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CURITIBA
2019
LEONARDO PALHARES PRIZON
CURITIBA
2019
À Vovó Nair
Por ser exemplo de determinação e persistência
Por ser meu Norte, mesmo fisicamente distante, nos dias mais difíceis.
AGRADECIMENTOS
Compreendendo que a monografia é apenas uma das etapas do processo
de formação, agradeço ser pormenores a todas as pessoas que acreditaram no meu
sonho, me incentivaram, deram o suporte necessário e torceram para que eu
chegasse até aqui.
À Carol, minha irmã, por todo apoio e parceria, sobretudo nesses anos de
graduação, e também pelas recomendações, correções e conselhos na escrita final
da monografia.
Aos “Ladimeiros”: Desirée, Erica, Helo, Luiz, Nati, Razi e Vane por todas as
trocas e produções coletivas de conhecimento nesses anos de pesquisa e
convivência. Pelas viagens aos eventos acadêmicos e compartilhamento de
experiências. Por todo o suporte e apoio acadêmico e emocional. Por terem sido
minha família nesses quatro anos e compreenderem cada surto, reclamação,
dificuldade e, sobretudo, por todos os momentos felizes e partilha de vivências
incríveis. Também, pelo auxílio direto em relação à minha pesquisa com conselhos,
revisões textuais, trocas de leituras e recomendações bibliográficas e por
entenderem minha ausência nos últimos dias para a conclusão da monografia.
Aos meus amigos Deniz, Dérik, Lari e Robin por estarem presentes em todos
os momentos bons e ruins, pelo apoio emocional durante toda a graduação e
especialmente nesses últimos dias, por também entenderem minha ausência nesse
momento final da monografia. Pelos recorrentes “Léo, vai dar tudo certo!”.
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
(Chico Buarque)
RESUMO
1 INTRODUÇÃO 10
1.1 DE ONDE PARTIMOS... 21
1.2 BREVE NOTA METODOLÓGICA 23
2 DESENVOLVIMENTO 25
2.1 SUBVERTENDO O PLANEJAMENTO, PLANEJANDO A SUBVERSÃO: AS
LÓGICAS ESPACIAIS DAS OCUPAÇÕES 25
2.2 OCUPAÇÕES ADENTRO, OCUPAÇÕES AFORA: AS LUTAS, OS ATOS E AS
AÇÕES COLETIVAS 42
2.3 ENTRE A URGÊNCIA E A UTOPIA: A PRÁTICA SOCIOESPACIAL E A
RESISTÊNCIA NA ESCALA DO LUGAR E DA COTIDIANIDADE 55
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 64
REFERÊNCIAS 66
APÊNDICES 69
1 ROTEIRO SEMIESTRUTURADO DE ENTREVISTA - TIPO 01:
COORDENADORAS/ES DAS OCUPAÇÕES 69
2 ROTEIRO SEMIESTRUTURADO DE ENTREVISTA - TIPO 02:
LIDERANÇAS/PARTICIPANTES DO MPM 69
3 LISTA DE ENTREVISTAS 69
10
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa parte da realidade material de quatro ocupações
urbanas organizadas pelo Movimento Popular por Moradia (MPM) na Regional
Cidade Industrial (CIC) entre os bairros CIC e São Miguel, na porção oeste do
município de Curitiba, produzidas em diferentes contextos históricos, políticos,
econômicos e sociais, mas com gênese nas mesmas lógicas de (re)produção do
espaço urbano-metropolitano.
Tem-se como o escopo compreender como os moradores se organizam na
reprodução da vida social e as estratégias de resistência e luta por moradia.
Também objetiva-se discutir o questionamento cotidiano das contradições da
produção capitalista do espaço, como na produção coletiva de espaços de uso
comum que surgem em um contexto de não atendimento das ocupações por
equipamentos públicos e de lazer e infraestrutura e mobilidade urbana.
A pesquisa se desenvolve a partir de um projeto de Iniciação Científica
iniciado em 2016, que ao longo dos três anos se dedicou ao desvelamento da
realidade desigual existente na produção do espaço urbano de Curitiba. Nesse
período, teve-se como objetivo a apreensão das contradições entre as políticas e
as práticas de planejamento urbano engendradas na “cidade-modelo” e seus
reflexos sobre as dinâmicas e processos histórico-geográficos das quatro
ocupações urbanas aqui analisadas e, mais especificamente, a dimensão da
habitação como objeto de investigação.
Alguns campos de reflexão esboçados nesse período se relacionaram:
1) À provisão habitacional histórica pela Companhia de Habitação Popular
de Curitiba (COHAB-CT) a partir do programa federal Minha Casa Minha
Vida (MCMV) entre 2012 - ano de realização da primeira ocupação - e
2017 - período marcado por transformações sociais, políticas e
econômicas no âmbito nacional e seus reflexos sobre a inflexão da
política habitacional construída no período anterior;
2) Às formas de organização comunitária e de relações de vizinhança
arquitetadas na “ausência”1 do Estado quanto à construção de
1
Aqui discute-se a “ausência” do Estado nas ocupações sob a perspectiva dos empreendimentos
urbanos e habitacionais e assistência social, contudo, entende-se que o Estado se faz presente,
dialeticamente, a partir da violência policial e da violência jurídica dado o contexto de insegurança
da posse, por exemplo.
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como os sujeitos que resistem e ocupam terrenos urbanos, e propriedades que não
cumprem sua função social.
O espaço urbano, portanto, é entendido em uma leitura dialética em que se
opõem favelas autoconstruídas, produtos de uma crise urbana e habitacional, e por
outro lado, um circuito de financeirização do solo urbano, com construção de
condomínios e apartamentos de alto padrão, por exemplo (CARLOS, 1992). Para a
autora “o uso diferenciado da cidade demonstra que esse espaço se constrói e se
reproduz de forma desigual e contraditória. A desigualdade espacial é produto da
desigualdade social” (idem, p. 23).
Essas diferentes esferas de consumo e produção da cidade pelas classes
sociais, especialmente em relação ao direito à moradia e acesso à infraestrutura
pública, explicitam o problema da crise urbana vivenciada em muitas cidades
brasileiras, fundamentalmente em metrópoles como Curitiba. Revelam-se também
como elementos geradores das desigualdades espaciais e de seus processos
intrínsecos, como a favelização e ocupação de áreas com valor da terra mais barato
e de terrenos especulativos, representando a articulação de uma luta coletiva por
moradia que proporciona uma dinâmica especial na produção do espaço
(RODRIGUES, 1988).
Curitiba, cidade reconhecida nacional e internacionalmente como modelo de
política e planejamento urbano, é também marcada por contradições que
evidenciam os conflitos e as disputas na (re)produção do espaço. Embora haja a
construção de um discurso e de um city marketing que invisibiliza e negligência
algumas questões, como a problemática da habitação, a capital paranaense é
reconhecida pela mídia e pelos próprios técnicos, especialistas e planejadores
urbanos como uma referência de planejamento urbano (ALBUQUERQUE, 2007).
No que tange à formação socioespacial desigual de Curitiba e de sua região
metropolitana, Moura e Kornin (2009) evidenciam que o planejamento urbano de
Curitiba, engendrado de forma ininterrupta a partir da década de 1970, ocorreu
concomitantemente ao crescimento populacional na cidade e à intensificação do
uso do solo. Articulado à norma e ao mercado imobiliário, “[...] esse planejamento
induziu o crescimento da ocupação para áreas periféricas internas e principalmente
externas aos seus limites administrativos” (idem, p. 19), densificando a pobreza nas
regiões periféricas enquanto investia em intervenções urbanísticas que
posteriormente caracterizariam sua estratégia e sua imagem de “cidade-modelo”.
13
2
Usa-se o conceito “ocupações irregulares” entre aspas pois entende-se que o regular e o irregular,
o formal e o informal são marcos legais burgueses, contudo, são também constitutivos e um não se
realiza sem o outro.
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2 DESENVOLVIMENTO
4 Embora a concepção de “ordem” encontrada nos discursos se fundamente nos marcos jurídico
urbanístico, e nessa pesquisa acreditamos que a “ocupação não ordenada” também pressupõe uma
ordem,
28
[...] Claro, isso depende muito da propriedade que tá sendo ocupada, pra
poder ocupar todas as pessoas. Não pode estender muito, se não fica tão
aglomerado… Você pode perceber que a Tiradentes tem um loteamento
um pouco diferente da Primavera, por exemplo, onde foi a primeira
ocupação justamente com uma quantidade de pessoas muito grande e
justamente não houve essa condição assim de conseguir comportar todas
as pessoas numa propriedade que não conseguiria comportar. Lógico
também que a gente não vai restringir ninguém de participar, a pessoa vem
e tal, mas a gente sempre tenta manter esse meio termo. De a gente
também não ultrapassar aquilo que a gente tem capacidade, né
(ENTREVISTADO 4).
Ah, nos primeiros dias o mais importante é tentar evitar o despejo. Também
por isso, às vezes, é interessante não lotear, pras pessoas ficarem juntas,
né. E aí chega policia, né, e você têm que resistir, tem que pelo menos
coibir no começo que saiam vendendo terreno, que as pessoas fiquem e
construam uma coisa logo. Quanto mais você constrói, edifica mais você
estabiliza ali a comunidade. [...] Então você tem como primeira tarefa
começar a trazer pessoas pra comunidade, que elas comecem
rapidamente a construir. Que elas se mantenham minimamente
organizadas, que elas não briguem entre si disputando os lotes, os
espaços (ENTREVISTADO 5).
inteira. Chega uma hora que você fica desempregado e o dono da casa
não quer saber, água e luz não quer saber, o aluguel nunca vai esperar.
[...] Você vê um parente seu lá sofrendo, você não precisa, mas seu
parente precisa. “Vai lá que tem um lugarzinho lá, o pessoal tá lá”… Se
você não precisa, você vai trazer uma pessoa que precisa
(ENTREVISTADA 1).
Daí a gente tinha cerca de 40 pessoas no dia pra invadir e um foi chamando
o outro. Porque a ocupação é assim… um fala pro outro. Já existia a
Comunidade Primavera e já existia a Comunidade 29 de Março, então a
gente fez uma reunião lá em baixo com a 29 e com a Primavera e daí
pedimos pra convidar “Ó, você conhece alguém que paga aluguel? Que
não tem onde morar? Chama lá pra vir”, então a gente veio
(ENTREVISTADA 3).
mês pra gente fazer o loteamento. Aquele morador que não tinha
condições trabalhava… Pagaria esses 110,00 em trabalho… Arrumando a
rua… Ajudando a puxar o fio, essas coisas. [...] Antes você andava nos
bequinhos, agora vocês já consegue andar em tudo. [...] Porque a pessoa
pode vir de carro. Hoje em dia o Uber pega a gente aqui.
Ótimo… (ENTREVISTADA 3).
FIGURAS 15 e 16. Via aberta na Ocupação 29 de Março pós incêndio, onde anteriormente
eram barracos.
[...] E também a Tiradentes pra cá. Porque faz parte também. É que nem
ali, nós ficou meio junto com a Tiradentes e aqui ficou meio junto com a
Primavera. E é todas junto. Não tem como dizer não. As quatro ocupações
na verdade é uma só (ENTREVISTADA 1).
Daí quando é uma coisa de emergência, quando tem que ser em cima da
hora, daí é ali. Quando é uma coisa que é emergência, mas tem uns 10,
15 dias, aí a gente ganha tempo pra conseguir um ônibus, pra reunir a
galera… Entendeu… Fazer reunião e aí fazer o ato. Aí quando é
emergência é ali mesmo. Todo mundo vai de a pé, leva os pneus, mete
fogo e já era (ENTREVISTADA 2).
Na verdade a gente ficou lá… foi por causa também daquele negócio do
Minha Casa Minha Vida que a Caixa que tinha que liberar. Na verdade, a
Caixa liberou. Aí foram falar pra nós que já tava liberado. Quando a gente
foi ver, não tinham liberado pra Damiani, pra Damiani dar ok, que é dona
da Primavera. [...] Na verdade nós ficamos lá um dia todo. De manhã até…
Nós ia ficar mais, mas daí resolveram receber a gente pra conversar [...]
(ENTREVISTADA 1).
Mas a gente já foi pro Centro, né… Mobilizar as pessoas, com ônibus
fretado pra ir pra prefeitura né… Mas também com o mesmo intuito. O de
chamar a atenção de algum responsável que está inserido dentro de um
órgão público ou mesmo da imprensa, da própria população… Para que
assistam a gente e vejam que está acontecendo algo ilegal com a gente
aqui, alguma coisa assim que está em desacordo com a lei
(ENTREVISTADO 4).
[...] Teve a outra situação da UPA ali, que eles tentaram terceirizar…
Estava fechada… E a gente sabe que eles vão sucateando até pra usar o
discurso de terceirização. E as pessoas se auto organizaram também pra
abrir aquela UPA lá pras pessoas terem atendimento, não precisarem se
deslocar até o Pinheirinho pra ter atendimento médico e tal. Isso foi tudo
automobilização. A gente também participou, mas a gente não se impôs,
colocando bandeira… Eu também participei desse ato, mas tudo ações
orgânicas… (ENTREVISTADO 4).
Ainda, cabe destacar que, de forma mais específica, existe essa dialética das
escalas de atuação: ocupações adentro, em que as práticas são mobilizadas
internamente, no cotidiano, e em que as ocupações apresentam uma ação
autonomizada, pois cada coordenadora/coordenador busca viabilizar estratégias e
atender as necessidades das famílias da ocupação que são responsáveis, como
será discutido de forma mais aprofundado no capítulo 3; e ocupações afora, que
simbolizam uma articulação das famílias das quatro ocupações como se fossem
uma só, com as mesmas pautas e forças de mobilização, momento em que a luta
se torna mais comum e os reaproxima.
[...] Aí a gente foi tudo junto nessa época, as quatro tudo junto. Daí alguns
fecharam aqui [o contorno sul]. Naquela época eu fiquei com a comunidade
aqui. Daí depois eu fui pra lá. Aí juntou mais gente. Aí veio gente da CUT,
do MST, veio muita gente. Tô falando 2 mil daqui, né, fora o pessoal de lá.
Porque quando a gente vai fazer um ato, a gente não vai sozinho
(ENTREVISTADA 1).
[...] Perde lá, perde aqui. Vai enfraquecendo. Sempre que há algum
problema, independente da ocupação, a gente mobiliza todas as
ocupações pra atua em conjunto, né. Isso aí é regra básica do movimento
(ENTREVISTADO 4).
54
socioespacial da resistência, que revela também a luta por moradia como uma luta
pelo espaço, se engendra na cotidianidade e, antes de atingir a escala da
reprodução das relações de trabalho, se forja na escala do lugar, onde o habitar e
o produzir coletivamente espaços de resistência marcam a reprodução da vida.
Carvalho (1987) aponta a vida cotidiana como um imbricado de múltiplas
relações e contextos. Ela é o lugar do banal, das atividades rotineiras do dia a dia,
das contradições, da alienação, da ambiguidade, mas também é um espaço de
resistência e possibilidade transformadora. “É um palco possível de insurreição, já
que nele atravessam informações, buscas, trocas, que fermentam sua
transformação. ” (Idem, p. 14). A vida cotidiana é então a reprodução dos homens
e das relações sociais.
A vida cotidiana expressa em Martins (2000) se dá no público e no privado,
indo além da dimensão da vida privada, que é o íntimo e familiar: “Em casa, mas
também na rua e no local de trabalho: nos lugares em que o homem está
desencontrado em relação a si mesmo” (p. 101, grifo nosso). O cotidiano não é
então apenas o banal, o indefinido, ele é fundamentalmente o vivido, a mediação
entre a vida pública e a vida privada. O cotidiano é apreendido na dimensão histórica
da vida social.
O cotidiano para Lefebvre (1991[1968]) se revela como
[...] conjunto de atividades em aparência modestas, como conjunto de
produtos e de obras bem diferentes dos seres vivos (plantas, animais,
oriundos da Physis, pertencentes à Natureza), não seria apenas que
escapa aos mitos da natureza, do divino e do humano. Não constituiria ele
uma primeira esfera de sentido, um domínio no qual a atividade produtora
(criadora) se projeta, pretendendo criar novas? [...] Seria algo mais: não
uma queda vertiginosa, mas um campo em revolução simultânea, uma
etapa e um trampolim, um momento composto de momentos
(necessidades, trabalho, diversão - produtos e obras - passividade e
criatividade - meios e finalidade etc.), interação dialética da qual seria
impossível não partir para realizar o possível (a totalidade dos possíveis).
(LEFEBVRE, 1991 [1968], p. 19-20, grifo nosso).
Lefebvre (1974), ao teorizar sobre o espaço social, define uma tríade que
serve como escopo de análise dessas ações que caracterizam a disputa pelo
espaço entre os movimentos sociais e os outros agentes produtores do espaço,
como planejadores e urbanistas (que representam, nesse caso, o Estado). O
espaço percebido está diretamente relacionado à realidade cotidiana (o emprego
do tempo) e à realidade urbana (percursos e redes ligando os lugares de trabalho,
da vida privada, dos lazeres); o espaço concebido é aquele associado às
representações do espaço, como os produtos dos planejamentos urbanos; e o
espaço vivido diz respeito aos espaços de representação, identificados por signos
e imagens, que caracterizam o espaço dos “habitantes”, dos “usuários”, e podem
ser entendidos também como lócus da cotidianidade.
As práticas que se dão na escala do lugar e do cotidiano são inúmeras,
complexas, de difícil apreensão. Aqui discutiremos essa miríade de ações
engendradas cotidianamente não só a partir das narrativas e relatos encontrados
nas entrevistas, mas também nos fundamentando no que foi observado durante
todo o tempo de pesquisa, que se estende além do período da monografia, tendo
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início em 2016. Essa compreensão é possível pela mediação das relações que
foram sendo constituídas de forma dialógica desde 2016 com moradoras e
moradores, coordenadoras e coordenadores e, até certo ponto, dada as devidas
limitações de engajamento, inserção nas relações e dinâmicas do dia-a-dia e de
participação, também na escala do cotidiano.
Cabe ressaltar que a dimensão da resistência e da vida cotidiana, como
explicitado anteriormente, está relacionada temporalmente com todos os outros
momentos históricos e conjunturais e escalas de ação, desde o início das
ocupações, em 2012, com a Nova Primavera. Embora, como será discutido, essa
dimensão ganha maior centralidade no momento atual, em que uma pretensa
estabilidade e a consolidação das ocupações no tempo e no espaço direcionam o
engendramento de outras práticas.
Destarte, foi destacado em algumas entrevistas e narrativas que o passar do
tempo foi proporcionando certa segurança de posse sobre as propriedades
ocupadas, o que propiciou uma “acomodação” das famílias quanto aos processos
de mobilização e ações coletivas. Ainda que reconheçamos que de fato a
perpetuação das ocupações leva a uma redução dos atos organizados, como
ocorria mais comumente nos momentos mais instáveis e iniciais, compreende-se
que as famílias vão produzindo outras possibilidades e estratégias de reprodução
da vida.
É, quanto mais a comunidade está no início, mais é importante fazer ato.
Paradoxalmente, quando a comunidade está estabilizada, a disposição de
luta é menor. Porque veja bem… Quando é que as pessoas lutam? Se
você quer ajudar na organização popular… Quando as pessoas lutam? O
que minha experiência mostrou é que as pessoas estão mais dispostas a
mobilização quando elas estão diante de situações emergenciais,
situações urgentes. Então por exemplo, se uma comunidade está sempre
sujeita a enchente… entra água nas casas… Elas têm aquela emergência,
então elas se mobilizam, seja espontaneamente… As vezes param uma
rodovia, tacam fogo em pneu, protestam, param ônibus, sei lá…
(ENTREVISTADO 5).
[...] E preciso pontuar aqui que a assistência jurídica e muito do que a gente
fez vem do IDP, Instituto Democracia Popular, principalmente advogadas,
mulheres, uma delas é do MPM… Mas o pessoal do IDP sempre ajudaram
e tiveram muitas vitórias jurídicas, então eles são fundamentais na luta.
Tivemos esse contato com o IDP. E aí um pouco com a Terra de Direitos,
com a ONG Teto, que ajuda lá, mas enfim… parlamentares [...]
(ENTREVISTADO 5).
fazendo meu papel… Isso será muito digno, mas ainda não é aquele ponto
maior que a gente objetiva. O espaço coletivo na comunidade também é
meio pelo qual a gente faz a formação coletiva na sociedade como um
todo. Que é uma consciência de igualdade, de dignidade, que deve
competir a todas as pessoas. Então essas vivências comunitárias são um
meio para isso, então elas não podem se encerrar, porque também a
comunidade pode pensar assim… (ENTREVISTADO 5, grifos nossos).
Que nem hoje em dia eu não preciso ir pras outras ocupações, mas é
porque eu tenho aqui. Mas você acha mesmo que se eu achar mais 500
famílias que tá precisando, você acha que eu não vou tá junto invadindo
outra?! Posso não pegar pra mim, mas vou estar junto. Aquelas famílias
vão ter e eu vou lutar por elas também, é assim que funciona
(ENTREVISTADA 1).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As diferentes estratégias de ocupação, que se articulam às diferentes
conjunturas políticas, econômicas e sociais, engendradas pelo Movimento Popular
por Moradia e reproduzidas mais recentemente de forma orgânica pelos próprios
moradores apontam outra forma de pensamento, planejamento e apropriação do
espaço. Um planejamento que não é o planejamento urbano estratégico e
segregador, empreendido pelo Estado com o sustentáculo dos grandes
proprietários de terra e do capital financeiro-imobiliário, que destina seus
investimentos e empreendimentos urbanísticos majoritariamente para as regiões e
classes de mais alta renda, como ocorre nas cidades capitalistas e ganha amplitude
em Curitiba com seu city marketing, e que mais recentemente ganha ainda maior
dimensão com a construção político-ideológica da “Smart City”.
Esse planejamento se propõe, não conscientemente nessa concepção, como
uma contra racionalidade às lógicas dominantes da produção e do planejamento do
espaço urbano. Embora dialeticamente, pois entende-se que as demandas também
se dão no plano das institucionalidades, como a demanda por construção de
habitação de interesse social ou por regularização fundiária, por exemplo, a luta por
moradia e, especificamente, nas estratégias do caso aqui discutido, indicam outras
possibilidades de produzir e viver no espaço, que se relacionam às práticas sociais
engendradas na escala da reprodução da vida.
Há uma forma de concepção e relação com o espaço que se dá
horizontalmente, nas relações sociais, no vivido, nas demandas coletivas,
sinalizando uma outra sociabilidade, que não é a sociabilidade do capital e apontam
para uma potencialidade anticapitalista.
Os espaços de resistência, sejam nas ocupações ou na apropriação dos
espaços públicos, privados e político-administrativos refuncionalizados pelas
práticas insurgentes, são espaços que se opõem ao capital, superando o sentido de
função social da propriedade e do direito à cidade enquanto reprodução de uma
lógica econômica. Eles revelam o cotidiano como dimensão social, expressa
histórica e coletivamente.
Os atos públicos e ações coletivas, manifestações, passeatas apontam que
o que está em disputa, o que está sendo demandado não é apenas a moradia, é
também a reprodução da vida de forma ampliada. É o uso social e coletivo do
espaço, das infraestruturas públicas, é o direito à saúde, à educação, à mobilidade
65
5
CORREA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 2002.
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REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Aline Figueiredo de. A questão habitacional em Curitiba: O
enigma da "cidade-modelo". 2007. 157 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de
Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2007.
BOULOS, Guilherme. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto.
São Paulo: Scortecci, 2012.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. São Paulo: Editora Contexto, 1992.
FARIA, José Ricardo V.; POLLI, Simone A; FRÓES, Ana Claudia S.; SOUZA,
Mayara V. Protestos por moradia e política de habitação em Curitiba: lutas por
regularização fundiária e produção habitacional. In: Anais XVII ENANPUR, São
Paulo, 2017.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia
urbana. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 17, n. 49, 2002.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: os
movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação
direta. In: Revista Cidades, Presidente Prudente, v. 7, n. 11, p. 13-47, jan.-jun.
2010.
APÊNDICES
3 LISTA DE ENTREVISTAS
Entrevistada 1 - Coordenadora da Ocupação Dona Cida
Entrevistada 2 - Coordenadora da Ocupação 29 de Março
Entrevistada 3 - Coordenadora da Ocupação Tiradentes
Entrevistado 4 - Morador e militante do MPM
Entrevistado 5 - Liderança do MPM