pela busca de uma fidelidade total

ao real que pretendia representar. O segundo pela ilusão criava uma atmosfera de

realidade que fazia crer à uma audiência que lenços se transformassem em pombas. A

cada qual um aparato diferente de fazer iludir, um dispositivo para criar a impressão do

real duplicado, ou ainda transformado.

Observando as fotografias de Gutierrez criamos uma imagem sobre a cidade do

Rio de Janeiro, no século XIX, que possui todos os atributos de uma ilusão: harmonia,

equilíbrio, grandiosidade. Tal como os cenários da imaginação romântica a cidade se

revelava, ao primeiro olhar, sem contradições, mas a vida se revela nos detalhes. Foi

justamente pela busca das formas de iludir que a prática fotográfica ensejava, que

enveredei pelo caminho da análise de seus elementos expressivos e de conteúdo

desmontando a imagem tal qual um aficionado faria com um número de ilusionismo.

O que se consegue ao final é basicamente compreender a maneira pela qual as

imagens fotográficas eram produzidas, seus códigos enfim seu princípio de

66
racionalidade, definindo-lhe como resultado de uma prática social. Assim os

desdobramentos da análise e suas conclusões sobre as representações sociais

engendradas, seguiram as pistas deixadas pelo próprio fotógrafo na elaboração da sua

mensagem fotográfica.

Entretanto, a esse primeiro resultado se segue uma indagação um tanto mais

complexa, que envolve justamente a apropriação dessas imagens pelos costumes, na

vivência cotidiana de estar na cidade e imaginá-la deixando-se penetrar pela ilusão da

imagem projetada. Ou ainda, pelo agenciamento das fotografias e a manutenção do seu

estatuto de duplo da própria cidade, sendo vendidas no exterior como a imagem fiel da

Capital do Brasil. Essa dupla indagação aponta para o lugar que visualidade ocupava na

sociedade oitocentista como experiência coletiva, tanto como princípio de realidade e de

ilusão.

Assim, o caminho tomado parte da mensagem elaborada e busca desvendar seus

efeitos de realidade, depois retorna para indagar sobre a função social da ilusão criada

pelo efeito de realidade produzido. No caminho de volta, as várias pistas deixadas sobre

o poder de convencimento das representações sociais revelam os caminhos a serem

tomados para compreender porque, ao longo da nossa história, foram sendo atualizadas,

quase sempre com o apelo à imagem visual e as diferentes maneiras de iludir.

O capítulo 6 é dedicado ao estudo sobre a autoria fotográfica com base nas

trajetórias e trabalhos de dois fotógrafos emblemáticos para a história da fotografia no

Brasil: Marc Ferrez e Augusto Malta. Sua leitura sugere uma reflexão sobre o conceito

de trabalho criativo e as artes do fazer no século XIX que pode ser realizada tomando as

considerações do semioticista italiano Emilio Garroni (1980). Suas idéias indicam as

possíveis relações entre o fazer fotográfico e o fazer artístico.

67
Garroni levanta a hipótese de que a criação original não é resultado de um gênio

criativo individual tomado de uma inspiração metafísica, mas de um trabalho criativo

que tem como aspecto central uma dialética de escolhas dentro de um campo de

possibilidades finito.

O tema da criatividade é enfrentado como uma prática social que envolve a

experiência do sujeito-criador, estando associado com a sua capacidade de manejar-se

dentro dos códigos estabelecidos para a produção artística, de acordo com normas ou

tradições estabelecidas; bem como, com a possibilidade de romper com os padrões e

violar a norma, num processo de superação.

Neste sentido, numa primeira instância, suas escolhas são realizadas “num

conjunto global de opções já dado e o seu oposto, isto é, como algo de já determinado

de algum modo, mesmo apenas de modo meramente negativo” (Idem, p.116); entretanto

numa segunda instância criativa se move em um “conjunto de opções mais

determinadas: as opções de artistas ou de uma poética contemporâneos dele, ou então de

uma certa tradição; e perante aquelas escolhas determinadas à alternativa oposta

começará a apresentar-se não já simplesmente como negativa, mas articular-se-á e

precisar-se-á em função das opções negadas, quer ligando-se pelo menos em parte e

com circunstanciadas deformações a outras opções determinadas, não negadas, isto é a

outros modelos históricos, quer tornando aptas à função de modelo operativo outras

opções possíveis, que até então tinham permanecido como puramente potenciais”.(idem,

p.117).

Vale enfatizar que para esse autor, o trabalho criativo ou o comportamento

criativo, se processa gradualmente através de uma série de situações culturais

polifônicas, dinâmicas e imprevisíveis, cujas ações não são necessariamente

68
conscientes, ou ainda, nunca se tornam totalmente conscientes. No entanto, tais

situações culturais, apesar de surgirem como fenômenos desordenados, são formalmente

ordenáveis segundo um esquema processual extremamente variado.

Garroni orientava-se na análise de modelos arquitetônicos e seus gênios

criativos, entretanto, suas ponderações não estimulam a elucubração em relação às

demais formas artísticas que se alicerçam em práticas e circuitos sociais. Apesar da

relação entre fotografia e arte não ser nem de longe um ponto pacífico nos debates

travados nos salões oitocentistas. Fica, entretanto, o caminho aberto, em pensar que as

fotografias no XIX, serviam para iludir, encantar e imaginar, tais como as telas expostas

nos mesmos salões que as rejeitavam como um igual.

O que enfim determinaria o não-lugar da fotografia no campo das belas artes,

não seria a sua capacidade de criatividade plástica e visual, mas o seu público

consumidor cuja variedade e mundaneidade tirava-lhe toda a sacralidade de uma obra de

arte.

O capítulo 7 que encerra a parte 2 volta-se para abordar a prática fotográfica e a

experiência privada na sociedade brasileira dos séculos XIX e XX, segundo uma

abordagem da história cultural. A historiografia sobre a história cultural, desde final dos

anos 1970 vem redefinindo seus campos e canteiros, incorporando não somente temas

variados, mas fundamentalmente, instituindo um novo território de trabalho para o

historiador: as práticas e representações culturais (Chartier, 2002). O universo da

experiência social teve, por sua vez, as fronteiras redesenhadas, incorporando a esfera

da intimidade e os rituais do cotidiano como dimensões da história.

Do ponto de vista da compreensão dos sujeitos históricos, a renovação foi

significativa, pois apesar de as mulheres e crianças fazerem parte da história, não eram

69
valorizadas como sujeitos ativos na dinâmica social, por uma historiografia de ênfase

eminentemente masculina (Perrot, 1991). Os sujeitos participantes das múltiplas

dimensões da história passaram a integrar as novas abordagens que valorizavam

aspectos de gênero, de geração e de classe.

Entretanto, o que se coloca em questão quando abordamos as formas de

representar visualmente os ritos da vida católica nos séculos XIX e XX, é justamente o

lugar ocupado pela visualidade na produção de representações sociais privadas e sua

projeção na esfera pública.

As experiências de classe e a percepção que seus sujeitos têm delas é mediado

pelas formas de representá-la, portanto, nas práticas de registro da experiência social já

estão embutidas as suas possíveis modalidades de apresentação. O estudo das formas de

representar os ritos da vida católica, realizado neste artigo, revela que a

intertextualidade, como princípio ordenador dos diversos suportes textuais que fornece

sentido e espessura a vida social, é fundamentalmente histórica.

No século XIX a relação entre as modalidades de escrita de si, cartas, diários,

relatos de vida, cronologias anotadas, (Gomes, 2004) e a imagem fotográfica, aponta

um conjunto de diferenças que orientam a compreensão do habitus aristocrático.

Segundo este princípio ordenador as experiências fotografáveis seriam aquelas

consagradas ao público, passíveis de serem veiculadas em álbuns acessíveis ao olhar

dos estranhos visitantes cujo acesso a casa limitava-se a grande sala. Nessa, os álbuns

ficavam estrategicamente posicionados como a primeira trincheira da representação de

classe. A memória construída pela fotografia era da ordem do emblema e da efígie, cuja

atualização se processava pelo ato de ver e reconhecer. Dependendo do sujeito da

fruição o reconhecimento poderia ser pela identidade ao grupo ou pela diferença. Já os

70
textos da escrita de si, não ficavam abertos ao público, pois eram da ordem da

intimidade. Sua leitura estava restrita ao seu autor e quando muito ao outro membro da

família, portanto, eram depositários de memórias privadas e subterrâneas.

A manutenção dos ritos de passagem da vida católica ao universo das

representações elaboradas pela escrita de si, portanto das memórias reservadas a

experiência privada, não quer dizer que esses não fossem também rituais festivos e

abertos a uma comunhão mais ampla, como experiência social concreta. O que de fato

se conclui é que a forma de registrá-los implica na escolha de uma forma de representá-

los, essa ficando restrita o espaço da intimidade familiar. A escolha pela valorização dos

indivíduos e sua pose, em detrimento de suas vivências mais espontâneas, revela a

função que a visualidade fotográfica assumia no âmbito privado oitocentista, a

encenação de uma identidade de classe, plena de atributos de distinção. Exibia-se pela

fotografia uma condição social, uma auto-imagem pública que decalcava o social ao

político.

Ao longo do século XX a relação entre a escrita de si e a imagem fotográfica,

nos espaços privados, foi se estreitando, a ponto das narrativas se confundirem, como

no caso dos cartões-postais. A diferenciação entre uma privacidade cotidiana reservada

aos materiais da escrita de si e uma auto-imagem de classe que se publicava pela

imagem fotográfica, foi redefinida pelo surgimento da imprensa ilustrada e seus

semanários de crítica de costumes. O álbum de família ganhou nova função abrindo-se a

diversidade das experiências sociais, tomadas como acontecimentos memoráveis. O

agenciamento político das imagens produzidas no âmbito dos eventos sociais familiares

vai ser realizado através dos contatos com as revistas ilustradas, permitindo a circulação

71
das fotografias do âmbito privado para o público. Assim a narrativa visual familiar

assumia a função de registrar para educar o olhar na forma ideal de representar.

As fotografias dos ritos de passagem da vida católica, dentre outros elencados na

rubrica de eventos sociais, veiculadas pelas revistas ilustradas, produzidas e consumidas

pelas camadas dominantes da sociedade decalcavam o político ao social,

potencializando o valor de representação da visualidade próprio à modernidade. Tema

que abre a parte 3.

72
Capítulo 4.

As fronteiras da cor: imagem e representação social na sociedade escravista


imperial.

A imagem na sociedade oitocentista teve como um dos principais veículos

expressivos, a fotografia. Sob o império do retrato, grupos sociais se distinguiam,

construindo através de marcas visuais a sua identidade social. O retratado, através da

pose e da mise-en-scéne do estúdio fotográfico, deixava em evidência a adoção de um

determinado estilo de vida e padrão de socialidade. Os objetos e trejeitos adotados para

criar a ambientação ilusória do estúdio atuavam como emblemas de pertencimento

social, verdadeiras representações sociais de comportamento, do grupo que detém os

meios técnicos de produção cultural ou o acesso a estes.

No entanto, o retrato fotográfico, como bem coloca Gisele Freund democratiza a

imagem, antes limitada aos recursos da pintura. O barateamento dos custos como

também a ampliação do número de fotógrafos itinerantes, ao longo do segundo reinado,

amplia o mercado consumidor configurando uma clientela cada vez mais heterogênea.

Já não é raro encontrar fotografias de ex-escravos, como também de um número cada

vez maior de imigrantes pobres que utilizavam a fotografia como um meio de construir

a sua própria posteridade.

O objetivo deste trabalho é analisar as representações sociais de escravos e ex-

escravos tomando como fontes principais a fotografia de estúdio e os anúncios de

aluguel e venda de escravos. O ponto central da análise será o cruzamento de fontes

verbais e não verbais, distinguindo os elementos que nos eram dados a ver pelo branco

sobre o negro e como o próprio negro se deixava ver pela sociedade branca.

Elementos de uma mise-en-scène imperial: o código do retrato oitocentista.

73
A fotografia brasileira, amplamente premiada em diferentes exposições

nacionais e internacionais por seus panoramas e vistas urbanas, teve no retrato o meio

mais adequado para a aristocracia rural ver sua auto-imagem construída e perenizada

(Turazzi, 1995; Mauad, 1997). Fotógrafos que faziam fama através das premiações ou

homenagens oficiais ganhavam a vida, justamente, com os serviços de retrato o que

mais atraiam a clientela já consolidada na Corte na década de 1860. Aliás, o século

XIX, apesar de todo o fascínio causado pelas vistas estereoscópicas, foi dominado pelo

império do retrato, cuja divulgação está indefectivelmente ligado ao nome do fotógrafo

francês Eugene Disderi.

Por alturas de 1852-53 apareceu um homem em Paris que imprimiu ao

desenvolvimento da fotografia uma decisiva mudança de orientação. No centro de Paris,

no Boulevard des Italiens, abre as portas um novo estúdio de fotografia. Nele se

estabeleceu um homem de nome Disderi.

“[...] com um instinto muito ajustado, ele foi o primeiro a apreender as

exigências do momento e os meios de as satisfazer. Viu que a fotografia, porque era

muito cara, era apenas acessível à reduzida classe de ricos. [...] apercebeu-se que o

ofício não daria resultados a menos que conseguisse alargar a clientela e aumentar a

encomenda de retratos [...] reduzindo o formato criou o retrato carte-de-visite" (Freund,

s/d, p.68).

O relato de Gisele Freund nos aponta uma radical transformação na fotografia,

até então associada à produção única e exclusiva do daguerreótipo. Disderi é o produto

de um tempo de transformações, no qual a fotografia passa a ser uma mercadoria

requisitada por um público cada vez mais amplo que, por motivos de ordem econômica,

via a sua auto-representação através do retrato a óleo, completamente vetada. A

74
burguesia urbana era a principal clientela do retrato fotográfico, feito às dúzias para ser

presenteado e trocado por outros. Uma clientela enriquecida pela disputa colonial e

pelos contratos financeiros, mas alijada da “boa sociedade" e de seus atributos de

representação por falta de tradição nobiliária. Para este público, a fotografia reordenaria

as possibilidades de auto-representação: "A máquina fotográfica tinha democratizado

definitivamente o retrato. Frente à câmara todos são iguais, artistas, sábios, homens de

Estado e modestos empregados. O desejo de igualdade e o desejo de representação das

diversas camadas da burguesia eram satisfeitos ao mesmo tempo” (Idem, p. 74).

O sucesso do retrato carte-de-visite deve-se tanto a sua reprodutibilidade, pois

com uma tomada se produzia vários retratos, quanto por sua capacidade de prover ao

cliente escolhas variadas, através de um catálogo de objetos e situações, nas quais podia

se adaptar aos moldes pré-estabelecidos. Desta forma, o estúdio do fotógrafo passa a ser

um depósito de complementos escolhidos para caracterizar diferentes papéis sociais que

se quer fabricar. A 'mise-en-scène' do estúdio do século XIX variou ao longo do tempo,

cada década no período da carte-de-viste e mais tarde do cabinet-size teve seus

acessórios especialmente característicos. Nos anos 1860 era a balaustrada, a coluna e a

cortina; nos anos 1870, a ponte rústica e o degrau; nos anos 1880, a rede, o balanço e o

vagão; nos anos 1890, palmeiras, cacatuas e bicicletas e no início do século XX, o

automóvel. O próprio cliente se converteu, ele mesmo, num acessório de estúdio, suas

poses obedeciam a padrões estabelecidos e já institucionalizados de acordo com a sua

posição social.

A fotografia do período não abria mão da sua própria estética, como fica exposto

no livro Estética da Fotografia, publicado por Disderi, em 1862. Neste livro o fotógrafo

francês estabeleceu seis princípios básicos de uma boa fotografia:

75
1. Fisionomia agradável

2. Nitidez geral.

3. As sombras, os meios-tons e os claros bem pronunciados, estes últimos

brilhantes.

4. Proporções naturais.

5. Detalhes nos negros.

6. Beleza.

A busca da beleza se tornaria o ideal a ser conquistado pelo fotógrafo e uma

prerrogativa exigida pelo cliente. Ao satisfazer esta exigência o fotógrafo criava um

padrão de representação que apagava o indivíduo em prol de um estereótipo social. Ao

se reconhecer como parte integrante da mesma sociedade de imagens que os chefes de

estado, sábios e artistas, o cliente se satisfazia, pois via garantida da ação do tempo à

representação que queria alcançar. Na fotografia ornamentada com acessórios, na

maioria das vezes ausente de seu cotidiano, revestia-se dos emblemas de classe, com a

qual quer se ser reconhecido. Como complemento insubstituível da ambientação ilusória

do estúdio estava a pose. T. Robertsonem 1867, já afirmava ser a pose “a mais

importante de todas as operações fotográficas” (Apud. Turazzi, 1995, p.14)

Na mesma época Alexandre Ken (1864), autor das Dissertations historiques,

artistiques et scientifiques sur la photographie, afirmava:

“No atelier do fotógrafo o modelo posa apenas meio minuto diante do

instrumento. É preciso que antes de entrar no salão de pose, ele tenha esquecido na sala

de espera qualquer preocupação exterior; que ali folheando álbuns, examinando os

retratos expostos, indagando sobre o seu valor artístico e o caráter de cada um deles,

possa apreciar e captar a pose e a expressão que melhor lhe convenha e que alguns

76
conselhos do artista lhe ajudarão a assumir. Tudo deve ser feito para distrair o visitante

e dar ao seu semblante uma expressão de clama e felicidade, para fazer nascer em seu

espírito idéias agradáveis, risonhas que clareando seus traços com um doce sorriso,

façam desaparecer daquela expressão séria que a grande maioria tem tendência a

assumir, e que sendo, a que mais se exagera, da geralmente à fisionomia um ar de

sofrimento, contração ou de tédio” (Apud. Turazzi, 1995, p.15).

A pose era o ponto alto da ‘mise-en-scène’ fotográfica no século XIX, pois

através dela combinavam-se a competência do fotógrafo em controlar a tecnologia

fotográfica, a idéia de performance, ligada ao fato do cliente assumir uma máscara

social que, muitas vezes não lhe competia e a possibilidade de uma nova forma de

expressão adequada aos tempos do telégrafo, trem a vapor, enfim, há um tempo que

tinha como entretenimento antever o futuro. A fotografia, principalmente, o retrato

fotográfico, com toda a sua possibilidade de encenação, inventava uma memória para

ser perenizada, eternizando-se na emulsão fotográfica uma vontade de ser, algumas

vezes risível, mas na maior parte, crível. Uma imagem capaz de criar uma representação

ideal para ser lembrada no futuro; nos álbuns de família, guardiões das tradições,

inventadas ou não.

No Brasil a moda do retrato foi aceita como todas as demais que vinham do

estrangeiro para enquadrar nosso comportamento e para fornecer-nos molduras para

nossas próprias imagens. Rapidamente fotógrafos estrangeiros, fugindo da concorrência

de seus países de origem, invadiram a Corte integrando-se sem maiores resistências a

geografia do cotidiano da cidade, juntamente, com as modistas, os cabeleireiros, os

joalheiros, entre outros agentes da civilização ocidental. No entanto, o circuito social da

fotografia na Corte do Rio de Janeiro, não se limitava aos setores mais ricos da

77
sociedade, a democratização da imagem pelo retrato envolvia também a produção de

alteridades, tal como pode ser entendida a fotografia de escravos e ex-escravos.5

Cotidiano e consumo na sociedade oitocentista.

Ao abrir os jornais da Corte, do Segundo Império, mergulhamos num mundo de

aparências, marcado pelo afrancesamento da linguagem e dos produtos oferecidos. A

influência francesa foi a marca deste tempo, reconhecida e assumida por seus próprios

contemporâneos. Tal influência fica patenteada na conferência que um jovem

engenheiro brasileiro, proferiu, em 1885, por ocasião da Exposição Internacional de

Beauvais: “O brasileiro tem uma espécie de idolatria pela França. Nossos costumes,

nossas inclinações são grande parte os vossos; vossa bela língua nos é cara e nos é

familiar, [...] senhores quando chegamos em um país estranho, nós nos sentimos sempre

estrangeiros, mas se chegarmos na França, três dias não se passam e já nos sentimos em

casa” (Brasil. Comissão Brasileira na Exposição Universal de Beauvais, 1885. Apud.

Turazzi, 1995, p.94).

Não sem razão tal familiaridade dos brasileiros na França, no jornal “O

Actualidade”, publicado na Corte na década de 1860, todos os anúncios da programação

de espetáculos era escrita em francês, “Une Nuit Terrible - A l’etude. Meredi 6 janvier -

representation extraordinaire au bénéficie de: M. Amélia. L’affiche au jour donnera le

programme. On peut se procurer des billets à l avanue chez la bénéficiaire, hotel de

Milan; Rue d’Ouvidor” (O Actualidade, 4/1/1864)

Nestes jornais os anúncios moldam o perfil do cotidiano, criando modas e

inventando comportamentos. A destacada presença da publicidade na Corte apontava

para um mercado consumidor bastante movimentado, já na década de 1850. Trinta anos

depois os anúncios, já ultrapassavam as folhas dos jornais diários invadindo os muros e

78
espaços vazios da cidade. O movimento do Rio de Janeiro, nos seus odores, ruídos e

imagens, foi registrado pelo alemão Koseritz, em suas crônicas da Corte: “A vida de rua

no Rio faz sobre o estrangeiro, principalmente sobre o provinciano, uma impressão de

aturdir. Os nervos da vista, do ouvido e do olfato do habitante do Rio são, naturalmente,

longamente preparados contra tais impressões, mas o alienígena deve empregar meses

para se habituar”. Em relação ao ouvidos, reclama dos pregões variados, do trânsito de

carroças, bondes e do barulho infernal das rodas contra o calçamento de

paralelepípedos.

No que concerne à visão sua descrição ainda é mais detalhada: “Além do

copioso movimento das ruas, que na rua do Ouvidor, em dias de semana, chega ao

tumulto, desperta a atenção do olhar a multidão de quiosques, enfeitados de bandeiras

coloridas e cobertos de cartazes e tabuletas também em cores, nos quais se vende café e

bebidas [...] Efeito semelhante produzem os gigantescos anúncios, belamente enfeitados

com figuras de toda a sorte e pintados a óleo com letras enormes, que cobrem todos os

muros e paredes vazias. Até no interior dos cafés e restaurantes anúncios semelhantes

[...] estão nas paredes como tapeçarias. Estas figuras mostram que aqui o povo está se

americanizando” (Koseritz , 1980, p. 73-74). Curioso comentário para uma cidade que

teve a marca da cultura francesa, pelo menos até os anos quarenta do século XX.

A cultura visual dos jornais, revistas e das ruas abre uma janela para o cotidiano

oitocentista, na Corte do Rio de Janeiro, permitindo-se avaliar os significados atribuídos

às noções de conforto e bem viver. A maior parte da publicidade era ilustrada com

desenhos ou acompanhada de uma minuciosa descrição que permitia uma visualização

clara do produto a ser consumido.

79
Nos periódicos e catálogos anunciavam-se de tudo: banhos de vapor e de saúde,

acompanhados ou não por choques elétricos; banhos de mar, “com um magnífico tanque

de natação”, aberto desde as quatro e meia da manhã, ou ainda os mais confortáveis que

oferecem “grandes camarins para famílias com espelho, pente, bacia com água para os

pés” e ainda “empregados de toda a confiança para acompanhar dentro d’água as

pessoas que assim o desejarem”; tintas para tingir o “cabelo, barba e bigode”;

mobiliário variado incluindo-se “camas francezas, cômodas, toilletes, lavatórios,

toucadores, secretárias de mogno, guarda-vestidos, berços, bidés, mezinhas de costura,

mezas elásticas de jantar, aparadores de sala-de-jantar, guarda-louças e outros muitos

artigos”; cervejas de “Londres e da Escóssia”’; “machinismos hidráulicos” com grande

“sortimento de latrinas inglezas fixas e portáteis, bidés, ourinões de parede, lavatórios

para casa, repuxos e fontes de louças, bombas para poço e de alta pressão e para regar

jardins; louças e aparelhos de todas as qualidades para jantar e almoço - porcellanas

brancas, douradas e esmaltadas, objetos de fantasia de variadas formas e gostos,

candelabros, serpentinas, castiçaes, palmatórias e arandelas de bronze, casquinhas

inglesas e francesa, serviços de crystaes, vidros e bandejas de xarão e ferro”; baixelas de

“Electro-plate”; talheres de níquel “muito em uso na Europa, em substituição da prata

de lei”; drogarias com “relações diretas com os principais droguistas de Londres, Paris,

Hamburgo, Gênova, Lisboa e New York” onde era possível qualquer “pedido de drogas

que lhes seja feito, por preços moderados”; artigos para eletricidade, telefonia, telegrafia

e máquinas de costura Singer, típicos de um tempo de invenções vendidos numa loja

famosa da rua do Ouvidor, cujo nome - “Ao grande Mágico”- denota perfeitamente a

ambigüidade do século XIX em relação às inovações tecnológicas; perfumes; tônicos

para o cabelo; remédios para depurar o sangue, expelir vermes, melhorar a pele, facilitar

80
a digestão, tratar vertigens, dor de cabeça, vômitos, enjôos entre outras mazelas; papéis

pintados; tecidos variados tais como: morim, algodão americano, brim de linho e

algodão, brancos e escuros, irlandas, cambraietas, cambrainhas, paninhos, escossias,

riscadinhos finos e riscadinhos grossos, etc.; anéis elétricos e uma infinidade de

estabelecimentos de ensino, confeitarias e hotéis, fora as oficinas fotográficas6.

Em tal publicidade os produtos importados eram valorizados pela sua qualidade

e o estabelecimento comercial que os vendia garantia sempre contato direto com a

matriz internacional, com o intuito de asseverar a idoneidade dos produtos importados.

Em tais anúncios a narrativa é objetiva e valoriza-se a variedade das mercadorias

colocadas à disposição do consumidor. Em um outro tipo de publicidade, busca-se atrair

a atenção do cliente através de um recurso cômico. No entanto, a publicidade também

revelava hábitos e costumes nada modernos e bem próprios da sociedade escravista - os

anúncios de venda, aluguel e serviços de escravos.

As fronteiras da cor: fotografia e representação social de afro-brasileiros no

Segundo Reinado.

A escravidão presente no cotidiano das relações sociais, não passou

despercebida pelas lentes dos fotógrafos do segundo Império. Alguns fotógrafos

produziram imagens de escravos dentro e fora de seus ateliês. Christiano Jr. anunciava

no Almanaque Laemmert de 1866: “variada colleção de costumes e typos de pretos,

cousa muito própria para quem se retira para a Europa”. Produziu uma variada coleção

de carte-de-visite, onde os escravos apareciam em atividades quotidianas, encenadas no

estúdio do fotógrafo, em outras posavam em trajes bem cuidados, as mulheres com

turbantes e os homens de terno, mas todos sempre descalços. A escravidão era

81
delineada, neste caso, pela estética do exótico. Em outros o ângulo enfocado era o das

relações inter-raciais, ou como se costumava dizer dos costumes.

Ilustração 1 Ilustração 2

A casa de George Leuzinger, com sua “officina especial e melhores

instrumentos ingleses para paisagens, panoramas, stereoscopos (sic) e costumes”, foi

responsável por preciosas imagens onde o cotidiano tanto era recriado no estúdio quanto

captado no detalhe dos amplos panoramas. O primeiro caso é exemplificado por uma

série de seis carte-de-visite que registram o trabalho dos ambulantes, majoritariamente,

negras vendedoras de frutas, doces e fazendas, sendo que uma delas traz pendurada, às

costas, uma criança negra de colo, indicando o hábito e a possibilidade de se manter o

filho perto mesmo durante o trabalho. Já no segundo caso, o registro é casual, na

fotografia do casario da Lapa, surgem os lençóis estendidos no gramado ou pendurados

nos varais, indicando a atividade das lavadeiras.

82
Ilustração 3
Victor Frond, no álbum “Brasil Pitoresco”, publicou litogravuras de fotografias,

onde o trabalho escravo na rotina das fazendas de café e açúcar tornou-se tema

conhecido internacionalmente. Marc Ferrez também registrou o trabalho escravo nas

fazendas de café. Numa das fotos, em imagens nítidas, definidas e detalhadas, o grupo

de negros, vindos do campo posa, ao ar livre, para o fotógrafo, não lhes evitam o olhar,

miram direto para a objetiva, encarando o fotógrafo, como se quisessem fazer a imagem

falar. Em outra o quadro é mais perfeito, pois ao retratar o trabalho de secagem do café,

registra a convivência quotidiana das crianças brancas e negras, nas brincadeiras, e do

hábito de ter crianças perto mesmo durante o trabalho.

Ilustração 4 Ilustração 5

83
Nas fotografias, tiradas no Recife, a ama-de-leite aparece com a criança

refestelada em seus braços; a ama sentada com os braços apoiados, elegantemente

vestida com uma medalha no pescoço, é fotografada com o menino a seu lado, de pé,

recostado em seu ombro, ternamente lhe tomando o braço; o negro idoso, de fraque,

colete, gravata borboleta, bengala e cartola, posa sentado e cansado por toda uma vida

sem ser dono da própria vida.

Ilustração 6 Ilustração 7
Em todas estas imagens o olhar fixo na objetiva, direto para o fotógrafo, mais

uma vez querendo dar voz à imagem. Olhares que dizem muito registraram para a

posteridade, o modo como eram feitos os trabalhos, suas instalações e a presença

cotidiana do escravo na intimidade da casa próximo às crianças, mas silenciaram sobre a

violência presente no cotidiano das relações sociais. Sobre esta os anúncios são

eloqüentes.

Nos anúncios de serviços domésticos era comum encontrar-se, juntamente com o

aluguel de escravos, para variados serviços, o aluguel de “livres” e “brancos”, casais

juntos ou separados, na sua quase totalidade estrangeiros, denotando que o conteúdo da

palavra aluguel, ligava-se diretamente a oferta de serviços. Tal observação estendida

para os casos dos escravos indica que tanto o senhor poderia lucrar alugando o serviço

de seu escravo, quanto o próprio escravo poderia oferecer os seus serviços, em caso de

alforria, ou compra de liberdade. Concentramos nossa análise nos anúncios de aluguel e

84
venda de negros, no sentido de avaliar a presença destes no cotidiano doméstico da

Corte e a forma como eles eram verbalmente representados. Por oposição às imagens

visuais, a descrição verbal do escravo imputa um papel ao negro e tipologiza seus

atributos, criando uma representação que descaracteriza a pessoa e sua humanidade ao

valorizar o seu caráter de mercadoria e de trabalho potencializado.

Os anúncios, principalmente publicados no “Jornal do Comércio”, localizavam-

se nas páginas finais. Os de aluguel de “pessoas” vinham em primeiro lugar, separados

das demais mercadorias, já os de venda apareciam misturados às ofertas de outros

produtos. Todos possuíam um padrão geral de descrição que guardavam a seguinte

lógica:

Tabela 3

Aluga-se ou vende-se

Tipo de pessoa (cor definido sexo); escravo (a) ou ocupação.

Idade e qualidades (fiel, humilde, limpo, etc.) acompanhado do endereço para a negociação.

Em torno deste padrão ocorriam algumas variações que demonstram o

tratamento dado ao negro pela sociedade oitocentista, no espaço urbano. Em relação a

cor, eram comuns as expressões, “pardinha” ou “negrinha”: “Aluga-se uma pardinha,

livre, perfeita engomadeira;[...] Também se aluga uma negrinha, escrava, para andar

com crianças e fazer serviço leve de casa” (Jornal do Comércio, 2/7/1878, p. 5).

Anúncios como este desapareceram depois da abolição, neste permaneceram a

atribuição da cor, mas com a omissão da cor: “Aluga-se dous rapazes de cor, um bom

chacareiro e um copeiro, ambos de conduta afiançada e diligentes [...]” (Jornal do

Comércio, 8/10/1888, p.6)

Nem sempre nos anúncios a condição de escravo era explicitada, valorizando,

principalmente no caso dos homens o tipo de serviço prestado. Já em outros, era o

85
caráter de mercadoria o mais valorizado, nestes o escravo era tratado como uma “peça”,

não se enunciavam nem a ocupação, bastando a referência em se tratar de “uma preta

bonitta” ou uma “bela peça”.

Na sua maioria a oferta era de uma só pessoa, entretanto, a incidência venda e

aluguel de casais, famílias, parceiros, mãe e filho e de lotes, não eram incomum. No

caso dos aluguéis, antes do endereço, eram expostas algumas condições, sendo a mais

comum, principalmente no caso de mulheres e crianças, a de não poder sair na rua

desacompanhado, indicando uma preocupação clara contra roubo e fuga. No rol de

trabalhos oferecidos os mais comuns eram os de: ama de leite (sempre com a

especificação da idade do leite e se é primeiro parto ou não); ama seca; “lidar” ou

“brincar com crianças”; copeiro; cozinheiro; lavadeira; engomadeira; doceira;

costureira; mucama; chacareiro; quitandeiro, criado de escritório, ganhador; vendedor;

moleque de recados; carregador, trabalhador de roça, etc. Indicando que no espaço das

cidades o trabalho escravo especializava-se para além da divisão, presente nas fazendas

entre escravos do eito e de dentro de casa.

Ilustração 8 Ilustração 9
Os atributos masculinos e femininos se distinguiam pelo tipo de serviço

realizado. A mulher era sempre bem prendada, carinhosa com as crianças, sadia, com

bons costumes, sem vícios, perfeita ou insigne trabalhadora. Todas qualificações de

ternura e intimidade, necessárias ao convívio domésticos e cotidianos, próprios de uma

86
moral burguesa que já estava se disseminando no Brasil, por este período. Já os homens

eram valorizados pela inteligência, fidelidade, habilidade, esperteza e força. Atributos

necessários à vida na rua e nos limites da casa. Acompanhando-se a freqüência de tais

anúncios em cinco anos observou-se a seguinte proporção:

Tabela 4

1878 1881 1885 1888


jul. /set. jan./mar abr./jun. abr./jun. out./dez.
Venda* 18,6% 11,7% 1,6% 0,3% -
Aluguel* 120,7% 143,1% 89,5% l68,9% 54,6%
*Média diária de anúncios
É patente a predominância do aluguel sobre a venda, fato que se explica,

principalmente, se levarmos em consideração o valor de venda do escravo e o aluguel

pago pelo serviço mensalmente. Enquanto o aluguel de um “preto bom cozinheiro”, saía

por 35$ mensalmente, na década de 1870, o seu valor de compra não ultrapassava

1:200$ (Jornal do Comércio, 2/7/1878, p.5 e 23/11/1877).

Mesmo depois de abolida a escravidão os anúncios de aluguel de negros

continuou, por algum tempo, apontando para a permanência do trabalho negro no

âmbito doméstico. Fato também registrado nas fotografias, posto que, nas décadas

subseqüentes a abolição era comum o retrato de família, com o pai, a mãe as irmãs, os

irmãos, as crianças e bebes e as negras da casa, geralmente nas extremidades da foto.

Ou ainda o registro, já no século XX, da permanência do negro, juntamente com o

imigrante branco, nas fazendas de café.

Os dois tipos de textos – anúncios e fotografias - veiculam imagens

diferenciadas sobre a condição de ser escravo e ex-escravo no Brasil oitocentista. A

fotografia, pautada nos cânones do retrato que, como vimos coordenava beleza e

harmonia, produz uma representação das relações sociais que valoriza a convivência

87
pacífica ao invés de uma conflituosa. Os anúncios, por sua vez, denotam um outro tipo

de representação, baseada na lógica da mercatilização e valorização dos atributos da

aparência do produto, própria à publicidade da época. Tanto um quanto outro texto,

podem ser reconhecidos o olhar que a sociedade branca lança sobre o outro, o afro-

brasileiro.

Os elementos que elaboram esta alteridade sustentam-se em unidades culturais

consagradas pelo universo de sentido da sociedade escravista. Dentre eles destacam-se a

cor negra e suas variantes parda e mulata, o domínio de uma atividade/ trabalho, a

forma física – estabelecida por atributos de força e beleza; a cordialidade e passividade.

Enquanto os anúncios adjetivam, as fotografias, seguindo a lógica do pitoresco,

transferiam o fotografado da rua para o estúdio, do seu local de trabalho para o espaço

da encenação e recriavam, através da ambiência ilusória, o retrato do negro para o

branco. Neste contexto, como chama atenção Annateresa Fabris: “As imagens do pai de

família, do homem respeitável, da mulher honesta, engendradas pela elite, permeiam a

visão de si de toda a sociedade brasileira, e é isso que é revelado pelos retratos

fotográficos das amas-de-leite negras e crianças brancas. É o estereótipo da maternidade

que se vê neles, é a busca de uma dignidade derivada dos padrões sociais dominantes e

revelada pelas poses adotadas, e não uma relação pessoal profunda” (Fabris, 1997, p.11)

No entanto, o ato fotográfico pressupõe um consentimento, uma aceitação tácita

do fotografado das regras do jogo da representação. Ao mesmo tempo em que é visto, o

fotografado também se mostra, ele assume uma pose resultante de uma negociação,

entre o querer do fotógrafo e o desejo do fotografado. Seguindo as idéias de Roland

Barthes em Câmara Clara, Fabris ainda aponta, no retrato fotográfico, o encontro e o

confronto de quatro “personagens”: aquele que o retratado acredita ser; aquele que

88
gostaria que os outros vissem nele; aquele que o fotógrafo acredita que seja; aquele que

o fotógrafo se serve para exibir sua arte (idem, p. 2).

Ilustração 10 Ilustração 11

Ilustração 12 Ilustração 13
A construção da identidade do fotografado, nesta dinâmica de representação,

fica sujeita a um conjunto de mediações que vão desde a forma como, no caso estudado,

o escravo ou ex-escravo se insere no cotidiano social (considerando sua trajetória social)

até o rigor do fotógrafo em obedecer aos cânones do retrato fotográfico. Sem deixar de

considerar, a negociação inscrita no processo de construção da auto-imagem desse

fotografado através de índices de resistência que podem se concentrar num olhar fixo

para a câmera, um pé descalço ou um adorno investido de marcas étnicas. Ao se

mostrar, para a sociedade branca, de uma determinada maneira e não de outra, os

escravos e ex-escravos realizaram escolhas, com base em disputas simbólicas.

89
Ilustração 14 Ilustração 15

Ilustração 16 Ilustração 17

Entre o total sujeição aos estereótipos estabelecidos, pela sociedade escravista,

como querem alguns historiadores, às possibilidades de negociação e conflito como

querem outros, a construção de representações sociais de afro-brasileiros, na sociedade

oitocentista, desvenda-se como um processo dinâmico e complexo. Por um lado, a

lógica do sujeição aos estereótipos sociais é confirmada pelos anúncios de jornais e

pelos retratos de estúdio, onde o fotografado ora aparece com atributos de um outro

grupo social, ora em posição de subalternidade. Por outro, ao assumir a condição de

fotografado, o escravo ou ex-escravo tem a oportunidade de negociar sua própria auto-

imagem, abrindo, com isso, uma nova arena social.

90
Capítulo 5.

Na mira do fotógrafo: o Rio de Janeiro e seus espaços através das lentes de


Gutierrez.

A fotografia de paisagem nas últimas décadas do século XIX trazia como um de

seus motivos prediletos à cidade do Rio de Janeiro. A cidade, seu casario, seus limites

(rural e urbano), seus costumes e seus espaços de sociabilidade diversa eram figurados

através de chapas de grande formato, cujo domínio técnico surpreendia em nitidez e

definição de detalhes.

Verdadeiros filtros do olhar, as fotografias de paisagem formaram um estilo

bastante praticado por fotógrafos de diferentes procedências, atraídos para a cidade

devido à sua rica clientela e situação de centro político.

O objetivo deste trabalho é analisar a forma da expressão e do conteúdo das

fotografias sobre a cidade do Rio de Janeiro produzidas pelo fotógrafo espanhol

radicado no Brasil Juan Gutierrez7. O ponto central da análise será apresentar a cidade,

filtrada pelas lentes de Gutierrez, definindo-lhes seus espaços e fronteiras, à medida que

a figurava pela fotografia. Paralelamente, tentar-se-á situar socialmente a figura de

Gutierrez no campo da produção fotográfica oitocentista, marcado por critérios de

excelência e de proximidade ao poder.

Fronteiras do olhar: entre pintura e fotografia, uma linguagem adequada à


paisagem urbana.

O que os meus olhos virem. Com esta frase na ponta da pena, Robert Walsh,

capelão da comitiva do Lorde Strangford em visita ao Brasil nos anos de 1820, revela

suas intenções ao viajar pelo Brasil. A idéia de anotar tudo o que pudesse ver e ouvir

sobre o novo país, que estava por conhecer, vinha sempre acompanhada do desejo de ser

91
imparcial, como explica o capelão. “Irei para um país novo com a mente livre de

qualquer informação prévia, anotarei as coisas para informá-las a você à medida que

chamarem minha atenção e enquanto esta impressão for recente”.(WALSH, Robert.

Notícias do Brasil. Apud SUSSEKIND, 1990, p. 115).

As intenções de Walsh estão em perfeita sintonia com os interesses e atitudes de

diferentes viajantes, que praticamente descobriram um novo Brasil, depois da abertura

dos portos por D. João VI, em 1808. Para tais viajantes, a impressão causada pela visão

é a que fica, a que fornece o estatuto de verdade ao relato. O fato de ter estado presente,

ter sido testemunha ocular de um evento ou mesmo de um hábito cotidiano qualquer

garante à narrativa o teor de testemunho incontestável. O ideal de uma mente livre

isenta de preconceitos e pré-noções, encobria diferentes chaves de leitura para uma

mesma realidade. Uma primeira leitura mostraria uma paisagem plena de atributos de

oposição ao lugar de origem dos viajantes; uma segunda se estruturaria a partir dos

interesses da viagem, ressaltando nas descrições, relativamente detalhando, um ou outro

aspecto do lugar; e por fim, uma terceira chave de leitura, ancorada na tradição visual

renascentista, era composta pela necessidade de moldar e enquadrar o que se via, a

partir do que já se tinha visto (Gombrich, 1995).

No entanto, todas essas possibilidades tinham em comum uma educação do olhar,

que ensinara a figurar e a descrever o Brasil (Sussekind, 1990, p.39). Por outro lado, a

característica de diferenciação de tais leituras residia, justamente, na natureza do texto

que lhe sustentava – verbal ou visual. O diálogo entre textos era uma constante, as

expedições para o interior do Brasil eram sempre acompanhadas de “riscadores”,

artistas encarregados de dar a ver o que todos tinham visto, traduzindo, pela linguagem

plástica, a experiência. MAIS OU MENOS

92
A demanda por um meio ágil de se registrar essa experiência foi se acentuando ao

longo do século XIX, paralelamente a investimentos concretos, no sentido de criá-lo,

através da invenção da fotografia. No entanto, como explica F. ALIVONI.

“O nascimento da fotografia, assim como toda a sua história, baseia-se num

equívoco estranho que tem a ver com sua natureza de arte mecânica: o de ser um

instrumento preciso e infalível como a ciência e, ao mesmo tempo, inexato e falso como

a arte. A fotografia, em outras palavras, encarna a forma híbrida de uma “arte exata” e

ao mesmo tempo de “ciência artística”, o que não tem equivalentes na história do

pensamento ocidental” (Apud. Fabris, 1993, p.173).

Entre arte sublime e técnica pura se desenrola o debate em torno dos usos e funções

da fotografia no século XIX. A polêmica revela distintos discursos em relação à

capacidade de representar a realidade: um primeiro, de caráter idealista, compreende a

obra de arte como fruto da subjetivação do artista, resultado de seu espírito criativo; o

segundo, diametralmente oposto, valoriza a reflexividade do referente frente à

objetividade do registro técnico, como se ambos os meios de expressão não fossem

resultantes de investimentos de sentido, ancorados em práticas sociais bastante

concretas.

Neste sentido, para analisar o conjunto de 118 fotografias produzidas por Gutierrez

nos anos de 1890, é necessário situar a produção da fotografia de vistas urbanas numa

certa tradição visual. Avaliar a natureza do diálogo travado entre as pinturas de

paisagem e as vistas panorâmicas é o primeiro passo.

A pintura de paisagem instituiu um código que, partindo do “desenho em trânsito”

dos riscadores das expedições da primeira metade dos Oitocentos, mesclaram à lógica

documental elementos da pintura romântica. O que deve ser enfatizado é que a

93
figuração da paisagem se desdobrou em duas modalidades: uma que aperfeiçoou a

figuração pela linguagem pictórica, utilizando-se das diferentes técnicas da pintura; uma

outra que, partindo da busca de uma visualidade ideal a mais próxima possível do olho

humano, criou a fotografia. Esta última tem como paradigma a figura de Hercule

Florence, o ilustrador que inventou a fotografia, isolado na vila de São Carlos, nos idos

anos 1830, por necessitar de um meio para a documentação o mais fiel possível à visão

humana - a câmera fotográfica8.

No entanto, a fotografia, que nasce do desejo de retratar fielmente a realidade, é,

por sua vez, mais uma interpretação desta mesma realidade, pois, ao mesmo tempo em

que apresenta o referente, o representa através de uma linguagem codificada,

invalidando, com isso, a ambição de cópia fiel da realidade. A fotografia é sempre uma

outra coisa, uma imagem, um signo.

A estética realista almejada pela fotografia oitocentista pode ser entendida como

uma tentativa frustrada de ser o desenho feito pelo sol, ou, como queria Talbot, “o lápis

da natureza”, que, por sua vez, gera uma solução inovadora. No entender da historiadora

Vânia Carvalho “nas imagens fotográficas, as dificuldades técnicas acabaram por se

tornar qualidades peculiares de uma linguagem que contradiz status de produto real

outorgado à fotografia. A desintegração das formas, a contração do espaço, a

desarticulação de planos e a perda da profundidade, culminam em imagens sintéticas,

que anunciam mudanças nas convenções visuais instituídas pelo realismo”.(Carvalho,

1993, p.215).

Descendente direta dos cânones da pintura, a fotografia não apenas se constitui

como linguagem própria, “mas será responsável pela transformação em senso comum

de uma visualidade, que germinava no círculo restrito dos produtores da obra de arte”

94
(Idem, p.228). A imagem fotográfica coloca-se no contexto das múltiplas leituras para

paisagem circundante, como àquela que descrevia, com base no que já tinha visto

(apoiando-se nos motivos da pintura de paisagem), e, ao mesmo tempo, que educava o

olhar a novos modos de ver.

Vale lembrar que a fotografia se estabelece como dispositivo de representação, no

período em que o crescimento das cidades e da indústria estava gerando uma vasta

produção artística – tanto em termos de literatura quanto de artes plásticas – como

resposta à crescente influência das áreas urbanas. Neste processo, a fotografia assume o

seu lugar de maneira ativa, dando conta tanto da variedade e da multiplicidade da

vivência urbana como elaborando uma resposta plástica específica à questão de como o

espaço urbano deveria ser percebido e representado. Desta maneira, a imagem

fotográfica sintetiza a cidade tanto como imagem quanto experiência. É a representação

da modernidade que adquire excelência através da sua elaboração, por um dispositivo

moderno (Clarke, 1997.p.55).

A mira do fotógrafo: trajetória social de Juan Gutierrez.

O processo acima descrito tem como agente o fotógrafo que, através do ato

fotográfico, inscreve a paisagem e seus habitantes na imagem, transformando-as em

duplo de uma realidade cuja reelaboração tem a marca de sua autoria. Na condição de

duplo, de representação, a imagem da cidade e seus habitantes integra o estoque de bens

colocados à disposição para o consumo e intercâmbio simbólico, necessário aos

diferentes setores da classe dominante na elaboração de seus habitus de classe.

A autoria, marcada pela inscrição no verso das fotos do nome ou assinatura do

fotógrafo, ou pela própria assinatura na imagem, à maneira dos pintores, como fazia

Ferrez e Malta, localizava o autor e atuava como marca de distinção e pertença sociais.

95
Existe uma diferença entre a paisagem ou o retrato produzido por Disderi ou Nadar, por

Juan Gutierrez ou Insley Pacheco, por Ferrez ou Malta. O lugar ocupado pelos vários

fotógrafos no interior do campo fotográfico consubstanciava tal diferença.

O próprio circuito social da fotografia evidenciava uma hierarquia de valores, cuja

organização estruturava tal campo. Dentre estes, se destacam o acesso às inovações

técnicas, opções estéticas adequadas aos padrões internacionais, localização geográfica

do atelier, premiação em exposições, proximidade do poder de Estado, clientela

consolidada, contatos com o exterior, e, em menor grau, formação artística proveniente

das Belas Artes, denotando a autonomização do campo fotográfico em relação ao

artístico.

Qual a situação de Gutierrez no interior do campo? O historiador da fotografia

Pedro Vasquez conta que Gutierrez foi o penúltimo fotógrafo a receber o título de

“Photographo da Casa Imperial”, em 3 de agosto de 1889 (Vasquez, 1990). Título que

pouco aproveitou como marca de distinção, tendo em vista a queda do regime meses

depois. No entanto, o fotógrafo não se fez de rogado: já no ano seguinte, no verso das

fotos se qualificava como fotógrafo da república, ornamentando o nome de seu

estabelecimento com o símbolo da república.

Sua adequação à nova ordem institucional não se limitou aos emblemas e efígies.

Em 1893 foi contratado pelo exército para fotografar a campanha da Revolta da

Armada. Algumas destas fotos, juntamente com outras sobre a paisagem da cidade do

Rio de Janeiro, compõem um álbum finamente ornamentado, presenteado ao presidente

Prudente de Morais quando da sua posse. Todos esses indícios caracterizam sua posição

de destaque no campo fotográfico em fins do século XIX.

96
Desde que chegou da Espanha, em fins da década de 1880, Gutierrez abriu

estabelecimento na Corte. Nos primeiros anos instalou sua “Photographia União –

Estabelecimento de Primeira Ordem”, na rua da Carioca, n.° 114, atendendo uma

clientela composta por fazendeiros do Vale do Paraíba e alguns elegantes da cidade. Na

década seguinte, tornou-se proprietário da “Companhia Fotográfica Brazileira”,

apresentando-se como “J. Gutierrez Sucessor” no verso das fotos. O novo

estabelecimento situava-se na rua Gonçalves Dias, n. ° 40; um endereço que, em termos

da geografia dos estúdios do Rio de Janeiro, estava muito melhor situado – uma área de

excelência que dividia com a rua do Ouvidor a disputa pelas vaidades mundanas,

espaços de ostentação e consumo de luxo.

Em relação ao acesso à tecnologia fotográfica – um dos elementos de

hierarquização entre os fotógrafos – encontra-se no verso das fotografias, desde 1886, o

destaque para sua “especialidade em ampliações pelo processo inalterável do carvão”,

que não foi muito disseminado no Brasil. Além desse processo, encontram-se

referências a outros, tais como platynotipia, albúmen e phototypia, características que

demonstram que o fotógrafo preocupava-se em atualizar-se nas diferentes inovações de

seu tempo, preservando e ampliando a clientela.

A mudança de endereço, a preocupação em se manter em sintonia com os

processos internacionais, o atendimento a uma clientela distinta ávida por eternizar sua

auto-imagem no retrato fotográfico, e sua gradual proximidade ao poder, retratando os

eventos da República, revelam aspectos da trajetória social desse profissional. No

entanto, foi retratando a cidade que Gutierrez adquiriu sua distinção no campo

fotográfico, controlando de forma perfeita a estética da fotografia de vistas urbanas.

97
Encenação da paisagem: do panorama ao detalhe; do símbolo ao índice, a cidade

através das lentes de Gutierrez.

Refletindo sobre os requisitos para a realização do ato fotográfico, um fotógrafo de

nome Brogi escreveu em 1885, que: “É necessário que o operador tenha muito

conhecimento do processo químico; prática e gosto artístico para escolher o ponto de

vista quando se trata de monumentos ou de vistas. É necessário que estude o ponto de

luz mais favorável para obter daqueles justos contrastes de claro-escuro, de meios-tons,

com suficiente força de conjunto. É necessário finalmente, que espere o beneplácito do

fator principal da fotografia (a luz) para realizar seu trabalho.” (Apud.Fabris, 1993, p.

186)

Brogi destaca os atributos necessários à perfeita execução da fotografia. Uma

combinação de engenho, técnica, criatividade e gosto forneceriam à imagem fotográfica

uma originalidade que, ao mesmo tempo, estava plenamente sintonizada às demandas

visuais do seu tempo. Daí seu grande sucesso e disseminação tanto na forma de retrato

quanto de vistas.

Ainda na sua avaliação sobre o ato fotográfico, ficam evidentes nas preocupações

de Brogi, que tal combinação deveria ser feita com base numa linguagem definida por

elementos peculiares – contrastes de claros-escuros e meios-tons –, adequados aos

temas escolhidos – vistas ou monumentos. A valorização atribuída à luz a dignifica

como elemento diferenciador da linguagem fotográfica em relação à pintura de

paisagem. Enquanto nesta a luz é captada de um foco específico, o céu, a fotografia

capta a luz irradiada por todos os objetos, sendo necessário para uma boa foto o controle

total da entrada de luz e da intensidade da luminosidade.

98
Os recursos técnicos disponíveis no final do XIX já habilitavam muitos fotógrafos

a obter um bom nível de contraste e meios-tons, inclusive fotografando as nuanças das

nuvens do céu, evitando o céu chapado. No entanto, como chama atenção Vânia

Carvalho, apesar da atualização tecnológica dos fotógrafos brasileiros, parece que estes

resolveram “desviar o olhar do céu para a terra e assim valorizar os elementos no plano

inferior do quadro”.(Carvalho, 1993.p.208).

Neste sentido, podemos afirmar que, ao final do século XIX, as fotografias de

vistas urbanas constituíam uma forma de representação visual da cidade que reuniam a

modernidade do dispositivo fotográfico aos cânones da pintura romântica, cujo

resultado era inovador. A imagem fotográfica seria, portanto uma representação do real/

material, que possibilitava a descrição dos aspectos da cidade, habilitando um

conhecimento que vai do índice ao símbolo e do detalhe ao panorama.

Através de imagens nítidas e bem definidas se descortina aos olhos do observador

uma cidade que pode ser esmiuçada nos detalhes do arruamento, infra-estrutura,

paisagismo, arquitetura, como no movimento de suas figuras e personagens, além dos

espaços de trânsito e de sociabilidade. Ao mesmo tempo, enche a visão e extasia os

sentidos com a amplitude e equilíbrio das formas e volumes, estratégia típica das fotos

de panorama.

Todas estas características e preocupações foram encontradas na avaliação da

forma da expressão e do conteúdo elaborada por Gutierrez em seu conjunto de 118 fotos

sobre a cidade do Rio de Janeiro, encontradas no Museu Histórico Nacional.

Passamos a partir deste ponto a analisar esse conjunto de fotografias segundo uma

abordagem histórico-semiótica, que tem na noção de espaço sua chave de leitura

99
fundamental. Portanto, a análise seguirá a ordem dos campos espaciais encontrados na

fotografia concebida como mensagem, a saber: espaço fotográfico, espaço geográfico,

espaço da figuração, espaço do objeto e espaço da vivência. Neste estudo destaca-se a

avaliação da forma como a cidade foi visualizada.

Visualizando a cidade.

Para compor sua imagem da cidade do Rio de Janeiro, Gutierrez realizou um

conjunto de escolhas em meio a um conjunto de possibilidades, que circunscreviam as

fotografias de vistas e panoramas. Estas eram, geralmente, realizadas em chapas de

grande formato. No período no qual as fotografias foram tiradas (1893 – 1894), já se

utilizavam às chapas de vidro e o processo de colódio seco. As chapas já vinham

preparadas, acondicionadas em caixas de madeira com divisões, e depois de

sensibilizadas retornavam às suas caixas, sendo, mais tarde, reveladas e as cópias feitas

por contato.

Cabe ressaltar que tais escolhas não são feitas de forma aleatória. Como bem

mostrou Brogi acima, existe a necessidade de saber dominar a linguagem para compor

uma interpretação adequada daquilo que se vê ou que se quer mostrar. Portanto, ao

escolher uma determinada forma de expressão e não outra Gutierrez investiu de sentido

suas fotografias. Em tais escolhas, além de valores técnicos e estéticos, estão em jogo,

na composição da imagem adequada, valores ideológicos do universo social do qual o

fotógrafo provinha, atuando como mediador cultural, cuja prática artística só pode ser

entendida como prática social.

No conjunto de opções realizadas temos o seguinte quadro:

Tabela 5

100
Tipo da foto
Posada 93,0%
Instantânea 7,0%
Sentido da foto
Horizontal 85,5%
Vertical 14,5%
Direção – ponto de vista do fotógrafo
Da direita para a esquerda 44,0%
Da esquerda para a direita 9,5%
Centralizada 46,5%
De baixo para cima 5,0%
De cima para baixo 57,0%
Nivelada 38,0%
Distribuição de planos
1 plano -
2 planos 24,5%
3 planos 55,0%
4 planos 20,5%
Objeto central
Figuração 2,5%
Objeto exterior 17,0%
Paisagem
Densamente edificada 36,0%
Regularmente edificada 16,0%
Escassamente edificada 11,0%
Não edificada 17,5%
Arranjo e equilíbrio
Concentração inferior 68,0%
Concentração mediana 32,0%
Concentração superior 0%
Linha reta 57,5%
Semicírculo 38,5%
Espalhada 4,0%
Diagonal 51,0%
Nitidez
Foco
Tudo no foco 67,0%
Foco desigual 33,0%
Fora de foco 0%
Impressão visual/textura
Linhas bem definidas 73,0%
Linhas definidas 27,0%
Iluminação
Clara com sombras 62,0%
Clara sem sombras 38,0%
Escura 0%

O padrão encontrado para o item enquadramento foi o seguinte: imagens grandes

(em geral 27 x 19 cm), retangulares, posadas, horizontais, com equilíbrio entre o ponto

de vista que vai da direita para a esquerda e o centralizado, valorização perspectiva

101
visual descensional em detrimento da nivelada; três planos; a paisagem como objeto

central em 80,5% das fotos; com concentração na parte inferior e elementos arranjados

em linha reta, com tendência ao movimento devido à incidência de linhas em diagonal.

Para o item nitidez o padrão encontrado foi o composto por imagens com todos os

planos no foco e linhas bem-definidas, indicando contraste e perfeita delimitação dos

meios-tons, características confirmadas pelo item iluminação, com fotos

prioritariamente claras, mas com sombras.

O que essas escolhas traduziriam em termos de práticas sociais? Francastel (1985)

destaca a importância do pensamento plástico na relação dialética entre o real e o

imaginário. Neste sentido, a mediação entre o vivido e o imaginado, entre o visto e o

simbolizado, passa pelo filtro do olhar de quem vê, como um sujeito cultural e histórico,

recompondo o real na sua dimensão de representação. Portanto, o próprio ato

fotográfico, como modo de representar a cidade, é uma prática social ancorada num

saber ver e num saber fazer.

As imagens fotográficas que Gutierrez produz do Rio de Janeiro são panorâmicas,

com profundidade de campo, tiradas do alto para valorizar a sucessão de planos,

equilibradas com forte valorização dos aspectos terrestres, em detrimento do céu que,

quando aparece, é completamente chapado. São, ainda, compostas de maneira quase

geométrica, valorizando a angulação da própria geografia urbana. Desta forma, linhas

retas em diagonal ou semicírculo em deslocamento servem de apoio ao arranjo que se

completa pela contigüidade espacial fornecida pelo contraste com sombras.

É fato que, num primeiro momento, a relação com a pintura de paisagem parece

automática. Gutierrez fotografa o que vê através do que já tinha visto, numa pintura de

Rugendas ou Facchinetti, mas ao colocar em prática o saber adquirido para o ato

102
fotográfico, realiza uma nova imagem, cujos elementos e seu arranjo a diferenciam da

pintura.

Alem disso, a tradição fotográfica oitocentista tem no panorama urbano não

somente seu elemento de sustentação, mas aquilo que a distingue como forma de

expressão original, como reflete Grahan Clarke: “In essence, a panoramic view suggests

control and possession by the eye. As its derivation implies (Greek pan = all), we see all

of a city from a single point of view. The eyes imagines that it dominates a dense and

disparate space whilst simultaneously keeping the city at a distance. The view suggests

the totality of the urban scene and, crucially, makes the eye of the viewer the center of

that totality. Weather it would be a fully-fledged panorama, a prospect, or looking down

from an upstairs window, the photographer has always attempted to rise above the

street: looking up toward the sky. Such a vertical axis has a dense symbolic function

and, especially in relation to New York, accrues a distinctive tradition in its own

right”.(Clarke, 1995, p.76).

Completa destacando os ícones (arranha-céus, torres de igrejas, torres, etc.) que

celebram a cidade e produzem uma hierarquia, através da qual compomos seu mapa

turístico assim, construindo uma geografia individualizada do espaço urbano.

Reconstruindo a cidade.

O espaço da cidade é hierarquizado através da cartografia fotográfica de Gutierrez,

hierarquia que se estabelece em função de alguns aspectos da composição fotográfica:

quantidade de atributos e detalhes, incidência numérica de certos lugares em detrimento

de outros e principalmente a relação tema/ lugar. A avaliação deste último item

103
possibilitou distribuição das fotografias pelos principais locais da cidade, segundo o

princípio de organização temática, que envolveu a escolha de 19 temas.9

Movimento urbano
1. Atividade do mercado: MERC
2. Aspectos do transporte: TRANS

Panorama urbano
3. Vista geral da cidade: VGC
4. Região portuária em perspectiva: RPP
5. Região portuária – Instalações: RPI

Região litorânea
6. Movimento costeiro: MC
7. Litoral do centro com casario: LCC
8. Região central – densidade de edificação, aspectos do arruamento, morros com edificação, morros sem
edificação, destaque para as construções religiosas, laicas e públicas: RC
9. Região Florestal (com benfeitorias urbanas): RFU
10. Prédios Públicos: PP
11. Região residencial com casario e perfil dos morros: RR
12. Praia residencial: PR
13. Fábrica: F
14. Beleza natural (sem edificação): BN
15. Arrabalde em fase de urbanização: A
16. Ponto turístico: PT

Panorama marítimo:
17. Ilha sem identificação: I
18. Praia tropical: Pt
19. Parques e Jardins: PJ

Este conjunto de temas se distribuiu pela cidade de acordo com o seguinte mapa:

Tabela 6
Local retratado Tema retratado
M TR VG RP RP M LC RC RF PP RR PR F A BN I PT Pt PJ
ER AN C P I C C U
C S
Centro da cidade
Cais Pharoux – mercado de peixe 6 6
Cais Pharoux – adjacências 1 1
Cais dos mineiros 1 1
Docas da alfândega 1 2 3
Saco da Gamboa 1 1
Arsenal da Marinha 1 1
Mosteiro de São Bento 1 1
Ilha das Cobras 1 1
Ilha Fiscal 2 2
Praia de Santa Luzia 4 4

104
Passeio Público e adjacências 1 1
Centro da Cidade 9 1 10
Morro do Castelo 3 3
Praça XV e adjacências 1 1
Rua Larga 1 1
Lapa e adjacências 4 4
Praça da República e adjacências 2 2 1 5
Morro de Santa Tereza 2 2
Morro do Senado 2 2
Praça Tiradentes 1 1 2
Locais indefinidos
Ilha na Baía de Guanabara 1 1
Conjunto da cidade
Rio visto da Ilha de Villegagnon 1 1
Rio visto da Floresta da Tijuca 2 2
Rio visto do Corcovado 2 2
Niterói
Pedra do Índio 2 2
Pedra de Itapuca 2 2
Paquetá 3 1 4 9
Floresta no Rio
Caminho do Silvestre 3 3
Paineiras 2 1 3
Estrada do Corcovado 1 3 2 6
Mirante Chapéu de Sol 2 2
Bairros fora do Centro
Catete 3 3
Flamengo 2 2
Praia do Russel 1 1
Glória 3 3
Largo do Machado 2 2
Laranjeiras 2 2
Jardim Botânico 1 7 8
Praia da Saudade / Enseada Urca 3 2 5
Copacabana 1 4 5
São Cristóvão 1
Botafogo 2 1 2
Totais 6 3 1 2 1 5 25 3 9 21 11 4 9 1 4 4 9

105
Em termos de região, a geografia da cidade se reconfigura entre o centro e fora do

centro. Na região central, o tema se concentra no casario e na densidade de edificação;

no conjunto fora do centro, a diversificação temática garante que se perceba o

crescimento da malha urbana e a configuração de funções diferenciadas para distintas

localidades, já no final dos oitocentos. Fora do centro passa a ser o lugar da moradia, do

entretenimento, do contato com a natureza e da possibilidade da redefinição espacial da

cidade através da conquista da floresta e dos arrabaldes pela civilização que avançava.

De acordo com essa geografia, têm-se os seguintes pares de identidades: centro da

cidade/ área densamente edificada; Cais Pharoux – mercado/ movimento urbano;

Paquetá/ praia tropical; Jardim Botânico/ parques e jardins; Morro do Corcovado/

beleza natural sem edificação; Botafogo, Flamengo, Laranjeiras, Catete, Glória/ áreas

regularmente edificadas identificadas como regiões residenciais; e Copacabana/

arrabalde em fase de urbanização e área escassamente edificada. Estes pares criam uma

oposição entre o espaço edificado e não edificado, entre o natural e civilizado, criando

uma hierarquia cujo valor estético das imagens e das belezas naturais é o elemento de

distinção.

A cidade cuja vocação seria a beleza deveria adequá-la ao seu destino de

civilização, valor absoluto para a modernidade de fim de século. Não podemos analisar

as imagens de Gutierrez a partir do que sabemos que foi feito da cidade, anos depois,

com a reforma Pereira Passos. Ao invés de denunciar diretamente a desordem urbana do

centro da cidade, o fotógrafo conformava essa região num quadro de harmonia com a

paisagem circundante, denotando sua precariedade. Assim, Gutierrez ao contrapor as

imagens da região central com as possibilidades abertas pelas fronteiras do olhar, que se

106
lançavam rumo aos arrabaldes, revelava sua saturação e apontava a necessidade de

reformas.

Paralelamente, a ênfase dada, nas suas imagens, à ação do homem sobre a natureza,

da qual a seqüência de fotos do Corcovado é emblemática, ressaltava a capacidade da

civilização em se adequar à paisagem, reinventando a cada novo território conquistado

uma nova concepção de beleza. Não há, portanto, um juízo de valor estético em relação

às diferentes regiões da cidade. Através das lentes de Gutierrez, todas são

inegavelmente belas. Uma beleza realizada e uma a realizar, tendo o Homem como seu

artífice.

A cidade vivida.

Na série de fotografias em que Gutierrez recria a paisagem do Rio de Janeiro, em

somente 30% das imagens aparece alguma figuração, distribuída de acordo com o

seguinte quadro.

Tabela 7
Figuras Transeuntes Mulheres Mulheres Homens Homens Crianças Animais
retratadas indefinidos negras brancas negros brancos
Atividade
Transitando 5 1 2 1 2 1 1
Trabalhando 3 2 2 2
Conversando 1 1 1 1
No bonde 2
Posando 1 1 15 1
p.foto
Indumentária
Roupas 3 4 4 15
simples de
trabalho
Roupa 3
estilizada
(baiana)
Roupas de 2 2 1 2
passeio
Posição das pessoas na foto
1° Plano e 3
objeto
central
1° Plano no 2 1 4 15 2 1

107
contexto da
paisagem
2° Plano 4 1 1 1
3° Plano
Local da Cais Cais Praça da Cais Cais Paquetá; Praça XV e
cidade . Pharoux- Pharoux e República e Pahorux e Pharoux e Praça XV e adjacências
mercado de adjacências Adjacências; adjacências, adjacências, adjacências =
Peixe; Cais = 4 fotos Botafogo= Caminho Praça Da = 2 fotos 1 foto
Pharoux 2 fotos do silvestre República e
adjacências; = 3 fotos adjacências,
Rua Larga; Praça
Praça da Tiradentes,
República e Pedra de
adjacências, Iatpuca,
Mirante Paquetá;
Chapéu do Estrada do
Sol, Corcovado;
Copacabana Copacabana
= 9 fotos = 15 fotos

Segundo o quadro acima, a figuração é circunscrita a um topos, cuja

representatividade se faz tanto pela lógica do pitoresco quanto pela sua inserção na nova

lógica de divisão do capital/ trabalho que se instituía.

Esta última tendência é visualizada pela escolha em retratar as pessoas

trabalhando, em roupas simples ou estilizadas, de forma bastante próxima. São fotos em

geral niveladas e com dois planos, evitando a profundidade de campo e consolidando a

sua inserção no contexto da paisagem. A seqüência de fotos sobre o mercado do cais

Pharoux é significativa ao apresentar, de forma vívida e detalhada, aspectos da rotina e

do movimento do mercado. A região mais retratada, mais densamente edificada era,

naturalmente, a mais povoada.

Ao mesmo tempo, seguindo a tendência presente nos panoramas, o olhar

enquadrava o que via, segundo um modelo anterior e ideal, da ordem do pitoresco. Mas

o que finalmente revelava eram as condições desiguais e precárias das camadas recém-

libertas da população. Em franco contraste com os “retratos de typos” tão comumente

108
divulgados pelos retratistas, abrindo caminho para o tempo da fotorreportagem, pela

valorização da fugacidade da tomada não posada.

Os detalhes da cidade.

Um universo significativo de objetos compõe o mosaico de panoramas

elaborados pelas lentes de Gutierrez. Ao fragmentarmos a imagem em seus detalhes, em

suas unidades culturais, os objetos adquirem uma função sígnica, como vetores de

relações sociais. Via de regra, estes objetos se apresenta, na imagem fotográfica, a partir

de uma tipologia básica: objetos interiores, exteriores e pessoais. Tais objetos indicarão

a interpenetração dos espaços ou a valorização de um em detrimento de outro,

dimensionando a ênfase entre as esferas públicas e privadas.

No conjunto de fotografia analisado, o quadro de objetos foi o seguinte.

Tabela 8
Objetos retratados Objeto central Distribuídos entre os
por fotos planos-contexto da paisagem
Exteriores
Barcos 3 19
Postes 16
Cestos 3
Caixas 3
Toldos 5
Guindastes 9
Prédios públicos 6 27
Edificação militar 4
Construção religiosa 2 17
Diversão pública 2
Construção provisória 1
Construção precária 9
Casario (casas baixas e sobrados) 2 42
Palácios e chácaras 1 6
Prédio de fábrica 1 1
Casa de operários 1 1
Material de construção 5
Jardins 7 13
Pátios e terreiros 8
Lojas 3
Quiosques 7
Hotel 1
Mercado 2 5
Arborização 1 41
Vegetação 35

109
Palmeiras 33
Torres das igrejas 17
Telhados 32
Chaminés 19
Sacadas 1
Lixo 5
Fachadas 24
Estações 6 6
Ilhas 2 2
Tílburis 4
Bondes 4
Trem 1 3
Trilhos 2 10
Transporte de carga 2
Barcas ou ferries 2
Funicular 1
Mirante 2 3
Estábulo 1
Estátuas 1 2
Chafariz 2
Mastros 7
Canteiros 1 7
Cercas, muros e gradil 13
Objetos pessoais
Guarda-chuva 3
Roupas secando 3
A lógica presença dos objetos – maciçamente exteriores – na fotografia de

Gutierrez se faz através da sua inserção no conjunto. Como partes de um mosaico,

adquirem sentido quando vistos na totalidade. O detalhe se explica pela lógica do

panorama, assumindo sua função sígnica quando associado ao espaço geográfico. A

presença significativa, como demonstra a tabela acima, do casario (sobrados e

palacetes), árvores e vegetação em geral, telhados, fachadas, prédios públicos,

construções religiosas, postes e barcos traduzem um Rio de Janeiro densamente

edificado, urbanizado, com ênfase em prédios associados a alguma forma de poder, mas

que se mantém em harmonia com sua fronteira natural. Em 55% das fotos encontram-se

três planos, distribuídos de modo a colocar ao fundo os, ou seja, Gutierrez enquadrava a

paisagem valorizando a profundidade de campo e, com isso, a emoldurava com a

silhueta dos morros – o próprio limite imposto pela natureza.

110
Por outro lado, o olhar acurado desvenda nos detalhes da montagem elementos

que corroboram a oposição espacial já antevista na análise do espaço geográfico. A

cidade traduzida por seus detalhes é também uma cidade que opõe o centro ao

arrabalde; as áreas de trabalho às de moradia; natureza à civilização, ao mesmo tempo

em que abre possibilidades de interação através da presença de objetos exteriores típicos

de uma localidade em outra. O arrabalde torna-se área de moradia através da presença

dos trilhos de bonde; já o centro, densamente povoado, mantém as características de

balneário: nas fotos da rua Santa Luzia, emoldurada por coqueiros, daria quase para

sentir a brisa do mar e o clima aprazível.

Neste sentido, a retórica positivista, da valorização do progresso material, é

perturbada pela historicidade da imagem, que, por seus indícios e detalhes, aponta as

peculiaridades da cidade no contexto das crescentes demandas por modernização.

A cidade e sua vivência fotográfica.

No espaço das vivências, experiências e comportamentos, a paisagem

panorâmica decalca-se na geografia da cidade, indicando uma especialização espacial

de atividades associadas ao cotidiano da cidade e ao seu processo de expansão rumo aos

arrabaldes. Cada bairro, cada acidente geográfico, cada instantâneo do movimento

urbano retratados buscavam tecer a relação entre civilização e natureza, ora

harmonizando com a lógica romântica da pintura acadêmica de paisagem, ora descendo

aos rés do chão e detalhando a cidade nas suas múltiplas contradições sociais.

111
Capítulo 6.

A Inscrição na cidade: paisagem urbana nas fotografias de Marc Ferrez e Augusto


Malta.
O presente artigo tem como objetivo avaliar o papel desempenhado por dois

importantes fotógrafos da cidade do Rio de Janeiro, na construção de uma imagem de

cidade, adequada ao seu papel de Capital, tanto do Império quanto da República. Por

outro lado, pretende-se discutir a idéia de autoria na produção fotográfica, recuperando,

assim, a sua dimensão de trabalho criativo. A dimensão criativa associada ao trabalho

fotográfico implica na avaliação da possibilidade de se falar de um campo propriamente

fotográfico, associado a um certo habitus (Bourdieu), próprio a uma sociabilidade

urbana.

Assim, ao assinar suas fotografias, Ferrez e Malta, deixavam suas inscrições na

cidade, como marca de uma autoria, cujas escolhas engendraram a elaboração de

imagens-monumentos, suportes de memória tomados como objeto da História.

Paisagem urbana e experiência visual.

O daguerreótipo chega ao Brasil, em 1840, pouco tempo depois de ter sido

apresentado na França. Sua chegada foi registrada pelos jornais da Corte:

"Finalmente passou o daguerreótipo [sic] para cá os mares e a fotografia, que ate

agora só era conhecida no Rio de Janeiro por teoria, [...]. Hoje de manha teve lugar na

hospedaria Pharoux um ensaio fotográfico tanto mais interessante, quanto e a primeira

vez que a nova maravilha se apresenta aos olhos dos brasileiros. Foi o abade Compte

que fez a experiência: e um dos viajantes que se acha a bordo da corveta francesa

L'Orientale, o qual trouxe consigo o engenhoso instrumento de Daguerre, por causa da

facilidade com que por meio dele se obtém a representação dos objetos de que se deseja

112
conservar a imagem [...] E preciso ver a cousa com seus próprios olhos para se fazer

idéia da rapidez e do resultado da operação. Em menos de nove minutos o chafariz do

Largo do Paço, a praça do Peixe, o mosteiro de São Bento, e todos os outros objetos

circunstantes se acharam reproduzidos com tal fidelidade, precisão e minuciosidade, que

bem se via que a cousa tinha sido feita pela própria mão da Natureza, e quase sem a

intervenção do artista.”(Jornal do Comércio, 17 de janeiro de 1940)”.

A necessidade da experiência visual, ressaltada na crônica, e uma constante no

século XIX. Numa sociedade em que grande maioria da população era analfabeta, tal

experiência possibilita um novo tipo de conhecimento mais imediato e generalizado. Ao

mesmo tempo em que habilita os grupos sociais a formas de auto-representação até

então reservadas a pequena parte da elite que encomendava a pintura de seu retrato. A

demanda social por imagens, incentivou pesquisas no sentido de melhorar a qualidade

técnica das representações, facilitar seu processo de produção e retirar-lhe o caráter de

relíquia, ainda presente no daguerreótipo. De fato, apesar de sua possível

reprodutibilidade, o daguerreótipo ainda aparecia como uma peça única, acondicionada

em estojo de luxo às vezes considerado como uma jóia.

Portanto, desenvolvimento técnico aliado à conquista de novos mercados

consumidores e de paisagens exóticas, foram ingredientes importantes para os novos

usos e funções da imagem, notadamente a fotográfica, no século XIX. Atuando nesta

direção, os fotógrafos paisagistas contribuíram para corroborar a imagem delineada

pelos paisagistas e desenhistas que acompanhavam as expedições naturalistas. Ou seja,

enquadrando o Brasil a partir de esquemas pictóricos já dados, mais uma vez a

paisagem é fundada e criada, e o olhar educado a admirá-la de uma certa maneira. No

século XIX, a fotografia de paisagem prendia-se aos cânones da pintura romântica e do

113
paisagismo dos grandes panoramas, daí a utilização de chapas de grande formato serem

as mais adequadas a este tipo de fotografia, por produzirem um resultado próximo às

vistas e panoramas pintados. Marc Ferrez, fotógrafo brasileiro que atuou na Corte a

partir da década de 1870, especializou-se em vistas, chegando mesmo a aperfeiçoar o

aparelho inventado por M. Brandon, próprio para vistas panorâmicas.

Entretanto, é importante perceber que a fotografia de vistas, mesmo com apoio

nos cânones da pintura, desenvolve uma linguagem própria, onde a nitidez e a

distribuição clara dos planos é a marca fundamental. Uma estética cuja função

primordial é a de transmitir mensagens que engendrem um sentido, distinto daquele

produzido pelas pinturas, aquarelas e desenhos. Como bem avalia Solange Ferraz de

Lima, a fotografia abstrai o tempo e reordena elementos do real na síntese da imagem.

“Ao escolher temas variados e isolados entre si para compor as vistas, tais imagens

eliminam as relações sociais, justapondo-se numa colagem do real, onde o progresso se

equivale pelo que aparenta não pela realidade” (Lima, 1993, p.79). Guardando tal

perspectiva, a fotografia brasileira no século XIX teve como espaço de excelência para a

sua divulgação as exposições universais. A participação do Brasil em tais eventos

também contribui para a criação de uma imagem de Império.

As premiações conquistadas através da participação nas exposições figuravam

no verso dos retratos dos fotógrafos da Corte, como marca de distinção e qualidade de

seus serviços. Apesar de a premiação ser dada pelos belos panoramas realizados, era o

retrato o que mais atraía a clientela já consolidada na Corte na década de 1860. Aliás, o

século XIX, apesar de todo o fascínio causado pelas vistas estereoscópicas10, foi

dominado pelo império do retrato.

114
Ilustração 18
A pose é o ponto alto da 'mise-en-scéne' fotográfica no século XIX, pois através

dela combinam-se a competência do fotógrafo em controlar a tecnologia fotográfica, a

idéia de performance, ligada ao fato do cliente assumir uma máscara social que, muitas

vezes não lhe competia e a possibilidade de uma nova forma de expressão adequada aos

tempos do telégrafo, trem a vapor, enfim, um tempo que tinha como diversão imaginar

o futuro. A fotografia, principalmente, o retrato fotográfico, com toda a sua

possibilidade de encenação, inventa uma memória para ser perenizada, eternizando-se

na emulsão fotográfica uma vontade de ser, algumas vezes risível, mas, na maior parte,

crível. Uma imagem produzida dentro de um regime visual cuja função era a de ser uma

tal como define Bourdieu “representação da sociedade em representação” (apud. Fabris,

2004), ou seja, um duplo do próprio ato que a fundava como imagem/monumento.

Do espaço das capitais até pequenas cidadezinhas do interior, a fotografia foi

criando seu circuito social composto por fotógrafos de diferentes procedências que

ofereciam produtos variados, para uma clientela que crescia e se diferenciava

socialmente.

Entre imagens: campo fotográfico e habitus de classe.

O fotógrafo através do ato fotográfico inscrevia a paisagem e seus habitantes na

imagem, transformando-as em duplo de uma realidade cuja reelaboração tem a marca de

sua autoria. Na condição de duplo, de representação, a imagem da cidade e seus

115
habitantes integram o estoque de bens colocados a disposição para o consumo e

intercâmbio simbólico, necessário aos diferentes setores de classe dominante na

elaboração de seu habitus de classe.

A autoria marcada pela inscrição no verso das fotos, do nome ou assinatura do

fotógrafo, ou pela própria assinatura na imagem, à maneira dos pintores, como fazia

Ferrez e Malta, localizava o autor e atuava como marca de distinção e pertença sociais.

Existe uma diferença entre a paisagem ou o retrato produzido por Disderi ou Nadar, por

Christiano Júnior ou Insley Pacheco, por Ferrez ou Malta, o lugar ocupado pelos vários

fotógrafos no interior do campo fotográfico consubstanciava tal diferença.

O próprio circuito social da fotografia evidenciava uma hierarquia de valores,

cuja organização estruturava tal campo, dentre estes se destacam: o acesso às inovações

técnicas, opções estéticas adequadas aos padrões internacionais, localização geográfica

do atelier, premiação em exposições, proximidade do poder de Estado, clientela

consolidada, contatos com o exterior, e em menor grau, formação artística proveniente

das Belas Artes, denotando a gradual autonomização do campo fotográfico em relação a

este.

Tomemos dois fotógrafos de dois tempos, para compor tal idéia: Marc Ferrez e

Augusto Malta.

Marc Ferrez, carioca, nascido em 1843, dedicou-se fundamentalmente a

fotografar vistas, “longe de ser um paisagista casual ou episódico como os demais

fotógrafos de seu tempo, reivindicou de modo claro sua opção pelo paisagismo e fez

questão de qualificar sua empresa de estabelecimento, ao invés de empregar os termos

116
mais usuais, à época, de ateliê ou estúdio [...]”( Vasquez, 1995, p.30). De fato Ferrez se

anunciava no Almanaque Laemmert como fotógrafo de vistas e panoramas.

Devido a esta escolha Ferrez estava sempre envolvido com algum projeto

expedicionário, ou algum tipo de especialidade, como foi o caso das fotografias de

embarcações, que lhe valeu o título de Fotógrafo da Marinha Imperial. Além deste título

foi sagrado Cavaleiro da Ordem Imperial da Rosa em 1885. Foi premiado em

exposições nacionais e internacionais, dentre as mais importantes, destacam-se: a

exposição do Centenário da Independência dos EUA, em 1876, e a exposição universal

de Paris, em 1877, conquistando, através de tais eventos, reconhecimento internacional.

Além de incansável pesquisador de paisagens e temas urbanos, Ferrez, se

dedicava à atualização técnica, inventou um sistema de fixação da câmera para

neutralizar o balanço das ondas do mar, quando fotografava embarcações; foi um dos

primeiros a se utilizar o flash de magnésio; a introduzir chapas coloridas; e pioneiro na

exploração comercial dos cinemas, além de ter desenvolvido uma gigantesca câmera,

para fixar imagens de panoramas.

Apesar de não ser retratista, Ferrez realizou inúmeros retratos da família

imperial, denotando através desta escolha sua situação no interior do campo fotográfico.

Gozava da intimidade do poder, detinha um capital técnico e cultural expressivo e

participava do circuito fotográfico internacional, itens fundamentais para uma

expressiva trajetória como profissional de imagens no século XIX.

Augusto César Malta de Campos, alagoano, nascido em 1864, veio cedo para o

Rio de Janeiro, dedicando-se, desde então, a um rol variado de atividades. Foi vendedor

de móveis, guarda-livros, comerciante de secos e molhados e, antes de se tornar

117
fotógrafo aos 36 anos, vendedor ambulante de tecidos, atividade na qual conquistou

uma seleta clientela que depois lhe freqüentou como fotógrafo.

Apresentado, casualmente, ao Prefeito Pereira Passos, por um amigo, o ferrenho

republicano, Augusto Malta, torna-se em 27 de julho de 1903, o primeiro fotógrafo

oficial da prefeitura do Rio de Janeiro. Dentre as suas tarefas tinha de documentar

detalhadamente o processo de remodelação e modernização da Capital Republicana,

além de registrar solenidades oficiais e o cotidiano da prefeitura. No entanto, Malta não

se limitou ao contato profissional com Passos, tornou-se seu amigo e fotógrafo

particular da família Passos, além disso, mantinha constante comunicação com o

prefeito através das inscrições que realizava em suas fotos, nas quais indicava os prédios

que necessitavam serem colocados a baixo, entre outras opiniões sobre a cidade e seus

habitantes (Oliveira Jr., 1994, 1998).

Além do trabalho como fotógrafo oficial, Malta também tinha um

estabelecimento fotográfico próprio, onde realizava trabalhos para uma clientela

formada por famílias importantes, personalidades do governo e por destacadas empresas

privadas, dentre as quais a LIGHT, companhia de fornecimento de energia elétrica, sua

cliente por mais de 40 anos. Malta não foi honrado com premiações: seu capital

simbólico estava representado pela proximidade que mantinha com o poder, portanto,

suas imagens contribuíram para a construção da ideologia do progresso e da

modernização própria ao contexto de redefinição da do Brasil na ordem capitalista

internacional.

Ambos são exemplos claros de fotógrafos que, apesar de não terem uma origem

social de classe dominante, atuam no sentido da produção de bens culturais que são

computados no armazenamento do capital simbólico colocado a disposição desta na

118
construção do projeto hegemônico de sua representação política. No entanto, à medida

que adquirem relevo no interior do campo reinvestem-se de uma competência que os

distingue, dos demais fotógrafos, como àqueles que produzem sentido social,

delimitadores do habitus de classe. (Bourdieu, 1982, p.192)

Por isso nos parece relevante dimensionar o papel da imagem fotográfica na

estruturação do habitus. Vale refletir como, o circuito social da fotografia, a experiência

visual por ela disponibilizada e as práticas sociais de memória elaborados a partir da

invenção e difusão da fotografia, estão estreitamente relacionadas à elaboração de

representações sociais de comportamento que constituem a distinção dos diferentes

grupos que circulam e convivem na cidade.

Neste sentido, Ferrez e Malta, não se opõem no interior do campo fotográfico,

ao contrário, atualizam temporalmente o capital ideológico investindo numa nova

qualidade de imagens como forma de capitalização simbólica, para a fração de classe

dominante, que detém o poder tanto imperial quanto republicano.

A inscrição na paisagem: Ferrez e Malta visualizando a cidade.

A fotografia surge em um momento, no qual, a cultura ocidental estabelecia uma

nova consciência do mundo natural associado aos processos de expansão e colonização

de novas regiões do globo. Ao menos visualmente, a fotografia possibilitava controle

quase total da terra, segundo o padrão de ordenamento e as demandas políticas do

colonizador.

Dois eixos norteariam as representações elaboradas visualmente pela fotografia,

neste contexto: o primeiro estaria associado ao pitoresco e ao lazer possibilitado pela

cada vez maior circulação de pessoas entre diferentes países. Neste caso, o pitoresco é

119
um índice cultural e o turista pitoresco busca cenas ideais pautadas em determinados

pressupostos não ditos, numa mirada penetrante, que tem a ver, tanto mais com um ideal

imaginado, do que propriamente com o que está sendo visto. O segundo buscaria

representar o espaço modernizado e civilizado, a natureza dominada visualmente terá

como ícone da modernidade a paisagem urbana. A fotografia urbana do final do século

XIX, como explica a historiadora Vânia Carvalho, reintroduz a noção de “belo ideal”

nas imagens da natureza ordenada segundo os modelos dos jardins franceses. Na

refuncionalização do espaço da natureza pela fotografia urbana, estariam implícitas

formas de disciplinarização baseadas no seu uso produtivo e como espaço de lazer

(Carvalho, 1993, p. 225)

O crescente processo de urbanização da segunda metade do século XIX produziu

uma nova textualidade, na qual textos verbais e não verbais se entrecruzariam na

elaboração dos campos de significação da cidade como imaginação e vivência. A

fotografia toma parte desse processo, de maneira ativa, simultaneamente respondendo a

variedade e a multiplicidade da vida e experiências urbanas, e às questões relativas à

como a cidade era percebida e representada. Em resumo, o ato fotográfico inscrito no

espaço urbano relaciona-se, estreitamente, a complexidade visual da cidade tanto como

experiência quanto como imagem (Clarke, 1997, p.75).

É dentro desta lógica que se inscrevem a produção fotográfica de Marc Ferrez e

Augusto Malta11. Vale lembrar, que tais produções estariam associadas à posição de

ambos os fotógrafos no interior do campo fotográfico servindo assim, à constituição do

capital simbólico necessário ao exercício do poder.

Marc Ferrez é o fotógrafo dos grandes panoramas, nos quais a cidade surge na

sua totalidade, como espaço a ser possuído e controlado pelo ponto de vista de quem

120
fotografa. O olhar panorâmico cria a ilusão de que, o espaço denso e extenso, está sendo

dominado através do enquadramento, ao mesmo tempo em que, a cidade é mantida a

distancia.

Em geral os panoramas de Ferrez eram realizados do alto dos morros, torres ou

qualquer outro marco de elevação, projetando o olhar para a totalidade da cidade, ao

mesmo tempo em que centraliza esta totalidade a partir do seu olhar. O resultado dessa

dialética de projeções é a elaboração de uma representação onde os eixos verticais e

horizontais se cruzam na criação de uma certa imagem da cidade. Tal imagem é o

resultado da síntese de uma tradição pictorialista com os elementos trazidos pelo uso de

recursos técnicos da fotografia, gerando na linguagem fotográfica a possibilidade de

elaborar um novo padrão de visualidade. No entanto, ainda no século XIX, este padrão

não está plenamente definido, estando as imagens ainda bastante ancoradas no ideal de

beleza clássico.

Neste sentido, os eixos horizontais permitem associar a cidade a um espaço

extenso e equilibrado, mas delimitado. Os limites apesar de serem os naturais, tais como

os morros e o mar, indicam que a extensão do espaço e da natureza está sob controle.

Por outro lado, o eixo vertical, definido pelos ícones – torres das igrejas, prédios mais

altos, morros com construções -, que celebram a cidade e produzem uma hierarquia,

através da qual se desenha sua cartografia, construindo uma geografia individualizada

do espaço urbano.

O enquadramento panorâmico de Marc Ferrez dissolvia os detalhes das

decantadas ruas estreitas e coloniais, compondo uma paisagem ordenada. Nas

fotografias de panorama das décadas de 1880 e 1890 tal ordenamento era fornecido pelo

equilíbrio na composição da imagem, nas quais um mar de telhados entremeado por

121
torres de igrejas definia as regiões habitadas da cidade. À medida que ela é reformada os

panoramas passaram a enfatizar as praças, jardins e avenidas ícones de uma paisagem

ordenada segundo a lógica da modernidade. Nestas imagens a natureza, tão presente na

paisagem do Rio de Janeiro, sugere o limite, o outro lado da cidade, um espaço para o

lazer bucólico, frente a crescente movimentação urbana.

A figuração no panorama atuava como ponto de equilíbrio, como elemento de

composição. Já nas fotos de plano médio, a figuração atua tanto como elemento

associado ao movimento urbano – pessoas transitando, ou subindo nos bondes -, quanto

como o lado pitoresco da vida cotidiana – a famosa série dos tipos de ambulantes que

circulam na cidade é uma referência importante.

Augusto Malta inicia seu trabalho de fotógrafo, bem depois de Ferrez, e desde o

início já associou à sua profissão de fotógrafo uma missão política: reeducar o olhar do

cidadão a um novo padrão de paisagem urbana que se redefinia através do forte

investimento do poder. Neste sentido, compôs a imagem da cidade através de um

mosaico temático, no qual se desenhou claramente uma política de reforma e

modernização do espaço urbano. Dentre os principais temas que compõem a série de

imagens, pertencentes à coleção do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, onde

estão alocadas as imagens produzidas para a prefeitura da cidade por mais de 30 anos

(1903-1936) de trabalho como fotógrafo contratado, destacam-se: abastecimento,

comemorações oficiais, diversões, exposições, higiene e assistência pública, instrução

pública, limpeza pública, matas e jardins. Além disso, registrou todo o processo de

reformas do centro da cidade, incluindo-se, o desmonte do morro do Castelo, o processo

de arruamento e urbanização dos bairros do litoral sul: Copacabana, Ipanema e Leblon.

122
Fora da prefeitura Malta mantinha sua atividade regular de fotógrafo, registrando a

cidade no seu cotidiano por dentro e por fora de seus diversos espaços de sociabilidade.

A composição da expressão fotográfica das imagens produzidas por Malta,

variava em torno do plano geral (ou panorama), plano conjunto, plano médio, plano

americano (ou meio-plano) e primeiro plano, sem estabelecer uma hierarquia entre

eles12. Em todo caso, em sua coleção, ao contrário de Ferrez, não predominam os

panoramas. A fotografia de Malta está situada ao ‘rés do chão’, engajava-se à confusão

da cidade, ao burburinho caótico que misturava ambulantes com seus pregões, burros

sem rabo, bondes e transeuntes. Imagens que, ao mesmo tempo, celebravam a

multiplicidade e a diferença, denunciavam o perigo do caos urbano.

As fotografias tiradas ao nível da rua envolvem um senso diferente de espaço e

um novo posicionamento do olhar do fotógrafo que, ao contrário do panorama, não se

concebe como centro da totalidade, mas como parte do constante movimento urbano.

Ao colocar-se neste nível, o olhar do fotógrafo Malta promovia uma negociação entre os

eixos horizontal e vertical, os extremos visuais da concentração e desconcentração do

espaço, que compõem a dialética de como a cidade veio sendo visualizada ao longo das

últimas décadas do XIX. O resultado foi a criação de imagens de um tempo que passava

de forma acelerada, redefinindo seus espaços de sociabilidade, segundo oposições

significativas: o público e o privado, o detalhe e o plano geral, o exterior e o interior; o

histórico e o moderno, o perene e o transitório. Uma redefinição que tinha como

substrato à mudança do habitus de classe segundo os parâmetros da modernidade

ocidental.

A inscrição na paisagem urbana por dois fotógrafos em tempos distintos – Ferrez

e Malta/ séculos XIX e XX – possibilita, portanto, a avaliação de como a cidade atua

123
como referente para a fotografia. Se no XIX a cidade tornara-se um tema central para a

câmera fotográfica, sua expressão ainda era um misto dos cânones da pintura romântica

com experiências realistas. Já a fotografia do século XX acostumada a cidade, não teria

mais a função de ordená-la como paisagem, mas de estabelecer os termos para figurá-la

segundo os princípios do novo dispositivo, uma linguagem adequada à velocidade

impressa pelo novo século ao cotidiano das cidades: o instantâneo fotográfico passa a

ser a dimensão temporal do espaço urbano – uma paisagem em pleno movimento.

124
Capítulo 7.

Imagens de passagem: Fotografia e os ritos da vida católica da elite brasileira,


1850-1950.
Os ritos da vida religiosa católica pontuam a trajetória das famílias, dos

distintos grupos da sociedade brasileira de maneira diferenciada ao longo do tempo. Nas

camadas mais ricas, os eventos religiosos tornaram-se eventos sociais cuja

comemoração envolvem um investimento simbólico significativo. Gradualmente, o

padrão de comportamento da classe dominante burguesa passa a atuar como marca de

distinção entre os pares sociais e modelo para as demais camadas da população, que se

apropriam do ritual de acordo com sua visão de mundo.

A mise-en-scène religiosa envolve desde a escolha da indumentária adequada

para todos os participantes até o registro quer seja por fotografia ou mais recentemente

por vídeo. No entanto, a elaboração das representações sociais de comportamento

religioso, pela classe dominante brasileira, sofreu mudanças significativas, desde

meados do XIX até a consolidação do modo de vida burguês nos anos de 1950 (Mauad,

1990, 2002). Mudanças essas capazes de criar uma imagem-monumento que deixasse

de legado às gerações futuras um certo modo de viver.

Neste processo a imagem fotográfica vai assumindo um papel cada vez mais

importante, pois as fotografias familiares não congelam momentos vividos de forma

automática, elas interpretam e dialogam com o tempo vivido traduzindo-o numa

linguagem de imagens, para interpretá-la a presente análise se organizará em três

tempos:

1. Imagem fotográfica como representação: identificam-se os nexos entre representação

e ritualização na imagem fotográfica, a partir de um acesso histórico-semiótica.

2. Fotografia, família e religiosidade: o silêncio oitocentista: avaliam-se os tipos de

125
imagens que se produziam e a presença dos ritos da vida católica no cotidiano das

famílias das camadas médias e altas da sociedade brasileira. Cruzar-se-á as evidências

escritas com as ausências nas imagens, buscando-se entender o porquê a imagem de tais

ritos não se constituía como uma representação para a sociedade oitocentista – mesmo

que os recursos da técnica fotográfica possibilitassem tais fotografias.

3. Fotografia, família e religiosidade: a eloqüência burguesa: neste segundo momento a

fotografia atinge a privacidade dos lares, passa a fazer parte do cotidiano social, tendo

como agente deste processo, os pais de família. O desenvolvimento da técnica

fotográfica levou à compactação das máquinas, ao barateamento dos custos da produção

da foto e a uma generalização de laboratórios especializados em revelar e ampliar a

imagem fotográfica. O que antes era relatado no diário de família, passa a compor o

álbum de fotografias. A palavra escrita cede lugar à imagem fotográfica na elaboração

das representações sobre as vivências religiosas. Atuando como importante baliza na

narrativa das memórias familiares, as fotografias sobre eventos religiosos, tem como

marca de possibilidade, muito mais do que as facilidades da técnica fotográfica, a

mudança nos códigos de representação social, fortemente marcado, desde a virada de

século, por códigos de comportamento tipicamente burgueses. Desta forma a

publicização do evento religioso pela imagem fotográfica estava associada a uma nova

forma de sensibilidade religiosa, agora relacionada a uma codificação do tipo burguês.

Fotografia como representação.

O conceito de representação passou a fazer parte do vocabulário histórico, a

partir da aproximação desta disciplina com as demais disciplinas das Ciências Sociais,

notadamente, a antropologia. No entanto, representação, tal como tantos outros

conceitos, tomados de empréstimo pela história, na tentativa de alargar seus horizontes

126
teóricos, merece um pouco mais de atenção, dada a sua característica muitas vezes

polissêmica.

Logo de início vale atentar-se, para o fato de que o conceito de representação,

originário da matriz oitocentista da antropologia cultural – Mauss e Durkheim - ganhou

um campo mais amplo de aplicação com a gradual aproximação da antropologia com as

Ciências da Linguagem, particularmente a Semiótica e a Semiologia.

Desta forma, tal como aponta Roger Chartier, o conceito de representação tem,

em sua base etimológica, uma duplicidade de significado, cuja aplicação, engendra

procedimentos teóricos antagônicos: “As definições antigas do termo manifestam a

tensão entre duas famílias de sentidos: por um lado, representação como dando a ver

uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e

aquilo que é representado; por outro lado à representação como exibição de uma

presença, como apresentação pública de algo ou alguém”.(Chartier, 1989, p.20).

Teríamos, segundo esta distinção, duas modalidades de representação:

(1°) Representação como imagem presente de um objeto ausente. Aí, identificada com

uma noção, já ultrapassada de signo, que o definiria como algo que mantém uma relação

de substituição com o objeto que o origina.

(2°) Representação como constrangimento. Neste caso a presença de signos visíveis

seria a prova de uma encenação. Neste sentido como completa Chartier, “a

representação transforma-se numa máquina de fabrico, de respeito e de submissão”

(Chartier, 1989, p.22).

No entanto, deter-se, em um destes dois sentidos seria, justamente, perder a

enorme contribuição que, os estudos sobre os processos de produção de sentido,

forneceram para a compreensão e análise das práticas e comportamentos sociais –

127
individuais e coletivos. Dentro desta perspectiva, a definição proposta por Sergei

Moscovici, para o conceito de representação social, desvenda toda a sua possibilidade

analítica. Para este autor representação social define-se como:

“Um sistema de valores, de noções e de práticas, com uma dupla vocação.

Inicialmente, de instaurar uma ordem que dê ao indivíduo a possibilidade de se orientar

no ambiente social, material e dominá-lo. Em seguida, de assegurar a comunicação

entre os membros de uma comunidade propondo-lhes um código para suas trocas e um

código para dominar e classificar de maneira unívoca as partes do seu mundo, de sua

história individual e coletiva” (Moscovici, 1978, p. 131)

Claro que tal definição, não se distancia muito da de Chartier quando ele

habilita teoricamente, o conceito de representação, como a chave para a compreensão de

uma dada realidade histórica. Ao ultrapassar o limiar idealista inscrito no conceito de

mentalidade, a noção de representação ensejaria três formas de articulação das idéias,

valores e sentimentos com a dinâmica do mundo social: “Em primeiro lugar, o trabalho

de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas,

através das quais, a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos,

seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma

maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma

posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças as quais

“representantes” (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e

perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade.” ( Chartier, 1989, p.23).

Devedor da tradição sociológica inaugurada por Norbert Elias, Chartier define

representação, a partir de um outro conceito que, na verdade, o fundamenta. O conceito

fundador é o de habitus. Para Elias, habitus é a forma de sentir e agir não reflexiva, o

128
equivalente a uma segunda natureza que, através da disciplinarização das pulsões e do

autocondicionamento psíquico vai, pouco a pouco, estruturando a personalidade

humana.(Elias, 1992)

Ainda nesta linha de reflexão, Pierre Bourdieu, distingue os esquemas

geradores das práticas das representações mesmas, que envolvem tais práticas. Tais

esquemas geradores, segundo o autor, podem ser chamados de cultura, competência

cultural, ou para evitar equívocos, habitus. Bourdieu define habitus como um sistema

de estruturas interiorizadas e “condição de toda objetivação”.(Bourdieu, 1982).

O habitus, dentro de tal perspectiva, constitui a matriz, a partir da qual, os

códigos de comportamento e as estruturas sociais são internalizados historicamente.

Neste processo, o conjunto de experiências sociais vivenciadas pelos indivíduos, ao

longo de seu crescimento, nas diferentes etapas de sua vida, estaria norteado pelo

habitus de classe. Limite e condição das representações sociais.

Como representação a fotografia não pode ser dissociada do ato que a

fundamenta, ou seja, também se fundamenta num habitus. Muito mais do que uma

mensagem que se processa através do tempo, a fotografia atualiza, no tempo, o referente

que a engendrou. Na sua dimensão de índice, de marca e de resquício a fotografia é

sempre uma presença. Não substitui a experiência vivida, mas institui, a cada fotografia

tirada, a cada fotografia admirada, uma nova experiência. Portanto antes de representar,

a fotografia aponta, indica e designa. Para Roland Barthes, o certificado de presença,

inscrito na imagem fotográfica, a diferencia das demais imagens, sempre associadas aos

signos icônicos: “A fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas

apenas e com certeza daquilo que foi [...]. Diante de uma foto, a consciência não toma

necessariamente a via nostálgica da lembrança, mas a vida da certeza: a essência da

129
fotografia consiste em ratificar o que ela representa [...] a fotografia é indiferente a

qualquer revezamento: ela não inventa; é a própria autenticação; raros artifícios por ela

permitidos não são probatórios; são, ao contrário, trucagens: a fotografia só é laboriosa

quando trapaceia [...], ela jamais mente: ou antes, pode mentir quanto ao sentido da

coisa, na medida em que por sua natureza é tendenciosa, jamais quanto a sua existência.

Impotente para as idéias gerais (para a ficção), sua força, todavia, é superior a tudo o

que o espírito humano pode, pôde conceber para nos dar garantia da realidade”.[...]

Toda a fotografia é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo que sua

invenção introduziu na família de imagens.” (Barthes, 1984, pp.127-129).

O fundamental é diferenciar esta forma de presença daquela, relacionada por

Chartier, que se relaciona à encenação e ao constrangimento. O filósofo francês Philipe

Dubois, relaciona, a idéia de presença inscrita na fotografia, à ontologia da imagem

fotográfica, ou seja, a sua gênese automática – no exato momento de sensibilização,

pela luz, da superfície fílmica, o ato fotográfico foge ao controle humano é pura escrita

de luz. Daí a marca de resquício e a relação de contigüidade, estabelecida entre a

imagem fotográfica e seu referente. Aqui também, a idéia de atualização e

presentificação, inscritas na pragmática do ato fotográfico.

O signo fotográfico, segundo Dubois é, dependendo do nível das relações que

estabelece com sua situação referencial, tanto índice, quanto ícone como símbolo, ou

seja, é resquício de luz, é representação por analogia e é, também, convenção social. No

entanto, mesmo, valorizando os procedimentos e atos fundamentados em escolhas

culturais – nos chamados códigos - Dubois prioriza a dimensão indiciária do signo

fotográfico, por esta implicar plenamente o próprio sujeito na experiência:“Em suma,

um dos grandes desafios desta lógica do índice é colocar radicalmente a imagem

130
fotográfica como impensável fora do próprio ato que a faz ser, quer este ato passe pelo

receptor, pelo produtor ou pelo referente da imagem. Espécie de imagem ato absoluta,

inseparável da sua situação referencial, a fotografia afirma por isso sua natureza

fundamentalmente pragmática: ela encontra seu sentido primeiro na sua

referência.”(Dubois, 1992, p.73).

A necessidade de considerar a dimensão pragmática, antes mesmo de

compreender os atributos semânticos da mensagem por ela engendrada, distingue

significativamente a fotografia dos demais meios de representação.

Portanto, a fotografia apresenta, para então, representar – assumir a sua

dimensão de mensagem significativa, de classificação ou, quiçá, de lugar de memória.

No entanto, para não cairmos numa fenomenologia do ato fotográfico é, fundamental

que, se relacione à sua pragmática fundadora, a noção circuito social da fotografia,

relativo, como tantos outros comportamentos ao habitus de cada época e grupo social.

É desta forma que entendemos a constituição dos álbuns de família. Um

procedimento relacionado a uma necessidade que orienta sua organização, de formas

diferenciadas ao longo do tempo. Desde os pesados e luxuosos álbuns oitocentistas até o

banco de imagens digitalizadas e distribuídas pela Internet, a produção de sentido no

âmbito familiar pode ter mudado na forma mantendo, no entanto, a substancia que a

alimenta, como reflete Dubois:

“Toda a prática do álbum de família vai ao mesmo sentido: para lá das poses,

dos estereótipos, dos clichês, dos códigos datados, para lá dos rituais de ordenação

cronológica e da inevitável escansão dos acontecimentos familiares (nascimento,

batismo, comunhão, casamento, férias, etc.) o álbum de família não deixa de ser um

objeto de veneração, cuidado e cultivado [...] abre-se com emoção, numa espécie de

131
cerimonial vagamente religiosos, como se tratasse de convocar os espíritos.

Seguramente, o que confere um tal valor a esses álbuns não são nem os conteúdos

representados, nem as qualidades plásticas e estéticas da composição, nem tampouco o

grau de semelhança e realismo das fotografias, mas a sua dimensão pragmática, o seu

estatuto de índice, o irredutível peso referencial, o fato de se tratar de verdadeiros

vestígios físicos de pessoas singulares que estiveram ali e têm relações particulares com

os que guardam as fotografias. Só isso explica o culto de que são objeto as fotos de

Família.”(Dubois, 1992, p.77)”.

Como forma de expressão das sensibilidades religiosas a fotografia, tanto

apresenta quanto representa, as formas como as sociedades e seus grupos sociais

vivenciaram os ritos de passagem da vida religiosa. O interessante é notar como, no

século XIX, às opções do retrato, simplesmente, implicaram na ausência de temas

relativos à vida religiosa. É, a partir da dialética entre aquilo que a fotografia apresenta e

aquilo que ela silencia, sobre os ritos da vida religiosa, que refletiremos sobre as

imagens produzidas pela sociedade oitocentista.

Fotografia, família e religiosidade: o silêncio oitocentista.

Como coloca Roger Chartier, toda a representação só se consubstancia numa

prática que, por sua vez, engendra uma forma de apropriação, sendo a história cultural o

estudo dos processos com os quais se constrói o sentido. Dito isso, como interpretar a

ausência de imagens dos ritos da vida religiosa – batismo, comunhão e casamento -, nos

álbuns de família da sociedade oitocentista? A ausência na imagem é também uma

forma de representação que, de forma alguma implica na desvalorização de tais ritos.

Ao contrário, esta ausência, nos obriga, em primeiro lugar, a refletir sobre qual o papel

designado a tais práticas na sociedade e, em seguida, avaliar no que efetivamente era

132
fotografado a relação com tal ausência.

Em um interessante manuscrito, denominado, “Meu nascimento e factos mais

notáveis da minha vida (1835-1900)”, o médico residente em São Cristovão, Augusto

José Pereira das Neves, rememora os fatos mais significativos de sua vida. Anualmente

sumariza, os eventos, considerados por ele relevantes, dentre passeios, doenças e

mudanças de endereço, o batizado, comunhão, casamentos e morte dos filhos pontuam

sua narrativa, como fio condutor de um tempo que já passou, mas que é atualizado no

momento da escritura, pelo filtro da memória.

Aí encontramos devidamente referendados os ritos da vida católica. Logo, no

início do manuscrito, antes de iniciar a narrativa dos anos, José Augusto, faz uma breve

biografia de cada um de seus 10 filhos. Em tais sumários biográficos a data com hora e

o local do batismo são informações indispensáveis, seguido do enterro quando os filhos

morriam pequenos.

No decorrer do século XIX, escreve Anne Martin-Fugier (1991), o batismo e a

comunhão, além de marcar a entrada das crianças na comunidade cristã, se transformam

em reuniões de família, ocasiões para comprovar sua vitalidade e renovar seus atos.

Os filhos do Doutor Augusto foram batizados quase todos na matriz de Santa

Rita, com idades que variaram entre 3 meses de vida a 1 ano e três meses. Somente um

deles, a filha Annita, foi batizada “no oratório do colégio da prima Rosinha a rua

Miguel de Frias, para o que pedi licença ao vigário da Matriz de Santa Rita”.

O horário da cerimônia de batismo era livre, sendo o mais cedo às sete e meia

da manhã e o mais tarde às cinco horas da tarde, depois se seguia uma breve celebração.

Na relação dos presentes na cerimônia, os padrinhos ganhavam destaque, sendo anotada

entre parênteses a relação que os escolhidos mantinham com a família, isto porque,

133
“tanto o padrinho quanto a madrinha têm a função oficial de assegurar a educação do

afilhado, no caso da perda dos pais. Mas acima de tudo são encarregados de presentes

ritualizados.”

Os padrinhos também cumpriam um importante papel no enterro dos filhos

pequenos, como fica explicitado, na seguinte passagem: “O padrinho lhe fez o enterro

com toda a crença. Deus lhe dê o ceo pobre filhinha – tão esperta e engraçadinha”.

A morte presente na narrativa verbal, como marco de consumação, também,

podia ser encontrada na fotografia. O retrato de crianças mortas não era raro nos álbuns

de família, denotando que esta forma de ritual não era interditado ao retrato,

inscrevendo a morte na imagem como forma de perenizar a presença do ente que se foi.

Uma presença que não se consome com o tempo e se atualiza a cada novo olhar. Mesmo

não estando presente o filho morto está ali.

Na sociedade oitocentista, a primeira comunhão disputa com o casamento o

título de ‘mais belo dia da vida’. Sob muitos aspectos ela antecipa o papel do

casamento, pois representa um compromisso feito perante toda a comunidade. A

cerimônia também prefigura o ritual do matrimônio, desde a indumentária – vestidos e

véus de musseline para as meninas e o sóbrio traje negro para os meninos – até a mise-

en-scéne de entrada na igreja e a expressão dos sentimentos de comoção religiosa. (

Martin-Fugier, 1991, p.248).

A Igreja tentava, sucessivamente, adiantar a data da primeira-comunhão, como

forma de garantir, mais cedo a pureza da alma, ao mesmo tempo em que buscava

reduzir o luxo que rodeava tais celebrações. Entretanto, ao longo do XIX, a primeira-

comunhão era feita entre 10 e 12 anos. Somente no século XX, que a data dos sete anos,

pretendida pela Igreja, torna-se obrigatória com o decreto papal de 8 de agosto de 1910.

134
(Martin-Fugier, 1991, p.250).

O doutor Perreira das Neves, não deixou de relatar o dia da primeira-comunhão

de sua filha mais velha, com bastante emoção, denotando a importância do ato: “A 15

de agosto de 1874 (N.S. da Glória), fez Alice sua 1ª comunhão, no collégio de

Botafogo, dirigido pelas irmães. Fomos todos assistir a tão solenne acto. Deus lhe

conceda a sua divina graça!”.

O casamento dos filhos também merece nota, na narrativa dos fatos notáveis da

vida do Dr. Augusto José, com descrição da cerimônia, relacionando, inclusive os

convidados que compareceram. Na sociedade oitocentista, o casamento cumpria para os

setores mais aristocráticos, a manutenção da linhagem. No caso da família, em questão,

pertencentes a uma possível elite urbana, o casamento era a garantia de que as filhas

mulheres seriam amparadas e consideradas socialmente. Afinal de contas toda a

educação feminina era voltada para este destino. Algumas vezes precoce demais.

O interessante é que a família Pereira das Neves possui fotografias que seguem

o padrão das coleções fotográficas, do século XIX, deixando de fora os ritos tão

lembrados pelo pai nas suas memórias.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados, de famílias do século XIX que,

em seus diários, relatavam os ritos da vida religiosa, mas não os mencionavam nas

fotografias familiares. O fragmento do diário de Bernardina, filha de Benjamim

Constant, relativo ao segundo semestre de 1889, relata com detalhes, aniversários,

batizados e até mesmo o baile da Ilha fiscal, visto do ponto de vista de quem não foi

convidado. Mas as fotografias que compõem a coleção de Benjamim Constant, mantêm

o mesmo padrão de tantas outras com a ausência total de tais eventos. Qual seria este

padrão?

135
A fotografia oitocentista se divide em dois tipos: panoramas e vista e o retrato.

Os panoramas e vistas podem ser consideradas fotos públicas, completamente, voltadas

para paisagens urbanas e rurais. Guardam uma estreita relação com o panorama da

pintura, em termos de opções estéticas, tais como: distribuição equilibrada dos volumes,

dos claros e escuros e opção pelo enquadramento central e horizontal.

O retrato mantém os mesmos padrões pictóricos, ganhando novos atributos no

que diz respeito aos elementos de composição da foto, tais como: cenário e pose. Mas o

que definitivamente, revolucionou a arte do retrato, foi a invenção, em 1852, pelo

fotógrafo francês Eugene Disderi, do formato carte-de-visite, um retrato de proporções

reduzidas (6x10 cm), que poderia ser copiados as dúzias, trocado, guardado e

presenteado, acompanhado de uma dedicatória que remetia a imagem a alguma forma

de relação entre quem dava e recebia a imagem.

O sucesso do retrato carte-de-visite deve-se justamente a capacidade de adaptar

o cliente à moldes pré-estabelecidos e de possível escolha através de um catálogo de

objetos e situações, o estúdio do fotógrafo passa a ser um depósito de complementos

escolhidos para caracterizar diferentes papéis sociais que se quer fabricar. A 'mise-en-

scène' do estúdio do século XIX variou ao longo do tempo, cada década no período da

carte-de-viste e mais tarde do cabinet-size teve seus acessórios especialmente

característicos. Nos anos 60 era a balaustrada, a coluna e a cortina; nos anos 70, a ponte

rústica e o degrau; nos anos 80, a rede, o balanço e o vagão; nos anos 90, palmeiras,

cacatuas e bicicletas e no início do século XX, o automóvel. O próprio cliente se

converteu, ele mesmo, num acessório de estúdio, suas poses obedeciam a padrões

estabelecidos e já institucionalizados de acordo com a sua posição social.

A fotografia do período não abria mão da sua própria estética, como fica

136
exposto no livro Estética da Fotografia, publicado por Disderi, em 1862. Neste livro o

fotógrafo francês estabeleceu os princípios básicos de uma boa fotografia, protocolos a

serem cumpridos para um bom resultado final.

A busca da beleza se torna o ideal a ser conquistado pelo fotógrafo e uma

prerrogativa exigida pelo cliente. Ao satisfazer esta exigência o fotógrafo cria um

padrão de representação que apaga o indivíduo em prol de um estereótipo social. Ao se

reconhecer como parte integrante da mesma sociedade de imagens que os chefes de

estado, sábios e artistas, o cliente se satisfaz, pois vê garantida da ação do tempo a

representação que quer alcançar. Na fotografia ornamentada com acessórios, na maioria

das vezes ausente de seu cotidiano, reveste-se dos emblemas de classe, com a qual quer

se ver reconhecido.

A impossibilidade técnica, da fotografia de então, em produzir instantâneos, já

que somente no final do XIX, o tempo de fixação da imagem passa ser contado por

segundos, antes disso o tempo de exposição variou de cinco a um minuto, inscreveu no

próprio ato fotográfico oitocentista, a relação que a imagem fotográfica estabelecia com

o seu referente. Uma relação pautada na pose estática e na hierarquia dos objetos e

atributos relativos ao cenário. Paralelamente, a pratica de trocar fotografias e de guardá-

las em álbuns, ratificou a padronização da imagem retratada, como forma de garantir a

comunicação entre fotografias, concebidas como objetos de memória.

No caso da sociedade brasileira, do século XIX, escravista e extremamente

hierarquizada, a fotografia tinha a função de ratificar através de sua imagem, a posição

do fotografado na hierarquia social. Integra, assim, o habitus das sociedades de corte, na

qual: “A posição objetiva de cada indivíduo depende do crédito atribuído à

representação que ele faz de si próprio por aqueles de quem espera reconhecimento;

137
quando compreende as formas de dominação simbólica, por meio do ‘aparelho’ ou do

‘aparato’[...] como corolário da ausência ou do apagamento da violência bruta. É no

processo de longa duração de erradicação e de monopolização da violência, que é

necessário inscrever a importância crescente adquirida pelas lutas de representações,

onde o que está em jogo é a ordenação, logo a hierarquia da própria estrutura

social”.(Chartier, 1989, p.23).

Neste sentido, a ausência dos ritos da vida religiosa, se faz em função da

presença da hierarquia social estampada na superfície da imagem. A representação

fotográfica publica uma imagem que circula entre os membros da sociedade, como

forma de pertencimento e de reconhecimento do lugar social; reservando para o espaço

dos diários, os relatos das experiências familiares que deveriam ser mantidas nos

recôndito da intimidade. Assim à formalidade da imagem fotográfica e seus códigos

rígidos de representação, se impregna a escrita de si (Gomes, 2004), como o outro lado

da imagem, mais terna e afetiva, porque reservada ao privado.

Fotografia, família e religiosidade: a eloqüência burguesa.

Bem, mas se a fotografia oitocentista, cala em relação à representação dos ritos

da vida religiosa na imagem fotográfica, a burguesia, que se formula, ao longo da

primeira metade do século XX, no Brasil, a referenda. Desta vez, como marca de uma

vivência de classe, como parte integrante do habitus, de uma sociedade que ganha em

mobilidade social e promove a renegociação, entre seus pares, dos signos de distinção

social.

Neste contexto a fotografia cumpre um importante papel na construção das

representações sociais de comportamento da sociedade burguesa. Uma breve avaliação

do circuito social da fotografia na primeira metade do século XX nos permite

138
compreender tal papel.

Já no início do século, a fotografia ultrapassa os limites dos ateliês fotográficos

tão típicos no século XIX, para conquistar os espaços públicos e domésticos da

sociedade burguesa do século XX. Abandonando, neste processo, a rigidez da pose do

retrato para ganhar a agilidade do instantâneo fotográfico.

No século XX, a máxima da Kodak You press de botton and we do the rest, é a

melhor forma de caracterizar as mudanças no hábito de fotografar. Eximidos da pressão

do tempo de fixação da imagem, fotógrafos e fotografados lançaram-se ao delírio, de

tudo pela objetiva, capturar.

Em 1904, a edição de domingo do Jornal do Brasil registra, de forma cômica, a

invasão das câmeras portáteis. Na primeira página, um grande desenho reproduz uma

cena dominical onde todos os personagens, adultos e crianças, homens e mulheres

portam uma câmera portátil, na lateral o seguinte comentário: “A fotografia e as praias -

exclamava há dias uma venerável senhora que ainda vai às praias para tomar banho. É

uma praga, ninguém toma banho e todos tiram fotografias! Se uma pessoa se levanta -

clic! - ouve-se um estalido; se assenta, tem de tomar posição conveniente, porque fica

rodeada de objetivas ávidas”

A publicidade sobre a fotografia é a fonte principal para se avaliar: o perfil do

consumidor de produtos fotográficos e fotografia; o arsenal de recursos disponíveis; e as

expectativas relacionadas ao ato fotográfico.

A publicidade da Kodak voltava-se para a educação de um amplo público, e

potencial mercado consumidor. Neste sentido, desde a década de 1920, passou a

publicar anúncios nas principais revistas ilustradas cariocas. Em tais anúncios,

139
apresentava-se a forma mais fácil, correta e interessante de gravar os momentos da vida

diária nas suas diversas expressões. Graças à Kodak também o ambiente doméstico é

conquistado pela fotografia.

A chamada da publicidade sintetiza a idéia: Photographias em casa - são faceis

de tirar com a Kodak moderna; Em seguida, um texto relativamente longo explica

detalhadamente as vantagens do progresso técnico da ‘Kodak’: “Em dez annos a

photographia de amadores tem mudado tanto que as idéias de há dez anos são agora

antiquadas. Por exemplo: anteriormente julgava-se muito difficil tirar photografias no

interior de casas e que se podia obter bons instantâneos somente fóra de casa, sob

condições ideais de tempo. Presentemente, podem-se tirar photographias dentro de

casa, podem-se tirar instantâneos á sombra ou sob condições de luz pouco favoráveis

[...]” (Photograma, Agosto, 1928, n° 5).

Paralelamente, é a ‘Kodak’ quem garante a qualidade das imagens tiradas pelo

fotógrafo amador, ao qual “não é necessária nenhuma experiência: a experiência está na

Kodak” (Idem). Esta experiência foi adquirida através de um desenvolvimento técnico,

com bases científicas, bem como pela lógica industrial de se produzir um material de

qualidade a um preço acessível: “Devido á produção em grande escala e fabricação

scientifica, os peritos da Kodak conseguiram produzir uma objetiva anastigmática que

ha tres annos sómente podiam obter em camera pelo dobro do preço” (Idem).

O próprio prazer de fotografar e preservar fotografias é garantido pelo sucesso das

imagens estandardizadas pelo padrão técnico da ‘Kodak’: “Para o photographo amador,

a Kodak moderna augmenta a variedade de photographias interessantes que elle pode

tirar. Augmenta o numero de photographias que vale a pena guardar num album e

140
aumenta, portanto os prazeres que a photografia proporciona ao amador” (Photograma,

Julho de 1928, n° 24)

Os temas para a fotografia são propostos tanto pelas imagens veiculadas a título

de exemplo dos procedimentos, descritos nos anúncios, como no próprio texto: “Ao

rever seu álbun de photographias tomadas com a Kodak, não sente V.S. o receio de que

talvez o interessante instantaneo de Chiquinho ao banho ou de Sinhásinha, com sua

boneca, poderiam ter saido velados devido a ligeira imperfeição do film? ” (

Photograma, Julho, 1930, n° 33) Portanto os temas recorrentes nos anúncios são banhos

de crianças, a hora do almoço na cadeirinha de bebe, o dever de casa, as brincadeiras

infantis, fragmentos do cotidiano, no crescimento das crianças. E quem é o agente das

imagens? As mães, tias e primas, sempre mulheres.

Apesar de estar endereçada ao fotografo amador, a figuração nas fotografias era

sempre feminina, para quem tirava a foto e feminina ou masculina para quem era objeto

da foto. Apontando uma tendência para a fotografia amadora do século XX diferente,

àquela apresentada nos anúncios do século XIX, notadamente endereçados aos chefes

de família que detinham o capital financeiro disponível ao investimento em consumo de

bens simbólicos. Nestes anúncios, a ênfase recaía sobre a habilidade do dono da casa

fotográfica e os serviços disponíveis para a criação de uma perfeita ilusão.

141
Ilustração 19
Uma outra companhia que, juntamente com a ‘Kodak’, era detentora de uma

importante fatia do mercado de produtos fotográficos, era a empresa alemã AGFA. A

publicidade da AGFA vendia um estilo de vida e um padrão de qualidade, sempre

preocupada com a estética, imprimia, em tais anúncios, em clima de distinção e

elegância, protagonizado por mulheres esbeltas em traje de banho ou vestidos

esvoaçantes e homens musculosos com poses masculinas ou praticando esportes. As

crianças não faziam parte deste mundo ‘clean’.

Outro elemento que distinguia a publicidade da AGFA da Kodak era a opção

pelo desenho ao invés das reproduções fotográficas; a impressão de fotos não contribuía

com a nitidez necessária à exibição adequada do produto. Seus desenhos

caracterizavam, através de um traço fino e delicado, o mundo daqueles que tinham

acesso aos produtos AGFA. De acordo com a tendência da época era um mundo chic e

elegante, onde o ato de fotografar estava associado a um alto padrão de consumo.

Acompanhava a elegante simplicidade do desenho um slogan curto e objetivo, onde a

mensagem principal era a alta qualidade e a avançada tecnologia alemã.

142
Ilustração 20
Paralelamente, a ampliação do mercado consumidor de fotografia e da

elaboração de uma estética amadora – identificada pelas revistas especializadas da

época, como os “batedores de chapa” – a profissão do fotógrafo social se consolida,

habilitando às diferentes frações da classe dominante o acesso a uma auto-representação

condizente ao padrão burguês. Tal padrão é amplamente difundido pelas revistas

ilustradas que circulavam pela capital federal e grandes cidades brasileiras. A ampliação

do uso de fotografias em tais revistas, ao longo da primeira metade do século XX,

permite que as colunas sociais passem a serem ilustradas com imagens da alta sociedade

em diferentes eventos dentre os quais os ritos da vida católica. O que era visto na revista

era tomado como referência para o trabalho dos fotógrafos de reportagens sociais em

diferentes eventos, criando uma estética própria à representação social da burguesia

urbana.

Os rituais do batismo, da primeira-comunhão, da crisma e do casamento, na

classe dominante brasileira, acompanham a tendência, inaugurada, na Europa do século

XIX, de solenidade mundana. O aparato cerimonial na igreja é feito para deixar, para

cada um destes ritos, uma lembrança indelével. Devidamente preservada pela imagem

fotográfica. Dos anjinhos das cidades do interior dos anos vinte até o aparato suntuário

que acompanha a jovem na sua primeira comunhão, nos anos 40, um entrelaçamento de

143
imagens que posiciona infância como o momento inaugural da sensibilidade religiosa

católica.

Ilustração 21 Ilustração 22 Ilustração 23

A rigidez dos noivos em 1923 acompanhada pelo olhar curioso das crianças

que não foram convidadas para a fotografia é um bom contraponto para a pose mais

descontraída do casal dos anos 30, como para fotografia estilo reportagem social dos

anos 1950. O casamento em três tempos.

Ilustração 24 Ilustração 25 Ilustração 26


Em entrevista, com algumas das donas dos álbuns de família do século XX,

indaguei sobre a importância e a dinâmica de tais ritos nas suas vidas familiares, a

resposta dada reenvia-nos para a narrativa dos diários oitocentistas, onde tais

comemorações, mais uma vez, servem de baliza para contar sua história, tendo os filhos

144
como atores principais. Segue um pouco desta narrativa recriada:

“O batizado era geralmente realizado depois de alguns meses, para que a mãe

também pudesse aproveitar a festa. Os padrinhos eram escolhidos de acordo com a

amizade de cada um, mas era muito comum a prática dos avós batizarem os netos. Para

ser madrinha tinha que ter feito a primeira-comunhão. A preparação do batismo incluía

o enxoval e a festa , geralmente, um almoço na casa dos avós. Quando a criança nascia

fraquinha, era logo batizada, minha tia como passou muito mal quando pequena, foi

batizada duas vezes, a primeira rapidinho, pois achavam que ela ia morrer, já depois que

vingou, o batismo foi feito com mais calma. “Na minha época de catequista, preparei

muitas crianças para a comunhão. Era feita, com todos juntos, depois a festa com mesa

de doces oferecida pelas mães. As crianças se vestiam de anjo e eram acompanhadas

por um anjo da guarda, que podia ser o irmão ou a irmã menor. No dia da comunhão era

um dia muito sério. O jejum era total, não podia nem engolir a saliva. A gente

confessava de tarde, vinha à preparação, o padre falava com todo mundo, depois até a

comunhão, todo mundo tinha de ficar quieto, bem concentrado. Comigo foi assim, mas

com meus filhos não. Eles fizeram primeira-comunhão sozinhos e depois teve um

lanche lá em casa.”13

Dentre todos os ritos da vida católica, o de maior prestígio em termos de

representação fotográfica, era o casamento. Para a sociedade burguesa o casamento

representava a possibilidade de ampliação do patrimônio e a consolidação das redes de

influência social e política. Esta celebração, a partir dos anos 1940, passou a ter direito

inclusive a um álbum próprio, no qual todos os momentos da cerimônia são retratados.

É comum se encontrar no patrimônio iconográfico de famílias muito ricas, a

existência de um álbum pequeno, elaborado exclusivamente de provas das fotografias

145
que integrariam o álbum principal, este em formato maior e adornado com detalhes na

capa e no papel vegetal que separava as páginas. O álbum menor era como se fosse o

‘rascunho’ da vivência, onde se poderia flagrar uma pose mais descontraída ou até uma

careta, mas no álbum final, somente as fotos condizentes com o padrão monumental da

cerimônia, ou seja: posadas e arranjadas de forma harmônica. Em ambos os casos, a

narrativa é composta exclusivamente de imagens, deixa-se de lado os relatos escritos de

tais vivências, que é amplamente substituído, pelo texto fotográfico.

É importante ressaltar que, desde o final do século XIX, a fotografia

instantânea já é uma possibilidade. Ao longo dos primeiros anos do século XX, a

fotografia democratiza-se, devido ao barateamento e a compactação das máquinas

fotográficas. Tal desenvolvimento tecnológico inscreve a dimensão instantânea no ato

fotográfico, habilitando o registro do momento. Nesta mudança na pragmática

fotográfica, a emoção espontânea passa a ser valorizada pela idéia do flagrante.

A pose, apesar de toda a agilização da fotografia, permanece como elemento

constitutivo da hierarquia de sentido na representação fotográfica. Fotos de distinção,

preparadas para servirem de emblema social, só poderiam ser posadas e geralmente

acondicionadas em passe-partouts finamente decorados.

Neste caso, a eloqüência das imagens reinscreve os ritos da vida católica, como

marcas de formação e identidade do grupo social. Atuam como signos de pertencimento

a uma certa comunidade de iguais. No circuito social da imagem, ultrapassam a

circulação restrita e ganham uma dimensão pública. Como se afirmou anteriormente à

crônica social das revistas ilustradas veiculava, juntamente, com notas sobre o

casamento ou batizado, dos filhos da elite dominante, as fotografias tiradas por

fotógrafos da melhor qualidade, especializados em reportagens sociais. Desta forma as

146
fotos de batizado, comunhão e casamento, da alta burguesia carioca, veiculada pelas

revistas ilustradas cariocas, integram o catálogo de representações a serem

internalizadas, e como modelo a ser seguido, pelo conjunto da audiência das revistas.

Mantêm-se, assim, os laços de coesão do grupo social, garantindo, ao mesmo tempo, a

construção da representação hegemônica.

A sensibilidade religiosa, nesta dinâmica, é apropriada pelo significado de

distinção e de status atribuído às representações sociais, pela sociedade burguesa. As

fotografias sobre os ritos de passagem da vida católica que integram os álbuns da

família burguesa, atuam como balizas, que datam o processo de crescimento individual

e de integração do indivíduo na classe a qual pertence. O sentimento de pertencimento é

reforçado quando, ao virar as páginas dos álbuns e olhar para as fotografias, as gerações

futuras elaborem narrativas sobre os eventos passados, atualizando pela memória

construída a experiência vivida.

Conclusão.

A fotografia como representação que se fundamenta num ato, numa

pragmática, remete a análise dos processos de produção de sentido, por ela veiculada, ao

contexto histórico no qual é realizada. Neste caso sua leitura é sempre histórica. A

dimensão da historicidade, reinscrita na mensagem fotográfica, pela idéia de ato

fundador, não só reabilita o sujeito como agente produtor de sentido, como o identifica

ao objeto fotografado, considerando ambos como partes de uma mesma ação.

Desta forma fica, ao historiador, sujeito de um outro tempo e agente de um

novo sentido, o desafio de aperfeiçoar sua capacidade em decifrar pistas, compreender

indícios e avaliar sinais.

147
- III - .

Os textos reunidos na parte 3 estão associados as minhas pesquisas recentes,

sobre a relação entre fotografia e narrativa histórica. Foram escritos como resultados

preliminares de uma reflexão em andamento sobre as memórias do contemporâneo e o

impacto das imagens técnicas nas análises históricas sobre o tempo presente.

O Capítulo 9 indaga sobre qual o papel das imagens técnicas na construção da

hegemonia de um grupo social. Ou poderia se formular a pergunta de uma outra forma:

podem as imagens técnicas conformar os princípios de dominação de um grupo social

sobre outro? As imagens não existem sem as práticas que as produzem, não são coisas

em si, mas resultados de processos que envolvem os sujeitos e suas disputas sociais.

Os estudos sobre cultura visual, para não se limitarem ao patamar descritivo dos

procedimentos e aparatos, integram a sua problemática a questão do poder através da

forma como as imagens são agenciadas pela sociedade que a produz e consome como

imagem-signo. A análise do poder de convencimento das fotografias de imprensa que

povoaram o imaginário urbano, ao longo de boa parte do século XX, revelou uma

estratégia de educação do olhar, cuja função didática seria a naturalização das

diferenças sociais.

Neste sentido, a fotografia veiculada pela imprensa ilustrada contribuiu, de

maneira decisiva, para a veiculação de novos comportamentos e representações da

classe no poder. Por outro lado, a imagem fotográfica atuou como eficiente meio de

controle dos comportamentos e representações da maioria dos grupos que a

antagonizavam na dinâmica social, principalmente devido a sua pretensa objetividade.

148
Vale lembrar que todo o processo de desenvolvimento tecnológico ocorrido a

partir da segunda metade do século XIX, com descobertas científicas – relacionadas,

entre outras coisas, à produção de energia – e aprimoramento de outras, como foi o caso

da própria fotografia – viabilizou a criação da idéia de um “admirável mundo novo”

repleto de certezas e possibilidades.

Este mundo moderno criado no bojo de uma segunda revolução industrial era

um mundo que se pretendia anônimo. A simulação caracterizaria a experiência

contemporânea, justificando-se assim, o prestígio concedido à imagem, pois através

dela se substituiria à experiência por sua representação. Suzan Sontag caracteriza a

modernidade, experimentada pelo século XX, sob este ponto de vista. “Uma sociedade

tornar-se moderna quando uma de suas principais atividades passa a ser a produção de

imagens; quando as imagens, que possuem poderes extraordinários para determinar as

nossas exigências com despeito à realidade são elas mesmas substitutas cobiçadas da

experiência autêntica, tornam-se indispensáveis à boa saúde da economia, a estabilidade

política e a busca da felicidade individual” (Sontag, 1980, p.147).

É interessante notar que o processo de naturalização da imagem e

homogeneização das representações se faz, par a par, à instituição da ordem burguesa

que, como explica Roland Barthes, é: “O movimento pelo qual a burguesia transforma a

realidade do mundo em imagem do mundo, a História em Natureza. E esta imagem tem

de notável o fato de ser uma imagem invertida. O estatuto de burguesia é particular,

histórico e o homem que ela representa será universal e eterno; a classe burguesa

edificou o seu poder sobre progressos técnicos, científicos e sobre uma transformação

sem limites da natureza”.(Barthes, s /d, p.208).

149
A relação entre o controle dos meios técnicos de produção da imagem técnica,

pela imprensa, garantiria a possibilidade de se criar um padrão de representação, que se

estenderia para o conjunto da sociedade. Assim, o mundo em frente às lentes é revivido

ao ser selecionado, enquadrado e transformado em um só plano, por aquele que está por

trás das lentes. Este último, não é um sujeito individual, mas um sujeito coletivo que

produz representações sociais. Tal produtor de discursos fotográficos pertence, ou está

atrelado por laços de dependência, a uma determinada classe social, cujas

representações e códigos comportamentais são pertinentes ao papel que ela desempenha

no conjunto da sociedade.

Com efeito, a classe dominante controla os meios técnicos de produção cultural

tanto ao nível de propriedade dos equipamentos, máquinas, meios de locomoção, quanto

ao nível da concepção e divulgação de valores culturais. Portanto, através da mensagem

fotográfica, foi traçado o perfil do universo de representações e os principais códigos

comportamentais da classe dominante, na cidade do Rio de Janeiro, que se constitui nas

primeiras décadas deste século e se institui ao longo dos anos posteriores.

Em tal universo de representação estão contidas imagens que permitiram a esta

classe adquirir consciência de dominação, como aquelas que lhe possibilitaram exercer

a sua hegemonia sobre os outros grupos, principalmente em relação às classes

populares, na constituição da sociedade burguesa carioca; à medida que tais imagens

interferiram na produção de representações próprias dos grupos dominados, ou então

relegarem suas manifestações culturais ao plano do pitoresco.

150
Neste sentido, o discurso fotográfico da imprensa ilustrada, como expressão da

classe dominante, reforça a ilusão da “liberdade burguesa” ao reafirmar, principalmente

através da abundância e variedade das imagens, o caráter simulacro das relações

burguês-capitalista, nas quais o real é substituído por sua representação, o trabalho

torna-se mercadoria e as relações de classe são descaracterizadas nas representações de

massa. Reafirma-se assim um dos pressupostos da percepção burguesa: a transformação

da História em Natureza.

No capítulo 10 debruço-me sobre a primeira reportagem de Flávio Damm,

trabalhando com estratégias metodológicas que buscam relacionar as fontes visuais e

orais, pautadas no princípio da intertextualidade. Tal noção possibilita o desvendamento

das tramas que tecem as redes de significação entre trajetória individual – Flávio

Damm, profissão fotógrafo; e a trajetória da própria profissão de fotógrafo,

evidenciando o impacto no Brasil das transformações internacionais do campo.

As entrevistas com o fotógrafo foram realizadas no formato história de vida,

buscando enfatizar a noção de campo de possibilidades para balizar as escolhas

efetivamente realizadas pelo fotógrafo. Tal estratégia implica em considerar que o

sujeito da entrevista é um sujeito transindividual que se insere no mundo, segundo uma

racionalidade compartilhada e incorporada pela comunidade com a qual se identifica na

prática social. Claro que tal racionalidade não é unívoca e se orienta segundo os espaços

de sociabilidade, no caso estudado, profissional. O compartilhamento de saberes e

normas de conduta profissional implica a apreensão comum de determinados textos

sociais, de caráter verbal e não verbal, como o caso da circulação de imagens e dos

protocolos de conduta ética passados pela tradição profissional. Assim, as táticas e

151
estratégias adotadas pelos indivíduos na sua experiência profissional explicam-se a luz

da própria constituição social do campo.

Por outro lado, as escolhas técnicas e estéticas que definem a narrativa visual do

fotógrafo também se explicam pelo acesso dos fotógrafos aos dispositivos do campo

fotográfico, tais como: publicações especializadas, prática profissional na imprensa e

fora dela, equipamentos atualizados, acesso comunidades artísticas, como caso dos

fotoclubes, ou espaços menos formalizados, como a casa Fotóptica, pertencente a

Thomas Farkas, importante empório fotográfico, mas acima de tudo espaço de

sociabilidade e troca de experiências, entre outros. A entrevista de história de vida

permite que tais informações sejam apreendidas e articuladas a análise das imagens

produzidas.

Neste sentido, a produção da entrevista em história oral se faz por um em relação

a um conjunto de informações constitutivas do próprio objeto de pesquisa na qual se

insere como fonte de dados. Por outro lado, deve ser considerada a estratégia própria ao

ato de rememoração que envolve a situação na qual a entrevista é realizada, pois

condicionam a forma como o entrevistado se posiciona em relação ao seu passado e a

sua própria trajetória. Por tudo isso as fontes orais, apesar de serem importantes

instrumentos de análise para a história do tempo presente, demandam uma nova crítica

por parte do historiador que passa a ser ele mesmo um produtor de evidências históricas.

O capítulo 11 sobre o trabalho da fotógrafa norte-americana Genevieve Naylor,

durante a Segunda Guerra Mundial, como funcionária do Departamento de Estado dos

Estados Unidos, evidencia as possibilidades dos fotógrafos em romperem com as

imposições e protocolos oficiais.

152
A documentação produzida por Naylor no Brasil, atualmente sob a guarda de seu

filho Peter Reznikoff, ultrapassa o número de mil negativos. Desse conjunto as fotos

analisadas no artigo fornecem uma medida clara das táticas e estratégias adotadas pela

fotógrafa em manter a sua autonomia em relação às imposições feitas pelas agências,

produzindo uma imagem variada e diversa do Brasil dos anos 1940. Entretanto, a forma

de agenciamento das imagens produzidas por Naylor, pelo Departamento de Estado,

através da organização de exposições ou da publicação na imprensa, expressa os limites

dessa autonomia.

As escolhas efetivamente realizadas na montagem da exposição que percorreu os

Estados Unidos, bem como as imagens que ilustraram matérias na imprensa,

valorizaram a lógica do exótico, do pitoresco, mas também, da informação. Lógicas

próprias aos protocolos estabelecidos tanto pela visualidade da política da boa

vizinhança, quanto pela função que a imprensa se advogava na época.

Evidencia-se, por essa análise que o tratamento das séries fotográficas devem

sempre ter em conta o circuito social da imagem. Valoriza-se, assim, nas trajetórias dos

fotógrafos, sua formação profissional e intelectual, bem como o campo de

possibilidades no qual de movimenta. Na biografia de suas imagens as condições de sua

produção, as formas de apropriação e agenciamentos por diferentes audiências e

agências sociais.

O capítulo final debruça-se sobre o trabalho de dois fotógrafos com trajetórias

bem distintas para pensar o mundo como comunidade imaginada. A aproximação a este

mundo se vez por estratégias narrativas diversas.

Damm opera no umbral da janela, recolhendo os nacos do cotidiano como quem

monta um mosaico, seu trabalho se aproxima ao do cronista que observa e, em seu

153
texto, reelabora o que viu numa poética própria plena de luminosidade e humor, num

estranhamento em relação ao trivial que nos ensina a enquadrar a cada vez que olhamos.

Damm compartilha com os gregos o seu sentido de história, registra o que vê para então

saber.

Salgado projeta-se no abismo, olha o mundo e o seu olhar o revela na sua

dimensão épica. A saga dos povos, seus deslocamentos, suas dores e sofrimentos,

recriados pela tópica da poesia épica, da epopéia, nada é simples nesse mundo de luz e

sombras. Salgado compartilha com os gregos o seu sentido de poesia, registra o que

imagina para então agir.

Em um texto, sobre a mudança dos paradigmas em história, o historiador inglês

Eric Hobsbawn escreveu: “Não há nada de novo em preferir olhar o mundo por meio de

um microscópio em lugar de um telescópio. Na medida em que aceitemos que estamos

estudando o mesmo cosmo, a escolha entre micro e macrocosmo é uma questão de

selecionar a técnica apropriada” (Hobsbawn, 1998, p.206).

O que vale para os historiadores pode valer para se pensar a diferença entre os

dois fotógrafos e o papel da fotografia na representação da variedade do mundo.

154
Capítulo 8.

Janelas que se abrem para o mundo: fotografia de imprensa e distinção social no


Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX.

“Primeiro fomos mais ou menos lisboetas, com o mundanismo. Depois

londrinos e parisienses agora somos new-yorquinos e hollywoodenses. O que chamava

antigamente de ‘sarau’ passou a ser ‘soirée’ e hoje em dia é ‘party’(...). No tempo do

binóculo floresceu nossa primeira linhagem de elegantes republicanos. O asfalto, depois

o automóvel fizeram o resto (...). Hoje poderíamos dizer: o Rio ‘grows well’ ou se

acharem o adjetivo ‘smart’ também já foi vocábulo elegante usado antes de 1914,

poderão fazer uma tradução mais moderna – ‘Rio grows swell’.”(Revista Rio Ilustrado,

n°170/171, agosto /setembro, 1953.)

Vivemos em um mundo repleto de imagens, constatação que sobrevive no senso-

comum dos habitantes das grandes cidades contemporâneas. No entanto, entre o sujeito

que olha e a imagem que elabora, existem muitos mais que os olhos podem ver.

É interessante notar que o processo de naturalização e homogeneização das

representações por elas engendradas se faz, par a par, à instituição da ordem burguesa,

movimento pelo qual a burguesia transforma a realidade do mundo em imagem do

mundo (BARTHES, s/d, P.208). Portanto, o que aparenta naturalidade é, em suma, o

resultado deste processo de investimento de sentido.

A produção de sentido envolve as sociedades históricas desde que o primeiro

homem manifestou-se através dos gestos e dos desenhos nas paredes das cavernas. A

escolha da expressão correta para produzir um determinado conteúdo é resultado de

uma experiência histórica de julgar, escolher e interpretar. Existe sempre um conjunto

de escolhas possíveis, a partir do qual, uma escolha é feita. Tal conjunto pode, com

certeza, ser denominado de cultura.

155
Ao longo dos primeiros cinqüenta anos do século XX, a Capital Federal sofreu

intervenções cirúrgicas na sua forma urbana, resultado de uma política urbanista que

visava moldar a metrópole tropical, a imagem e semelhança das cidades temperadas.

Bulevares substituíram vielas; cafés e confeitarias, os fregueses e quiosques e o pacato

cidadão deu lugar ao dandy ou ao smart; todas as instâncias do viver em cidade foram

sendo adequadas a um novo padrão de comportamento.

Neste processo, as revistas ilustradas de críticas de costumes, publicadas na

cidade desde o início do século, tiveram um papel fundamental ao possibilitarem a

divulgação e assimilação rápida de imagens de pessoas, objetos, lugares e eventos

contribuindo, de forma decisiva, para a criação deste novo padrão de sociabilidade.

O objetivo deste artigo é discutir o papel da imagem fotográfica, veiculada pela

imprensa ilustrada, na elaboração dos códigos de representação social da classe

dominante brasileira, na primeira metade do século XX. Tal processo pautou-se na

elaboração de um habitus de classe, norteado pelas noções de privilégio e distinção14,

segundo o qual esta classe passou a identificar-se com a cultura burguesa ocidental.

A estratégia de análise adotada divide-se em duas partes: na primeira pretende-se

situar historicamente tais publicações e seus vínculos com a rede social dominante; na

segunda parte, através da análise histórico-semiótica das imagens fotográficas das

revistas, recuperamos os quadros de representação social e os comportamentos

subjacentes a estes.

Na mira do próprio olhar: as revistas ilustradas no Rio de Janeiro na primeira


metade do século XX
Careta, Fon-Fon, O Cruzeiro, Revista da Semana, Kosmos, Malho, Avenida,
Ilustração Brasileira, Rua do Ouvidor, Vida Doméstica, Selecta, Eu Sei Tudo, Para
Todos, Vamos Ler, Scena Muda, Cinearte, Beira Mar.

156
Entre outras compuseram o perfil de uma época em que as imagens fotográficas

tinham nas revistas ilustradas o seu principal veículo de divulgação Veículos que,

através de uma composição editorial adaptada ao seu próprio tempo e às tendências

internacionais, criavam modas, impunham comportamentos, assumindo a estética

burguesa como a forma fiel do mundo que representavam. Janelas que se abriam para o

mundo retratado na foto, tais revistas contribuíram, em grande medida, para a

generalização do mito da verdade fotográfica. Ao mesmo tempo em que, através de suas

crônicas e notas sociais, impunham valores, normas e representações, num processo que

transformaria a cidade em cenário e as frações da classe dominante em seus atores

principais.

Os atores dessa cena social eram os dignitários das agências do Estado, sujeitos

associados às atividades urbanas, tais como setor de serviços, comércio de exportação e

ao capital financeiro que emprestavam suas vivências a experiência pública de ver e ser

visto. Neste sentido, as imagens fotográficas veiculadas pela imprensa ilustrada foram

importante instrumento, deste grupo social, no empenho de naturalizar suas

representações através da imposição de uma determinada forma de ver e reproduzir o

mundo, sobre todas as outras possíveis.

Consumidas por quem eram o seu conteúdo principal, tais revistas, auxiliaram

também a coesão interna do grupo em ascensão social. Com efeito, veiculavam

comportamentos tidos como necessários para se tornar um bom cidadão, atuando como

modelo a ser copiado e como exemplo a ser seguido. Em sucessivas cenas, o Rio,

Capital Federal, torna-se metrópole burguesa. Nesse processo, um mundo de signos é

produzido na experiência coletiva, fornecendo a tônica do tempo vivido. Signos que

157
emergem no presente como possibilidade de compreensão de uma certa versão de

passado.

Quem cria esta versão são os cultuadores do dandismo e beletrismo da Belle

Époque, que se travestem de almofadinhas e melindrosas, que bronzeiam a pele em

Copacabana, tomam sorvete na Americana depois da sessão vespertina do Odeon. São

os que olham o Rio por cima, da janela dos arranha-céus, e “fazem a avenida” às 16:00

h a caminho do five o’clock tea na Colombo.

São os que civilizam o Rio de Janeiro, seguindo o modelo de exclusão social,

derrubam o Morro do Castelo, o marco de fundação da cidade, e constroem a avenida

Presidente Vargas, nos moldes das grandes avenidas norte-americanas. São os que

andam na primeira classe dos “bonds” da Rua Jardim Botânico ou passeiam pela

avenida Beira-Mar, num Bayard-Clement último tipo.

São os que jogam na bolsa de valores, são acionistas da Light ou do Banco do

Brasil, além dos negócios na indústria e no comércio de importação e exportação. São

os que no verão sobem para Petrópolis, a imperial cidade serrana, fugindo do cheiro e

das doenças, que em sua concepção excludente, exalam do suor do povo. São os que

votam na UDN, mas que algum dia festejaram a “Revolução de 30”, juntamente com a

primavera, nas Batalhas de Flores da Praça da República15.

158
Cultuadores do ornato, do status, da aparência e do que dirão. São “chics”, “up-

to-date” ou “tran-cham”16. Vivem no Brasil com um olho na Europa e o outro nos

Estados Unidos da América. Burguesia, elite, grã-finagem, “jet-set”, 300 de Gedeão,

“grand-monde”, “high-life” são nomes intercambiáveis que escondem, sob a aparência

do bem-viver, códigos de comportamentos e representações sociais. Nomes utilizados,

ao longo do século XX, para designar as frações de classe que disputaram o controle do

capital simbólico fundamental ao processo de instituição de uma hegemonia de classe.

Importantes agentes instituidores de um habitus de classe, que discrimina uns e coopta

outros, que hierarquiza os espaços da cidade, dignificando-os ou rebaixando-os, que

elege o consumo como norma de vida, que dita modas e cria ilusões.

A capacidade das frações de classe dominante, em exercer algum poder sobre os

processos sociais de produção de sentido, estava estreitamente ligada a elaboração de

uma rede social, que vinculasse os empresários da comunicação aos altos funcionários

do governo, a tradicional aristocracia agrária e setores emergentes do empresariado

industrial, ou do comércio exportador. Neste sentido, o controle dos meios técnicos de

produção cultural, permitia que as representações sociais de comportamento dos grupos

sociais vinculados a rede, fosse disseminada para o conjunto da sociedade, com força de

uma norma incontestável.

No interior de tais redes sociais, os donos das revistas ilustradas, bem todos os

intelectuais a elas associados, detinham o controle de um grande capital simbólico, que

os habilitavam a participar intensamente da vida política do país. Vale ressaltar,

portanto a necessidade de tais agentes, como empresários da comunicação, em atualizar

seus veículos não só para manutenção como também para a ampliação de sua audiência,

garantindo assim seu lugar na dinâmica social.

159
Portanto, na primeira metade do século XX, as revistas ilustradas sofreram

importantes transformações, muito mais de forma do que de conteúdo. Adaptando-se às

mudanças políticas, às influências internacionais e ao mercado consumidor que, ao

longo deste período, cresce e se diversifica, afinal o leitor da Fon-Fon ou da Careta, de

1908, poderia ser até o mesmo em 1950, mas com certeza dividiria as suas páginas com

seus filhos e netos, frutos de um outro tempo, mas pertencentes a mesma classe social.

Daí a manutenção de determinados conteúdos de classe que, simplesmente ao longo do

tempo, se adaptaram às novas tendências. Entre o dandy e o self-made-man existe uma

diferença de forma, mas a substância, para a sociedade carioca, é a mesma.

Em linhas gerais, este longo período da história das publicações ilustradas de

críticas de costumes, que circunscreve a primeira metade do século XX, pode ser

dividido em dois sub-períodos, delimitados por transformações de ordem técnica que

influenciaram a forma de apresentação dessas revistas (Mauad, 1990,2002).

O primeiro período se inicia em 1900 com a introdução de fotografias na Revista

da Semana, único periódico ilustrado com fotos até então, e se prolonga até 1928,

quando foi lançada a revista O Cruzeiro, um marco na história do jornalismo brasileiro,

tanto por introduzir uma linha editorial de influência, marcadamente norte-americana,

como pelo aumento significativo no uso de fotos.

Na primeira fase editorial, o tom das publicações variava do crítico e cômico ao

refinado e artístico, circunscrevendo o imaginário carioca em todas as suas

possibilidades. A tendência crítica e cômica pode ser exemplificada nos editoriais de

lançamento das revistas Fon-Fon e Careta.

160
A FON-FON se lançava como "semanário alegre, político, crítico e esfuziante,

noticiário avariado telegrafia sem arame e crônica epidêmica" cujo único objetivo era

"fazer rir, alegrar a tua boa alma carinhosa (...) com o comentário leve das coisas da

atualidade (...). Para os graves problemas da vida, para a mascarada política, para a

sisudez conselheiral das finanças e da intrincada complicação dos princípios sociais, cá

temos a resposta própria: aperta-se a sirene... FON-FON!” (Fon-Fon, 15/4/1907).

A revista Careta por sua vez, seguia o mesmo tom de pilhéria, propondo em seu

editorial, "um programa vasto e sedutor" para o público "apreciador das sessões galantes

do jornalismo smart"(Careta, 6/6/1908). Dentro desta mesma linha editorial, situavam-

se a Revista da Semana e O Malho, esta última foi lançada em 1902 e especializou-se

em crítica política e caricaturas. A tendência, mais refinada e artística, teve como

representantes a Ilustração Brasileira e a Kosmos. Em 1904 surgiu o primeiro número

da Kosmos, uma revista nos moldes modernos dos semanários internacionais,

apresentando, portanto, uma publicação bem cuidada de acabamento primoroso.

À época de seu lançamento a revista Kosmos foi descrita da seguinte maneira:

"um primoroso álbum de nossas belezas e primores artísticos, propagando o seu

conhecimento a outros pontos do país e do estrangeiro” (apud. Nosso Século, 1980, v. I

p.220). No seu conteúdo constavam manifestações artísticas e literárias, crônicas e

reportagens sobre eventos sociais da elite endinheirada da cidade do Rio de Janeiro.

Colaboravam nesta revista: Arthur Azevedo, Gonzaga Duque, Capistrano de Abreu, e

Euclides da Cunha.

161
O segundo período se inicia com o lançamento da revista O Cruzeiro e se

prolonga, em termos de linha editorial, até a década de 1960, com a introdução, entre

outras modificações, da cor nas fotos de revista. Além das modificações, propriamente

técnicas, constata-se a partir dos anos 1960 uma reconfiguração no campo das

comunicações, este assume um caráter mais tecnocrático, diferente dos anos anteriores

onde o dono das empresas era considerado um capitão de indústrias, influindo

diretamente tanto nas organizações de suas empresas, quanto na política nacional (Ortiz,

1988).

Os anos que circunscrevem o período de 1930 a 1960, na história das publicações

ilustradas, diferenciam-se dos anteriores, tanto pela introdução de novas técnicas de

impressão, tais como a rotogravura, quanto por uma redefinição no perfil do mercado

editorial, ávido por informações atualizadas. Tais fatores foram definitivos para a

mudança no padrão estético e informativo das revistas ilustradas. Enquanto o primeiro

momento foi fortemente marcado pela presença de textos ficcionais, crônicas e por

fotografias pequenas e independentes do texto escrito, o segundo enfatiza a notícia, a

interpretação dos fatos nacionais e internacionais e as fotografias, em grande formato, a

estas associadas.

É importante enfatizar a diferença entre estes dois períodos, como forma de

caracterizar as mudanças inscritas na própria transformação da audiência das revistas,

dentre as quais se pode destacar: a ampliação dos estratos médios da sociedade carioca,

crescimento urbano e valorização de padrões comportamentais associados aos meios de

comunicação, passando a mídia a ser um elemento importante na formação do gosto.

162
A revista O Cruzeiro foi lançada no dia 10/11/1928, com uma tiragem inicial de

50.000 exemplares, cifra bastante significativa para a época. Em seu editorial de

lançamento, evidenciou-se o perfil moderno e inovador que os Diários Associados,

empresa pertencente a Assis Chateaubriand e responsável pela publicação de O

Cruzeiro, O Jornal e o Diário da Noite, queria traçar para si mesma:

“Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs

mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio Colonial, através dos escombros a

civilização traçou a reta da avenida Rio Branco: uma reta entre o passado e o futuro. O

Cruzeiro encontrará ao nascer o arranha-céu, a radiotelephonia e o correio aéreo. O

esboço de um mundo novo no novo mundo (...). A revista é um compêndio da vida (...)

revela a sua expressão educativa e estética, por isso a imagem é um elemento

preponderante. Uma revista deve ser como o espelho leal onde se reflete a vida, seus

aspectos edificantes, atraentes e instrutivos”. (O Cruzeiro, 10/11/1928).

Neste contexto, ao mesmo tempo em que a revista O Cruzeiro se inseria no

conjunto das chamadas publicações "frívolas", advogava para si o direito, quase

missionário de ser o espelho fiel da vida. Tal postura inscreve-se num contexto cultural,

no qual a imprensa exerce uma influência decisiva não somente na interpretação, mas

também, na própria elaboração dos fatos sociais. Sendo assim, a imprensa segundo a

concepção desta revista, ficaria encarregada da nobre missão de no caso dos jornais,

julgar, e no das revistas, depurar os fatos da vida para que o leitor se educasse de forma

correta.

163
Esta postura tem como premissa básica a idéia de que o que está escrito é a

própria verdade. Tal concordância seria reforçada pela utilização maciça de imagens.

Isto porque, a imagem, diferentemente do texto escrito chega de forma mais direta e

objetiva à compreensão, com menos espaço para dúvidas, pois o observador confia nas

imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos.

Com o intuito de reafirmar o papel predominante da imagem sobre o texto, a

empresa dos Diários Associados investiria, três anos depois do lançamento da revista,

na modernização dos equipamentos de impressão, buscando uma melhoria na qualidade

da imagem fotográfica. Em breve as páginas de O Cruzeiro, ganharam cor, a princípio,

exclusivamente em ilustrações e caricaturas e, bem mais tarde, em fotografias.

A revista O Cruzeiro, que se prolongaria até o final da década de 1930, em sua

primeira fase editorial, apesar de em muitos pontos assemelhar-se às outras revistas

ilustradas contemporâneas, especialmente à Revista da Semana, apresentou um caráter

mais cosmopolita, obtido através da utilização dos serviços das agências de notícias

internacionais, ampliando o seu universo temático. Um exemplo disso foi o

aparecimento de sessões exclusivas, como a chamada: “Pelas Cinco Partes do Mundo".

164
Resultado do empenho pessoal do dono da empresa Os Diários Associados, Assis

Chateaubriand, a O Cruzeiro, surge no mercado editorial de publicações semanais, com

o real objetivo de inovar. A O Cruzeiro de Chateaubriand era uma revista com papel da

melhor qualidade, repleta de fotografias, com os melhores articulistas e escritores do

Brasil e do exterior, compondo seu quadro de intelectuais, além de assinar todos os

serviços internacionais de artigos e fotografias. Foi lançada nas principais cidades e

capitais do Brasil, com tiragem inicial de 50.000 exemplares, uma cifra considerável

para o mercado editorial, dos anos vinte, acostumados a números mais modestos que

iam, no máximo, a 27 mil exemplares.

Todo este investimento foi feito, por Chateaubriand, não ter competidores a sua

altura e para ampliar o estoque de capital político à sua disposição. Ambos os

movimentos reforçaram influência deste empresário, tanto na rede social, composta

pelos setores dominantes, quanto no aparelho de Estado.

No entanto, foi a partir da década de 1940 que a O Cruzeiro incorporaria o padrão

de qualidade das publicações internacionais, incluindo, desde então, nas suas primeiras

páginas um detalhado expediente, onde se pode constatar a especialização dos serviços

da revista, em vários departamentos, bem nos moldes das famosas revistas Life, Look,

Paris Match, entre outras. Por esta época, O Cruzeiro já contava com uma tiragem de

120.000 exemplares.

165
Dentre os repórteres que faziam parte do quadro regular da revista constavam:

David Nasser, Edmar Morel, Rocha Pita, Nelly Dutra, etc. Como colaboradores

eventuais: José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Millôr Fernandez. Cabe ressaltar que

foi O Cruzeiro a primeira publicação a conceder o crédito das fotografias publicadas,

contando inclusive com um departamento e equipe fotográfica que reunia fotógrafos tais

como: Jean Manzon, Edgar Medina, Salomão Sciclar, Lutero Avila, Peter Scheir, Flávio

Damm, José Medeiros entre outros. Estes encarregados, juntamente com os fotógrafos

de introduzir uma linguagem fotográfica: o fotojornalismo.

Uma nova linguagem imbuída de um caráter fundamentalmente didático e de um

controle rígido da correlação texto/ imagem, por parte da equipe editorial. O fato é

literalmente construído, seguindo esta nova tendência às fotografias deixaram de ser

simplesmente dispostas nas páginas das revistas, para serem, com diferentes tamanhos e

formas, deliberadamente arranjadas rompendo com o esquema ilustrativo tradicional.

Com tais mudanças a revista O Cruzeiro, promoveria uma reformulação geral no

padrão das publicações ilustradas, que tiveram de reordenar toda sua linha editorial para

poder concorrer com o novo padrão estético imposto por O Cruzeiro. Algumas

publicações que tradicionalmente tinham uma boa entrada no mercado, tais como:

Careta, Fon-Fon e Revista da Semana, conseguiram se reformular e sobreviver.

Ver, imaginar, criar: os quadros de representação social da classe dominante nas


revistas ilustradas cariocas.

166
Para proceder a recuperação dos quadros das representações sociais de

comportamento da burguesia urbana, elaborado pela imprensa ilustrada carioca, na

primeira metade do século XX, através da imagem fotográfica, organizou-se um

"corpus", ou seja, uma série fotográfica extensa e homogênea. A série foi composta por

867 fotografias selecionadas das revistas O Cruzeiro e Careta, em anos-chaves nos

quais as revistas sofreram modificações na forma da expressão e na forma do

conteúdo.17

Neste sentido destacou-se respectivamente; 1908, 1914, 1922, 1928, 1935,

1942,1949 para revista Careta e 1928, 1934, 1943, 1950, para a revista O Cruzeiro. Em

cada ano foram escolhidos três números relativos, cada um, a uma época do ano: janeiro

/fevereiro, junho /julho e dezembro, com o intuito de cobrir os principais eventos da

cidade, tais como: festas de fim de ano, carnaval e as aberturas de temporada - verão e

inverno. Vale lembrar que a revista Careta e O Cruzeiro foram escolhidas devido a

constância na periodicidade, volume de fotografias, condições de acesso e reprodução

das imagens e por serem, cada qual, um exemplo típico de dois momentos das

publicações ilustradas, anteriormente assinalados.

167
O segundo passo foi a escolha de um eixo de análise que contemplasse o caráter

não-verbal da linguagem fotográfica. Optou-se pela avaliação de como a noção de

espaço foi codificada, na mensagem fotográfica, elaborada pelas revistas ilustradas. Tal

escolha justifica-se tanto pelo papel determinante que a noção de espaço ocupa nas

linguagens visuais, gestuais, etc., como nos critérios a partir dos quais o imaginário

urbano é construído, tomando-se sempre como referência básica à existência de um

"topos". Desta forma, a noção de espaço codifica tanto a expressão da linguagem

fotográfica como o conteúdo, por essa veiculada nos semanários ilustrados da primeira

metade do século XX.

Entretanto, cabe ressaltar que tal noção não é homogênea, seu desdobramento é

balizado pelas unidades culturais que estruturam a mensagem fotográfica e que podem

ser organizadas, para efeito de análise, em categorias espaciais, tais como: espaço

fotográfico, espaço geográfico, espaço do objeto, espaço da figuração e espaço da

vivência (MAUAD, 1996). Cada uma delas é analisada, separadamente, no entanto, na

dinâmica de produção de sentido social, entrecruzam-se. Em tal processo, balizam a

elaboração dos quadros de representação social, norteadores das formas de ser e agir da

burguesia urbana.

As opções estéticas, as formas de consumo, os lugares da cidade que deveriam ser

freqüentados, como signo de distinção e pertencimento social, enfim, toda uma

codificação em torno da noção de ‘bom gosto’ (identificado com o gosto burguês), era

estabelecida pelas imagens fotográficas e padrão gráfico das revistas ilustradas.

168
A seguir serão avaliadas as categorias espaciais, acima apresentadas, nas

fotografias de ambas as publicações - Caretas e O Cruzeiro - buscando-se, com isso,

recuperar os comportamentos e os quadros de representação social, correspondentes à

burguesia urbana18 em ascensão.

Flagrantes e instantâneos.

A composição do espaço fotográfico está intimamente relacionada ao tipo de

aparelhagem utilizada. A máquina fotográfica limitará as possibilidades de

enquadramento, tamanho, profundidade de campo e nitidez da foto.

As imagens fotográficas das revistas ilustradas sofreram uma variação de padrão

correspondente à própria evolução da técnica fotográfica, e do acesso que as redações

das revistas tinham a este progresso tecnológico. Paralelamente a estas variáveis, mais

um fator interfere na composição do espaço fotográfico das revistas ilustradas, qual

seja: a relação da imagem com o texto escrito.

Neste sentido, as variáveis na composição do espaço fotográfico, nas revistas

ilustradas foram as seguintes:

v Tamanho da foto: variou entre pequeno, médio e grande. As fotos pequenas

tomaram no máximo 1/8 do espaço total da página; as fotos médias, cerca de 1/4 e as

grandes, mais de 1/2. A opção por expressar os valores métricos em frações, deveu-se

ao fato de que as fotografias não possuíam um padrão métrico constante, como, por

exemplo, as fotografias que integram um álbum de família.

v Formato da foto: variou entre o quadrilátero, que inclui o formato retangular e o

quadrado, e a circunferência, que inclui o formato oval e circular, bem como outras

formas semelhantes, como no caso de foto dentro de letras ou emolduradas.

169
v Suporte da foto: caracteriza-se pela forma da relação entre o texto escrito e a

linguagem fotográfica. Foram encontrados quatro padrões de variação na relação texto e

imagem:

1ª relação: reportagem fotográfica com título, texto e legenda.

2ª relação: reportagem fotográfica com título e legenda.

3ª relação: fotografia avulsa com título e legenda.

4ª relação: fotografia avulsa somente com título.

Vale ressaltar a existência de parceria entre fotógrafo e repórter, ambos assinando seu

trabalho, texto escrito e visual. Recurso nas reportagens fotojornalísticas a partir de fins

da década de 1930, estabelecendo uma nova relação entre linguagem escrita e visual.

Neste caso, a fotorreportagem adquiria uma narrativa que poderia ultrapassar uma

edição da revista, caso o tema fosse sucesso de público, como os famosos crimes

passionais, com cobertura exclusiva.

v Tipo da foto: posada ou instantânea, para se avaliar o grau de naturalidade das

fotos e se detectar a existência de comportamentos emergentes.

v Enquadramento: item que reuniu o sentido, a direção, a distribuição dos planos,

o objetivo central e o arranjo das fotos coletivas, como forma de avaliar a

hierarquização do espaço fotográfico e possíveis seqüências de significados.

v Nitidez: item que inclui o foco, a impressão visual e a iluminação. A avaliação

apurada de tais itens, ao longo do tempo, permite recuperar as mudanças estéticas na

forma de expressão da fotografia de imprensa, enfatizando-se, ou não o mito da verdade

fotográfica.

A revista Careta apresentou o seguinte padrão de espaço fotográfico ao longo dos

50 anos cobertos pela análise:

170
Tabela 9

Tamanho 40% pequenas; 30% grandes; 30% médias.

Formato Retangulares (99%)

Suporte Reportagem fotográfica com título e legenda (44% do total)

Tipo 68% posada e 32% instantâneos

Enquadramento Sentido horizontal (66%); direção central (57%); 2 planos distintos(80%); grupo misto como

objeto central dispostos eqüitativamente em semicírculo ou linha reta (quase não há fotos com

pessoas espalhadas)

Nitidez Linhas definidas (90%), com todos os planos no foco (90%); sem sombras e com contraste

(90%)

O espaço fotográfico da revista O Cruzeiro configurou-se da seguinte maneira:

Tabela 10

Tamanho 58% pequenas; 26% médias e 14% grandes.

Formato Retangulares (99%)

Suporte Reportagem fotográfica com título, texto e legenda (72% do total sendo que cerca de 50%

foram realizadas nos moldes do fotojornalismo)

Tipo 60% fotos posadas contra 40% de instantâneos

Enquadramento Sentido vertical (76%); direção central (56%); 2 planos distintos com objeto central

concentrado no 1° plano devido a opção vertical (80%); mulher como objeto central (27%).

Nitidez Linhas definidas (90%); objeto central no foco (74%); sem sombras e com contraste (90%)

Como pode ser constatado pelas tabelas acima existiam poucas diferenças entre as

duas revistas. A Careta apresentava imagens com contornos bem definidos, planos

distintos, equilíbrio de elementos e homogeneidade de organização. Tais opções

reafirmam o pressuposto de que, o que era exibido na foto, mantinha uma relação direta

e objetiva com a própria realidade.

171
Já a O Cruzeiro, foi mais ousada, principalmente numa avaliação de cada período

separadamente, quando se constata, a influência de outros tipos de imagem, como o

cinema, nas opções estéticas. No conjunto dos anos analisados, as imagens

caracterizaram-se pela concentração no plano central, homogeneidade, pouca

profundidade, definição de linhas e contornos e pela sexualização do espaço figurativo,

com a escolha da mulher como objeto central da maioria das fotos.

Numa análise numérica da incidência homem /mulher como objeto central das

fotos de O Cruzeiro, a distribuição encontrada foi a seguinte:

Tabela 11

1° PLANO 2° PLANO PLANO CENTRAL


FIGURA MASCULINA 18% 8% 17,5%
FIGURA FEMININA 18% 6,5% 27%

172
Com efeito, a tendência geral é para a distribuição equilibrada entre o espaço

feminino e masculino, já que ambos incidem igualmente no primeiro plano. No entanto,

há que se ressaltar a maior incidência da figura masculina em segundo plano e da

feminina em plano central revelando-se aí uma maior valorização da imagem feminina

na composição fotográfica da revista O Cruzeiro. A presença feminina explica-se tanto

pela introdução de sessões especializadas em modas, como pela valorização do corpo

feminino, a partir da década de 1940, associada a uma mudança em termos de

representações culturais do popular e do nacional nos meios de comunicação.

O padrão adotado nas fotorreportagens de O Cruzeiro expressava um maior

investimento nas experimentações estéticas. Tal fato deveu-se principalmente a

valorização da relação texto e imagem, através da construção de uma narrativa visual,

cuja autoria passa a ser identificada, e o trabalho do fotógrafo valorizado na sua

dimensão criativa, muito mais do que informativa.

Por outro lado, a opção pelo fotojornalismo, criou uma ancoragem da imagem

para com o texto escrito. Sendo estas interpretadas a partir das idéias escritas, limitando,

assim, a autonomia do texto visual em relação ao escrito. Ao mesmo tempo enfatizava o

caráter didático que a imprensa assumiu a partir da década de 1940.

Geografia da diferença

A cidade, suas avenidas, praias, contorno dos morros ou a baía - um espaço

próximo e vizinho compõe uma determinada imagem do Rio de Janeiro que, por

predominar silencias as demais. O Brasil, suas regiões e paisagens criam uma imagem

que expõe tanto a face de riqueza e desenvolvimento quanto a o lado pitoresco e exótico

de um país tão cheio de diversidade.

173
O estrangeiro surge nas páginas ilustradas através das cidades -capitais e seus

modos de vida peculiares. Imagens que indicam a ampliação dos contatos

internacionais, o mundo tornava-se, como que por mágica, ao alcance dos olhos. Tudo

isso incitava a curiosidade e a adoção de modismos e comportamentos emergentes.

O espaço engendrado pela mensagem fotográfica das revistas ilustradas, tem

como característica básica a variedade. Entretanto, mesmo dentro desta variedade,

existe uma hierarquia de temáticas que são associadas a determinados lugares.

No conjunto as imagens analisadas nas revistas Careta e O Cruzeiro o espaço

geográfico foi dividido em três grandes blocos regionais, cuja proporção de incidência

na imagem foi a seguinte:

Tabela 12

Região Revista CARETA Revista O CRUZEIRO


RJ - zona Sul 36,5% 24,5%
RJ - Zona Norte 7% 1%
RJ - centro 24% 15%
RJ - Subúrbios 1% 4%
Estado do RJ 2% 9,5%
Fora do Rio, no Brasil 10% 8%
Fora do Brasil 15% 32%
RJ (não identificada) 4,5% 6%

É importante ressaltar que, cada uma destas regiões manteve uma relação com o

eixo principal - a cidade do Rio de Janeiro - ora reforçando-lhe seu caráter cosmopolita,

ora atribuindo-lhe determinadas funções que podiam ser turísticas, políticas ou

propriamente de palco para o desfile de personagens da classe em ascensão, a burguesia.

174
Os blocos regionais, por sua vez, foram subdivididos em diferentes lugares,

compondo uma paisagem formada por clubes com seus salões luxuosos e áreas

externas, estádios de esporte, hotéis, praias, avenidas e ruas, edifícios públicos, escolas,

teatros, estúdios, ambientes domésticos, selvas, etc. Duas regiões se destacam do

conjunto: na revista Careta, a região RJ - Zona Sul e na revista O Cruzeiro, o

estrangeiro. Emblemas de um estilo de vida que estava se impondo. Comecemos pela

zona sul, da cidade do Rio de Janeiro, e sua identificação com o habitus da classe

dominante.

A zona sul de Rio abarca os bairros litorâneos localizados entre o mar e os

morros. São mais distantes do centro de negócios e, até os anos 1950, eram

fundamentalmente destinados à moradia e lazer das camadas mais ricas da população

urbana. Portanto, era uma área onde se podia facilmente retratar a vida, os hábitos, as

maneiras de vestir, os passeios, eventos, etc., de uma classe que cada vez mais se

identificava com os valores e comportamentos da burguesia ocidental.

Os lugares de maior incidência, nas fotos da zona sul, da Careta, são: os parques,

avenidas, ruas, clubes, praias, estádios de futebol de clubes, os hotéis e as veredas

tropicais a beira mar. Assim, os lugares fotografados compunham uma mensagem que

reafirmava a vocação destes espaços ao lazer e a diversão de setores privilegiados da

população. A freqüência em tais lugares, como não era aberta ao público, atuava para o

seu usuário como um signo de distinção social.

175
Uma tendência evidenciada nas fotografias de escolas, onde o tema escolhido, não

foi o das salas de aula, mas as festas de formatura e de encerramento do ano letivo; no

mesmo estilo, os prédios públicos, principalmente, o palácio do governo, localizado no

bairro de Laranjeiras (zona sul), compareceram somente nas fotos de festividades,

geralmente, Natal, quando se distribuíam, nos jardins do palácio, presentes aos pobres.

Mais uma vez reafirma-se a idéia de privilégio na forma de representação dos espaços

freqüentados pelos grupos dominantes. Em relação às escolas, os ritos de passagem

evidenciavam o aprimoramento cultural e intelectual dos filhos e netos dos donos do

poder, paralelamente, a caridade garantia a manutenção da distancia social entre os

grupos privilegiados e os desfavorecidos, agentes e pacientes do ato caridoso.

Neste sentido, a zona sul da cidade sempre foi associada a códigos de

comportamentos relacionados aos grupos dominantes, emblemas de sua distinção social,

tais como: banhos de mar na praia da Urca, defronte ao Cassino em grandes tendas;

bailes de formatura do Clube Fluminense, com seus lustres e espelhos, criando uma

ambiência de exclusividade e luxo; lanches na varanda do hotel Copacabana Palace,

tendo como ornamentação a bela avenida Atlântica, reformada e cheia de automóveis

importados, entre outros exemplos.

N’O Cruzeiro, a maioria das fotografias analisadas é de localidades estrangeiras,

destacadamente a Europa Ocidental e Hollywood. Da Europa Ocidental chegavam

notícias das guerras e dos grandes fatos que marcaram a história contemporânea da

humanidade. No entanto era com Hollywood que o carioca (como era e, todavia são

chamados os habitantes da cidade do Rio de Janeiro), se reciclava e assimilava o padrão

burguês de comportamento como uma norma de atitude.

176
Ao longo década de 1920, os Estados Unidos da América, cresceram

economicamente, despontando como a terra do dinheiro fácil, de homens vigorosos e da

ilusão consumista. Uma sociedade afluente e moldada sob medida para uma classe

dominante carente de um projeto cultural próprio, tal como a burguesia carioca se

apresentava. O automóvel americano e as fitas de Hollywood exportavam o american

way of life.

No caso do Rio de Janeiro, capital federal, a indústria cinematográfica, através da

Companhia Cinematográfica Brasileira, consegue intervir no panorama urbano com a

construção da Cinelândia. Um espaço, no centro de negócios da cidade, totalmente

reformado para abrigar as novas salas de cinema. Ir ao cinema havia se transformado no

ato de consumo de um produto: o filme, daí a necessidade de locais adequados para

consumi-los.

Ingressos caros, mas conforto, higiene e luxo eram oferecidos, a todos os

freqüentadores, pelos quatro cinemas inaugurados na Cinelândia, entre 1925 e 1928.

Capitólio, Odeon, Palácio e Glória, com suas estréias espetaculares, produziram um

novo espaço de aparência na geografia da cidade.

177
A revista O Cruzeiro lançava em 1928, ano da inauguração do último cinema do

complexo, uma sessão denominada ‘Cinelândia’. Aí era tratada as ‘coisas do cinema’;

numa composição de fotografias e comentários sobre a vida pessoal dos artistas, cenas

de filme, a qualidade da audiência nos cinemas, etc. Uma tendência que se alastrou por

outras publicações ilustradas, pois, nos anos subseqüentes inauguraram sessões

exclusivamente sobre Hollywood, sinônimo de cinema, dentre as quais destacaram-se:

‘galeria dos artistas da tela’ (Fon-Fon); ‘Novidades de Hollywood’ (Careta); ‘Cine-

revista’ (O Cruzeiro), etc. Além das revistas especializadas em cinema, tais como:

Selecta, Cinearte e Para Todos.

O cinema, incentivado por tais publicações, passou a fazer parte do cotidiano

social carioca reordenando a geografia de diversões, ao mesmo tempo em que impunha

novos códigos de comportamento.

A imagem proveniente de Hollywood influenciava no tipo da indumentária, nos

cortes de cabelo, na maquiagem do rosto, na forma de beijar19, bem como na redefinição

dos locais de lazer da burguesia carioca, e na estruturação de um star-system nacional

utilizando-se das artistas do rádio. Nos anos quarenta a política da boa-vizinhança

encetada pelos EUA, para os países da América Latina, redefiniria a estratégia de

sedução Hollywoodiana. Carmem Miranda e o personagem de Walt Disney, Zé Carioca

tornaram-se ícones a partir dos quais deveríamos nos modelar. Uma imagem imposta

redefinidora da nossa própria auto-imagem.

178
Neste momento, não só o Brasil, mas a sociedade latino-americana como um todo,

sofre um processo de internacionalização. Em tal processo as referências culturais de

caráter tipicamente burguesas, já consolidadas nas sociedades do hemisfério norte,

mesclam-se aos valores tradicionais de cada formação social, gerando uma cultura

híbrida. A marca fundamental, deste novo padrão cultural, foi a valorização do popular,

na sua dimensão de mercadoria de consumo e a manutenção dos códigos

comportamentais pautados na exclusão social.

Nesse contexto, uma nova sociabilidade urbana, se formava com base nos códigos

de representação social que valorizavam o samba, o malandro, a boêmia, enfim

elementos de uma cultura popular apropriados e reelaborados pela ótica do estrangeiro.

Portanto o popular passa a ser uma mercadoria consumida através da organização do

chamado “star-system”, composto pelas estrelas e astros dos filmes de Hollywood, das

chanchadas da Atlântida20, dos programas e novelas da rádio Nacional e pelas

fotografias das revistas, que veiculavam a imagem de todos os agentes destas

atividades, como símbolos da nossa brasilidade.

O reverso desta imagem é a exclusão, de fato, de setores populares das áreas

valorizadas da cidade, da diferenciação de lazer de elite e do povo, do agravamento das

diferenças sociais e da perda de referências culturais propriamente nacionais.

Por outro lado, a ênfase dada ao espaço estrangeiro, pela revista O Cruzeiro,

explica-se por ser esta uma revista mais cosmopolita e criada a partir do novo padrão

empresarial da imprensa moderna. Em compasso com esta tendência, mantinham

contato direto com as agências internacionais de notícias, tais como: Schert de Berlim,

ABC de Lisboa e o Consórcio Internacional de Imprensa de Paris, além de manter um

correspondente especial em Hollywood.

179
No entanto, nas imagens haviam ausências. O leste Europeu e o Oriente surgiam

somente como paisagem exótica. No entanto, a América Latina, os bairros pobres da

cidade e do Brasil, são apagados da imagem dominante como uma realidade inexistente.

Equiparados à condição de periferia na configuração da geopolítica ocidental burguesa

Ambas as publicações seguem uma tendência semelhante, salvo as ênfases acima

apresentadas. O Cruzeiro marca sua diferenciação do conjunto de revistas ilustradas,

investindo no aspecto cosmopolita de Rio de Janeiro, Capital Federal, enquanto, a

Careta manteve sua tradição de revista de crítica de costumes, tipicamente carioca,

elevando as imagens da zona sul ao padrão ideal de representação.

Enquanto a O Cruzeiro opunha a cidade a um outro espaço: Rio x Mundo,

buscando sua identificação, a Careta complementava a cidade com este espaço

estranho, criando uma nova identificação: Rio = Mundo. Vale complementar tal

avaliação pela dimensão política da cidade, centro de decisões ligados ao gerenciamento

dos negócios públicos e privados. A cidade-capital surgia nas fotografias como

referência paradigmática de Brasil. Ao longo de cinqüenta anos de imagem o Rio passa

de Paris dos trópicos, símbolo da modernidade sustentada por uma elite agrária

dominante, à metrópole sintetizada nos arranha-céus da Avenida Presidente Vargas,

inaugurada em 1945. Em todos estes momentos atualizava sua função de centro de

poder, local onde se decidia o futuro do país e de onde o Brasil se projetava para o

mundo civilizado. Uma estratégia das classes dominantes, em manter a unidade

nacional, através da identificação do país com sua capital.

Emblemas do gosto burguês.

180
Os objetos, numa coleção de fotografias de revista, são atributos da mensagem

fotográfica que fornecem a dimensão dos lugares retratados e dos eventos a estes

relacionados. Para efeito de análise dividiram-se os objetos retratados em três tipos:

objetos-pessoais, objetos-interiores e objetos-exteriores. Na mensagem fotográfica

transmitida pelas revistas ilustradas, tais objetos foram apresentados tanto como dignos

símbolos do padrão de vida dominante, como objetos úteis para a realização de

determinadas tarefas. Entretanto, em ambos os casos, o objeto investe a imagem de

determinados significados próprios ao espaço e tempo da representação.

Os objetos-pessoais estão associados à representação do indivíduo: seu estilo de

vida e sua posição na hierarquia social. Os objetos-interiores caracterizam o tipo de

paisagem que se está retratando: privada ou pública; muitas vezes, como no caso das

cenas de filmes, a transposição de objetos-interiores para espaços públicos, como

estúdios de cinema, visa criar, justamente, uma ambiência privada. O terceiro tipo, os

objetos-exteriores, caracteriza o meio retratado, podem também, quando associados às

pessoas, indicar o estilo de vida e o padrão social, no qual elas se enquadram.

É, especialmente, no âmbito dos objetos que a mensagem fotográfica das revistas

ilustradas entra na intimidade do leitor, moldando-lhe os gostos e educando-lhe o olhar,

interferindo, tanto na sua representação pessoal, quanto na criação de novos códigos de

comportamento para uso coletivo.

181
Esse processo ocorre porque, os três tipos de objetos, que fazem parte do

cotidiano dos receptores das mensagens fotográficas, ao serem recortados da realidade

vivida e transpostos para a realidade da imagem, adquirem uma função-signo de

modelo, na qual estão investidos de um poder de persuasão, até então não

dimensionado. A combinação de redes de significado compondo objeto + figuração +

vivência adere à representação indicando formas corretas de se comportar em diferentes

ocasiões.

No conjunto das fotografias analisadas evidenciou-se um estilo de vida baseado

no consumo supérfluo do luxo e da abundância de objetos, marca registrada do novo

cidadão urbano. Em 70% das fotos os objetos estão em segundo plano atuando como

elemento de reconhecimento do ambiente retratado, em geral urbano (66%) e elegante,

tais como: clubes (26%), ruas e avenidas da moda (24%) e hotéis (14%). Em termos de

objetos-pessoais, em 50% das fotos analisadas a indumentária escolhida incluiu trajes

como: gala, passeio completo, esporte fino e esportivo. Tal preocupação pelo traje

adequado para a hora certa denota a existência de um código do bem-vestir pautado na

utilização de objetos-pessoais tanto para a caracterização da situação que se esta

vivenciando, como elemento de distinção social.

Os donos do olhar: hierarquia de gênero e idade na representação social da


burguesia.

182
Compreendendo o espaço da figuração, engendrado pela mensagem fotográfica,

das revistas ilustradas, a partir de três oposições básicas: grupo/ indivíduo; homem/

mulher e adulto/ criança, desvenda-se um mundo no qual os habitantes possuíam

lugares determinados no espaço da representação. Nesta a imagem feminina estava

associada à frivolidade e aos papéis de espectadora e modelo exemplar, e a masculina à

ação, inteligência e ao poder. No trabalho de relacionar a figuração ao evento retratado,

tal distinção evidenciou-se.

Os homens foram relacionados às temáticas que incluem: os eventos sociais,

militares, políticos e esportivos, além das curiosidades nacionais e internacionais, item

que contêm uma grande variedade de temas que poderiam incluir desde os

acontecimentos cotidianos da cidade - tipo desastre de avião ou automóveis,

especialidades culinárias dos cozinheiros dos principais hotéis e clubes da cidade,

reportagens sobre recursos naturais, etc. - até as últimas novidades do século XX.

Por outro lado, a imagem feminina foi associada à vida dos artistas e de pessoas

famosas do high society internacional e principalmente à moda. Sobre a moda havia

uma distinção entre as novidades internacionais e a sua utilização no âmbito nacional. É

justamente através da imagem da moda nacional que a especialização entre o espaço

feminino e masculino evidencia-se mais claramente, posto que, tal temática está

representada nas fotografias do Jockey Club, onde as mulheres são retratadas como o

público elegante, destacando-se a sua indumentária bem cuidada e o seu estilo elegante.

Até mesmo quando a figura masculina incluída neste âmbito aparece em segundo plano

e em pequeno número. Assim, em tais representações, o espaço masculino se associava

ao esporte e a ação e o feminino à moda e ao papel de assistente.

183
Entretanto, no espaço feminino foi também que se incluíram imagens das

condições de vida das classes populares, veiculando uma representação dicotômica da

sociedade que vem a confirmar os papéis socialmente impostos. A mulher das classes

populares é fotografada, via de regra, trabalhando em serviços braçais, tais como: lavar

roupa, cozinhar, cuidar de criança, etc., ou em situações de dificuldade e precariedade.

A ela são associadas roupas simples e à sua casa poucos objetos interiores, além de estar

localizada nos subúrbios desassistidos pelas autoridades.

Neste sentido, o espaço feminino para as classes populares é formado por um

ambiente periférico, que acaba por confundir-se ao coletivo, não recebendo com isso, a

mesma valorização das mulheres da classe dominante, que surgiam na imagem sempre

com boa aparência, em lugares exclusivos e protagonizando situações de lazer ou de

romance.

Na representação criada pela imagem fotográfica o universo infantil é um

simulacro do adulto, no qual todas as potencialidades para um cidadão realizado são

apresentadas como condição natural e inerente ao grupo social do qual provêm.

Em 10% das fotos analisadas as crianças aparecem sozinhas, em 14% estão

acompanhadas de adultos, o restante são fotos exclusivamente de adultos. Diante de tal

proporção investiu-se na descoberta dos temas e do tipo de indumentária que foram

associados às crianças, para dimensionar-se quais representações sociais que estavam

atreladas ao universo infantil.

184
Basicamente, os eventos sociais, os banhos de mar e os passeios foram os temas

que obtiveram a maior incidência de crianças sem a companhia de adultos (21%). Neste

caso os eventos sociais são formados por festas de encerramento do ano letivo e por

bailes infantis em ocasiões especiais - o exemplo deste tipo de evento são as fotos da

Exposição Internacional de 1922, que contou com o equivalente infantil para o baile

comemorativo do centenário da Independência.

Acompanhada de adultos as crianças são retratadas nos eventos sociais, militares,

políticos, esportivos e nos passeios e banhos de mar (18%). Desta vez os eventos sociais

e a temática de maior incidência (7%), compõem-se por festas de caridade com a

presença de menores carentes.

Com efeito, mesmo quando as crianças são retratadas independentemente dos

adultos mantêm-se a eles atreladas. A marca da dependência se evidencia quer através

da opção temática das fotos infantis, nas quais se apresentavam equivalentes infantis

para eventos adultos, ou ainda nas imagens de festas de caridade, nas quais um

conjunto de crianças espreitam os adultos na busca de presentes ou benefícios .

185
No espaço infantil a sociedade reaparece segmentada em dois grupos sociais

distintos: um que, socialmente despossuído, depende do universo adulto através da

caridade; outro que compartilha da fruição dos lugares exclusivos e do consumo dos

signos de luxo e riqueza e que se prepara para assumir os papeis já estabelecidos na

dinâmica social. A própria indumentária reafirma a existência de tais papéis, tendo em

vista que, do conjunto de fotos de crianças acompanhadas ou não de adultos, em cerca

de 40% estão fantasiadas, 18% trajam passeio-completo e 16,5% o esportivo. De acordo

com tal proporção é a fantasia a escolha principal para compor o espaço infantil, dentre

as quis se destacam: príncipes, nobres, militares, esportistas, bailarinas, etc. Imagens

que associam as crianças a representações sociais tipicamente adultas e de um certo

universo de adultos.

Distinção social e vivência de classe na sociedade carioca da primeira metade do


século XX.

Em 1950, no Rio de Janeiro, florescia um mundo moderno de metrópole

burguesa definitivamente constituída. Um espaço bem marcado, com suas fronteiras

delimitadas pela gare da estação de Trens Central do Brasil e pela orla marítima. Nesse

intermédio, vivia o Rio moderno e promissor, sociedade afluente de signos de distinção.

Para além da Central do Brasil, os subúrbios eram o reverso desta imagem, era onde “a

vida tem horizontes exíguos e as aspirações e os sonhos encontram seus limites nos

trilhos da estrada de ferro, sendo o rádio a única porta de evasão”.(Peregrino Jr. Apud.

Nosso Século, SP: Ed. Abril Cultural, 1980, Vol. IV p.154).

Ao longo da primeira metade do século XX, das representações sociais de

comportamento engendradas pela imagem fotográfica, das revistas ilustradas, surge uma

cidade onde os espaços são redimensionados para atividades as quais não foram

186
programados, em função de uma vivência de classe. Neste sentido, o lazer é associado

ao trabalho no exercício do poder, na medida em que os grandes negócios empresariais

ou as importantes questões nacionais eram resolvidos em banquetes e festas. Os espaços

adquiriam uma nova dignidade por terem sido fotografados como ambientes para

eventos exclusivos, ou simplesmente, porque neles se deixaram fotografar, pessoas

ostentando objetos que caracterizassem um determinado estilo de vida associado ao

luxo e à exclusividade. Assim a coesão de classe e a construção de uma Capital

cosmopolita e moderna, plenamente preenchida por valores de tipo burguês, se

processam tanto através da vivência e do consumo de um mesmo universo de signos,

como pela produção de uma imagem onde o "locus" social aparece como dado inerente

à própria História.

Neste sentido, o pobre é retratado como naturalmente pobre e o rico como

naturalmente rico, posto que, em nenhum momento são representados fora do código

dominante que associa um determinado espaço geográfico a certos objetos e pessoas,

orientando com isso a própria representação dos eventos/ vivência dos grupos sociais.

Assim, a naturalização do processo histórico, através da hegemonia da imagem

fotográfica dominante, atuou como elemento estruturante das representações sociais de

comportamento, que se instituíram ao longo da primeira metade do século XX,

moldando os gostos e escolhas dos cidadãos que se tornavam consumidores.

187
As revistas ilustradas compuseram o catálogo de valores, emblemas,

comportamentos e representações sociais, através do qual a burguesia se imaginou e se

fez reconhecer, criando a utopia de um mundo digno, porque civilizado e

empreendedor, e livre, porque acessível e transparente aos olhos de todos. A imagem

publicada torna-se o ícone, por excelência, de um modo de vida vitorioso, que prescinde

da própria realização para existir, bastando para tanto que as imagens fotográficas o

refletissem.

Cinqüenta anos de imagens que revelam o processo social de um grupo que, aos

poucos, adquire consciência de classe, tanto pelo papel conquistado no âmbito da

produção, quanto pelos quadros de representação social e programações de

comportamento elaboradas neste processo. Tais referências culturais foram estendidas

para o conjunto da sociedade como sendo a forma correta de ser e agir, relegando todos

os comportamentos alternativos ao âmbito da marginalidade.

188
Capítulo 9.

Flávio Damm, profissão fotógrafo de imprensa: o fotojornalismo e a escrita da


história contemporânea.
O goleiro que pega a bola na hora do gol, o torcedor desdentado grudado no seu

radinho de pilha, a moça bonita que, estirada na praia, projeta seu corpo para o mundo;

o banhista atento à movimentação faz posse de “sportsmen”, no ponto de ônibus as

pessoas em fila esperam o próximo a chegar; na outra esquina o ônibus é depredado

pela multidão; do avião caem projéteis e a imagem seguinte é a de um grande cogumelo

atômico. Imagens fotográficas vistas ou imaginadas, narram a nossa experiência

contemporânea no mundo..

Ao longo da história das publicações ilustradas, a fotografia foi criando uma

linguagem através da qual os fatos assumiam uma historicidade, ao mesmo tempo em

que eram concebidos através do estatuto da verdade fotográfica. Proponho, para analisar

esse processo de produção de sentido, uma metodologia transdisciplinar que, segundo

os princípios de uma análise semiótica da imagem visual, estabeleça sua interface

histórica num procedimento intertextual com as fontes orais. Desta forma, o passado

composto através de palavras e imagens poderá dar conta das imbricações conceituais

entre memória e história.

Abordaremos neste artigo a trajetória do fotógrafo Flávio Damm que, em 2005

completou 60 anos de carreira. Sua entrevista é objeto de uma avaliação a partir da

relação entre biografia e mediação cultural.

A trajetória do olhar de Flávio Damm.

“Ana, que bom que minhas fotos emocionam. De São Paulo um (grande)

fotógrafo diz que gosta da minha simplicidade fotográfica. Vou acabar Harekrishna.

189
Vou acabar dando conselhos para noivas inexperientes...” (Flavio Damm, por e-mail em

10/05/2005).

A estratégia metodológica adotada para este trabalho se orienta segundo duas

grandes linhas que já vêm norteando, desde sua fundação em 1982, o trabalho do

Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI/UFF): criação de acervo com fontes

orais e tratamento informatizado das fontes visuais. Dentro desta perspectiva a produção

das fontes orais se processa com base no princípio de intertextualidade, segundo o qual,

as narrativas, textos e discursos são sempre resultado de um processo contínuo de

produção de sentido, realizado com base num conjunto de experiências sociais prévias,

que podem vir condensadas pela memória através de imagens.

Neste sentido, inscrevo minha proposta no marco da história da memória de um

grupo de indivíduos – os fotógrafos de imprensa. Por um lado, valorizo o circuito social

de suas fotografias e sua situação no regime visual do século XX, historicamente

definido pelos processos de produção, circulação e consumo de imagens técnicas. Por

outro, busco a recomposição das trajetórias dos principais fotógrafos que atuaram na

imprensa, principalmente a partir da segunda metade do século XX, através de

entrevistas com aqueles ainda vivos, no sentido de compreender as relações entre as

histórias de vida (estratégias profissionais e escolhas pessoais), mediação cultural e a

produção visual da história21.

Para trabalho com fontes orais foi adotado o seguinte procedimento:

definição da comunidade de entrevistados; pesquisa de dados informativos; definição do

roteiro da entrevista; estabelecimento do contato com nossos futuros entrevistados e

realização da entrevista (após a escuta da primeira entrevista, se necessário for, marca-

se uma segunda entrevista ). Já tendo nossa comunidade de entrevistados definida – os

190
fotógrafos de imprensa –, partiu-se para a coleta de dados informativos que é a base

para o iniciação de qualquer trabalho de pesquisa. Os dados levantados se referem tanto

à história do fotojornalismo e da imprensa, como também sobre a comunidade de

nossos entrevistados. Essa tarefa foi realizada a partir da atualização bibliográfica, o que

permitiu não só nos atualização e aprofundamento do tema, como também captar dados

importantes para as entrevistas e para a confecção do roteiro.

Optou-se por um roteiro que enfatizasse as lembranças de cada fotógrafo acerca

da produção de suas fotografias e de sua trajetória profissional, sem negligenciar a

história pessoal de cada um. Embora comum a todos os entrevistados, o roteiro é

flexível, não sendo necessário que seja seguido à risca. Serve como base para apoiar o

entrevistador e lhe dar um norte das questões basilares que precisam ser mencionadas.

Porém, o ritmo da entrevista é o que realmente conduz entrevistador e entrevistado.

Com os dados coletados e o roteiro em mãos, partiu-se para a realização das

entrevistas, sabendo que relato oral e fotografia complementam-se na elaboração do

material histórico a ser analisado. Ou seja, a associação do uso de fontes visuais aos

relatos orais como fontes para o estudo da História.

O contato inicial foi com o fotojornalista Flávio Damm. A primeira entrevista

logo se revelou insuficiente para dar conta de suas histórias, sendo que ao todo

realizamos três entrevistas ao longo de 2003 (24/04/2003; 15/05/2003 e 7/10/2003).

Além de conversas informais e trocas de e-mails que continuam complementando o

trabalho de recomposição da sua trajetória.

As entrevistas mais formais transcorreram em ambiente tranqüilo e com bastante

disposição por parte do entrevistado em fornecer informações e impressões sobre a

191
história do fotojornalismo contemporâneo. O roteiro seguido enfatizou sua trajetória

profissional e a lembrança das fotografias que mais marcaram sua carreira.

O primeiro trabalho de Flávio Damm na imprensa foi na Revista do Globo,

quando ainda morava no Rio Grande do Sul. Depois de algum tempo foi incentivado

por alguns amigos e por companheiros de profissão a vir tentar a sorte no Rio de

Janeiro, em função da qualidade de seu trabalho. Foi o que ele fez. Quando chegou ao

Rio de Janeiro foi diretamente pedir emprego numa das revistas mais famosas e

conceituadas da época: O Cruzeiro.

Sobre O Cruzeiro, onde trabalhou durante dez anos, as lembranças são muitas.

Falou tanto da importância desta revista na época, como também da rotina dentro da

redação e da linguagem fotográfica utilizada. Muitas são as reportagens que compõem

os quadros da sua rememoração, estas incluem desde a Coroação da Rainha da

Inglaterra, passando pelas últimas fotografias de Eva Perón, e chegando até o crime do

Sacopã, na zona sul carioca. Cada qual narrada com rigores de explicação técnica,

enfatizando o lado de aventura que envolve o imaginário do trabalho do fotógrafo

contemporâneo.

Após sua saída da revista O Cruzeiro, Flávio Damm, teve vários trabalhos

desenvolvidos e todos relacionados à fotografia, é claro. Abriu um estúdio num

apartamento que tinha no Flamengo, fotografou petróleo para a Petrobrás, trabalhou

como produtor de serviço gráfico (arte gráfica), escreveu livros, participou de inúmeras

exposições. Além de ter sido um dos primeiros fotógrafos brasileiros a criar uma

agência de fotografia, em 1961, Agência Jornalística Image ltda.

Amante da fotografia em preto-e-branco e se dizendo avesso à prostituição dos

encantos da imagem digital, diz ter a necessidade de estar sempre fotografando uma vez

192
que a fotografia é o ar que ele respira. Considerado por seu irmão mais novo como

fotógrafo batedor de carteira em função de sua discrição ao fotografar o que ele chama

de cotidiano surrealista, Flávio Damm defende a idéia de que fotografia é uma arte sim.

Para ele, os grandes mestres da fotografia, como é o caso de Cartier-Bresson, legaram

momentos de arte através da fotografia.

O esboço biográfico de Flávio Damm confirma o fato de que ao elegermos o

fotojornalismo, como matéria fundamental da pesquisa, elegemos também um sujeito

histórico: o fotógrafo de imprensa que atua como mediador cultural do processo

comunicativo. A noção de mediação cultural tal como apresentada por R. Willians e

apropriada por diferentes pensadores latino-americanos dentre os quais destaca-se

Martin-Barbero permite que se rompa com a ultrapassada teoria do reflexo e se

desvende a intricada rede de influências sociais que consubstanciam a produção cultural

na sociedade capitalista. A idéia defendida por Willians propõe associar mediação ao

próprio ato de conhecer e elaborar expressões no âmbito do ativo processo de produção

de representações sociais22.

Fotografia e mediação cultual, algumas anotações básicas.

A fotografia como parte integrante do universo das máquinas de imagem deve,

de acordo com Phillipe Dubois (1999), integrar os regimes visuais de cada época,

segundo o princípio que a define como imagem técnica, ou seja, o resultado de um

saber-fazer, que implica num aprendizado dos meios de produção. Para o autor “é

evidente que toda a imagem, mesmo a mais arcaica, requer uma tecnologia, ao menos

de produção, em certos casos de recepção, já que pressupõe um gesto de fabricação de

artefatos que recorrem a instrumentos, regras, condições de eficácia, bem como um

193
saber. Originalmente, a tecnologia é simplesmente, e literalmente, um savoir-faire”

(Dubois, 1999, p.65).

Neste sentido, a fotografia, ou as diferentes modalidades de fotografia se

definem historicamente em circuitos sociais, dos quais participam como mediadores

culturais privilegiados, os fotógrafos. A prática fotográfica oitocentista foi bem definida

pela expressão o olho da história, cunhada por Mathew Brady, chefe da equipe

fotográfica responsável pela cobertura da Guerra Civil norte-americana, ao se relacionar

à câmera fotográfica. As fotografias produzidas nos campos de batalha eram

consideradas como verdadeiras testemunhas oculares da história, pois desnudavam em

imagens a dura realidade da guerra de uma maneira bem diversa dos relatos escritos. A

imagem fotográfica, segundo a concepção oitocentista, era assimilada a partir da crença

de que as fotografias não passavam de janelas que se abriam para o mundo lá fora,

expondo-o da maneira mais fidedigna possível. Portanto, tudo o que era visto era

representado como tal. O relato histórico ganhava assim a força comprobatória da

verdade fotográfica.

Nesse momento o campo fotográfico se definia em função de alguns critérios de

notabilidade que variavam de acordo com as condições de cada localidade. Em linhas

gerais, os fotógrafos do século XIX se distinguiam por quatro características básicas,

estreitamente associadas à noção de saber-fazer: a)atualização em relação as inovações

tecnológicas associadas a arte de reproduzir imagens tecnicamente; b)acesso a compra

de material de última geração; c) proximidade do poder político e, finalmente, d)

formação artística nas artes acadêmicas. Tais características orientavam a produção das

imagens fotográficas, diferenciadas, fundamentalmente, entre retratos e paisagens (até

194
mesmo as fotografias de guerra seguiam o cânone visual das pinturas de paisagens)

(Mauad, 2005).

No século XX, a diferenciação do ato fotográfico pelas categorias de fotógrafos

já evidenciava uma mudança no regime de visualidade e nos usos e funções da

fotografia no novecentos. A revista Photograma, publicação mensal do Fotoclube

Brasileiro, responsável pela difusão da fotografia amadora no Rio de Janeiro, na qual

eram ensinadas teoria e prática fotográfica, dividia a fotografia em três tipos: fotografia

anedótica, fotografia documentária e fotografia artística ou pictorial (Photograma, Rio

de Janeiro, Agosto, 1930, Ano IV, nº 33, p. 6).

A revista explicava tal distinção associando cada modalidade a certa prática

fotográfica. A fotografia anedótica era praticada por pessoas comuns que seguiam a

máxima “kodakiana”, qual seja: “você aperta o botão e nós fazemos o resto”. A foto de

caráter documental era feita por fotógrafos profissionais, associados às agencias da

imprensa. Finalmente a fotografia artística era atribuição do verdadeiro amador aquele

que fotografava amor à arte.

Dentre os batedores de chapa, os amadores, e os profissionais da fotografia, se

dividiram as categorias de fotógrafos, cada qual operando o dispositivo fotográfico,

segundo as mediações culturais que a sua condição social impunha. O aprendizado de

cada um, também, variava: aos batedores de chapa ficavam reservadas à publicidade das

fábricas de filmes e câmeras que, ao venderem seus produtos, ensinavam a utilizá-lo da

forma correta, desenvolvendo uma pedagogia do olhar nos semanários ilustrados; aos

amantes da fotografia, o privilégio dos espaços exclusivos dos fotoclubes, reservados

para os iniciados nas artes pictóricas; já os profissionais da fotografia categoria mais

complexa, vai evidenciar as tensões entre ver e representar próprias do circuito de

195
informação da imprensa contemporânea e seus contatos com as experimentações visuais

das vanguardas artísticas do Novecentos, no Brasil, notadamente, com o movimento

concretismo. De qualquer forma a linguagem fotojonalística foi se definindo no regime

visual contemporâneo, a partir das relações de analogia e de experimentação formal

com o referente, organizando em diferentes espaços de sociabilidade os locais do seu

aprendizado.

Compreende-se, assim, Flávio Damm como um mediador entre o mundo dos

acontecimentos e o mundo das suas imagens, cujo resultado é uma síntese original,

filtrada pelo saber-fazer do fotógrafo. Suas fotografias revelam uma narrativa da história

do Brasil contemporâneo, sem a qual, muito da riqueza de detalhes, do imprevisto e do

não dito, ficariam perdidos. Sem contar que, sua trajetória se confunde com a própria

história do fotojornalismo, uma vez que ele estava presente no momento em que a

profissão de fotojornalista estava se constituindo e tomando corpo.

Fotojornalismo em perspectiva.

A fotografia entrou para os jornais diários em 1904, com a publicação de uma

foto no jornal inglês, Daily Mirror. Um atraso de mais de vinte anos em relação às

revistas ilustradas, que já publicavam fotografias desde a década de 188023. No entanto

o ingresso da fotografia no periodismo diário traduz uma mudança significativa na

forma do público se relacionar com a informação, através da valorização do que é visto.

O aumento da demanda por imagens vai levar ao estabelecimento da profissão do

fotógrafo de imprensa, procurada por muitos a ponto da revista Collie’r’s, em 1913

afirmar: “it is the photographer that writes history these days. The journalist only labels

the characters”.

196
Uma afirmação bastante exagerada tendo em vista o fato de que, somente a

partir dos anos 1930 que o conceito de fotorreportagem estaria plenamente

desenvolvido. Nas primeiras décadas do século, as fotografias eram dispostas nas

revistas de modo a traduzir em imagens um fato, sem muito tratamento de edição. Em

geral eram publicadas todas do mesmo tamanho, com planos amplos e enquadramento

central, o que impossibilitava uma dinâmica de leitura, como também, não estabelecia a

hierarquia da informação visual (SOUZA, 2000, op.cit. p. 70).

Foi somente, no contexto de ebulição cultural da Alemanha dos anos 1920, que

as publicações ilustradas, principalmente as revistas, ganhariam um novo perfil,

marcado tanto pela estreita relação entre palavra e imagem, na construção da narrativa

dos acontecimentos quanto pelo posicionamento do fotógrafo como testemunha

despercebida dos acontecimentos. Eric Salomon (1928-1933) foi o pioneiro na

conquista do ideal da testemunha ocular que fotografa sem ser notado. No prefácio de

seu livro – Contemporâneos Célebres Fotografados em Momentos Inesperados,

publicado em 1931, ele enuncia as qualidades que o fotojornalista deveria ter:

“A atividade de um fotógrafo de imprensa que quer ser mais do que um artesão

é uma luta contínua pela sua imagem. Tal como o caçador está obcecado pela sua

paixão de caçar, também o fotógrafo está obcecado pela fotografia única que quer obter

[...] É preciso lutar contra a administração, a polícia, os empregados, [...] é preciso

apanhá-las (as pessoas) no momento preciso em que elas estão imóveis. Depois é

preciso lutar contra o tempo, pois cada jornal tem uma deadline ao qual é preciso

antecipar-se. Antes de tudo o mais um repórter fotográfico tem de ter uma paciência

infinita, e não se enervar nunca; deve estar ao corrente dos acontecimentos e saber a

tempo e a hora onde é que irão desenrolar-se. Se necessário devemos servir-nos de toda

197
a espécie de astúcias, mesmo se elas nem sempre são bem sucedidas” (Citado por

FREUND, op.cit., p. 117 e SOUZA, op.cit., p.78).

Solomon é responsável pela fundação da primeira agência de fotógrafo, em

1930, a Dephot, preocupado em garantir a autoria e os direitos das imagens produzidas.

Questão que se prolonga até os dias de hoje, nos meios de fotografia de imprensa. Em

todo o caso foi através de iniciativas independentes como esta que a profissão do

fotógrafo de imprensa foi ganhando autonomia e reconhecimento. Associado a Solomon

em sua agência estava: Felix H. Man, além de André Kertesz e Brassai.

A narrativa através de imagem passa a ser valorizada através do surgimento do

editor de fotografias. O editor, figura que surge nos anos 1930, originou-se do processo

de especialização de funções na imprensa e passou a ser o encarregado de dar sentido à

imagem, articulando adequadamente palavras e imagens, através do título, da legenda e

de breves textos que acompanhavam as fotografias. A teleologia narrativa das

reportagens fotográficas tinha como objetivo precípuo o de capturar a atenção do leitor,

ao mesmo tempo em que o instruía na maneira adequada de ler a imagem. Stefan

Lorant, que já havia trabalhado em diversas revistas alemães, foi o pioneiro na

elaboração do conceito de fotorreportagem (Costa, 1993, p.82).

Lorant rejeitava a foto encenada, ele, ao invés, vai fomentar a fotorreportagem

em profundidade sobre um único tema. Nestas reportagens, geralmente apresentadas, ao

longo de várias páginas, fotografias detalhadas são agrupadas em torno da foto central.

Esta tinha por missão sintetizar os elementos de uma ‘estória’ que Lorant pedia aos

fotojornalistas que a contassem em imagens. Uma fotorreportagem, segundo tal

concepção deveria ter um começo e um fim definidos pelo lugar, tempo e a ação

(SOUZA, op.cit. p.80).

198
Com a ascensão do nazismo os fotógrafos deixam a Alemanha, Salomom é

morto em Auschswitz. Alguns deles dentre os quais o húngaro, Andrei Friemann que

assume o pseudônimo de Capa, vão para França, onde em 1947 fundam a agência

Magnun, outros, como Lorant, se exilam na Inglaterra, assumindo a direção de

importantes periódicos, tais como Weekly Iillustrated. Posteriormente, com o

acirramento do conflito seguiram para os EUA, trabalhando junto às revistas Life, Look

e Time (1922).

O período entre guerras foi também o de crescimento do fotojornalismo norte-

americano. Destacando-se, neste contexto, o aparecimento dos grandes magazines de

variedades como a Life (1936) e a Look (1937). A primeira edição da revista Life saiu

em 11 de novembro de 1936, com tiragem de 466 mil exemplares e com uma estrutura

empresarial que reunia em 17 seções renomados jornalistas e fotógrafos da sensibilidade

de um Eugene Smith.

Criada no ambiente do New Deal, a Life foi projetada para dar sinais de

esperança ao consumidor, tratando em geral de assuntos que interessavam às pessoas

comuns. Objetivava ser uma revista familiar que não editava temas chocantes,

identificando-se ideologicamente com: a ética cristã, a democracia paternalista, a

esperança num futuro melhor com esforço de todos, trabalho e talento recompensados,

apologia da ciência, exotismo, sensacionalismo e emotividade temperada por um falso

humanismo.

Segundo o seu fundador Henry Luce a finalidade da revista seria fazer ver:

“[a Life surge] Para ver a vida; para ver o mundo, ser testemunha ocular dos

grandes acontecimentos, observar os rostos dos pobres e os gestos dos orgulhosos; ver

estranhas coisas – máquinas, exércitos, multidões, sombras na selva e na lua; para ver o

199
trabalho do homem – as suas pinturas, torres [edifícios] e descobertas; para ver coisas a

milhares de quilômetros, coisas escondidas atrás dos muros e no interior de quartos,

coisas de que é perigoso aproximar-se; as mulheres que os homens amam e muitas

crianças; para ver e ter prazer em ver; para ver e espantar-se; para ver e ser instruído”

(Sousa, op.cit. p. 108).

Com base nesta finalidade foi dado à fotografia um espaço significativo,

desenvolvendo-se, plenamente, nesta publicação os preceitos de fotorreportagem

defendidos por Stephan Lorant que aí veio a atuar nos anos da guerra. A

fotorreportagem marcou época na imprensa ilustrada respondendo a demanda de seu

tempo. Um tempo onde a cultura se internacionalizava e a história acelerava seu ritmo

no descompassado das guerras e conflitos sociais. Em compasso com a narrativa de

imagens, os acontecimentos recuperaram a sua força de representação, a ponto de se

poder contar a história contemporânea através dessas imagens.

A geração de fotógrafos que se formaram, a partir da década de 1930, atuaram

num momento onde a imprensa era o meio por excelência para se ter acesso ao mundo e

aos acontecimentos. A imagem desta geração de fotógrafos exerceu uma forte influência

na forma como a história passou a ser contada. As concerned photographs, fotografias

de forte apelo social, produzidas a partir do estreito contato com a diversidade social,

conformaram o gênero também denominado de documentação social.

Projetos associados à rubrica de documentação social são bastante variados, mas

em geral se associam a uma proposta institucional, oficial ou não. Seguem-se dois

exemplos significativos para história da fotografia engajada:

Farm Security Administration: A Grande depressão norte-americana que

sobreveio ao crack da bolsa de Nova York em 1929, dois milhões de desempregados e

200
uma massa de imigrantes vivendo em condições subumanas. As péssimas condições de

vida, associada ao deslocamento de populações no interior do próprio país, marcaram

este período por um constante medo de explosões de conflito social, demandando uma

atenção continuada por parte das autoridades.

Um número significativo de fotógrafos consternados pela situação respondeu de

maneira favorável à demanda oficial. Sob os auspícios do que foi conhecido como FSA

(Farm Security Admnistration), uma agência de fomento governamental, dirigida por

Roy Stryker, a vida rural e urbana foi registrada (e devassada) pelos mais renomados

fotógrafos do período: Dorothea Langue, Margareth Bourke-White, Russel-Lee, Walker

Evans, etc.

Muitas destas respostas foram lidas como exemplos de fotojornalismo, portanto

suas imagens foram valorizadas tanto como um registro permanente de sua época, ao

mesmo tempo em que, foram vistas como tendo um lugar dentro do contexto no qual

foram produzidas. Neste sentido, o objetivo destes fotógrafos era não somente registrar

e informar, mas, mover e mobilizar a opinião pública no sentido de uma ação positiva.

Para isso não poupavam recursos, tais como a “linguagem dramática” (Clarke, 1997,

cap. 8).

Agência Magnum: o aumento constante da busca por imagens conduz à

multiplicação de agências de imprensa em todos os países. Elas empregam fotógrafos

ou estabelecem contratos com fotógrafos independentes. Em geral as agências ficavam

com grosso da venda das fotos, o fotógrafo responsável por todos os riscos não tinha

como controlar a venda de suas fotografias.

Por estas razões que em 1947, Robert Capa, juntamente com outros fotógrafos,

fundaram a Agência Magnum. Dentre os fundadores estavam: Além de Capa, David

201
Seymour, Henri Cartier-Bresson, George Rodger, Willian Vandivert e Maria Eisner. Em

1949 juntaram-se ao grupo: Werner Bishop, Ernst Haas e Gisèle Freund. Entre 1951 e

1959 a agência é acrescida por mais um conjunto de novos colaboradores: Eve Arnold,

Erich Hartmann, Erich Lessing, Denis Stock, Cornell Capa, entre outros.

Para este grupo de fotógrafos, a fotografia não era apenas um meio para ganhar

dinheiro. Aspiravam exprimir, através da imagem, os seus próprios sentimentos e idéias

de sua época. Rejeitavam a montagem e valorizavam o flagrante e o efeito de realidade

suscitado pelas tomadas não posadas, como marca de distinção de seu estilo fotográfico.

Em geral os participantes dessa agência eram adeptos da leica, uma câmera fotográfica

de pequeno porte que prescindia de flash para as suas tomadas, valorizando com isso o

efeito de realidade.

Em ambos os exemplos o que se percebe é a construção uma comunidade de

imagens em torno de determinados temas, acontecimentos, pessoas, ou lugares,

podendo inclusive cruzar estas categorias. No caso do projeto FSA suas imagens

corroboraram, em grande medida, o processo de construção de identidades raciais,

políticas e étnicas, dentro dos EUA, a partir da ótica do Estado do Bem Estar Social.

Segundo tal lógica a comunidade norte-americana sobreviveria na adversidade por sua

diversidade social, amalgamada como símbolos de uma vida ideal, pelo projeto

governamental (Stange, 1989). A questão que se colocava entre os fotógrafos e o

gerenciador do projeto Roy Stryker, dizia respeito à posse dos negativos, pois estes

pertenciam ao Estado contratante, apesar dos protestos e atitudes de fotógrafos como

Dorothea Langue ou Walker Evans.

Cabe esclarecer que foi somente na convenção de Berna-Bruxelas, nos anos

1950, no seu artigo seis, bis, alínea um que se reconheceu formalmente os direitos de

202
autor dos fotógrafos, ao estabelecer que a fotografia não devesse ser deformada,

mutilada ou objeto de qualquer outra modificação que atentasse contra a honra do

fotógrafo.

A luta pelo direito autoral e pela autonomia de criação foram elementos

fundamentais para definir o padrão de visualidade criado pela agência Magnum. A

morte do miliciano espanhol, de Robert Capa, ou ainda, a mulher segurando uma flor na

marcha pela paz, contra a guerra do Vietnã, em 1967, de Marc Riboud, são exemplos

clássicos de como as fotografias da Magnum projetam os acontecimentos no tempo,

compondo um imaginário para a história do século XX.

A longa existência da agência foi marcada por conflitos comuns a um grupo de

estrelas da fotografia, no entanto nenhum tão significativo a ponto de colocar em risco

sua sobrevivência como ícone das “concerned photographs”. Num de seus encontros

anuais, Henry Cartier-Bresson (1908-2005), um de seus pais fundadores, definiu-lhe o

significado: “Magnum é uma comunidade de pensamento, que compartilha uma

qualidade humana, a curiosidade sobre o que está acontecendo no mundo, um respeito

pelo que está acontecendo e o desejo de transcrever tudo isso visualmente. Por isso o

grupo sobreviveu. É justamente isso que nos mantém unidos” (Miller, 1998, p.15).

Paralelamente ao trabalho mais engajado, o fotojornalismo da grande imprensa

foi ganhando força pela rapidez com que dava a ver os acontecimentos. O investimento

em tecnologia de captação e reprodução das imagens, em tempo cada vez mais exíguo,

vai permitir que as fotografias assumam o papel de difusores de informação. O furo de

reportagem será também definido pela melhor fotografia sobre o que aconteceu. A

concorrência marcaria o surgimento das agências de notícias, já nos anos 1930.

203
O uso de imagens fotográficas, não somente para ilustrar, mas

fundamentalmente como suporte de informações, redefiniu o padrão gráfico dos jornais

e revistas desde o início da década de 1920, como explica Kevin Barnhurst e John

Nerone: “Althought larger photos appeared in the 1920s, the contrast between small and

large shots increased over the period. The shots were mostly long and medium range at

first. Closer shots (or cropping) got more frequent in the 1920s, and longer shots

declined after 1936’s. These shifts were consonant with the emergence of modern

photojournalism, which valued events and emotive detail” (Apud. Sousa, op.cit. p.103)

A crescente demanda por fotografias produzidas ao calor da hora, levou ao

desenvolvimento de recursos tecnológicos que permitissem a sua transmissão em menor

tempo o possível. Dentre os principais recursos destaca-se a telefoto, introduzida em

1935, na Associated Press, e um ano depois na Soundphoto, do grupo Hearst, que

fornecia imagens para o The New York Times, e na Scripps-Howard’s NEA – Acme

telephoto.

Os serviços de telefotos levaram a uma estandardização das fotografias na

grande imprensa. Na década de quarenta, as agências de notícias já eram os principais

fornecedores de imagens fotográficas para a imprensa diária e semanal. Em geral os

clientes dos serviços fotográficos das agências de notícias exigiam, sobretudo, apenas

uma fotografia nítida por assunto. Os temas mais solicitados eram essencialmente

crimes, conflitos, desastres, acidentes, atos das figuras públicas, eventos desportivos.

Valorizando o princípio do impacto na recepção ou ainda; a foto-choque. Segundo a

pesquisadora galega Margarida Leda Andión, o universo de representação deste tipo de

imagem “abrange toda a iconografia do anormal, da violência colida ‘ao vivo’ dos

resultados de uma catástrofe comum ou individual. A foto-choque é, cada vez mais,

204
uma das rotinas na política informativa dos Mass-Media, rotinas que têm a ver não só

com os critérios de noticiabilidade praticados, mas também, com as fontes que

controlam a oferta das notícias – instituições e agências” (Apud. Sousa, op.cit. p.152).

As agências internacionais de notícias foram as grandes responsáveis pela

homogeneização ocorrida na mídia do pós Segunda Guerra Mundial. Dentre as agências

de notícia com serviço fotográfico inicia-se, nos anos cinqüenta uma intensa

competição: a United Press International (UPI), por exemplo, surgiu como um

competidor de importância significativa da Associated Press, incorporando a Heart’s

International News Service e do ACME Photo Agency. A hegemonia norte-americana,

inaugurada nos anos trinta com a criação da agência fotográfica Black Star, só

encontraria competidores a altura da sua eficiência e rapidez na transmissão da imagem,

nos anos 1980, com a criação da Reuters e da France Presse (mais tarde incorporadas a

European Press Photo Association – EPA), entre outras.

Em termos de recursos técnicos o fotojornalismo já dispunha, desde o final dos

anos 1920, de um conjunto de equipamentos que agilizaram o trabalho fotográfico,

fornecendo mais agilidade à imagem. Como explica o historiador português, Jorge

Pedro de Sousa, “em 1929 aparece o sistema reflex de duas objetivas, com a Rolleiflex;

em 1933, surge o sistema reflex de uma única objetiva, que é aquele até hoje mais usado

no fotojornalismo. O sistema de reflex direto permitirá enquadramentos mais exatos,

facilitará a focagem e facultará ao fotógrafo uma maior concentração no tema. Em

1936, a Agfa consegue obter um filme de sensibilidade de 100 ASA (21DIN)”.

A descoberta de filmes mais sensíveis e dispositivos mais rápidos na captação da

imagem vai proporcionar o investimento das agências de notícias na elaboração de uma

narrativa cada vez mais fiel e próxima dos acontecimentos. No entanto, para o

205
historiador explicar essa história, não pode bancar o ingênuo, há que se tomar a imagem

do acontecimento como objeto da história como documento/monumento, como verdade

e mentira, indo de encontro à memória construída sobre os eventos, a história a

desmonta, a desnaturaliza apontando todo o caráter de construção, comprometimento e

subjetividade.

No Brasil

O mercado editorial brasileiro, mesmo incipiente, já existia desde o século XIX,

com publicações das mais diversas (Sussekind, 1987). Em 1900 é publicada a Revista

da Semana, que foi o primeiro periódico ilustrado com fotografias. Desde então, os

títulos se multiplicaram, como também, o investimento neste tipo de publicação. Um

exemplo disso é o aparecimento, em 1928, da revista O Cruzeiro, um marco na história

das publicações ilustradas (Mauad, jan. /jun. 2005).

A partir da década de 1940, O Cruzeiro reformulou o padrão técnico e estético

das revistas ilustradas apresentando-se em grande formato, melhor definição gráfica,

reportagens internacionais elaboradas a partir de contatos com agências de imprensa do

exterior e, em termos estritamente técnicos, a introdução da rotogravura, permitindo

uma associação mais precisa entre texto e imagem.Toda esta modernização era

patrocinada pelos Diários Associados, empresa de Assis Chateaubriand, que começava a

investir fortemente na ampliação do mercado editorial de publicações periódicas.

A nova tendência inaugurada por O Cruzeiro, encetou uma reformulação geral

nas publicações já existentes obrigando-as a modernizar a estética de sua comunicação.

Fon-Fon, Careta, Revista da Semana, periódicos tradicionais adequaram-se ao novo

padrão de representação que associava texto e imagem na elaboração de uma nova

forma de fotografar, o fotojornalismo.

206
Assumindo o modelo internacional, sob forte influência da revista Life, o

fotojornalismo de O Cruzeiro criou uma escola que tinha entre os seus princípios

básicos a concepção do papel do fotógrafo como ‘testemunha ocular’ associada à idéia

de que a imagem fotográfica possui uma narratividade, ou seja, pode relatar um evento,

contar uma história, ou ainda, elaborar uma narrativa sobre os fatos. No entanto, quando

os acontecimentos não ajudavam, encenava-se a História.

O texto escrito acompanhava a imagem como apoio, uma narrativa paralela, que

no mais das vezes amplificava o caráter ideológico da mensagem fotográfica. Daí as

reportagens serem sempre feitas pelo jornalista, responsável pelo texto escrito, e por um

repórter fotográfico encarregado das imagens, ambos trabalhando em sincronia. No

entanto, somente a partir dos anos quarenta o crédito fotográfico será atribuído com

regularidade nas páginas de revistas e jornais. Uma dupla em especial ajudou a

consolidar o estilo da fotorreportagem no Brasil: David Nasser e Jean Manzon. A

primeira dupla do fotojornalismo brasileiro e protagonistas de histórias onde se

encenava a própria História (Costa, 1998; Carvalho, 2002).

Além de Manzon, outros fotógrafos contribuíram para a consolidação da

memória fotográfica do Brasil contemporâneo, tais como: José Medeiros, Flávio Damm,

Luiz Pinto, Eugenio Silva, Indalécio Wanderley, Erno Schneider, Alberto Jacob,

Evandro Teixeira entre outros que definiram uma geração do fotojornalismo brasileiro.

Fotógrafos de perfis diferenciados que atuaram na grande imprensa brasileira,

vivenciando tanto os “anos dourados” como os “anos de chumbo” da imprensa. Vale

lembrar que alguns, como Flávio Damm, também prestaram serviço para as agências

internacionais como a Black Star e a AP. A trajetória destes profissionais aponta o

caminho através do qual a fotografia contemporânea brasileira se estabeleceu como

207
meio de expressão documental e artística. Dicotomia que, foi em geral superada pelo

transbordamento de estilos de um campo para outro.

Assumindo uma perspectiva crítica para estudar a história do fotojornalismo

ocidental, o historiador português, Jorge Pedro de Sousa adapta o conceito de

comunidade interpretativa, utilizado por Barbie Zelier. Esse conceito permite

compreender como os fotojornalistas se relacionam coletivamente com as mudanças

tecnológicas na fotografia, de modo a criar grades interpretativas e sentidos comuns

sobre os acontecimentos. A comunidade interpretativa de fotojornalistas tem nas

agências de imagem, o seu melhor enquadramento.

Foi através de agências fotográficas, criadas a partir da década de 1930, que se

define uma forma narrativa para os acontecimentos mediáticos. Segundo Barnhusrt,

“the narrative teaches that the world is not safe, that when things go wrong, what is

needed is a hero to intervene and set then right. And a need for a hero presumes a

victim, someone who waits passively for rescue” (Apud. SOUZA, op.cit. p. 22)

Na verdade isto significa que, num determinado contexto histórico-cultural, as

narrativas convencionais no (foto) jornalismo contribuem para que seja dado significado

social a determinados acontecimentos em detrimento de outros, promovendo por

conseqüência certos acontecimentos e não outros, à categoria de notícias, concorrendo

para dar uma aparência de ordem ao caos que é a erupção aleatória de acontecimentos

gerando inteligibilidade ao real, devido a taxonomização deste em determinadas

categorias.

Adriano Duarte Rodrigues enfatiza o papel da mídia na elaboração do

acontecimento na sociedade moderna, na qual o mito teria sido substituído pela

narrativa mediática como forma de organizar as experiências sociais aleatórias de vida

208
num todo racionalizado. O fotojornalista não apenas reporta a notícia, como também as

cria: as (foto) notícias são artefatos construídos por força de mecanismos pessoais,

sociais (incluindo econômicos), ideológicos, históricos, culturais e tecnológicos.

A própria noção de visualidade da narrativa factual envolve as condições de

existência do acontecimento ditadas pelos meios do mundo atual. Pierre Nora cunha a

noção de acontecimento monstruoso para caracterizar o papel da mídia na promoção do

imediato ao histórico: “o fato de terem acontecido não os torna históricos, para que haja

acontecimento é necessário que este seja conhecido através da lógica do espetáculo [...].

Os mass media fizeram da história uma agressão e tornaram o acontecimento

monstruoso. Não porque sai, por definição, do ordinário, mas porque a redundância

intrínseca ao sistema tende a produzir o sensacional, fabrica permanentemente o novo,

alimenta uma fome de acontecimentos” (Nora, 1979, p.181-183).

Em suas considerações sobre as metamorfoses do acontecimento, Nora afirma

que nas sociedades democráticas, este assume o papel do maravilhoso no imaginário das

massas, imita os temas do fantástico tradicional através do efeito de sobre-multiplicação

das performances da sociedade tecnocrática. Os fatos que marcaram o cotidiano das

últimas décadas do século XX tiveram a marca do espetacular, atribuída pela

possibilidade da transmissão direta, onde o próprio acontecimento moderno encontra-se

numa cena imediatamente pública.

Paralelamente a elaboração do espetáculo do acontecimento pela mídia, é

preciso que haja também uma comunidade de leitores/espectadores. A existência dessa

comunidade pressupõe que compartilhem dos mesmos valores, a partir dos quais, a

interpretação dos acontecimentos está sendo construída pela mídia. Refletindo sobre o

209
papel da revista O Cruzeiro, no imaginário social brasileiro, o historiador francês André

Seguin des Hons, destaca:

“A combinação da informação com o sensacional e a aventura tem, para o

historiador, uma significação que vai além da simples receita de sucesso da revista. Ela

se inscreve na sensibilidade do momento e é possível que essa identificação leitor-

revista traduza a exaltação de um período no qual o Brasil aparece, freqüentemente, aos

olhos de suas classes médias como um país do futuro[...] a revista tanto atendia a um

público popular quanto às classes privilegiadas[...] mais que um simples reflexo do

movimento ideológico, O Cruzeiro foi um de seus amplificadores”( Presse et histoire,

1935-1985. Paris: L’Harmattan, 1985. p. 30, citado por COSTA, 1996, p. 153).

Portanto, o fotógrafo de imprensa, apesar de pertencer a um grupo, consegue

ultrapassar as determinações sociais que lhe confere este pertencimento basilar ao

desenvolver uma trajetória profissional que o permite atualizar sua competência

cultural, através de novos contatos e variadas informações, num processo continuado de

apropriação e criação. Assim, torna-se um mediador entre o processo histórico, as

demandas sociais, e sua elaboração através das fotografias, recriando nas páginas das

revistas e jornais uma complexa narrativa histórica dos fatos e acontecimentos, ao

mesmo tempo em que materializa em imagens anseios e expectativas de um projeto

social.

Entre palavras e imagens, se constrói a história.

Ao voltarmos à transcrição das entrevistas de Flávio Damm para analisar a

configuração dos quadros de memória, tentamos estabelecer alguns princípios que

possibilitassem um maior esclarecimento na relação entre autoria no campo do

fotojornalismo, e a escrita da história através das imagens fotográficas. No entanto, todo

210
o trabalho de análise buscou estabelecer procedimentos conceituais próprios ao campo

da intertextualidade, como prática social. Dito de outra forma: o fundamental é entender

que na situação da entrevista um conhecimento está sendo gerado. Este conhecimento

persegue pistas que são dadas pela experiência de entrevistar e ser entrevistado, pela

crença depositada na autoridade do discurso do entrevistado e pela forma como as

imagens são indicadas como âncoras narrativas.

Neste sentido, estabelecemos que todo o trabalho de análise leve em conta três

princípios:

Escuta: este aspecto lida com a competência do entrevistador na situação da

entrevista e a forma como opera com a noção de autoridade compartilhada.

Argumentos e memórias: este ponto compreende que todo o processo de

rememoração envolve necessariamente a construção de argumentos, que definem

sentido a história contada. No caso trabalhado os argumentos são criados também pela

alusão à imagem fotográfica;

Narrativas e imagens: este aspecto envolve os dois anteriores, pois é nele que se

define a relação entre a escrita da história, ou a narrativa historiográfica, de competência

do entrevistador/ historiador e a construção da memória social, através da narrativa

biográfica, da competência do entrevistado. Neste âmbito as imagens são

necessariamente acionadas para definir as marcas da narrativa.

Vamos ver, como este procedimento pode ser aplicado em um trecho de sua

primeira entrevista, realizada em 24/04/2003, cujo tema relacionava-se ao retorno de

Getúlio Vargas a política:

“Flávio Damm: Não. A revista do Globo era quinzenal [...] Ela era preto e

branco. E era uma revista muito conceituada no Sul. Ela foi fundada pelo Bertázio e

211
pelo Getúlio. Dr. Getúlio, né. E, e coincidentemente a minha grande primeira

reportagem foi a, foram às primeiras fotos do, de Getúlio em 47 [1947]. Getúlio foi

deposto em 29 de outubro de 45 [1945] e foi pro exílio na fazenda do Itu, em São Borja,

no Rio Grande do Sul. Durante dois anos ele recebeu jornalistas do mundo inteiro, mas

não recebeu fotógrafos. Estava muito gordo, aquela coisa, aquela bombachas. E não

queria a idade dele explorar. Então ele não permitiu a entrada de fotógrafos. Eu era

amigo do Jango. Foi Presidente de República. Amigo de boemia.[...] Jango, Jango era

apenas um fazendeiro rico e eu era um fotógrafo pobre. Então era amigo de Jango,

amigo do Maneco Vargas, filho, o filho de Getúlio que se suicidou há pouco tempo. E

com isso, é, a gente tinha uma relação boêmia. E quando o PTB resolveu lançar Dr.

Getúlio, eu chamo de Dr. Getúlio, resolveu lançar Getúlio candidato em mil

novecentos... Pra 1950. Aquela coisa da volta. Volta do retrato... Volta do retrato do

velho, não é? E o Queremismo. Aí o Jango me chamou. Eu já era da Revista do Globo,

logicamente, registrado. Trabalhando full time. E tinha abandonado os estudos. Tinha

ficado só no clássico e não quis mais fazer faculdade. Preparei pra vestibular de Direito,

depois desisti. O jornalismo já tinha tomado conta. Eu já era absolutamente assumido e

assimilado pelo jornalismo. E principalmente pela fotografia, que era realmente o ar que

eu respiro. Então, o Jango me chamou e disse: olha, vamos ao Itu, fazer uma reportagem

com o Dr. Getúlio, que ele vai concordar em fazer fotografia pra se fazer uma grande

reportagem na revista do Globo. Ele já tinha falado com os Bertázio. Aí fomos pra Itu e

lá eu passei o tempo lá no Itu fotografando o Dr. Getúlio. Fizemos reportagem que teve

um título sintomático. Um título de abertura de um caminho que era, que foi a longa

viagem de volta. Isso foi no dia... As fotografias foram feitas no dia em que, em que se

comemorava três anos da deposição dele. Ele caiu em 29 de outubro de 45 [1945] e as

212
fotografias foram feitas em 29 de outubro de 48 [1948]. [...] Na revista do Globo. Aí,

como não havia fotografias de Getúlio em lugar nenhum que nos últimos dois anos, não

é, essas fotos dele de bombacha, fumando charuto, comendo churrasco, montado a

cavalo. Isso não existia. Ele tinha saído daqui direto pro Itu. Essas fotografias foram

publicadas quando eu tinha 19 anos. Foram publicadas no Prafter de Moscou. É, no

Parismatch de Paris. Enfim, em jornais do mundo inteiro. Porque a revista do Globo

vendeu essas fotografias pra esses jornais que eram, formam notícia. Getúlio sairá

candidato à presidência. Ele saía de uma ditadura de quinze anos e entrava num

processo democrático, que efetivamente aconteceu. Ele foi eleito democraticamente,

ficou no governo de 51 [1951] a 54 [1954] quando se suicidou. Então, com dezenove

anos, eu tive as minhas fotografias publicadas no mundo inteiro. [...] Foi o meu... Foi o

meu passaporte pra entrar no O Cruzeiro. Eu fiquei na Revista do Globo 48 [1948], 49

[1949] e em 49 [1949], eu saí da Revista do Globo e vim pro pedir um emprego no O

Cruzeiro. Esse emprego eu tive instantaneamente. Eu entrei no O Cruzeiro, pedi um

emprego. Tive o emprego. Três dias depois já fui mandado pra Recife, acompanhando

Dr. Assis lá na Paraíba. Coisa que eu nunca tinha imaginado, ir à Paraíba. Eu tinha

saído de Porto Alegre, quatro dias depois eu estava no, lá no Cariri.”

Ressalta-se no trecho escolhido, e esta estratégia repete-se em outros, momentos

a forma como o discurso historiográfico impregna a narrativa. Mesmo sem intervenção

da entrevistadora, a noção de queremismo, para definir a volta de Getúlio Vargas ao

poder, surge como um dado importante para elucidar o acontecimento e construir o

argumento da narrativa. Desta forma, percebe-se que o entrevistado está compartilhado

de uma autoridade prevista para o entrevistador, já que este se apresentou como

“historiador”.

213
A autoridade do discurso histórico é resignificada na medida em que o fotógrafo

se apropria desta. A experiência fundadora da sua atividade fotográfica, aquela que o

projetou no mundo do fotojornalismo internacional, é uma foto cuja dimensão para a

história coletiva é relevante. Neste caso, seu passaporte para projetar a sua própria

história associava-se necessariamente ao processo histórico como um todo.

A atividade fotográfica define a expressão da historicidade do momento, pois era

fundamental para garantir o retorno de Getúlio que ele reabilitasse sua imagem pública,

deixando-se fotografar. A escolha de Damm, fotógrafo jovem, mas bem preparado

garantiria a produção de uma “boa imagem”. Estudando a produção do retrato

fotográfico na história fica evidente que a produção da individualidade burguesa,

através deste tipo de imagem, se dá em função da atribuição de signos que produzem

uma identidade social ligada a sua colocação no espaço da produção e do poder. No

caso dos homens públicos, e de Getúlio Vargas em especial, a imagem fotográfica

desempenhou um papel central da construção do carisma e da crença do governante.

Por fim, vale ressaltar que a delimitação do projeto de vida e a indicação do

campo de possibilidades para efetivá-lo, envolviam tanto a capacidade individual do

fotógrafo (sua formação intelectual, acesso ao aprendizado e a tecnologia fotográfica)

quanto à rede de relacionamentos (amizades, contatos, etc.) que conseguia construir.

Tais elementos evidenciam, ao mesmo tempo, aspectos do campo profissional para os

fotojornalistas que, neste momento, definiam suas regras de funcionamento, dentro da

grande imprensa.

A complementação do exercício envolve a análise das fotografias publicadas, no

dia 6 de novembro de 1948, na Revista do Globo (Ano XIX, nº 470), em matéria

intitulada “A Longa Viagem de Volta”, com texto assinado pelo repórter Rubens Vidal.

214
As fotos seguintes são: a reprodução da chamada da matéria na primeira página

e as fotos que integram a seqüência da notícia. Optou-se por trabalhar exclusivamente

com as imagens, na avaliação de sua autonomia narrativa em relação ao texto escrito, ao

mesmo tempo em que se articulava ao registro da entrevista a situação histórica da

produção da reportagem.

Ilustração 27 Ilustração 28 Ilustração 29 Ilustração 30

Ilustração 31 Ilustração 32 Ilustração 33 Ilustração 34

O número da Revista do Globo, no qual foi publicada a fotorreportagem de

Flávio Damm, contava com mais três reportagens ilustradas com imagens fotográficas,

sobre temas variados. A primeira intitulada “Um por cento de ingenuidade”,

apresentava o piloto de bombardeiro norte-americano que, em protesto contra a corrida

armamentista, resolveu soltar uma pomba nas escadarias do prédio da ONU, contava

com um total de dez fotos; a segunda, intitulada “Mar de Histórias”, contava com um

215
total de sete fotos, sobre a biblioteca pública da cidade de Pelotas, no estado do Rio

Grande do Sul; a terceira tratava da criação da cidade de Londrina do estado do Paraná e

apresentava um total de doze fotos; finalmente a fotorreportagem sobre o retorno de

Getúlio Vargas ao cenário político, intitulada “A longa viagem de volta”, contava com

vinte e três fotos produzidas pelo jovem fotógrafo Flavio Damm. Quase o dobro de

imagens das demais reportagens é o indício mais evidente do peso da matéria para a

revista.

Nascido em 8 de agosto de 1928, Flávio Damm tinha somente 20 anos quando se

lançou no mundo da imprensa ilustrada. Como ele relembra em entrevista a

oportunidade da reportagem foi criada por conta de suas relações sociais e pelo

reconhecimento da sua competência profissional. Portanto, era uma chance que deveria

ser aproveitada da melhor maneira possível, com fica evidente pelo apuro técnico das

fotos, pela experimentação estética e pela sagacidade política de aproveitar o que de

melhor a imagem de Getúlio poderia oferecer.

Surge nas fotos a imagem de um fazendeiro aposentado da política, atento aos

cuidados da sua fazenda, mas altivo como um cavaleiro que não perde sua destreza no

domínio do animal. Das vinte e três fotografias que compõem a fotorreportagem, em

catorze o ex-presidente aparece como objeto central da foto, tendo sido fotografado

sozinho em diferentes poses e atividades. Nas nove restantes, Vargas está acompanhado

de familiares e criados da fazenda de Itu, mas sempre no centro da foto.

No seu conjunto as fotos são nítidas, com linhas bem definidas pelo contraste

entre claro e escuro, não mais de dois planos, valorizando o close-up do rosto e o corpo

inteiro em primeiro plano. Um corpo que recupera a sua vitalidade sendo sempre

apresentado em atividade e movimento: caminhando, cavalgando, trabalhando na terra,

216
tomando café, lendo, escrevendo, pensando e sorrindo. Portanto, as opções de pose,

enquadramento, foco e iluminação seguem as diretrizes do fotojornalismo de construir

uma imagem objetiva e de rápida captação pelo sujeito-leitor. A exceção acontece na

foto de abertura da reportagem que alude a certo mistério, em franco diálogo com as

experimentações visuais do cinema de vanguarda da época.

Esta foto captura um naco da cena e redefine o seu sentido: no centro da foto o

cinzeiro, denota o charuto que está na outra mão de quem escreve, o sujeito da ação

prescinde dos óculos que pousam perto do chapéu, que define uma marca pessoal.

Mesmo sem enquadrar Getúlio Vargas, mas os objetos que o identifica, a imagem de

Damm anuncia a sua presença, num movimento metonímico quando a parte indica a

presença do todo.

Na seqüência da quarta página da reportagem, este todo ganha sentido com a

complementação da imagem inicial. Esta seqüência iniciada pela foto de Getúlio Vargas

pensando, segue com mais três imagens que sugerem a projeção de seu pensamento,

nelas o fotografado se revela nas suas múltiplas faces: circunspeto, alegre e interessado.

Como se fosse uma banda fílmica, as imagens se conectam na composição de uma

narrativa de retorno, da sua volta à cena política.

As imagens possuem autonomia em relação ao texto escrito mantendo,

entretanto, uma relação de complementaridade. O texto escrito relata a situação por um

outro ângulo, valorizando mais a oportunidade da reportagem e as impressões do

repórter em relação à agilidade do político. As legendas das fotos seguem o padrão do

fotojornalismo da época localizando a cena e ancorando o sentido da imagem visual. No

entanto, as imagens são mais evidentes que o texto e a imediaticidade com que são

capturadas pelo sujeito-leitor, garantem a apreensão do sentido proposto pela matéria de

217
forma mais rápida e inequívoca: o retorno de Vargas a cena política está comprovado

pelo atestado da “verdade fotográfica”, que transforma cenas do cotidiano em fatos

históricos.

Por sua produção fotojornalística, Damm inscreve-se na mesma tradição

histórica dos antigos gregos, cujas historiê revelavam a história pelo sentido da visão.

Nas imagens de Flávio Damm ver implica também em conhecer.

Conclusão.

A relação entre história e imagem fotográfica é caminho para se compreender as

estratégias de investimento de sentido, que a imprensa realiza, pelo viés da construção

da memória. As fotografias que integram as fotorreportagens e narram os

acontecimentos passados são monumentos, projeções para o futuro, e devem ser tratadas

pelo estudioso na sua dimensão de memória oficial. As relações de poder dentro das

revistas e jornais, entendidos como espaços institucionalizados, são relações de força

que definem a lógica da representação do acontecimento mediático. Longe de

traduzirem um consenso, expressa as contradições dos diferentes atores sociais que

colocam em jogo seu capital político, para construir uma hegemonia do olhar. As

imagens publicadas em jornais e revistas revelam o embate pela versão final dos

acontecimentos.

A capacidade narrativa das imagens visuais, dentro da lógica do fotojornalismo,

redefine o estatuto da história contemporânea, apontando a força do acontecimento

como síntese de múltiplos tempos: o tempo longo, no qual a lógica das relações sociais

explica-se pela força da imaginação social; o tempo médio, dos ciclos e conjunturas

econômicas e políticas; e pelo tempo curto, do acontecimento, propriamente dito. Esse,

218
ao ser capturado pelas lentes atentas de fotógrafos e cinegrafistas, assume a dimensão de

uma verdade anunciada em tempo real.

219
Capítulo 10.

Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem (Brasil, 1941-42)

“‘Life’ é a única revista que eu conheço que distrai pela falta de assunto. A

gente passa aquilo como criança passa livro de figuras, constatando rapidamente a

aparição de uma curiosidade ou outra: ‘toto’, ‘neném’, ‘fon-fon’, e assim por diante.

Mas é impossível resistir-lhe à fotografia. Quem por acaso, já teve ocasião de conhecer

algum fotógrafo de ‘Life’, sabe perfeitamente disso. São criaturas de conto de fadas,

capazes de lambuzar de caramelo toda uma ‘panzerdivisionem’, verdadeiros gênios do

instantâneo, sabedores de todas as infantilidades da alma grande. Eu já conheci dois,

sendo que em ambos senti esse mesmo adejamento endiabrado, uma mesma alegria de

vagalume que vai queimando as suas lâmpadas sobre as coisas surpreendidas. Um deles

é uma americanazinha adorável que se acha aqui no Rio. Genevieve se chama, mulher

desse grande Micha que conquistou a nossa pequena cidade artística com a sua simpatia

e sua sensibilidade plástica. Genevieve parece ter saído de uma história de Robin-Hood,

com seu arzinho de jovem pagem, sua elegância bem colorida, uma pena sempre

atrevidamente espetada no chapéu. Nada escapa, no entanto, a maquinazinha dessa

enfeitiçada. Perto dela não há momento fotográfico que passe sem cair naquela arapuca

bem armada. Genevieve dá um pulinho – e a vida ali ficou batendo asa na sua chapa

impressionada”. “A Última Catedral”, Vinícius de Moraes, A Manhã, 19/10/1941.

O fascínio do então cronista e crítico de cinema, Vinícius de Moraes, pelas

imagens sensíveis de Genevive Naylor, relevam a presença ambígua e sempre marcante

dos EUA no Brasil, e por extensão na América Latina, como um todo. As imagens

visuais – fotográficas. Cinematográficas e publicitárias - sedimentaram a ponte pela

qual a aproximação cultural entre as Américas se realizou.

220
O que está em jogo na elaboração da chave de leitura histórica para se

compreender as fotografias produzidas no Brasil por Genevieve Naylor, durante sua

permanência entre 1940-1942, como funcionária do Office of the Coordinator of Inter-

American Affairs (CIAA)? Por um lado, no contexto da política da Boa Vizinhança o

crescente interesse de intelectuais e artistas norte-americanos pelo Brasil e a ampliação

das trocas culturais (Portinari, as exposições artísticas norte-americanas no Brasil, a

criação do MAM/RJ). Neste aspecto, o contexto norte-americano delimitava-se pela

experiência da depressão econômica dos anos 1930, pelo crescimento urbano, pelas

experimentações das vanguardas artísticas e pelas instituições criadas no âmbito do

Estado de bem-estar social - o New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Por outro lado,

havia o declarado interesse, por parte do Departamento de Estado dos EUA, em

consolidar a presença US americana na América Latina através de acordos comerciais,

planos de cooperação internacional e, por fim, de alianças políticas que garantissem a

hegemonia dos EUA na região.

Neste sentido, para analisar a mensagem fotográfica elaborada pela fotógrafa,

durante a sua permanência no Brasil, pretendo primeiramente, relacionar a produção

brasileira de Genevieve Naylor, com a tradição da fotografia documental norte-

americana, ao mesmo tempo em que, aponto os diálogos que são travados com a cultura

visual elaborada pela agência oficial da política da Boa Vizinhança: Office of the

Coordinator of Inter-American Affairs (CIAA).

Definido os quadros de significação histórica que conformam o conjunto

possível de escolhas para a fotógrafa, parto para a análise dos elementos da forma da

expressão e do conteúdo da mensagem fotográfica, enfatizando os dois aspectos mais

marcantes da sua narrativa visual:

221
1° como a figuração humana é retratada, entendendo as representações do corpo

como suporte de relações sociais. O corpo representado nas fotografias de Naylor é o

signo, através do qual, as relações sociais se revelam;

2° como os lugares por onde Naylor viajou foram figurados na elaboração de

uma geografia sensível que busca transgredir os protocolos oficiais, para mostrar um

Brasil múltiplo;

Neste sentido, Naylor mais do que conformar uma imagem do Outro, através dos

protocolos etnográficos da alteridade, em suas imagens, este Outro é definido pela sua

condição humana. Investe muito mais, nas possibilidades de se estabelecer nexos

comuns, do que em criar diferenças impenetráveis (ou acessíveis somente pelo discurso

científico da etnografia). A forma de compor suas fotografias revela o diálogo que a

fotógrafa estabeleceu com as referências visuais de seu tempo. Principalmente aquelas

associadas à produção artística dos anos 1930, cuja valorização do indivíduo se fazia em

consonância ao papel por ele desempenhado nas relações sociais.

O resultado da conjugação dessas referências foi a elaboração de uma alteridade

plural dos brasileiros e brasileiras: jovens, crianças e velhos, possível de ser

apreendida pela gente comum dos Estados Unidos, o público alvo das suas

fotografias.

Notas sobre a política da Boa Vizinhança entre Brasil e Eua nos anos 1940.

A doutrina do destino manifesto foi a base sobre a qual a cultura política norte-

americana cunhou sua auto-imagem, fundamental para a elaboração do mito americano.

Um mito que tinha como missão espalhar os verdadeiros sentimentos da América,

através dos seus sonhos de (perfectibilidade) perfeição. Tal estratégia pautava a política

externa norte-americana numa moral, que concebe a América do Norte como o local da

222
perfeição e que compreende a sua intervenção, em outras regiões do mundo, como a

tentativa de estender tal perfeição. Os pilares deste sonho de perfectibilidade seriam a

Democracia e a Liberdade introduzidas pela homogeneização cultural24, como mais um

produto a ser consumido.

Naylor chega ao Brasil em outubro de 1940, como funcionária do Departamento

de Estado norte-americano, mais especificamente do Office of the Coordinator of Inter-

American Affairs, então dirigido pelo milionário Nelson Rockefeller. Órgão criado pelo

governo de F.D. Roosevelt para garantir a solidariedade latino-americana para a causa

liberal diante da expansão do nazi-facismo. Ao mesmo tempo em que, criava uma área

de reserva de mercado para os produtos norte-americanos durante a Segunda Guerra

Mundial.

Criando, em 16 de agosto de 1940, inicialmente para garantir e ampliar as bases

das relações comerciais entre as Américas, este órgão recebeu o nome de: Office of

Commercial and Cultural Relations between the American Republics, passando a se

chamar a partir de 30 de julho 1941, Office of the Coordinator of Inter-american

Affairs, e em 23 de março de 1941, já dirigido por Nelson Rockfeller, Office of Inter-

American Affairs, até o seu fechamento em 20 de maio de 1943. As mudanças de nome

traduzem as redefinições em relação à forma como a política internacional norte-

americana deveria se estabelecer com o restante das Américas, ampliando sua ação

intervencionista para diferentes áreas além da estritamente comercial.

Independentemente do nome que assumia, este órgão tinha como função

implementar a política de boa vizinhança norte-americana na América latina, que

consubstanciava uma solidariedade hemisférica definida, nos termos dos interesses

norte-americanos. Aliás, como já vinha sendo feita a política externa dos EUA, para a

223
América Latina, desde fins do século XIX, através de sucessivas posturas

intervencionistas: da doutrina Monroe América, para os americanos, seguidos pelo Big

Stick, até chegar ao pan-americanismo da segunda Guerra Mundial, inaugurado por F.

Delano Roosevelt a partir de 1933.

Na avaliação do historiador norte-americano Frederick Pike, a política de não

intervenção era o princípio da realpolitik de FDR para o continente Americano. Por um

lado, pressionava seus antigos parceiros, dentre os quais a Inglaterra, a abandonar sua

postura imperialista, em prol de um mundo mais pacifico, no qual os interesses dos

Estados Unidos pudessem ser garantidos; por outro, reconhecia a existência dos

princípios políticos, econômicos, morais e culturais próprios à América Latina, sem

impor o abandono destes em prol do, cada vez mais popular, american-way-of-life.

Na perspectiva do presidente norte-americano, a política de boa vontade levaria

aos latino-americanos abraçarem naturalmente as causas Americanas, defendidas pelos

Estados Unidos. No entanto, como reforça Pike, “basic to FDR’s approach was the

assumption that latins had a lot of growing to do before they could adjust do U.S

culture” (Pike, 1996, p.xi).

Em linhas gerais, a solidariedade hemisférica visava garantir a posição

estratégica dos aliados no Cone Sul, a partir do avanço das forças do eixo no Pacífico. O

ataque a Pearl Harbour, em 1941, foi fundamental para deslanchar de maneira mais

agressiva a colaboração entre os países americanos, obrigando a muitos governantes,

dentre os quais Getúlio Vargas, uma definição política mais clara e cooperativa.

Em termos de estruturação, em todos os países da América Latina nos quais o

CIAA abriu um escritório de representação, eram estabelecidas metas prioritárias de

ação. No Brasil as três metas eleitas foram: informação, saúde e alimentação. Estes três

224
setores tinham funções definidas de penetração e convencimento ideológico através do

controle dos meios de comunicação, investimento intensivo em publicidade e fomento

de uma estrutura assistencialista para a saúde e educação principalmente, no nordeste,

em áreas onde seriam instaladas as bases norte-americanas.

Paralelamente, o CIAA através de acordos com instituições culturais norte-

americanas, como o Museu de Arte Moderna de Nova York, também sob a direção de

Rockefeller, passa a fomentar o intercâmbio cultural através de diferentes modalidades

de incentivo tais como: bolsas de estudo para artistas latino-americanos irem aos

Estados Unidos estudar, exposições arqueológicas, de pintura moderna, de arquitetura,

além dos festivais de música latino-americana, todos realizados dentro do MOMA25.

Em agosto de 1940 Candido Portinari expõe seu trabalho no MOMA cercado de

comentários sobre a compra dos quadros de Portinari pela instituição e reportagens

sobre o Brasil, em todos os jornais norte-americanos. A aceitação da arte brasileira nos

EUA integrava a estratégia política de valorização da cultura brasileira. Valorizava-se

nas salas de exposição do MOMA, as expressões culturais que apresentassem aos EUA

um Brasil culto e moderno, em consonância com os projetos das frações da classe

dominante, detentoras do poder político e econômico. Enquanto na Broadway Carmem

Miranda brilhava em Streets of Paris, mas Carmem era uma face do Brasil que

desagradava ao verniz cosmopolita da elite. No entanto, Carmem e Portinari eram o

Brasil para os US Americanos.

Neste sentido, a moeda cultural foi o investimento simbólico para a aproximação

dos dois países. Uma forma de convencer os norte-americanos da amizade brasileira e,

ao mesmo tempo, incentivar as autoridades brasileiras a escolher o lado certo na guerra.

225
Os articuladores da política externa norte-americana tinham certeza da expansão

do nazismo no Brasil, a ponto de num relatório a Rockefeller, W. Guest, funcionário

oficial da política externa norte-americana para o Brasil, afirmar: “Eu considero que o

Brasil é a mais importante e a mais perigosa de todas as Repúblicas do Sul e estou

convencido que os alemães também pensam nisso. Todos os homens de seu governo são

abertamente pró-nazi, com exceção do presidente Vargas e de Oswaldo Aranha” (Mota,

1995, p.493).

Para Guest, Vargas jogava de forma oportunista e se na hora H a vitória

pendesse para o lado alemão ele não teria dúvidas em aderir. “Guest chegou a contatar

Décio de Moura, secretário particular de Oswaldo Aranha. E anota que o chefe de

polícia era Filinto Muller, pró-nazi, e Lourival Fontes, “ministro da propaganda e um

estudioso leitor de Goebbels”; além de Montero (sic, ou seja, Góis Monteiro), ministro

de Exército que “também admira os alemães” (idem)

Dentro da perspectiva de Rockefeller, o fundamental seria fomentar no Brasil, e

no restante das Américas, a criação de canais culturais que permitissem o intercambio

efetivo com os EUA. O museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, foi criado nos

moldes do seu equivalente norte-americano, seguindo as determinações da 3ª reunião de

consulta realizada nesta cidade, em 1940. De acordo com as negociações feitas entre

Sra. Lucia Fonseca, representante brasileira, e Nelson Rockefeller, o Museu deveria

coletar e adquirir obras de arte moderna, bem como, de arte popular brasileira, além de

investir no intercambio artístico entre os povos americanos. De acordo com o

documento de criação do MAM, a instituição seria um dos pilares de defesa da

civilização ameaçada, bem como da união das Américas (idem, p. 494).

226
O representante norte-americano para a criação do MAM foi justamente, Misha

Reznikoff, companheiro de Genevieve Naylor nas suas peregrinações pelo Brasil, e

artista plástico de origem ucraniana que fez sucesso, no Brasil, com seus “Monstros da

Guerra”. Naylor, Reznikoff, seguidos por Orson Welles e Waldo Frank formam o lado

intelectual e sensível do imperialismo sedutor, para usar a feliz expressão de Pedro Tota

(2000), que domina o Brasil nos anos 1940.

Foi neste contexto que os brasileiros aprenderam a substituir os sucos de frutas

tropicais onipresentes à mesa por uma bebida de gosto estranho e artificial chamada

coca-cola. Começaram também a trocar sorvetes feitos em pequenas sorveterias por um

sucedâneo industrial chamado kibon, produzido por uma companhia que se deslocara às

pressas da Ásia, por efeito da guerra. Aprenderam a mascar uma goma elástica chamada

chiclets e incorporaram novas palavras que foram integradas á sua língua escrita.

Passaram a ouvir o fox-trot, o jazz, o boogie-woogie entre outros ritmos e assistiam à

mais filmes produzidos em Hollywood agora. Passaram a voar nas asas da Panair (Pan-

American), deixando para trás os “aeroplanos” da Lati e da Condor (Moura, 1988,p. 7-

12).

No entanto, as imagens de Naylor revelam um Brasil aos olhos dos norte-

americanos que mistura essa cultura urbana internacionalizada, com a outra, atávica das

profundezas do sertão. Na sua viagem pelo Brasil une o litoral ao interior, numa síntese

inusitada que até hoje causa estranhamento em quem olha. Qual a mágica de

Genevieve?

Os ingredientes da magia: trajetória de Genevieve Naylor

Ao longo das primeiras três décadas do século XX, a produção fotográfica norte-

americana foi marcada por duas tendências –Camera –work de Alfred Stiglitz,

227
tendência pictorialista; e o social work, de Louis Hine, a tendência de se operar com a

câmera fotográfica como uma arma de denúncia social. Duas tendências que dividem o

campo fotográfico, em termos de postura política, mas que dialogam em termos de

linguagem e de exercícios estéticos (Trachtenberg, 1989). Dentro desse contexto a

Genevieve Naylor define-se como fotógrafa.

Genevieve Hay Naylor, nasceu em 2 de fevereiro de 1915, em Springfield,

Massachessets. Seus pais, Emmett Hay Naylor, um promissor advogado de Boston, e

Ruth Houston Cadwell, pertencente a elite local, separaram-se quando ela tinha somente

10 anos, em 1925.

Criada nos padrões da alta burguesia do leste, desde cedo, como sua mãe, tentou

romper com os padrões estabelecidos, estudando desenho e pintura numa escola local,

apaixona-se pelo professor, Misha Reznikoff. Em 1933 muda-se para Nova York

seguindo o seu amor e o seu instinto artístico. Lá continua com seus estudos em pintura

até que em 1934 depois de assistir a uma exposição de fotografias que reunia nomes

como Berenice Abott, Eugene Atget e Henri Cartier-Bresson, muda o seu foco de

interesse, passando a dedicar-se à fotografia. Seu destino: a New School for Social

Research, onde nada mais do que Berenice Abbott ensinava. Iniciava-se então uma

amizade que só iria se interromper com a morte de Naylor em 1989.

Convivendo com Abott, Genevieve Naylor tem a oportunidade de entrar em

contato com os fotógrafos da Grande Depressão Norte-Americana organizados na Farm

Security Administration e coordenados por Roy Stryker, e com os temas candentes da

época: justiça social, integração racial, anti-facismo e cultura de vanguarda. A fotografia

urbana do nova-iorquino Weegee e as tomadas arriscadas de Robert Capa passou

integrar o conjunto das suas preferências fotográficas. Misturando-se a estas influências

228
sua formação nas artes plásticas, o resultado foi um olhar sensível aos temas sociais,

mas também treinado na estética visual das formas plásticas, dos claros-escuros, das

linhas e das composições.

Em 1937, quando tinha somente 22 anos, foi recomendada pela liga profissional

de fotógrafos para integrar o Work Progress Administration, instituição governamental

criada na época da Grande Depressão para abrigar o trabalho de artistas. No WPA,

Naylor fotografa diferentes cidades norte-americanas temas de caráter social, daí para o

fotojornalismo é uma questão de tempo.

Nesta época as revistas ilustradas eram as janelas para o mundo, a visualização

do que se ouvia nas rádios. Exercia uma forte influência na cultura urbana de então e

eram um grande canal para a expressão fotográfica de profissionais de peso. Em 1939 já

integrava a Associated Press, como a primeira fotógrafa norte-americana a assumir

função numa agência de notícias. Suas fotos passam a circular em importantes revistas

internacionais, dentre as quais: Life, Time e a Fortune. Aliás, foi nas páginas da Life que

Vinícius de Moraes identificou a habilidade de Naylor.

A sua projeção no fotojornalismo chamou atenção de Rockefeller, este sim, um

caçador de talentos para implementar o destino manifesto norte-americano, a unificação

cultural das Américas. É interessante pensar como Naylor, jovem culta, bem sucedida

na sua profissão, integrada numa Nova York boêmia e vanguardista, fosse assumir de

forma inquestionável a retórica da união das Américas, defendida pela agencias

governamentais. Claro que a luta anti-facista unia pontas distintas do pensamento liberal

norte-americano, desde os intelectuais comprometidos com uma tendência mais

socialista, como Aldo Frank, até Walt Disney, um digno representante da indústria

229
cultural, e foi justamente este largo espectro ideológico que vai transformar a “invasão”

cultural norte-americana em algo tão ambíguo quanto convincente.

No entanto, ao contrário do que apostava a geração de intelectuais, formada no

ambiente do pluralismo cultural de Franz Boas, cuja referência máxima para a América

Latina foi Waldo Frank, a união das Américas foi mais uma utopia. Os Estados Unidos

ao final da II Guerra Mundial, como aponta Frederick Pike, voltou a sua trilha familiar,

a perseguir o progresso pelo progresso, a sua tradicional intolerância em relação aos

povos e culturas ditos ‘primitivos’ por não deificarem os valores do individualismo

burguês e crescimento econômico a qualquer custo (Pike, 1992, p.294).

É neste quadro contraditório que podemos entender o fato de Naylor, digna

representante de uma tendência denominada concerned photographs26, aceitar o

trabalho de fotógrafa da Boa Vizinhança.

Vivendo e fotografando, Genevieve e Misha no Brasil.

Naylor chega ao Brasil em outubro de 1940, onde para realizar seu trabalho de

fotógrafa deve ter um salvo conduto assinado pelo diretor geral do Departamento de

Imprensa e Propaganda, o DIP, órgão censor e repressor das atividades culturais no

Brasil. A morosidade da burocracia faz com que o passe necessário só tenha sido

emitido em 1942, como se registra no documento acompanhado de sua foto: “A senhora

Genevieve Naylor, de nacionalidade norte-americana, trabalhando para o Coordinator of

Inter-American Affairs, está autorizada por este departamento a tirar fotografias de

aspectos turísticos de nosso país. Rio de Janeiro, 7 de junho de 1942.”27

Levando-se em consideração que boa parte das fotos de Naylor no Brasil foram

de 1941 e 1942 e que a fotógrafa retorna aos Estados Unidos em agosto de 1942 e boa

parte do seu trabalho foi realizada sem este passe. No entanto, não foi somente esta a

230
dificuldade encontrada por ela. Nas cartas que enviou à sua irmã reclamava da

resistência por parte das autoridades tanto brasileiras quanto norte-americanas em

registrar o que ela queria, além da falta de películas, por conta da guerra. Numa de suas

cartas registrou tal escassez: “Film is being rationed to everyone”, she wrote to her

sister. “I don’t have the luxury of shooting anything I want. I have to be damn careful,

and choose my images with great care and hope my exposures are correct”28.

Tanto o DIP quanto OCIAA contrataram fotógrafos para registra imagens

positivas do Brasil, como forma de propaganda nacional e internacional. Além de

Naylor, mais dois fotógrafos norte-americanos registraram imagens do Brasil: G.E.

Kidder Simth, especialista em fotografar arquitetura e responsável pelas fotografias do

livro do arquiteto Philip L Goodwinn, Brazil Builds, que também deu título a exposição

do fotógrafo no MOMA, da qual as fotografias de Naylor foram o complemento (como

veremos adiante); e Alan Fisher, integrante da divisão de Saúde Pública e Higiene do

OCIAA, que se concentrou nas condições médicas e instalações militares na região

amazônica29.

Assim que chegou ao Rio, Naylor recebeu instruções claras do DIP sobre o que

deveria fotografar. O documento indicava que a fotógrafa deveria valorizar alguns

temas, dentre os quais: arquitetura moderna (principalmente prédios governamentais);

casas dos bairros nobres, como Lagoa, Gávea e Ipanema; interior de casas importantes e

elegantes, no bairro do Flamengo, os domingos de sol nas praias de Copacabana e

Ipanema; as corridas de cavalo no Jockey Club, os veleiros e iates na baía de

Guanabara, o comércio exclusivo da rua do Ouvidor e as obras de caridade da Primeira

Dama, D. Darcy Vargas.30

231
Instalados no Rio de Janeiro, o casal Naylor e Reznikoff passou a morar no

Leme, bairro litorâneo, próximo a Copacabana, onde Naylor registrou boas imagens do

cotidiano praieiro, nada sem domingos de sol, num clima muito mais intimista, de quem

acaba se perdendo entre as próprias imagens, misturando-se com a população local.

Tal efeito foi percebido por Aníbal Machado, crítico e escritor carioca, que sobre

Genevieve Naylor escreveu:

“Via-a saindo pela madrugada ou à noite, indiferente às intempéries, obstinada

na realização de seu trabalho” [...] Mais que a excelência técnica, o que é preciso louvar

nos trabalhos de Miss Genevieve é o sentido sociológico com que ela utilizou a

objetiva, revelando um espírito corajoso e sincero, e, não raras vezes, comovido diante

da realidade brasileira [...] Os assuntos populares, humildes, os tais elementos essenciais

que compõem a fisionomia do nosso povo são captados, pela fotógrafa da Boa

Vizinhança. Mas sua maneira de fixar a realidade nada tem de monumental. Nada de

cachoeiras, de edifícios monumentais, de paisagens idílicas. Sua visão poético-

sarcástica por vezes evoca a arte sul-realista. Um país – O Brasil – captado então na sua

força real: assim, no carnaval, a alegria é antes uma vibração convulsiva da tristeza que

procura atordoar-se...Como se estivesse procurando o resumo etnográfico. Importante o

olhar, a percepção das imagens simples, que permite a recuperação dos tempos

históricos acomodados no cotidiano, mas que resgata a vida de cada um em sua

profundidade e instensidade. Não raro surge uma imagem agônica, áspera porém

silenciosa, sempre densa. “Nada de cachoeiras...”31

O casal freqüentou o apartamento de Machado em Ipanema, ponto de encontro

de jornalistas, críticos, poetas e músicos, um ambiente bem parecido com àquele que

Misha e Genevieve freqüentavam em Nova York. A simpatia por Naylor e a admiração

232
pelo seu trabalho, compartilhada por Vinicius de Moraes e Aníbal Machado, estendia-se

aos trabalhos de Misha que recebeu elogios por parte da crítica, na exposição “Monstros

da Guerra” realizada no Museu Nacional de Belas Artes, no centro do Rio.

Por conta do contato estreito que estabeleceu com a intelectualidade carioca, o

casal acabou por servir de ponte para os demais “embaixadores da boa-vontade” que

visitariam o Brasil. Dentre eles o próprio Orson Welles, que além de ter sido

fotografado por Naylor, na noite carioca, recebeu do casal Misha/Genevieve boas dicas

de onde ir, na cidade do Rio de Janeiro, para filmar seu documentário sobre o Carnaval.

Na correspondência com sua irmã Genevieve se gaba do seu conhecimento sobre as

‘coisas’ cariocas: “Welles knew the Avenida Rio Branco and the Avenida Beira mar

were the two major canaval parade routes, but he didn’t know in the Praça Onze a

separate and almost exclusive Negro Canaval os staged”.

O próprio Vinícius de Morais, cujo comentário sobre Naylor abre este estudo,

foi um dos intelectuais brasileiros, que freqüentou o circuito carioca da boa-vizinhança,

cuja sociabilidade evidencia-se em uma outra de suas crônicas do período: “Ontem fui a

Cinédia, a convite de Orson Welles, para vê-lo um pouco em ação. Anteontem o havia

encontrado em Copacabana, e, como sempre acontece quando o encontro, toda a minha

admiração e simpatia por ele se renovam. Discutimos, como também sempre acontece,

numa roda onde se achavam entre outros amigos o pintor Misha e o escritor Aníbal

Machado [...] e dessa discussão nasceu o convite. Apressei-me a ir, naturalmente”.(A

Manhã, 30/04/1942).

Sediado no Rio, o casal realizou várias viagens pelo interior e para outras

capitais brasileiras dentre elas São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Maceió, Aracaju e

Salvador. Em uma viagem, particularmente mais extensa iniciada em fevereiro de 1942,

233
saiu do Rio diretamente para Belém do Pará, descendo pelo nordeste e iniciando uma

viagem pelo Rio São Francisco, onde se dedicou a fotografar as pequenas e anônimas

cidades do sertão. Em outra oportunidade viajaram para as cidades Barrocas de Minas e

de Pirapora retomaram o São Francisco de Barco. Em uma carta endereçada aos

“Dearest Amigos – Ruth e Caloca” escrita em 1942, provavelmente dessa viagem de

barco (sob a guarda de seu filho Peter Reznikoff), Genevieve descreve as aventuras e

desventuras do casal:

“This Voyage is definitely not a trip from Pirapora [MG] to Joazeiro; it’s one

from this sand bank to the next. The first time we’ve got stuck (five minutes after

embarking) it was too picturesque – those fine, strong, bronzed MEN, literally lifting us

off those unique sand formations – BUT after spending a day knawing (sic) our nails,

waiting for the next sand bank (with a little energy trouble thrown in), we finally given

over to God and a lone bottle of genuine Gordon’s gin and agua tonica (tonic water).

The only trouble is there seems to be an unlimited supply of agua tonica and a bottle of

gin that just seems to evaporate, God knows where”

Em outro trecho descreve as dificuldades de deixar o Rio, por conta dos passes

para fotografas que deveriam ser emitidos pelo DIP:

“That last day in Rio was a heller what with gathering last minute letters of

introduction and Lourival’s (I hear he is out on his bunda [ass], Graças a Deus [Thank

God]) card of permission to take photos and the squeezing of the last minute elephants

into match-box suitcases, we finally got off in a terrific rush leaving last minute

telephone calls, etc., undone, only to have a first class disaster smack us in the face half

away to Bello Horizonte. Misha and I had the last beds in the last car of the train and

were killing time and dirt having a drink in the restaurant car when we stopped with a

234
boom in some small station. The xixi (pee) I had decided to take previously simply

couldn’t wait, so we wandred back to find the back end of our car folded up like an

accordion and the rear engine (put on as an aid) puffing and steaming right in the

middle of our beds. WELL, I lost ten kilos on the spot because we has previously stored

all our baggage including my complete work (negatives) of a year and all of Misha’s

paintings in a small space in back of the beds and the engine steaming and (as I thought)

melting my negatives to a grease spot and the dfp (son of a whore) conductor sayng

“well, we will leave the car here and you can get your things tomorrow”, and another

fdp calling us quinta columnas [traitors] ( a year of my negatives), so with a few ers on

my part, and Misha’s gestures on the other, we got the baggage ou safe and OK. After

that, B.H was very tame, and Pirapora was a sleeping pill”

Durante o percurso o casal enfrentou uma série de contratempos devido à

ingerência do poder local, durante o Estado Novo. Desde a cobrança de taxas até salvo

conduto para fotografar eram exigidos em algumas localidades, a fotógrafa teve seu

equipamento apreendido inúmera vezes, apesar do passe concedido por Lourival Fontes,

chefe do DIP.

As imagens do Rio e das viagens que realizou pelo Brasil compõem um mosaico

em movimento de Naylor. Um Brasil cuja cartografia afetiva revela a mistura, a

polifonia das vozes que falam através das imagens de Naylor, numa intertextualidade

que valoriza o poder da imagem nas suas múltiplas dimensões: poesia, publicidade,

cinema e fotografia.

A poética visual de Naylor sintonizava com as referências estéticas encontradas

no pluralismo cultural, próprio do ambiente intelectual e artístico de Nova York dos

235
anos 1930. Entretanto dialogava também com a pedagogia do olhar própria a política

implementada pelo CIAA.

Visualizando a América Latina.

Relembrando as motivações que o levaram a iniciar sua carreira como latino-

americanista, o historiador norte-americano Frederick Pike, confidencia:

“Born in 1926, I began in the early to mid-1930s to become a bit aware of a few

things going on in the world, in part listening to the radio [...]. My favorite radio

entertainment came from western music programs of Stuart Hamblen, the broadcast

description of Joe Louis fights..and above all else FDR’s Fireside Chats[...]Vaguely in

the 1930s I became aware that FDR had na interest in certain neighbors to the south

called Latin Americans, and that he had initiated a Good Neighbor program through

which he hoped to establish better relations between them and us...that sounded like a

decent enough idea. At the time a lot of latin songs were in vogue...The Latins had

begun to intrigue me about as much as cowboys. By the end of 1930s, moreover, the

Latins took on an appeal the cowboys couldn’t match. They were very sexy. Dolores del

Rio and Carmen Miranda provided all the proof that one needed. Obsviously FDR was

right in wating Americans to get closer to Latin Americans”. (Pike, Frederick, 1996, p.

xv).

O relato das lembranças de Pike revela, com simpatia e bom-humor, como a

fundação de um imaginário sobre a América latina, contou com dois ingredientes

fundamentais: política e propaganda. O forte apelo político era encampado pelo próprio

presidente Roosevelt que apresentava os bons vizinhos latino-americanos nas suas

conversas no rádio. Cabia aos meios de comunicação apresentar o perfil, criar um tipo

latino-americano, visualizar a América Latina através de um conjunto de representações

236
que dialogassem com a cultura visual do período, fortemente marcada pela crescente

hegemonia das imagens técnicas: o cinema e a fotografia.

Em relação ao cinema, o investimento mais evidente e de maior vulto, foi feito

pelo governo, através de suas agencias, dentre estas o CIAA, em parceria com os

grandes estúdios de Hollywood32. Paralelamente, a mídia comercial foi implementada

pelo CIAA um investimento significativo na produção de filmes de 16mm voltado para

a elaboração de uma imagem positiva das ‘outras repúblicas americanas’, como era

denominada a América Latina na documentação oficial, dentro do próprio EUA.

A produção de curtas para distribuição não comercial dentro dos Estados Unidos

e na América Latina, era apenas uma das muitas atividades da Motion Picture Divison

(MPD). Criada como uma seção da Divisão de Comunicação, em outubro de 1940, a

MPD foi entregue a direção de John Hay Whitney, que além de amigo pessoal de

Rockefeller, pertencia ao meio cinematográfico, sendo um dos produtores de O Vento

Levou. Além de assumir a direção da MPD, Whitney era vice-presidente o Museum of

Modern Art de Nova York (MOMA), e presidente da Biblioteca de filmes do MOMA,

seus serviços eram doados ao governo na base de um-dólar-por-ano.

Por conta dessa ligação, a Biblioteca do MOMA, sob contrato com o CIAA

ficou encarregada de uma série de atividades associadas à distribuição dos filmes

produzidos pelo CIAA, para fins não comerciais. Dentre estas se destacam organização

de catálogo bem como a sua distribuição, dublagem para o português e para o

castelhano dos filmes sobre os Estados Unidos, além de editar filmes e de promover a

produção de filmes sobre adequado ao quadro político.

Já como parte integrante da Divisão de Informação, depois que a de

Comunicação foi extinta, a MPD era composta por um pessoal reduzido, sendo boa

237
parte do trabalho realizado em parceria com a indústria cinematográfica. Tanto a

produção de filmes comerciais como não comerciais eram gerenciados pela mesma

direção que se dividia pelos dois escritórios, uns em Washington e o outro em Nova

York. O primeiro ficava encarregado de estabelecer as diretrizes políticas do setor e a

coordenar o relacionamento com as demais agencias governamentais. O de Nova York

já possuía atribuições executivas, sendo dividido em três seções:

1. Seção de produção e adaptação responsável pela seleção, dublagem para o português

e o castelhano e distribuição para a América latina de material adequado produzido

pelas demais agencias governamentais, pela indústria cinematográfica e pela iniciativa

privada em geral. Além disso, ficava ao encargo desta seção definir os temas, estruturar

os roteiros e supervisionar a produção dos filmes de 16 mm pelos produtores

independentes dos Estados Unidos.

2. Seção de cinejornais responsável pela inclusão semanal de assuntos relevantes para as

relações interamericana no circuito de cinejornais comerciais produzidos pelas grandes

companhias, dentro e fora dos Estados Unidos. Durante o ano de 1942 através de

acordos com as principais agencias de cinejornais dos Estados Unidos – Paramount,

Pathe, Universal, Fox-Movitetone e News of the Day -, o CIAA conseguiu montar uma

infra-estrutura de produção e distribuição de cinejornais sobre a América Latina.

Inclusive o primeiro projeto desta seção garantiu a cobertura completa da conferencia

Pan-americana, realizada no Rio de Janeiro, entre os dias 15 e 28 de janeiro de 1942.

3. Seção de distribuição encarregada de organizar e supervisionar a distribuição de

filmes de 16 mm em ‘outras repúblicas Americanas’ e averiguar se a embaixada norte-

americana e os escritórios locais do CIAA possuíam equipamentos adequados para

exibição e divulgação gratuita do material. Esta seção era também encarregada de

238
distribuir dentro dos Estados Unidos, filmes de interesse para a política da Boa

Vizinhança. No final do ano de 1943, cerca de 61 curtas, com temas ligados a guerra e

as relações interamericanas, já haviam sido produzidas.

Na avaliação do CIAA o grande investimento na produção filmes estava

vinculado à capacidade deste meio em atingir largas audiências, principalmente, no caso

da América Latina onde boa parte do público-alvo era analfabeta. Portanto a educação

visual fazia parte do projeto civilizatório, com o qual os Estados Unidos, se empenhava

em alavancar a América latina do seu patamar de desenvolvimento. Um dos

investimentos neste sentido foi a organização de uma frota de 200 caminhões que

percorriam as cidades do interior dos países da América Latina, para atingir pessoas que

normalmente não iam ao cinema e, sendo assim, não eram atingidos pela propaganda do

CIAA. No caso do Brasil, como aponta a documentação do CIAA, não foram enviados

caminhões, somente 61 projetores de filmes de 16 mm, indicando uma possível parceria

do CIAA e do Governo Brasileiro (ROWLAND, 1946).

Em um pequeno catálogo intitulado ‘The American Republics in Films: a List of

16 mm. motion films on South and Central America and where they can be secured’,

publicado pelo CIAA, a importância política dos recursos audio-visuais fica

evidenciada:

“Future world peace depends greatly on how well the peoples of the various

nations know and understand each other. The Office of the Coordinator of Inter-

American Affairs has been established by the United Sates Government to promote and

accelerate such and understanding between the peoples in the republics of western

hemisphere. One of the programs of the Coordinator’s office is devoted entirely to

promoting in the United States the knowledge of the other American republics. Inter-

239
American Centers have been established to coordinate and reinforce inter-American

programs regionally, in both cultural and commercial aspects. Emphasis is laid on the

showing of motion pictures since this particular medium is admittedly one of the most

powerful and effective teaching tools. The Motion Picture Division is releasing many

films in South and Central America designed to teach our neighbors to the South more

about the United States. Likewise the Coordinator’s office is making available to

audiences in the United States an increasing number of motion pictures delineating life,

customs, traditions, habits, education, science, and art in the other America republics.

To this particular group films are the following pages devotes so that schools, clubs,

churches and similar groups in the United States my know what motion picture are

available and where they may be secured”33

A iniciativa apontava o caminho de mão dupla na produção visual oficial, se por

um lado, a nós, os latino-americanos a pedagogia do olhar estaria voltada para o

reconhecimento da supremacia comercial e cultural dos Estados Unidos, a eles, seriam

apresentadas a nossa beleza cultural e potencial para o progresso. Valorizando através

das imagens a crença nos ideais da modernização técnica como progresso social, ao

mesmo tempo em que, definia o lugar de cada país americano na geografia

evolucionista das Américas. Não é sem propósito que em toda a documentação oficial

do período a América Latina fica referida pela expressão “demais Repúblicas

Americanas”.

Na quinta edição das Diretrizes e Sugestões para os Programas Interamericanos,

também publicados pelo CIAA desde 1940, mais uma vez reforça-se a necessidade de

disponibilizar um conhecimento maior sobre a América Latina para o público interno

dos EUA, propondo uma estratégia que criasse um sentido de comunidade: “As a part of

240
this process of working together, we in the US must come to know more about our

neighbors to the south – their lives, their culture, their aspirations, and their role in the

present war. [...] While approving wholeheartedly the idea of inter-American

cooperation, groups and organizations throughout the country have raised the question:

‘What, specifically, can we help?’”

Como resposta a essa demanda o CIAA preparou uma lista com dezoito tópicos

que iam desde observar as datas cívicas latino-americanas até a organização de eventos

científicos e culturais, passando pelo ensino dos idiomas português e espanhol, para ser

distribuídas em centenas de cidades nos EUA. Cada um dos 18 tópicos foi tratado

separadamente e em todos eles, havia um item associado ao uso de imagens técnicas,

quer sejam em formas de slides para ilustrar conferências, exposições de fotografias,

divulgação de revistas com imagens sobre e América Latina, bem como a exibição de

filmes documentários, produzidos pelos órgãos oficiais, dentre os quais destacavam-se:

CIAA; Pan American Union, Office of Education, American Council on Education, etc.

O quarto item trata especificamente o uso de audiovisual especificando a

necessidade de se estimular a exibição de filmes e slides sobre a América Latina: “The

field of visual education offers one of the most effective means of reaching the

American public. Much of Latin America can now be seen on the screen through a

number of very interesting films available through the CIAA and through other

sources”.

Na área de educação os centros e grupos interessados em incentivar os

programas de intercâmbio cultural entre as Américas investiram especificamente em:

distribuir projetores para a exibição de filmes, publicizar o acesso de filmes e slides

sobre a temática interamericana; encorajar o estabelecimento de cine-clubes, criar um

241
acervo de slides e incentivar sua utilização bem como a de filmes nas escolas, e

finalmente, apoiar o trabalho de fotógrafos e cinegrafistas amadores que já viajaram

pela América Latina para exibir suas imagens.

Observa-se nas sugestões dadas um grande investimento na criação de uma

comunidade imaginada (Anderson, 1991)34, que compartilhasse de valores cívicos

comuns e padrões de comportamento semelhantes. Neste sentido, a eleição das escolas,

bibliotecas, rádios comunitárias, clubes, igreja, ou sejam instâncias definitivamente

ligadas a forte tradição associativa dos Estados Unidos, foi fundamental para elaborar

uma esfera social de ação coletiva em prol do ideal comum de interamericanismo.

Portanto, dentre os recursos para promover a integração entre as Américas, a

imagem técnica foi fundamental, denotando o importante papel da cultura visual como

forma de persuasão e de elaboração de conceitos e emoções. Através deste tipo de

política cria-se uma demanda por imagens, onde o papel de Naylor e dos demais

fotógrafos associados ao CIAA é completamente justificado.

Um mosaico em movimento;as fotografias brasileiras de Genevieve Naylor.

Naylor não tinha muitos recursos técnicos a sua disposição: somente uma

Rolleiflex e uma Speed Graphic, utilizando-se sempre de luz natural, sem filmes muito

rápidos. No entanto contava com algo que ela destacou como especial: a boa vontade

dos brasileiros. Numa de suas cartas mencionou: “What helps is the absolute

cooperation of the Brazilians. They are so natural in their demeanor, so giving and

warm, that my camera just loves them”

Fotografia era para Naylor uma forma de expressar seu encantamento pelo

mundo que a rodeava. O frescor das suas fotografias provinha do fato de que ela estava

vendo tudo pela primeira vez. Ao contrário das fotografias teatralizadas do DIP,

242
tipicamente de propaganda política, suas fotos registraram como o cotidiano poderia ser

extraordinário. Ela achava os brasileiros simples e abertos, fáceis de lidar. Para uma

estrangeira com uma grande câmera, com roupas estranhas e sem muita habilidade para

se comunicar com pessoas que por sua vez também não tinham muito contato com o

exterior, o resultado foi surpreendente. As pessoas fotografadas por Naylor ora

aceitavam a sua presença, sem que esta atrapalhasse o que estavam fazendo, ora

assumiam uma cumplicidade com a câmera, encontrando em Naylor uma presença

amigável.

Convencida de que a espontaneidade era a melhor base para construir uma

imagem, Naylor tinha uma estratégia para consegui-la, como explica Peter Reznikoff:

“Como forma de capturar um momento composto, embora espontâneo, ela

sempre procurou quebrar os padrões estáticos, posados, altamente estilizados que

prevaleciam nos anos 1920 e 1930. Para isso, ela integrou a sua experiência enquanto

fotojornalista na Associated Press, as fotos de Dorothea Lange, Cartier Bresson e o

fervor artístico do realismo socialista e do impressionismo abstrato. Destilando o

espírito dessas influências para criar um movimento consciente, um efeito de atualidade,

ela teve que ser não apenas inventiva, mas esperta. Quando se deparou com Red

Skelton, bêbado, para uma sessão de fotos para a revista Good Housekeeping, ela o

colocou em frente a televisão, ligou o aparelho e pediu que ele reagisse ao que estava

vendo. O resultado energizou o palhaço Red Skelton , ao invés do bêbado Red

Skelton”35

A estratégia de capturar a espontaneidade nas pessoas contribuiu para que as

fotografias de Naylor celebrassem a força e a perseverança do povo, evitando enquadrá-

los como exóticos. O olhar de encantamento que lançou para o Brasil, assim que

243
chegou, não se perdeu ao longo dos quase três anos que permaneceu aqui. Suas viagens

para o interior, juntamente com Misha realimentaram essa impressão inicial, a cada

novidade que o Brasil lhe apresentava.

As peregrinações de Naylor pelo Brasil seguem o mesmo rumo de outros

viajantes ávidos pelo registro do novo, do incomum e muitas vezes bizarro. O Brasil,

desde a abertura dos portos em 1808 por D. João VI, teve sua paisagem redesenhada por

riscadores que acompanhavam s expedições científicas, seguidos pelos fotógrafos

paisagistas e, mais tarde, ao longo do século XX, por outros que buscavam a o “resumo

etnográfico” do país, apropriando-me da expressão de Aníbal Machado. Dentro dessa

trilha passaram, Gotherot, Verger e o próprio Levi-strauss, para cada um as mediações

que alimentavam a sua visualidade eram diferentes, mas cada qual buscava, a sua

maneira uma síntese original do país. Genevieve Naylor, também, buscou recriar o que

via, a partir do que já tinha visto: o transito de pessoas por um país em crise, a afluência

da sociedade de consumo de massa, as texturas do mundo fashion, enfim, os rostos e

lugares com os quais compunha a sua linguagem fotográfica.

A presença da câmera era condição fundamental para a construção da memória,

do registro ou da evidencia, a natureza da produção visual variaria segundo o seu

objetivo, mas a marca da originalidade de Naylor estava inscrita na sua própria maneira

de olhar, como evidencia-se numa carta para sua irmã : “My first striking visual sight

was not the bustling energy of the Copacabana beach or the boulevards and slums, but a

solitary young negro girl sitting cross-legged in the center of a street, intensely focused

on constructing a wooden flute. If there ever was a moment to have my camera!

Unfortunately, the Brazilian authorities have confiscated my equipment while they

scrutinize my back ground to make sure I’m not some fifth-columnist subversive!”36

244
Nas palavras da estudiosa Ana Lucia Gazolla,

“[...] Naylor resiste à apresentação de uma visão homogênea do país e recusa os

estereótipos fáceis do paternalismo e do exotismo latino-americano [...]. Suas fotos

buscam retratar uma realidade contraditória, múltipla, diversa, da qual nenhuma síntese

é possível: nelas contracenam o rural e o urbano, cosmopolitismo e religiosidade

tradicional, riqueza e miséria, desenvolvimento e atraso, uma sociedade em

transformação que levará o desaparecimento de comunidades culturais pela hegemonia

de uma cultura urbana cosmopolita e excludente. Naylor focaliza o caráter multiracial

da população brasileira e capta em imagens carregadas de uma extraordinária percepção

as imensas contradições do país, contrariando os desejos da ditadura de Vargas e as

expectativas do CIAA [...] O país que retrata não é o das paisagens assépticas e

deshistoricizadas, nem o do desenvolvimento e do progresso absolutos, mas sim o do

contraponto, da decalagem, do processo de modernização que acentua desigualdades”.37

A avaliação de Gazolla sintetiza o resultado conquistado por Naylor, em suas

andanças pelo Brasil. Uma leitura permeada pelo impacto que nos causa o conjunto da

documentação fotográfica produzida por Naylor, considerada pelos estudiosos do

período, como a mais completa coleção sobre o Brasil da época, devido à natureza

variada de suas imagens.

De acordo com o brasilianista Robert Levine, no livro publicado em 1998, mais

de 1350 fotografias sobreviveram ao tempo, desse conjunto, o autor publicou em seu

livro, organizado com a colaboração de Peter Reznikoff, filho de Naylor, 101 imagens.

Na sessão Photographs and Prints da Biblioteca do Congresso Norte-Americano,

encontram-se arquivadas na rubrica Archives of Hispanic Culture, um anexo de 225

fotografias sobre o Brasil pertencente ao CIAA onde deste conjunto, 187 estão

245
assinadas por Naylor, 10 seguem o mesmo estilo adotado pela fotógrafa, incluindo

paisagens semelhantes, 24 são de Kidder Smith ou semelhantes ao seu tipo de

fotografia, as restantes seis imagens não foram identificadas.

Do grupo de fotos guardadas na Biblioteca do Congresso, 37 encontram-se

também no livro, as demais seguem o mesmo padrão estético e temático, com uma

única diferença: as imagens arquivadas não foram editadas. Encontram-se fora do

catálogo, numa espécie de miscelânea sobre a América latina dos anos 1940, sem

tratamento especial. Todas estão coladas num suporte de cartão, com tamanho padrão de

24 x 18 (horizontais e verticais), identificação numérica no verso, carimbo do State

Department, órgão ao qual o CIAA estava subordinado, e identificação do lugar e da

data, todas de 1941. Todas estão assinadas pela fotógrafa e do conjunto total somente

nove não traziam identificação de data e local, as demais traziam uma breve legenda

escrita em inglês, com a letra de Naylor. Acredito que o conjunto do trabalho de Naylor

pode estar arquivado em diferentes lugares (além do material em posse do seu filho),

juntamente com as demais imagens produzidas pelo CIAA38.

Para este trabalho trabalhei reuni num conjunto as fotos encontradas na

biblioteca do congresso dos EUA, as fotos publicadas no livro de Robert Levine e mais

algumas encontradas no catálogo da exposição “Faces and Places in Brazil / Rostos e

Lugares no Brasil”, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em novembro de

1994, sob a curadoria do filho de Naylor, Peter Reznikoff, somando um total de 264

fotos que analiso a seguir.

A chave de leitura da mensagem fotográfica elaborada pela fotógrafa na sua

produção brasileira evidencia-se no título da sua exposição no MOMA, em 1943,

“Faces and Places in Brazil”. A opção por valorizar as pessoas e lugares por onde andou

246
vai fazer com que todas as demais opções técnicas e estéticas fiquem por estas

condicionadas. Vejamos como os quadros de significação visual se organizam na

mensagem composta pelo conjunto das fotografias.

O entramado visual.

As fotografias na sua absoluta maioria são grandes (máximo 24 x 20 cm e

mínimo 15 x 16), retangulares, verticais e instantâneas. Padrão adequado ao tipo de

aparato técnico que a fotógrafa utilizava, uma Rolleiflex e uma 4 x 5 Speed Graphic,

além de se alinhar as suas diretrizes de espontaneidade e movimento.

A visualização das imagens segue o padrão característico das revistas ilustradas,

cuja leitura se processa da direita para a esquerda (44%) e de forma nivelada ao plano

do chão (50%). No entanto, a incidência de tomadas de cima para baixo (25,5%) e de

baixo para cima (24,5%), indica o diálogo entre as fotografias de Naylor e o cinema,

principalmente com o jogo de câmera em Cidadão Kane, de Orson Welles. Em várias

tomadas o rosto suado pelo calor do samba, ou os corpos sintonizados no ritmo do

frevo, ganhavam movimento próprio ao acontecimento que estava sendo registrado,

apesar da imagem ser fixa.

A distribuição de planos é fundamental para se avaliar as relações entre o quadro

e o fora de quadro, ou ainda, entre o conjunto de escolhas possíveis e as efetivamente

realizadas. Neste sentido, quanto maior a profundidade de campo, definida pela abertura

do diafragma, maior seria a capacidade de colocar planos no foco, ampliando a

possibilidade de integra à imagem um conjunto significativo de informações. No caso

da coleção analisada, a disposição dos planos foi a seguinte: 30% em um único plano;

46% com dois planos; 22% com três planos e 2% com quatro planos.

247
Num primeiro momento, avalia-se que a fotógrafa optou por uma profundidade

de campo menor (76% de fotos com plano único ou dois planos), apesar da

luminosidade tropical lhe permitir fechar mais o diafragma para conseguir um maior

número de planos no foco. Sua opção por valorizar a relação entre as pessoas e os

lugares predominou, evidenciada na escolha da maioria das fotos com dois planos.

Entretanto, nessa distribuição, em 62% das fotografias a paisagem junto com

figuração foram objeto central, valorizando a cena. Tal tendência se reforça ao aliarmos

a opção dos planos com as de iluminação, contraste e distribuição dos elementos na

foto. Neste sentido, a incidência de 68% de fotos (a soma das fotos de 2, 3 e 4 planos),

associada a uma opção por contrastes marcados por linhas retas bem definidas,

equilíbrio entre claros e escuros, e entre a parte inferior e superior do quadro, busca

construir uma composição onde o conjunto é valorizado em consonância com suas

partes, à maneira de um mosaico. É interessante perceber como a fotógrafa maneja bem

suas escolhas técnicas e estéticas na produção de um sentido para o Brasil. Fotografa

rostos sem desenraizá-los de seus lugares.

As fotografias de paisagem sem figuração não têm incidência, e as fotografias

somente com figuração reúnem 33% das fotos e em geral são todas com um único

plano. O que evidencia que o objetivo da fotógrafa era criar uma imagem

contextualizada, as pessoas no seu espaço social, ainda que valorizasse as

representações do corpo, devido a este alto índice de retratos.

John Pultz (1995) em seu livro sobre a representação do corpo na fotografia

afirma: “Por mais de 150 anos a fotografia tem sido o mais difundido meio de

comunicação visual, e contribui mais do que qualquer outra mídia para moldar as

noções de corpo na sociedade contemporânea” (Pultz, 1995, p.7). Este autor investiga

248
como a representação fotográfica do corpo molda e reflete questões óbvias como

identidade pessoal, sexualidade, gênero e orientação social, mas também, poder,

ideologia e política.

Refletindo sobre o período, no qual Genevieve Naylor se insere, aponta:

“fotografia nas décadas de 1930, 1940 e início de 1950 estava intimamente conectada

com a Grande Depressão, a Segunda Grande Guerra e com os primeiros anos da Guerra

Fria. Durante a primeira metade desse período, o corpo na fotografia foi principalmente

retratado em temos de classe, raça e nacionalidade; somente mais tarde, a temática de

gênero voltaria a ser considerada” (idem, p.89). A partir dessas considerações orientei

minha abordagem, no sentido de definir a geografia social delimitada pelas fotos de

Naylor, enfatizando o papel do retrato fotográfico na construção de uma alteridade

social que, busca dialogar com a condição humana dos sujeitos retratados.

A definição de retrato fotográfico não é tarefa fácil, ainda mais, no contexto da

produção documental ou do fotojornalismo. John Tagg, em seus estudos sobre

representação fotográfica afirma: “The portrait is... a sign whose purpose is both

description of an individual and the inscription of social identity” (Tagg, 1988, p.13).

Seguindo tal idéia, Grahan Clarke afirma que os retratos são realmente elementos de

inscrição social: “within the context (and associations) not just a face, but of a formal

study and representation of an individual presence. Like the painting, a portrait

photograph conferred individual status, and advertised the presence of personality”

(Clarke, 1997, p. 102)

Em linhas gerais, para a literatura sobre o retrato, o que realmente, define o

retrato na fotografia é o senso de individualidade e de diferença que a imagem expressa.

Não basta enquadrar um rosto, ou uma pessoa, é necessário que ela distingui-la das

249
demais, da multidão, atribuir-lhe um valor que, ao mesmo tempo, a diferencia como um

ser humano, a identifica como um sujeito social. Ao comentar as imagens do fotógrafo

alemão August Sander, Grahan esclarece este duplo processo:

“Defined by their profession (or lack of one), they take their place in a dense

hierarchy of meaning established through social difference and distinction. [...]The

figure, in this sense gains credence from relative position, for it exists in terms of its

difference from, rather than similarity to other figures. The individual is always referred

to a larger frame of social identity – not by name but by occupation: a boxer, or

accountant, lawyer, baker, cook, bricklayer, customs officer, and so on. Every detail in

Sander portrait is of significance – everything means, but we need to probe the images

for any hint of an internal and private self. This is a society on show – public space in

which the self has meaning only in so far as it has access to that public forum”(Idem,

p.113).

As fotos de Sander, ao contrário das clássicas fotos de Walker Evans, para

exemplificar com um grande nome da fotografia documental norte-americana da mesma

época, mostram mais do que revelam uma face em qualquer contexto público. A

diferença entre mostrar e revelar, ou entre fazer uma foto e tirar uma foto, implica na

negociação, entre o fotógrafo e o fotografado, do valor atribuído à pose, implica num

confronto de olhares, implica na construção de uma relação social diferente da que se

estabelece entre a fotografia-denúncia e o retrato consentido.

O retrato pode ser só de rosto ou de corpo inteiro, quanto mais partes desse

corpo ficar exposta, tanto maior será a possibilidade de historicizá-la. Todos os atributos

relacionados ao corpo são, portanto definidos, historicamente através de práticas

culturais e sociais concretas: indumentária, higiene, alimentação, etc. Os retratos de

250
Genevieve Naylor produzidos no Brasil traduzem o diálogo da fotógrafa com a pauta

social do seu tempo, pois se orientam nos temas relacionados à classe, raça e geração.

Tais considerações são confirmadas na avaliação dos tópicos relacionados aos espaços

da figuração, geográfico e das vivências e experiências retratadas.

Os locais fotografados revelam as duas diretrizes que orientaram o trabalho da

fotógrafa, ora como funcionária do CIAA, ora como uma profissional sensível e

comprometida com as demandas sociais. Cerca de 41% das fotografias são do Rio de

Janeiro, desse conjunto somente 15% são do subúrbio da cidade e 3,5% da zona rural do

Estado. De outros estados, ainda dentro da pauta definida pelo Estado Novo, consta uma

série de 15 fotografias tiradas em escolas de Belo horizonte, cuja estética se aproxima

das fotografias produzidas pelo Ministério da Educação e Saúde de Vargas. Nestas as

crianças aparecem fazendo exercícios, formadas, estudando, alimentando-se, enfim, um

culto à formação do cidadão brasileiro.

O restante das imagens mostra os caminhos trilhados pela fotógrafa nas suas

viagens e as marcas que definiu como sendo relevantes para configurar especificidade

do Brasil. Desse conjunto 12% são de fotografias de cidades do interior sem

identificação específica de local, 11,5% são das cidades históricas de Minas Gerais –

Ouro Preto e Congonhas do Campo, nas festividades da Semana Santa, 15% são

imagens de cidades ribeirinhas ao São Francisco, nas quais se busca a espontaneidade

de um cotidiano marcado pela precariedade.

Os atributos da paisagem são objetos que qualificam as condições de vida de

cada espaço. Neste sentido, o espaço urbano dos grandes centros está associado a

objetos que denotam o consumo e a vida agitada das metrópoles: outdoors, prédios,

entulhos, postes, calçadas, tapumes, fios, vitrines, toldos, estátuas, bondes, carros, trens,

251
etc. A zona rural recebe atributos próprios, tais como: casas de pau-a-pique, canoas,

vegetação agreste, roupas estendidas ao sol, redes, utensílios de palha, numa economia

que reforça o sentido de precariedade e a oposição interior e litoral, ou ainda, entre o

Brasil urbano-industrial que teria condições para integrar o concerto das nações

civilizadas e o Brasil agrário e latinfundiário, preso ao passado colonial a ser superado.

Na construção do espaço da figuração o espaço coletivo teve maior incidência

que o individual, o masculino sobre o feminino, o adulto em relação ao infantil. Mesmo

assim, a presença significativa de crianças, quer acompanhada de adultos, quer sozinhas

ou reunidas em grupo (34%), aponta para uma crescente preocupação com a condição

infantil, já evidenciada na pauta do projeto da Farm Security Administration (FSA), e

ainda hoje presente nas fotografias de documentação social de Sebastião Salgado, por

exemplo.

Outro dado a ser considerado, é a questão da raça. É evidente o interesse da

fotógrafa pela situação do negro no Brasil, tanto que suas fotos não foram bem aceitas

pelas autoridades sediadas na cidade do Rio de Janeiro. “Há muito mais no Brasil que

sacolejos de negros, negros no carnaval, instituições religiosas e bricabraque”, disse o

principal dirigente do comitê carioca do CIAA ao recusar para exposição os trabalhos

da fotógrafa norte-americana.39

É interessante notar que o debate racial no Brasil, nesta época matiza seus

contornos eugenistas pela valorização do nacional-popular e com ele a cultura negra,

principalmente o carnaval. Com certeza nas conversas que Genevieve Naylor travou

com os intelectuais brasileiros, este tema entrou em pauta, conversando com Vinícius de

Morais, por exemplo, este poderia ter argumentado: “Nosso negro é um valor excelente,

e de grande expressão. Não há razão para escondê-lo, criando-se a impressão de que

252
temos um preconceito que não cabe a nossa natureza de povo americano” (A Manhã,

30/4/1942).

As pessoas, seus rostos e corpos estão presentes em praticamente todas as

fotografias de Naylor. Como seu princípio é o da espontaneidade, daí o grande número

de fotos instantâneas, a mise-en-scéne da pose foi completamente definida pela

valorização do movimento. Em 18% das fotos as pessoas posam para a fotógrafa, nas

demais ela as retratou, dançando, caminhando, trabalhando, tocando instrumentos,

divertindo-se, na procissão, exercitando-se, jogando bola, tomando banho de mar,

vivendo, enfim.

A construção da cotidianidade também marcou a variedade da pauta temática,

que associada às opções de enquadramento acima apontadas, possibilitou construir um

quadro do Brasil, que buscava incluir o máximo de aspectos da sua natureza diversa e

contraditória. Do conjunto de fotografias os temas variaram do retrato de Vargas, nas

vitrines das lojas de retratos e nas paredes dos bares populares (três fotos), até as

imagens do dia-a-dia da pequena cidade debruçada no rio São Francisco (47 fotos),

passando pela Princesinha do Mar e seus diversos contornos, do amanhecer com os

pescadores ao entardecer com as garotas ‘chics’ na frente do Copacabana Palace (19

fotos), pelos clubes exclusivos, culminando na apoteose carnavalesca (32 fotos). Sem

deixar de mostrar o trabalho (20 fotos) e a educação (série produzida em uma escola em

Belo Horizonte com 16 fotos), como respostas necessárias à demanda oficial de

imagens.

Os protocolos de visualidade definidos pelo CIAA deveriam ser compartilhados

pelo conjunto de seus representantes, nas suas viagens pelas ‘demais Republicas

Americanas’. Logo depois de retornar de seu tour da Boa Vizinhança, Walt Disney

253
produziu Alô Amigos (1943), um simpático desenho animado, no qual se relatou em

cores variadas e tons fortes, o passeio dos desenhistas na busca da imagem ideal da

América Latina. Para cada país buscou-se um equivalente, um semelhante, para dar

sentido a esta comunidade imaginada que se buscava forjar entre as Américas. Em cada

país, também a alteridade era definida pela estética do pitoresco. As imagens de Disney

perseguem o padrão da dicotomia que diferencia; Nós dos Outros.

Comparando as fotografias produzidas por Genevieve Naylor com este padrão,

evidenciam-se algumas semelhanças, em respeito à diretriz imposta, mas por outro lado,

o que se descobre é um conjunto de imagens que apontam para a certa porosidade dos

processos hegemônicos. Onde se quer a homogeneidade do típico, Naylor traz a

diversidade do que é próprio a cada lugar. Como comentava Anibal Machado: “Nada de

cachoeiras”.

A trajetória das imagens.

Genevieve Naylor retorna aos Estados Unidos em agosto de 1942. Durante os

meses de janeiro e fevereiro de 1943, 50 de suas fotografias sobre o Brasil foram

exibidas na exposição chamada: Faces and a Places in Brazil. A imprensa norte-

americana a anunciou como complemento à exposição Brazil Builds, organizada com as

fotografias de Kidder Smith, ambas viajaram pelos EUA, dentro do marco da

aproximação entre os dois países.

254
Ilustração 35

More about Brazil

“The Museum of Modern Art supplementing its big architectural exhibition, ‘Brazil

Builds’, has installed in a narrow corridor gallery on the ground floor a show about fifty

photographs by Genevieve Naylor, entitled ‘Faces and Places in Brazil’. This excellent

background material for the other show”.

“The camera work is clear, simple, direct and it reveals that Brazil has games and

overcrowded trolleys, beautiful girls and puppet shows, festivals and school free

lunches and that river vessels play an important part in the life of the interior. There are,

furthermore, a number of interesting photographs of façades of buildings along streets

conveying more than an impression of Spanish architectural tradition”.

“Miss Naylor worked in South America for the Coordinator of Inter-American Affairs

from the Autumn of 1940 until last August. The exhibition will continue synchronously

with “Brazil builds” until Feb. 28 – not march 7 as previously announced. Both shows

will extensively circulate thereafter.” (Edward Alden Jewell, New York, NY Times

1/27/43)

255
Os comentários sobre as fotografias de Naylor apontam para a forma de

recepção das imagens por parte do público norte-americano, evidenciando também o

conteúdo de propaganda das imagens veiculadas. Dentre as 50 imagens exibidas a que

foi reproduzida em vários jornais mostrava o bonde de São Januário, em um subúrbio

carioca, completamente lotado, reforçando a comunidade imaginada, entre as cidades

brasileiras e norte-americanas:

“Fares, Please – So you think Pittsburgh street car and buses are crowded? Here is a

street car during the rush hour in Rio, Brazil, another country in which President

Roosevelt stopped on his return from Casablanca. Picture is among an exhibit of 50

photographs on Brazil currently in the New York Museum of Modern Art”. (Sun

Telegraph, Pittsburgh, PA, 1/29/1943)

“Think you are crowded? If you are one of the persons complaining about the over

crowding of street cars and buses, look at this photo of a street car in Rio de Janeiro.

Aptly titled: “Rush Hour”, it is included in an exhibition of 50 photos by Genevieve

Naylor n life and scenes in Brazil at NY MOMA” (Time & News, 2/3/1943)

“Rush Hour: a cozy ride on a streetcar going places in Brazilian Capital.

Passengers jam-jacked into an open trolley in Rio de Janeiro, where they don’t seem to

mind crowding as much as do our DSR riders. This picture is one of 50 photographs by

Genevieve Naylor on exhibit at the NY MOMA.” (Hopkinsville, KY, New Era,

2/5/1943).

Entre 1943 e 1944 as fotografias de Naylor viajaram pelos EUA: Boston,

Rochester, Colorado Springs, São Francisco e por toda a Costa Oeste, traçando um

percurso onde as possibilidades de recepção eram orientadas por comentários como os

de cima. A idéia de uma identificação entre os dois países está na base da doutrina da

256
boa vizinhança. Apesar das diferenças evidenciadas nas imagens, ambos fazem parte da

mesma cultura ocidental, e se os norte-americanos sobreviveram a Grande Depressão,

os brasileiros também conseguiriam se modernizar e integrar-se a comunidade

democrática e liberal.

Na mesma época em que a exposição de Naylor viaja pelos Estados Unidos, o

CIAA elabora seu relatório sobre as atividades no ano de 1943. Em compasso com as

imagens que seguem o seu rumo país adentro, em consonância com as diretrizes de

divulgação da imagem das ‘demais repúblicas americanas’, definidas pelo mesmo

órgão, o relatório radiografa um país cujas potencialidades não podem passar

despercebidas pelo governo dos EUA. Evidencia-se na leitura do relatório a presença

contraditória dos dois Brasis apresentados por Naylor: o crescimento urbano e a

potencialidade dos recursos naturais, em contraste com a estrutura agrária ultrapassada e

obsoleta, aliada a total falta de infra-estrutura para o desenvolvimento industrial.

Não há evidencias explicitas que o CIAA tenha feito uso técnico das fotografias

de Naylor, no entanto, a sintonia entre o aspecto descritivo das imagens e do relatório é

impressionante. Em ambos, cada qual a sua maneira, estão caracterizadas as

contradições que definiam o Brasil de então, apontando para o fato de que além de

representar modos de vida e marcas simbólicas, as fotografias apresentam evidencias

materiais que servem também para a construção de um discurso técnico.

Depois da sua exposição no MoMA de Nova York, as fotografias de Naylor

serviram para compor reportagens sobre as relações interamericanas no período. Uma

delas publicada na ‘Sunday Mirror Magazine Section’, do New York Sunday Mirror,

em 18 de abril de 1943, intitula-se: “The Brotherhood of the Americas”. Nesta

reportagem a foto de Naylor, uma vista do calçadão da Praia de Copacabana, na direção

257
do bairro de Leme, enquadra no primeiro plano caminhando no calçadão um padre de

batina e, logo atrás, uma jovem empurrando um carrinho de bebê, no segundo plano a

curva da praia, com o morro do Leme ao fundo. A foto valoriza a cena com os seus

personagens, pessoas comuns caminhando em Copacabana, num dia ensolarado

qualquer.

Ilustração 36
A legenda da foto esclarece a sua escolha pelo editor da seção: “‘On Pan

American Day we pay honor to the oldest and most successful of sovereign

governments on earth’ – From FDR’s message, April 14, 1942. That success is reflected

in beauty and dignity of Rio’s majestic vista (above). – Photo by Genevieve Naylor, by

permission of Museum of Modern Art”. Logo no início da reportagem, assinada por

Nelson Rockefeller, identificado como o Coordinator of Inter-american Affairs, entre

parênteses, é celebrada a entrada do hemisfério na segunda década da política da Boa-

Vizinhança. Esta é definida como uma prova tangível que nações livres e soberanas

podem trabalhar juntas em prol de uma mesma causa, a proteção da liberdade, da

dignidade e do bem-estar de seu povo, promovendo a paz com justiça e decência. As

palavras de Rockefeller ganham materialidade através da fotografia escolhida: As

258
opções de luz, definição dos claros e escuros, do foco, e da distribuição dos elementos

na foto, valorizam o conjunto da cena, permitindo uma leitura clara e direta da imagem.

Ao mesmo tempo em que, as opções pelo sentido vertical e direcionamento das linhas

de composição da direita para a esquerda, sugerem estabilidade e equilíbrio, na

valorização da cena em conjunto. Reforçando estas idéias a figuração representada pela

religião e pela família, bastiões da decência. Os diferentes usos da fotografia de Naylor

revelam a capacidade polifônica da imagem fotográfica, bem como a estreita relação

entre imagem e o meio no qual ela está sendo veiculada, na definição do sentido

atribuído às imagens.

Não só as imagens de Naylor contribuíram para dar subsídios ao discurso oficial,

mas também a dos demais fotógrafos e documentaristas que atuaram aqui, no período

da Boa Vizinhança, reforçando, com isso, o papel desempenhado pelas imagens técnicas

na produção de sentido social.

Conclusão.

Depois da guerra Naylor passa a trabalhar nas principais revistas de moda norte-

americanas, dentre estas a Harper’s Bazaar, onde tem como mentor Alexy Brodovich.

Aos poucos se especializa na modalidade retrato, tornando-se fotógrafa de celebridades,

dentre as quais, a primeira dama norte-americana, Eleanor Roosevelt. Por toda a sua

vida, Naylor manteve contato com a comunidade artística brasileira em Nova York, e

com as referencias de vocabulário que aprendeu no Brasil. Como relembra Peter

Reznikoff:

“My parents always spoke fondly of Brazil, and even spoke Portuguese to each

other when they didn’t want my brother or I to know what they were saying to each

other. It helped that in late 1950s and into the 1960s when the Bossa Nova movement

259
was begin to take off the US, they hosted a lot of musicians who came here to record

with Stan Getz, etc. They were very good friends with Stan, and in fact introduced Stan

to Luiz Bonfa. Among the other musicians were usual cast of characters: Jobim,

Gilberto[sic] and others”40

Apesar de ter trabalhado durante toda sua vida como fotógrafa, somente nos

anos 1990, graças a um empenho de seu filho Peter Reznikoff, as imagens brasileiras de

Genevieve Naylor, falecida em 1989, aos 74 anos de idade, ganharam notoriedade,

permitindo que tivéssemos acesso a um olhar mais sensível, complexo e sofisticado, no

âmbito da política da boa vontade. Naylor foi capaz de ver para além dos estereótipos e

imagens pasteurizadas da época.

260
Capítulo 11.

O mundo como comunidade imaginada: Diversidade cultural nas representações


fotográficas de Flávio Damm e Sebastião Salgado.

Na concepção do historiador inglês Benedict Anderson (1998), a imprensa

capitalista desempenha um papel fundamental na elaboração da nação como

comunidade imaginada da modernidade. Ampliar essa noção na contemporaneidade

implica necessariamente compreender os elos de ligação entre o local e o global, entre

nação e território.

O mundo como comunidade imaginada é um projeto que, se pensado de forma

dicotômica, tanto pode desembocar numa utopia humanista de corte romântico, quanto

na lógica perversa do capitalismo avançado. Definir o lugar de fala dos sujeitos e a

noção de engajamento social na mídia implica necessariamente superar tal dimensão

dicotômica das análises tradicionais da cultura de massa, e investir na possibilidade da

existência de projetos que busquem dar conta de um mundo complexo e diverso.

Compreende-se, assim, Flávio Damm e Sebastião Salgado como mediadores

entre o mundo dos acontecimentos e o mundo das suas imagens, cujo resultado é uma

síntese original, filtrada pelo saber-fazer do fotógrafo. As fotografias de ambos revelam

uma narrativa da história do mundo contemporâneo, cuja marca central é a da

diversidade cultural.

Entretanto, ao ocupar-se da narrativa histórica constituída pelo fotojornalismo, o

historiador não pode colocar-se como mero espectador dos fatos passados, tomando tais

imagens como janelas que se abrem aos acontecimentos. Ao contrário, há que se

posicionar criticamente em relação às operações conceituais e práticas que envolvem a

produção, circulação, consumo e agenciamento das fotografias pelos sujeitos envolvidos

em tais operações: fotógrafos, editores, jornalistas, público, etc. Enfim, ao tomar tais

261
fotografias como imagens-monumento e imagens-documento, a análise historiográfica

vai de encontro às memórias construídas sobre os acontecimentos, desmontando-as,

desnaturalizando-as, apontando para o seu caráter de construção, comprometimento e

subjetividade.

Fotografia e diversidade cultural, apontamentos para uma reflexão.

Na literatura das Ciências Sociais, no Brasil, a noção de diversidade cultural está

indefectivelmente associada as diferentes abordagens sobre identidade nacional, que

desde os meados do século XIX, vêm pontuando as abordagens sobre a constituição da

cultura brasileira.

As reflexões de Renato Ortiz41 definem na exata medida os marcos que regulam

o debate sobre diversidade cultural no Brasil. Entre as noções de raça, povos, classe, se

desenharam às abordagens do folclore, da mestiçagem, da luta de classes, cada qual a

seu modo abordando a relação do Brasil com seus Outros.

“O tema da cultura brasileira e da identidade nacional é um antigo debate que se

trava no Brasil. [...] Os diferentes autores que têm abordado a questão concordam que

seríamos diferentes de outros povos ou países, sejam europeus ou norte-americanos.

Neste sentido, a crítica que os intelectuais do século XIX faziam à “cópia” das idéias da

metrópole é ainda válida para os anos 1960, quando se busca diagnosticar a existência

de uma cultura alienada, importada dos países centrais. Toda a identidade se define em

relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença. Poderíamos pensar sobre o porquê

desta insistência em buscarmos uma identidade que se contraponha ao estrangeiro.

Creio que a resposta pode ser encontrada no fato de sermos um país do chamado

terceiro mundo,o que significa dizer que a pergunta é uma imposição estrutural que se

262
coloca a partir da posição dominada em que nos encontramos no sistema internacional”

(Ortiz, 1994a, p.7).

Seguindo a lógica do autor em diferentes momentos a noção de mosaico cultural

foi apropriada por diferentes discursos em torno da definição do ser nacional. Assim

para os românticos e folcloristas diversidade cultural foi a base para se projetar uma

identidade nacional plural, fortemente marcada pelo mito do bom selvagem,

incorporado na imaginária indigenista. Desse universo o negro estava excluído pela

marca da escravidão. O pós-abolição e o advento da multidão na cena pública

republicana, redefiniria a discursividade sobre a constituição do “povo” brasileiro, numa

miríade de abordagens nas quais a nem a noção de povo era consenso.

Nas abordagens de esquerda, inspiradas no marxismo mais conservador, a

diversidade cultural seria um recuso ideológico para dissimular o impacto da luta de

classes na formação da consciência trabalhadora. Do lado oposto do espectro político, as

abordagens liberais de corte funcionalista, a diversidade cultural seria uma perspectiva

de se projetar um Brasil cuja harmonia entre as raças criou a ilusão de um país sem

preconceitos, uma verdadeira democracia racial.

A abertura do regime político, nos anos 1980, trouxe para a cena pública novos

movimentos sociais, cuja ação associava-se à política das identidades. Tais movimentos

operavam com a noção de diversidade cultural como uma plataforma de projeção social.

Um princípio que se define, nem de exclusão nem de inclusão social, mas pela

constituição de um sentimento de pertencimento a uma comunidade de sentidos e

práticas. Tal plataforma tem como corolário o estreitamento das relações entre

diversidade e alteridade.

263
Flávio Damm e Sebastião Salgado são fotógrafos de gerações e tendências

distintas, a união de ambos numa mesma análise tem como objetivo valorizar a

variedade do olhar local sobre o global. Essa análise toma a fotografia como uma

expressão visual baseada numa linguagem própria – a linguagem fotográfica. Assim a

fotografia, é resultado de um jogo de expressão e conteúdo que envolve

necessariamente três componentes: o autor, o texto propriamente dito e um leitor. Cada

um destes três elementos integra o resultado final, à medida que todo o produto cultural

envolve um ‘locus’ de produção e um produtor, que manipula técnicas e detêm saberes

específicos à sua atividade; um leitor ou receptor, concebido como um sujeito

transindividual, cujas respostas estão diretamente ligadas às programações sociais de

comportamento do contexto histórico no qual se insere, e por fim um significado

recebido socialmente como válido, resultante do trabalho de investimento de sentido.

Podemos agregar a essa análise a percepção temporal que define a fotografia

como um trabalho de memória. Ao fixar a imagem da experiência humana de diferentes

maneiras as fotografias se tornam substrato material das memórias do contemporâneo.

No mundo do instantâneo e da precariedade, reabilitar a noção do tempo como duração,

permite-se atribuir ao ato fotográfico uma dimensão narrativa.

O mundo como comunidade imaginada em Flávio Damm.

Flávio Damm, gaúcho, nascido em 1928, começa a trabalhar cedo como auxiliar

de laboratório na Revista do Globo, aos 20 anos publica um furo de reportagem. Na

edição do dia 6 de novembro de 1948, da Revista do Globo (Ano XIX, nº 470), em

matéria intitulada “A Longa Viagem de Volta”, com texto assinado pelo repórter

Rubens Vidal, publica as primeiras fotos de Getúlio no seu retorno ao Catete. Essa

reportagem lhe rendeu bons frutos, pois em 1949 ruma para o Rio de Janeiro e

264
conquista um posto de fotógrafo na revista O Cruzeiro, o principal veículo do

fotojornalismo da época no Brasil. Trabalhou na revista por 10 anos e em 1959, ruma

para uma bem sucedida carreira-solo.

Sobre O Cruzeiro, onde trabalhou durante dez anos, suas lembranças são muitas.

Falou tanto da importância desta revista na época, como também da rotina dentro da

redação e da linguagem fotográfica utilizada. Muitas são as reportagens que compõem

os quadros da sua rememoração, estas incluem desde a Coroação da Rainha da

Inglaterra, passando pelas últimas fotografias de Eva Perón, e chegando até o crime do

Sacopã, na zona sul carioca. Cada qual narrada com rigores de explicação técnica,

enfatizando o lado de aventura que envolve o imaginário do trabalho do fotógrafo

contemporâneo.

Após sua saída da revista O Cruzeiro, Damm continuou com pleno fôlego sua

atividade fotográfica. Abriu um estúdio num apartamento que tinha no Flamengo,

fotografou petróleo para a Petrobrás, trabalhou como produtor de serviço gráfico (arte

gráfica), escreveu livros, participou de inúmeras exposições. Além de ter sido um dos

primeiros fotógrafos brasileiros a criar uma agência de fotografia, em 1961, Agência

Jornalística Image ltda.

Amante da fotografia em preto-e-branco e se dizendo avesso à prostituição dos

encantos da imagem digital, diz ter a necessidade de estar sempre fotografando uma vez

que a fotografia é o ar que ele respira. Considerado por seu irmão mais novo como

fotógrafo batedor de carteira em função de sua discrição ao fotografar o que ele chama

de cotidiano surrealista, Flávio Damm defende a idéia de que fotografia é uma arte sim.

Para ele, os grandes mestres da fotografia, como é o caso de Cartier-Bresson, legaram

momentos de arte através da fotografia42.

265
As fotografias que integram esse artigo foram escolhidas pelo fotógrafo, em

resposta a um pedido: “Preciso das fotos com o desenho do seu olhar sobre o mundo lá

fora, o estrangeiro.Pode ser mas recente, mais antiga, escolha assim, das que você tem

digitalizada as que você mais gosta”43

A essa seleção de imagens agreguei as fotografias produzidas no Brasil, com o

intuito de demonstrar um argumento construído no cruzamento das fontes orais e

visuais. Concebo o trabalho de Damm dentro da categoria do fotógrafo - flanner.

Aquela figura benjaminiana que vaga pelas passagens, ruas, das mais largas avenidas as

vias sinuosas, usufruindo a cidade moderna pelo olhar. Sua narrativa visual se constrói

de retalhos de um cotidiano transformado em memória, instantaneamente, pelo ato

fotográfico. Uma captura perfeita em sintonia com a cultura visual que conforma o seu

olhar - o fotojornalismo reelaborado pelo tempo da espera do acontecimento, que não se

faz mais ao sabor da lógica dos fatos publicamente memoráveis, mas na sintonia do

passo a passo de quem caminha pela cidade atento ao que é estranhamente familiar.

A série em tela é composta por 17 fotografias todas elas voltadas para o

cotidiano instantâneo, na qual duração temporal é definida pelas múltiplas existências

do fotógrafo como cidadão, transeunte, pedestre, viajante, turista, enfim um homem

comum. Em Damm tal como em Cartier-Bresson, “o instante advém como kairós –

ocasião e oportunidade, para ele, a configuração fugidia é estabelecida na fração de

segundo de uma correspondência – ela se apresenta em uma lógica temporal que lhe é

própria, em sua ocasião” (LISSOVSKY, mai-ago /1999, p.98).

266
Ilustração 37 Ilustração 38

Ilustração 39 Ilustração 40

Ilustração 41 Ilustração 42

Ilustração 43 Ilustração 44

267
Ilustração 45 Ilustração 46

Ilustração 47 Ilustração 48

Ilustração 49 Ilustração 50 Ilustração 51

Ilustração 52 Ilustração 53

268
A série começa em 1954, duas fotografias da Bahia. Nessa época, ainda atuando

na revista O Cruzeiro, Damm é deslocado para diferentes estados do Brasil,

acompanhando repórteres ou, ele mesmo, encarregado de escrever sobre os assuntos que

fotografa. Leva sempre consigo sua câmera portátil com a qual “fisga”, nacos da

realidade que o circunda. Nas imagens em questão: o trabalho e o namoro.

Na continuação, mais duas fotos dos anos 1950, ambas de Nova Iorque, onde

Damm morou seis meses como correspondente da revista. Em ambas o detalhe recai

sobre a ação infantil. Na primeira, o pretenso chute na cabeça da estátua que parece

sucumbir ao golpe; e na segunda, alheio a pressa da mãe o bebe toma sua mamadeira

calmamente.

Na seqüência uma foto dos anos 1960. Em Brasília, recém inaugurada capital

brasileira, as duas freiras caminhando inscrevem-se na imagem como complemento a

geometria da paisagem – pontos, planos, retas e curvas.

Três fotografias de 1989, em lugares diferentes, Paris, Orlando e Roma. As fotos

na seqüência se orientam pela reação a uma cena pública. Na primeira, meninos da

escola observam o casal que num beijo misturam os corpos; na segunda a menina tapa

os ouvidos aos acordes da banda; na terceira a pose das freiras é, inesperadamente,

desfeita pela entrada da criança na cena. Em cada uma, um novo desfecho ao sabor do

captura do instante.

Dos anos noventa são as três fotos seguintes: duas da Itália e uma de Marrakesh.

Na primeira um indivíduo aproveita o descanso para ler o jornal, deitado numa gôndola,

ancorada no cais. O alinhamento das gôndolas nas fachadas dos prédios a beira do

canal, orientam o leitor das imagens pelas vias sinuosas de Veneza. Na seqüência, em

ambas as imagens, os indivíduos ficam submersos a monumentalidade da edificação.

269
Portas e passagens delineiam os caminhos abertos e interditados ao fotógrafo-flanner,

que ainda sim, não perde a síntese visual pelo estranhamento do olhar: o músico e a

pomba; a mulher de chador e a bicicleta.

Na seqüência das seis fotos produzidas a partir do ano 2000, o espaço ibero-

americano se constrói como um mosaico de fragmentos de um cotidiano dissonante. A

narrativa se constrói no contratempo da imagem: de um lado o olhar surreal congela

cenas inusitadas. Do flagrante surrealista do homem em Lisboa com seu guarda-chuva,

uma imagem da imagem, ao encontro da irreverência carioca: - na foto mendigo posa,

alinhado a pose da manequim; na seguinte, tenta-se vestir a manequim que ganha

inesperadas pernas humanas. O olhar atento perfila no instantâneo o que é

estranhamente comum.

As três demais são narrativas de geração, imagens que se traduzem em cenas,

uma trajetória geracional. O ancião e a criança, cena na qual se encontram as pontas de

uma vida; o casal e os gatos num paralelo de existências; e a seqüência final das noivas,

num cortejo de expectativas projetado pelas ruas da cidade. Em cada uma um detalhe,

uma pista, um indício, nos remete a teia narrativa que tece as múltiplas histórias do

cotidiano.

Inscrevendo-se voluntariamente na tradição bressoniana, Damm, ao colocar na

mesma mira a cabeça o olho e o coração, segue as lições do mestre e transforma-se, ele

mesmo, num caçador de imagens. Na reflexão de Lissovsky tal relação ganha densidade

analítica:

“A mística em torno da fotografia, fez dele o arqueiro-zen: em razão de seu

sentido superior, visa, de olhos fechados, o instante, onde o fortuito encontra seu alvo.

[...] Ao fazer-se de si a isca da imagem, o fotógrafo polariza o espaço. No curto circuito

270
desta entrevisão, a configuração dá-se a ver como suspensão temporal entre dois

equilíbrios que imediatamente antes distinguiam aquele que visa e o que é visado – e

que voltarão, logo após, a restabelecer-se” (Lissovsky, mai –ago / 1999, p.102).

O acontecimento e sua arquitetura é a síntese de uma trama visual. O resultado

da espera do fotógrafo que capturou o encontro fugidio entre o acontecimento a

geometria, “o aparelho fotográfico, diz Cartier-Bresson, é o mestre do instante,

questiona e decide ao mesmo tempo” (idem, p. 96).

Assim, o mundo imaginado pelas fotografias de Damm, tem como protagonista

os anônimos, como ritmo, o cotidiano e como espaço, as cidades. Nesse mundo a

diversidade cultural é o substrato de seu mosaico surreal. Concebida, tanto como

identidade-mundo, como alteridade-mundo, essa diversidade revela-se em relação a sua

experiência de detentor de um certo olhar, que da dimensão local se projeta para o

global. Nessa operação, Damm transforma o mundo na sua aldeia, no seu bairro.

O mundo como comunidade imaginada em Sebastião Salgado.

Sebastião Salgado pode ser incluído na lista dos fotógrafos documentais mais

significativos da atualidade. Seus diversos trabalhos sobre as mais distintas regiões do

mundo, trazem a marca de seu olhar, integrando o local ao global, através de temáticas

que, na contramão da globalização, integra regiões pelo sentimento de desespero,

abandono, tristeza e conflito. A guerra, o trabalho em condições inumanas, os conflitos

sociais, os movimentos entre fronteiras, são o substrato de belas e impactantes imagens

que conseguem mobilizar e indignar. São imagens /agentes de um processo de produção

sentido que se firma em oposição aos discursos oficiais.

Ganhador de vários prêmios internacionais que evidenciam a ampla circulação

de suas imagens, Sebastião Salgado é considerado por muitos, um cidadão do mundo.

271
Nascido, em 1944, na cidade de Aimorés, no interior do estado de Minas Gerais,

Sebastião Salgado faz parte de uma geração de migrantes, que saíram do interior em

busca de melhores condições de trabalho e formação nas cidades que cresciam, nos idos

anos 1950. Em 1969, por conta da perseguição política da ditadura militar, no Brasil,

Sebastião Salgado e sua esposa Lélia, ficam proibidos de voltar ao Brasil, tendo seu

retorno liberado somente nos anos 1980, com a lei da anistia. Ao longo do período de

exílio Salgado trocou a economia pela fotografia, trabalhando em agências de renome

internacional tais como a Sigma, a Gamma e a Magnum, bem como em revistas de

mesma projeção, dentre as quais a Newsweek, da Paris Match e da Stern.

Em vários momentos da sua trajetória Sebastião Salgado é chamado a refletir

sobre o seu fazer fotográfico, e dessas reflexões se depreende a sua forma de pensar

fotograficamente:

“Talvez minha formação de economista tenha me permitido concentrar em uma

área, pensar, analisar, me situar na corrente histórica do que acontecia em determinado

momento, me situar na fotografia, ligar minha foto a esta evolução histórica e viajar aí.

Para mim não existem limites de trabalho porque acho que a grande barreira que existe

para os fotógrafos de reportagem e documentais é intelectual. Se a gente tentar

compreender a sociedade e ligar a fotografia a isto, não há ponto de parada. [...] O

sensacional do trabalho da maioria dos fotógrafos deste gênero é lembrar a quem está

bem e vive bem que existe uma grande parte da população que não vive direito. Não

podemos viver sentados num vulcão ou numa bomba atômica. Ele sabe que a função do

fotógrafo e do escritor é trabalhar como um vetor ligando estes dois lados do problema.

Quatro quintos da população do país vivem mal e têm a necessidade de viver melhor.

Devemos mostrar a problemática a quem decida, a quem é classe dominante, a”. Quem

272
produz toda a riqueza do país, explicando que a única solução para a gente poder viver

junto é dividir um pouco.”44

O depoimento de Salgado revela uma concepção própria do ato fotográfico. Não

há que se montar à pose, evita-se a mise-en-scéne pré-fabricada, no entanto a imagem

não é dada naturalmente, resulta sim de um investimento de trabalho sígnico. Ao olhar a

história, avaliando seu processo, propondo-lhe chaves interpretativas, levantando

questões, posicionando-se como agente de sentido, o fotografo reelabora a linguagem

fotográfica assumindo elementos de textos que a precedem, conseguindo com isso uma

expressividade, perfeitamente entrosada à textualidade da época que se associa como

mensagem significativa. Desta maneira a apreciação e consumo de tais imagens

estabelece-se em função da polifonia da qual é tributária.

Ao buscar com que suas imagens provoquem uma reação, Sebastião Salgado faz

com essas só ganhem um sentido pleno, numa relação dialógica e intersubjetiva entre

diferentes agentes sociais. Em outro depoimento endossa tal perspectiva, ao valorizar a

noção de fenômeno fotográfico:

“A minha visão é uma tentativa de pensar não mais em momentos decisivos,

mas em fenômenos fotográficos, dos quais o fotógrafo participa até chegar ao ápice

deste fenômeno. Aí o fotógrafo realmente conseguiu a fotografia mais forte, podendo

então abandonar o fenômeno e passar para o outro, vivendo os fenômenos e não mais

passar pela tangente”.45

Assim o argumento que construí para ler as fotos de Sebastião Salgado envolve a

noção do fotógrafo-exilado. A experiência do exílio, do desterro, vivida pelo fotógrafo

na sua trajetória o faz mudar de rumo e enveredar por experiências visuais ancoradas

273
numa chave de leitura de matriz marxista, das ciências sociais e econômicas da década

de 1960.

Sua formação fotográfica se processa dentro da cultura visual do fotojornalismo

engajado das “concerned photographs” e fortemente comprometido com a

transformação social e com a produção independente. Paralelamente, Salgado

desenvolve uma abordagem visual das experiências sociais marcada por referencias a

imaginária da arte neoclássica, valorizando a luz, as tonalidades de cinza, o contraste

nuançado entre as zonas de sombra e luz, são opções plásticas inspiradas na iconografia

religiosa, plena de referências bíblicas como a do Êxodo.

A noção de religiosidade que orienta a produção visual de Salgado confunde-se

com as formas de expressão da cultura popular, de diferentes partes do mundo, que

mesmo em situações limites preservam a sua condição humana, aquilo que os faz

pertencer a uma comunidade imaginada global.

A fonte de consulta ideal para se avaliar a produção fotográfica de Salgado e sua

relação com a noção de mundo como comunidade imaginada, segundo a concepção de

diversidade cultural acima exposta é o site oficial do fotógrafo:

http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado/index.htm. Composto por seus projetos

fotográficos e um conjunto de informações e reflexões a respeito do seu trabalho e dos

temas tratados.

A primeira página do site abre-se com uma fotografia, escolhida dentre o

conjunto de imagens que estão no site. Essa imagem varia e, a cada momento que se

abre à página, se depara com uma nova imagem. Nessa página inicial também se pode

escolher o idioma que orientará a leitura. Ao escolher o idioma entramos na abertura da

página, na qual dois projetos são apontados como caminhos para a navegação:

274
Migration: Humanity in Transition, 1993-1999 e The Majority World, three photo

essays, 1977-1992. Ambos os caminhos cobrem a trajetória do fotógrafo desde o seu

início evidenciando a sua preocupação constante em projetar imagens de um mundo em

transformação na virada do milênio.

Os três ensaios que compõem o caminho The Majority World, intitulam-se:

Other Americas – 1977/1984 (19 fotos); Famine in Sahel – 1984/1985 (21 fotos);

Workers – 1986/1992(39 fotos). Juntos perfazem um total de 79 fotografias. A

distribuição geográfica fica definida pelo próprio título, com exceção do terceiro ensaio

que inclui uma gama variada de localidades, inclusive países industrializados.

Os cinco ensaios que compões o caminho Migration: Humanity in Transition,

cobrindo o período entre 1993 e 1999, intitulam-se: Refugees and migrants (20 fotos);

Africa Adrift (17 fotos); Struggling for Land (21 fotos); Mega-cities (17 fotos); The

Children (12 fotos). Juntos os cinco ensaios perfazem um total de 87 fotos. No conjunto

o site possui 166 fotografias de mais de mais de 20 anos de trajetória.

Ao longo desse tempo Sebastião Salgado construiu uma noção de região-mundo

delimitada pela noção de igualdade da condição humana na diversidade das culturas. O

mapa, apresentado no seu site46, fornece a dimensão clara da sua cartografia fotográfica:

o 3º Mundo.

No entanto, o conceito de igualdade em Salgado afasta-se a lógica iluminista, da

igualdade na cena pública, entendida como disputa pelo poder e de acesso ao mundo do

liberalismo ou do neoliberalismo. Ao contrário, fortemente ancorado na tradição de

esquerda engajada nas lutas do Terceiro Mundo, a igualdade que se prega investe no

sentido comunitário das práticas sociais e na capacidade da cultura, na sua diversidade

criativa, buscar caminhos próprios de autonomia.

275
Se o espaço fotográfico se define na delimitação das regiões de conflito, o tempo

das imagens se pluraliza nos tempos da história. Nesse sentido, são esclarecedoras as

reflexões de Mauricio Lissosvky:

“Para Salgado, o instante – a necessidade de seu advento – já está dado de

antemão. A espera do fotógrafo é a contrapartida do amadurecimento do instante. Ele

nutre-se – cresce e aparece – da própria expectação. A composição e o enquadramento

‘clássicos’ de Salgado são parte indissociável deste instante que aguarda pelo fotógrafo.

A evolução da forma não se dá ao acaso; ela amadurece, converge para o akme

(culminância), que a composição expressa. Neste sentido, ‘curva de abordagem’

postulada por Salgado é bastante precisa. Ela assinala uma convergência que é em

última instância, teleológica: a inscrição dos ‘fenômenos fotográficos’ em uma história

sagrada” (Lissovsky, mai-ago /1999, p.98).

O tempo como duração se revela tanto na espera do fotógrafo pelo fenômeno

fotográfico, como pela sua noção de peregrinação. Sebastião Salgado no exílio

construiu uma trajetória que se inscreveu como um projeto de vida, compartilhado com

as comunidades exiladas por diferentes motivos. Entretanto, se o tempo presente

caracteriza-se pela precariedade, o futuro se lança num tempo de expectativa revelado

nas imagens-síntese das crianças. Retratos-link para situações concretas, mas também

símbolos de esperança.

http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado/e1/e_children.html

Duas imagens para concluir.

276
Ilustração 54 Ilustração 55
No mesmo lugar, em tempos diferentes, o olhar atento do fotógrafo flagra cenas

nas quais os protagonistas desempenham os mesmos papéis: a mãe e seu filho. No

entanto, ambas são diametralmente diferentes, mesmo se pensarmos, na gama de

possibilidades interpretativas. Não cabe aqui “desvendar” sentidos ocultos, ou ainda

buscar uma realidade oculta por detrás das imagens. Cabe sim, apontar a capacidade da

imagem fotográfica em narrar histórias e em ser um dos importantes substratos da nossa

memória coletiva. No entanto, nunca é demais lembrar: as imagens não falam por si só é

necessário que as perguntas sejam feitas.

277
Entre os tempos, a título de conclusão precária.

Recentemente a perda de uma tia querida me colocou, mais uma vez diante do

desafio da morte e da perda. Na noite anterior a sua morte, eu desci da última prateleira

da estante do meu quarto, um dos álbuns de fotografia da minha família. A primeira foto

que saltou da página do álbum foi a dela, um retrato onde ela estava sorrindo, tirado há

sete anos atrás. A sua imagem presente na foto, não era mais a imagem que eu tinha das

minhas visitas recentes ao local onde estava internada, tampouco das imagens descritas

por quem a havia visitado nos seus últimos dias, uma imagem sem vida de quem morre

aos poucos.

Em uma das noites, seguintes a sua morte, sonhei com ela, mas não identifico a

situação, somente o rosto que ficou estampado no meu inconsciente. A imagem desse

rosto era a imagem daquela fotografia do álbum. O rosto que se inscreveu na minha

memória, como imagem a ser lembrada foi aquele projetado pela fotografia como

realidade precária, que se atualiza a cada vez que voltamos a olhá-la. A presença na foto

supriu a ausência na morte, mas a falta essa é irremediável.

Uma outra vivência, também familiar, me faz pensar sobre o quão próximo às

fotografias estão das experiências de reconhecimento e pertencimento. Há alguns anos,

voltando da casa de saúde com o meu filho mais jovem, me deparei com a seguinte

cena: sua irmã e seu irmão mais velhos haviam descido os álbuns com as nossas

fotografias. Reconheciam em suas próprias imagens a semelhança do irmão que recém

chegava, ao mesmo tempo em que, garantiam o pertencimento àquela trama de eventos

e experiências que as fotos identificavam como da nossa família. As fotografias deles

próprios quando pequenos, também chegando da casa de saúde, tomando o primeiro

banho, enfim, definindo-se como sujeitos pertencentes a uma comunidade de sentido,

278
permitiu com que eles reconhecessem aquele Outro como igual. Assim as narrativas

visuais criam vínculos poderosos na vida e morte.

Em ambos os casos, a experiência de ver fotografias aponta para as marcas

temporais que operam na sua resignificação. Eu e a fotografia da minha tia: um tempo

passado que se atualiza no momento da minha experiência de ver, ao revê-la me revejo

diferente daquela época, sinto o tempo como duração, o tempo como marca de

diferença. Apesar da potente presença do referente na imagem, ambos os sujeitos não

existem mais, tanto eu quanto ela não existimos mais da mesma forma, na mesma

medida. Meus filhos e o álbum de família: o tempo passado se estende ao presente

como uma continuidade que define o crescimento de ambos. Sua presença no passado

garante a sua permanecia no presente e os projeta como sujeitos na expectativa do vir a

ser futuro.

Como um caleidoscópio, que refaz a sua figura a cada novo movimento, as

marcas temporais redefinem a imagem, possibilitando novas formas de reconhecê-la,

interpretá-la e possuí-la pelos próprios sujeitos do olhar a cada nova experiência de ver.

Assim mesmo sem negar a realidade que a engendrou, a imagem fotográfica se

resiginifica a cada novo tempo e a cada nova forma dela se apropriar o sujeito.

A noção da precariedade do realismo fotográfico foi se definindo na consciência

do sujeito contemporâneo num duplo e contraditório movimento, bem caracterizado por

Vilém Flusser, no trabalho clássico Filosofia da Caixa Preta (2002). De acordo com o

filósofo as imagens são instrumentos de orientação dos homens no mundo, estes ao

assumirem sua consciência histórica, com o desenvolvimento da escrita linear,

sublimaram a capacidade das imagens de serem suportes de imaginação. A luta da

escrita contra a imagem implica na oposição entre consciência histórica e consciência

279
mágica, e na elaboração de uma noção de História, calcada no princípio da

racionalidade. No entanto, a experiência histórica dos sujeitos acaba por imbricarem

ambas as substâncias expressivas e a reservar à fotografia, ou as imagens técnicas de

uma maneira geral, um espaço de possibilidade para se ultrapassar a crise do texto

escrito (Flusser, 2002, p.10-11).

Desde o século XIX, as imagens técnicas permitiram que a sociedade rompesse

com a “textolatria”, no entanto, sua programação cada vez mais controlada, determinou

a própria objetificação do sujeito. A reificação e fetichização das imagens técnicas são o

corolário do processo sujeição do sujeito/ operador ao seu próprio dispositivo, a câmera.

Assim dentro da concepção de Flusser : “o surgimento de uma consciência crítica no

mundo pós-industrial deve estar necessariamente associada ao processo de

desmagicização da imagem, ou ainda, de um retorno a consciência histórica radical”

(Flusser, 2002, p58-59).

Simpatizante da teoria crítica da Escola de Frankfurt, Flusser defende a urgência

de uma filosofia da fotografia que reinscreva o sujeito histórico no seu próprio devir:

“[...] a filosofia da fotografia é necessária porque é reflexão sobre as possibilidades de

viver livremente num mundo programado por aparelhos. Reflexão sobre o significado

que o homem pode dar a sua própria vida, onde tudo é acaso estúpido, rumo à morte

absurda. Assim vejo a tarefa da filosofia da fotografia: apontar o caminho da liberdade”.

Ou quem sabe da utopia, como lugar da possibilidade.

O princípio da magia por oposição a emergência de uma consciência histórica é

também discutida por Nobert Elias, nas suas considerações sobre o tempo (Elias, 1998).

Para o sociólogo alemão as experiências sensórias de duração, distância,

seqüencialização, extensão, profundidade, altura, etc. codificadas em instrumentos de

280
delimitação espaço temporal são resultado de um aprendizado social de longa duração,

ou aquilo que ele denomina de habitus. A resultante desse aprendizado é acrescentar

uma quinta dimensão as quatro existentes na relação espaço temporal. Essa quinta

dimensão é a consciência do aprendizado sobre o tempo como categoria social, bem

como de seus resultados e produtos – conhecimento adquirido sobre a natureza e a

elaboração de equipamentos para o seu controle. Esse processo é denominado por Elias

de processo civilizatório.

O processo civilizatório vai definir o tempo para as sociedades desenvolvidas

segundo três princípios inter-relacionados: o tempo como símbolo, o tempo como

instrumento de orientação e o tempo como controle social. Assim coloca o autor:

“[...] já não é apenas o devir quadridimensional como tal que se torna visível,

mas também, com ele, o caráter simbólico das quatro dimensões, em seu papel de

instrumentos de orientação para os seres humanos capazes de operações de síntese [...].

O tempo, que só era apreendido, no patamar anterior, como uma dimensão do universo

físico, passa a ser apreendido, a partir do momento em que a sociedade se integra como

sujeito do saber no campo da observação, como símbolo de origem humana e, ainda por

cima, sumamente adequado ao seu objeto. O caráter de dimensão universal assumido

pelo tempo é apenas uma figuração simbólica do fato de que tudo o que existe encontra-

se no fluxo incessante dos acontecimentos. O tempo traduz os esforços envidados pelos

homens para se situaram no interior desse fluxo, em que determinam posições, medem

durações de intervalos, velocidades de mudanças, etc.” (Elias, 1998, p.31-32).

Mesmo sem incluir a fotografia como um dos mecanismos de controle do tempo,

creio que as considerações de Elias ajudam a pensar a dinâmica dos tempos que se

inscrevem nas imagens técnicas, como expressões simbólicas de uma experiência

281
civilizatória, como signos que suportam relações sociais. Assim se podem conceber os

tempos de subjetivação na fotografia entre o que captura e o que é capturado, entre as

partes de uma negociação para a realização da pose, entre o sujeito fotografado e o

sujeito fotógrafo. O deslocamento temporal promovido pela compartimentação do

dispositivo fotográfico transfere a espera inscrita na pose para a espera da captura do

instante que definirá o flagrante (Lissovsky 1999,2003). Possibilitando a

transcodificação de ações em cenas e das pessoas em personagens.

A consciência da pluralidade de tempos que orienta a produção fotográfica como

experiência contemporânea, talvez seja o caminho da sua abertura como espaço de

possibilidade e de autonomia do sujeito histórico, em acordo com Flusser. Projetando a

imagem instantânea como uma temporalidade histórica, é possível redimensionar o

impacto do acontecimento na consciência do tempo presente e, paralelamente, indagar

sobre a dimensão simbólica da instantaneidade. Identificar a capacidade evocativa das

fotografias nas suas dimensões de continuidade e de ruptura, própria dos trabalhos de

memória, permite indagar sobre a noção de tempo interior, como dimensão histórica.

Reconhecer a capacidade narrativa da imagem fotográfica, veiculada pela esfera

pública, principalmente, pela imprensa e pelo estado, como agenciadora de uma

memória histórica, permite operar sobre as implicações históricas entre ideologia e

imaginação social. E assim, como queria Elias operar sobre o tempo em relação à

imagem como uma categoria do saber.

A experiência fotográfica se orienta pelo regime de historicidade da

contemporaneidade, marcado pelas noções temporais de ruptura, multiplicidade,

instantaneidade, precariedade, entre outras. Vale, por fim, ressaltar os desafios que a

imagem fotográfica enfrenta hoje, desafiada pelo entesouramento institucional e pelo

282
colecionismo predatório, que transforma a fotografia em relíquia, em fetiche,

remagicizando sua imagem e a lançando no universo do mercado das trocas nada

simbólicas.

Contra mercantilização do passado e sua conseqüente estetização se levantam

atores sociais de diferentes campos do saber e do fazer artístico. Manifestos das

associações de historiadores contra o roubo e a depredação do patrimônio histórico;

subscrições contra a cobrança de somas abusivas para o uso acadêmico de imagens;

somam-se às expressões artísticas, como aquelas de Rosângela Rennó e Cristina Guerra,

sensivelmente tratadas por Anateresa Fabris (2004) em suas identidades virtuais, na

discussão sobre os usos do passado pelo presente, e na urgência de projetar o futuro da

imagem técnica em um horizonte de possibilidades que seja plural e autônomo.

283
Lista de Ilustrações:

Ilustração 1 e 2 - Christiano de Freitas Jr., carte-de-visite, albúmem, c. 1865. Apud.


KOSSOY, B. & CARNEIRO, M. I. T. O Olhar Europeu: o negro na iconografia brasileira
do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994, p.75
Ilustração 3 - Casa Leuzinger, albúmen, 19 x 24 cm, c. 1875. apud. FERREZ, G. A
fotografia no Brasil: 1840-1900. Rio de Janeiro: Funarte, 1985, p. 61.
Ilustração 4 - Marc Ferrez, albúmen, 16 x 22 cm, Rio de Janeiro, c. 1882. Apud.
FERREZ, G. A fotografia no Brasil: 1840-1900. Rio de Janeiro: Funarte, 1985, p. 80.
Ilustração 5 - Terreno da fazenda do Quititi, Casa Leuzinger [Marc Ferrez], 18,6 x
23,8cm, Rio de Janeiro, c. 1875. Apud. FERREZ, G. A fotografia no Brasil: 1840-1900.
Rio de Janeiro: Funarte, 1985, p.67.
Ilustração 6 - Ama-de-leite da família Adolfo Simões Barbosa. Eugênio & Maurício
carte- de-visite, Recife, 1864. Apud. KOSSOY, B. & CARNEIRO, M. I. T. O Olhar
Europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994, p
70.
Ilustração 7- retrato sem identificação. Alberto Henschel, Maurício carte- de-visite,
Recife, s.d. Apud. KOSSOY, B. & CARNEIRO, M. I. T. O Olhar Europeu: o negro na
iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994, p 65.
Ilustração 8 - Vendedora de Frutas, Rodolpho Lindemann, Bahia, cartão postal, c.1900
Ilustração 9 - Ama, Rodolpho Lindemann, Bahia, cartão postal, c.1900.
Ilustração 10 - Retrato Casal, Família Vallim, Cabinet Size, sem identificação do
fotógrafo, c. 1870, Coleção Resgate.
Ilustração 11 - Retrato Casal sem identificação, Militão Augusto Azevedo, Carte-de-
visite, c. 1880, Museu Paulista.
Ilustração 12 - Retrato masculino sem identificação, Militão Augusto Azevedo, Carte-
de-visite, c. 1880, Museu Paulista.
Ilustração 13 - Retrato Masculino, Família Vallim, Carte-de-visite, sem identificação do
fotógrafo, c. 1870, Coleção Resgate.
Ilustração 14 - Creoula, Rodolpho Lindemann, Bahia, cartão postal, c.1900. Apud.
KOSSOY, B. & CARNEIRO, M. I. T. O Olhar Europeu: o negro na iconografia brasileira
do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994, imagem 75.
Ilustração 15 - Retrato Feminino, escravo Alforriada, Firmino & Lins, Pernambuco,
Carte-de-visite, c. 1868. Apud. KOSSOY, B. & CARNEIRO, M. I. T. O Olhar Europeu: o
negro na iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994, imagem 68.
Ilustração 16 - Retrato dupla feminina, fotógrafo não identificado, carte-de-visite, c.
1860. Apud KOSSOY, B. & CARNEIRO, M. I. T. O Olhar Europeu: o negro na
iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994, imagem 67.
Ilustração 17 - Creoulas, Rodolpho Lindemann, Bahia, cartão postal, c.1900.
Ilustração 18 - Verso de carte-de-visite, coleção Resgate.
Ilustração 19- publicidade KODAK.
Ilustração 20 - publicidade Agfa.
Ilustração 21 - retrato, 8x10 cm, fotógrafo amador, cerca de 1920, coleção da autora.
Ilustração 22 retrato, 8x13 cm, Foto Nilo, 1942, coleção da autora.
Ilustração 23- retrato, 18 x 24 cm, fotógrafo profissional não identificado, 1950,
coleção da autora.
Ilustração 24 - retrato, 12 x 18 cm, César Rally photographo, 1923, coleção da autora.
Ilustração 25- retrato, 17 x 22 cm, fotógrafo profissional não identificado, 1939,

284
coleção da autora.
Ilustração 26 -: retrato, 18 x 24 cm, Sacha fotógrafo, 1956, coleção da autora.
Ilustração 27 a 34 – primeira reportagem de Flavio Damm, Revista do Globo, Porto
Alegre, ano XIX, nº 470, 6/11/1948. Capturado no site: http://www.ipct.pucrs.br/cgi-
bin/letras/letras.cgi, em 22/05/2006
Ilustração 35 - chamada para a exposição de Naylor.
Ilustração 36 - imagem publicada no New York Sunday Mirror, em 18 de abril de
1943.
Ilustração 37 – Flavio Damm, Bahia, Xaréo, 1954.
Ilustração 38 – Flavio Damm, Bahia, 1954.
Ilustração 39 – Flavio Damm, Nova Iorque, 1957.
Ilustração 40 – Flavio Damm, Nova Iorque, 1958
Ilustração 41 – Flavio Damm, Brasília, 1962.
Ilustração 42 – Flavio Damm, Paris, 1989.
Ilustração 43 – Flavio Damm, Orlando, 1989.
Ilustração 44 – Flavio Damm, Roma, 1989.
Ilustração 45 – Flavio Damm, Veneza, 1996.
Ilustração 46 – Flavio Damm, Itália, 1998.
Ilustração 47 – Flavio Damm, Marrakesh, 1999.
Ilustração 48 – Flavio Damm, Lisboa, 2000
Ilustração 49 – Flavio Damm, Espanha, 2001.
Ilustração 50 – Flavio Damm, Rio de Janeiro, 2001.
Ilustração 51 – Flavio Damm, Rio de Janeiro, 2002.
Ilustração 52 – Flavio Damm, Portugal, 2002
Ilustração 53 – Flavio Damm, Lisboa, 2004
Ilustração 54 - Flavio Damm, Kennedy Airport, New York City, 1958.
Ilustração 55 – Sebastião Salgado, The passengers from a Tower Air charter flight from
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Foto 063

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Fontes Orais:
Flávio Damm, entrevistas realizadas nos dias 24/04/2003; 15/05/2003 e 7/10/2003,
realizadas no âmbito do projeto CNPq: Através da Imagem: História e memória do
fotojornalismo no Brasil contemporâneo (CNPq 2002-2004), depositadas nos arquivos
do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF.

Fontes Visuais:
Revista do Globo, Porto Alegre, ano XIX, nº 470, 6/11/1948.
Capturado no site: http://www.ipct.pucrs.br/cgi-bin/letras/letras.cgi.
(última consulta em 22/05/2006)

1
Dentre os trabalhos que tratam a fotografia como objeto de análise histórica destacam-se: C.E.
Marcondes de Moura, Retratos quase inocentes, São Paulo, Nobel, 1983; Pedro Vasquez, D. Pedro II e a
fotografia no Brasil, Rio de Janeiro, Index, s/d; Annateresa Fabris, Usos e funções da fotografia no
século XIX, São Paulo, Edusp, 1992; Maria Inês Turazzi, Poses e trejeitos: a fotografia e as exposições
na era do espetáculo (1839-1889), Rio de Janeiro, Funarte/Rocco, 1995.(Ao longo dos dez anos que nos
separam da publicação desse artigo, o perfil das produções brasileiras ampliou bastante, todavia, continua
limitada aos programas de pós-graduação, sem uma linha editorial que a divulgue).
2
Utilizo-me do conceito imagem limitando-o às imagens visuais (bidimensionais e tridimensionais),
excluíndo as imagens oníricas, pensamentos e imagens literárias.
3
Cabe esclarecer que não estou tomando como automática a relação entre as demandas sociais e a
produção historiográfica, tal afirmação seria no mínimo ingênua. O que afirmo é uma relação de
engajamento do conhecimento histórico como prática social, apoiando-me tanto em reflexões de Eric
Hobsbawn, no seu livro Sobre História (São Paulo: Companhia das Letras, 1997 ) e em Frederic
Jameson, na sua feliz tentativa de Periodizar los Sessenta(Córdoba: Alción Editora, 1997). Ambos os
autores defendem a relação dialética entre sujeitos do conhecimento e prática social.
4
Sobre a aplicação dos princípios da micro-história numa pesquisa de dados sobre história do império
brasileiro, ver: MUAZE, Mariana de Aguiar. Império do Retrato: família, riqueza e representação social
no Brasil oitocentista (1840-1889), Tese de doutorado, Niterói: Programa de Pós-Graduação em História
da UFF, 2006.
5
Para um inventário minucioso e bem estruturado das imagens de escravos e ex-escravos ver, Carneiro,
M.L.T. & Kossoy, B. O Olhar Europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX, São Paulo:
Edusp, 1994
6
Referências retiradas dos Jornais do Comércio, Actualidade, Almanack Laemmert, entre outros
periódicos que circulavam na Corte do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX.
7
. A coleção analisada compõe-se de 118 fotografias existentes no arquivo fotográfico do Museu
Histórico Nacional. Em 1998, a equipe do MHN lançou um CD-ROM reunindo o acervo de Gutierrez
que, além da série Rio de Janeiro, é composto pelas fotografias da revolta da armada.
8
. Sobre o fotógrafo francês radicado no interior de São Paulo, ver KOSSOY, Boris. Hercule Florence –
1833: a descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1980.
9
.Ao lado de cada tema a abreviação que foi utilizada na tabela de quantificação a seguir.

290
10
Sobre as imagens esteroscópicas ver: Turazzi, M.I. Poses e Trejeitos na era do espetáculo, Rio de
Janeiro: Rocco/ Funarte, 1995, p.281.
11
A produção paisagística de Ferrez e Malta foram analisadas a partir das fotografias publicadas em
livros e catálogos. A lógica que norteou a montagem do corpus foi a da relação entre paisagem e cidade,
entendendo as fotos publicadas como lugares de memória na acepção que, o historiador francês Pierre
Nora aos lugares onde a memória se torna objeto da história. Publicações consultadas: Ferrez, Gilberto. O
Rio Antigo do fotógrafo Marc Ferrez: paisagens e tipos humanos, 1865-1918. Rio de Janeiro: Ex-Libris,
1985. Vasquez, Pedro. Mestres da Fotografia: coleção Gilberto Ferrez. Rio de Janeiro: Centro Cultural
Banco do Brasil, 1995. Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro. Augusto Malta: catálogo da série
negativo em vidro, Aristógiton Malta. Rio de Janeiro: Secretária de Cultura, dep. Geral de Documentação
e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1994. Santos, Affonso Carlos Marques dos. O Rio de
Janeiro de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Rioarte, 1983.
12
Sobre a construção espacial na expressão fotográfica de Malta ver: Oliveira Júnior, 1994., cap.3
13
Texto resultante da entrevista realizada em junho de 1998, com Mariana Jabour Mauad e Julieta
Mauad, ambas com cerca de 80 anos, que vivenciaram, na mesma época, os ritos da vida católica. Uma
delas, Mariana Jabour, dona da coleção de fotografias analisada por mim em outro trabalho.
14
Segundo Pierre Bourdieu, o conceito de habitus pode ser compreendido como “um conjunto de
esquemas implantados desde a primeira educação familiar, e constantemente repostos e reatualizados ao
longo da trajetória social restante, que demarcam os limites à consciência possível de ser mobilizada
pelos grupos e/ou classes, sendo assim responsáveis, em última instância, pelo campo de sentido que
operam as relações de força”( Micelli, Sérgio. Economia das trocas simbólicas, São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1982,p.XLII). É interessante notar, a adequação do conceito de habitus ao de representação,
para os estudos dos processos de controle da produção de sentido social por parte de grupos/ classes.
Neste sentido, não só a imagem fotográfica, mas também o próprio ato de fotografar, se deixar fotografar
e consumir imagens fotográficas e podem ser considerados importantes integrantes do habitus social.
15
Este parágrafo sintetiza informações sobre comportamentos e lugares freqüentados por frações de
classe dominante que, disputavam a hegemonia cultural, na primeira metade do século XX.
16
Termos utilizados em diferentes momentos, na primeira metade do século XX, para adjetivar a classe
dominante, detentora dos meios técnicos de produção cultural e do capital simbólico a disposição para a
hegemonia de classe.
17
Os anos-chave foram definidos a partir de uma análise rigorosa da totalidade dos anos publicados. Ao
longo dos anos as revistas apresentaram mudanças na linha editorial caracterizada por alguns fatores tais
como: diminuição do texto escrito em relação a foto, ampliação do número de fotos, mudança na
identidade visual da revista, anúncio de inovações técnicas pelo editor, mudanças na equipe de
colaboradores, etc. Enfim mudanças ligadas ao própio veículo, mas também considerou-se anos
importantes em termos de marcos históricos relacionados a história da cidade/país e a história mundial ,
tais como: as grandes guerras mundiais, exposições nacionais e internacionais, reformas urbanas,
eleições, etc. Via de regra o que vigorou foi um entrcruzamento destes dois critérios.
18
A historiogrrafia brasileira sobre o período estudado, não é consensual no que diz respeito a utilização
do conceito de classe burguesa, para este período da história do Brasil. Noções como camadas médias
urbanas, classes médias, frações dominadas da classe dominante, são correlativos para a noção de
burguesia urbana tal como a utilizamos aqui. A opção pelo conceito de burguesia urbana, deveu-se
principalmente ao objetivo central do estudo, qual seja: avaliar como, dentro do contexto de inserção do
Brasil na lógica do capitalismo internacional, os costumes e comportamentos no espaço das cidades,
notadamente na Capital, transformaram-se. Tal transformação tomou como referência os códigos de
comportamento dos paises do hemisfério norte, primeiro a França e a Inglaterra e, depois da 2ª G.G, os
EUA, estes, sem dúvida alguma, pautados em valores e normas burgueses. Não cabe aqui discutir a base
econômica da classe dominante brasileira do período eminentemente agrária, mas, absenteísta por
natureza e cosmopolita por verniz.
19
“Técnicas do beijo”, reportagem publicada, com fotos de artistas se beijando, pela revista O
CRUZEIRO, em 1934.
20
Estúdio cinematográfico responsável por uma significativa produção de filmes nacionais, pautados na
estética, norte-americana, durante as décadas de 1940 e 1950.
21
Sobre os conceitos de projeto, campo de possibilidades e trajetória que nortearam a elaboração das
entrevistas de história de vida ver: VELHO, 1994.
22
Sobre o conceito de mediação ver: WILLIANS, 1979 e MARTIN-BARBERO, 1997.

291
23
Para uma avaliação do fotojornalismo no mundo contemporâneo ver: SOUSA, 2000. FREUND, 1989.
24
Sobre a Doutrina do Destino manifesto e a política moral norte-americana: DONOGHUE, D. et.alli. 1993
25
Ver a documentação sobre as exposições e atividades do MOMA no Archives of American Art, seleção
de clippings, microfilme números AAA5069; AAA 5056; AAA 5093; AAA 5066.
26
Concerned Photographs é o termo que designa a produção de imagens fotojornalísticas, com forte apelo
social, a partir dos anos 1930, com a criação das agências fotográficas, compostas por fotógrafos
independentes, dentre as mais famosas do século XX, está a Dephot, criada por Eric Solomom em 1930 a
Magnum, criada por Roberty Capa, em 1947. Para uma informação resumida acesse:
http://www.comciencia.br/reportagens/memoria/12.shtml.
27
A reprodução do documento pode ser encontrada no livro publicado por Robert Levine com a
colaboração de seu filho Peter Reznikoff. LEVINE, 1998.
28
Carta, Genevieve Naylor para a sua Cynthia, Rio de Janeiro, c. Dezembro 1941, cortesia Cynthia
Gillipsie, Apud. Levine, Op.cit. p.2.
29
Suas imagens estão arquivadas no National Archives.
30
DIP, Divisão de Turismo, “Assuntos que devem ser fotografados no Rio de Janeiro”, c. 1941 cortesia
de Peter Reznikoff.
31
Anibal Machado, texto datilografado, encontrado no entre os papéis de Genevieve Naylor, de posse do
seu filho Peter Reznikoff.
32
Sobre a relação entre imagem cinematográfica e política da boa-vizinhança ver: WOLL, Allen L. The
Latin Image in American Films, revised edition, Los Angeles: UCLA Latin American Center
Publications, 1980; Lopez, Ana M. “Are all Latins from Manhattan? Hollywood, ethnography and
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de doutorado, Binghamton University, State University of New York, 2002; FREIRE-MEDEIROS, Bianca.
“Diplomacia em celulóide: Walt Disney e a política de Boa Vizinhança”, IN: Transit Circle: Revista
Brasileira de Estudos Americanos, Rio de Janeiro: ABEA/Contra-Capa, Vol.3, Nova Série, 2004, pp.60-
79.
33
The Library of the Congress Serial Record, mar 24, 1944 (copy Govt. Source).
34
O sentido de compartilhamento de valores culturais estaria na raiz dos movimentos nacionalistas
oitocentistas, segundo o autor. Apesar de efetivamente a idéia de inter-americanidade não coadunar com
as propostas nacionalistas do contexto da política da boa-vizinhança, o investimento simbólico apontado
garantiria ao menos a possibilidade de um patamar cultural comum, a partir do qual as trocas políticas se
efetivariam.
35
Catálogo da exposição Genevieve Naylor, Faces and Places in Brazil, Pinacoteca, novembro, 1994,
p.12
36
Carta de Genevieve Naylor para Cynthia Gillipsie, RJ, n.d., sob a guarda Peter Reznikoff.
37
Trecho retirado do Folder da exposição Cenas do Brasil. Gazzola, Ana Lucia, O Olhar de uma Boa
Vizinha: As fotos brasileiras de GN Folheto da Exposição: Cenas do Brasil, Genevie Naylor, fotografias.
38
No National Archives existe uma coleção Nelson Rockefeller, além do material visual que foi
produzido pelo CIAA, dentre estes: propaganda, material fílmico e cartazes resultantes de um concurso
realizado em 1940 que envolveu vários concorrentes da América latina. Sobre este material ver em
Archives of American Art, microfilmes contendo os clippings no MOMA, além dos próprios arquivos do
orgão no National Archives.
39
Memorando da Divisão Brasileira do CIAA para Francis Alstock, Rio de Janeiro, 11.8.1942, Arquivos
CIAA, National Archives, Washington, citado em MENDONÇA, 1999, p.89.
40
Entrevista por e-mail em 5/01/2004
41
A obra do autor é vasta, destaco os trabalhos cuja coerência inspriraram minha abordagem: ORTIZ,
Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas, São Paulo: Olho d’água, 1992; ORTIZ, Renato.
Cultura Brasileira e identidade Nacional, São Paulo: Brasiliense, 5ª ed.,1994. ORTIZ, Renato. A Moderna

292
Tradição Brasileira, São Paulo: Brasiliense, 1988. ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura, São Paulo:
Brasiliense, 1994.
42
Esboço biográfico traçado a partir de três entrevistas realizadas com o fotógrafo ao longo de 2003
(24/04/2003; 15/05/2003 e 7/10/2003), todas depositadas no LABHOI/UFF.
43
Correspondência por e-mail em 12/10/2206
44 Salgado, Sebastião. “O fotógrafo militante: Sebastião Salgado delineia auto-retrato em conferência na

Bienal de Fotografia de Curitiba”, matéria publicada no suplemento Idéias /Livros, do Jornal do Brasil,
em 21 de setembro de 1996, p.4.Sobre a biografia de Salgado ver também:
http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado/p1/p_project_fs.html
45
Entrevista a Joaquim Paiva, apud. LISSOVSKY, Mauricio. “O Refúgio do tempo no tempo do
instantâneo”. In: Lugar Comum (Rio de Janeiro) (8), 89-109, mai-ago/1999, p.98.
46
http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado/images/maps/map01.jpg

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