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A

gosto de 1989: Salvador e algumas gran-

des cidades brasileiras estão em pé de

guerra. Motivo: a florescente e rica Igreja Uni-

versal do Reino de Deus organiza, em várias

localidades, cultos, pregações em praças públi-

cas e até passeatas, para denunciar horripilan-

te barbaridade – “o Candomblé mata crianças

para oferecer a Exu”. Ao som de ruidoso trio elé-

trico, com faixas denunciando os sacrifícios

humanos e excomungando os “adoradores do

Diabo” das religiões afro-brasileiras, mais de

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LUIZ MOTT

DEDO DE ANJO E
OSSO DE DEFUNTO
Os restos mortais na
feitiçaria afro-luso-brasileira

LUIZ MOTT é
professor de
Antropologia na
Universidade Federal
da Bahia e autor de,
entre outros, O Sexo
Proibido (1989).

Este artigo foi publicado origi-


nalmente no D. O. Leitura de
8/11/89.

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quatro mil “crentes” dirigiram-se do Campo explicar a inexistência então de registros de
Grande à praça Castro Alves, no centro da infanticídios rituais, vindo os mesmos a ocorrer
capital baiana, protestando contra tais rituais somente em nossos dias, quando tais atos pro-
satânicos. A resposta da comunidade dos vocariam violenta reação popular e policial?
cultos afro-brasileiros não tardou: várias as- Se a documentação histórica do século
sociações negras organizaram uma passeata XVI ao XIX não registra nenhum episódio de
de protesto contra a intolerância religiosa, sacrifício ritual de crianças no Brasil, por outro
percorrendo o mesmo trajeto, em que denun- lado encontramos na Torre do Tombo uma
ciavam, também do alto de um trio elétrico, dezena de denúncias contra “feiticeiros” e
as calúnias divulgadas pelas “seitas subven- “calunduzeiros” de ambos os sexos, que uti-
cionadas por grupos norte-americanos”, lem- lizariam em seus “patuás” ou “malefícios”
brando que na década passada, na praia de diferentes tipos de restos mortais de seres
Ipatinga, próximo a Salvador, um grupo de humanos, ou, então, objetos funerários sub-
evangélicos foi preso pela polícia exatamen- traídos de sepulturas ou cemitérios. É portan-
te por ter sacrificado oito crianças, que dizi- to sobre tais práticas macabras que nos ocu-
am estar com o demônio no corpo, episódio paremos aqui, mostrando com evidências
que ficou conhecido como “Caso Matota e históricas inquestionáveis que não fazia par-
Marata” (1). te da tradição ritual afro-brasileira sacrificar
Sacrifícios humanos fizeram parte inte- crianças ou adultos como parte de seus ritu-
grante de inúmeras religiões antigas – inclu- ais, e que mesmo a utilização de restos mor-
sive do Judaísmo, conforme podemos ler no tais de seres humanos não se trata de “barba-
Gênesis, onde o próprio Javé pede ao Patriar- rismo” de origem africana, mas procede de
ca Abraão que imole seu filho primogênito, antigas tradições européias divulgadas no
que é salvo no último instante por um anjo Novo Mundo pelos colonizadores brancos.
celestial (2). No Novo Mundo, quer entre os
nativos da costa oeste dos Estados Unidos, •••
quer nas civilizações asteca e incaica, os sa-
crifícios humanos faziam parte crucial dos Num auto-de-fé realizado pela Inquisição
ritos propiciatórios, e mesmo a antropofagia de Logronho, Espanha, no ano do Senhor de
dos índios brasileiros pode ser interpretada 1610, de 53 penitenciados, 18 eram feiticei-
como um ritual pararreligioso, posto impli- ros, e na relação das coisas e maldades que
carem complexa concepção simbólica relati- declararam ter cometido na Seita dos Bruxos,
vamente à força e valentia dos inimigos que, informaram que o diabolista Miguel de
“comungados”, passavam a fazer parte dos Goyburn e algumas bruxas mais velhas cos-
comensais. tumavam fazer ao Demônio uma oferenda que
Consultando abundante e inédita docu- lhe era muito grata:
mentação relativa aos brasileiros e colonos
no Brasil, denunciados à Inquisição de Lis- “para isso, iam à noite às igrejas e desenterra-
boa pela prática de feitiçarias, não encontra- vam os corpos dos defuntos que já estavam
mos nenhuma vez sequer a notícia de sacrifí- gastos, e deles tiravam os ossos das articula-
cios humanos como ritual propiciatório, num ções dos pés, as cartilagens dos narizes e todos
período no qual a violência dos senhores con- aqueles ossinhos que existem ao redor e os
1 “Olodum Acusa Pastor de tra os escravos e dos brancos contra os índios miolos hediondos, e estas partes dos corpos
Ser Novo Jim Jones”, in A
Tarde, Salvador, 19/8/ era protegida por lei, registrando a história dos defuntos recolhiam-nas em cestos e ofere-
1989.
casos de cativos que foram açoitados até a ciam ao Diabo, adorando-o de joelhos. E o
2 Gênesis, cap. 22.
morte (3), em que a infância era tão pouco Demônio mostrava-se muito contente, esten-
3 Luiz Mott, A Inquisição em
Sergipe, Aracaju, Fundesc, respeitada e estimada que em meados do sé- dendo a mão comia os ossos e os miolos e
1989.
culo XIX a Câmara Municipal de Salvador se repartia-os entre os bruxos presentes [...]” (4).
4 Feiticeiros, Profetas e Vi- via obrigada a prever altas multas às mães
sionários, seleção de
Yvonne Cunha Rego, Lis- que abandonassem seus filhinhos recém-nas- Pelo visto, não eram apenas Lúcifer e os
boa, Imprensa Nacional,
1981, pp. 48-9. cidos nas encruzilhadas das estradas – como demonolatras que encontravam nos ossos dos

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falecidos força e inspiração para seus rituais. aos soluços e conversando longamente com
A utilização sobretudo de caveiras humanas as almas, certa vez desenterrou da tumba a
como elemento místico – ou decorativo – está canela de um defunto e, com esse osso na
associada à vida de inúmeros santos e santas boca, percorreu o claustro em procissão numa
do hagiológio católico medieval: diversas sexta-feira santa: a canela ainda estava fétida
estampas de São Jerônimo, São Francisco de e asquerosa, impregnando fortemente a boca
Assis, Santa Catarina de Sena, Santa Marga- e o rosto da pobre religiosa, que ficou sali-
rida de Cortona, Santa Maria Madalena, en- vando durante oito dias sem parar devido ao
tre inúmeros outros beatos, sempre mostram fedor (5).
uma caveirinha, quer na mão, quer nos pés, Foi contudo nos rituais cabalísticos e de
quer por sobre a mesa, ao lado desses santos. feitiçaria que encontramos maiores referên-
No Brasil colonial, repetindo a tradição euro- cias sobre a utilização de restos mortais no
péia, diversos foram os oradores sacros que Brasil antigo. Nossos exemplos, encontrados
carregavam sempre, no púlpito, uma caveira nos arquivos inquisitoriais, referem-se sobre-
humana, ficando célebre na Bahia um episó- tudo à capitania de Minas Gerais, e revelam-
dio ocorrido na Igreja do Mosteiro de São nos detalhes dessas práticas macabras que vão
Bento, em que o pregador, irritado com a desde sua obtenção clandestina nas sepultu-
desatenção dos fiéis às suas práticas, jogou ras dentro dos templos até sua manipulação
do púlpito a dita caveira, que milagrosamen- com outros elementos cabalísticos na com-
te foi cair direitinho no colo de duas raparigas posição dos recheios das famigeradas “bol-
conhecidas por seus maus costumes. sas de mandinga” e “patuás”, tão comuns na
Mais comuns na América Espanhola, piedade popular de antanho, e que por sua
embora também existentes no Brasil, foram causa inúmeros brasileiros tiveram seus no-
as “capelas dos ossos”, geralmente nas crip- mes denunciados junto ao Tribunal do Santo
tas ou cemitérios dentro das igrejas das or- Ofício, alguns inclusive sendo presos e reme-
dens terceiras, cuja decoração das paredes era tidos para Lisboa exatamente pela culpa de
feita com os crânios e fêmures dos irmãos sua utilização.
falecidos, que depois de raspados dos restos Em 1760, chegava a denúncia à Inquisição
de carne eram empilhados artisticamente. Via de que na vila de Itaubira, Minas Gerais, a
de regra, todo convento, recolhimento e mos- negra Angela Maria Gomes, da nação
teiro tinham sempre à vista dos religiosos e Courana, forra, enfamada de ser “mestre fei-
religiosas um ou mais crânios, servindo como ticeira”, foi surpreendida com outras mulhe-
lembrança constante da efemeridade da vida res “desenterrando um defunto no adro da
terrena e da certeza da morte, muitas vezes Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem”,
estando gravada, quer nas paredes conventuais, utilizando, além dos restos mortais, morcego
quer nas entradas dos necrotérios, a lembran- e bode na confecção de seus feitiços, reunin-
ça: “Memento homo quia pulvis es et in pulvere do muita gente em sua casa, para os batuques
reverteris”. Nos conventos carmelitas a ca- que se realizavam todas as terças e sextas-
veira ficava em cima da mesa do refeitório feiras, religiosamente (6).
bem ao lado do prato da priora: “Memento Desenterrar os restos mortais de defuntos
mori!” (“Lembrai-vos da morte!”). era um dos expedientes de que os
Outro episódio registrado na história sa- “calunduzeiros” lançavam mão para obter a
cra da Bahia colonial revela o quanto os ossos matéria-prima de seus malefícios. Outros
humanos foram utilizados pela mística cató- obtinham-na de procedência diversa: o es-
5 Jabotão, Frei Antonio de
lica nos tempos coevos: a maior “santa” cravo José Francisco Pereira, 25 anos, natu- Santa Maria, Novo Orbe
Seráfico Brasílico, Rio de
baiana, soror Vitória da Encarnação, a mais ral de Costa de Judá, disse que foi em Janeiro, Tipografia Brasilei-
ra, 1859, p. 706.
famosa e virtuosa religiosa do Convento do Pernambuco que o feiticeiro Zamita lhe “fez
6 Arquivo Nacional da Torre
Desterro, nascida em 1661, dentre as muitas a cabeça”, e que para a confecção de patuás do Tombo, Inquisição de
Lisboa, Caderno do Promo-
penitências que costumava praticar, além de usava sempre pedacinhos da mão de uma tor no 125, Itaubira, 1760
passar noites inteiras por sobre os túmulos do criança, que encontrara morta dentro de uma (doravante abreviado:
ANTT, IL, Caderno do Pro-
claustro de seu mosteiro, rezando, chorando panela, numa praia deserta, deixando-a então motor).

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secar ao sol e dela extraindo migalhas para contra supostas feiticeiras têm origem “bran-
compor suas bolsas de mandinga (7). Por sua ca” e não “negra”, embora também as gentes
vez, a mulher (branca) de Cristóvão Ferreira de cor tivessem adotado não apenas a religião
Freire, tendeiro de molhados na capitania da como também as superstições e práticas dia-
Paraíba, 1768, conseguiu em sua própria casa bólicas dos donos do poder.
o material humano necessário para seus feiti- Obtidos os restos mortais, seja de adultos,
ços: ao abortar uma sua escrava, “rasgara o seja de “anjinhos”, sua utilização variava de
ventre da criança morta e lhe tirara as tripas acordo com a crença do freguês. No Rio de
para as secar e fazer malefícios” (8). Se con- Janeiro, em 1783, Luíza Maria Angélica,
tou ou não com o beneplácito da dita negra, a parda, solteira, tida como meretriz, dançarina
documentação não informa. Curioso ter con- e representante de teatro público – currículo
servado tão-somente as tripas do negrinho, dos mais invejáveis, convenhamos! –, era vista
pois outras pessoas foram acusadas de usar o em noites de lua detrás da rua de São José,
corpo inteiro para suas mandingas: Rosa onde morava, com duas caveiras na mão,
Egipcíaca, então escrava da progenitora do enquanto fazia suas orações (14). Freiras,
literato frei Santa Rita Durão, antes de tornar- frades e confrades das ordens terceiras tam-
se a fundadora do Recolhimento do Parto no bém usavam caveiras, à imitação dos santos,
Rio de Janeiro, foi acusada pelo padre Vicente para criar clima favorável às suas meditações
Ferreira de “ser fina feiticeira e por isto viera e preces; uma meretriz dançarina, com duas
corrida das Minas Gerais, por se lhe ter acha- caveiras na mão, altas horas da noite, sugeria
do o corpo seco de uma criança” (9). Outras mais uma orgia cadavérica do que exercício
feiticeiras são acusadas na mesma capitania espiritual, daí ser denunciada como suspeita
de possuírem escondido corpo inteiro de de pacto diabólico. A mesma suspeita recaiu
criancinhas: Florência do Bonsucesso “tem sobre outra mulher parda, Feliciana de Oli-
uma criança mirrada da qual tira carne seca e veira, moradora no bispado de Mariana, que
7 Luiz Mott, “A Vida Mística
e Erótica do Escravo José reduz a pó para com ela fazer suas feitiçarias” em 1775 foi acusada de todas as sextas-feiras
Francisco Pereira, 1705-
1736”, in Revista Tempo (10), e o negro Mateus, “que trazia consigo ter o costume de atar sua escrava crioula Maria
Brasileiro, vol. 92/93, janei-
ro/junho de 1988, pp. 85-
uma criança mirrada que tinha embruxado com uma fita verde, desenhando uma cruz no
104. metida em um surrão” (11). chão da varanda, introduzindo dois ossos de
8 Idem, “A Inquisição na Não só as tripas e mãozinhas de crianças defunto na boca da escrava, mandando-a pôr
Paraíba”, in Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfi- eram consideradas matéria-prima valiosa na o pé por sobre a cruz enquanto recitava as
co Paraibano.
elaboração de bruxarias: na Fazenda de Ta- seguintes palavras malsoantes: “Joaquim,
9 Idem, “Uma Santa Africana
no Brasil Colonial”, in D. O. bacos, na freguesia de São Felipe, no Joaquim, largue sua mulher e filhos por
Leitura, São Paulo, no 6, 62,
julho de 1987, p. 4.
Recôncavo Baiano, a preta Tereza, “tida, mim...” (15). Novamente aqui, embora o ges-
10 Francisco Vidal Luna, “A
havida, reputada e temida por feiticeira”, foi to seja o mesmo da maior santa baiana, soror
Vida Quotidiana em Julga- acusada de ter provocado, através de suas Vitória da Encarnação, o ritual e os objetivos
mento: Devassas em Minas
Gerais”, in Minas Colonial: maldades, a morte de um crioulinho de quin- são notoriamente opostos e destinados a fins
Economia e Sociedade,
São Paulo, Fipe-Pioneira, ze dias – e como prova de sua maldade, ates- profanos, senão demoníacos, quando menos
1982, p. 83.
taram os denunciantes terem encontrado de- supersticiosos.
11 Laura de Mello e Souza, O
Diabo na Terra de Santa baixo da cama da feiticeira o umbigo seco e Na mesma Mariana, 1774, outra parda,
Cruz, São Paulo, Compa-
nhia das Letras, 1986, p.
o cinteiro do infeliz “anjinho”, embora mes- Albina Maria, dizia que sua senhora, Josefa
204. mo sendo torturada a temida feiticeira negas- Maria Soares, tinha guardado em casa duas
12 ANTT, IL, Caderno do Pro- se qualquer interferência na dita morte (12). caveiras: uma enterrada na porta de sua mo-
motor no 129, Bahia, 1778.
Aliás, como muito bem lembra Laura de Mello radia para proteger a família e afastar os maus
13 Souza, op. cit., p. 201.
e Souza, citando diversos autores e documen- agouros, e outra conservada escondida den-
14 ANTT, IL, Caderno do Pro-
motor no 130, Rio de Janei- tos também localizados na Torre do Tombo, tro de casa, da qual retirava de quando em
ro, 1783.
“na Europa, uma das crenças mais generali- quando alguns ossinhos, que, triturados até
15 ANTT, IL, Caderno do Pro- zadas, no que dizia respeito às bruxas, era sua
motor n o 129, Mariana,
tornarem-se pó, eram depois misturados às
1775. atuação como assassinas de crianças” (13), o comidas daqueles a quem desejava enfeiti-
16 ANTT, IL, Caderno do Pro- que reforça nossa afirmação inicial de que çar, seja para conseguir-lhes o amor, serviços
motor n o 129, Mariana,
1774. algumas cerimônias macabras e preconceitos sexuais ou causar-lhes malefícios (16).

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No mesmo bispado, na vila de São Miguel, valorizados por quantos acreditassem no po-
no ano de 1782, é a vez de serem denunciados der das bruxarias e malefícios. Valorização
os mulatos Joaquim e Clemência, escravos, importada também esta da Europa: conforme
aos quais se atribuía a feitura de feitiços com ensinou nosso já conhecido bruxo espanhol
saliva, cabelo, unhas e outras substâncias de Logronho, quando sua seita ia desenterrar
cabalísticas, “temperando-os com pós, unhas os mortos no escuro das igrejas, “a luz que
e carnes de defuntos que iam tirar nas sepul- levam é uma acha feita do braço esquerdo
turas das igrejas, e metiam aqueles feitiços na inteiro de uma criança que tenha morrido sem
casca de um caramujo, e, quando queriam ter sido batizada e acendem-no pela parte dos
que a pessoa padecesse, mudavam os dedos, e dá luz como se fora um tocha”. Essa
caramujos de um lugar para o outro”, espe- curiosa superstição, segundo ensina Michael
tando-os com alfinetes e agulhas, para atingir Kunze, teve ampla divulgação por toda a
com igual dor a seus inimigos (17). Europa, notadamente na Baviera, onde en-
Até agora tais exemplos, com exceção da controu a crendice da “vela de ladrão”, isto é,
senhora branca de Mariana, utilizaram-se de a utilização de dedinhos de crianças, de pre-
restos mortais quer como parafernália de ri- ferência pagãs, quer como ingrediente nas
tos mágicos, quer como reforço em poções bruxarias, quer como tocha de iluminação.
mágicas, sempre exteriores porém aos agen- Segundo este autor, tais práticas seriam oriun-
tes ou vítimas. Temos evidências, contudo, das ainda dos tempos do paganismo (20).
da utilização de partes cadavéricas como in- Alguns dos feiticeiros e calunduzeiras do
grediente de certos malefícios que se destina- Brasil colonial aqui já citados referiram-se à
vam a penetrar no corpo da pessoa a quem se utilização de mãos ou dedos de crianças como
pretendia atingir: na vila de Santos, capitania ingrediente principal de seus malefícios. Por
de São Paulo, 1776, o negro Filipe, escravo que a fixação particular nessas partes, não
possesso pelo Demônio, só se acalmava de encontramos explicação. Talvez pela facili-
suas diabruras quando o exorcista aplicava- dade em sua remoção do corpo, quer ao ser
lhe os preceitos do Ritual Romano, sendo sepultado, quer quando desenterrado furtiva-
acusado junto ao comissário do Santo Ofício mente do adro das igrejas, ou do campo san-
de sua freguesia de ter usado dente de jacaré to. Lembramo-nos aqui da extração piedosa
e pó de defunto na preparação de uma potagem de uma relíquia do mais venerado santinho
que dera a seu senhor, provocando-lhe insu- do Rio de Janeiro, falecido em 1747, frei
portáveis dores nas cadeiras e barriga – cuja Fabiano de Cristo, franciscano do Convento
finalidade, segundo depois confessou o de Santo Antonio, no Alto do Largo da Cari-
energúmeno, era secar as tripas do enfeitiça- oca. Numerosa turba acorreu a dar o último
do. Ao revistarem uma bolsa do cativo, nela adeus ao santo fradinho, e não satisfeitos os
17 ANTT, IL, Caderno do Pro-
motor no 130, São Miguel,
encontraram um dedo de criança, unhas e um fiéis em cortarem pedacinhos de seu hábito,
1782. osso de defunto (18). cordão, fios de cabelo, um devoto mais afoito
18 ANTT, IL, Caderno do Pro- Também dentro de um saquinho de pano e sequioso de relíquia mais substantiva cor-
motor no 129, Santos, 1776.
do preto forro Matias Gonçalves Guizando, tou um dedo do pé de frei Fabiano, proeza
19 ANTT, IL, Processo n o
14.649, reprodução foto- alfaiate morador em Recife, preso nas ca- realizada sem que frade algum do velório
gráfica dos desenhos des-
te mandingueiro foi
deias da Câmara local em 1806 – nos tivesse prestado atenção (21).
publicada na revista Reli- extertores da existência do Terribilem Hoje em dia, ao menos na Bahia, perma-
gião e Sociedade, no 12 (Rio
de Janeiro, 1985). Tribunalem da Inquisição –, encontraram- nece entre a população a crença de que dedo
20 Michael Kunze, A Caminho se, além de cinco orações proibidas e vários de anjinho constitui elemento privilegiado
da Fogueira, Rio de Janei-
ro, Campos, 1989, pp. 179- desenhos representando diabos e símbolos para dar sorte e fortuna a quantos dele se uti-
82. Agradeço a indicação
desta referência à ilustre cabalísticos, nada menos que dez pedaços lizem. Entrevistando algumas pessoas, entre
folclorista e amiga Zita
Tavares de Lima. de ossos de um crânio humano, destinados a negros e brancos de diferentes classes sociais
21 José Vieira Fazenda,
compor os malefícios que costumeiramente e variegada idade, todos confirmaram a in-
“Antiqualhas e Memórias
do Rio de Janeiro”, in Re-
lhe encomendavam (19). formação de que o povo diz que “dedo de
vista do Instituto Histórico Crânios, ossos, sobretudo mãozinhas e anjo dá sorte”, sobretudo na venda de acarajés.
e Geográfico Brasileiro, no
143, 1921. dedos de crianças, eram os restos mortais mais Suspeitam muitos que as baianas que têm seus

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tabuleiros muito freqüentados por numerosa mais eficaz para manter seu homem preso a si
clientela ou usaram um dedinho de criança do que pregar uma linha em sua roupa, costu-
para mexer suas panelas de quitutes, ou têm- rada com agulha que tivesse amortalhado um
no escondido debaixo da toalha, num canto defunto (23). Crença espalhada por todo o
oculto do tabuleiro. Contaram-me ainda que território colonial, e documentada desde o
na cidade de Amargosa, no agreste baiano, século XVII, tanto que em Porto Calvo, capi-
anos atrás, num concorrido “caruru” ofereci- tania de Pernambuco, o pardo Antão de Escó-
do por tradicional terreiro de Candomblé, um cia fora preso, em 1682, exatamente por ter
comensal encontrou dentro de seu prato nada entre seus pertences, além de orações proibi-
mais nada menos que um dedinho de criança das e uma lasquinha de pedra dara, também
– se branco ou preto, não me souberam dizer. “uma agulha que amortalhou defuntos” (24).
Em nenhum desses episódios, contudo, nem a Perguntando eu à minha velha empregada,
leve suspeita de que tais criancinhas tivessem Carlita Chaves, neta de africanos, moradora
sido sacrificadas ritualmente, para daí extrair- no Bogum (onde está o famoso “vodum”
lhes mão, tripas ou o dedinho: já eram cadáve- Gêge), o que sabia sobre tais crendices, disse
res quando amputaram-lhes essas partes. que de fato, nos tempos de sua avó, quando
Concluímos este relato macabro referin- iam fazer a mortalha para algum defunto,
do outro costume encontrado no Brasil anti- costuravam-na com agulha virgem, a qual era
go, praticado por brancos, negros e mestiços, depois muito bem guardada “para remédios
relacionado não à utilização de restos mor- de muita serventia”.
tais, mas de objetos fúnebres, como ingredi- Ainda outro episódio envolvendo condu-
entes para sortilégios ou malefícios. Também tas heterodoxas em matéria de devoção foi
estes certamente têm sua inspiração em feiti- registrado em Serinhaém, Pernambuco, em
çarias medievais oriundas do Velho Mundo, 1762: a acusada é uma preta forra, Tereza de
tanto que no famoso Grande e Verdadeiro Barros, que foi vista recitando rezas proibi-
Livro de São Cipriano estão arroladas algu- das vestida em trajes de defunto, rodeada de
mas mágicas e bruxarias desse teor. Por exem- muitas velas acesas (25).
plo: “A feitiçaria que se faz com cinco pregos Tais são as evidências documentais des-
tirados de um caixão de defunto quando já cobertas notadamente na Torre do Tombo de
tenha saído da sepultura”; ou “Feitiçaria que Lisboa, que nos ensinam sobre a utilização de
se pode fazer com malvas colhidas no cemi- restos mortais em diferentes sortes de “feitiça-
tério ou no adro de uma igreja”; ou ainda “A rias” no Brasil antigo. Que sirvam de álibi
mágica da agulha passada três vezes por um contra os que caluniosa e preconceituosamente
defunto” (22). Nos arquivos inquisitoriais acusam as religiões afro-brasileiras de prati-
alguns feiticeiros foram denunciados por sor- carem sacrifícios de crianças. Se porventura
tilégios semelhantes: o já citado mandingueiro hodiernamente comprovar-se que tal ou qual
José Francisco Pereira, nativo da Costa da seita religiosa sacrificou seres humanos para
Mina, além de confessar diversas e seus rituais, tais episódios devem merecer nossa
multiformes cópulas com Satanás, seja na mais completa repulsa e ser alvo de rigorosa 22 O Grande e Verdadeiro Li-
vro de São Cipriano, s/a,
figura de formosa manceba, seja de fogoso investigação policial, seja praticada por cris- Rio de Janeiro, Científica,
s/d.
varão, disse que tinha o costume de usar agu- tãos, candomblezeiros ou quaisquer outras de-
lha de coser mortalha de defunto para “costu- nominações. Relativamente ao “culto do 23 ANTT, IL, Caderno do Pro-
motor n o 130, Mariana,
rar” a pele da palma da mão ou a sola dos pés macabro” (26), não há como negar sua ori- 1770.

de quantos o procuravam com o intuito de gem “branca”, resquício dos tempos medie- 24 ANTT, IL, Caderno do Pro-
motor no 58, Porto Calvo,
gozar boa sorte nos jogos de azar. Certamen- vais: de um lado, a vertente abençoada, repre- 1682.

te deve ter aprendido tal “simpatia” nas Mi- sentada pelo culto às relíquias dos santos, do 25 ANTT, IL, Caderno do Pro-
motor no 126, Serinhaém,
nas Gerais, pois pelo visto era generalizada a outro, a feitiçaria, tendo como matéria-prima 1762.
crendice dos poderes de tais agulhas. A cri- restos mortais humanos manipulados com fins 26 Adalgisa Arantes Campos,
oula forra Maria Caetana de Oliveira revelou mágicos, maléficos ou benéficos, mas consi- “A Presença do Macabro
na Cultura Barroca”, in
que o branco Manuel Afonso Galvão, de derados heterodoxos pelos herdeiros do San- Revista do Departamento
de História, no 5, dezem-
Mariana, lhe ensinara que não havia remédio to Ofício. bro de 1987, pp. 83-90.

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