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11/09/2009

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Título do original em inglês:
Chasing the Dragon
Copyright © 1980, Jackie Pullinger.
Publicado na Inglaterra por Hodder
and Stoughton, Londres.

Tradução de Myrian Talitha Lins

Primeira edição, 1982

Todos os direitos reservados pela


Editora Betânia S/C
Caixa Postal
5010 30.000 Venda Nova, MG

Composto e impresso nas oficinas da


Editora Betânia S/C
Rua Padre Pedro Pinto, 2435
Belo Horizonte (Venda NovaX MG

Printed in Brazil
Índice
Prefácio
Glossário
1. Rastros de Sangue
2. Para a China de "Canoa"
3. Uma Cidade Chamada Trevas
4. O Clubinho
5. Luz nas Trevas
6. As Quadrilhas
7. O "Irmão Maior" Está Olhando por Você
8. Perseguindo o Dragão
9. "Doenças" da Infância
10. É Jesus Mesmo
11. As Casas de Estêvão
12. Acolhendo Anjos
13. Testemunhos
14. E Por em Liberdade os Cativos
15. Andar no Espírito
Para minha família, especialmente meu Pai.

"E foi expulso o grande dragão, a antiga


serpente, que se chama diabo e Satanás, o
sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado
para a terra e, com ele, os seus anjos... Agora
veio a salvação, o poder, o reino do nosso
Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi
expulso o acusador de nossos irmãos..."
Ap 12.9,10.
Prefácio
Fiquei conhecendo Jackie Pullinger em 1968,
quando fui a Hong Kong para fazer uma filmagem.
Um amigo nos apresentou, e ela me falou de seu
trabalho na Cidade Murada. Fiquei fascinado pelo que
me narrou, e fui visitar o lugar em sua companhia. Era
exatamente como ela o descrevera.
Nos anos que se seguiram continuei a manter
contato com ela, vendo seu trabalho desenvolver-se
mais. O jornal Sunday Times publicou um relato de sua
obra em 1974. Em 1978, ela foi à Inglaterra para falar
sobre seu trabalho e, nessa ocasião, consultei-a sobre a
possibilidade de, juntos, escrevermos um livro, dando
um relato mais completo de tudo quanto lhe
acontecera. Concordou, mas não sem certa relutância,
e em 1979 voltei a Hong Kong.
Alguns nomes e lugares citados no livro
tiveram que ser modificados, para que as pessoas
implicadas não sofressem nenhum tipo de prejuízo, a
maioria das quais ainda vive naquela cidade.
Excetuando-se esse detalhe, tudo o mais foi narrado
da forma como ocorreu. Muitos dos eventos aqui
narrados podem ser comprovados em outras fontes.
Tenho que agradecer a muitas pessoas que nos
ajudaram na feitura deste livro. Entre elas gostaria de
mencionar Marjorie Witcombe e Mary Stack, de Hong
Kong, que nos emprestaram sua casa, a Susan
Soloman, da Califórnia, a meu irmão Edward e a seus
colegas do Banco Mundial, em Washington, onde o
manuscrito foi terminado, e sobretudo à minha esposa
Juliet, que fez uma excelente revisão e deu sua
contribuição durante toda a produção do livro. Esta-
mos narrando aqui incidentes ocorridos até 1976
apenas. O que aconteceu de lá para cá terá de
aguardar um novo livro.
Andrew Quicke
Londres
Abril de 1980

Glossário
Amah: empregado (a).
Congee: um mingau de arroz que se come no
café da manhã.
Daih lo: Irmão Maior.
Daih ma: Mãe Maior, a esposa mais velha de um
chinês.
Daih pai dong: barraca de rua.
For-gei: garçom ou operário.
Fui-goih: arrepender-se.
Gong-sou: conversações entre quadrilhas
inimigas, como tentativa de solucionar diferenças.
"Hai bin do ah?": De onde você é?
Hak Nam: Trevas (Nome que muitas vezes é
empregado para identificar a Cidade Murada de
Hong Kong.)
Hawh-fui: sentir muito um erro cometido.
Kai na: madrinha
Kai neui: afilhada (Estes dois termos são
empregados para designar o relacionamento de uma mulher
com uma criança que ela toma para criar.)
Kung-fu: um tipo de arte marcial chinesa.
Lap-sap: lixo.
Mama-san: mulher que tem a seu encargo várias
prostitutas jovens ou bar-girls.
"M'gong?": Não quer falar?
Mintoi: edredom.
"Moe yeh": Nada.
Pahng-jue: chefe de um salão onde se vende ou
toma drogas.
"Pa mafan": medo de complicações.
Pin-mun: comércio ilegal.
Poon Siu Jeh: Pullinger em chinês.
Sai lo: Irmão Menor.
Sai ma: Mãe Menor, esposa mais nova ou
concubina de um chinês.
Seui Fong
14 K Nome das diversas quadrilhas tríades que
são ilegais em Hong Kong.
Ging Yu
Wo Shing Wo

Siu yeh: lanche, merenda.


Tin-man-toi: literalmente meteorologista;
significa pessoa que vigia ou guarda.
Wunton: espécie de pastel de camarão ou carne
de porco.
"Yau moe gau chor." Você deve estar louco!
"Yaunk": Estou aqui.
"Yeh sou ngoi nei." Jesus te ama!
1
Rastros de Sangue

O guarda da porta soltou uma cusparada no


chão do beco, mas fez um aceno de cabeça dando-me
permissão para passar. Deixei-o ali agachado, e me
espremi no pequeno vão entre duas construções escu-
ras, para entrar nessa estranha "cidade" chinesa, tão
temida pelo povo de Hong Kong.
Por um instante, a escuridão do interior dela me
deixou meio cega, e embora a essa altura já conhecesse
o caminho muito bem, segui em frente, pisando
cautelosamente na estreita ruela. Mantinha os olhos
voltados para o chão por duas razões: para não pisar
nas porcarias que escorriam para o rego aberto e para
não receber em pleno rosto o lixo que era atirado das
janelas à rua embaixo. Bati palmas a fim de espantar
os ratos; foi preciso bater várias vezes, com força, para
afastá-los.
Foi então que avistei uma pequena mancha ver-
melha, e logo depois várias gotas. Não havia dúvida
de que era sangue. Senti a tensão no estômago, pois
cria que sabia de quem era aquele sangue. O juiz me
confiara a guarda de Ah Sor, pelo período de um ano.
Mas uma quadrilha estava atrás dele para castigá-lo,
devido a casos não solucionados. Ao que parecia,
haviam-no encontrado. Avistei outras daquelas
manchas lustrosas, e passei por mais dois tin-man-toi,
os vigilantes das quadrilhas que controlavam a
Cidade Murada.
Virei uma esquina e entrei na rua onde estavam
situados os principais salões de jogatina, administra-
dos pelos "irmãos" da quadrilha 14K. Passei pelos
terríveis antros de ópio, onde se achavam outros
vigias.
Na rua seguinte, as manchas de sangue já se
apresentavam mais numerosas. Estava impaciente
para descobrir de quem era aquele sangue. Mas, ao
mesmo tempo, a idéia me apavorava.
Cheguei à rua principal, uma das poucas que
possuía iluminação na Cidade Murada. Tive que
andar com mais cuidado ainda, ao passar por outro
salão de jogo. As prostitutas me reconheceram e
gritaram de lá de seus compartimentos, junto ao
cinema de filmes pornográficos:
— Sr.ta Poon! Poon Siu Jeh, quer nos dar um
auxílio?
E estendiam as mãos cujos dorsos estavam
marcados de pontas de agulha. Em seguida, entrei em
minha ruela, onde ficava o salão que alugara e que
abria todas as noites para os rapazes das quadrilhas.
A porta avistei uma poça de sangue maior. As
pessoas que por ali se encontravam pareciam total-
mente indiferentes.
— O que aconteceu? indaguei temerosa.
Um velho cantonês abanou a cabeça e
resmungou:
— Nada, nada!
Num lugar controlado pelas quadrilhas tem
que se viver com as mãos sobre os olhos, se quiser
sobreviver. É mais seguro não ver nada, não se
envolver com nada.
Ali perto, brincavam várias crianças, com
bebezinhos amarrados às costas, despreocupadas,
como se nada tivesse acontecido.
Temendo por Ah Sor, destranquei o portão de
ferro, e entrei em nosso "clubinho". Estava escuro,
úmido e malcheiroso. Era muito difícil conservá-lo
limpo, pois não havia água encanada. Toda sorte de
insetos e bichinhos saíam dos esgotos e andavam
pelas paredes do salão. Eu tinha mais medo das
aranhas que vinham das fossas, do que dos
quadrilheiros. Naquela noite, porém, toda a minha
atenção estava concentrada em Ah Sor.
Sua mãe o tinha vendido, quando ainda era
bebê, para um homem viciado em ópio, que não tinha
filhos e temia morrer e ir para o inferno sem um filho
para adorar seu espírito. Por isso, Ah Sor crescera com
grande carência afetiva, mas, ao mesmo tempo, não
sabia reconhecer um afeto sincero, quando lhe era
oferecido. A fim de equilibrar essa forte sensação de
rejeição, ele se agregou a uma quadrilha. Cresceu
brigando nas ruas e recebeu sua primeira sentença de
detenção na prisão juvenil aos treze anos. Durante os
últimos anos, eu tinha tido conhecimento da história
de sua vida e dos seus problemas e procurara
ajudá-lo, mas ele continuava na mesma, sendo preso
várias e várias vezes. Além disso, era viciado em dro-
gas, como seu pai adotivo. Sentei-me num de nossos
toscos bancos do clubinho e fiz a única coisa que po-
dia — orei. Cinco minutos depois uma menina entrou
ali correndo, arfando pelo esforço.
— Sr.ta Poon, a senhora deve ir imediatamente
ao Hospital Elizabeth. Estão chamando a senhora.
— Quem está lá? É Ah Sor?
— Só tenho que dizer-lhe para ir depressa. É
alguém que está morrendo, concluiu e logo
desapareceu.
Tranquei tudo e saí. No caminho fui
arrebanhando alguns rapazes que conhecia. Fora da
Cidade Murada; pegamos um táxi.
— Para o Hospital Elizabeth, depressa! Nosso
amigo pode morrer.
Os motoristas de táxi de Hong Kong não
precisam de muito incentivo para correr, e o nosso ia
zigue-zagueando entre uma pista e outra, com apenas
uma das mãos no volante. Eu ia orando pelo caminho,
as mãos apertadas uma contra a outra.
"Talvez meu amigo morra", pensei em cantonês.
Ele tinha tido uma vida tão miserável, que nem
era vida, e cu desejava proporcionar-lhe coisa melhor.
"Salva-o, Senhor!", orei baixinho. "Faz com que
ele se salve."
Então, o carro parou abruptamente com um
guincho agudo dos pneus, e nós saltamos do veículo
desejando ver Ah Sor antes que morresse.
Mas não era Ah Sor. Fora Ah Tong quem
deixara aquele sinistro rastro pelas ruas da cidade. Eu
o conhecia apenas pela sua fama de ser um dos mais
depravados chefes de quadrilha. Até mesmo seus
colegas o desprezavam, pois ele costumava ir a festas,
seduzia mocinhas e depois as vendia, com a vida
assim arruinada, para o comércio do meretrício.
Ao que parecia, a quadrilha Seui Fong havia-se
emboscado num beco escuro, próximo ao nosso salão,
armada de facões e canos. Isso era parte de uma
guerra de quadrilhas por causa de um dos "irmãos"
que fora prejudicado havia alguns anos. O alvo deles
era Ah Sor. Quando este ia subindo a rua em compa-
nhia de Ah Tong e de outro "irmão", não se apercebeu
da emboscada. Então a quadrilha os atacou,
procurando atingir sua vítima. Mas Ah Tong viu-os
logo e atirou-se à frente do outro, para protegê-lo.
Alguém atingiu seu braço, que foi quase seccionado, e
os agressores o deixaram ali caído numa poça de
sangue. Ah Sor e o outro rapaz o ampararam e saíram
com ele aos trambolhões até chegarem a uma das
saídas da cidade, onde pegaram um táxi. Deixando o
colega no hospital, fugiram imediatamente. (Há sem-
pre policiais postados nos hospitais, que os interro-
gam sobre as brigas das quadrilhas.)
A única informação que consegui extrair da
enfermeira foi que o paciente provavelmente perderia
o braço, se não a vida.
Sentada ali no hospital, pensei no que ouvira e
fiquei impressionada com o gesto do rapaz. Ele era
mau, e levava uma vida terrível, mas revelara um
amor muito raro. Jesus já havia dito: "Ninguém tem
maior amor do que este: de dar alguém a própria vida
em favor de seus amigos."
Telefonei para alguns amigos e pedi-lhes que
fossem ao hospital. Passamos a noite toda ali, orando.
Quando a família apareceu, ficaram grandemente
espantados com nossa atitude, para eles, incompreen-
sível. O que fazíamos nós, pessoas direitas, cristãs,
orando pelo seu filho? Ele era mau e só merecia
mesmo morrer.
Afinal, a irmã nos deu permissão para entrar na
enfermaria onde ele se encontrava. Postei-me ao lado
do leito e olhei para Ah Tong. Estava terrivelmente
pálido, devido à perda de sangue, e inconsciente. Com
muito cuidado, impusemos as mãos sobre ele e ora-
mos em nome de Jesus. E enquanto estivemos lá, ele
não recobrou os sentidos. Os boletins médicos do
hospital, porém, eram cada dia mais animadores.
Parecia que ele estava melhorando incrivelmente.
Afinal, cinco dias depois de ter sido atacado, ele
recebeu alta. Fora milagrosamente curado, e não
apenas sobrevivera, mas também conservara o braço
em perfeitas condições.
Alguém poderia pensar que, depois de haver
experimentado um milagre como esse, Ah Tong teria
muito prazer em falar com um dos intercessores, mas,
nos meses que se seguiram, mal ele me avistava, saía
correndo. Estava com medo de mim. Contudo, recebi
algumas palavras de agradecimento;
— Ele sabe que foram suas orações que o salva-
ram, disse um dos muitos mensageiros com recados
de agradecimento.
Se ele pensava assim, então por que me evitava?
Meses depois vim a saber a razão. Era viciado em
heroína, e precisava de várias doses diárias. Todo o
tempo em que estivera no hospital, sua namorada lhe
levara drogas. Sabia que eu era crente e que os crentes
eram pessoas direitas, ao passo que os viciados eram
depravados. Por isso, não lhe parecia correto vir ele
mesmo expressar sua gratidão. Sentia-se por demais
impuro, para se aproximar de um cristão.
Alguns anos depois, Ah Tong entrou pela nossa
porta no meio da noite. Fitou-me com uma expressão
angustiada e disse abruptamente:
— Poon Siu Jeh, estou desesperado. Já tentei
largar o vício muitas vezes, mas não consegui. Será
que pode me ajudar?
— Eu, não, respondi, mas Jesus pode. E creio
que há um fato a respeito de Jesus que você poderá
entender perfeitamente. Faz alguns anos, você se
dispôs a morrer por seu irmão, Ah Sor. Foi um gesto
maravilhoso.
Ah Tong tinha o cenho franzido, ouvindo com
atenção.
— Mas o que você diria de morrer por um rapaz
de outra quadrilha?
— Aaahhh! fez ele e soltou uma cusparada.
Morrer por um "irmão" é uma coisa, mas ninguém
morre por um inimigo.
— No entanto, foi exatamente isso que Jesus fez.
Ele morreu não somente para os de sua quadrilha,
mas por todas as pessoas de todas as outras quadri-
lhas. Ele era o Filho de Deus e nunca fez nada errado.
Pelo contrário, ele curava os doentes. Se crermos nele,
ele nos dará sua vida.
Não creio que a mente cheia de drogas de Ah
Tong pudesse absorver todos os detalhes da doutrina
da redenção, mas pude perceber claramente que
alguma coisa havia acontecido. Ele se mostrou
completamente atônito pela idéia de que Jesus
pudesse amar uma pessoa como ele, e sentiu-se
bastante tocado.
Saí depressa com ele, e levei-o para o pequeno
apartamento que tínhamos na ilha de Hong Kong. Era
um apartamento bem pequeno, segundo os padrões
ocidentais. Ah Tong se viu na sala, que também era
sala de jantar. Tudo era muito limpo e bem arranjado.
Era mais um lar, e não uma igreja. Mas o mais
extraordinário ali eram as pessoas presentes, todas
sorrindo. Havia vários ocidentais e muitos rapazes
chineses, muitos dos quais ele reconheceu. Havia ali
homens que ele tinha conhecido na cadeia, e outros
que tinham sido seus companheiros de drogas.
Porém, estavam todos belos e felizes, mais fortes e
saudáveis.
Eles se puseram a falar-lhe sobre o poder de
Jesus que lhes havia transformado a vida.
— Você nos conhece, disseram eles. Sabe que
nunca empregaríamos essa linguagem santa, se de
fato não crêssemos nisso. Quero dizer, a Sr.ta Poon e
esses pastores aqui nunca tiveram de largar as drogas,
e não sabem como é. Eu senti muitas dores, mas orei a
Jesus, como me disseram, e deu certo. A dor desapa-
receu e me senti outro. Recebi novas energias:
chama-se Espírito Santo. Falei em língua estranha, e
não senti mais dor nenhuma.
Logicamente, Ah Tong deve ter pensado:
"Se eles podem, também posso. Se Jesus fez isso
por eles, pode fazer por mim também."
Então nos disse que queria crer que Jesus era
Deus e pedir-lhe que modificasse sua vida. Em
seguida, orou e logo seu rosto magro e sulcado de
rugas se relaxou, e ele sorriu.
Os outros ex-marginais ali presentes se
entreolharam felizes, participando daquele milagre.
Ah Tong recebeu o dom de línguas. Quando se deitou
naquela noite, seus olhos tinham uma expressão de
grande alegria, e ele foi-se aquietando mais e mais, até
cair num profundo sono.
O rapaz permaneceu na casa. Não houve
necessidade de passar por uma desintoxicação
dolorosa, que constitui uma tortura tão grande para o
viciado, que pode causar-lhe a morte. Não lhe demos
nenhum remédio, nem mesmo uma simples aspirina.
Todas as vezes que sentia a primeira pontada de dor,
começava a orar na sua nova língua. Sua
desintoxicação processou-se sem nenhum sofrimento.
Não houve vômitos, nem cãibra, nem diarréia, nem
calafrios. Ah Tong começou uma nova vida.
2
Para a China de "Canoa"
Os agentes da imigração subiram a bordo do
navio, e eu era a primeira da fila, ansiosa que estava
para desembarcar. Cedo, de manhã, eu me aprontara
e subira para o convés. A vista que se tinha dali era de
cair o queixo. Lá estavam as montanhas de cumes
brilhantes, sumindo-se à distância, em meio à bruma,
como num quadro oriental. Percebi que meu coração
estava inundado de grande paz, e ao reconhecer que
aquele era o lugar que Deus havia escolhido para
mim, agradeci-lhe.
Eu me achava ali, esperando e contemplando o
mar da China, na "Pérola do Oriente", Hong Kong.
Cercava-nos a enseada, que separava a Ilha Victoria
da Península de Kowloon. Ela estava pontilhada de
barquinhos. Balsas se moviam entre as diversas ilhas
adjacentes, levando operários, e nos ancoradouros
viam-se muitos dos antiquíssimos juncos, que traziam
toda sorte de alimentos da China territorial para a
Colônia. Pareciam estranhamente antiquados em
comparação com os modernos arranha-céus que se
erguiam logo atrás, nas encostas dos morros, na Ilha
de Hong Kong.
Um pouco mais perto, após as docas,
entreviam-se nesgas de ruas chinesas, tão singulares,
encantadoras, com o exotismo próprio do Oriente.
Erguendo os olhos, vi à distância ás colinas dos Nove
Dragões, nos Novos Territórios, que se estendiam até
a fronteira da
China de Mao. Vista do mar, numa manhã
ensolarada, Hong Kong era belíssima.
O agente da imigração não demonstrava o
mesmo entusiasmo que eu. Pegou os formulários
preenchidos, nos quais eu declarava que tinha vindo à
Colônia para trabalhar.
— Onde mora? indagou.
— Na verdade, ainda não tenho onde morar.
— Endereço de amigos?
— Ainda não tenho conhecidos aqui.
— Onde trabalha?
— Bem, não... ainda não tenho emprego.
Ele me fitou com uma expressão de desalento.
Até esse ponto conseguira levar bem a entrevista, mas
minhas respostas não se achavam muito de acordo
com o "figurino". Tentou fazer mais algumas inda-
gações suplementares.
— Onde está sua mãe?
— Na Inglaterra.
— E sua passagem de volta?
— Ainda não tenho.
Não estava nem um pouco preocupada por não
ter passagem de volta, e não compreendia por que ele
tinha que estar. Afinal, seu rosto se iluminou oomo se
encontrando a solução.
— Quanto tem em dinheiro?
Também fiquei satisfeita, pois pensava estar
muito bem financeiramente. Chegara ali quase que
com a mesma quantia que tinha ao embarcar.
— Mais ou menos HKS100 dólares, respondi
orgulhosa.
— É pouco, replicou ele rispidamente. Hong
Kong é um lugar de vida muito cara. Não dá nem para
três dias, concluiu, e saiu apressado, à procura de seu
chefe.
Os dois confabularam por alguns instantes,
depois voltaram para onde me encontrava.
— Embora a senhora seja britânica, falou o
chefe, vamos negar-lhe permissão para desembarcar.
Espere aqui.
Fiquei ali parada, me perguntando o que iriam
fazer comigo. Na imaginação, já os via trancando-me
num camarote, obrigando-me a voltar para a Ingla-
terra. Meus amigos iriam dizer:
— Não falei? Onde já se viu, sair pelo mundo
fora, seguindo a orientação de Deus! Que atitude mais
irresponsável!
O que eu faria? E como viera parar aqui?
Quando minha mãe ficou grávida de mim,
pensou que estava esperando uma criança só, mas
deu à luz gêmeas, o que deve ter sido uma grande
decepção para meu pai, que tinha esperanças de
fundar um time de rugby* e acabou com quatro filhas.
Então procurei compensar o fato comportando-me
como um garoto. Subia em árvores e corria muito,
gostava de brinquedos masculinos e bicicletas.
Uma das recordações mais antigas que tenho,
foi de quando estava com quatro anos. Lembro-me de
que estava encostada ao aquecedor, em nossa casa, e
pensava:
"Será que vale a pena ser bom neste mundo?"
Acabei-me decidindo que, fosse lá o que eu
escolhesse fazer na vida, um dia seria conhecida e
famosa. Mais ou menos um ano depois, eu e minha
irmã gêmea estávamos na escola dominical, e uma
missionária fez uma palestra. Estendendo o dedo para
cada uma de nós, ela disse:
— Será que Deus quer vocês no campo
missionário?
Recordo-me de que logo pensei que a resposta
dessa pergunta nunca poderia ser "não", pois, logica-
mente, Deus quer que todos vão para os campos. Mas
não tinha a mínima idéia do que fosse um campo
missionário. Eu me via a mim mesma sentada à porta
de uma choupana, num lugar qualquer da Africa,
sentindo-me muito nobre e digna.
Contei a uma amiga da escola que desejava ser
missionária. Foi um grande erro. Logo percebi que
todos esperavam que eu fosse melhor do que os
outros.
__________________
* Esporte semelhante ao futebol americano e
ao nosso futebol militar.

— Mas você vai ser missionária! diziam em tom


acusador, quando eu me comportava mal.
Então inventei uma porção de outras carreiras
para desviar a atenção dos outros: regente de orques-
tra; a primeira mulher a escalar o pico do Everest;
artista de circo.
Contudo, interiormente, algumas coisas ainda
me incomodavam. Certo dia, estava passeando na
ponte do trem de ferro com Gilly, minha irmã gêmea.
Como sempre, havíamos conseguido que nossa boa
amiga Nellie nos desse pirulitos sabor limão, e pouco
depois de começar a saboreá-los ocorreu-me um
pensamento terrível: "Afinal, o que estamos fazendo
aqui na terra? Para que serve a vida?" Parecia que me
encontrava presa numa armadilha. Não podia viver
da maneira que me agradasse, pois caso Deus existisse
mesmo, um dia teria que dar satisfações a ele.
E havia também o problema do pecado. Deitada
no gramado, pus-me a olhar para o céu e a imaginar
que Deus estava lá, com um livro bem grande, no qual
estava o nome de todas as pessoas. Toda vez que
alguém praticava um ato errado, ele colocava uma
marquinha ao lado dele. Dei uma espiada na linha
correspondente ao meu nome e a fila de marcas estava
bastante comprida. Pois bem, não havia nada que eu
pudesse fazer para sanar o mal. Afinal, encontrei a
solução. Os anos estavam a meu favor, e então resolvi:
— Se eu nunca mais fizer nada errado, nunca,
nunca, talvez algum dia eu ainda pegue *Winston
Churchill e fique igual a ele. Ele é a melhor pessoa que
existe na terra, mas já é muito velho. Então, se eu
parar de pecar agora, talvez eu termine mais ou
menos igual a ele.
No primeiro ano do curso ginasial cometi outro
erro.

_____________________
*O grande líder da Inglaterra na II Guerra
Mundial, muito querido e respeitado por todo o
povo.
Eu e minha irmã estávamos sentadas à mesa do
internato tomando chá com o inevitável pão preto. A
cabeceira encontrava-se uma garota maior de nome
Mirissa. Pensei em iniciar educadamente uma conver-
sa, mas, infelizmente, escolhi o assunto errado. Tendo
ouvido a primeira transmissão radiofônica de um
programa de Billy Graham, mencionei como ficara
impressionada com o evangelista.
— Puro emocionalismo de massa! exclamou a
moça desdenhosa.
Eu tinha tanto respeito pela opinião das pessoas
mais velhas, que depois, todas as vezes que se con-
versava sobre isso na escola, eu dizia com ironia:
— Puro emocionalismo de massa!
Chegou a época de nossa "confirmação" na
igreja. Eu estava levando tudo muito a sério, mas
sentia que os outros só estavam interessados nas
roupas novas e no "chá de confirmação", que teríamos
depois da cerimônia. Meu medo era que o ministro
nos perguntasse, individualmente, em que críamos.
Mas ele não o fez. Contudo, resolvi fazer-lhe uma
pergunta.
— Em que devo pensar, no momento em que o
Bispo impuser as mãos sobre mim?
— Ah, bem... é... ore! disse ele afinal.
Eu e Gilly fomos até a frente e nos ajoelhamos, e
o Bispo impôs as mãos sobre nós. Só me recordo de
que, ao voltar para meu lugar, estava sentindo uma
grande alegria. Minha vontade era rir de felicidade.
Que atitude mais imprópria! Afinal, era um culto de
confirmação espiritual, e aquele era o momento mais
solene. O riso seria depois, na hora do chá. Eu tinha
pensado antes que gostaria de me comportar de
maneira bastante reverente e elegante nesse culto, e
não parecia haver nenhuma associação entre ele e
aquela alegria tão despropositada. Eu estava entre-
gando minha vida a Deus, e não esperava receber
nada em troca.
A primeira coisa que fiz depois disso foi pegar a
lista telefônica e procurar endereços de missões.
— Desejo ser missionária, escrevi para elas, e
creio que deveria começar a preparar-me desde já.
Quais os cursos que devo fazer?
Em resposta, eles me mandaram dizer que
haviam colocado meu nome no seu rol de associados
jovens.
Nas férias, geralmente, eu trabalhava na fábrica
de papai, ou então dava aulas particulares, ou funcio-
nava como "carteiro" para o Correio, na época do
Natal. Já me considerava uma pessoa integrada à
sociedade.
Depois, fui para o Real Conservatório de
Música, onde descobri que os músicos achavam que o
amor era o grande inspirador da música, e tive muito
trabalho para me livrar de um pistonista.
Vez por outra, eu passava pela sala da União
Cristã e via lá o quadro de avisos. Sentia um aperto na
consciência. Mas aqueles jovens ali me pareciam tão
desinteressantes e sem graça, e, além disso, na sua
maioria, eram organistas. Na cantina da escola, assen-
tavam-se sempre juntos, parecendo muito santos; não
me atraíam em nada. Não sabia sobre o que conver-
savam e nem me interessava saber. Davam a im-
pressão de serem muito solenes e tristes, e embora me
garantissem que minha vida mudaria depois que eu
viesse a "conhecer Jesus", eu não queria mudar para
ficar igual a eles.
Nesse tempo, eu gostava de freqüentar
festinhas, mas a principal forma de divertimento ali
ou era imoral ou desinteressante. Contudo, eu sempre
ia esperando encontrar ali o homem dos meus sonhos.
Foi só depois de muito tempo que compreendi que ele
nunca poderia estar presente numa daquelas festas.
Certo dia, eu estava no trem, voltando da escola
para casa, quando encontrei duas ex-colegas de esco-
la. Elas me convidaram para ir a uma reunião em uma
casa, onde um pregador maravilhoso faria palestras
sobre a Bíblia. E eu fui. Ele era realmente fabuloso.
Mas todas as outras pessoas também o eram. E o que
mais me impressionou foi que eram todos gente
normal, como eu. As moças usavam maquilagem. Os
rapazes conversavam sobre corrida de automóvel —
no entanto estavam ali porque desejavam estudar a
Bíblia. Naquele ambiente foi muito fácil falar sobre
Deus.
Contudo, eu ainda ficava incomodada quando
ouvia falar em céu e inferno. Mas o que mais me
transtornava era a idéia de que ninguém podia chegar
a Deus, a não ser por intermédio de Jesus. Compreen-
di que ou eu tinha que aceitar tudo que Jesus dissera a
respeito de si próprio, ou abandonar de vez a fé cristã.
E não foi sem relutância que orei a ele dizendo que
acreditava em tudo que ele dissera. E assim me
converti.
Passei a ter uma vida ainda mais cheia do que
antes. Pouco depois disso, um homem me perguntou
se eu acreditava em Deus.
— Não, respondi. Eu o conheço. É diferente.
Tenho paz e sei para onde estou indo.
Mas essa nova vida também me trouxe alguns
problemas. Certo dia, após o estudo bíblico, as moças
tiveram um momento de oração. Abri os olhos para
dar uma espiada. Sorriam parecendo muito felizes.
Fiquei abismada, pois se críamos que iríamos para o
céu por causa de Jesus, a recíproca também era
verdadeira — quem não cresse nele não iria. "Como
essas pessoas podem ficar sentadas aí sabendo disso?"
pensei. "E as pessoas que ainda não ouviram as
boas-novas?"
Em conseqüência disso, passei a tomar parte
numa cena que teria abominado, antes de minha
conversão. Estava tocando piano numa reunião de
jovens evangélicos em Waddon, cantando hinos sobre
a salvação. Foi aí que tive certeza de que minha vida
havia-se modificado mesmo.
Depois que me formei, comecei a dar aulas de
música. Mas eu queria dedicar toda a minha vida a
uma obra qualquer, em algum lugar. E não havia nada
que me impedisse de fazê-lo. Voltou-me a idéia de ser
missionária. '
Então escrevi para missões, escolas e
companhias radiofónicas da Africa. E todos
responderam da mesma forma — não queriam meus
préstimos.
— Ainda não podemos dar-nos o luxo de ter
músicos por aqui, diziam.
Não me deixei abater, e tratei de pedir
conselhos às pessoas que melhor pudessem me
orientar.
— O que você acha que devo fazer de minha
vida? indagava.
— Já orou pedindo a orientação de Deus?
replicavam.
Já havia orado, mas Deus ainda não tinha me
dado uma resposta clara. A Bíblia ensinava que eu
deveria crer e ele me orientaria. Uma noite, sonhei que
nossa família estava reunida à mesa da sala de jantar,
olhando um mapa colorido da Africa. Entre os
diversos países daquele continente havia um que
estava colorido de cor-de-rosa. Inclinei-me mais para
ver qual era. Estava escrito "Hong Kong".
Quando acordei, escrevi para o governo de
Hong Kong explicando que era professora de música,
formada, e gostaria de lecionar nesse país.
Responderam dizendo que não havia vagas para
músicos. Recorri então à minha sociedade
missionária. Impossível, responderam. Não aceitavam
candidatos a missionário com menos de vinte e cinco
anos. Eu teria que aguardar um pouco mais.
Ao que parecia, havia interpretado erradamente
o meu sonho.
Certa vez fui orar em uma pequena igreja de
um povoado, um lugar muito calmo. Ali tive uma
visão de uma mulher de braços estendidos, como se
estivesse implorando ajuda. Fiquei a me indagar o que
ela queria. Parecia desejar alguma coisa desesperada-
mente. Seria auxílios do Fundo Cristão? Depois, foram
surgindo umas palavras que iam passando à minha
frente, como se fossem a ficha técnica de um
programa de televisão: "O que você pode nos dar?" O
que, em verdade, eu poderia dar a ela? Se fosse
missionária, o que iria dar às pessoas? Daria o que
aprendera em meus estudos? Deveria talvez atuar
como intermediária para conseguir-lhes alimentos,
dinheiro ou roupas? Se eu lhes desse apenas essas
coisas, quando saísse de lá, voltariam a ter fome. Mas
a mulher da visão estava com fome de um alimento
que ela não conhecia.
Ocorreu-me, então, que o de que ela precisava
era o amor de Jesus. Se ela o recebesse, quando eu
saísse de lá, ela ainda estaria satisfeita, e poderia até
transmiti-lo a outros. Finalmente sabia o que tinha a
fazer — só não sabia onde.
Pouco depois disso, encontrei um amigo que
morava em West Croydon, que sabia que eu estava
orando sobre meu futuro.
— Já recebeu a resposta? indagou.
— Não, respondi.
— Gostaria de assistir às nossas reuniões? inda-
gou. Lá estamos sempre recebendo respostas.
Será que aquela gente de West Croydon
pensava que tinha uma espécie de monopólio de
Deus? Fiquei curiosa para saber o que acontecia nas
reuniões.
— Logo que cheguei, alguém me disse que não
ficasse espantada se acontecesse algo de extraordiná-
rio. Sentei-me perto da porta. Ao que parecia, iriam
exercitar os dons espirituais, e eu queria ter facilidade
de escapulir, caso fosse necessário.
Não estava muito certa sobre o que iria haver
ali. Pensava que talvez alguém fosse profetizar em
voz alta. Mas a reunião foi muito ordeira e calma, com
orações normais e os hinos de sempre. Um ou dois dos
presentes realmente falaram numa língua que eu não
compreendia, mas até certo momento não houve
nenhuma profecia estrondosa, nem voz estridente de
Deus falando comigo.
Mas depois ela veio.
Uma pessoa começou a falar em voz tranqüila, e
logo tive plena certeza de que aquilo era para mim.
"Vá. Confie em mim e eu a guiarei. Eu a
instruirei sobre o caminho em que deve andar. Eu a
guiarei com meus olhos."
Tive certeza de que Deus estava com minha
vida em suas mãos, e que muito breve iria
conduzir-me a algum lugar.
Não havia dúvida de que o povo de West
Croydon recebia respostas de Deus. Voltei para casa, e
pus-me a aguardar maiores orientações. Ainda não
sabia para onde deveria ir. Dei aviso prévio em todos
os empregos, de modo que estivesse livre para partir
logo após o encerramento das aulas.
Durante os feriados da Páscoa, trabalhei
durante uma semana na igreja de Richard Thompson.
Ele me conhecia havia bastante tempo, e eu sentia que
poderia ajudar-me. Disse-lhe que eu e Deus nos
achávamos numa encruzilhada. Ele me ordenara
claramente que fosse, mas não me dissera para onde.
— Se Deus está ordenando que và, é melhor
você ir, replicou ele.
— Mas como, se não sei para onde ir. Todos os
meus pedidos de trabalho estão sendo rejeitados.
— Bem, se você já tentou todas as formas
convencionais de trabalho missionário e Deus
continua dizendo para você ir, é melhor você começar
a mexer-se. Se já tivesse um emprego, a passagem, o
lugar para ficar, a aposentadoria e pensão, não
precisaria confiar nele, continuou Richard. Desse
modo, qualquer um pode ser missionário. Se eu fosse
você, compraria passagem num navio com destino ao
ponto mais distante possível, embarcaria nele, e
depois iria orando todo o tempo, perguntando a Deus
onde deveria descer.
Depois de vários meses, era a primeira vez que
eu recebia uma resposta definida.
— É uma idéia maravilhosa, respondi. Mas me
parece errada, pois eu adoraria fazer isso.
Eu ainda pensava que tudo que o crente fizesse
tinha que implicar em sofrimento, e que não podia ter
nenhuma satisfação em sua fé.
Mas Richard afirmou que esse plano era bíblico.
Abrão, por exemplo, deixara sua terra e, obedecendo a
uma ordem de Deus, seguira para a terra prometida
sem saber para onde ia, pois confiava em Deus.
— Não há o que temer, se você se colocar
inteiramente nas mãos de Deus, disse Richard com
muita seriedade. Se ele não quiser que você tome esse
navio, ele a deterá, ou poderá levar a embarcação para
qualquer lugar do mundo.
A idéia me pareceu fascinante.
O conselho de Richard era um pouco incomum,
mas muito sábio. Em nenhum momento, ele me deu a
impressão de que eu entraria no navio como uma
pessoa comum, e sairia dele transformada em missio-
nária, pronta para trabalhar. O que eu tinha de fazer
era simplesmente seguir a Deus, aonde ele me man-
dasse. Assim compreendi que não tinha nada a temer
nessa aventura.
Então fiz o que ele dissera. Procurei o navio
mais barato, com o percurso mais longo possível, que
passava por muitos países. Ia da França ao Japão.
Comprei a passagem, e tudo estava resolvido.
Naturalmente, eu teria que enfrentar meus pais
e amigos. Alguns se mostraram descrentes. Meu pai,
com muito bom-senso, insistia em que eu pensasse
muito, em minha "viagem de canoa para a China".
Meus pais estavam satisfeitos com a minha ida, mas
um se preocupava com o outro. Orei pelo problema, e
uma noite escutei os dois discutindo, cada um tentan-
do convencer o outro de que estava tudo certo.
O pessoal da minha sociedade missionária já
não se mostrou tão entusiasmado.
— Que conselho mais irresponsável para um
pastor dar a uma jovem, disseram. E suponhamos que
não tenha sido o Espírito Santo quem ditou as
palavras para Richard Thompson?
O dia em que parti foi um desses dias em que
tudo dá errado. O táxi que havíamos contratado para
nos levar a Londres apareceu com uma hora de atraso.
Mas afinal vi-me acomodada no vagão do trem com
minha bagagem. Richard Thompson surgiu correndo
pela plataforma, gritando:
— Glória a Deus!
E daí a pouco o trem arrancou.
O agente da imigração voltou-se para mim
muito transtornado. Por um instante pensei que eu
tinha vindo de tão longe até a Ásia, apenas para ser
repatriada. Mas de repente lembrei-me do texto que
lera pela manhã: "Eis que nas palmas das minhas
mãos te gravei." Se meu nome estava gravado ali,
então Deus sabia tudo que me dizia respeito.
— Espere um pouco, disse eu, lembrando-me
repentinamente de um afilhado de minha mãe. Eu
conheço uma pessoa aqui. Ele é da polícia.
O resultado foi dramático. Naquela época, 1966,
a polícia era tida em alta conta, e qualquer um que
tivesse um conhecido na força policial, obviamente
era uma pessoa direita.
Devolveram-me o passaporte resmungando
que eu poderia desembarcar, sob a condição de que
deveria procurar emprego imediatamente. Na opinião
deles, meu dinheiro não daria nem para três dias de
estada em Hong Kong.
3
Uma Cidade Chamada Trevas
A Cidade Murada é guardada dia e noite,
continuamente, por um exército de vigias. Assim que
um estranho qualquer se aproxima, os vigias vão
passando a notícia de boca em boca. Aqueles rapazes
saem correndo por entre barracas de lanche, entrando
e saindo por portas, e atravessando ruelas estreitas. As
verdadeiras atividades da cidade ficam
completamente camufladas para um forasteiro. Portas
se fecham, janelas são cerradas e a queima de incenso
disfarça o acre odor do ópio.
Um dos nomes chineses dados à Cidade
Murada é "Hak Nam", que significa "trevas". E
realmente trata-se de um lugar de trevas horríveis,
tanto físicas quanto espirituais. Mas quando se
conhecem os homens e mulheres que vivem e sofrem
em tal lugar, podemos ficar condoídos, cheios de
compaixão.
A Sr.a Donnithorne me convidara para visitar o
jardim da infância e a igrejinha que organizara ali,
mas não me havia preparado devidamente para o que
iria ver. Pegamos um carro até a rua Tung Tau Chuen,
situada nos arredores da cidade. É a rua dos dentistas
clandestinos, que exercem seu trabalho ilegalmente,
pois dentistas práticos não podem operar em Hong
Kong.
Logo atrás desses bizarros cômodos erguiam-se
os precários arranha-céus da Cidade Murada.
Passamos apertadamente por um vão entre duas das
lojas de dentistas e pusemo-nos a caminhar por um
beco escorregadio. Nunca me esquecerei do mau
cheiro e da escuridão reinante. Era um cheiro fétido de
comida azeda e de excremento, misturado ao de lixo e
de vísceras de animais. Fomos andando por entre as
casas, e a parte superior delas se projetava sobre a rua,
formando uma espécie de arco sobre o beco.
Parecia-me estar caminhando por um túnel
subterrâneo.
A medida que avançávamos, minha amiga ia
comentando algumas coisas: à nossa direita uma in-
dústria de flores de plástico; à esquerda, uma velha
prostituta, que era velha e feia demais para conseguir
fregueses. Então ela contratava meninas prostitutas
para trabalharem para ela. E essas tinham muitos
clientes. Nesse lugar depravado, a posse de uma
criança prostituta era considerada apenas como uma
excelente fonte de renda. "Tia Donnie" avisou-me que
mantivesse o rosto voltado para o chão, caso alguém
resolvesse esvaziar na rua seu urinol, no momento em
que passávamos embaixo. Depois vinha o cinema de
filmes pornográficos, uma espécie de pavilhão,
inteiramente lotado.
Mas havia um comércio normal também. Vimos
homens carregando na cabeça latas de concreto
re-cém-misturado. Mulheres, tendo nas mãos imensas
sacolas cheias de flores artificiais, iam saindo das
pequeninas saletas onde eram fabricadas. Ali não se
observava o "Dia do Descanso". Cinco feriados ao ano
eram mais que suficientes. Para um chinês, é de
suprema importância que os filhos trabalhem para os
pais, muitas horas por dia.
Como pode existir um lugar destes bem no
meio de Hong Kong, a Colônia da Coroa Britânica?
Há cerca de oitenta anos, quando a Inglaterra se
apossou da ilha chinesa de Hong Kong, da Península
de Kowloon e dos territórios contíguos a ela, foi feita
uma exceção. A velha cidade murada de Kowloon
deveria permanecer sob a jurisdição da China, com
seu mandarim, sujeita às leis chinesas. Mais tarde o
mandarim morreu, e seu cargo nunca foi ocupado,
nem por outro chinês nem por um inglês, e assim a
desordem passou a reinar na Cidade Murada, onde
prevalece até hoje. Ela se tornou um paraíso para o
contrabando do ouro, antros de jogatina ilegal e todo
o tipo de vícios. O desentendimento com relação à sua
posse significava que a polícia não podia impor a lei e
a ordem dentro dela. Quando querem procurar crimi-
nosos ali, entram em grupos grandes.
A cidade tem uma população muito grande,
mas é pequena. Em apenas seis acres de terra, vivem
trinta mil pessoas, ou o dobro. As condições
habitacionais são apavorantes. Não existem leis
regulamentando a construção das casas; por isso as
ruas se acham "entulhadas" de prédios de
apartamento, situados em ângulos os mais loucos,
sem água, luz ou esgoto. Excrementos são atirados nas
ruas, que exalam constante mau cheiro. No andar
térreo, existem apenas dois banheiros para as trinta
mil pessoas. E esses dois não passam de buracos feitos
no chão sobre fossas já transbordantes. Um é para as
mulheres e o outro para os homens.
Seria muito improvável que num lugar como a
Cidade Murada houvesse escolas e igrejas. Mas a Sr.a
Donnithorne tinha conseguido abrir uma escolinha
primária. Os professores não eram formados, mas
haviam feito o curso secundário. Era uma escola
pequena, com várias centenas de alunos. No primeiro
dia em que fui visitar o local, Tia Donnie pediu-me
que lecionasse nela. Antes de pensar duas vezes
repliquei:
— Pois não!
E sem que soubesse claramente em que estava
me metendo, concordei em dirigir a bandinha de
percussão, ensinar canto e conversação em inglês, três
vezes por semana.
Pelo sistema chinês, aprende-se tudo de cor. E
todos os meses se fazem provas, bem como ao fim do
semestre e do ano. A criança reprovada nos exames
finais tinha que repetir todo o ano escolar.
As aulas da bandinha e de canto não apresenta-
vam muita dificuldade para mim, mesmo levando-se
em conta que não conversava muito com os alunos,
mas, quanto às aulas de conversação, meu fracasso foi
total.
Tentei vitalizar mais as aulas dramatizando as
histórias, mas eles não corresponderam. Todas as
vezes que tentava fazer isso aconteciam verdadeiras
guerras na sala de aula. A liberdade que eu tentava
aplicar, em poucos minutos transformava-se em anar-
quia.
Uma vez por semana, à noite, havia um culto
numa das salas de aula. E a Sr.*a Poon — nome que,
orgulhosamente, me deram em chinês — tocava o
harmónio.
A maioria das pessoas que vinham era
constituída de mulheres mais velhas, algumas
carregando crianças presas às costas. Vim a descobrir
depois que muitas delas, sendo analfabetas, vinham à
igreja para ter aula de leitura. Começavam cantando
entusiasticamente, em voz bem alta. Em seguida, a
instrutora bíblica expunha os ensinamentos em
cantonês. Nessa época, eu não entendia uma palavra
do que era dito, mas sentia que participava do culto.
Na primeira noite em que lá estive, uma mulher
me captou a atenção, naquele grupo de chineses. Era
uma velha verdureira: tinha o rosto muito sulcado de
rugas, e apenas dois dentes, que estavam sempre em
evidência, pois a mulher sorria constantemente. Ela se
aproximou de mim e puxou-me pela manga, com
veemência. Ficou falando e falando, sorrindo e
puxando a manga. Pedi a alguém que interpretasse
para mim o que ela estava dizendo.
— Até a semana que vem! Até a semana que
vem!
Tive vontade de dizer a ela que não poderia ir
todas as semanas, pois morava muito longe, e quando
voltava para casa já era muito tarde, e eu tinha que me
levantar cedo para dar aula. Mas senti que não
conseguiria explicar-lhe tudo isso. Ela só
compreenderia que eu estaria ali ou não estaria. Então
resolvi ir ao culto todos os dias, só por causa dela.
Aquela altura, eu já tinha um emprego fixo:
dava aulas numa escola primária, pela manhã.
Lecionei ali durante seis meses. Além disso, auxiliava
Tia Donnie na escolinha dela, três vezes por semana, à
tarde, tocava nos cultos de domingo, e preparava
programas musicais em prol de várias instituições de
caridade. Isso tomava todo o meu tempo.
Na segunda vez que fui à Cidade Murada, tive
uma sensação maravilhosa: aquela vibração interior
que se tem no dia do aniversário. E comecei a me
indagar por que me sentia tão feliz. E na outra vez que
fui ali, experimentei exatamente a mesma coisa. Isso
me parecia um pouco descabido, num lugar tão
revoltante como aquele. E, no entanto, quase todas as
vezes em que me encontrava nesse reduto de
marginalidade, nos doze anos que se seguiram, sentia
o mesmo gozo. Eu já tivera um vislumbre dessa
alegria no dia da minha "confirmação", e depois
quando recebera a Jesus em minha vida — mas
experimentar o contentamento espiritual nesse lugar
profano?
— Aquele ali é viciado, disse-me Tia Donnie
certa manhã, quando nos dirigíamos para a escola.
Nessa ocasião, eu ainda não sabia direito o que
significava ser viciado. Ele iria nos agredir, roubar-nos
o relógio ou ter um acesso? Era um homem de aspecto
patético, que, com movimentos lentos, catava coisas
num monte de lixo. Estava examinando os detritos ali
deixados, um por um, para ver se havia algum objeto
que pudesse ser de valor para ele. Dava a impressão
de estar muito doente, o rosto muito pálido, e parecia
ter setenta anos e não trinta e cinco. Usava uma
camiseta de algodão bastante suja e sandálias de
plástico, já bem gastas. A maioria dos chineses anda
sempre muito limpa, mas o Sr. Fung estava imundo.
Seus dentes eram pretos, quebrados. O cabelo cortado
rente indicava que acabara de sair da prisão. Mas,
para ele, a cadeia era apenas um lugar para dormir e
comer com mais regularidade.
Mas, na verdade, cama e comida não era o que
importava para ele. Fung vivia para "perseguir o
dragão". Essa maneira chinesa de tomar droga tem
seu ritual próprio. O viciado chega a um local de
comércio de drogas, pega um pedaço de folha de
alumínio e coloca nela alguns grãozinhos de heroína.
Acende um paviozinho feito de papel enrolado e
coloca sob o alumínio, a fim de aquecer a droga. A
heroína vai-se derretendo lentamente,
transformando-se numa espécie de melaço escuro e
fumegante. Ele coloca na boca a parte externa de uma
caixa de fósforo para servir de funil, pelo qual ele irá
inalando a fumaça. Em seguida, põe-se a mover a
folha de alumínio, fazendo o filete de líquido grosso
escorrer de um lado para outro, acompanhando o
movimento da fumaça com a boca. Chamam a isso
"perseguir o dragão".
Pouco depois, fiquei sabendo que nem todos os
viciados tinham uma aparência como a do Sr. Fung.
Alguns deles estão sempre bem vestidos. Para estes, o
fato de se apresentarem bem é uma evidência de que
não se acham escravizados ao dragão. Como passara a
ir à cidade com freqüência, vi o Sr. Fung muitas vezes.
Comecei a me indagar se não deveria fazer alguma
coisa por ele e por outros iguais a ele.
A prostituição raramente era camuflada. A pri-
meira prostituta que vi ali chamou minha atenção por
estar usando batom e esmalte num tom vermelho
berrante. Ficava o dia inteiro agachada na rua, uma
rua tão estreita que o rego do esgoto passava perto de
seus pés. Rua abaixo havia outras delas, sentadas
sobre caixas de laranjas e uma delas tinha até uma
cadeira. Na sua maioria também eram viciadas em
drogas. As marcas escuras no dorso da mão
revelavam que injetavam heroína diretamente na veia.
Eu passava ali todos os dias e nunca saberia dizer
quando estavam acordadas ou dormindo. Estavam
sempre pendendo a cabeça, o branco dos olhos
amarelado pelo torpor da heroína.
Um dia tentei tocar na menorzinha. Aprendera
a "Jesus te ama", em chinês.
— Yeh sou ngoi nei, falei.
Mas ela se encolheu toda, fugindo ao meu
contato. Vendo a expressão de seu rosto, compreendi
subitamente que cometera um erro. Ela colocara uma
barreira entre nós, e eu não sabia o que fazer para
derrubá-la. A moça estava fortemente constrangida,
porque eu, uma jovem "limpa", cometera um engano e
tocara nela, uma suja.
Fui percebendo aos poucos que as mulheres
mais velhas se engajavam na obtenção de clientes.
Quando os homens saíam do cinema pornográfico, as
mama-sans quase os agarravam e puxavam para ali. As
vezes dava para ouvi-las dizer, empurrando-os escada
acima:
— Venha, ela é bem jovem, e é barato.
Naturalmente, as mocinhas não ficavam com o
dinheiro. A maioria das prostitutas era
controlada por quadrilhas, e os bordéis só podiam
funcionar com permissão da quadrilha, que
controlava a área em que se encontravam.
Havia duas mocinhas que eu via
ocasionalmente. Uma delas era aleijada e a outra
retardada. Ambas eram prisioneiras. Nunca saíam a
não ser acompanhadas por uma mama-san. Eram
visitadas por três clientes a hora. Nessa época uma
tinha treze e a outra quatorze anos. Mais tarde, vim a
saber, através de um membro da quadrilha, como
essas moças eram iniciadas nesse tipo de vida.
Os rapazes organizavam uma festinha e
convidavam mocinhas. Durante a festa, as jovens
eram seduzidas. Se resistissem, eram estrupadas. Via
de regra, cada membro da quadrilha pegava sua
menina e ficava com ela durante alguns dias. Depois
que percebia que ela já estava afeiçoada a ele e
acostumada com o sexo, ele a entregava a um bordel.
Outras mocinhas se prostituíam, porque seus
pais não tinham condições de sustentá-las, e as
vendiam para o comércio da prostituição, onde
permaneciam até se tornarem mais adultas. Depois
disso, muitas dessas antigas meninas-prostituas
fugiam de seus donos e se lançavam na carreira,
fazendo a única coisa que sabiam. Algumas dessas
crianças iniciavam este tipo de vida com nove anos de
idade.
Comecei a planejar um modo de alcançar essas
moças, que estavam sempre tão bem vigiadas. Afinal
tive que desistir disso e "arquivei" mentalmente o
problema, mas tinha esperanças de que um dia
pudesse encontrar um homem que se interessasse por
esse trabalho, e pudesse pagar a quantia necessária
para uma hora com elas, mas que, nesse tempo,
pregasse o evangelho para a jovem. Talvez juntos, eu e
ele, pudéssemos conceber um plano de fuga para elas,
se alguma quisesse abandonar esse tipo de vida.
4
O Clubinho
Às vezes penso que a verdadeira razão por que
criei o clubinho foi Chan Wo Sai. Era um rapazinho
feioso, de quinze anos, e com tantos problemas,
quantos pode ter qualquer outra pessoa. Conheci-o
quando dava aulas de inglês e canto na Escola
Primária Oiwah, três tardes por semana. Estava ensi-
nando uma musiquinha muito simples, sem arroubo
nenhum, e, no entanto, lá estava Chan Wo Sai
parecendo realmente empolgado com uma
cançãozinha infantil. Girava os olhos e estalava os
dedos. Depois levantou-se e pôs-se a dançar pela sala,
vindo em minha direção, remexendo os quadris com
um jeito bem sensual. Mandei que voltasse para o
lugar, e passei a ensinar outra música. Após a aula,
procurei descobrir as origens dele.
Chan Wo Sai nascera ali mesmo, na Cidade
Murada. A mãe era prostituta e o pai, um bêbedo.
Viviam num pardieiro, numa casa que havia desaba-
do. Toda a família ocupava um quartinho minúsculo.
Na casa ao lado, moravam algumas prostitutas. Desde
que se entendeu por gente, o garoto passou a conviver
com esses fatos; eram parte de seu quotidiano. Seus
horizontes eram limitados pelo bordel ao lado, os
antros de jogo um pouco abaixo e os salões de ópio
depois desses. Na Cidade Murada não havia nada que
oferecesse a alguém uma atividade mais construtiva.
Então procurei conhecê-lo e ajudá-lo a melhorar
de vida.
Isso seria um pouco difícil, já que eu não falava
uma só palavra de cantonês. E para dificultar ainda
mais as coisas, ele tinha uma deficiência de fala que
embaraçava ainda mais nossa conversa. Nosso único
ponto em comum era uma espécie de tambor que eu
havia dado a ele. Consistia numa membrana de
borracha presa numa armação de madeira, na qual se
batia com baquetas; uma bateria surda. Ele tinha que
treinar naquilo, mas não tinha o menor senso de
ritmo. Mas ele se mostrava muito satisfeito, pois era a
primeira vez na vida que alguém demonstrava algum
interesse por ele.
A medida que os dias iam passando, percebi
que estava constantemente pensando nele, e isso me
deixou um pouco alarmada. Minha mentalidade
inglesa me levava a crer que qualquer amor por um
rapaz tinha que ser de natureza romântica, e, sendo eu
crente, isso teria que terminar em casamento. Mas,
naquele caso, obviamente, isso era impossível, e até
mesmo ridículo. Meu bom-senso dizia que ele era um
rapaz feioso, com uma formação das piores possíveis.
Mas eu realmente o amava e orava por ele constan-
temente. Cheguei a um ponto em que estaria disposta
a dar minha vida por ele.
Algum tempo depois, vim a compreender o que
se passava comigo, e fiquei bastante surpresa. Era
como se Deus tivesse me concedido um amor especial
por ele, que eu deveria demonstrar, embora não se
tratasse de um sentimento que devesse ou pudesse ser
retribuído. Era um amor que tinha por objetivo o bem
dele, e diferia bastante do amor que eu sentira por
outras pessoas, para o qual sempre tinha desejado
alguma forma de retribuição.
Dentre os vários grupos humanos necessitados
que pululavam a Cidade Murada, o mais desatendido
era o dos adolescentes. As crianças menores, pelo
menos, tinham a chance de freqüentar uma escola
primária. Mas os adolescentes não tinham nada. Era
praticamente impossível estudar num ginásio. E eles
tinham de trabalhar nas indústrias de plástico, onde
ganhavam pouquíssimo.
Muitos rapazinhos, e até mocinhas, saíam de
casa e iam viver com outros jovens em cômodos
miseráveis. Pouco depois, não tendo nenhuma
atividade, caíam na senda do crime. Muitas vezes, as
quadrilhas é que lhes ofereciam a única forma de
ocupação possível.
Durante o verão de 1967, toda a China fora con-
vulsionada pelas atividades da Guarda Vermelha.
Aquela "epidemia" chegou também a Hong Kong.
Houve tumultos por toda a colônia. Vim a descobrir,
porém, que alguns rapazes da Cidade Murada esta-
vam sendo pagos para participarem do tumulto. Per-
cebi então que poderia convencê-los a fazer um
piquenique. Então, num dia úmido de junho, disse a
Tia Donnie em tom bastante pomposo:
— Acho que Deus está querendo que eu
organize um clubinho para jovens.
Eu imaginava o trabalho sendo realizado com o
auxílio de uma equipe de obreiros cristãos da ilha de
Hong Kong, todos escolhidos a dedo, que iriam avan-
çar sobre a cidade com um programa de ação mu.'to
bem planejado, enquanto eu ficava sentada, assistindo
e aplaudindo.
Meu plano era termos um salão que abrisse
todas as noites, e aos sábados e domingos. Seria um
lugar onde os rapazes pudessem jogar tênis de mesa e
engajar-se em outras atividades saudáveis, mas igual-
mente um lugar onde ouvissem falar de Jesus. Mas Tia
Donnie tinha uma atitude mais prática.
— Ótimo! Há anos estou orando por isso.
Quando pretende começar? A semana que vem?
Começamos uma semana depois. Ainda dava
para contar nos dedos as palavras de cantonês que eu
sabia. Não contava com minha equipe escolhida a
dedo e não tínhamos um local para nos reunirmos.
Mas passamos a usar uma sala da escola nos sábados
à tarde. E Gordon Siu; um jovem chinês que eu
conhecera na Orquestra Juvenil, veio em meu auxílio
como intérprete, tornando-se um esteio para mim. Ele
me ajudava a alugar ônibus, acompanhava-nos nos
piqueniques, ou ia patinar conosco. Pouco depois,
começaram as férias, e, ao pensar que os rapazinhos
poderiam envolver-se mais nos tumultos de rua,
resolvi ampliar ainda mais nossas atividades.
De reuniões apenas aos sábados, passamos a ter
um completo programa de verão, com piqueniques,
caminhadas a pé e visitas às plantações do
refloresta-mento. E nos anos que se seguiram
realizamos o mesmo programa em julho e agosto.
Os primeiros a aparecer foram os adolescentes
de treze e quatorze anos, que traziam também seus
amigos de fora. Todos sabiam que eu estava ali
basicamente porque era cristã, e que em toda a
programação sempre haveria uma pequena palestra
no início. Eles não gostavam muito de ouvir falar de
Jesus. Nem ao menos sabiam direito quem ele era.
Alguns jovens me disseram que não poderiam ir ao
clubinho.
— Nós bebemos e fumamos, vamos ao cinema e
jogamos, e sabemos que os crentes não fazem essas
coisas.
Pouco depois, Chan Wo Sai largou a escola.
Estando com quinze anos, era um dos mais velhos
alunos do quarto ano. Achava-se com quatro anos de
atraso, pelo menos, em seus estudos. Ele resolvera não
concluir o ano. Fora aberto um novo cinema, e ele
conseguira um emprego de vender ingressos.
Para a inexperiente professora inglesa, largar a
escola primária era uma coisa terrível. Durante todo o
período das férias, tentei persuadir o garoto a voltar.
Por fim, ele resolveu ir conversar com os professores,
mas eles se recusaram a recebê-lo.
— Olha, Jackie, disse um deles, ficamos muito
satisfeitos quando ele decidiu sair, porque não conse-
guíamos controlá-lo mais. Pois que vá!
E era uma escola missionária! Os professores
eram crentes, e eu imagina que, quando se reuniam
para orar, intercediam por alunos difíceis e
problemáticos como Chan Wo Sai.
Mas a verdade era que a maioria deles mal
havia completado o segundo grau. Diziam-se cristãos
apenas para conseguirem o emprego, e eram
incapazes de controlar quaisquer alunos, a não ser que
fossem bastante dóceis.
A única alternativa que restava a Sai era fazer
um curso profissionalizante, onde pudesse aprender
algum ofício. Viemos a descobrir, porém, que ele não
se qualificava para nenhum deles, ou porque já
passara da idade, ou porque não tinha terminado o
primário, ou porque não falava inglês. Todas as portas
se fechavam para Chan Wo Sai, embora ele tivesse
apenas quinze anos.
O que iria suceder-lhe? Parara de estudar e, ao
que parecia, a única perspectiva de vida para ele era
vender ingressos no cinema. Não havia nada mais que
eu pudesse fazer por ele, a não ser manter o clubinho
em atividade. Vários dos seus amigos que paravam de
estudar iam para as quadrilhas. Sentiam que ali
tinham uma função na vida. Tinham sua posição certa
e eram tratados como uma pessoa importante.
Encontravam ali até um pouco de carinho e afeto,
consideração e amizade, o que não achavam em ne-
nhuma outra parte. Tanto na igreja como na escola, o
sucesso nas provas era sinônimo de valor e integri-
dade. Mas nem nas quadrilhas nem em meu clubinho,
eles escutavam palavras de condenação ou rejeição
pelo fracasso.
O nosso Clubinho Jovem era realmente bem
diverso de tudo o mais que havia na Cidade Murada.
Ninguém obtinha lucros com ele; não era controlado
por chefes de quadrilhas. Tivemos de mudar várias
vezes, mas era sempre o mesmo. Um salão com alguns
joguinhos tais como mesa de pingue-pongue e alvo
para dardos, alguns bancos toscos e uma estante com
alguns livros evangélicos".
Outro rapaz que vim a conhecer bem naquela
época foi Nicholas. Tanto o pai como a mãe já tinham
sido processados por venda de drogas, e a família
toda vivia numa das piores casas que já vi. As duas
filhas mais velhas eram prostitutas. E todos moravam
em apenas um cômodo pequeno e malcheiroso.
Os membros da igreja não gostavam de
Nicholas, pois ele, do mesmo modo que Chan Wo Sai,
exercia uma influência negativa sobre os outros
alunos da escola. Naturalmente eles sabiam que suas
irmãs eram meretrizes e o pai viciado em ópio. Na
opinião deles, o fato de eu receber Nicholas em nosso
clubinho implicava em descrédito para o bom nome
da igreja cristã. Eu não devia nem ser vista em
companhia dele.
Eu sabia que o rapaz tinha má conduta e estava
sempre dando trabalho. Mas eu o amava, embora isso
fosse absurdo. Jesus viera ao mundo por causa de
pessoas iguais a ele, o que também não fazia muito
sentido.
Resolvi então fazer-me amiga dele e visitá-lo
seguidamente. Interessava-me bastante por ele.
Encontrava-o nos antros de droga, e, quando era
preso, acompanhava-o à delegacia, e ali orava por ele.
Mas nada disso o tocava para que se modificasse.
Vim a compreender depois que naquele lugar
de tamanhas trevas não havia a noção do conceito de
retidão. O crime, a mentira e a corrupção eram coisas
certas, desde que dessem lucro. Mas as pessoas que
assim pensavam assumiam uma atitude de moralida-
de em minha presença. E achavam que tal atitude era
correta, já que eu era representante da Igreja, do
Sistema.
— Nicholas é um menino terrível, dizia a mãe,
repreendendo-o bem na minha frente, e depois se
lamentava: não sei por que meus filhos são todos uns
perdidos.
E ela era uma pessoa que preparava os
saquinhos de heroína para vender aos viciados.
Tempos depois, uma das meninas mais novas,
Annie, também se tornou prostituta. Mas, afinal,
acabou fazendo um bom casamento. O noivo era
for-gei, mas também trabalhava para a polícia, fazendo
a arrecadação do dinheiro do suborno. Annie ficou
muito feliz de se casar com ele, pois o rapaz tinha seu
próprio carro. E sua mãe também ficou encantada.
Certo dia, quando eu caminhava pela rua, um
velho correu ao meu encontro. Tinha o rosto esquelé-
tico dos viciados em ópio, e estava furioso.
— Poon Siu Jeh, você tem que reclamar na
polícia. Era proprietário de um salão de consumo de
ópio, um homem muito importante na Cidade
Murada.
— E por que eu deveria reclamar? indaguei.
— Por que fecharam todas as salas de ópio,
disse ele muito encolerizado.
— Mas estou muito satisfeita de saber que
fecharam as salas de ópio, respondi. Por que deseja
que eu reclame?
— Porque deixaram as de heroína funcionando,
e pagamos a eles a mesma quantia que os outros. Isso
não é justo.
Não se tratava do que era certo e errado, mas
justo e injusto.
Joseph foi um dos primeiros presidentes do
clubinho. Não tinha nenhuma ligação clara com o
crime organizado, como Nicholas e Chan Wo Sai.
Quando ele estava com seis anos, seu pai casou-se de
novo; e como a madrasta não gostasse dos enteados,
não lhes dava o que comer. Então Joseph e sua irmã
Jenny tiveram que sair mendigando. Mas um pastor
de Novos Territórios os apanhou e enviou para a
escola da Tia Donnie. Depois de terminar o curso
primário, Joseph arranjou um quarto para morar e
pôs-se a trabalhar em serviços pesados, sempre que
conseguia algum. Pouco depois, sua irmã foi morar
com ele.
Depois, tipos como Nicholas começaram a fre-
qüentar seu cômodo, passando a noite ali, e seu
quartinho se tornou uma "incubadeira" de quadri-
lheiros. Passei a visitá-los com regularidade. A irmã
também estava correndo perigo moral. Aos quinze
anos era muito bonita, e estava-se deliciando com a
liberdade que tinha. Podia conversar à vontade com
os amigos do irmão. Senti que, se continuasse moran-
do com ele, ela iria fatalmente acabar tomando o
caminho inevitável. Não poderia abrigar a ambos em
minha casa, já que havia outra moça da Cidade
Murada, Rachel, morando comigo. Mas achei que
Jenny poderia vir. Convenci-a a sair de lá para ficar
conosco. Arranjei uma escola secundária para ela, mas
o desejo da moça era voltar para a Cidade Murada, e
durante o período em que esteve conosco, causou-nos
muitos problemas.
Outro rapaz que freqüentava assiduamente o
clubinho era Christopher, que morava num casebre.
Para se chegar lá, descia-se por uma ruela escura,
onde não penetrava a luz solar. Em determinado
ponto, havia alguns galinheiros feitos de engradado
de refrigerantes. Era ali. Subia-se uma escadinha de
madeira, e estava-se na casa dele. A porta era aberta
de baixo para cima, como um alçapão. Era apenas um
cômodo. Uma cortina servia de tapume para o canto
onde a família dormia. Nele havia apenas dois
beliches e todos dormiam naquelas duas camas, os
pais e seis filhos.
O resto do aposento estava ocupado por
imensas pilhas de artefatos de plástico, com os quais a
mãe dele trabalhava, ganhando mais ou menos um
dólar por dia. Todos os filhos tinham que ajudá-la. A
filha mais nova nem chegara a terminar a escola. Aos
treze anos fora trabalhar numa fábrica de artigos de
plástico. E todo o dinheiro que ganhava tinha que ser
entregue à mãe. E depois que chegava do serviço,
tinha que trabalhar mais, pregando lantejoulas em
roupas. Quando fazia uma blusa de frio, por exemplo,
ganhava mais três dólares, que, naturalmente, seriam
de sua mãe.
Assim Christopher começou a trabalhar, e seu
dinheiro também era entregue à mãe. Era uma tradi-
ção dos chineses, uma lei não escrita: os filhos tinham
que pagar aos pais pelo sustento deles recebido. A
ambição dos pais era aposentarem-se e serem susten-
tados pelos filhos. Os jovens chineses não tinham
nenhuma satisfação ao receberem seu pagamento,
pois nunca ficavam com ele. Os pais retinham tudo. A
mãe de Christopher foi assim ajuntando dinheiro e,
mais tarde, comprou um apartamento para si, fora da
Cidade Murada.
Muitos casais chineses têm família numerosa
por razões econômicas: para que fiquem ricos ao
envelhecer. Tive a impressão de que a afeição familiar
não se baseava em um amor mútuo, mas, sim, em
interesses econômicos.
Ah Lin, a irmã mais nova de Christopher, afinal
se rebelou contra aquela exploração. Conheceu em sua
fábrica um rapaz que gostava dela, mas a mãe proibiu
o namoro. Também não permitia que ela freqüentasse
o clubinho, pois as atividades dele eram, em sua
maior parte, recreativas. O divertimento, pura e
simplesmente, não deveria existir para ela. A menina
tinha que ficar em casa, e olhar os irmãozinhos, ou
então montar as peças dos objetos de plástico, ou
buscar água. Finalmente, a garota, com quatorze anos,
fugiu de casa e foi morar com o rapaz. A mãe
conseguiu pegá-la de volta e trancou-a em casa. O que
ela fizera significava não apenas vergonha para a
família, mas também um rombo nas finanças dela.
Sendo as meninas tratadas assim, como se fossem
bens particulares, não é de se estranhar que caíssem
na prostituição para se libertarem.
Minha tarefa era fazer o povo da Cidade
Murada entender quem fora Cristo. Se não
conseguiam compreender as palavras que
pregávamos sobre Jesus, então nós, os crentes,
tínhamos que demonstrar na prática quem ele era,
pelos nossos atos e conduta. Então iniciei o que eu
chamava de "andar a segunda milha". Parecia que
havia muitos cristãos que não se importavam de
andar a primeira milha; muitos que não se dariam ao
trabalho de andar duas e nenhum que quisesse andar
três. Aquele povo ali precisava que se andasse com
eles uma maratona.
Fui-me envolvendo cada vez mais com os
rapazes, seus familiares e seus problemas. Implicava
em viver diante deles de maneira prática, para que
vissem quem Jesus era, e o conhecessem. Um exemplo
desse tipo de conduta foi o que se deu, quando um
dos rapazes me pediu que ajudasse sua irmã a
conseguir matrícula numa escola secundária. O
processo normal era ficar na fila um dia inteiro,
apenas para pegar um formulário para fazer o exame
de admissão.
Aquela família esperava que eu simplesmente
fosse à diretora e lhe dissesse:
— Olhe, eu sou fulana de tal, conheço o Dr.
Sicrano. Será que poderiam admitir aqui essa menina?
Mas não fiz isso. Entrei na fila, como todo
mundo, e eles ficaram muito espantados, pois quando
haviam pedido meu auxílio, não era isso que tinham
em mente.
Eu só podia dar esse tipo de ajuda durante as
férias, pois estava dando aulas de música em tempo
integral no Colégio Anglo-Chinês para meninas. Mas
durante muito tempo, muitas pessoas se agregaram a
mim simplesmente pensando que, se ficassem em
meu grupo, talvez conseguissem um certificado de
batismo ou um documento qualquer que lhes
possibilitasse emigrar para os Estados Unidos. Eram
os "crentes da sopa". Tratavam-me como haviam
tratado outros missionários, crendo que eu fosse uma
presa fácil. Estavam constantemente pedindo dinheiro
emprestado. E não acreditavam, quando eu lhes dizia
que não o tinha. Os diálogos eram quase sempre mais
ou menos assim:
— Poon Siu Jeh, estou sem emprego e meu
dinheiro acabou.
— Mas eu não tenho dinheiro.
— Ah, mas você deve ter sim. Você é muito rica.
— Não; não tenho dinheiro nenhum.
— Tem, sim. Você tem uma igreja na América
que a sustenta.
— Não, não tenho igreja. E eu vim da Inglaterra.
Mas não sou sustentada por igreja nenhuma.
— Ah, qualquer dia desses você pega um jato e
volta para sua terra.
— Não; não existe a menor probabilidade de
isso acontecer, pois não tenho dinheiro para a
passagem, respondia eu com toda a sinceridade.
— Então seus pais lhe mandam dinheiro.
— Meus pais também não têm muito dinheiro,
replicava.
Aquela altura, Ah Ping entrava na conversa. Ele
pensava um pouco mais que os outros, e seus
comentários eram sempre mais precisos.
— É, talvez você não tenha dinheiro mesmo,
mas sempre pode ir embora, se quiser. Nós não
podemos. Não temos para onde ir. Mas vocês, os
ocidentais, podem pegar o avião e ir embora, e depois
se esquecem completamente de nós.
— Não, Ah Ping. Não estou pensando em ir
embora e esquecer vocês.
Mas Ah Ping sabia falar, quando se
entusiasmava. E hoje ele iria dizer uma coisa que
todos eles pensavam.
— Vocês, os ocidentais, continuou ele, vêm aqui
e falam de Jesus para nós. Ficam aqui um ou dois
anos, para aplacarem a consciência, e depois vão
embora. Esse Jesus chama vocês de volta para fazer
outro trabalho, na sua pátria. É verdade que lá muitos
conseguem angariar bastante dinheiro para nós, po-
vos mais carentes. Mas continuam bem, morando em
belas casas, com geladeiras e empregados, enquanto
nós continuamos vivendo aqui. Mais cedo ou mais
tarde, você também irá embora.
Era um forte libelo contra aqueles evangelistas
que chegavam a Hong Kong, cantavam lindos hinos
sobre Jesus e depois pegavam o avião e iam embora.
— ótimo, dizia Ah Ping, ótimo para eles e para
nós também. Teríamos muito prazer em crer em Jesus,
se também pudéssemos pegar um avião e viajar pelo
mundo todo, como eles. É muito fácil para eles cantar
hinos que falam de amor, mas o que sabem a nosso
respeito? Nada; não sabem nada. E não nos
conquistam tampouco.
Houve ocasiões em que tentei conversar com os
guardas das salas de jogo, mas quando mencionava
que Jesus os amava, eles acenavam a cabeça afir-
mativamente.
— Ótimo! Muito bom! diziam. Mas isso não
significa nada para nós.
E não significava mesmo, pois a maioria nem
tinha idéia de quem era Jesus, e do que fosse amor. E
eu continuei a pregar, dizendo que Jesus poderia
dar-lhes uma nova vida, mas não pareciam entender
nada.
5
Luz nas Trevas
Jesus não apenas afirmou que era Deus, ele de-
monstrou isso. Fez os cegos recobrarem a visão, os
surdos, a audição, e os mortos voltarem à vida.
Alguns cristãos diziam que estas coisas ainda
aconteciam em nossos dias, mas eu não as estava
vendo.
Meus amigos missionários não podiam
auxiliar-me muito nessa questão. Muitos deles tinham
vivido sempre na China e se sentiam meio
desarvorados. Alguns ainda tinham certos ranços
culturais, e começaram a influenciar-me a tal ponto,
que passei a me preocupar com detalhes tais como se
devia usar vestidos sem mangas ou se devia ir nadar
aos domingos. Eu não pertencia a nenhuma missão, e,
na verdade, estava bem livre de imposições. Contudo,
estava me sentindo tolhida, infrutífera.
Certo dia fui tocar harmónio na Capela. Lá
conheci um casal chinês que iria dirigir o culto, e
percebi neles uma vitalidade e um poder que eu
desconhecia. Imediatamente, tive vontade de saber
por que eram tão diferentes. Não falavam inglês
muito bem, e eu mal falava chinês.
— Você não possui o Espírito Santo, disseram.
Ligeiramente indignada repliquei que o tinha
sim.
"É lógico que possuo o Espírito", pensei comigo
mesma. "Se não o tivesse não poderia crer em Jesus."
Mas estava claro que aquele casal tinha algo que
eu não tinha, e eu o reconhecera, apesar de não ter
entendido bem a mensagem. Eles denominavam-no
possuir o Espírito Santo, ao passo que eu preferia
outra expressão. Mas, se Deus tinha outra bênção para
mim, gostaria de recebê-la, e deixaria para depois a
nomenclatura teológica. Então combinei visita-los em
seu apartamento no dia seguinte.
O apartamento deles, como milhares de outros
da cidade, tinha apenas um cômodo. Havia ali uma
mesa sobre a qual se viam um prato com laranjas e
outro com pedaços de flanela molhada. As laranjas
eram usadas tradicionalmente pelos chineses para
qualquer comemoração, e os pedaços de flanela eram
para quando eu chorasse.
Senti meu coração pulsar com força, pois não
sabia exatamente o que iria acontecer ali. Então me
sentei, e eles impuseram as mãos sobre minha cabeça
e começaram a falar repetidamente:
— Agora comece a falar, agora comece a falar,
agora comece a falar...
Mas não aconteceu nada. No grupo de West
Croydon havia algumas pessoas que falavam línguas
estranhas, mas ninguém gostava de conversar muito
sobre esse dom. Parecia-me maravilhoso ter uma nova
língua na qual pudesse expressar a Deus todos os
pensamentos, mas fechei a boca firmemente. Se Deus
quisesse dar-me o dom, ele teria que fazê-lo, e não eu.
Contudo, estava-me sentindo cada vez mais
envergonhada, além de um grande desconforto e
muito calor. Eles iriam ficar muito desapontados, se
nada acontecesse. Afinal, não consegui me conter
mais, e abri a boca para dizer: "Ajudem-me!" Foi aí
que começou. Logo que fiz aquele esforço consciente
para abrir a boca, percebi que estava falando
fluentemente uma língua que nunca aprendera. Era
uma língua muito bela, bem articulada, suave e
coerente. Não tive a menor dúvida de que tinha
recebido o sinal. Mas não me sobreveio nenhuma
alegria esfuziante. Foi totalmente desprovido de
emoção.
O casal chinês ficou encantado ao ver que eu
falara em línguas, embora um pouco surpreso de não
me ver chorar. Mas eles choraram um pouquinho.
Ainda me sentia um pouco constrangida, e saí assim
que pude. Quando estava à porta, disseram-me:
— Agora você pode esperar que os outros dons
do Espírito vão aparecer também.
Mas não entendi bem o que quiseram dizer. Na
semana seguinte, todos os dias, ficava esperando que
o dom de cura ou o de profecia surgissem de repente.
Eram os dois únicos dons do Espírito de que eu ouvira
falar. Eu não tinha dúvida nenhuma acerca da valida-
de e do uso deles, mas não sabia quando uma pessoa
reconhecia que os possuía.
Outra coisa que me intrigava um pouco era o
fato de não estar dominada pela emoção. Lera livros
que haviam-me deixado com a impressão de que
aquela experiência iria fazer-me andar nas nuvens.
Procurei, então, alguém em Hong Kong que pudesse
dar-me umas explicações sobre isso, mas não
encontrei ninguém. Alguns amigos missionários me
disseram, em tom sombrio:
— Na China, aconteceu uma coisa muito
perigosa que ocasionou divisão nas igrejas.
Os missionários pentecostais informaram-me
que haviam feito um acordo com os demais
evangélicos de não conversarem com outros sobre os
assuntos em que divergissem, falando só sobre Jesus.
Mas o ensino sobre os dons estava na Bíblia, tinha
vindo de Deus, como isso poderia ser perigoso?
Com o passar dos meses, comecei a pôr de lado
a questão toda. A experiência não havia mudado em
nada a minha vida espiritual. Ainda continuava ron-
dando a Cidade Murada, todas as noites ia a um culto
qualquer, procurava ajudar as pessoas, mas parecia
que não estava conseguindo nada. Senti como se
tivesse sido enganada.
"Quem eles pensam que são?" indaguei comigo
mesma, na primeira vez que ouvi falar do casal
Willans. Era um casal americano, a filha Suzanne e
uma amiga, Gail Castle, que acabara de chegar a
Hong Kong. Eles iam realizar reuniões de
oração. "Hong Kong não precisa de mais reuniões de
oração. Eu mesma tenho reuniões todos os dias. Eles
deveriam, primeiramente, conhecer a situação da
igreja aqui."
Já haviam-se passado dois anos desde que eu
chegara da Inglaterra, e um ano que eu supunha haver
recebido "o dom do Espírito". Sentia-me uma
autoridade na questão de reuniões de oração da
Colônia. Mas uma amiga minha, Clare Harding,
insistiu em que eu fosse, dizendo que seria uma
reunião carismática.
— Está bem, vou freqüentar durante algum
tempo, respondi.
E foi então que fiquei conhecendo Rick e Jean
Stone Willans.
— Você tem o dom de línguas, Jackie? indagou
Jean. Ora em línguas?
— Para dizer a verdade não o faço. Não vejo
nele muita utilidade. Não me ajudava em nada; então
parei de orar.
— Mas isso é um grande erro, disse ela. Não se
trata de um dom de emoção, para satisfação própria, é
um dom do Espírito. A Bíblia ensina que aquele que
ora em línguas é edificado espiritualmente. Portanto,
não se importe muito com o que sente, exercite-o.
E assim ela e Rick me fizeram prometer que iria
orar em minha língua celestial todos os dias. E em
seguida, para meu espanto, sugeriram que orássemos
juntos em línguas. Eu não estava muito certa se isso
era correto, pois a Bíblia ensina que as pessoas não
podem falar línguas em voz alta, todas ao .mesmo
tempo. Explicaram que Paulo se referia a um culto
público, onde um estranho poderia entrar e pensar
que estavam todos loucos. Mas nós três ali não
iríamos escandalizar ninguém. Iríamos simplesmente
orar a Deus numa língua que ele nos concedera.
Não houve jeito de escapar, e então nos
pusemos a orar. Senti-me meio ridícula, dizendo
coisas que não entendia. Mas, em dado momento, eles
pararam de orar e eu fui impelida a continuar. Faria
qualquer coisa para não estar ali, orando em voz alta,
em língua estranha, diante daqueles americanos. Mas
quando pensei que estava para morrer de vergonha,
Deus me falou:
— Você não quer ser ridícula por amor a mim?
Entreguei os pontos.
— Está bem, Senhor, isso não faz muito sentido
para mim, mas como foste tu quem inventaste esse
dom, ele deve ser bom.
Quando acabamos de orar, Jean falou que Deus
lhe havia dado a interpretação do que eu dissera. Meu
coração estivera clamando pelo Senhor, como se
estivesse nas profundezas de um vale, e ele no pico
das montanhas. Eu lhe dirigira palavras de adoração e
suplicara que ele me usasse.
Tomei a decisão de nunca mais desprezar o
dom, se Deus me ajudasse a orar daquela maneira
todas as vezes em que o exercitasse. Aceitei o fato de
que ele estava-me ajudando a aperfeiçoar minha
comunhão e súplica.
E, dali por diante, passei a orar todos os dias na
linguagem do Espírito. Antes de fazê-lo, porém, eu
dizia:
— Senhor, não sei orar e nem por quem devo
interceder. Peço-te que ores por meu intermédio, e me
conduzas às pessoas que te desejam.
Mais ou menos um mês e meio depois, comecei
a notar que acontecia um fato maravilhoso. As
pessoas com quem eu falava de Cristo, criam nele. A
princípio, não entendi direito, e pensei que tinha
descoberto, por acaso, uma nova e excelente técnica
de evangelização. Mas, na verdade, eu dizia as
mesmas coisas que antes. Depois compreendi o que
havia acontecido. Eu estava falando de Jesus a pessoas
que realmente desejavam ouvir. Deixara que Deus
participasse de minhas orações e isso tivera um
resultado direto em meu trabalho. Eu estava pedindo
a Deus que realizasse sua vontade por meu
intermédio, quando orava na língua que ele me dera.
E não poderia orgulhar-me de nada. Só poderia
maravilhar-me de ver como Deus permitia que eu
tivesse uma pequena participação em sua obra. E aí
veio a emoção. Ela veio, quando vi os resultados
dessas orações.
Passei a conhecer melhor os Willans, e eles se
me tornaram ótimos amigos e conselheiros.
Experimentei mais uma vez a gloriosa liberdade de
viver, que possuímos em Cristo Jesus. Ao me
converter, eu aceitara o fato de que Jesus havia
morrido por mim, mas a partir de então eu começava
a ver os milagres que ele estava operando no mundo
hoje.
6
As Quadrilhas
— Hai bin do ah? De onde você é?
Aterrorizado, o rapazinho fitou os quatro mem-
bros da famigerada quadrilha 14K que avançavam
para ele ameaçadoramente. Em gíria da quadrilha,
estavam indagando a qual daqueles grupos ele
pertencia. Mas o rapaz não conseguia responder,
tremia demais.
— M'gong? Não quer falar, hein?
Ah Ping, o porta-voz da turma, aproximou-se
mais até ficar a um passo dele. Não havia meio de
escape. O rapaz estava encurralado num dos becos da
Cidade Murada. Eles o atormentavam, ironizando seu
medo, avançando lentamente, como que deliciando-se
sadicamente com o pavor que lhe inspiravam.
O primeiro soco veio com grande rapidez, e
atingiu-o nas costelas — o treinamento que os
chineses têm no kung-fu produz grande flexibilidade e
economia de movimentos, que torna o soco preciso e
mortal. O menino caiu, e logo recebeu mais pancadas
no estômago, peito e virilha. Ele gemia, e se contorcia,
mas não disse nada. Então os outros foram
empurrando-o rua abaixo, chutando-o, enquanto ele
seguia aos tropeções, e depois se afastou
manquejando. Ficou então sabendo o que acontecia,
quando alguém entrava em território inimigo, sem a
devida proteção.
Aquilo dava enorme satisfação aos membros
das quadrilhas. Eles estavam no controle de tudo que
se passava ali em seu território. Foi aí que fiquei
sabendo que o salão que eu alugara situava-se bem no
meio da área controlada pela 14K, pois acabava de
presenciar aquela cena repulsiva.
— Por que fizeram isso? indaguei. O que aquele
rapazinho fez a vocês?
Ah Ping deu de ombros.
— Talvez nada, respondeu anuindo. Mas ele
não se identificou, então tínhamos que dar-lhe uma
lição. Provavelmente é dos nossos inimigos, o Ging
Yu, e temos que mostrar a eles quem é que manda
aqui.
Nos seus primórdios, a Sociedade Tríade era
uma agremiação secreta chinesa, cujos membros
faziam o juramento de derrubar o governo dos
opressores estrangeiros, e restaurar ao poder a casa
governante da China, a Dinastia Ming.
Nos dias atuais, a antiga Sociedade Tríade
encontra-se degenerada, tendo-se subdividido em
centenas de pequenos grupos, todos alegando ser um
prolongamento da tradicional Sociedade Tríade. Na
verdade, não passam de quadrilhas de marginais, que
utilizam esse nome e os rituais da antiga sociedade
apenas para camuflar suas atividades criminosas. No
passado, o indivíduo que quisesse filiar-se a uma das
sociedades tríades tinha que submeter-se a uma série
de rituais. Entre eles contavam-se decorar poesias,
aprender certas formas de aperto de mão e assinatu-
ras, e beber sangue, bem como derramar sangue.
Quando um homem entrava para uma delas, tinha
que jurar que iria seguir seu "irmão" para sempre. Este
era conhecido como daih lo, irmão maior; e o iniciante
era o sai lo, irmão menor. E esse laço era indissolúvel.
Um candidato a membro da Sociedade Tríade poderia
pedir a um membro efetivo dela que o deixasse
"segui-lo", e assim este se tornava seu irmão maior.
Cada quadrilha possuía uma complicada hierarquia
de deveres e posições de liderança. Alguns dos chefes
eram identificados por nomes estranhos, e outras
vezes apenas por números, tais como 489, 438, 26 e
415. Os membros comuns eram chamados penas de
49.
As quadrilhas espalhavam terror por toda a
Hong íong, o que facilitava a extorsão de pagamento
por proteção. A Cidade Murada era sede perfeita para
as quadrilhas. Ali operavam dois grupos principais,
geograficamente separados por determinada rua. O
Jing Yu tinha o controle de todas as salas de venda
consumo de heroína. Também recebia o pagamento
por proteção, e explorava a prostituição no setor a este
da Rua Principal. Mas os quadrilheiros mais temidos
eram os da 14K. Esse nome deriva do fato de ela haver
sido organizada na Rua Wah, n.° 14, em Tantão, com o
objetivo de ajudar a causa da China Nacionalista.
Dizia-se que ela contava com cem mil membros em
todo o mundo, e mais sessenta mil só em iong Kong, e
que controlava o comércio do ópio, os antros de
jogatina, filmes pornográficos, bordéis de crianças e
outros negócios, no setor oeste da cidade.
Seu comando era descentralizado, e a quadrilha
dele cada área tinha seu próprio dirigente, que
cuidava los interesses dela no local. Mas todos
conheciam os chefes principais, e os membros das
quadrilhas-irmãs eram chamadas de "primos". Assim,
em questão de minutos, um grupo tríade poderia
chamar a si dezenas de "irmãos", e, caso necessário,
podia organizar ama briga em poucas horas,
envolvendo centenas de quadrilheiros.
Enquanto as pessoas não ligadas às tríades
andaram pela cidade "rezando" para não serem
detidas, até mesmo os que pertenciam a Ging Yu ou
14K, quando saíam dela, só caminhavam em seu
próprio território. Eu, porém, andava por todas as
ruas indistintamente, chegando a conhecer o lugar
melhor que os próprios marginais, que se achavam
restritos a apenas um lado da cidade.
Os quadrilheiros que conheci observavam
aquela velha máxima de que existe honra até mesmo
entre ladrões. Em troca de uma obediência irrestrita
por parte do seu sai lo, o daih lo lhe prometia proteção.
Se um irmão menor fosse preso, o seu irmão maior
tinha que tomar providências, para que na prisão ele
recebesse comida, drogas e proteção, embora fizessem
restrições ao uso de drogas, já que sua ausência
diminuía sua utilidade para a quadrilha. E foi minha
preocupação pelos viciados que mais tarde me
aproximou de alguns líderes tríades, levando-me a
tomar chá com eles.
Não fiquei espantada ao saber que Christopher
iria ser iniciado numa 14K. Como poderia andar por
ali, se não pertencesse a uma quadrilha?
Ele freqüentara o clubinho com certa
assiduidade, mas, depois de certo tempo passou a me
evitar. Todas as vezes que tentava aproximar-me dele,
desaparecia. Começou a jogar e estava sempre em
companhia de marginais. Contudo, não queria que eu
visse o que estava fazendo. Chegou o dia em que o
apanhei. Encontramo-nos frente a frente, num beco
muito estreito, e ele não poderia dar para trás. Estava
encurralado. Eu carregava meu pesado acordeon e
pedi-lhe que carregasse o instrumento para mim, à
oficina de consertos. E enquanto caminhávamos, eu ia
conversando com ele.
— Christopher, em sua opinião, por que Jesus
veio ao mundo?
Ele não respondeu.
— Foi por causa dos ricos ou por causa dos
pobres? continuei.
— Por causa dos pobres, disse.
— Mas ele ama os bons ou os maus? indaguei.
— Jesus ama os bons, Sr.ta Poon.
— Errado. Sabe de uma coisa? Se Jesus vivesse
no mundo hoje, estaria aqui na Cidade Murada,
sentado naqueles engradados de laranjas,
conversando com as prostitutas e cáftens, bem lá na
lama.
Não é correto dizer a um chinês que ele está
errado, mas eu estava ansiosa para que ele compreen-
desse o que eu queria comunicar-lhe. Não era hora de
me importar com convenções.
— Era nas ruas que ele passava grande parte do
tempo, conversando com criminosos conhecidos, e ia
numa igreja arrumadinha e limpa, esperando que os
bonzinhos fossem lá.
— E por que ele fez isto? perguntou incrédulo.
— Porque foi para isso que veio, respondi
lentamente. Não foi para salvar os bonzinhos, mas
para salvar os maus, os perdidos.
De repente Christopher parou. Estava pasmado
com o que ouvira. Aquela altura, tínhamos saído da
idade Murada e passávamos pela rua do mercado, ele
disse que queria ouvir mais, e então deixamos o
acordeon na oficina ali perto e nos sentamos num
banco público. Narrei-lhe a história de Naamã, o
general que fora atacado de lepra, e concluí:
— É muito simples. A única coisa a fazer é
buscar Jesus e ser purificado.
Os veículos passavam por nós aos roncos; o
povo conversava em altos brados, como se faz em
Hong Kong. Um avião desceu para aterrissar. Mas
hristopher não estava escutando nada. Tinha os olhos
fechados e falava baixinho. Estava confessando a Jesus
que falhara em sua vida, e lhe pedia que o purificasse.
E sentado ali à beira da rua poeirenta e barulhenta, ele
se tornou crente.
No sábado seguinte, ele apareceu no clubinho e
stemunhou diante dos outros, dizendo que na semana
anterior não cria em Jesus, mas agora o conhecia, na
palavra foi acolhida, a princípio, com silêncio. Ias logo
começaram as chacotas e risos. Rapazes de família
ruim simplesmente não se tornavam crentes, isso era
para moços bons, educados, classe média. Ele devia
estar brincando.
Mas não estava. E recusou-se a continuar com
sua iniciação na quadrilha. Já estava com o livro de
regulamentos que deveria memorizar, mas devolveu-.
Uma coisa dessas nunca acontecera antes, no meio
aquela gente. E sua decisão foi uma revelação para
mim também. Jesus estava em Hong Kong também,
tanto quanto estava na Inglaterra; e aqueles que o
buscassem poderiam encontrá-lo.
A transformação que se operou em Christopher
foi notável. Passou a trabalhar tão bem na fábrica, que
foi promovido. Passava todo o tempo livre no
clubinho, e aos domingos ia aos cultos na igreja.
Continuei a orar em Espírito em minha devoção
particular, e outros rapazes como Christopher tam-
bém fizeram a decisão de converter-se a Cristo. Reu-
níamos para estudar a Bíblia e orar, muitas vezes, e
um dia, quando estávamos orando, um deles recebeu
uma mensagem em línguas.
Esperamos uns instantes, e daí a pouco
Christopher começou a dar a interpretação, em
cântico.

"O Deus, que me salvas das trevas,


Dá-me força e poder Para que eu viva no
Espírito Santo,
Lute contra o diabo com a Bíblia,
Fale aos pecadores desse mundo
E os leve a pertencer a Cristo."

Bobby, um outro rapaz, também recebeu a


mesma interpretação.
Embora nosso grupinho estivesse crescendo,
nem todos os rapazes que freqüentavam o clube
sabiam ao certo por que eu estava ali. Muitos vinham
apenas por causa das vantagens que obteriam.
Fazíamos piqueniques aos sábados ou acampávamos,
e eles não tinham que pagar nada. Contudo, não eram
gratos. Consideravam-se pessoas necessitadas, e
supunham que eu era sustentada por uma instituição
muito rica. Eram exigentes e agressivos. Um desses
era Ah Ping.
Naqueles meses e anos de contato, eu chegara a
conhecer Ah Ping muito bem. Ele ia ao clubinho
muitas vezes. Fora iniciado numa quadrilha tríade
com apenas doze anos, e já tinha fama de bom
lutador. Certa noite, quando cheguei ao clubinho, ele
estava vagando pela rua. Eu me sentia meio deprimi-
da, e ele percebeu isso.
— É melhor você ir embora, disse. Largue este
lugar, Poon Siu Jeh. Não adianta trabalhar por nós.
Procure estudantes bem comportados e pregue para
eles. Eles serão ótimos crentes. Nós não prestamos, (ão
sei por que você não desiste. Você arranja estudo ara
nós, e não vamos às aulas. Arranja empregos, e nós os
perdemos. Nunca mudaremos. Então, por que inda
fica aqui?
— Fico porque foi isso que Jesus fez por mim.
Eu também não o queria, mas ele não esperou que eu
o quisesse, para depois morrer por mim. Ele morreu,
morreu por mim, quando eu ainda o odiava. Apenas
disse que me amava e que me perdoava. Foi esse Jesus
que veio ao mundo e ressuscitou os mortos, que fez
milagres e só praticou o bem. E ama você também, do
lesmo jeito.
A princípio, Ah Ping não disse nada, depois
falou.
— Não pode ser; ninguém ama a gente desse
jeito. Quer dizer, nós... e sua voz ficou embargada.
Mas logo em seguida ele prosseguiu:
— Quero dizer, nós vivemos estrupando,
roubando, brigando, esfaqueando. Ninguém pode nos
amar assim.
— Pois Jesus os amou. Ele não gosta das coisas
que vocês fazem, mas ama vocês. Isso pode parecer
stranho, mas ele disse que todas as coisas erradas que
vocês praticaram eram dele, e quando ele morreu ia
cruz, declarou-se culpado de todos os nossos rimes.
Isso é muito injusto, não é? Mas se você lhe entregar
todas as coisas ruins que já praticou, ele lhe dará sua
nova vida. É como se você lhe entregasse sua roupa
suja e recebesse as dele, completamente limpas.
Ah Ping estava esmagado. Era difícil acreditar
que existisse um Deus assim. E ele se sentou ali e
pediu a Jesus que o perdoasse e transformasse sua
vida.
Ele foi o primeiro quadrilheiro a ligar-se aos
Tentes. Quando estava com apenas quatorze anos,
ima jovem prostituta ofereceu-se para "sustentá-lo" ;m
troca de proteção. Mas a partir de então todo o seu
nodo de vida se modificou de forma radical. Todas as
noites ele levava seus "irmãos" para o clubinho e me
pedia que lhes falasse de Jesus. Os poucos
freqüentadores do clube que tinham a vida certinha —
os alunos da escola — pararam de ir, pois sentiam que
estavam sofrendo discriminação. Eu achava, porém,
que havia dezenas de lugares em Hong Kong onde
aqueles rapazes podiam receber cuidados e assistên-
cia, e então não impedi que se fossem. E foi somente
muitos anos depois que conseguimos reunir esses dois
tipos de pessoas tão diferentes: os maus e os "bonzi-
nhos".
Alguns amigos de Hong Kong vieram a
conhecer Ah Ping e o convidaram para dar seu
testemunho na igreja, num sábado.
— Tome muito cuidado, disse-lhe eu. Satanás
não gosta quando uma pessoa fala de Jesus.
Provavelmente ele tentará atacá-lo de alguma forma
daqui até sábado. Vá direto para casa e não pare em
lugar nenhum.
— Está certo, está certo, Sr.ta Poon, respondeu
acenando afirmativamente, com docilidade.
Mas logo que se afastou, rebelou-se.
— Diabo? Bobagem. Conheço estas ruas como a
palma da minha mão. Cuidado com quê?
E foi dar umas voltas, antes de ir para casa. De
repente, sete homens saíram de um beco escuro e o
atacaram. Eram quadrilheiros Chiu Chow. Mais tarde,
quando Ah Ping me relatou o fato, disse:
— Quando eles se aproximaram, ocorreram-me
dois pensamentos. O primeiro foi: "Ah, isso é culpa da
Sr.ta Poon". E logo em seguida: "Você deve orar."
Então ele ficou orando, enquanto os homens o
agrediam a pauladas, deixando-o no chão inconscien-
te.
— Logo que comecei a orar, meu pai veio
descendo a rua e quando eles o viram, fugiram
correndo. Se não fosse isso, teriam me matado.
Mas, mesmo assim, ele ficou com um ferimento
grave nas costas e um corte na garganta. O pai foi
buscar socorro com seus irmãos da quadrilha 14K.
Levaram-no ao médico, e este afirmou que ele não
poderia andar nem falar pelo menos durante duas
semanas.
Os irmãos de Ah Ping decidiram vingar a
agressão que ele sofrera. Fizeram uma reunião na sede
da quadrilha para combinarem um plano de ação.
Depois pegaram faccões e disseram a Ah Ping:
— Vamos esfaqueá-los, está bem?
Falando com muita dificuldade por causa da
garganta ferida, o moço replicou:
— Não; agora sou cristão e não quero que
revidem.
Depois ele chamou um ou dois membros de
nosso clubinho que eram crentes, foram para lá e
puseram-se a orar. Oraram a noite toda pelo grupo
que o tacara. Além de orar pelos inimigos, pediu aos
outros rapazes que impusessem as mãos sobre ele e
orassem ara que fosse curado.
No dia seguinte, estava completamente bom,
dando com toda clareza. Aliás, dois dias depois ele
falou na igreja. Testificou da mudança que se operara
m seu coração e disse também que nunca mais iria
menosprezar o diabo. Sabia que ele estava sempre por
certo.
Mas as brigas de quadrilhas eram um problema
que os convertidos teriam de enfrentar com
freqüência.
Lembro-me de um culto num domingo à noite
na Igreja Oiwah. O simples fato de poder ir à igreja era
ator de orgulho para aqueles chineses um pouco mais
prósperos que os outros. Ergui os olhos do teclado e
pude ver alguns professores da escola com os
vendedores do mercado e verdureiros. Todos com
aparência de gente direita, séria e respeitável. O fato
de eu me preocupar com os jovens marginais
deixava-os bastante espantados. Não gostavam muito
de ver aqueles rapazes na igreja, ao passo que eu
ficava lá, sentada, irando para que eles fossem.
De repente, a porta se abriu de ímpeto, e os
garotos entraram. A aparência deles provocou repulsa
na congregação. Mas até eu me espantei, pois eles
estavam num estado terrível: sujos de lama e sangue e
as roupas rasgadas. Vários tinham arranhões no rosto.
Todavia, sentaram-se e permaneceram quietos
durante todo o tempo. Logo que terminou o culto, fui
apressadamente até onde se achavam, para saber o
que havia acontecido.
Ao que parecia, haviam caído numa armadilha.
Entraram num banheiro público para se arrumarem
um pouco antes de irem à igreja; um grupo de
quadrilheiros saltou por sobre os compartimentos e os
atacou violentamente com bastões. Vários deles fica-
ram bastante feridos. Levei-os a um hospital. Estava
muito feliz de eles terem me procurado na igreja, após
uma luta tão terrível. Ingenuamente, achei aquilo
maravilhoso.
"Graças a Deus", pensei, "eles não foram
procurar seus chefes de quadrilha, mas vieram
procurar os cristãos."
Pouco depois eu fiquei sabendo que o resto da
congregação encarou o incidente todo de uma pers-
pectiva diferente. Estavam enfurecidos pelo fato de os
rapazes terem tido a ousadia de entrar na igreja
naquele estado, e tão mal cheirosos. Não aceitavam a
idéia de que aqueles garotos pudessem tornar-se
crentes. Pensavam que uma mudança interior tinha
que ser seguida de uma mudança exterior, e que eles
logo deviam passar a usar gravata e sapatos de
cadarço. E mostravam-se bastante transtornados por
eu haver permitido que entrassem na igreja pouco
depois de terem participado de uma cena de violência.
Pelo que sabiam, nunca nenhum deles se tornara
cristão. E quando pedi para que fossem batizados os
que haviam-se convertido, a resposta foi um "não"
direto. Os rapazes precisavam antes passar por um
período de provação.
No princípio eu aconselhava os rapazes a
freqüentarem a igreja, embora estivesse bem claro que
eram indesejados ali. Mas um dia veio à Cidade
Murada um velho missionário bastante sábio, George
Williamson. Ele analisou bem o que estava
acontecendo e entendeu a toda situação.
— Jackie, por que você força esses garotos a
virem a Igreja?
— Bom, respondi meio hesitante, por duas
razões, uma delas é bem negativa. Não quero que
pensem, que pelo fato de eu sair com eles, que estou
criando meu próprio grupo.
George deu um sorriso compreensivo. Ele sabia
no a geração mais antiga desaprovava a idéia de
missionárias, mulheres, terem a direção de um
trabalho.
— E, em segundo lugar, continuei, acho que
esses rapazes precisam de irmãos e irmãs mais velhos,
precisam da "família" da igreja. Não seria muito
salutar formarmos um grupo de jovens, separado.
Achei que ele iria concordar comigo, mas não
concordou.
— Não, Jackie, disse. Esses rapazes ainda não
estão preparados para isso. São plantinhas muito
tenras, ainda na sementeira, e se você os transplantar
logo, poderão morrer. Ainda não conseguirão
suportar as sacudidelas da igreja estabelecida. É muito
do para querer que façam concessões a certas atitudes
do pessoal da igreja.
Fiquei muito admirada. Ele estava-me dizendo
para criar meu próprio trabalho.
— Pense neles como mudinhas numa
sementeira, continuou. Afaste-os daqui e cuide deles
até crescem mais um pouco. Aí, quando já estiverem
bem fortes para suportar os trancos, pode replantá-los
ai. Mas a Igreja de Hong Kong ainda não tem
estrutura para recebê-los.
Assim, em vez de continuar insistindo para que
os jovens se filiassem à igreja, comecei a ampliar nosso
tudo bíblico no clubinho. Realizávamos estudos rias
vezes na semana, e também aos domingos pela
manhã. Tínhamos sempre um período de louvor,
bastante barulhento, e jogávamos pingue-pongue. Se
eu falasse em orar, eles iriam para a rua até
terminarmos; depois voltavam.
Mas eu nunca poderia ter superado as
dificuldades sem o auxílio de Dora Lee. Juntamente
com outras estudantes, ela me ajudava a fazer as
traduções mais difíceis, como a Bíblia. Ela me ensinou
muita coisa sobre os chineses, seus pensamentos e
reações. Quanto mais eu aprendia, mais percebia que
nossos métodos de anunciar a mensagem de Jesus
Cristo não se aplicavam a todas as partes do mundo.
A maioria dos rapazes vivia em casas pequenas com
mais dez pessoas. Nunca havia silêncio e quietude.
Nenhum deles tinha uma cama para si mesmo, quanto
mais um quarto. A idéia de ir para um lugar
sossegado para estudar a Bíblia e orar, por exemplo,
seria uma ironia. No entanto, orar em língua estranha
era uma solução prática, pois podiam fazê-lo até
caminhando por uma rua barulhenta de Hong Kong.
Muitos deles não sabiam ler, então eu tinha que
fazer sugestões práticas. Essa lição eu aprendi através
de uma dura experiência. Um dos rapazes dissera em
oração que desejava seguir a Jesus. Então dei-lhe um
exemplar do Evangelho de João e outros livretes. Mas
ele se afastou e não o vi durante dois anos. Quando o
encontrei novamente e perguntei por que tinha estado
me evitando há tanto tempo, ficou meio envergonha-
do.
— Eu queria conhecer a Jesus, mas você me deu
uma biblioteca.
Tive que reexaminar alguns de meus conceitos
sobre o estudo da Palavra de Deus. Aqueles que
sabiam ler, sugeri que, vez por outra, saíssem um
pouco de suas bancas de trabalho na fábrica e fossem
ao banheiro para ler alguns versículos. Procurei estar
em contato com os rapazes sempre que pudesse,
encorajando-os a seguir os ensinos de Cristo. E eles
cresceram espiritualmente. Mas o tempo não era
suficiente para ver todos eles. Meu trabalho na escola
limitava muito o tempo de que dispunha. Precisava
de mais horas para estudar chinês. Comecei a orar
pelo problema.
"Senhor, estou muito cheia de ocupações.
Preciso de mais tempo para ficar em companhia
desses rapazes. Mas isso é impossível, se tenho que
selecionar na boa parte do dia. Tu prometeste dar-me
o pão de cada dia. Por favor, diz-me se tu o darás, sem
que eu tenha de trabalhar para isso."
Três dias depois o telefone tocou. Era Clare
Harding, a amiga que me apresentara ao casal
Willans.
— Jackie, queria lhe dizer que, se você resolver
deixar de dar aula, desejamos oferecer-lhe dinheiro
para seu sustento.
Fiquei pasmada. Ninguém sabia que eu estava
pensando naquela hipótese.
— Quem lhe disse que eu ia sair do colégio? No
momento, ainda estou lá.
— É, eu sei. Mas eu e Neil temos orado a esse
respeito. E se você estiver pensando em largar,
queremos oferecer-lhe duzentos dólares por mês.
— Bom, de qualquer jeito, só sairei em julho.
— E nós só teremos o dinheiro disponível em
lho, replicou ela. Mas senti vontade de telefonar e
dizer-lhe isso desde agora.
Estávamos em meados de novembro.
O telefonema dela foi um grande incentivo para
mim. Compreendi que, se Deus podia dizer a uma
pessoa para oferecer-me um cheque mensal
equivalente a cerca de quinze libras esterlinas, então
não seria difícil para ele fornecer-me o restante do que
precisava para viver. Hoje, passados dez anos,
percebo e foi naquele momento que resolvi "viver pela
fé". Tive certeza de que, se Deus queria que me
dedicasse a esse trabalho, ele me daria o sustento, e
nunca me preocupei nem um pouquinho a respeito do
modo mo ele o faria.
7
O "Irmão Maior"
Está Olhando por Você
Em meu sonho, o telefone estava tocando sem
parar. Fiz um esforço imenso para despertar. Eram
cinco horas da manhã. No fone, Ah Ping, com voz
sussurrada, falava rapidamente:
— Poon Siu Jeh, você tem que vir aqui bem
depressa. Alguém arrombou o clubinho e fez uma
bagunça terrível.
Estremeci apesar do calor sufocante, e vesti-me.
Quando saí, a rua ainda estava vazia, silenciosa.
Afinal consegui um táxi para me levar à Cidade
Murada. Lá chegando, subi correndo as ruelas tortuo-
sas em direção ao clubinho. A cena com que me
deparei era muito pior do que eu imaginara. Os ban-
cos, livros, raquetes de pingue-pongue, esqueites,
tudo tinha sido atirado no chão, espalhado e
quebrado. E pior, a pessoa havia deliberadamente
passado sujeira dos esgotos nas paredes e assoalho.
Minha vontade foi sentar-me e chorar. Pensava
que aqueles rapazes já me consideravam como uma
pessoa do meio deles e confiavam»em mim como
amiga. Porém atiravam fezes nas paredes do meu
clubinho e assim mostravam o que realmente pensa-
vam de mim e do meu trabalho.
— Está bem, Senhor. Para mim chega. Não me
importaria de trabalhar aqui para sempre, se eles
conhecessem o que faço. Mas, se não me querem aqui,
nem a mim nem a ti, então não preciso ficar tais nesse
lugar. Afinal, não desejo ficar aqui pelo resto da vida
jogando pingue-pongue. Quero dizer, Senhor, estou
fazendo isso por eles, mas, se não o querem, não serão
obrigados a receber isso. Vamos schar esse clubinho.
Estava profundamente ressentida.
— Muito breve eles irão perceber que só
prejudicaram a si mesmos.
Mas lembrei-me também do que Jesus dissera:
quando alguém nos bate uma vez, devemos deixar
que os bata novamente. E outra passagem que me
vinha insistentemente era a que falava sobre dar
graças a Deus em todas as circunstâncias. Mas eu não
estava com vontade de fazê-lo; minha vontade era
chorar e de entregar totalmente à auto-piedade.
Mas passei o resto do dia varrendo e limpando
o alão, e murmurando entre lágrimas:
— Glória a Deus! Glória a Deus!
E tinha crises de choro, pois parecia que os
alicerces de meu mundo haviam ruído.
No dia seguinte, abri o clubinho como de
costume, das, pela primeira vez, senti medo, não de
que me agredissem, pois Deus sempre me protegera.
Tinha medo de ser rejeitada pelos rapazes que eu
amava e a quem trazia a mensagem de Cristo. Não
sabia quem izera aquilo, nem por quê, e fiquei ali
tremendo toda. Num dado momento, surgiu um
rapazinho que eu nunca vira antes, e encostou-se à
porta.
— Algum problema? indagou.
— Não, não, respondi. Está tudo bem, obrigada,
das por que pergunta?
— Se tiver algum problema, é só falar comigo,
disse virando a ponta do polegar para o próprio peito.
— Ah, que bom saber disso, falei. Mas quem é
você? Quem o mandou aqui?
— Foi o Goko, respondeu bruscamente.
Fiquei abalada. Sabia quem era Goko, o
dirigente geral de toda a organização tríade da Cidade
Murada.
Era o chefe de uma das ramificações da 14K, e
dizia-se que tinha alguns milhares de irmãos menores
por ali. Tinha o controle de todas as salas de ópio, jogo
e prostituição da área. Ele era o irmão maior de todos
os irmãos maiores. Um dos irmãos menores que
freqüentava o clubinho havia mencionado seu nome
para mim com o maior respeito. Mas, embora eu
conhecesse seu nome, ainda não o conhecia pes-
soalmente. Naqueles anos todos, eu lhe enviara vários
recados, mas ele sempre se recusava a falar comigo.
As mensagens que eu mandara eram sempre bem
simples como "Jesus te ama". Não podia entender por
que enviara um guarda para vigiar o clube.
— Goko disse que se alguém a incomodar ou
encostar a mão neste lugar, nós vamos "cuidar" dele,
continuou meu protetor, e fez uma demonstração
mímica do que dizia, pegando um facão imaginário e
enterrando-o profundamente na barriga de uma
vítima também imaginária.
— Muito obrigada, repliquei. É muita bondade
de vocês. Quer fazer o favor de dizer a Goko que
agradeço muito, e não quero ofendê-lo, mas não posso
aceitar. Jesus já está cuidando de nós.
O olhar de desprezo que o rapaz me dirigiu foi
de quem pensava estar diante de uma louca. Qualquer
um que achasse que Jesus podia proteger alguém na
Cidade Murada devia estar maluco.
Mas ele continuou a se apresentar todas as
noites, como um bom vigia noturno. Seu nome era
Winson; recebera ordens explícitas de vigiar o clube.
Comecei a falar-lhe de Jesus. Não queria de maneira
alguma ouvir-me, mas, como era obrigado a ficar ali,
não tinha como escapar. Depois de alguns dias,
começou a ceder, e pôs-se a falar de um "amigo" seu
que era viciado em ópio. Logo percebi que o amigo
era ele mesmo. Então disse-lhe que o ópio não é
problema. Era só trancar o viciado num aposento e
deixá-lo lá por uma semana. Naturalmente ele iria
sofrer as agonias do processo de desintoxicação, mas
ficaria livre da dependência da droga. Entretanto,
logo que a porta fosse aberta iria direto tomar a droga,
pois sua mente e coração continuavam a desejá-la.
Somente Jesus, o Senhor da vida, podia remover da
pessoa o desejo pela droga.
Disse-lhe isso várias vezes. Ele sempre ficava
encostado de fora da porta do clubinho. Nunca
entrava, e ficava olhando e escutando os rapazes
cantarem nos. Então, uma noite, quando o salão
estava quase vazio, eu lhe disse:
— Por que você também não entra e vem louvar
a Jesus?
— Está bem, disse ele prontamente.
Fiquei espantada com sua aquiescência, pois,
àquela altura, já sabia que seu posto na quadrilha 14K
a correspondente ao número 426, o que significava
que pertencia a uma categoria especial de tratador das
lutas. Sua tarefa era tratar as brigas, ajustar a colha das
armas, o local e a estratégia a ser usada. No entanto,
ali estava ele, dentro do meu clubinho, louvando a
Deus a plenos pulmões. Estava cantando n corinho,
em voz bem alta. Depois, pôs-se a orar em chinês. Eu
nunca tinha ouvido uma oração tão cheia de alegria, e
pensei: "Onde será que ele aprendeu isso?"
E foi um momento extraordinário, pois em
seguida ele começou a louvar a Deus em língua
estranha, isso me pareceu ainda mais espantoso, pois,
ao que sabia, ele nunca ouvira ninguém falando em
línguas, ma meia hora depois ele parou. O milagre
tinha acontecido. Tanto ele como eu sabíamos que
estava completamente curado da dependência da
droga, ora liberto enquanto orava.
Quando afinal ele foi-se calando, eu lhe disse:
— Glória a Deus! Foi maravilhoso! Agora o que
você tem a fazer é levar seus companheiros da
quadrilha a experimentarem o mesmo. E não pode
mais seguir ao seu irmão maior, Goko. Ninguém pode
ter dois irmãos maiores. Você terá que seguir ou a
Jesus ou a Goko. Não poderá seguir os dois.
E foi assim que Winson partiu para dizer ao seu
chefe de quadrilha que cria em Jesus.
Foi Ah Sor quem me revelou depois o que
acontecera no arrombamento do clubinho. Um dos
rapazes passara por alguns problemas, que julgava
terem acontecido por culpa minha. Passara pelo
clubinho e começara a berrar e a jogar pedras nas
vidraças. Isso despertou nos seus amigos o desejo de
fazer o mesmo, e pouco depois estavam todos
dominados por um espírito de violência. Muitos deles
nem sabiam por que estavam com raiva. Era
simplesmente uma questão de violência coletiva.
Poucas horas depois, Goko recebeu a notícia
daquela agressão a uma casa do seu setor de controle,
e chamou à sua presença os implicados. Ordenou-lhes
que nos devolvessem o que porventura houvessem
tirado, e que na noite seguinte fossem ao clubinho e se
comportassem muito bem.
— Mas nós quebramos tudo por lá, disse um
deles. Ela não vai nos querer no clube.
— Ah, vai sim, replicou Goko. Vai, porque a
Sr. Poon é crente, ela os perdoará. Ela abrirá as portas
ta

para vocês e os receberá.


Então eles voltaram. Senti-me muito humilhada
quando ele contou o que Goko dissera. Era óbvio que
ele estava sabendo como os crentes "deviam" agir,
embora minha tendência tivesse sido fazer exatamen-
te o contrário.
Reconheci assim que o "Irmão Maior" estava
olhando por mim, e senti-me mais reanimada pelos
rumos que o clubinho estava tomando. Aqueles
moços tinham aprendido algumas coisas sobre Jesus.
Muitos dos aproveitadores, àquela altura, já tinham
desaparecido dali. Haviam descoberto que não havia
vantagens sociais em pertencer a ele. Alguns
assistentes sociais e conselheiros de jovens me
perguntaram qual era meu programa de ação. Tive
muita dificuldade em respondê-los.
— Bom, abrimos as portas todas as noites e às
vezes aparecem cinqüenta pessoas, outras vezes ape-
nas uma. Procuro travar amizade com eles e conver-
sar. As vezes oramos e louvamos a Deus, e outras
imos a passeios. Há ocasiões em que fico a noite da
aqui com uma pessoa que não tem onde dormir, há
outras em que dou uma tigela de arroz para guém que
está com fome.
Por fim descobri uma frase que descrevia meu
ibalho e que impressionava bem.
— É um trabalho de jovens, sem estrutura fixa,
plicava.
Eu havia tentado operar em termos de projetos
guiares, mas raramente funcionava. Em certa oca-lo,
contávamos com um técnico de futebol que dava n
treino por semana. Todos os rapazes gostavam
íensamente de jogar futebol e mais de quarenta sram
seus nomes. No primeiro treino apareceram rca de
vinte; na outra semana, vieram dez, e na rceira,
nenhum.
O treinador ficou desanimado e teve vontade de
rgar tudo. Procurei fâzê-lo entender o que aconte-a.
Os garotos da Cidade Murada levavam uma vida o
desregrada, que nem sabiam qual era o dia da mana.
Dormiam de dia e levantavam à noite. Havia :asiões
em que ficavam de pé setenta e duas horas e ;pois
dormiam dois dias seguidos. Passavam muito mpo no
território da quadrilha, nos salões de ópio. idéia de
treinar futebol era bastante interessante, ias ir ao
treino era outra questão. Eles queriam ir, e retendiam
ir, mas não tinham autodisciplina.
Se o treinador tivesse ido na semana seguinte,
ilvez tivesse encontrado uns dois ou três rapazes, e na
itra, uns quatro, e na outra ainda uns dez ou doze,
ilvez. Logo que percebessem que o técnico estava
:almente interessado neles e iria ao campo mesmo ue
houvesse um tufão e mesmo que fosse apenas ara
treinar com um só, lhe devotariam toda a sua infiança
e simpatia.
Muitas pessoas me procuravam pedindo para
au-iliarem no clubinho. Trabalhar na Cidade Murada
arecia empolgante, emocionante. Mas poucos per-
maneciam mais que algumas-semanas. Se a atividade
ue dirigiam — jogos ou aulas — não tinham boa
freqüência, logo desanimavam e nunca mais volta-
vam. Eu precisava encontrar obreiros que realmente
tivessem amor pelas pessoas com quem trabalhavam,
mais do que pela atividade que exerciam.
Como os rapazes da Cidade Murada, eu passei
a dormir de dia e ficava acordada à noite, pelo menos
teoricamente. O que acontecia na verdade era que eu
tinha as aulas de chinês, ia aos tribunais, visitava os
presos e resolvia outros problemas e então ficava
acordada de dia também. Todos os dias, quando
acordava, a única maneira de fazer-me sair da cama
era prometer a mim mesma que mais tarde voltaria
para dormir, mas nunca o fazia. Então a solução foi
aprender a tirar cochilos nos ônibus e balsas.
Certa noite, fizemos um churrasco numa colina
das redondezas. O luar estava bem claro e divisei
entre os nossos um rapaz grandalhão, de aspecto
abrutalhado, sentado ali e comendo muito,
enchendo-se de carne. Fiquei furiosa com ele, pois
fora eu quem comprara tudo e calculara que seria
suficiente para o nosso grupo. Mas, continuando a
olhar, notei que os nossos rapazes estavam dando a
ele a parte deles também, e pareciam magnetizados
pelas suas palavras. Ah Ping sussurrou-me que aquele
fora o seu daih lo, o chefe de sua quadrilha, da qual
eram também muitos dos presentes. Além disso, ele
era irmão carnal de Goko, e o segundo homem forte
de toda a Cidade Murada. Sai Di ficara curioso a
respeito de nosso clubinho, ao perceber que muitos de
seus "irmãos" o freqüentavam, e resolvera participar
daquela nossa atividade. Se quisesse, estava em suas
mãos controlar todos aqueles rapazes e o clubinho
também.
— Será que eu poderia falar com você?
indaguei. Ele achou engraçado aquele convite por
parte de uma mulher e levantou-se com gestos
apalhaçados. Mas, quando nos afastamos, ele
abandonou aquela atitude e pôs-se a escutar-me
atentamente. Disse-lhe que meu único objetivo no
clubinho era fazê-los conhecer o amor de Jesus.
— Eu sei, replicou ele. Estamos observando-a
há algum tempo. Muitos missionários vêm aqui a
Hong Kong para ajudar-nos, a nós, os necessitados.
Tiram retratos do pessoal aqui para chocar o povo de
lá. E alguns até ficam famosos por terem vindo aqui.
Mas nós damos cabo deles dentro de seis meses.
Sempre arranjamos meios para fazê-los desanimar.
Por exemplo, se você fosse homem, já teria levado
uma surra há mito tempo. Não importa se a pessoa
nos dá comida e graça, escola, aula de judô ou de
bordado. Essas coisas não significam nada para nós,
pois os que as realizam não têm nada em comum
conosco. O que queremos saber de verdade é se eles
realmente se interessam por nós. Você já está aqui há
quatro anos e estamos achando que talvez você seja
realmente sincera.
Não cantei de alegria na frente dele, mas meu
coração estava rebentando de gozo.
Uma vez que os interesseiros, os "crentes da
opa", tinham saído do clubinho, percebi que os que
haviam ficado eram os que mais cedo ou mais tarde se
interessariam pelas coisas espirituais. E eles
começaram a pensar seriamente que talvez Jesus fosse
mesmo o que se dizia. Certo dia estávamos sentados
no clubinho, quando Ah Keung, que é conhecido
como o 'palhaço" do lugar, disse:
— Poon Siu Jeh, ontem à noite ficamos um
longo tempo conversando sobre você e chegamos a
duas conclusões. Ou você é espiã do governo
britânico, ou então o que você diz a respeito de Jesus
deve ser verdade. Porque ninguém iria passar a vida
toda conosco, aqui, a não ser obrigado.
E foi assim que Ah Keung também se tornou
crente, e revelou-se um dos mais entusiastas. Ele tinha
cinco irmãos e todos viviam com o pai. A mãe fugira
logo após o nascimento do sexto filho, e fora viver
com um policial. O pai era membro de uma quadrilha
muito forte. Mas um de seus amigos fora morto numa
luta de bandos e ele resolvera mudar-se para a Cidade
Murada. Trabalhava num salão de jogo. Como
trabalhasse à noite, nunca via os filhos durante o dia, e
eles não receberam nenhuma criação.
Crescendo, os rapazes tornaram-se caloteiros.
Nenhum deles estudou, e, obviamente, acabaram
todos como membros de quadrilhas. Os três mais
velhos foram presos já com a idade de treze, quatorze
e quinze anos, por tráfico de drogas. Além disso, esta-
vam viciados também. Mais tarde, os dois mais novos
foram presos. Ah Keung era o único que ainda não
fora encarcerado; convertera-se bem a tempo.
Uma noite, ele entrou no clubinho correndo,
ofegante, e disse que eu tinha de ir à sua casa imedia-
tamente. Corri rua abaixo, procurando ir com muito
cuidado, pois a rua estava muito escorregadia. Os
jogadores utilizavam aquele beco para se aliviarem,
na falta de banheiros.
O quartinho onde moravam era muito pequeno
para todos eles, mas, como normalmente dois ou três
sempre estavam presos, não havia muito problema de
acomodação.
Quando ali entrei, vi que o irmão mais velho
estava injetando heroína em si próprio. Deitado no
chão, estava um homem, com os braços e pernas
cheios de vergões e ferimentos, e as roupas ensopadas
de sangue. Fora brutalmente surrado. Estava diante
de mim a tarefa de limpar as feridas e tratar dele. Meu
primeiro impulso foi transportá-lo para um hospital.
— Não podemos levá-lo, disseram os outros em
coro. Ele é de uma quadrilha. Se o levarmos para o
hospital, será interrogado pela polícia. E vão descobrir
que é viciado.
Então não havia outra alternativa. Tinha que
socorrê-lo. Peguei um balde com água e algumas
ataduras imundas, e comecei a tratar do homem. Jesus
dissera que tinha vindo ao mundo para curar as
feridas, e era exatamente isso que estavam querendo
que eu fizesse. Falei ao ferido sobre isso. Falei-lhe do
amor de Jesus. Não respondeu nada, mas senti que
compreendera. Um ou dois anos depois, voltou a nos
procurar.
Após este incidente, fiquei mais ligada à família
de Ah Keung. Visitei os que estavam presos e tentei
arranjar emprego para quando fossem soltos. Uma
noite, estava saindo da Cidade Murada, quando
escutei um deles, Sai So, dando meu telefone para um
outro viciado.
— 83-3179, dizia ele. Guarde bem esse número
ara o caso de você ser preso. Qualquer hora do dia ou
a noite que você ligar, a Sr. ta Poon irá auxiliá-lo. Não
importa se você cometeu o crime ou não. A única
coisa que você tem de fazer é falar a verdade, pois,
como você sabe, ela é crente.
Enquanto me dirigia para casa, ia pensando: "no
Senhor, o vosso trabalho não é vão". Ali estava eu
tendo o privilégio de ver os frutos. Alguns dos piores
criminosos de Hong Kong sabiam que o nome de
Jesus era Verdade.
A maioria dos moços que eu conhecia estava
constantemente sendo presa e levada a julgamento. A
medida que os fui conhecendo melhor, comecei a crer
quando declaravam que eram inocentes de alguns
delitos de que lhes acusavam, pois eu própria ia
verificar is álibis deles. É claro que, na maior parte,
eles eram criminosos, mas nem sempre culpados dos
atos pelos mais eram presos. Parecia-me um erro
muito grande me confessassem crimes que não
haviam cometido ou legassem participação naqueles
em que realmente estavam envolvidos.
Várias vezes, quando caminhava ao lado de Ah
Ping fora da Cidade Murada, ouvi-o dizer:
— Fffffiu! Andei a rua toda e não fui preso!
Tinha avistado um ou dois detetives que o
conheçam. Se quisessem, poderiam tê-lo detido e
interroga-lo. Ou poderiam até levá-lo preso, e atribuir
a ele um :rime qualquer. Isso acontecia muitas vezes.
Comecei a pedir aos rapazes que sempre
dissessem a verdade no tribunal. Isso me levou a ir
muitas vezes aos tribunais e passar ali várias horas,
partilhando da vergonha daqueles criminosos, pois
via pessoas apontando para mim e dizendo:
— Lá está aquela boba daquela crente, sentada
com os marginais.
Eu tinha consciência de que os moços haviam
praticado muitos crimes, mas estava sempre disposta
a ir lá e me sentar com eles ali, culpados ou não, desde
que falassem a verdade. Mas a vergonha dessa situa-
ção ajudou-me a compreender o admirável sacrifício
de Cristo, quando publicamente se associou conosco,
os pecadores.
Certa noite recebi um telefonema de Mau Jai.
Eram quinze para as oito, e em minha sala estavam
várias moças e rapazes que ali se achavam orando.
— Johnny acaba de ser preso. Venha para a
delegacia depressa, disse ele.
— Como você sabe disso? indaguei. E onde
você está?
— Não posso falar nada aqui. Mais tarde eu
digo, respondeu.
A caminho da delegacia, fiquei pensando em
Johnny, que era um dos viciados de aparência mais
repulsiva que eu conhecia. Era um rapaz de complei-
ção miúda e horrivelmente magro. Era carpinteiro e
ganhava bom salário, mas gastava tudo em heroína.
Quando cheguei à delegacia, pedi para vê-lo,
mas disseram-me que não se encontrava ali.
— A senhora pode voltar para casa, disse-me o
sargento de plantão, e se ele aparecer, telefonamos.
— Pois vou ficar aqui até que o mostrem,
respondi, e comecei a ajeitar-me para passar a noite
ali.
Dois minutos depois, eles o trouxeram, mas eu
chegara tarde demais. Ele já confessara um crime.
Fora acusado de estar com uma chave de fenda com a
intenção de entrar num prédio que ficava a um quilô-
metro e meio da Cidade Murada.
Johnny e Mau Jai estavam tomando droga
numa das maiores salas de droga da Cidade Murada,
quando dois detetives entraram e prenderam Johnny.
Eles sabiam muito bem onde eram as salas, e os
viciados eram presa fácil. O mal daquela situação toda
era que certos policiais tinham combinado com os
exploradores dos vícios ali que ignorariam os antros
de comércio, em troca de um dinheirinho.
Vez por outra, eles davam batidas policiais,
mas, em várias ocasiões, ouvi os vigias das salas
falando ao telefone com guardas que lhes avisavam
que estavam caminho de lá. Fiquei sabendo inclusive
que muitos detetives eram sócios daqueles negócios
ilegais, em cooperação com as quadrilhas. Comecei a
compreender por que os rapazes eram tão confusos
sobre as loções de certo e errado.
A família de Johnny morava num apartamento
muito pobre, do lado de fora da Cidade Murada. Eles
arranjaram dinheiro emprestado e pagaram sua
fian-a, e assim ele foi solto; o que foi um erro, pois
nesse leríodo de várias semanas em que aguardava a
prisão preventiva, ele tomou mais e mais heroína.
Fiz-lhe ima visita e tentei convencê-lo a declarar-se
inocente, ias mostrou-se relutante.
— Não posso voltar atrás na confissão que já
assinei. Os policiais me disseram que, se eu o fizesse,
me prenderiam por outra coisa.
Os viciados sempre diziam que ganhavam
heroína na delegacia, em troca de uma confissão. Falei
a Johnny sobre Jesus e como ele sempre falava a
verdade, ainda que isso lhe tivesse custado a vida.
Oramos, e ele concordou em que seria acertado falar a
verdade, mas acrescentou:
— Se eu disser a verdade no julgamento, isso
significa que tenho que revelar onde ficam as salas de
droga. E o que é pior, estou dizendo que os guardas
também sabem onde elas são. Tanto os meus amigos
como a polícia vão querer se vingar.
Mas continuei a visitá-lo e a pedir-lhe que
falasse a erdade. No dia do julgamento, ele estava
decidido a lizer o que a polícia desejava, embora eu
houvesse contratado um advogado para defendê-lo.
Pouco antes de ele prestar depoimento, mostrei-lhe
uma passagem bíblica que nos ensina que não
precisamos ter medo, quando levados a tribunais, pois
o Espírito Santo nos instruirá quanto ao que devemos
dizer.
Mais tarde, ele me relatou que, quando se
pusera de pé no tribunal, sobreviera-lhe forte
convicção de que tinha de dizer a verdade. Nosso
advogado fez longos interrogatórios aos policiais
sobre as provas e fatos por ele apresentados, mas o
juiz acabou aceitando como certa a versão deles, e
considerou Johnny culpado. Quando ele pronunciou o
veredito, rompi em pranto.
Era muito incomum ver-se uma moça inglesa
chorando por causa de um criminoso chinês. O chefe
de polícia encarregado do inquérito veio falar comigo.
Perguntou-me por que estava chorando.
— Porque ele não fez aquilo, respondi entre
soluços. Não é culpado.
— Pois a ficha dele é bastante extensa, disse ele
com bondade. Eu não desperdiçaria com ele minha
pena.
— Isso não vem ao caso, repliquei. Esse crime aí
ele não cometeu.
— Se não cometeu esse, cometeu outros. No
todo, a condenação é justa.
— Mas não está certo, insisti; o nome de Jesus é
verdade, e temos que falar a verdade no tribunal.
Os detetives que efetuaram a prisão e alguns
outros se aproximaram de nós. Sabiam que tinham
mentido. Viram as lágrimas escorrendo em meu rosto,
riram e debocharam de mim. Era preciso muito
esforço para não sentir raiva deles.
Johnny foi mandado para a prisão e depois para
um centro de reabilitação de viciados. Mas eu conti-
nuei a visitá-lo.
O veredito final ainda não fora dado.
Recorremos da decisão. O juiz voltou atrás e Johnny
foi liberto. Mas acabou voltando ao vício e preso de
novo. Saindo da prisão, ele prosseguiu nesse terrível
círculo vicioso.
Mas ele nunca se esqueceu do que acontecera
naquele julgamento. Fui visitá-lo várias vezes. Mais
ou menos dois anos depois, ele creu em Jesus, e foi
para um centro de reabilitação cristão, onde sua vida
foi totalmente transformada. Após sair de lá,
tornou-enfermeiro em um sanatório de tuberculosos,
trabalhando na ala dos viciados.
Aquele julgamento teve também alguns outros
resultados positivos. Fora a primeira vez que eu
maltratara um advogado para defender nossos rapais,
e depois disso fiz o mesmo outras vezes. E em todas as
vezes a polícia saiu vitoriosa no caso. Ao interrogá-los,
diziam:
— Não fique pensando que essa inglesa pode
ajudar vocês.
Mas vários rapazes me disseram que vez por
outra eram detidos por detetives que lhes indagavam:
— Você pertence ao clube daquela mulher?
Quando respondiam que sim, eles os deixavam ir.
A razão disso era que, quando detiam um dos
nossos rapazes e ele era inocente, o julgamento
poderia durar até uma semana, em vez de terem
apenas uma simples audiência de dez minutos. E isso
ficava muito dispendioso para eles. Era mais um sinal
de que estavam de lho em mim; e assim Jesus era
pregado.
Outro resultado veio dois anos e meio depois.
Era natal, e eu queria fazer um jantar especial para os
rapazes, mas não tínhamos dinheiro. O telefone tocou.
Era do escritório do nosso advogado.
— Estamos fazendo uma revisão em nossa
escrituração e descobrimos que temos de reembolsá-la
em mil dólares, disse uma voz. Verificando o caso de
Johnny Ho, percebemos que lhe devemos mil dólares
em honorários pagos a mais.
— Não devem, não, repliquei. O pagamento foi
feito corretamente.
— Mas pelos nossos registros houve recurso, e
isso pago pela assistência jurídica.
— É, sei disso, respondi. Mas façam o favor de
verificar tudo com muito cuidado, porque se me
mandarem o dinheiro, vou gastá-lo.
E eles reverificaram os livros e me enviaram o
dinheiro. E foi assim que passamos um ótimo Natal.
Deus também estava de olho em nós, cuidando de
nós.
A mãe de Johnny ficou extasiada quando ele se
converteu. Todas as vezes que eu passava pelo
mercado, ela me dava ovos e lingüiça, que ela vendia
em sua barraca ali. Estava tão feliz, que sempre me
dava muitos presentes. Afinal, tive que começar a
passar de largo pela sua rua. Minhas roupas estavam
começando a ficar apertadas.
8
Perseguindo o Dragão
Uma noite, quando saía daquela cidade escura,
pus-me a pensar longamente. A vida que estava
levando era muito estranha, pois nunca me deitava ou
cantava em horários regulares, e ainda tinha que
conversar com Deus o tempo todo.
"Graças a Deus não sou casada", orei. "Graças a
Jesus sou livre, para cuidar dos filhos de outras
pessoas."
Naquela época estava morando num
apartamento m uma jovem de nome Stephanie, e ela
nunca se preocupava com os horários em que eu
chegava em casa. Já era bem mais de meia-noite,
quando tomei o micro-ônibus, para voltar.
Em dado momento, interrompi minha oração,
pus minha atenção se voltou para um rapazinho de
aparência horrível, um esqueleto ambulante, de uns
quinze anos. As órbitas oculares eram escuras,
imensa, no rosto acinzentado. Procurei lembrar onde
o vira antes. Afinal, recordei de onde o conhecia.
Fora há cinco anos, quando começara a ir à
cidade Murada. Havia uma grande casa de chá nas
imediações, e aquele garotinho ficava por ali,
esperando táxis para abrir a porta e receber uma
pequena gorjeta. Tinha um aspecto muito doente, e
era óbvio que estava vivendo pelas ruas. Como ainda
não sabia lar chinês, pedi aos conhecidos chineses que
escrevessem bilhetes para ele, oferecendo-me para
ajudalo. O que eu não sabia era que o menino se
viciara em drogas por volta dos dez anos. Ele nunca
vinha aos encontros que marcava, mas continuei a
orar por ele.
E ali estava ele de novo. Agradeci a Deus por
aproximá-lo novamente de mim. Felizmente já sabia
falar chinês. Ele saltou do veículo num setor da cidade
onde a vida noturna era movimentada. Saltei também
e o segui. Bati-lhe de leve no ombro e me apresentei,
convidando-o para comermos alguma coisa. O garoto
ficou bastante constrangido. Enquanto lanchávamos,
notei que se sentia cada vez mais inquieto. Percebia-se
claramente que estava precisando de uma dose da
droga. Sua mente já estava muito prejudicada pela
quantidade de heroína que consumira. Ele não estava
entendendo nada do que lhe dizia. Portanto, não
adiantava falar com Ah Tsoi sobre Jesus. Calculei que,
se resolvêssemos primeiro o problema de sua
dependência da droga, sua mente se aclararia, e
poderia falar-lhe de Cristo.
Nas semanas que se seguiram, encontrei-me
com ele várias vezes, a qualquer hora do dia ou da
noite. Nunca dormia no mesmo lugar, e eu estava
receosa de perder o contato com ele, caso fosse preso.
Com todas aquelas marcas de picada pelo braço, era
um alvo fácil para a polícia. E o que era pior, soube
que ele estava assaltando pessoas na rua, para
comprar a droga.
Mas eu estava obcecada pela idéia de salvá-lo.
Quanto mais via aquele garoto de vida miserável,
mais gostava dele. Afinal, o Pastor Chan concordou
em recebê-lo no seu Centro Cristão de Reabilitação.
Era a resposta às minhas orações. Como ele teria que
esperar algum tempo antes de ir para o centro,
comecei a dar-lhe dinheiro. Estava um pouco em
dúvida quanto a essa atitude, mas ele precisava do
dinheiro para comprar heroína. Se não lhe desse, seria
forçado a roubar. Assim me convenci de que estava
agindo de modo certo.
Por fim, chegou o dia em que ele deveria seguir
para o centro. Comprara-lhe algumas roupas novas,
sandálias e calção de banho, pois o centro ficava
próximo de uma praia. Embrulhando aquelas coisas,
sentia uma enorme ternura por Ah Tsoi. Eu lhe
dissera para passar em meu apartamento e tomar um
banho, antes de ir para o centro.
Duas horas depois do momento em que deveria
ter chegado, ainda não havia o menor sinal dele.
Quando eu já estava começando a achar que não viria
mais, ele apareceu. Estava imundo, mas não havia
mais tempo para o banho. Ele revelava uma atitude
muito hostil, negativa; mesmo assim fomos, e então o
entreguei ao Pastor Chan.
Fui deitar-me e dormi quase vinte horas
seguidas. Havia semanas que não dormia com
tranqüilidade. Estava exausta, mas grandemente
aliviada. Graças a Deus, Ah Tsoi achava-se nas mãos
de outra pessoa e era problema dela. O pastor poderia
falar-lhe de Jesus e ajudá-lo a crescer. E eu poderia
procurar o próximo...
Fui despertada por um telefonema. Ah Tsoi
fugira do centro. Não suportara as dores da
desintoxicação forçada. Os outros tentaram
convencê-lo a orar, mas recusou-se, e, à noite,
escapou. O pessoal do centro tentou encontrá-lo para
convencê-lo a voltar, mas ele se recusava
terminantemente a retornar.
Senti como se uma parte de meu ser houvesse
morrido. Sentia-me muito abatida, e deitei-me no chão
e chorei. Deitada ali fiquei a pensar que aquilo era o
fim de tudo. Não sabia o que mais poderia ter feito
para socorrê-lo. Eu dera a Ah Tsoi meu tempo,
carinho, dinheiro, alimento, e tentara falar-lhe de
Jesus. Mas nada disso adiantara. Eu fracassara.
Não estava zangada com Deus, mas sentia-me
muito decepcionada e confusa com tudo que
acontecera. Não entendia por que ele permitira que eu
me aproximasse de Ah Tsoi, se aquilo não ia dar em
nada. Afinal orei:
— Senhor, não quero mais saber desse tipo de
coisa, por favor. Não querer lidar com viciados, pois
não suporto isso. Eu só tinha amor para dar a uma
pessoa, e dei-o todo a ele, mas não foi suficiente. Acho
que não tenho mais nada para dar.
No dia seguinte, pela manhã, peguei o ônibus
para ir à aula de chinês. Acomodei-me como pude no
meio de outros quarenta e tantos passageiros de pé,
quando, com o canto do olho, avistei um rapazinho
que era deficiente mental. Virei o rosto, pois não
queria olhar para ele. E meu olhos deram com outro
viciado em drogas. A única coisa a fazer então era
fechá-los.
"Senhor", orei, "não estou olhando, porque não
desejo passar por todo aquele sofrimento outra vez.
Eu pensava que tu irias ajudar-me, mas não deu certo.
E por que não?"
Lembrei-me da época em que começara a ver e
a reconhecer viciados. Em uma rua, havia mais de
cem, inalando heroína abertamente. Naquela ocasião,
eu dissera a Deus: "Valeria a pena dar minha vida por
essa gente, se tu me usasses para socorrê-los."
Aos poucos fui-me refazendo do sofrimento
que tivera por causa de Ah Tsoi, e então comecei a ver
os erros que cometera no trato com ele. Tentara
dar-lhe tudo que tinha, mas estava tentando salvá-lo
com minhas próprias forças. Queria vê-lo livre das
drogas, mas ele não se achava tão desesperado, que
desejasse a libertação.
Eu não tivera coragem de forçá-lo a libertar-se
do vício. (Isso aconteceu antes de eu haver
presenciado a libertação de Winson, operada pelo
poder de Deus.) Estava convencida de que Ah Tsoi
precisava dos cuidados de uma pessoa mais
tarimbada. Vendo que nem isso dera certo, sentira-me
derrotada.
Algum tempo depois, o Pastor Chan
convidou-me a tomar chá com ele. Ele palmilhara
sozinho aquela estrada. Com determinação e
coragem, criara o seu centro de reabilitação de
viciados, nos Novos Territórios. Uma vez que o
viciado era liberto da droga, ficava ali um ano e meio,
recebendo carinho e disciplina, e assim podia crescer
em Cristo. Muitos dos que passaram pelo seu centro
haviam-se tornado obreiros cristãos. E os rapazes de
lá eram os únicos que eu conhecia que não voltavam à
droga. E ele fora edificando sua obra aos poucos, com
muitas experiências e sofrimento.
Os assistentes sociais são instruídos a não se
envolverem emocionalmente com aqueles com quem
trabalham, mas eu sabia que, se não tivesse tido uma
aproximação maior com as pessoas com quem traba-
lhava, não teria permanecido. O fracasso no caso de
Ah Tsoi ensinou-me que não tinha capacidade sufi-
ciente para pegar uma tarefa assim, simplesmente
porque era uma obra meritória. Mas eu sabia que
meus recursos próprios estavam esgotados.
Entretanto, apesar de haver orado muito,
pedindo a Deus que não me aparecessem mais
viciados, aquilo não foi o fim. Descobri que poderia
voltar a cuidar deles, com o amor de Deus.
Conhecendo melhor as quadrilhas e seu funcio-
namento, cheguei à conclusão de que havia tantos
viciados entre eles, porque a droga era muito barata e
de fácil obtenção.
Uma noite entrei numa das salas de comércio e
consumo de heroína. Era numa espécie de coberta,
nos arredores da cidade, mas funcionava com o
conhecimento da polícia. Estava imunda. Havia
algumas mesas longas, às quais estavam sentadas
pessoas que mais lembravam figuras
despersonalizadas. Senti como se estivesse entrando
num banquete diabólico, num jantar estranho e
silencioso. Pela quantia de cinqüenta centavos, um
"garçon" fornecia os pavios feitos de papel higiênico
retorcido, a folha de estanho e o funil de papelão
necessário para se "perseguir o dragão". São poucos os
viciados chineses que injetam heroína. Têm medo de
tomar uma dose excessiva.
Entre os cinqüenta e poucos presentes ali,
inalando a droga em seu festim macabro, achava-se
um rapazinho de uns quatorze anos. Sua pele era
pálida e sem vida, e suas forças estavam esgotadas. A
namorada, que devia ter mais ou menos a mesma
idade, estava sentada ao seu lado', amparando-o nos
braços, enquanto ele aspirava aquele veneno. Então
me lembrei de que a moça tinha que comerciar com
seu corpo, a fim de pagar a droga para o rapaz. Olhei
os outros presentes que também sustentavam o hábito
pelo mesmo processo, a menos que roubassem. Era
uma cena degradante, mas sentia-me fascinada e
atraída por aquilo. Senti a força de atração da droga,
que todo viciado em potencial conhece muito bem, e
que desafia toda a lógica. Ele sabe que ela destrói, que
leva a uma dependência total e à depravação, mas
ainda assim quer experimentá-la. E depois que a
experimenta uma vez, sente-se forçado a continuar
nisso, até ficar acorrentado a ela.
Todo viciado tem um relacionamento de amor e
ódio com a droga. Na mente, ele a detesta, mas seu
corpo a deseja fortemente, e atraiçoa a mente, fazen-
do-a crer que a droga é sua salvação. Nenhum deles
percebe quando cruzou a fronteira que separa a
condição de simples curioso, que "brinca" com as
drogas, para a de viciado. Na primeira vez em que um
indivícuo toma a droga, ele vomita, mas depois volta
a tomá-la, só para ver se já consegue sentir alguma
coisa. Outro, talvez, experimente poucos efeitos
negativos, e fica pensando que pode tomá-la sem
problemas. Começa com doses pequenas, mas daí a
pouco tem necessidade de aumentá-las. E vai
tomando doses cada vez maiores até morrer ou ser
preso.
Senti o poder de atração da droga. Era muito
forte. Era demoníaco.
No dia em que Winson veio ao clubinho e foi
liberto do vício, Deus me revelou que o dragão podia
ser derrotado. Naquele momento, percebi que a
experiência por ele vivida poderia repetir-se em
outros rapazes que se convertessem. Pouco depois,
Ah Ping disse-me que um amigo seu, um viciado,
desejava ir ao nosso acampamento no verão, e
aceitei-o prontamente. Ah Ming era da Ilha de Hong
Kong, um quadrilheiro de grande influência ali.
Conhecemo-nos na balsa que nos conduzia à Ilha
Lamma, onde se situava o acampamento, mas não
quis apertar-me a mão, nem conversar.
Nos primeiros dias, eu não teria auxiliares mas-
culinos, embora mais tarde dois rapazes ingleses, Tim
e Nick, fossem trabalhar conosco. Por isso, orei a Deus
nos seguintes termos: "Senhor, mande-me somente as
pessoas certas. Não permita que venham os
problemáticos."
O acampamento ficava no alto de uma
montanha, um lugar lindo e tranqüilo. A
programação era bem delineada, com horários de
dormir bastante rígidos e trabalho bem distribuído,
mas era difícil fazê-la funcionar sozinha. Eu e as
poucas moças que foram dormíamos nas barracas,
enquanto os rapazes acomodavam-se no enorme
dormitório. Eu não podia ir lá examinar os pertences
deles nem apagar as luzes. Mas podia orar a Deus,
para que barrasse a ida de problemáticos.
Ah Ming surgiu à porta do dormitório e me viu
sentada do lado de fora, em meio à escuridão. Não
tinha contado com isso.
— Éééé... eu... éeéé... gosto de olhar as estrelas,
disse improvisando uma desculpa.
— É, concordei. Eu também. São muito lindas,
não são?
Ficamos ali sentados várias horas, mantendo
uma conversa educada. Estava claro que ele estava
ansioso para dar uma saída, e tomar sua droga. Afinal,
fui-me deitar e ele dirigiu-se para o outro lado do
morro para tomar sua heroína.
Eu pedira a Deus que impedisse a ida de
rapazes problemáticos, então tinha de concluir que
todos os que tinham ido haviam sido enviados por ele.
Os missionários haviam-me dito que o melhor modo
de se fundar uma igreja era trabalhar com um
converso de cada vez. Depois que esse fosse crente e
estivesse bem firme, então poderia trabalhar com
outro. Eu fizera exatamente o contrário, e agora estava
com um dormitório cheio de quadrilheiros. Comecei a
pensar que talvez os missionários tivessem razão.
Dois dias depois, Ah Ming havia esgotado seu
estoque de drogas. Mandou que um rapaz viesse
dizer-me que tinham um problema urgente a resolver,
e portanto iriam embora. Como estávamos realizando
o culto matutino, três deles fugiram.
Pedi a Nick que fosse atrás deles. Aqueles
ardilosos rapazes haviam elaborado uma boa
explicação para sua fuga, mas felizmente Nick não
sabia falar chinês e continuou atrás deles.
Subiram e desceram três morros, sempre
escutando aquele inglês dizendo repetidamente:
— Vocês têm que voltar! Jesus os ama!
Mas o desejo deles pela droga era tão forte, que
subiriam cem morros, se fosse preciso, para chegar à
balsa e aos fornecedores da heroína.
Enquanto isso, lá no acampamento, estávamos
orando para que voltassem.
De repente, sem saber bem por que estavam
agindo assim, os três rapazes estacaram. Viraram-se e
começaram a voltar. Quando reapareceram com Nick,
pareciam bastante encabulados. Não sabiam explicar,
nem a si mesmos, aquela mudança de direção. E
quando sugeri a Ah Ming que tivéssemos uma
conversa, ele fez que sim.
Caía uma chuva forte e entramos numa barraca
pequena. Ah Ming estava muito inquieto, incomoda-
do com a situação, mas não podia sair da barraca por
causa da chuvarada.
— Lamento muito, Ah Ming, principiei, você
estar-se sentindo tão mal, mas queria dizer-lhe uma
coisa que poderá ser-lhe muito útil.
Desenhei três cruzes no chão.
— Vamos imaginar que podemos enxergar
todos os erros que uma pessoa praticou. Vamos pegar
este lap-sap (lixo) para representar esses pecados,
continuei, pegando um pouquinho de terra,
tampinhas de garrafa e pedaços de papel que havia
por ali. Quando
Jesus foi crucificado, de cada lado dele também
foram crucificados dois homens. Eram ladroes e
talvez até já tivessem matado alguém.
Coloquei um montinho de lixo sobre as cruzes
laterais, deixando vazia a de Jesus.
— Sabe por que essa do meio está sem lap-sap?
indaguei.
— Sei. Jesus nunca fez nada errado. Não tinha
pecado.
Apontando para uma das outras cruzes,
continuei:
"— Ei, então você é o Cristo, não é?" disse o
homem daqui em tom de ironia. "Então prove. Chame
seus capangas para salvá-lo, e salve-nos também."
"— Você não devia falar assim", objetou o
ladrão da cruz da direita. "Nós erramos, merecemos
morrer. Mas esse homem não fez nada", e depois
virou-se para Jesus e disse: "Senhor, lembre-se de mim
quando chegar ao seu reino."
"— Hoje você estará comigo no paraíso",
respondeu Jesus.
E ao dizer isso, peguei o montinho de terra da
cruz da direita e coloquei-o sobre a de Jesus.
— Você está com vontade de vomitar?
indaguei. Notara que a fisionomia de Ah Ming estava
esverdeada, e que ele tremia.
— Pois bem, Jesus sentiu a mesma coisa. Só que
foi muito pior, pois além de ficar com os pecados
daquele homem, recebeu todos os pecados e as dores
de todas as pessoas do mundo, para que hoje não
tivéssemos pecados nem dores.
Ficamos os dois olhando para o chão, durante
alguns minutos, fitando a mensagem ali exposta.
Depois eu disse:
— O ladrão desse lado foi perdoado e hoje está
vivendo com Deus. Mas por que o outro não foi?
— Porque um creu e o outro não, respondeu Ah
Ming.
— E é isso que você precisa fazer, repliquei. Se
você quiser entregar suas dores a Jesus, ele poderá
removê-las agora mesmo. Você quer?
Ah Ming não estava querendo muito. Seus
olhos lacrimejavam, e ele comprimia o estômago com
as mãos. Ainda estava chovendo, e ele se achava
naquela barraca. Afinal, não conseguiu suportar mais.
— Suponhamos, disse ele com um suspiro
resignado, suponhamos que eu faça uma tentativa.
Isso bastava. Então, fez uma oração clara
pedindo a Jesus que removesse a dor e todos os seus
pecados, para que pudesse começar uma nova vida.
Naquele momento parou de chover.
Meus amigos ingleses vieram até a barraca, e
impusemos as mãos sobre Ah Ming. Oramos, e ele
recebeu o dom do Espírito Santo.
Uma semana depois, quando regressávamos do
acampamento, o rapaz me relatou como Deus atende-
ra às nossas orações naquela noite. Ele fora deitar-se
ainda um pouco confuso, e tivera um sonho bastante
estranho. Sonhara que se achava deitado numa cama
de madeira, no alto da montanha. Ventava muito, e
ele ouviu alguém batendo à porta. Como estava-se
sentindo muito mal, devido à carência da droga, não
foi atender. Mas a pessoa bateu novamente, e ele foi
ver quem era. Viu um homem com uma vela na mão.
Ele voltou a deitar-se, pois estava de muito mau
humor. Na terceira vez que o homem bateu, Ah Ming
pensou: "Coitado desse homem, não deve ter para
onde ir." Abriu a porta, e foi deitar-se de novo. O
outro entrou no barraco e, aproximando-se da cama,
colocou a vela sobre ela. Em seguida, disse a Ah Ming
que se sentasse, e impôs as mãos sobre ele com muito
carinho. As dores desapareceram, e o rapaz nunca
mais sentiu nada.
O apito estava trilando. Todas as manhãs, os
rapazes tinham que fazer a ginástica costumeira.
Saltaram todos da cama. Ah Ming também se levan-
tou, mas estava apalpando o leito. Ah Ping pergun-
tou-lhe o que estava fazendo.
— Estou procurando as gotas de parafina da
vela, replicou.
O sonho lhe parecera tão real, que ele tinha
certeza de que Jesus estivera ali de verdade. Naquele
mesmo dia, foi batizado no mar.
Embora Ah Ming tivesse um emprego nos
estaleiros, ele próprio não fazia nada. Ficava deitado o
tempo todo, enquanto seus "irmãos menores" lhe
levavam heroína. No primeiro dia de serviço, após o
acampamento, foi orando pela balsa que atravessava a
baía. Estava tão imerso na oração, que nem notou que
alguém havia-lhe furtado as sandálias. Mas seguiu em
frente, para o trabalho, sem se deixar abater, e entrou
pelo portão descalço. Logo notou que um grupo de
uma quadrilha rival vinha em sua direção armado
para a luta. Instintivamente, pegou a primeira arma
que viu: dois pesados mourões de ferro. No
acampamento, ele já havia dado instruções a seus
irmãos com relação àquela briga. Vendo que Ah Ming
se preparava para ir ao ataque, eles também pegaram
em facões. De repente, o rapaz se lembrou de uma
coisa.
— Epa! Eu vim pela balsa orando para ter paz!
Não posso brigar com essa gente.
Largou as armas que pegara e, sentando-se no
chão, pôs-se a orar novamente. Instantes depois,
ergueu os olhos e viu que seus inimigos o cercavam,
olhando-o com ar intrigado.
— O que você está fazendo? indagou o chefe
deles.
— Orando. Agora sou crente. Quer saber como
foi?
Responderam que sim, completamente
espantados, e Ah Ming pôs-se a narrar-lhes o que
sucedera. Os outros ficaram tão impressionados com
o fato, que alguns passaram a assistir às nossas
reuniões.
Desse modo nosso clubinho foi crescendo mais
e mais. Eu ainda não conhecia pessoalmente o
afamado Goko, mas seu "irmão grandalhão" ia ali
muitas vezes.
Algumas semanas depois do acampamento,
estávamos orando certo dia,' quando um dos rapazes
teve uma visão. Como todos os que haviam crido em
Cristo tinham recebido também o Espírito Santo, não
nos surpreendíamos com as maravilhas que ele
operava. Na visão, todos estávamos descendo a rua,
enfileirados, cantando e dançando. Mas apenas doze
se dispuseram a ir. Os outros se desculparam.
— Poon Siu Jeh, nós moramos neste lugar.
Um dos corinhos de que mais gostávamos no
clubinho era "Não tenho prata nem ouro". Um dos
moços tocava violão. Peguei meu acordeon, uns dois
ou três pandeiros, e os outros doze vieram atrás de
nós, enfileirados. Quando chegávamos ao verso que
dizia "andando e saltando e louvando a Deus", todos
nós dávamos alguns pulos.
Muitos dos comércios do vício naquela hora
tiveram de parar. Ao passarmos pelo cinema
pornográfico e pelas salas de jogo, os homens saíram
para ver o que estava acontecendo. Muitas daquelas
pessoas já tinham visto os crentes distribuindo
papeizinhos pelas ruas, mas nunca os tinham visto
cantar e dançar por ali.
Depois de passar pelos antros de ópio,
chegamos às duas maiores salas de comércio de
heroína. Ali paramos, e Ah Ming começou a pregar.
Dentro de uma delas um jovem alto, chamado Ah Mo,
acabara de injetar em si uma dose. Ele pouco ou
nenhum prazer alcançava mais com a droga, pois nem
bem acabava de tomar uma dose, e já precisava pensar
em como obter dinheiro para a próxima. Já estava
maquinando o próximo assalto, quando escutou
aquela cantoria lá fora. Saindo de lá, ficou espantado
de ver seu amigo Ah Ming contando como Jesus havia
transformado sua vida.
Realmente acontecera uma coisa maravilhosa
com o rapaz, pois umas três semanas antes os dois
tinham tomado heroína juntos. Esquecendo sua
intenção de praticar um assalto, acompanhou a fileira
de crentes até o clubinho. Ali pôs-se a escutar
maravilhado as palavras dos moços que lhe diziam
como Jesus poderia transformar-lhe toda a vida. Mas
ele abanou a cabeça, e pediu para falar comigo em
particular.
— Não posso ser crente, Sr.ta Poon. Matei minha
esposa.
E me narrou a trágica história de sua ascensão
na quadrilha pela fama de bom brigador. Ele
costumava jogar pessoas para fora de boates e bares
nos mais chiques setores da cidade. Em pouco tempo,
tinha o controle de um pequeno império. Vivia com
uma recepcionista de um dancing, mas tinha mais três
amantes. Quando foi preso, a recepcionista o visitou
na cadeia. Ela o amava realmente. Mas depois que foi
solto, continuou a procurar as outras mulheres. Ela
começou a tomar drogas, e, certa vez, foi levada quase
à morte para o hospital, onde fez lavagem estomacal.
Mas Ah Mo não largou sua vida de libertinagem, e ela
tomou outra dose excessiva. Na terceira vez em que o
fez, morreu no hospital. Ele ficou profundamente
abalado com o senso de culpa, e, num impulso de
autopunição, entregou-se às drogas também.
Quando eu lhe disse que poderia encontrar
perdão em Cristo, seus olhos ganharam nova
esperança. Orou recebendo a Jesus e saiu dali pisando
nas nuvens. Alguns dos velhos companheiros que se
achavam lá fora, no beco, zombaram dele ao ver a
expressão de seu rosto.
— Ele ficou religioso, gente, diziam. Ficou
religioso.
Mais tarde Ah Mo me disse:
— Não me importei com aquilo, pois meu
coração estava leve.
Eu presumira que, como Winson e Ah Ming
tinham sido curados milagrosamente do vício, todos
os que cressem o seriam também. Mas Ah Mo não o
foi, e continuou a tomar drogas.
Pedi ao Pastor Chan que o recebesse em seu
centro, mas não havia vagas, e ele teve de esperar
várias semanas.
— Glória a Deus! disse Ah Mo alguns dias
depois, quando veio para o culto de domingo. Essa
semana não precisei assaltar ninguém para comprar
minha heroína. Arranjei um emprego.
Quando fiquei sabendo qual era o emprego, eu
mesma não consegui dar graças a Deus. Ele estava
trabalhando em uma das salas como tin-man-toi
(metereologista). Todas as noites, tinha que ficar
sentado em uma das entradas da Cidade Murada. Em
seu maço de cigarros havia um plugue elétrico. Se
visse um grupo de policiais aproximando-se, ou um
investigador do departamento de narcóticos, ou um
membro de uma quadrilha inimiga, sua tarefa era
introduzir o plugue numa tomada que havia na
muralha. Isso disparava um alarme nas várias salas, e,
quando o intruso chegasse lá, toda a atividade estaria
paralisada.
Para fazer este serviço, Ah Mo recebia cerca de
HK$ 15,00 dólares diários, que eram suficientes para a
heroína, mas não para o arroz.
Todos os dias eu lhe dava um pouco de
alimento. Aprendera que não devia dar dinheiro. Ele
dormia num beco atrás dos banheiros públicos de
Kowloon, pagando para isso a quantia de HK$ 15,00
dólares a outro homem que se arvorara em "dono" da
rua. Quase todas as vezes em que ia lá, eu me sentava
ali e orava com ele, embora geralmente estivesse
sonolento.
Dei graças a Deus quando acabou-se aquele tra-
balho de vigilante. Ah Mo foi para o centro de reabi-
litação, libertou-se da droga, e, em um mês, engordou
quase dez quilos. Mais um dragão beijara a lona.
Após a cura miraculosa de Winson, continuei
mandando recados a Goko. Ia aos antros de jogo e
deixava ali meu nome; conversei com a esposa dele.
Afinal, concordou em falar comigo. Winson chegou
com um recado, dizendo que ele me convidava para
tomar chá no Restaurante Fairy, fora da cidade.
Enquanto me encaminhava para lá, fiquei a imaginar
como seria Goko. Sabia que era alto e forte, e que fora
um grande jogador de futebol antes de se entregar ao
ópio. O fato de ser viciado fazia um forte contraste
com o terror que seu nome inspirava. Era um dos mais
velhos chefes das quadrilhas, e orgulhava-se de
observar bem as leis do seu mundo, como, por
exemplo, encarregar-se dos funerais de um
companheiro assassinado.
Ele me reconheceu primeiro, já que eu era a
única ocidental a entrar no restaurante. Era um
homem de uns trinta e cinco anos, muito bem vestido,
e achava-se sentado sozinho. Fez um gesto cortês,
indicando que me sentasse. Olhando-o de frente pela
primeira vez, pude perceber que o ópio deixara
profundas marcas de dissipação em seu rosto forte.
Sorriu, exibindo dentes estragados e escurecidos pela
droga.
Educadamente, aquele impiedoso chefe da cor-
rupção indagou-me o que iria pedir. Entregamo-nos a
uma conversa agradável, até que não agüentei mais e
disse abruptamente:
— Não precisa ser tão educado comigo. Vamos
parar com essa hipocrisia, por favor. Não temos a
mínima simpatia um pelo outro. Por que me trata com
tanta gentileza?
Ele pensou por uns instantes.
— É que creio que você gosta de meus "irmãos"
assim como eu gosto.
E ele não estava falando por falar. Era
conhecido de todos o cuidado que tinha por seus
seguidores.
— É, realmente gosto deles, concordei. Mas
detesto tudo que você faz, e as coisas em que está
envolvido.
Então pôs de lado as gentilezas e passou a falar
abertamente.
— Poon Siu Jeh, tanto eu como você
conhecemos o poder. Eu o utilizo desse jeito (e cerrou
os punhos), e você desse jeito (apontou o coração).
Você possui um poder que não tenho. Não quero
meus "irmãos" amarrados à heroína, mas não consigo
fazer com que larguem. Mas acho que Jesus consegue.
Fiquei maravilhada ao pensar nas implicações
do que ele acabara de dizer.
— Por isso, continuou ele, resolvi entregar
todos os viciados a você.
— Não, repliquei prontamente. Já sei o que você
quer. Quer que Jesus os liberte das drogas, para que
voltem a lutar na quadrilha. Mas os cristãos não
podem servir a dois senhores. Eles têm que seguir ou
a Cristo ou a você. Nós dois estamos seguindo rumos
diferentes. Não tenho a menor intenção de ajudar seus
"irmãos" a se libertarem da droga, simplesmente para
você pegá-los de volta. Tenho certeza de que, se
voltarem a seguir você, retornarão ao vício também.
— Está bem, então, disse ele erguendo a cabeça
lentamente. Eu libero aqueles que quiserem seguir a
Jesus.
Mal pude acreditar no que ele estava dizendo.
Uma sociedade tríade nunca liberava seus membros.
Quando uma pessoa se unia a uma quadrilha, era
membro dela para o resto da vida. Se alguém tentasse
sair, arriscava-se a ser severamente castigado ou até
morto. E ali estava Goko, voluntariamente, liberando
alguns de seus "irmãos".
— Sabe o que vou fazer? disse ele depois. Vou
dar-lhe todos os imprestáveis e ficar com os bons para
mim.
— Ótimo, repliquei, Jesus veio para os
imprestáveis mesmo.
E foi esse o estranho pacto que fizemos. A partir
daquele dia, Goko sempre mandava os viciados para
eu curá-los. Quando ouviu falar do que acontecera a
Johnny, ele disse:
— Vou ficar de olho em vocês. Se ele
permanecer firme uns cinco anos, eu também terei
que crer.
9
"Doenças" da Infância
Winson estava em perigo. Ele me procurou
todo animado.
— Poon Siu Jeh, tenho que dar muitas graças a
Deus. Ontem à noite, fui a uma sala de ópio e um
deles me ofereceu a droga de graça. Tive vontade de
tomar. Mas orei, e Deus me deu forças para resistir.
Fiquei furiosa com ele.
— Isso não é razão para "louvar o Senhor",
Winson, disse-lhe. Isso é tentar a Deus. Você nem
devia ter ido lá.
Mas o problema é que Winson não tinha outro
lugar para dormir. Na época em que se convertera,
estava morando nessa sala de ópio. Eu já lhe dissera
para largar a quadrilha e seguir a Jesus, mas na prática
isso era o mesmo que dizer: "Ide em paz, aquecei-vos
e fartai-vos", e não fazer nada para suprir suas
necessidades materiais. Tanto Winson como Ah Ping
ainda estavam envolvidos com as quadrilhas, pelo
simples fato de residirem na Cidade Murada. Quando
um "irmão" deles era atacado, ficavam num dilema
muito grande. O primeiro impulso deles era
defendê-lo. Era muito difícil dar as costas aos amigos
com quem haviam-se criado e de quem gostavam.
Compreendi também que a mera presença deles ali
era uma aprovação às atividades das quadrilhas.
Ah Ming também encontrou muitas
dificuldades.
— Antes de me tornar cristão, disse, eu era
bastante conhecido pela minha capacidade de coman-
do. Se eu dizia: "Vai", meus seguidores iam. Se eu
dizia: "Faca", eles esfaqueavam. Nem paravam para
pensar. Mas, agora, quando eles vêm se queixar
comigo, tenho que parar e pensar. Não posso
mandá-los lutar, pois sou crente. Pela primeira vez na
vida, tenho parado para pensar no sentimento das
vítimas. E meus "irmãos" estão perdendo o respeito
por mim, e isso me magoa.
Andando pela Cidade Murada, eu estava
sempre encontrando ex-viciados e quadrilheiros que
revelavam um grande desejo de mudar de vida.
Tinham que ser retirados dali, daquele ambiente de
pecado. Mas não havia outro lugar onde pudessem
viver. Pus-me a procurar lares ou pensões de crentes
que pudessem recebê-los, mas sempre exigiam que
eles tivessem um emprego ou estudassem, e que
pudessem dar referências de um pastor e pagar um
mês de aluguel adiantado. E como nenhum dos
recém-convertidos que eu conhecia preenchia essas
exigências, era impossível arranjar lugar para eles.
Eu procurara colocar um desses rapazes em
casa de cada família inglesa que eu conhecia. Mas essa
situação não foi bastante satisfatória, pois os garotos
precisavam de maior vigilância e de um
disciplina-mento mais rígido, o que tais pessoas às
vezes não podiam dar. Além disso, a maioria delas,
depois de algum tempo, achava muito desagradável
ter um quadrilheiro em casa, mesmo sendo um
quadrilheiro convertido.
Mary Taylor rompeu em lágrimas na primeira
vez que viu nosso apartamento da Rua Lung Kong. É
verdade que as paredes estavam rachadas, a ponto de
desmoronar; no telhado havia um grande rombo, e a
luz não estava ligada. No entanto, para mim era um
presente do céu. Havíamos orado pedindo a Deus um
lugar onde pudesse abrigar minhas ovelhas, e esse era
o lugar.
Encontrei esse apartamento quando estava
andando nas vizinhanças da Cidade Murada,
indagando se ali havia cômodos para alugar. Tinha
mais de trezentos metros de área ao todo, e havia uma
escada que dava para um terraço que fora
parcialmente recoberto com folhas de zinco ondulado,
e assim era um quarto a mais.
Fiquei tão empolgada quando o vi, que
enxerguei apenas as possibilidades. Mas Mary, sendo
mais prática, via apenas as falhas dele. Os rapazes da
Cidade Murada nos ajudaram a fazer os reparos
necessários, contribuindo com suas habilidades, ou
mesmo sem elas.
Baseadas na premissa de que o serviço sai com
mais rapidez se o interessado se acha presente, eu e
Mary nos mudamos para lá, acomodando-nos entre
montes de entulho, sem luz e com um encanamento
de água não muito confiável. Uma das grandes
vantagens era o jardim do terraço, depois que
removemos o lixo que ali havia e plantamos begónias,
cactus e trepadeiras. Colocamos a trepadeira de forma
a vedar a vista à casa do outro lado da rua.
Era então hora de resolver se iria receber ali
rapazes ou moças, já que tantos estavam desabriga-
dos. Se recebesse os rapazes, o que não era muito
aconselhável visto ser eu solteira, seria necessário
recusar as moças. Mas a chance de opção foi-me tirada
das mãos, quando Ah Ping e Ah Keung tiveram de
sair da casa que eu arranjara para morarem, e não
tinham mais para onde ir, a não ser a Cidade Murada
ou nosso apartamento da Rua Lung Kong.
Nossa família foi aumentada com a chegada de
Joseph, o antigo presidente de nosso clubinho.
Winson também largou a sala de ópio e passou a
morar conosco. Tivemos que arranjar um jeito de Ah
Ping ir morar com alguns amigos. E foi assim que
criamos uma comunidade cristã, para auxiliar os
rapazes no seu crescimento espiritual.
Eu me encarregava de muita coisa. Cozinhava,
comprava roupas e alimento para os rapazes, cuidava
da casa, arranjava escola ou emprego para eles.
Também abríamos o clubinho quase todas as noites.
Quando finalmente me deitava para dormir, era
acordada por viciados que queriam ouvir falar de
Jesus. Prostitutas me ligavam da delegacia; detetives
vinham à nossa porta procurando informações, e
juízes me enviavam certos casos, pois nossa casa era
uma das poucas que recebiam delinqüentes.
Afinal, nosso apartamento acabou sendo misto.
Uma noite ouvi uma batida à porta. Quando abri, vi
uma mocinha com um bebê num dos braços e uma
mala enorme na outra mão. Atrás dela estavam seu
irmão e duas irmãzinhas menores.
— Poon Siu Jeh, murmurou ela. Viemos morar
com você.
Eu conhecera aquelas crianças havia três meses
e tivera muitos contatos com a família. A história da
família Chung era de estarrecer. Moravam num quar-
tinho minúsculo onde só havia uma cama de casal. O
teto era um pedaço de linóleo que, quando chovia,
ficava cheio de água e abaulado no meio. Era nessa
cama que as crianças aprendiam a andar; dormiam
nela, cozinhavam nela, brincavam e faziam os deveres
de casa nela. Todos os cinco eram muito acanhados, e
quando eu ia visitá-los, viravam-se para a parede,
ignorando minha presença.
Nunca os vi comer nada a não ser congee, uma
espécie de mingau de arroz cozido em água, porque o
infeliz pai gastava tudo que tinha em heroína e não
dava à família nenhum sustento. O único dinheiro que
entrava ali era a Sr.a Chung quem ganhava, carregan-
do água. Ela buscava água nas fontes que havia fora
da Cidade Murada, levando-a às casas. Ganhava cinco
centavos por balde que entregava, mas ficou reumáti-
ca e não podia mais caminhar com os baldes pesados.
Embora estivesse esperando o sexto filho, ela
estava sempre sorrindo. Recebera a Jesus no coração e
muitas vezes orava conosco. Costumávamos levar-lhe
bacon, peixe seco e azeite para melhorar um pouco seu
arroz. Se lhe déssemos dinheiro, o marido o roubaria
para comprar heroína. No Natal, demos brinquedos
às crianças e pagamos a taxa escolar para elas. Até
mesmo os filhos tinham que trabalhar nas indústrias
ali, para poderem comprar seu arroz. Levei o caso
dessa família ao Departamento de Bem-Estar Social,
solicitando alguma ajuda financeira, mas os
sociólogos encarregados do levantamento eram muito
desinteressados. Acompanhei a Sr.a Chung até lá, pois
não sabia ler. Ficamos sentadas lá o dia todo,
esperando a assistente designada para cuidar do caso
deles. Sugeri à moça que tratasse o casal como duas
pessoas distintas, pois o marido raramente aparecia
em casa, e não contribuía para a renda da família.
Mandaram-me sair, enquanto a Sr.a Chung era entre-
vistada. Mais tarde, ela me disse que tinha ido outra
vez à repartição para assinar o pedido de auxílio, e
que devíamos aguardar uma carta deles. Passaram-se
quatro meses e a carta não veio. Fui ao departamento
para verificar, e a resposta que recebi foi:
— Essa família não se enquadra dentro das
disposições para receber auxílio de pobreza.
— Se eles não estão enquadrados, então quem
está? indaguei. Não conheço ninguém que seja mais
pobre que eles. E agora têm uma criança recém-nasci-
da.
Ao que parecia, os encarregados haviam
solicitado a presença do marido na repartição para
fazer uma declaração de rendimentos.
— Ganho HKS600 dólares por mês e dou 400 à
minha esposa, dissera ele.
Isso era uma grande mentira, mas, para um
chinês, é muito vergonhoso ter de confessar que não
consegue sustentar sua família. Essa informação erra-
da foi anotada, e quando a Sr.a Chung foi lá, pedi-
ram-lhe que endossasse a declaração do marido. Ela
não sabia o que estava escrito ali. Pensou que estivesse
assinando a petição de auxílio, e então colocou sua
marca.
— Mas vocês não viram que ele é viciado? Não
se pode confiar na palavra de um homem assim!
— Ele disse que está completamente liberto da
droga, replicaram.
— Mas não sabem reconhecer um viciado?
O pessoal ali acabou-me tachando de "criadora
de caso", mas voltaram atrás na decisão, e afinal a Sr. 8
Chung recebeu auxílio do governo.
Então ajudamos a família a mudar-se da Cidade
Murada. Meus rapazes contrataram um caminhão, e
retiramos a cama de casal dali. Debaixo dela encon-
tramos vários tambores cheios de roupa usada. Ante-
riormente, eles tinham estado em contato com uma
instituição de caridade que lhes dera uma dúzia de
tambores de roupas, enviadas de outros países para os
"refugiados". A Sr.a Chung tinha um desejo tão forte
de possuir coisas, que não jogava nada fora. Os
tambores estavam apinhados de baratas. Havia mui-
tas e muitas roupas que não prestavam mais e amon-
toei uma porção delas junto às latas de lixo na rua. No
dia seguinte, quando fui lá, soube que a filha mais
velha, Ah Ling, as apanhara de volta.
Mais ou menos na época em que nos mudamos
para o apartamento da Rua Lung Kong, a Sr.a Chung
me disse que recebera ordens do governo para arran-
jar trabalho, já que não podiam sustentar a esposa de
um viciado indefinidamente. Ela lhes respondeu que
não estava bem, mas eles se recusaram a ajudá-la por
mais tempo. Duas semanas depois, ela começou a
tossir e morreu. Já padecia com tosse havia muito
tempo e tinha-se consultado várias vezes.
Senti que, em parte, eu era culpada de sua
morte. Sabia que estava tossindo, mas nunca me dera
ao trabalho de acompanhá-la ao médico, e assim não
fora diagnosticado que estava com tuberculose. E ela
morreu. Uma morte que poderia ter sido evitada.
Após o sepultamento dela, continuei a visitar e
a ajudar as crianças, que estavam sendo exploradas
pelo pai. Ele mandou a filha de treze anos trabalhar
numa fábrica, por um minguado salário de HK$ 100
dólares por mês. E tinha que entregar todo o dinheiro
a ele. Quando fazíamos passeios com o clubinho,
levávamos todas as crianças, e foi então que pediram
para morar em minha casa. Disse-lhes que, pela lei,
eles estavam sob a guarda e tutela do pai. Mas, um
mês depois, fizeram a mala e fugiram de casa para
morar comigo.
Parados ali à minha porta, constituíam um
quadro patético. Estavam inteiramente convictos de
que eu os receberia. Em minha casa já havia rapazes
dormindo no chão, mas não tinha outra opção, senão
acolhê-los. Eram crianças muito retraíadas, e só
depois de muito tempo foi que conseguiram
conversar comigo. Nossos rapazes eram muito
bondosos com aquelas crianças, e gostavam
imensamente de brincar com o bebezinho.
Depois, nossa família aumentou mais com as
constantes visitas da Sr.a Chan, que eu conhecera
havia alguns meses. Seu filho, Pin Kwong, era um
viciado terrível, que não tinha a menor intenção de
mudar de vida. Muitas vezes, pedi-lhe notícias de sua
mãe, mas ele sempre me dizia:
— Ela não quer saber de crentes; é uma
adoradora de ídolos.
Quando ele foi preso mais uma vez, procurei a
mãe e encontrei-a de cama, em seu quartinho na
Cidade Murada. Ela resolvera morrer, ao saber que o
filho fora preso mais uma vez. Pin Kwong era toda a
sua vida. As mulheres chinesas em geral têm muito
orgulho dos filhos homens, mas o dela era um perdi-
do, e por isso ela não tinha mais vontade de viver. Ele
não queria que eu visitasse a mãe, para eu não saber
que a explorava. Quando a encontramos, ela já estava
recolhida havia vários dias, sem se alimentar, e acha-
va-se enfraquecida. Então resolvemos tomar provi-
dências para restaurar-lhe o animo. Demos-lhe ali-
mento e falamos-lhe do Pai celestial, que tinha dado
ao mundo o seu bem mais precioso, o seu Filho, só
porque a amava.
A Sr.a Chan nunca tinha ouvido falar de Cristo.
Impusemos as mãos sobre ela, orando em voz
alta e pedindo a Deus que ele próprio lhe falasse de
um modo que ela pudesse compreender. Terminada a
oração, ela ergueu os olhos, sorriu e disse que fora
curada da "doença do pulmão" e que já conseguia
respirar sem dificuldade. E nunca mais sentiu nada.
Naquela noite ela sonhou que via um homem
vestido com um longo manto branco, aproximar-se
dela com os braços estendidos, pendindo-lhe que
fosse a ele e se batizasse. A partir daquele momento,
ela foi sempre uma pessoa alegre e radiante. Quando
nos mudamos para a Rua Lung Kung, demos-lhe uma
chave da casa, e ela estava sempre aparecendo por lá,
fazendo a limpeza ou cozinhando para nós, e nos
apresentava os negociantes do mercado local, seus
conhecidos, que passaram a vender-nos alimentos por
baixo preço. Gostava imensamente da nova família
que adotara e ficava por ali dando ordens a todos.
Como não soubesse ler, pedi aos rapazes que
lhe ensinassem versículos da Bíblia. Levou uma
semana para aprender: "Disse Jesus: Eu sou o pão da
vida".
Três anos antes, certa noite, íamos ter um
estudo bíblico, e Dora viera até a Cidade Murada para
interpretar para mim. Foi uma dessas ocasiões em que
só um rapaz veio ao culto. Fiquei muito irritada, e foi
esta uma das raras vezes em que desejei estar na
Inglaterra. E expressei esses sentimentos. Quando
orávamos, Deus deu uma mensagem em línguas ao
rapaz, e Dora interpretou-a.
— Ninguém que tenha deixado casa, irmãos, ir-
mãs, mãe, pai ou filhos, ou terras por amor a mim ou
ao evangelho deixará de receber cem vezes mais casas,
irmãos, irmãs, mães e filhos, e terras nesta vida, e, na
vida futura, a vida eterna.
Imediatamente abri a Bíblia em Marcos e li esses
versos, e vi que realmente o texto dizia que recebería-
mos ainda nesta vida cem vezes mais. E naquela noite
reivindiquei o cumprimento dessa promessa.
— Senhor, disse, gostaria de ter cem casas, cem
irmãos e irmãs. E também cem mães e filhos.
Contei então o pessoal ali, naquele apartamento
da Rua Lung Kong, e vi que devia ter pelo menos uns
cem irmãos e irmãs. Como ainda era pequeno o
número de mães, apareceu então a Sr.a Chan. Mas
vieram outras mães também.
Certo dia fui procurada por um rapaz que
acompanhava sua avó. Era bem velhinha e debilitada,
e tinha um curativo na cabeça.
— Quero ser batizada, disse ela com voz
esganiçada.
Fiquei logo desconfiada.
— Se a senhora ainda não recebeu a Jesus,
batizar não significa nada. Se quiser que eu lhe fale
dele, terei imenso prazer, mas se o que a senhora quer
é apenas o certificado, não posso dar-lhe. Aqui em
nossa igreja não damos certificados.
A velhinha tinha levado um tombo e ferido a
cabeça. Estava com receio de morrer, sem ter um lugar
para ser enterrada. Em Hong Kong havia poucos
lugares. Mas, como membro de uma igreja, ela
conseguiria um. Levei-a à Sr.a Chan, que fez amizade
com ela e falou-lhe de Cristo. A velhinha teve uma
conversão genuína, foi batizada e seis meses depois
morreu, tendo já o seu lugar reservado no céu.
Eu não fazia idéia de que cuidar dos rapazes em
minha casa iria ser tão trabalhoso. Cometera um erro
básico. Tinha pensado que "se alguém está em Cristo é
um novo homem", ao passo que o texto bíblico diz que
"é nova criatura". Eles eram como recém-nascidos, e
tinham muito que aprender. A ignorância deles sobre
as condições normais de vida era de estarrecer.
Alguns, como Mau Jai, tinham vivido pelas ruas
desde a idade de cinco anos. Ele não pudera viver em
sua própria casa, porque o pai tinha duas esposas, e a
segunda, sua mãe, caíra no desagrado dele e os filhos
dela foram expulsos de casa. Não tiveram uma infân-
cia normal. Logo tornaram-se peritos na arte da
astúcia e da trapaça. Como estavam acostumados a
ficar acordados a noite toda, não compreendiam por
que tinham que ir dormir à meia-noite. Levantavam a
hora que acordassem. Se não sentissem vontade de ir
trabalhar, não iam. Os regulamentos da casa eram
logo associados com a idéia da prisão, e não os
observavam da forma devida.
Por vezes, eu achava que eram eles que
estavam-me dirigindo, e não eu a eles. Um exemplo
de um caso assim foi o de Ah Hung, que nos fora
enviado pelas autoridades, supostamente liberto da
dependência à droga. Na verdade, ele recomeçou a
tomar heroína no mesmo dia em que foi solto.
Portanto, não foi surpresa para nós, quando perdeu o
emprego e desapareceu de casa. Certo dia, reapareceu
completamente drogado, confessando que havia
participado de um assalto. Nós o convencemos a
entregar-se, mas fugiu de novo. Como mencionara
uma arma, liguei para a polícia, e, daí a pouco, seis
viaturas cheias de detetives vieram pelo túnel,
cantando pneus, e pararam diante do prédio. Num
instante, entraram no apartamento, revólveres em
punho, como se pensassem que ele ainda estava lá.
Depois se foram, deixando alguns de vigia, os quais se
revezavam, guardando a casa vinte e quatro horas por
dia. Numa noite, os dois que estavam de guarda
largaram seu turno e foram procurar um bom
restaurante, deixando-nos um número de telefone,
onde poderíamos encontrá-los.
Era tudo mentira. No dia seguinte, Ah Hung
apareceu e explicou que não havia participado real-
mente do crime. Não acreditei, e levei-o à delegacia
para confessar. Foi a melhor coisa que poderia ter-lhe
acontecido, pois soubemos que não poderia mesmo
ter tomado parte no assalto. Todos zombaram dele,
por haver inventado aquela história sob o efeito de
drogas. Mas era exatamente o que precisava acontecer
para que se comprovasse o fato de que ainda estava
viciado, e chegasse ao ponto de desejar auxílio
espiritual.
Estávamos sentindo claramente que os rapazes
da Cidade Murada precisavam de uma disciplina
mais forte. Em parte, eu tinha dificuldade nisso, pois
me relacionara com eles como amiga, e tornou-se
difícil a transição, e colocar-me na posição de pastor
ou professora. Assim, eles chegavam em casa a
qualquer hora do dia ou da noite, e não estavam
crescendo espiritualmente, como eu desejava.
Comecei a orar a Deus para que mandasse alguém
que pudesse encarregar-se dos serviços caseiros, de
modo que eu pudesse sair às ruas outra vez.
Pedi a dois rapazes crentes, chineses, que
morassem conosco para dirigir a casa. Mas não deu
muito certo. Eles queriam um salário definido, o que
eu não poderia prometer-lhes. Queriam que os
rapazes os tratassem de "professor". Quando eu
acordava de manhã, perguntava-lhes se haviam
chamado os rapazes e preparado o desjejum.
Replicavam que tinham estado muito ocupados com a
"hora silenciosa", isto é, seu momento de oração e
leitura bíblica. Para eles, ensinar era realizar um
estudo bíblico e pregar por quase uma hora e meia.
Foram ensinados que era assim que se fazia o trabalho
cristão: dirigir cultos, serem tratados com
determinado título e pregar. Ainda não haviam
aprendido a lição de Jesus, quando lavara os pés dos
discípulos.
Muitas vezes, eu levava os rapazes às reuniões
promovidas pelo casal Willans, das quais eles gosta-
vam muito. Ali sempre se fazia a interpretação para o
chinês, a fim de que eles pudessem participar e ter
comunhão com outros crentes. Muitas pessoas ora-
vam por nós.
Certo dia, Jean Willans disse-me com firmeza:
— Se você quer mesmo trabalhar com esses
rapazes, Jackie, tudo bem. Mas não precisa morar com
eles. Ou pelo menos arranje um lugar, onde você
possa ir vez por outra para recuperar suas energias
em paz.
Mas eu não entendia essa atitude. Aliás, eu não
entendia por que o mundo todo não queria trabalhar
na Cidade Murada. Eu não desejava estar em nenhum
outro lugar da Terra.
Entretanto, a despeito da confusão reinante em
nossa casa, descobri que muitas vezes Deus usava
crentes jovens para nos reanimar, a mim e aos outros.
Todos os que haviam-se tornado crentes receberam o
poder de Deus na mesma hora em que haviam crido.
E nós os aconselhávamos a exercitar os dons espiri-
tuais, quando tínhamos nossas reuniões. Então eles
sabiam perfeitamente que, o fato de terem um dom,
tinha por objetivo auxiliarem-se mutuamente.
Certa noite, estávamos orando, quando um dos
moços disse que Deus lhe dera algumas palavras para
nos dizer: "Vá e colha os repolhos e pegue o ônibus
rapidamente." Era uma mensagem muito estranha. Só
depois de uma consulta ao dicionário foi que consegui
a interpretação correta. "A seara está pronta; vá
trabalhar na colheita." Saímos e pregamos aos
vagabundos que dormiam pelas ruas nas proximida-
des da nossa. Um deles aceitou nossa oração e mais
tarde foi liberto das drogas em nossa casa.
Houve uma outra ocasião em que os rapazes me
reanimaram bastante. Eu chegara em casa exausta e
preocupada. Mary e os dois obreiros tinham ido
embora. Estavam-se sentindo impotentes para dirigir
os conversos e os outros rapazes. E me indagava se os
missionários de outros países tinham os mesmos
problemas que eu enfrentava com os novos converti-
dos.
— Achem um versículo bíblico bem
reconfortante para mim, disse aos rapazes.
Mas o texto mais animador que acharam foi um
verso deprimente de Apocalipse.
— Vamos orar, então falei.
Quando estávamos orando, recebi uma
mensagem em línguas, e um dos rapazes a interpretou
imediatamente. Só havia poucos dias que ele crera em
Jesus, e não sabia ler a Bíblia direito. Mas a
interpretação que deu foi uma citação clara e direta do
livro de Salmos:

"Os que com lágrimas semeiam


Com júbilo ceifarão.
Quem sai andando e chorando
Enquanto semeia,
Voltará com júbilo,
Trazendo os seus feixes.
Se o Senhor não edificar a casa
Em vão trabalham os que a edificam.
Inútil vos será levantar de madrugada
Repousar tarde.
Comer o pão que penosamente granjeastes.
Aos seus amados ele o dá enquanto dormem."
(Salmo 126.5,6 e 127.1,2)

E aquelas criancinhas em Cristo, por meio do


Espírito Santo, me disseram exatamente as palavras
certas naquele dia.
A medida em que nossa família da Rua Lung
Kong ia crescendo, nossa renda foi aumentando tam-
bém. Desde que eu parara de lecionar em tempo
integral, percebi que sempre recebia tudo de que
precisava. As vezes chegava um cheque pelo correio.
Outras, um amigo me dava exatamente a quantia que
eu estava pedindo ao Senhor em oração. Certa vez,
queríamos comprar um bote de borracha para um
passeio que eu desejava fazer com os rapazes, e uma
pessoa nos enviou da Inglaterra a quantia exata.
Sempre tínhamos o suficiente para as despesas de
cada dia. Para os jovens, isso era maravilhoso, pois
sentiam estar participando de maneira direta na obra
de Deus, quando oravam pela manhã pedindo o pão
de cada dia.
Todos os domingos, após o culto da manhã,
convidávamos muitas pessoas para almoçarem
conosco. Num domingo, tivemos de dizer aos rapazes
que não dispúnhamos de dinheiro para o alimento
daquele dia.
— Mas vamos cozinhar o arroz assim mesmo, e
orar para Deus nos dar mais alguma coisa para
colocar nele.
Dez minutos antes da hora marcada para a
refeição, chegou ali uma visita, arfando e suando,
levando-nos alimentos enlatados'. Sua classe de
estudo bíblico tinha levantado uma coleta para nós, à
última hora, e mandara que ele a entregasse a nós. Era
uma vida muito emocionante.
Naquela época, cometi muitas tolices, mas,
mesmo assim, Deus via a intenção de meu coração e
nos abençoava. Uma noite eu estava muito gripada e
ficara em casa, sentindo-me bastante indisposta,
quando ali chegou Geui Jai, um conhecido lutador de
kung-fu, um dos poucos que era instruído. Era muito
inteligente e falava inglês muito bem. Mas também
era um miserável viciado e perdera sua utilidade para
a quadrilha. Eu o encontrara muitas vezes dormindo
nas ruas ou escadarias próximas de nossa casa, pois
tanto seus pais como seus "irmãos" da quadrilha o
haviam banido.
— Será que poderia emprestar-me sua máquina
de escrever, SrM Poon? pediu ele. Vou conseguir um
bom dinheiro ajudando uma pessoa a fazer traduções.
Isso me rende o suficiente para a droga e assim não
preciso roubar.
A condição em que estava deve ter prejudicado
meu discernimento. Deixei que levasse a máquina,
contando que me devolvesse à noite.
Mais tarde ele me ligou.
— Sr.ta Poon, sinto muito, mas não poderei
devolvê-la hoje. Pois arranjei um outro serviço. Que
bom, não é? Tenho que datilografar duzentos convites
para uma festa.
Seu argumento me pareceu razoável, até que
coloquei o fone no gancho. Que ridículo! Ninguém
aqui iria bater um convite duzentas vezes. Mandariam
imprimir. Era óbvio que ele empenhara a máquina, e
que nunca mais a veria.
Alguns rapazes ficaram sabendo do que Geui
Jai fizera, e ficaram bastante zangados. Ameaçaram
bater nele, embora eu tivesse dito:
— Deixem isso para lá. Perdi minha máquina, e
daí? Jesus perdeu a vida. E a máquina nem se
compara com uma vida. Foi culpa minha e não dele.
Vamos esquecer isso.
Três meses depois, Deus me deu o primeiro
fruto positivo disso. Minha máquina reapareceu na
estante de livros, em casa. Interroguei Ah Ping para
saber o que acontecera. Afinal, ele contou que Goko
ficara tão irritado ao saber do que Geui Jai fizera, que
mandara seus homens atrás dele. Estes exigiram dele
a cautela de penhor da máquina, e Goko pagara do
seu próprio bolso o resgate dela. Então ele a devolvera
sem mandar dizer nada.
Mais uma vez mandei um recado urgente para
ele, pois queria agradecer-lhe. E mais uma vez fomos
tomar chá juntos. E ali conversei com o "poderoso
chefão" de quadrilha que, com uma das mãos, dirigia
um império do crime e com a outra protegia uma
missionária.
— Muito obrigada pela devolução da máquina,
disse-lhe.
— Moeyeh, moeyeh. Não foi nada. Nada mesmo,
replicou parecendo bastante constrangido.
— Seu gesto me comoveu profundamente,
continuei. E eu queria explicar-lhe uma coisa.
— Geui Jai é um sujeito muito ruim, disse. Não
poderia ter feito uma coisa dessas com você.
— Mas você não tinha obrigação nenhuma de
resgatar minha máquina, continuei. Não é meu amigo.
Sou contra você, e vim para cá, porque quero derrubar
tudo isso por que você luta.
Em seguida falei-lhe um pouco do que Cristo
havia feito para nós, resgatando-nos com seu próprio
sangue. Ele ouviu atentamente, parecendo quase aca-
nhado. Depois pagou a conta do lanche e saiu apres-
sadamente. Mas ouvira a história da redenção.
O segundo resultado positivo foi que Geui Jai
ficou com consciência de culpa e tornou-se mais
sensível. Certa vez, dei com o fracassado lutador
dormindo em ruas e escadas. Ele vira a mudança que
se operara em Winson e Ah Ming, e seu desejo de ser
uma pessoa diferente também aumentou. Afinal
chegou o dia em que ele orou conosco, e depois foi
para o centro de reabilitação do Pastor Chan e trocou a
seringa pela cruz. E não apenas libertou-se da droga,
mas também foi estudar numa escola bíblica e
tornou-se pastor.
Aqueles anos vividos no apartamento da Rua
Lung Kong foram uma época de aprendizado e
crescimento. Muitas vezes me senti confusa. A manei-
ra mais fácil de expressar o que sinto é empregando as
palavras do Evangelho de João: "A mulher quando
está para dar à luz, tem tristeza, porque a sua hora é
chegada; mas, depois de nascido o menino, já não se
lembra da aflição, pelo prazer que tem de ter nascido
ao mundo um homem."
As dores daquela época podem ficar
esquecidas, porque deram à luz muitos filhos e um
relacionamento maior com o casal Willans. As duas
coisas me proporcionaram muita alegria.
10
É Jesus Mesmo
"Jean Stone Willans é uma senhora muito
entusiasta. Tem o dom de falar 'línguas estranhas', e
acaba de publicar um livro leve e interessante sobre
religião. O título é The Acts of the Little Green Apples (Os
atos dos maçãzinhas verdes) e descreve^ vida da
família Willans — dela, de seu marido Rick, e de
Suzanne, a filha do casal. A Sr.a Willans não pratica
religião, ela a vive. Ao que parece, ela conseguiu uma
forma de fácil comunicação com Deus. Mas, segundo
ela diz, isso se acha ao alcance de qualquer pessoa. O
pensamento de Jean Stone Willans é de que, se Deus
está-lhe chamando para trabalhar para ele, deve
também capacitá-la para isso. E ele o faz muitas
vezes."
Era o que dizia um artigo do Hong Kong Stan-
dard, em julho de 1973, a respeito do livro de Jean, e eu
também partilhava desse entusiasmo acerca dele.
Aquela altura, Jean e Rick eram meus amigos íntimos
e conselheiros espirituais. Eles haviam-me ensinado
que podemos apreciar as boas coisas que Deus nos dá.
Eu fora levada a crer que os missionários devem ter o
mínimo de coisas possíveis. Os Willans haviam vivido
momentos de necessidade também, mas não achavam
que Deus queria que vivessem assim para sempre.
Quando tinham coisas belas, apreciavam-nas bastan-
te, mas da mesma forma estavam dispostos a dar tudo
para os outros, se Deus assim o determinasse. Haviam
aprendido a estar contentes em quaisquer circunstân-
cias. Também eram os únicos crentes que eu conhecia
que poderiam orar a noite toda, ou então assistir
televisão, ou ir a um jantar refinado.
Descobrimos que houvera muita semelhança
em nossas chamadas para trabalhar no Oriente, pois
eles também tinham recebido a orientação através de
um sonho e uma profecia. Seu ministério em Hong
Kong era numa esfera de ação completamente
diferente da minha.
Certo dia eu me encontrava num tribunal
acompanhando um caso, quando avistei David
agachado a um canto, no setor onde ficavam os
acusados. Era amigo de Ah Ming. Ele estava
pensando em declarar-se inocente, mas quando me
viu sentiu um aperto na consciência. Começou a orar e
acabou confessando-se culpado das acusações que lhe
eram feitas. O juiz resolveu soltá-lo, e ele saiu como
que fora de si de espanto. Saímos juntos dali e fomos
tomar um café. Ele me disse que estava disposto a
seguir a Jesus de todo o coração. Logo pensei que
devíamos então informar ao chefe de sua quadrilha
que ele iria sair dela, pois seria bom se rompesse com
o mundo do crime.
— Quem é o seu daih lo, David? indaguei.
Ele ficou nervoso e pôs-se a remexer no assento.
— Ele não vai querer falar com você.
— Mas qual é o nome dele? insisti.
— O apelido dele é "Jesus", respondeu. Mas ele
não vai querer vê-la.
— Por que você não tenta falar com ele? Se quer
mesmo ser crente, não poderá seguir a dois Jesus.
— Está bem, disse ele. Vou tentar encontrá-lo.
E foi a um telefone. Afinal voltou com uma
expressão de surpresa no rosto.
— Ele vai falar com você. É para você ir à
Quadra 20 do conjunto habitacional de Chaiwan, hoje
à meia-noite, na lanchonete. Ali uma pessoa irá
encontrá-la e levá-la a "Jesus". Mas terá que levar cem
dólares.
— Mas por que os cem dólares? indaguei
curiosa.
— Porque lá em Chaiwan ninguém a conhece,
Sr. Poon, explicou David. É um lugar muito perigoso
ta

à noite e pode ser assaltada. Se você tiver o dinheiro,


eles o levam e a deixam em paz; mas se não tiver nada,
ficam com raiva e batem em você.
— Está brincando? Não tenho nem dez dólares,
quanto mais cem. Não vou levar dinheiro nenhum. Se
estou fazendo a obra de Deus, ele cuidará de mim. E
depois, se isso puder fazer você compreender que
Deus o ama, não me importo de morrer.
O rapaz olhou para mim com ar incrédulo e
depois falou:
— Você está maluca, está louca!
Deu uma olhada de relance para os amigos e
depois continuou:
— Nunca vimos ninguém que quisesse morrer
por nós.
Cheguei em Chaiwan às onze e meia e fiquei
alguns minutos passeando por ali. Trata-se de uma
área bem espaçosa na Ilha de Hong Kong, onde
haviam construído prédios de conjuntos habitacio-
nais. Aquela hora, a rua ainda estava regurgitando de
gente, centenas de pessoas estavam sentadas tomando
seu lanche noturno.
Deu meia-noite. Eu estava na lanchonete da
quadra 20. Na valeta da rua, ao lado, escorriam
detritos em água poluída. Estava tão absorta olhando
para aquilo, que não percebi a aproximação daquele
que seria meu guia.
— O que você quer? indagou um cantonês de
cabelos encaracolados.
— Quero que me conduza ao seu chefe,
repliquei agarrando firmemente a minha Bíblia.
— Quem você quer ver?
— Quero ver "Jesus".
— Por que quer ver "Jesus"?
— Quero falar com ele sobre o meu Jesus.
— Tem certeza de que quer falar com ele?
Aquela conversa parecia um diálogo de filme de
segunda classe.
— Tenho.
— O que quer conversar com ele?
— Quero falar sobre o meu Jesus, repeti.
O homem virou a ponta do polegar para si
mesmo.
— Está falando com ele.
Eu e "Jesus" sentamo-nos num café próximo.
Abri a Bíblia e pus-me a falar-lhe de Jesus. E ele
entendeu tudo que eu estava dizendo. Era quase como
se o Espírito Santo estivesse ali, àquela mesa. Ali
estava "Jesus", com lágrimas escorrendo pelo rosto,
totalmente desligado do ambiente que nos cercava. E
depois orou, pedindo a Jesus que entrasse em sua
vida; e foi batizado no Espírito Santo, em meio às
chícaras de café.
Já eram mais ou menos três horas da
madrugada, quando saí de Chaiwan e peguei uma
condução de volta a Kowloon. Mas antes disso,
lembrei-me de uma coisa.
— Ah, a propósito, disse-lhe, você deve contar a
pelo menos uma pessoa, que creu em Cristo hoje.
Quando o vi no dia seguinte, no apartamento
de um amigo, quase não reconheci nele o antigo
"Jesus". Tinha uma expressão alegre e vibrante.
— Você falou a alguém que creu em Jesus
ontem à noite? A pelo menos uma pessoa? indaguei
um pouco ansiosa.
— Não, replicou. Falei com a quadrilha toda.
Ficamos acordados até às seis da manhã, lendo os
versos que você sublinhou na Bíblia, e agora todos
querem crer em Cristo também.
Existem muitas descrições sobre o encontro de
diversas pessoas com Jesus. Mas só aquele que já
passou por essa experiência compreende a maravilha
que ela representa. Minha vontade era pular, cantar,
dançar, participar da festa que, naquele momento,
estava acontecendo no céu, entre os anjos.
Todavia, eu ainda estava em Hong Kong, com
os pés na terra. E à minha frente estava aquele
ex-quadrilheiro, que me olhava, esperando ouvir mais
alguma coisa. Trouxera consigo um sai lo, Sai Keung,
que estivera presente à nossa conversa de madrugada.
Também queria saber como poderia receber o poder
de Jesus, como o seu daih lo. E então ele recebeu a Jesus
e o dom do Espírito Santo. Eu sempre dizia aos
rapazes que, logo que cressem, Jesus lhes daria o dom
de língua estranha para auxiliá-los em oração. E
aqueles novos convertidos aceitaram com facilidade o
fato de que, se estavam seguindo um Deus
Todo-Pode-roso, era perfeitamente adequado que ele
lhes desse uma nova língua para que falassem com
ele. E todos, sem exceção, receberam o dom, e assim
não houve nenhuma confusão sobre a possibilidade
de um ser mais espiritual que outro.
Sai Keung mostrava-se radiante. Era um
rapazinho baixo e corpulento, de pouca conversa, mas
incentivou-me com muita ênfase a voltar a Chaiwan
no dia seguinte, para pregar aos outros.
E eu voltei naquela noite, e em muitas outras. O
número de interessados aumentou
consideravelmente. Fazíamos estudos bíblicos junto a
barracas de lanches, reuniões de oração em lojinhas, e
cultos evange-lísticos nas escadas dos prédios. A obra
estava-se alastrando para fora dos limites da Cidade
Murada e atingindo pessoas de outros bairros.
Como sempre fazia, pedi a "Jesus" (que passou
a chamar-se Christian) para apresentar-me ao seu "ir-
mão maior".
— Ele não vai querer falar com você, disse. É
uma pessoa muito importante e tem centenas de
seguidores. Mesmo quando queremos falar com ele,
não sabemos onde o podemos encontrar. Deixe para
lá.
Mas fiquei sabendo que o nome dele era Ah Kei.
Prometi que não iria forçar um encontro com ele, mas
Christian deveria orar em favor dele. Estávamos todos
com a impressão de que ele iria tornar-se um elemento
muito importante em nosso trabalho. Onde quer que
eu ia, sempre levava comigo exemplares da Bíblia,
pronta para uma emergência.
A hora era meia-noite e quinze; o local, uma
barraca de rua; o elenco, Sr.ta Poon, "Jesus" e os crentes
de Chaiwan. Ah Kei surgiu de entre a escuridão
disposto a brigar.
— Poon Siu Jeh, disse em tom de desafio, se
você puder me converter, eu lhe darei mil discípulos.
Parecia estar tendo enorme satisfação em "atirar
a luva". E tinha-se até a impressão de que ele se
preparava para duelar.
— Não posso convertê-lo, Ah Kei, repliquei.
Acreditar em Jesus é uma decisão que você próprio
deve tomar. E também não pode simplesmente dizer
aos seus sai los para crerem nele. Terão que decidir
isso por si mesmos.
Ah Kei tinha ouvido os rumores a respeito do
que estava acontecendo em Chaiwan; e se ia haver um
avivamento, então ele tinha que estar no comando da
coisa. Sentando-se à mesa onde estávamos, convidou
todos que se achavam por ali para lancharem com ele,
exibindo ostensivamente sua condição de homem
endinheirado. Queria que todos vissem bem quanto
dinheiro iria gastar. Mas ele mesmo não comeu nada;
e nem queria saber se estávamos com fome ou não.
Aquilo era pura e simplesmente uma exibição.
Mas ele ficou muito pensativo e, após o lanche,
convidou-me para acompanhá-lo a um certo lugar,
onde iria mostrar-me uma coisa.
Começamos a caminhar em direção à favela
cujos antros de jogo e drogas tinha sob seu comando.
De repente, ele se virou para mim.
— Poon Siu Jeh, você despreza os viciados?
— Não, Ah Kei. Não os desprezo, pois foi por
causa de pessoas como eles que Jesus veio ao mundo.
— Você seria capaz de ter amizade com um?
indagou, e tanto ele como eu sabíamos a quem ele
estava-se referindo.
— Pois o pessoal da Cidade Murada me critica
justamente por que gosto mais de ter amizade com
um viciado, do que com um indivíduo que pensa que
leva uma vida certinha, respondi.
Continuamos a caminhar em silêncio, até que
Ah Kei parou à porta de um barraco coberto com
folhas de zinco. Quando ele empurrou a portinhola
com um tapume de plástico escuro, vi-me diante de
uma dezenas ou mais de homens jogando. Logo se
estampou na fisionomia deles uma expressão de
espanto e preocupação, pela presença ali de uma
mulher inglesa, às três horas da manhã. Ah Kei
ergueu a mão pedindo silêncio.
— Não tenham receio, disse. Ela não tem
desprezo por nós. É cristã e veio aqui para nos falar
sobre Jesus.
E em seguida me passou a palavra,
convidando-me a pregar.
Depois fomos ao salão de ópio, que fica
contíguo. Dentro presenciei um terrível espetáculo.
Ali havia velhinhos esquálidos estendidos sobre um
estrado. Pareciam mais uns insetos gigantescos, mais
braços e pernas que corpos. A metade deles estava
inconsciente. Ah Kei repetiu o que dissera antes.
— Não tenham medo. Ela não nos despreza.
Veio aqui para nos falar sobre Jesus.
Os que ainda estavam conscientes escutaram
atentamente o que eu dizia. Quando saí dali deixei
vários exemplares da Bíblia em chinês.
Só o fato de eu ter pregado o Evangelho
naquelas salas de perversão já era extraordinário, mas
Ah Kei insistia em que eu conhecesse outros pontos de
seu império de drogas, perversão e jogo. Fomos de
Chaiwan para Shaukiwan, e dali para Lyemum, Kwon
Tong e Ngautaukok. Em cada um desses lugares, ele
me apresentou como uma cristã, e em todos as
pessoas me escutavam respeitosamente. Distribuí bí-
blias em todos os pontos que passei. Em um dos
antros, trouxeram-me um homem que se contorcia em
dores.
— Poon Siu Jeh, a senhora é médica? Pode
levá-lo para um hospital? Ele está padecendo muito.
— Não, não sou médica, nem enfermeira, e não
tenho dinheiro para interná-lo num hospital. Mas
posso orar por ele, respondi.
Ouvindo isso, soltaram risinhos maliciosos, mas
concordaram em conduzir-nos a um quartinho dos
fundos, que estava mais silencioso. Ali impus as mãos
sobre o homem e orei por ele em nome de Jesus.
Imediatamente, seu estômago relaxou e ele se levan-
tou, parecendo bastante espantado. Estava completa-
mente curado. Os outros também estavam um tanto
surpresos. Um deles perguntou:
— Esse é o Deus vivo, aquele de quem você
esteve falando?
E então puderam crer, porque entenderam
quem era Jesus, pelas suas obras poderosas.
No final, dei uma Bíblia para Ah Kei e escrevi
uma dedicatória nela: "Para meu amigo Ah Kei,
orando para que um dia seja meu irmão." Ele me
agradeceu educadamente, mas sem a menor intenção
de lê-la.
Nos três meses que se seguiram, passei a
acompanhar a vida dele. Era casado, tinha mulher e
filhos, mas também costumava dormir onde estivesse,
tarde da noite. Uma noite ele ficou tão drogado, que
leu duas páginas de A Cruz e o Punhal, duas de Foge,
Nicky, Foge, e duas da Bíblia, alternadamente, durante
dois dias. A certa altura começou a abrir-se comigo e
disse-me como se arrependera de haver-se casado tão
jovem. Mas tive mais pena da esposa dele, por ter um
marido que quase nunca parava em casa.
As vezes ele dormia três dias seguidos. Outras,
não dormia. Mas Deus sempre me revelava onde ele
estava dormindo, e depois de procurá-lo por algum
tempo, eu o encontrava. Ele me olhava com uma
expressão que parecia dizer:
— Você, de novo? Como ficou sabendo que
estava aqui?
Enquanto isso, eu pedi a muitos crentes que
orassem por ele. Certo dia, quando o encontrei,
disse-me:
— Deus me falou uma coisa.
— O que quer dizer? Deus falou com você?
Fiquei meio irritada, pois pensei que estivesse
brincando.
— É; Deus conversou comigo, insistiu ele.
Estava lendo a Bíblia, e lá diz que ele tem uma graça
especial para pessoas como eu.
— O que quer dizer com "graça especial"?
— A Bíblia diz que quem mais pecou, mais é
perdoado.
Quase senti inveja dele, mas estava falando com
muita seriedade sobre essa sua descoberta, e parecia
preparado para pedir ao Senhor essa graça especial.
Estávamos num barraco contíguo a uma de suas salas
de jogo. Ele sentou-se no chão e eu também me sentei.
E, pela primeira vez, orei com Ah Kei. Ele pediu a
Jesus que aceitasse a dedicação que fazia de sua vida e
que fizesse dele uma nova pessoa. Aquela altura, po-
rém, ele ainda não tinha muita noção de pecado e or-
gulhava-se de seu passado.
Em seguida fomos para Mei Foo onde Jean e
Rick estavam morando. Sabia que ficariam
encantados de conhecer Ah Kei, já que tinham orado
tanto por ele.
Fizemos uma grande festa pelo nascimento
espiritual de Ah Kei. Geralmente orávamos em
festinhas, e como Ah Kei ainda não recebera o dom do
Espírito Santo, dissemos-lhe que Deus dá o seu poder
a todos quantos o seguem. E todos começamos a orar
no Espírito, quando, de repente, Ah Kei caiu de
joelhos. Depois da reunião, ele nos disse que, ao ouvir
as línguas estranhas, ficara profundamente consciente
de seus erros passados. Sentindo forte convicção de
pecados, compreendera que não poderia ficar sentado
na presença de Deus, mas tinha que ajoelhar-se. E
começara a falar em línguas também. Era uma cena
incrível, ver um chefe de uma tríade de joelhos.
Naquela mesma noite, pegamos um táxi e fomos a
uma praia, onde Rick o batizou.
Nas semanas que haviam precedido sua
conversão, eu havia lido a Bíblia com ele muitas vezes.
E certa vez ele me disse que não iria crer em Jesus com
muita pressa, pois, se construísse uma casa
rapidamente, ela poderia desmoronar-se com rapidez
também. Mas, na noite em que foi batizado, começou
a colocar sua vida em ordem, na mesma hora. Voltou
para a esposa depois de muitos meses de afastamento.
Ela parecia querer crer que ele mudara de vida, mas
tinha tão pouca confiança nele, que temia ser mais
uma esperança infundada.
Ah Bing casara-se com Ah Kei havia sete anos.
Ele a conhecera numa festa e a seduzira, planejando
"vendê-la" à prostituição. Mas acabara gostando dela e
resolvera ficar com ela.
Até certo ponto, Ah Bing tinha direito de
duvidar, pois para ele edificar um lar cristão, teria que
pagar um alto preço. Não apenas teria que abandonar
uma imensa fonte de renda ilegal e seu controle sobre
diversos homens, como também teria de enfrentar um
processo de desintoxicação de ópio e heroína.
Ele não se libertou da dependência da droga, e
eu estava sem saber o que fazer. Aguns dos viciados
que haviam-se tornado crentes, haviam sido libertos
instantaneamente, enquanto outros iam para o centro
de realibitação do Pastor Chan, onde recebiam muita
assistência após a desintoxicação. Ah Kei solicitou
admissão no centro, mas não havia vagas. O que eu
poderia dizer-lhe? "Ore, Ah Kei, e Deus o libertará
miraculosamente!" Eu vira o Senhor fazer isso, e não
compreendia por que não acontecia sempre, em todos
os casos.
Não poderia levar Ah Kei para minha casa, pois
já estava cheia de rapazes que tinham sido libertos da
droga, ou haviam saído da cadeia dados como libertos
dela. E era claro que não desejava colocar ali um que
tomava drogas declaradamente. Para reanimá-lo, dis-
se-lhe sem muita convicção:
— Deus vai dar um jeito.
Pouco antes do Natal, fui despertada às quatro
e meia da madrugada por um chamado telefônico. Era
Ah Kei que desejava despedir-se.
— Poon Siu Jeh, muito obrigado por suas
conversas a respeito de Jesus, por seu cuidado e
consideração, mas não posso ser salvo.
— Pode, sim, Ah Kei. Para Deus tudo é
possível, disse eu.
Mas minhas palavras até a mim mesmo
pareciam sem convicção.
— Não adianta mesmo. Não posso mais ser
crente.
— O que quer dizer com isso? Não pode ser
crente?
— Não dá para mim. Parei de controlar as
quadrilhas, o jogo e o tráfico de drogas. Agora não
tenho com que viver. Muito obrigado, Sr.ta Poon, por
tudo que você fez. Mas não deu certo.
Tentei ainda argumentar com ele desesperada-
mente. Arranjei todos os argumentos possíveis. Não
poderíamos perdê-lo. Talvez, se eu fizesse com que
continuasse falando, aquele impulso passasse. Mas a
voz dele foi ficando cada vez mais impessoal, e não
conseguia mais falar ao coração dele. Afinal disse que
ia sair à Procura de Ah Chuen para matá-lo.
— Ah Kei, você não pode matar ninguém. Você
é crente.
Mas ele já não escutava mais os meus apelos
patéticos. Estava fortemente drogado e depois de
dizer-me que seria obrigado a fazer alguns assaltos
para obter dinheiro, desligou.
Eu não queria acreditar no que ouvira. Não
queria aceitar o fato de que uma pessoa que crera em
Jesus pudesse pensar em matar alguém.
Imediatamente liguei para Jean e Rick. Eles me
ouviram atentamente.
— Vocês precisam levantar e orar, disse. Acho
que Ah Kei saiu para matar um homem e também está
planejando praticar assaltos.
Então o casal se pôs a orar. E eu também orei
durante todo o período de festejos do Natal. E
chorando cantei os tradicionais hinos natalinos.
Estava um pouco zangada com Deus.
— Senhor, eu realmente cria que tu eras a
solução para tudo. Como pode ser que,
conhecendo-te, ele não te quis? Ah Kei e outros
creram em ti, e veja como estão agora. Há muitos
viciados e aleijados espirituais pelas ruas. E as pessoas
olham para eles e zombam de ti. "Deus fez um
milagre, mas não durou muito!"
Fiquei a procurar algum crente que pudesse
dizer-me que, quando Cristo começa uma boa obra
em alguém, leva-a até o fim. Mas não parecia que
Deus estava fazendo sua parte nesse caso.
Alguns dias depois, Ah Kei apareceu em nossa
porta.
— Nem sei por que vim aqui, disse. Estava só
passando. Até logo.
— Ei, espere um pouco! disse eu. E os assaltos?
— Bom, respondeu, minha mulher preparou as
fronhas, fez os capuzes para nós, isto é, fez os cortes
nelas para enxergarmos por eles. Da primeira vez que
planejamos ir, ficamos sabendo que um do grupo nos
havia delatado. Então não fomos. Na segunda vez,
estávamos sentados no carro com tudo pronto, mas eu
não estava com vontade de fazer um assalto naquele
dia. E não fomos.
Na noite em que me telefonara, não conseguira
achar Ah Chuen.
— Pois bem, falei, vamos à casa do casal
Willans. Você precisa ter uma conversa com eles. Está
na hora de alguém agir com firmeza.
Como de costume, Jean mostrou-se bastante re-
ceptiva; mas pude sentir que estava começando a ficar
transtornada em ver um verdadeiro crente não conse-
guir libertar-se das drogas.
— Você tem problemas? indagou.
— Não, não, respondeu ele, e depois
acrescentou:
— Só um. Ainda estou viciado em heroína.
— Se estiver sendo sincero em seu propósito de
seguir a Jesus, continuou ela firmemente, ele fará o
que você quiser.
— Eu estou, disse acenando afirmativamente.
— Pois bem, quer ficar aqui e passar pela
desintoxicação?
Fiquei grandemente admirada. Era exatamente
isso que eu desejava, mas não tivera coragem de
sugerir. Ela também não pensara em fazer esse convi-
te, mas sua preocupação pelo futuro de Ah Kei, aliada
inspiração do Espírito Santo, levou-a a isso. Em
seguida, abriu o blusão, tirou alguns embrulhinhos de
heroína e atirou-os no vaso sanitário, apertando a
descarga.
Depois disso, fomos também à sua casa, no
conjunto habitacional. Lá, estendeu o braço debaixo
da cama e tirou ali uma caixa contendo um
suprimento de heroína suficiente para várias semanas,
jogou tudo no vaso, sob nossas vistas. Por fim,
voltamos ao apartamento de Jean e Rick.
Jean ligou para um médico crente e pediu-lhe
explicações sobre como seria o processo de libertação
de drogas, para um viciado que durante dez anos
vinha tomando heroína. Ele respondeu que, sem
medicação adequada, ele iria sofrer agonias terríveis,
febre, tremores, vômitos, diarréia e fortes dores no
estômago. Ele poderia até tornar-se violento, ao ponto
de atacar as pessoas que o assistiam. Ele não a
aconselharia a cuidar dele, mas se ela o quisesse, ele
poderia ministrar-lhe metadona, uma droga que
substituía a heroína.
— Vamos ficar com Jesus mesmo, respondeu
ela, recusando o oferecimento dele.
Passei três noites sem dormir, sentada ao lado
de Ah Kei. Esperávamos todas as reações previstas,
mas ele dormiu como uma criancinha. Ao fim dos três
dias, estava completamente bom, e com ótima
aparência. Nos momentos em que acordava, se
sentisse uma pontada de dor, logo o instruíamos para
que orasse em línguas, e a dor cessava
milagrosamente. Já sabíamos que a maneira de uma
pessoa passar pelo processo de desintoxicação sem
dor era orar no Espírito.
Quatro dias depois, a esposa dele o visitou, e
tentou convencê-lo a voltar para casa, já que estava
curado. Mas nós nos opusemos. Ele ainda precisava
de cuidados, e era melhor ficar mais algum tempo
num ambiente onde não houvesse drogas. Felizmente,
ele começou de repente a sentir os efeitos da
desintoxicação, com fortes sensações de frio seguidas
de sensações de calor. Pusemo-nos a orar todos no
Espírito, procurando o alívio para ele, e enquanto
adorávamos a Deus, a dor passou. Mais uma vez Deus
o libertara. No quinto dia, ele estava inteiramente
liberto da dependência da heroína, mas ainda tinha
forte desejo de fumar. Rick dizia firmemente que, se
ele não se libertasse do vício do fumo também, então
não estava completamente liberto. No sétimo dia, Ah
Kei, que não estava muito satisfeito com essa situação,
conseguiu que a empregada do casal, que era budista,
lhe arranjasse alguns cigarros. Quase no mesmo
instante, começou a sentir as dores. Redobramos
nossas orações outra vez, e só depois que ele
aquiesceu com a exigência de Rick, foi que as dores
cessaram.
O milagre da cura de Ah Kei se deu também
com vários de seus amigos. Certo dia, Jean Levou-o ao
barbeiro para cortar o cabelo, e ele encontrou-se com
um velho amigo, Wahchai. Conversando com ele,
convenceu-o a acompanhá-lo ao apartamento de Jean,
e ali tivemos de improvisar uma reunião. Recebi ali
uma mensagem em línguas, mas a interpretação não
veio. Esperamos alguns instantes, mas ninguém disse
nada. Por fim, Wahchai confessou que recebera a
interpretação da mensagem, mas ficara receoso de
falar, pois ainda era viciado, embora tivesse se
convertido pouco antes, e recebido o dom do Espírito
Santo. Ao transmitir-nos a interpretação da
mensagem, começou a chorar incontrolavelmente.
Depois disso, sua cura foi relativamente simples, uma
questão apenas de ficarmos ao lado dele, e ele foi
liberto da heroína sem nenhum sofrimento. Como
acontecera com Ah Kei, todas as vezes que sentia a
primeira pontada da dor, punha-se a orar no Espírito,
e logo sentia-se melhor.
Na quinta-feira seguinte, na reunião regular,
um outro rapaz, que também aceitara a Jesus, pediu o
poder de Deus para se libertar do vício. Como o
apartamento do casal Willans já não comportava mais
ninguém, alugamos então um quarto num aparta-
mento que era utilizado como bordel, e ficamos a
noite inteira com ele ali, orando. Durante quatro dias,
vários rapazes de nosso grupo se revezaram, dando
assistência a ele, até que foi totalmente liberto. Depois
que já estava bom, passou uma semana na casa de
Jean e Rick, a fim de se completar a cura.
Duas semanas depois, Ah Kei resolveu ir à
China e passar uma semana lá. Um bom grupo
acompanhou-o à estação ferroviária. Quando o trem
chegou à fronteira, os guardas de segurança do país
interrogaram-no querendo saber quem eram as
pessoas que o haviam levado à estação de Kowloon.
Respondeu que tinha sido um senhor americano
(Rick), um moça inglesa (eu) e uns amigos chineses.
— E quem eram esses ocidentais? indagaram
eles.
— Ah, foram eles quem me falaram sobre Jesus
Cristo, respondeu alegremente.
— Pois bem, replicaram os guardas. Então diga
uma coisa: quem é melhor, o homem chinês ou os
ocidentais?
— Bom, sendo chinês, acho que os chineses são
melhores, respondeu Ah Kei. Mas aqueles ocidentais
são crentes, e portanto também são muito bons.
Foi então que aqueles guardas revelaram que
sabiam que Ah Kei muitas vezes tentara passar na
fronteira com drogas.
— Por que dessa vez você não está trazendo
drogas? indagaram. Quem são aqueles ocidentais?
Como você se envolveu com eles?
Era um interrogatório incessante, e Ah Kei res-
pondeu a tudo com a verdade. Explicou que havia
deixado a quadrilha, abandonando as atividades cri-
minosas. E que em março iria começar a trabalhar
num escritório. Os agentes da segurança disseram que
não era possível que ele estivesse liberto da
dependência das drogas, mas ele insistiu em afirmar
que o estava, que cria em Jesus Cristo, e era uma nova
pessoa. Explicou também que não tomara nenhum
medicamento. A cura fora totalmente efetuada por
Jesus. Ouvindo isto, os guardas ficaram muito irrita-
dos e responderam que era impossível. Mas essa
reação deles foi a deixa para Ah Kei se lançar no relato
de seu testemunho, uma narração completa do que
Deus fizera por ele. Falou quase uma hora. Os
policiais o escutaram atentamente, e depois permiti-
ram que entrasse na China levando sua Bíblia.
Chegando ao seu povoado de origem, soube de
uma jovem crente que não conhecia bem as Escrituras,
porque nunca tivera uma Bíblia. Ah Kei deu-lhe a sua
e a notícia se espalhou.
Logo que Ah Kei se tornara crente, transmitira a
boa-nova a todos os seus familiares, que a aceitaram
um por um. O pai de Ah Bing ficou tão satisfeito de
ver a transformação que se operara em seu genro, que
também se tornou cristão e foi batizado com o Espírito
Santo. E para comemorar deu-nos um banquete
memorável, em que se serviram pratos chineses
saborosos. Ao fim da festa, ele se ergueu e disse:
— Já fui moço, e agora sou velho, mas nunca
antes vi um homem mau tornar-se um homem bom.
11
As Casas de Estêvão
Eis o testemunho de Daniel, escrito em minha
casa, na Rua Lung Kong.
"Dou graças a nosso Senhor Jesus por ter-me
salvado de minha antiga vida, dando-me uma nova e
maravilhosa existência nele. Meu nome chinês é Ah
Lam, mas meu nome ocidental é Daniel.
"A razão por que estou dando graças ao Senhor
Jesus é que antes eu era um homem depravado. Há
mais ou menos dez anos, eu estava com quatorze
anos, larguei os estudos e entrei para uma quadrilha
tríade. Desejava ser temido, respeitado, reconhecido
por todos, e achei que, sendo membro de uma
quadrilha, teria tudo isso. Então abandonei a vida
normal e passei a viver no submundo da
marginalidade. Um ano depois, fui preso e indiciado
por roubo à mão armada. Fui sentenciado a cumprir
pena num centro de treinamento para jovens
delinqüentes.
"Naquela ocasião, estava muito sentido pelo
que fizera, e me senti muito triste e infeliz. Resolvi
modificar-me, começar vida nova. Mas logo que fui
solto, tornei-me pior que antes. Aprofundei-me mais e
mais no crime. Mas sentia um grande vazio interior.
Então recorri à heroína.
"Tornei-me um viciado. Tentei libertar-me das
drogas algumas vezes, mas nunca o consegui. Um dia,
vim a conhecer Jesus, arrependi-me e aceitei-o como
meu Salvador. Senti-me completamente diferente. Era
como se tivesse sido liberto, como se tivessem tirado
um enorme peso de meus ombros. Foi uma
experiência maravilhosa! Posso dizer que nunca voltei
atrás na decisão tomada. Ele tem-me abençoado
muito; já tenho aprendido muitas cousas e a cada dia
aprendo mais. £ uma vida realmente maravilhosa.
Dou graças a Jesus por haver-me proporcionado tudo
isso.
"Oro para que você também goze dessa mesma
experiência, e só então poderá entender plenamente
meu testemunho.
"Que Deus o abençoe, Ah Lam."
Isso foi escrito por um dos muitos marginais
que procuraram a mim ou aos Willans, após terem
ouvido contar o que ocorrera a Ah Kei. Logo se
espalhou entre os viciados a notícia de que, se
quisessem crer em Jesus, receberiam um certo poder,
que os capacitaria a libertar-se das drogas sem
sofrimentos.
Tanto quanto possível eu evitava recebê-los em
minha casa na Rua Lung Kong, pois era muito
próxima da Cidade Murada, e em questão de segun-
dos um viciado, em desespero, poderia obter a
quantidade que quisesse de heroína ou ópio. No
apartamento de Jean e Rick, eles não tinham opção de
escape. A porta tinha tranca dupla, e as janelas eram
protegidas por grades. E sempre havia pelo menos
uma pessoa a vigiá-los nas vinte e quatro horas do dia.
Um jovem que fora trazido à minha casa por
um padre disse:
— Sei que os viciados que vão à casa de Sr. ta
Pullinger são libertos. Mas tenho um pouco de medo
desse negócio de Jesus.
— Não se preocupe com isso, respondeu-lhe o
padre. Jackie não tentará impingi-lo a você.
Estava redondamente enganado. Se não
"impingíssemos" Jesus aos viciados, não teríamos
nada para oferecer-lhes. Ele teria que sofrer as agonias
do processo de desintoxicação, se não quisesse orar.
Entretanto, nunca tivemos de enfrentar um caso
em que o viciado não quisesse crer em Jesus. Aliás,
eles só nos procuravam quando já estavam dispostos a
fazê-lo, pois sabiam o modo como trabalhávamos. E o
número deles foi crescendo ao ponto de a casa de Jean
e Rick ficar superlotada.
Estava claro que precisávamos de um lugar só
para que os viciados se libertassem da dependência da
droga, e onde pudessem ficar algum tempo, a fim de
crescerem espiritualmente. A maioria deles exigia
uma atenção constante.
E foi o problema de Ah Kit que afinal nos
obrigou a resolver de uma vez por todas a questão da
casa. Poucos dias depois de ter sido liberto das
drogas, ele concluiu que queria governar a própria
vida novamente e saiu da casa dos Willans. Todos
oramos para que ele chegasse a um ponto onde não
pudesse continuar com aquela vida de crimes e
drogas, e voltasse a Jesus. E ele foi preso. Na prisão,
ele teve uma genuína experiência de transformação de
vida e se arrependeu. Começou a orar e a falar de
Cristo aos companheiros de cela. Foi indiciado por
assalto à mão armada.
No julgamento, o juiz fez um comentário no
sentido de que Ah Kit tinha uma ficha muito ruim e
merecia uma longa sentença. Entretanto, ouviu o
relato de Jean sobre a mudança que nele se operara, e,
levando em conta o fato de que ela cuidaria dele,
liberou-o, colocando-o aos nossos cuidados. Fora um
ato bastante raro o dele: soltar um homem que tinha
tais acusações.
Levamos Ah Kit para casa. Ao sairmos dali,
escutamos os guardas comentando se não seria me-
lhor uma pessoa ter um Deus do que um advogado...
Ah Kit começou a crescer espiritualmente bem
devagar. Estava gostando de ficar na casa de Jean e
Rick, mas exigia atenção constante. Depois de toda
uma vida de descaso, parecia muito carente de afeto.
Se Jean se afastava para falar com alguém, sentia-se
rejeitado. Isso provocou enorme tensão na família, ao
ponto de um dia Jean encontrar sua filha Suzy, de
dezessete anos, fazendo as malas.
— Ou os viciados ou eu, disse ela à mãe, e
falava sério.
Nenhuma família poderia resistir por muito
tempo a esse tipo de pressão.
Estava na hora de procurarmos um lugar que
tivesse a atmosfera de um lar, com muito amor, e uma
vigilância de vinte e quatro horas por parte dos
obreiros.
Eu me encontrava na Inglaterra, quando o casal
Willans me telegrafou, dando a notícia. Uma pessoa
que lera o livro de Jean doara uma soma em dinheiro
para alugarmos um apartamento que seria utilizado
exclusivamente para a assistência a viciados que
desejassem começar uma nova vida em Cristo.
O nome escolhido pelo grupo que orava em
casa dos Willans foi Associação Estêvão. Tanto eu
como os Willans estávamos cada vez mais envolvidos
em auxiliar marginais, e por isso precisávamos de
atuar através de uma entidade oficializada, quando
lidávamos com as leis do inquilinato, julgamento nos
tribunais, e outras questões desse tipo. Então nos
tornamos conhecidos por todo o submundo dos
viciados como "Estêvão". Demos ao novo apartamento
alugado o nome de "Terceira Casa de Estêvão", sendo
que a minha fora a primeira e a de Mei Foo, a
segunda.
Nosso primeiro obreiro de tempo integral foi
Diane Edwards. Era uma ex-freira que já morara cinco
anos em Hong Kong. Fora batizada no Espírito numa
das reuniões na casa dos Willans.
Começamos com apenas um residente, mas, em
poucas semanas, o número aumentou para seis. Cada
vez que chegava um rapaz, o milagre se repetia. Ele
cria em Cristo e era liberto da dependência das drogas
sem dores, quando orava no Espírito. Depois, Ah Kei
e seus familiares se mudaram para o apartamento
para auxiliarem Diane na direção da casa.
Na época de Natal já havia dezessete pessoas
naquele pequeno apartamento. Começamos a orar
pedindo a Deus mais um lugar, uma quarta casa, por
volta do Ano-Novo, a fim de acomodarmos aqueles
que nos procuravam. Era-nos penoso ter que
recusar-lhes admissão ali, sabendo que seria tão
simples libertarem-se das drogas pelo poder de Jesus.
A reunião dos sábados na casa dos Willans
cresceu tanto, que tiveram de mudar-se para uma casa
maior. Por vezes, havia ali até cento e cinqüenta
pessoas entre pastores, professores universitários,
padres e freiras, juntamente com nossos quadrilheiros
e ex-vi-ciados. No culto da véspera do Ano-Novo,
oramos pedindo a Deus uma nova casa no novo ano,
agrade-cendo-lhe pela resposta antecipadamente.
Após o encerramento do culto, um amigo inglês
perguntou-me por que ainda não havíamos alugado a
casa.
— Porque precisamos de uma promessa de
dinheiro para o aluguel, ou então de que alguém nos
doe o apartamento, ou então de uma garantia de
Deus, de que podemos tratar do aluguel mesmo sem
termos o dinheiro, respondi.
E ele me disse:
— Faz duas semanas, depositei o dinheiro
numa conta especial para vocês.
Então mandamos dois de nossos rapazes
procurarem um lugar adequado. Voltaram quase no
mesmo instante, dizendo que havia um apartamento
desocupado ali perto. Eram onze e meia da noite,
quando acertamos o aluguel do apartamento com o
vigia. Coroamos o negócio fazendo uma reunião de
oração na nova casa, comemorando a entrada do
Ano-Novo. Foi o mais maravilhoso culto de vigília de
que já participei em minha vida.
Pelas experiências obtidas com Ah Kei e outros
viciados, aprendi que não era necessário esperar até
que Deus "acidentalmente" os libertasse. Compreendi
que poderiam ser libertos por intermédio do poder
que Cristo lhes concede, no momento em que oravam
na linguagem do Espírito. Nunca obrigávamos os
viciados a orarem, quando estavam passando pelo
processo de desintoxicação. Aliás, é impossível
obrigar qualquer um a orar. Simplesmente
reduzíamos a zero todas as outras alternativas
possíveis; ou melhor, deixávamos apenas outra opção,
sofrer.
Certa vez, um dos chefões do sindicato do
crime fez uma oração recebendo a Cristo e foi cheio do
Espírito, mas quando as dores começaram, recusou-se
terminantemente a orar.
No dia seguinte, disse-nos que iria embora. Não
o permiti, pois cria que ele fora sincero quando dissera
que desejava seguir a Cristo.
— Não podem me prender aqui, objetou ele.
Não têm esse direito.
— Ah, tenho sim, repliquei. Você pediu que o
ajudássemos a começar vida nova, e se o deixasse sair
agora, estaria sendo desleal para com você.
— Mas vou embora, disse irredutível, e encami-
nhou-se para a porta, onde eu me encontrava.
— Se você orar, vai se sentir bem melhor.
— Já decidi que não quero mais seguir a Jesus,
ou embora.
— Pois bem, então você tem quatro opções.
Pode e dar um soco e pegar a chave, ou saltar do
telhado, ou ficar aqui e passar por todo aquele
sofrimento, ou então ficar aqui e orar. Mas terá que
passar por cima de mim para sair.
Fiquei olhando-o, enquanto sopesava as
alternativas. Um homem de grande influência como
ele não usava de violência contra mulheres. Saltar do
telhado significaria a morte. Então ele ficou e foi para
o quarto. Afinal, seu desespero foi tão grande, que
resolveu orar. Logo que começou, as dores cessaram e
ele dormiu tranqüilamente. E da outra vez em que
principiou a sentir dor, orou novamente. Quando o
processo já estava quase findando, ele confessou que
orara em línguas várias vezes, sozinho.
Eram bem poucos os viciados, com exceção dos
da Cidade Murada, que tinham algum conhecimento
do cristianismo, antes de passarem pela experiência
de libertação da droga. Mas isso, ao invés de ser uma
desvantagem, era um benefício para eles. Chegavam a
uma de nossas casas dizendo:
— Ouvi falar que Ah Kei (ou outro amigo qual-
quer) mudou completamente de vida, e disse que foi
Jesus que fez isso. E se Jesus pode mudar a vida dele,
pode mudar a minha também
A fé dessas pessoas não se baseava no
entendimento de conceitos teológicos, mas no fato de
que Jesus havia operado em outros. Cada uma que
orava, recebia a resposta de sua petição, e assim sua fé
se fortalecia.
Certas pessoas explicavam esse extraordinário
acontecimento espiritual como um caso em que a
mente sobrepuja a matéria, mais tais pessoas não
estão a par de todos os fatos. Um viciado em drogas,
que passa por um processo de desintoxicação, tem a
mente já parcialmente destruída. A maioria de nossos
rapazes começou a entender quem era Jesus somente
depois que já o haviam experimentado na própria
vida. Só compreendiam verdades como salvação, per-
dão, redenção muito tempo depois de já possuírem os
benefícios delas.
Uma vez já tendo quatro casas, o clubinho da
Cidade Murada e as reuniões e cultos, precisávamos
de mais obreiros de tempo integral. Uma enfermeira
inglesa, Doreen Cadney, resolveu ajudar-nos, bem
como Gail Castle, que regressara dos Estados Unidos.
Depois foi Sarah Searcy que abandonou um emprego,
para responsabilizar-se pela direção das casas. Além
disso, os rapazes que haviam sido libertos das drogas
ajudavam muito aos "novatos". Arrumavam a casa,
cozinhavam e assistiam aos recém-chegados, orando
por eles e incentivando-os à oração. E esses os escuta-
vam com muito respeito.
Quase diariamente chegavam novos viciados
desejosos de se libertarem das drogas. Vendo a
transformação por que os moços passavam, muitas
pessoas "boazinhas" ficavam impressionadas e criam
em Cristo também. Muita gente batia à minha porta, a
qualquer hora do dia ou da noite, cheia de problemas,
e saía dali crente, batizada no Espírito Santo.
Aos domingos realizávamos cultos pela manhã
na casa da Rua Lung Kong, aos quais compareciam
muitos estudantes, rapazes da Cidade Murada,
ex-viciados e outros visitantes, que vinham em busca
de cura ou aconselhamento espiritual.
Durante muito tempo, eu tentara fazer tudo
sozinha, mas depois comecei a passar tarefas para os
outros. Entendi então o significado do Corpo de
Cristo, vendo cada pessoa executar uma função dife-
rente. Percebi também que eu não era indispensável.
Outra coisa que aprendemos foi que o trabalho
de se transformar um viciado numa pessoa integrada
à sociedade era tarefa a longo prazo. No ministério da
Rua Lung Kong, eu tentara arranjar trabalho ou
estudo para os rapazes o mais cedo possível. Mas a
experiência me ensinou que, embora os rapazes esti-
vessem fisicamente habilitados para tal, ainda tinham
muito que aprender, antes de poderem caminhar com
os próprios pés.
Muitos tinham vivido pelas ruas durante anos e
anos. Seu hábito de vida era mentir e trapacear, ao
enfrentarem situações difíceis. Tínhamos que
mantê-los em contato com uma família cristã,
recebendo muito amor e uma disciplina rígida, até
que se habituassem a agir à maneira do crente. A
princípio, pensávamos que três meses seriam
suficientes. Depois percebemos que eram necessários
pelo menos seis meses, para que sua atitude mental se
modificasse. Mais tarde passamos a recomendar que o
tempo mínimo para isso fosse de um ano, embora
ainda preferíssemos que fosse de dois.
Dos rapazes que desejavam realmente seguir a
Jesus, nenhum foi mandado embora, jamais. E aos que
apareciam querendo livrar-se da dependência da
droga, dizíamos que, como ele fizera uma decisão
voluntária de seguir a Jesus e entrar para uma de
nossas casas, não permitiríamos que saísse antes de
dez dias. Depois desse período, já completamente
libertos, tinham a opção de ir embora ou permanecer
na casa e conhecer melhor a Jesus. Nunca recomenda-
vamos um período inicial inferior a dez dias. Seguir a
Cristo era uma opção para toda a vida, e se o novo
crente não tivesse feito aquela entrega pessoal básica,
aquele comprometimento de modificar-se, Cristo não
poderia transformá-lo.
E assim estabeleceu-se a rotina, embora não
muito rígida. Os rapazes encontravam nela um forte
senso de segurança, e se aquietavam ali. Assim que
percebiam que não iríamos mesmo deixar que
voltassem para casa, eles se tranqüilizavam e
passavam a ter uma vida ordenada. Diariamente
oravam, individualmente ou em grupo, iam ao
mercado, faziam as tarefas caseiras. Tinham estudo
bíblico, aulas de chinês e inglês. Quase todos os dias
praticavam esportes, principalmente futebol, e aí
tinham a oportunidade de falar de Cristo a outros.
Sempre jogavam perto de um Centro de Metadona,
uma espécie de clínica onde os viciados recebiam
certas drogas em substituição à heroína, que eram
fornecidas pelo governo. O time formado pelos nossos
rapazes era tão forte e saudável, que muitos dos
viciados que estavam por ali ficavam sabendo que
Cristo poderia libertá-los do vício.
Recebemos a doação de uma enceradeira
industrial, e isso ensejou a formação da
"Conservadora Estêvão". Grupos de rapazes iam fazer
a limpeza e enceramento de apartamentos. Isso
constituiu-se numa oportunidade a mais para a
pregação do Evangelho.
Nunca tivemos um melhor supervisor para o
nosso serviço de assoalhos do que Tony, que dirigia a
companhia como se fosse uma operação militar. Esta-
va acostumado a mandar...
Eu havia conhecido Tony havia uns dois anos.
Estávamos lanchando numa barraca de lanches em
nossa rua, e ele me viu. Ficou intrigado por ver uma
mulher ocidental lanchando numa barraca de lanches,
e com tantos criminosos por ali. Um amigo mútuo nos
apresentou, e ele chegou até nossa casa. Mais tarde foi
a uma outra igreja e disse que gostou, mas era tudo
muito vago, como um conto de fadas, que não se con-
seguia apreender bem. Sua vida era muito diferente
de um conto de fadas. Nascera em Havana, Cuba.
Quando estava com oito anos, seu pai o mandara para
a China, para ajudar sua primeira esposa, que não
tinha filhos. E ele viveu com ela em Pequim durante
algum tempo, na maior pobreza, até que a cidade caiu
em poder dos comunistas. Sua verdadeira mãe escre-
veu-lhe de Havana suplicando-lhe que voltasse, mas
isso era impossível para o garoto sem dinheiro. Quan-
do estava com quatorze anos, fugiu e viajou pela
China em direção à fronteira de Hong Kong. Afinal
conseguiu cruzar a fronteira.
Aqui chegando, não tinha nenhum dinheiro.
Então pôs-se a trabalhar como engraxate ou a bater
carteiras para sobreviver. Inevitavelmente, acabou-se
deparando com as tríades, que o encaminharam para
o roubo com violência. Com dezesseis anos, começou
a tomar heroína e pouco depois injetava-a diretamente
na veia. Sentia que ninguém o amava, e devido às
tristes experiências da infância, criou em torno de si
uma couraça de amargura. Com isso, granjeou a
reputação de "solitário" entre os "irmãos" da
quadrilha. Até mesmo eles temiam aquele líder
impiedoso, que conseguira deter tanto poderio nas
mãos, fundando, com mais dois colegas, uma nova
ramificação da 14K. Eles se envolviam em chantagens,
brigas e mortes.
Uma noite, Ah Kei me telefonou aflito, pedindo
que procurasse Tony, que se encontrava em grande
dificuldade. Então abotoei bem o casaco e fui fazer
uma visita noturna à Vila Diamond, onde ficava a
sede de seus domínios.
Encontrei-o sentado em uma casa de chá, o
colarinho do paletó virado para cima a proteger-se do
frio. Mas ele estava tremendo. Junto dele, dois
companheiros de quadrilha. Mas quando fitei Tony, o
que me chocou foi a expressão de seu rosto.
Era a expressão de quem ia morrer.
Eu ainda não sabia como ia acontecer, mas
percebia, e isso era terrível, que ele já havia planejado
tudo.
Pôs-se a narrar-me a situação. Contou-me que,
ao sair da prisão, soubera que uma quadrilha rival
tinha tentado tomar o controle de seu território.
Tinham roubado seus pertences, e, sabendo de sua
paixão pela música, haviam quebrado seu violão ao
meio. Isso exigia represálias. Ele não tinha outra
opção senão preparar o ataque da vingança.
Entretanto, no fundo da lembrança havia uma
recordação muito doce de uma coisa boa. Para aplacar
isso, resolveu vender seu barraco e doar o dinheiro
obtido para a Associação Estêvão.
Pouco antes de eu chegar ali, porém, a outra
quadrilha havia arrastado suas roupas no chão, peça
por peça, e depois tocara fogo em sua casa.
Mostrou-me o lugar onde ela era, e vi as cordas do
violão ainda espalhadas pelo chão.
— Sr.ta Poon, disse ele, eu queria dar a escritura
desse lote para a igreja.
— Não queremos seu terreno, Tony, queremos
sua vida, respondi.
— Vocês podem construir uma igreja nele,
insistiu.
— Não estamos querendo construir um templo,
Tony, mas queremos ajudá-lo a reconstruir sua vida.
Descemos pela ruazinha que passava entre os
barracos, e notei como os habitantes dali olhavam
para ele. Tony tinha sido o "rei" do lugar. Todos
estavam esperando que ele tomasse represálias. Se ele
não revidasse ao ataque, nunca mais poderia andar
pelas ruas com a moral de um chefe. Por isso decidira
matar ou morrer. E nenhuma das duas coisas lhe
importava muito. Estava cansado.
— Deus está chamando você, Tony, disse eu por
fim. Venha comigo.
Não quis, mas eu insisti.
— Deus o chamou para salvá-lo. Ele quer você.
Venha conosco.
Chamei um táxi e entrei. Comecei então a
dizer-lhe:
— Deus quer sua vida hoje, Tony. Venha
conosco.
Quando eu estava no meio da frase, ele entrou
no carro e sentou-se ao meu lado. Era a última vez que
via seu povoado por um período de vários anos. Nem
se despediu dos "irmãos" da quadrilha.
Em meu apartamento da Rua Lung Kong, os
rapazes estavam prontos para recepcioná-lo. Pergun-
taram-lhe se desejava receber a Jesus. Ele estava com
certo temor de Deus, mas ficou pensando no que eu
dissera: "Deus o chamou; Deus o chamou", e fez que
sim. Então eles lhe ensinaram como poderia receber
uma nova vida. Mais tarde, ele escreveu seu testemu-
nho.
"Eles oraram por mim e eu aceitei a Jesus como
meu Senhor, recebendo depois o batismo do Espírito
Santo. Quando fui cheio do Espírito, senti o coração
arder e todo o meu corpo com um forte calor; e chorei.
Desde que era criança nunca mais havia chorado.
Então compreendi que realmente nascera de novo.
"Levaram-me para a Terceira Casa de Estêvão.
Eu já tinha tentado outras vezes livrar-me da
dependência das drogas. Mas a dor era muito forte, e
eu não a suportava, por isso sempre andava com um
pouco de heroína escondido em minhas roupas, para
o caso de ficar sem ela. Mas daquela vez foi diferente.
Meus irmãos em Cristo oraram por mim, e também
orei em língua estranha, e a dor desapareceu. Dois
meses depois, fui morar com o casal Willans. Eles são
agora como pais para mim.
"De lá para cá, tenho visto Deus operar de
muitos modos em minha vida. Fui com meus pais
adotivos à China, e em 1976 visitei também os Estados
Unidos e a Inglaterra, onde falei em igrejas, no rádio e
na televisão. Que coisa maravilhosa para mim, um
ex-lutador de quadrilha, ex-viciado em heroína,
ex-presidiário, receber uma concessão especial para
visitar os Estados Unidos.
"Depois fiz um curso de cabelereiro, onde
aprendi a cortar e pentear. Agora trabalho num dos
principais salões de Hong Kong. Isso tudo é
maravilhoso e mostra como o Senhor Jesus é pode-
roso. Mas a melhor coisa que ele fez por mim foi
mudar meu coração. E hoje já não desejo seguir os
caminhos do pecado, porque sigo a ele." O ideal seria
que cada um de nossos rapazes se tornasse filho
adotivo de uma família crente, onde pudesse ser
amado e cuidado. Foi maravilhoso ver Tony crescer
espiritualmente e ir sempre se transformando. Ele
perdera sua vida, mas assim fazendo a reencontrara.
Os outros rapazes que se achavam nas outras
casas também estavam-se desenvolvendo, embora al-
guns saíssem antes de sentirmos que estavam
preparados para tal, o que nos entristecia bastante. A
mais forte pressão que sofriam nesse sentido era a dos
pais que, vendo os filhos libertados da droga, logo
começavam a resmungar com relação a dinheiro e a
responsabilidades de família. Mas, para aqueles
rapazes, o peso de sustentar uma família era
demasiado, e alguns voltavam a tomar droga, e
depois pediam para retornar à nossa casa. Mas só os
recebíamos quando tínhamos certeza de que estavam
sendo sinceros.
Siu Ming não sofreu essas pressões por parte
dos pais, pois era órfão. Sua mãe tinha morrido
quando estava com seis anos e ele morava num
casebre com o pai e uma irmã menor. Como acontece
a muitas famílias de Hong Kong, todos dormiam
numa cama só, e não havia cozinha, nem banheiro,
nem eletricidade, nem água encanada.
Siu Ming e a irmã costumavam sentar-se numa
pedra que havia à porta do barraco, esperando o pai
voltar para casa. Se viam que ele trazia alguma coisa
consigo, sabiam que teriam o que comer. Se as mãos
dele estavam vazias, isso significava que ele perdera
no jogo e não teriam jantar naquela noite. Siu Ming
trabalhava vendendo jornais. Nunca aprendera a ler
ou escrever.
Aos quinze anos entrara para uma quadrilha
tríade. O pai ficou com muita raiva, e constantemente
o repreendia, até que ele saiu de casa. Um ano depois,
a irmã foi à sua procura e disse que o pai havia
morrido. Como não tinham mais ninguém na vida, ele
começou a tomar heroína. A irmã suplicou-lhe que
não o fizesse, mas pouco depois já estava viciado. E
então saiu de casa outra vez, para sempre.
Como a venda de jornais não fosse suficiente
para custear a compra de heroína, ele passou a roubar.
Foi preso e enviado para um centro de reabilitação.
Depois de permanecer ali cinco meses, saiu e imedia-
tamente voltou a tomar drogas. Voltou ao centro, e,
certa vez, quando saiu num feriado, foi preso de novo.
Dessa vez foi mandado para o presídio. Liberto depois
de algum tempo, ele sentia profunda amargura contra
tudo e contra todos, e voltou às drogas.
O agente encarregado de vigiá-lo na
condicional disse que ele era um caso perdido, mas
resolveu dar-lhe uma última oportunidade e
instruiu-o para que procurasse a Associação Estêvão.
Escreveu meu nome e endereço, em chinês, num
pedaço de papel, e deu-o a ele. Siu Ming foi
procurar-nos pensando que iria entrevistar-se com
uma mulher chinesa. Tampouco sabia que tínhamos
alguma relação com igreja.
Ao ver-me, disfarçou um pouco a surpresa de
encontrar-se frente a frente com uma inglesa. Mas,
quando lhe falei que Jesus o amava, pareceu indeciso
sem saber como receber isso. Afinal pensou: "Tenho
que escolher entre Jesus e a cadeia", e preferiu Jesus.
Alguns dos ex-quadrilheiros que moravam em nossa
casa oraram por ele, e começou a falar numa língua
que não conhecia. Depois o conduzimos à terceira
casa, onde deveria passar pêlo processo de desintoxi-
cação.
Alguns rapazes, inteligentemente, oravam logo,
e não sentiam nem uma pontada de dor. Outros, como
Siu Ming, esperavam até não suportarem mais. Ele
simplesmente não queria orar. Sofria as agonias das
dores provocadas pelo processo. E, mesmo que
quisesse orar, não o saberia.
Afinal, não agüentando mais, desesperado,
aceitou orar naquela língua estranha. Depois disso,
falou que estava-se sentindo maravilhosamente bem,
e daí a dez minutos dormia tranqüilo. Quando
acordou, tinha verdadeira convicção de que Cristo o
amava.
Siu Ming era uma pessoa muito calada, e
parecia ter personalidade muito fraca. Nos primeiros
meses em que esteve conosco, mal se notava sua
presença. Sempre que fazíamos nossas excursões à
praia, ou íamos ao campo de futebol, tínhamos que
recontar nosso pessoal, esperando que nenhum deles
houvesse escapulido para ir fumar no banheiro.
Sempre nos esquecíamos de contá-lo. Mas, com o
passar do tempo, começou a revelar-se um rapaz
bondoso, trabalhador, digno de confiança, e, o que é
mais importante, muito espiritual. Aprendeu a ler e
escrever através de nossos estudos bíblicos diários, e
muitas vezes o víamos orando sozinho. Acabou-se
tornando um de nossos melhores auxiliares para os
novatos.
Também havia homens mais idosos morando
conosco nas casas. Ah Lun e o Sr. Wong chegaram à
nossa casa da Rua Lung Kong no mesmo dia, mas não
juntos. Ambos tinham ouvido falar de nosso ministé-
rio e pediram que os acolhêssemos imediatamente. Ah
Lun estivera preso durante um ano e meio e só vivia
para comer e tomar heroína. O Sr. Wong dizia que
fora general do exército de Chiang Kai Shek. (Conheci
tantos soldados nacionalistas que afirmavam o mes-
mo, que acabei pensando que o exército era composto
unicamente de generais.) Dizia também que já estive-
ra em diversas igrejas de Hong Kong, mas que a nossa
era a primeira em que Jesus estava presente.
Dei um jeito de dispensar os dois. Ah Lun tinha
quase sessenta anos e o Sr. Wong uns cinqüenta e
tantos. Não me parecia acertado misturá-los com os
rapazes. Mas os dois continuaram a aparecer em
nossa casa todos os dias, sempre pedindo que os
aceitássemos. Não poderia deixá-los de fora,
negando-lhe a oportunidade de receber a Cristo.
E assim os dois passaram a morar conosco e se
adaptaram muito bem. Naturalmente houve certos
problemas, pois Ah Lun tinha mania de ajuntar coisas,
e guardava objetos debaixo de sua cama ou mesmo
em cima dela. Além disso, pegou vários livros de Jean,
embora não soubesse ler inglês.
Já o Sr. Wong se julgava superior a todos,
devido à sua posição. Era um alto oficial do exército, e
esperava que Taiwan reconquistasse a China
Continental. Como isso não aconteceu recorrera às
drogas. Embora sua reabilitação pudesse parecer mais
fácil, na verdade ele apresentava o mesmo problema
básico que os outros rapazes: orgulho. Empregava
uma linguagem evangélica bastante floreada, que
aprendera nas outras igrejas que visitava. Achava-se
muito certo e justo, mas irritava-se facilmente. Era
briguen-to e causava-nos muitos aborrecimentos.
Depois de ficar livre da dependência da droga,
o Sr. Wong achou que não precisava mais de Jesus e
parou de orar. Mas Sara lhe disse que devia orar pela
manhã e à noite em língua estranha, e ainda tinha que
orar pelo menos durante meia hora em seu devocional
particular. Sua atitude começou a mudar imediata-
mente e um dia ele me disse:
— Meu coração de pedra está-se derretendo, e
Deus está-me dando um coração de carne.
Ao que parecia, seu estilo pomposo não mudara
nada.
Muitos rapazes, quando oravam para serem
libertos da heroína, eram curados também de outras
enfermidades. Um deles sofria de tuberculose e asma.
Mas dois dias depois a asma desapareceu completa-
mente e a chapa do pulmão estava limpa. Ah Lun
também estava com o fígado inchado ao chegar, mas
foi curado, e o órgão voltou ao normal.
Enquanto um viciado está fazendo uso de
drogas, não fica ciente de outras doenças, mas, depois
da desintoxicação, sempre descobríamos algumas que
ainda perduravam. O problema mais comum eram os
entes. Tivemos de gastar uma pequena fortuna em
atamento dentários e em dentaduras. Felizmente, o
exército britânico nos ofereceu assistência nos casos
mais graves, e assim o Sr. Wong foi para o hospital
militar, a fim de extrair todos os dentes, que
haviam-se estragado pelo uso constante de heroína. O
exército ainda fez mais: doou-nos alguns fundos, para
mandarmos fazer as dentaduras dele.
Não era a primeira vez que o exército auxiliava
as Casas de Estêvão. Muitas vezes, já havíamos
utilizado seus acampamentos e ônibus para nossas
excursões. Isso foi de beneficio mútuo, pois alguns de
nossos conhecidos ali tornaram-se crentes, devido ao
contato conosco. Quantas vezes nossos rapazes
diziam a um soldado inglês:
— Você já aceitou Jesus?
E logo em seguida ofereciam orientação
espiritual.
— Se quiser, podemos orar por você.
Um de nossos mais entusiastas evangelistas era
Ah Fung. Ele era de uma família rica. Fizera alguns
anos de curso secundário, e considerava-se um
filósofo. O tio, que o criava, pertencia ao Jockey Clube,
uma associação bastante elitista. Mas, apesar de todas
essas vantagens, Ah Fung era um garoto carente. O
pai havia morrido e a mãe desaparecera. Era forte-
mente viciado em heroína e precisava de meios para
custear o vício. O tio lhe dava muito dinheiro, e isso
lhe proporcionava maiores oportunidades de cultivar
mais e mais o vício. Chegou um dia, porém, em que a
quantia dada pelo tio já não era suficiente. E viu-se
forçado a roubar ou fazer o que fosse necessário para
arranjar dinheiro.
Quando o tio teve conhecimento do vício do
sobrinho, obrigou-o a ficar preso em casa durante dois
meses, sob vigilância constante. O rapaz concordou,
mas insistiu em que não o importunassem à noite.
Certo de que não iriam perturbá-lo, ele ajeitava coisas
na cama, a fim de dar a impressão de que estava lá
dormindo, e todas as noites escapolia da casa sem ser
visto.
Afinal, depois de dois meses, a família percebeu
que ele ainda estava viciado, e o expulsaram de casa.
Aí então ele procurou assistência profissional. Mais
tarde, ele fez a triste declaração de que conhecia todos
os centros de tratamentos de viciados de Hong Kong.
Chegara até a ir a Taiwan e à Austrália, numa
tentativa de procurar trabalho, mas ainda estava
viciado.
Quando conheci Ah Fung, ele já estivera preso
seis vezes, e parecia um caso perdido. Procurou-me
em minha saleta na Cidade Murada.
— Sr.ta Pullinger, quais são as exigências para se
entrar na Associação Estêvão? perguntou. Onde se faz
a matrícula, e quanto tenho de pagar?
— Bom, Ah Fung, respondi. Não é bem assim.
Somos um grupo de cristãos interessados em que você
passe por uma mudança de vida. Se você quer apenas
ficar livre do vício, eu lhe recomendo que procure um
centro de tratamento. Lá você ficará alguns meses e
depois sairá e voltará a tomar drogas. Mas nós só o
aceitaremos, se estiver disposto a mudar de vida e
quiser ficar pelo menos um ano.
Ele fez que sim. Alguns dos rapazes que
estavam ali no clubinho lhe falaram entusiasticamente
sobre Jesus. O rapaz ia acenando afirmativamente,
meio alheado, e afinal concordou em fazer a oração de
entrega pessoal.
No dia seguinte, o encaminhamos para a
terceira casa. No segundo dia em que lá estava,
começou a sentir dores, o que indicava que estava
iniciando seu processo de desintoxicação. Recusou-se
a orar, e exigiu que o deixassem sair. As dores
pioraram.
Jean e Rick tinham acabado de sentar-se à mesa
para jantar, quando veio um telefonema de um dos
obreiros, dizendo que Ah Fung ainda estava teimando
em sair, lutando para fugir. Rick foi até lá e falou ao
rapaz com toda a firmeza, como se fosse um pai.
Disse-lhe que acontecesse o que acontecesse, ele não
teria permissão para sair, senão dali a oito dias.
A firmeza e autoridade dele fizeram com que o
paz se acalmasse, e aquiescesse em orar com Rick. ais
tarde contou-nos que, quando Rick impusera as mãos
sobre ele, sentira como que um clarão sobre si, e as
dores cessaram.
No dia seguinte, quando acordou, sentiu nova-
mente as dores e lembrou-se do que acontecera no dia
anterior. Espiou para um lado e outro, para ver se
alguém o observava, e em seguida impôs as mãos
sobre si mesmo. Mas nada aconteceu. Resolveu orar, e
aí então foi liberto.
Assim Ah Fung aprendeu que era Jesus, e não
Rick, que tinha as mãos de cura. E ele ficou em nossa
casa dois anos e nos ajudou bastante no trato com os
outros rapazes.
Cada um dos rapazes que acolhíamos tinha sua
própria história, uma história maravilhosa. E todos,
sem exceção, foram libertos do vício da heroína sem
dores nem traumas.
Todos conheciam a realidade de um Deus vivo
e o poder de seu Espírito. Aqueles que o seguiam
eram evidências vivas de uma incrível transformação
de vida. Ah Fung citou um provérbio chinês que diz:
"É mais fácil mudar as características de um país, do
que a disposição de um homem." Ele reconheceu que
Deus podia remover montanhas.
12
Acolhendo Anjos
Elas poderiam ter vinte anos, ou sessenta. Não
havia meio de se saber. A cabeça pendia sobre o peito,
estando elas agachadas ou apoiadas à parede, aguar-
dando os clientes.
A prostituta que comprara Maria, quando esta
era ainda um bebezinho, estava pensando em
aposentar-se. Postava-se junto ao cinema
pornográfico, instando com os homens que de lá
saíam para que desfrutassem dos prazeres juvenis da
moça lá em cima, ou então sentava-se e contava o
dinheiro.
Maria estava com treze anos, e quando sua mãe
adotiva quis que ela começasse a trabalhar nos bor-
déis, ela se rebelou. Não que ela tivesse repugnância
pelo trabalho, mas a idéia de dormir com homens
velhos não lhe agradava muito. Tendo sido criada
numa casa dessas, via aquilo apenas como um meio
de ganhar a vida. Era uma garota muito bonita, de
pele azeitonada e olhar expressivo. Contudo, ela
estava procurando amor e atenção. Por isso, fugiu.
Maria tornou-se bailarina de dancing em
Kowlo-on. As bailarinas constituíam uma casta
superior de prostitutas. Aliás, não se consideravam
meretrizes. Os homens pagavam para dançar com
elas, e se quisessem segui-las até a casa, teriam que
pagar um pouco mais. Cada bailarina dessas tinha o
seu "protetor", que recebia o dinheiro. Se ela quisesse
mudar de protetor poderia fazê-lo, desde que ela ou o
outro pagassem uma grande soma em dinheiro.
Eu não sabia onde ela se encontrava. Só sabia
que havia fugido. Quanto mais o tempo passava, mais
preocupada eu ficava. Num domingo à tarde, pus-me
a andar pelas ruas, pedindo a Deus que me levasse até
onde ela se achava.
"Siga diretamente em frente. Não vire para a
esquerda, nem para a direita."
Não ouvi uma voz, nem vi uma nuvem branca,
mas tive certeza de que Deus queria que fosse naquela
direção. Caminhei em frente, atravessei a rua princi-
pal e depois senti claramente a orientação: "Pare aí."
Encontrava-me diante de um prédio de apartamentos,
muitos deles com cartazes anunciando "Massagens",
"Hotel", etc.
Mas, naquele momento, refutei todas as
revelações até ali recebidas e disse:
— Senhor, isso tudo é uma bobagem. Vou parar
de brincar de detetive espiritual.
E voltei para casa.
Alguns dias depois, sonhei com Maria. Vi
claramente o lugar onde estava morando e o homem
com quem vivia. Acordei chorando, pois sentia que
não possuía meios de encontrá-la, para dizer-lhe que
me interessava por ela e queria ajudá-la. A única
maneira possível de saber seu paradeiro era recorrer à
teia de comunicação dos tríades. Normalmente, eles
conseguem localizar garotas desaparecidas em pouco
tempo.
Entretanto, alguns meses depois, a própria
Maria me telefonou. Disse que havia muito tempo
estava tentando entrar em contato comigo, e me deu
as instruções de como chegar à sua casa. Fui visitá-la.
Era no mesmo prédio, na frente do qual eu parara,
naquele domingo, alguns meses antes. E o
apartamento era exatamente igual ao do meu sonho,
com a exceção de que havia muitos espelhos pelas
paredes e no teto.
Passei a visitá-la todos os domingos, à tarde.
Contou-me que estava totalmente endividada no seu
dancing. Geralmente, as moças desses lugares ganham
lindos vestidos e recebem aulas de dança, mas tudo é
debitado em sua conta, e vão descontando de seus
ganhos. Ela não poderia sair dali, sem antes pagar
uma quantia vultosa. Um modo de escapar disso era
engravidar-se. E foi o que fez. Mas depois provocou o
aborto. Engravidou-se pela segunda vez, e foi morar
com a mãe de seu protetor, e depois arranjou serviço
numa fábrica. Mas os familiares desse homem, seus
amigos e ele próprio a desprezavam por ter sido
dançarina. E afinal, essa rejeição por parte deles
convenceu-a de que não valia a pena levar uma vida
direita, então o melhor era mesmo voltar para o
dancing.
A filhinha, porém, ficou com a vovó. Ela lhe
dera o nome de Jackyan, em minha homenagem.
Mais tarde, Maria arranjou um novo protetor,
mas sentia-se cada vez mais infeliz. Dançava muito
todas as noites, e tomava comprimidos estimulantes
para suportar o cansaço. Após o trabalho, ia para as
salas de jogo e o inevitável acontecia, ficava mais e
mais endividada, sendo forçada a tomar dinheiro
emprestado de um agiota. Não demorou muito e ficou
totalmente enredada e sem condição de saldar a
dívida. O agiota então exigiu que ela se tornasse
propriedade dele por dois anos, trabalhando na pros-
tituição, a fim de pagar o débito.
E então ela me ligou, dominada pelo pânico.
Isso seria a suprema humilhação para ela. Como
bailarina de dancing, ela era independente até certo
ponto. Mas estava por se tornar virtualmente
prisioneira de um homem impiedoso. Queria que eu
lhe arranjasse HK$ 1.500 dólares, a fim de evitar cair
nesse destino. Contudo, eu não tinha nem HK$ 15
dólares. Minha grande preocupação era saber se ela
estava realmente sendo sincera. Algum tempo antes
ela tinha feito uma oração de entrega pessoal a Cristo,
mas não fizera nenhum esforço para segui-lo. Eu não
tinha intenção de dar dinheiro a uma moça que não
tivesse um desejo sincero de mudar de vida. Mas
precisava vê-la e falar com ela. Resolvei levar Ah Ping
comigo. Precisava do conhecimento que ele tinha
dessas coisas, para descobrir se ela estava querendo
apenas explorar-me. Fazendo um levantamento de
meus bens materiais, cheguei à conclusão de que a
única coisa de valor que eu possuía era o meu
"querido" oboé. Como todo oboísta, considerava o
instrumento quase como um amigo muito estimado.
Numa certa reunião, recebemos uma mensagem em
língua estranha, e Ah Ping recebeu a interpretação.
Disse ele: "O Senhor Jesus Cristo entregou seu bem
mais precioso por você, isto é, a sua vida." E se Jesus
tinha dado a própria vida, o que era um oboé em
comparação com isso?
— Está bem, Maria, respondi à moça mais tarde.
Vou pagar a dívida, mas com duas condições. A
primeira é que eu própria vou entregar o dinheiro; a
segunda é que você mude de vida. Vou ajudá-la a
arranjar um emprego e outro lugar para morar. Se
ficar aqui, logo estará novamente com os mesmos
problemas.
— Eles não vão querer manter conversações
com você, respondeu ela. Michael é um agiota muito
exigente.
Mas como ela não tinha outra escolha, então
marcou um encontro numa casa de chá para daí a dois
dias, à meia-noite e meia.
Vendi meu oboé e coloquei o dinheiro, quinze
notas de HKSIOO dólares, num envelope grande.
Cheguei ao restaurante e me sentei a uma das mesas
centrais. Eu e Maria ficamos a tomar café, aguardando
a chegada de Michael.
O ruído de pneus chiando no asfalto anunciou a
chegada dos encarregados da cobrança. Michael man-
dara quatro homens, que entraram pelo salão no
velho estilo de Chicago. Mal deram uma olhada para
nós. Pegaram logo o envelope, verificaram o conteúdo
dele, e saíram novamente, sem dizer nada. Quando já
estavam quase na porta, chamei-os.
— Ei, esperem aí!
Um deles olhou para trás.
— O que deseja? indagou com ar de desdém.
— Quero falar com Michael, respondi.
— O que quer com ele?
— Tenho uma mensagem muito importante
para transmitir a ele.
— Pois pode dizer-nos o que é.
— Não, repliquei, tenho que entregá-la pessoal-
mente.
— E o que é?
— É muito pessoal. Como posso encontrar com
ele?
Para surpresa minha, deram-me o telefone dele,
e quando liguei, ele concordou em me receber. Fui
conduzida a um prédio alto. A boate dele ficava no
vigésimo primeiro andar. O porteiro abriu-me a porta
com uma chave dourada. Já estavam-me esperando.
Dentro, tapetes macios e luz amortecida faziam o
ambiente. Então era este o clube em que Maria teria de
trabalhar, se não tivéssemos conseguido o dinheiro
para ela. Sentei-me a uma das mesas e pus-me a
esperar.
Afinal, Michael dignou-se a dar-me a entrevista.
Era uma pessoa de aspecto agradável, bem vestido.
Pôs-se a falar com muita emoção sobre as terríveis
condições de vida em Hong Kong, e de como, sem o
negócio da agiotagem, não poderia pagar os estudos
de seus onze irmãos. Depois de esplanar toda a
autojustificação, passou a atacar-me:
— Você é uma boba, disse. Talvez pense que
praticou um ato muito nobre pagando a dívida
daquela garota, mas sei que ela não vai mudar nunca.
Acabará voltando ao mesmo tipo de vida. Não pense
que ela ficará grata a você, nem que mudará de vida.
Você foi levada a cometer um erro, um verdadeiro
desperdício.
— Isso realmente não tem muita importância,
falei. Vou explicar por que fiz isso. Já ouviu falar de
Jesus?
Ele já tinha escutado algumas histórias bíblicas.
— Jesus foi o único homem perfeito que houve
no mundo, expliquei. Ele só fez o bem. Curou os
doentes, ressuscitou mortos, mas seus inimigos o
pregaram numa cruz e assim o mataram. Ele morreu
por minha causa. E não esperou que eu mudasse de
vida e me tornasse uma pessoa boa, para morrer por
mim. E tampouco disse que só morreria por mim, se
eu mudasse de vida. Mas deu-me sua vida, e no
instante em que morria perdoou-me. Foi isso que
Jesus fez. E é isso que desejo que Maria compreenda.
Fiz uma pausa.
— Mas ela não vai mudar. Voltará à mesma
vida de antes, insistiu ele. Tudo que fez foi pura
perda.
— Não me importo de passar por tola e perder
esse dinheiro, disse. Afinal Jesus perdeu sua vida.
Prefiro ser uma boba, e perder tudo, do que ser
incrédula, e ver essa moça ir para o inferno. Agora, é
com ela. Não posso mudar sua vida, mas ela tem a
possibilidade de fazê-lo. Foi Jesus quem lhe deu essa
oportunidade.
Michael abriu a boca para responder, mas não
conseguiu dizer nada. Estava mudo de espanto. Pas-
saram-se alguns minutos, e ele ainda não conseguia
falar. Seus olhos ficaram marejados de lágrimas.
Afinal resmungou com voz roufenha:
— Não sei o que dizer.
Nunca mais vi Michael, mas quando estava
descendo pelo elevador, um dos empregados da boate
entrou e veio falar comigo.
— Posso falar com você um instante? indagou.
Quero aprender sobre esse negócio de ser crente. Pode
me indicar um lugar onde posso ir para aprender?
Então fomos nos sentar num bar, e passamos o
resto da noite ali, com uma Bíblia aberta à nossa
frente.
Naquela ocasião, eu já começara a receber
rapazes para morar em minha casa, e não poderia
levar Maria para lá. Já tínhamos percebido que era
mais difícil ajudar moças iguais a ela, pois eram
poucas as que queriam mudar de vida.
Muitas não achavam que procediam mal. Acha-
vam que valia a pena o*estigma que a sociedade lhes
impigia, tendo em vista a liberdade que obtinham.
Eram livres no sentido de que podiam se
divertir, ganhar muito dinheiro, e não se submetiam à
vida insípida da mulher chinesa em geral. Muitas
jovens tinham essa ilusão e a conservavam por muito
tempo. Amavam o namorado com elevado grau de
romantismo e os sustentavam de bom grado. Só mais
tarde é que vinham a perceber que tinham sido
exploradas. Mas àquela altura, não conheciam outra
vida, e só aí percebiam que não tinham conquistado
nenhuma liberdade, mas achavam-se cativas.
Algumas dessas moças até que gostariam de
largar esse tipo de vida, mas os homens para quem
trabalhavam naturalmente resitiam a isso, e, em
alguns casos, eles eram em número de até sete ou oito.
Também achavam-se em dívida com o clube para o
qual trabalhavam, além de temer o cáften. Nas visitas
que fiz ao dancing onde Maria estava, conheci muitas
moças que queriam sair dali.
Uma noite, recebi um telefonema de Frederick.
— Poon Siu Jeh, falou ele em voz calma, uma
pessoa de minha amizade levou uma surra, porque
tentou largar dos tríades. Ela está desesperada e não
tem para onde ir. Será que podemos ir até aí?
— Pode, Fred, tudo bem. Quer vir amanhã
cedo?
— É "muito perigoso. Essa pessoa não pode ser
ta. Iremos à noite.
No dia seguinte, à noite, quando abri a porta
para receber meu fugitivo, levei um choque. Fred
estava-me trazendo uma moça. Como na língua
chinesa as palavras não têm gênero, pensara tratar-se
de um rapaz, que estava querendo deixar a quadrilha.
Os olhos dela exibiam marcas de pancadas. Mandei
que entrassem rapidamente, e tentei conversar com a
jovem, mas ela não quis dizer uma só palavra naquela
noite. Sua necessidade de conversar limitava-se a
acenos afirmativos ou a abanar a cabeça. O nome dela
era Angel.
Frederick contou-me que ela trabalhara como
stituta para uma quadrilha de Mong Kok. Sua e a dera
para um homem que lhe pedira a menina, esperando
que se casasse com a filha. Mas isso não aconteceu. Em
vez de esse homem cuidar da moça, era ela quem o
sustentava e a mais quatro ou cinco. Todas as noites
tinha que ir para um bordel, onde trabalhava. Em
algumas dessas casas, havia rapazes que vigiavam as
garotas. Eles ficavam lá sentados, jogando baralho,
assistindo televisão ou comendo alguma coisa.
Estavam ali para vigiar as moças, para que
trabalhassem o número devido de horas e não
fugissem. Uma noite, Angel não foi trabalhar, e
quando apareceu no apartamento, seu "namorado"
bateu muito nela. Disse-lhe que, se acontecesse de ela
não ir trabalhar uma outra vez, ele a mataria de
pancadas.
A moça não queria apanhar mais, mas também
não tinha para onde ir. Se fosse para casa, o namorado
iria atrás dela; se alugasse um apartamento, os tríades
a localizariam em quarenta e oito horas. Não tinha
amigos. A única pessoa que conhecia era Fred, e então
recorreu a ele.
Angel parecia ter dezessete anos, mas na
verdade tinha vinte e cinco, e era bastante ingênua.
Mas alguns dias depois, ela entendeu a mensagem
cristã o suficiente para aceitar o fato de que Jesus a
amava tal como era, e que a perdoava. E assim
tornou-se crente. Só então vimos seu olhar adquirir
um pouco mais de animação e vida.
Embora ela estivesse disposta a começar vida
nova, era claro que não poderia andar livremente por
Hong Kong, enquanto a situação não fosse soluciona-
da. Tinha que haver uma gong-sou, isto é, uma
conversação, para se acertar a taxa a ser paga para a
separação dela, e assim ficasse oficialmente transferi-
da para outra pessoa. Se não fizéssemos isso, na
primeira vez que saísse à rua, a quadrilha poderia
raptá-la, desfigurar seu rosto com ácido, ou entrar em
luta contra nós.
Combinei com Angel para que fossemos falar
com seu antigo namorado. Telefonei para ele, e
marcamos um encontro nà Lanchonete do Hotel Hong
Kong, pois era um lugar com muitas portas, e assim
não poderiam encurralar-nos. Também era um lugar
com bom afluxo de público, o que impediria que a
quadrilha a seqüestrasse. Além disso, liguei para a
polícia e expliquei-lhe que iríamos ter essa
conversação, e seria bom se houvesse algum dos seus
homens por ali, apenas para "ficar de olho" na coisa
toda.
E assim eu e Angel fomos para o hotel,
acompanhadas de um dos rapazes; mas, ao
chegarmos ali, já encontramos o namorado dela
sentado a uma mesa, rodeado de quadrilheiros.
Deixe que Angel conversasse com eles, mas, a
certa altura, percebi que não estavam discutindo as
bases, mas concordando com tudo que o homem
dizia. Estava simplesmente obedecendo a força de um
hábito de vários anos. Eu já nos via saindo dali, eu
entrando num táxi e ela em outro, para voltar a ser
uma prostituta. Resolvi entrar na conversa, mas o
homem estava irredutível; não abriria mão dela em
hipótese alguma. Em seguida, procurou convencer a
mim e a si mesmo de que amava a moça.
— Mas que maneira estranha você tem de de-
monstrar seu amor, comentei, mandando que ela vá
fazer esse tipo de serviço.
— Mas não vou desistir dela, insistiu. Por
direito ela é minha. Foram seus pais quem a deram
para mim.
— Com você, ela não tem nenhuma chance de
uma vida melhor, disse eu. E ela deseja parar com isso
e começar vida nova. Ela creu em Jesus.
Mas isso não significava nada para ele, e
ordenou à moça que fosse embora com ele. Agarrei-a
por um braço, enquanto o nosso moço a segurava pelo
outro, e foi dessa forma que saímos porta a fora e
tomamos um táxi. Quando este já se afastava do
meio-fio, ele entrou e sentou-se no banco da frente.
Como não queria sair, instruí ao motorista para dar
uma longa volta. Não queria que o sujeito descobrisse
onde Angel estava. Ele virou-se para trás.
— Meu chefe vai ficar muito irritado com isso,
falou. Não vai deixar Angel sair. Preciso do número
do seu telefone.
Neguei-me a dar o número, e expliquei que
entraria em contato com ele. Afinal, ele saiu do carro,
e pudemos ir para casa. Resolvemos que, quando vol-
tássemos a ter nova conversação, Angel não iria, pois
poderiam tentar raptá-la.
Ligamos para ele e marcamos um novo
encontro. Decidi ter esse encontro no Café Diamond,
que fica logo em frente ao nosso prédio, na rua Lung
Kong. O namorado disse que deveríamos ir apenas eu
e Angel, e mais ninguém, e ele também estaria
sozinho.
Não confiei plenamente nele. Além disso,
estava com medo de que brotasse violência de uma
outra fonte. Os rapazes de nossa casa estavam
tomando as dores de Angel, e desejavam protegê-la e
a mim. E isso era exatamente o que eu não queria que
acontecesse, pois, se houvesse briga, instintivamente
eles iriam brigar. Então, na manhã daquele dia,
meditei com eles sobre as histórias de Gideão e Josafá,
no Velho Testamento, que estavam enfrentando
situações fortemente adversas, mas não tiveram de
lutar para vencer. Simplesmente louvaram a Deus e
cantaram, e assim obtiveram a vitória. Queria que
nossos rapazes aprendessem que não precisamos
lutar.
Algumas horas antes do encontro, os homens
da quadrilha começaram a postar-se em vários pontos
da rua, que ficou tomada por eles. Eu pedira aos
nossos moços que ficassem no alto de nosso prédio, de
onde podiam ver o que se passava, sem contudo
serem vistos.
— A única coisa que vão fazer aqui é orar,
disse-lhes. Se virem algum ato de violência, então
podem ligar para a polícia. Mas não podem absoluta-
mente sair para me defender.
Eles estavam querendo mandar pedir a Goko
que enviasse alguns de seus homens para brigar com
a outra quadrilha.
— Mas assim vocês não estariam lutando a
batalha espiritual, que é o que devemos fazer como
crentes. Não podemos nos envolver numa briga
corporal, expliquei-lhes com firmeza.
Oramos bastante a respeito da situação, e afinal
parti, acompanhada de um dos rapazes, enquanto que
Angel ficou em casa.
O namorado de Angel não apareceu; mandou
em seu lugar o chefe da quadrilha, juntamente com
mais quatro ou cinco de seus companheiros, bem
como os outros do lado de fora. Ficou furioso ao ver
que Angel não estava comigo. Estava claro que
tinham tudo preparado para seqüestrá-la.
— Não pense que vou ficar todo cerimonioso,
só porque você é desse negócio de igreja, disse ele.
Ele não sabia que eu era bem relacionada com o
pessoal da Cidade Murada; então, ingenuamente,
tentei dar uma espécie de testemunho, mencionando o
nome de alguns rapazes de lá, que já eram seguidores
de Jesus. Imediatamente ele concluiu que eu tinha
ligações com a 14K.
— Pois bem, falou. Não vamos mais ter
nenhuma cerimônia com você, e deu um murro na
mesa. Entregue-nos a moça. Não vamos deixar que
saia daqui, enquanto não a trouxer.
Tentei falar-lhe de Jesus, mas não quis ouvir.
"Bom", pensei, "quis falar de Jesus e ele não me
deu ouvidos. Se eu quiser argumentar sobre á moça,
também não irá ouvir-me."
Senti muito medo naquele momento.
— Por favor, posso dar um telefonema? falei
com voz mansa.
Liguei para casa, e Willie atendeu.
— Não olhe agora, mas na porta do café há dois
carros cheios de quadrilheiros armados de faca,
disse-me ele. Estão aí esperando.
Fiquei aterrorizada e sussurrei para Willie:
— Chame a polícia!
Voltei à mesa e disse-lhes que teriam que fazer
as conversações comigo mesma, e que Angel desejava
seguir a Jesus.
Quando a polícia chegou, os carros com os
homens armados escapoliram, e quando os policiais
entraram no restaurante já estava tudo tranqüilo. Os
outros rapazes, naturalmente, não portavam armas.
Fui ao banheiro, e um dos investigadores estava lá.
— Ah, dá licença, disse eu. Há alguns carros lá
fora cheios de homens com facas.
— Agora não há mais ninguém lá, respondeu.
Quer que façamos uma revista no café?
— Não iria adiantar, repliquei. Não
encontrariam nada.
Então, os policiais foram embora, e assim que
saíram, os carros deles voltaram. Eu ainda estava
presa ali, sem saber o que fazer. A única coisa a que
poderia recorrer naquela situação era a oração. Então
orei em línguas, em voz bem baixa, para que não
escutassem.
Meus joelhos tremiam, e não tinha a mínima
idéia do que iria fazer em seguida. Afinal, levantei-me
e disse:
— Tenho que sair para comprar verduras.
Estava tremendo fortemente quando saí dali, e à
porta vi os homens também saindo do carro.
Vinham em minha direção. Meu maior medo era que
os rapazes da Cidade Murada viessem lutar com eles
em minha defesa. Por felicidade, naquele instante,
passou um lotação e entrei nele e fui embora. Fui
diretamente para a delegacia. Tentei explicar-lhes que
havia uma porção de homens armados procurando
Angel.
— Tenho certeza de que vão à casa de seus
familiares e vão criar problemas para eles.
— E onde moram? indagaram eles.
— Em Shek Kip Mei, respondi.
— É fora de nossa jurisdição, disseram. Quer ir
à delegacia de Shek Kip Mei?
— Não poderiam lígar daqui mesmo?
perguntei.
Estou achando que vão matar alguém. Um dos
policiais disse-me com ironia.
— Minha senhora, disse com uma entonação
deliberada, todos os dias morre gente nesta cidade.
— Mas estou avisando a vocês, porque gostaria
que essa morte fosse evitada.
Afinal, concordaram em levar-me à delegacia
de Shek Kip Mei numa de suas viaturas. Ali, senti que
os outros policiais também não estavam muito
dispostos a cooperar.
— Esse negócio é de Kowloon, disseram. Mas,
afinal, o que deseja que façamos?
— Eles moram aqui nesse endereço, repliquei.
Tenho quase certeza de que esses quadrilheiros irão
aparecer para maltratar essa gente.
— Não podemos mandar uma pessoa ficar de
guarda lá o tempo todo, responderam. Temos muito
que fazer.
— Sei que não podem, mas poderiam ao menos
instruir os policiais da ronda, para ficar de olho nessa
casa.
Por fim, um dos inspetores anotou a queixa, não
oficialmente, já que não acontecera nada.
Mas, algumas horas depois, recebi um chamado
desesperado de um dos familiares de Angel.
— Saí para comprar umas coisas, e agora estou
vendo cinco homens sentados em minha casa, disse a
pessoa com voz trêmula. E ainda há outros sentados
nas escadas, e estão armados.
Imediatamente liguei para a polícia. Já estavam
a par do fato e mandaram seus homens para lá
rapidamente. A maioria dos quadrilheiros conseguiu
escapar, mas a polícia pegou dois ou três deles. Além
disso, eles os amedrontaram, dizendo que, se quises-
sem, poderiam criar muitos problemas para toda a
quadrilha. Nunca mais importunaram Angel.
Mais tarde, os familiares da moça me contaram
que, quando os quadrilheiros entraram na casa e se
assentaram lá, eles ficaram aterrorizados;
interrogaram-nos bastante, querendo o meu endereço.
Felizmente, eles não o sabiam e assim não o puderam
revelar.
— Mas quem é essa dona que só fala de Jesus e
quem são esses crentes? perguntou um dos rapazes da
quadrilha.
— E vocês já viram o olhar dessa mulher?
indagavam. Quando estávamos conversando com ela
no café, ficamos muito nervosos, e a gente nem
conseguia olhar para ela direito. Ela tem um poder
qualquer.
E a palavra que empregaram designa poder
sobrenatural. Quando me contaram isso, senti grande
regozijo, pois aquele fora um dos momentos mais
terríveis de minha vida. E, no entanto, eles tinham
ficado ainda mais atemorizados que eu, pois
reconheciam ali a presença de um poder espiritual.
Uma vez que a liberdade de Angel estava
garantida, não poderíamos mais mantê-la em nossa
casa, juntamente com os rapazes. Como Jean e Rick ti-
nham-se mudado para Hong Kong, o apartamento de
Mei Foo estava à nossa disposição, até vencer o
contrato de aluguel. Resolvemos acomodar a moça ali,
com mais três. Sara permaneceu lá, para ser a respon-
sável. E assim teve início a casa das moças.
Outra grande dificuldade na reabilitação dessas
jovens era que ninguém esquecia o passado delas. Nos
crimes dos homens, parece que existe uma espécie de
glória. Mas com as mulheres é diferente. Mesmo que
se tornem crentes, ninguém esquece o que foram an-
tes.
Embora não tenhamos podido manter a casa
das moças por muito tempo, aprendemos muita coisa
com a experiência. Angel aprendeu a ler um pouco.
Nunca mais foi incomodada por ninguém e mais
tarde casou-se com um ótimo rapaz crente.
Mais ou menos um ano depois, um certo juiz
ligou para Jean e perguntou se ela poderia considerar
a hipótese de receber em nossas casas uma mulher de
meia-idade. Fora presa no aeroporto com dois quilos
de ópio escondidos nas roupas. O juiz acreditava que
isso fora um incidente isolado em sua vida, e estava
disposto a enviá-la para nós, pois seria melhor para
ela.
Jean explicou-lhe sucintamente que não
tínhamos mais a casa de moças, mas concordou em ir
falar com a mulher no dia seguinte, no tribunal.
Fui com Jean, e quando lá chegamos, o juiz
mandou esvaziar o salão para que pudéssemos falar
com ela o tempo que desejássemos. Era uma mulher
chinesa, com seus quarenta e sete ou quarenta e oito
anos.
Não queríamos que ela pensasse que seu futuro
estivesse dependendo das coisas que nos diria e de
sua reação à nossa mensagem, pois poderia passar por
uma conversão insincera. Então falamos-lhe de Cristo,
e de como ele removia o peso de seu pecado,
dando-lhe uma nova vida com seu poder.
Respondeu-nos que estivera orando na prisão e
que éramos uma resposta a suas orações. Recebeu a
Jesus com um sorriso, ao sentir que seus pecados
tinham sido perdoados, e depois fez uma oração
fervorosa para receber o Espírito.
Jean olhou para mim. Olhei para ela. E
sorrimos, pois dissemos quase juntas:
— É melhor dizermos ao juiz que vamos levá-la.
Ah Ying passou a morar na Terceira Casa. Era muito
igrejeira, a princípio, mas também meio contenciosa e
de difícil convivência. Mas, aos poucos, ela foi
melhorando, tornando-se uma pessoa totalmente
diferente; resultado, talvez, de ela sempre orar no
Espírito, quando estava passando roupa. E, às vezes,
passava horas e horas...
— Meu Deus, não posso falar de Jesus a essas
mulheres. Seria horrível, se elas se convertessem.
Eu costumava passar por algumas das velhas
prostitutas e evitá-las. Sabia que Cristo pode derrotar
o poder do vício de drogas, mas sabia também que os
novos crentes precisavam de um lugar seguro onde
pudessem desenvolver-se espiritualmente; e não
tinhamos mais uma casa para moças. Então, o que
fazer com uma daquelas "senhoras", caso se
convertesse? Deixá-la na rua?
Mas uma noite não pude resistir ao impulso de
falar a uma delas. Estava sempre sentada num caixote
de laranjas. Não tinha onde morar. A única maneira
de ela arranjar uma cama para dormir era conseguir
um cliente, e assim ela passava o resto da noite no
quarto alugado por ele.
Ah King já estava com quase cinqüenta anos, e,
para suportar aquela vida de prostituição, tomava
heroína. Quase sempre, essas duas coisas estavam
intimamente ligadas. Ela sabia quem eu era, pois
passara por ela várias vezes, naqueles anos todos.
Comecei falando-lhe sobre a mulher que lavava
os pés de Jesus com as próprias lágrimas e os
enxugara com os cabelos; ela era prostituta, e ele, o
Filho de Deus, a amou e tratou-a com bondade; e
ainda lhe dissera: "Perdoados são os teus pecados...
vai-te em paz."
Ah King ouviu tudo aquilo e creu.
— Esse é o Deus que eu quero, afirmou.
Expliquei-lhe como poderia receber o Senhor, e
ela orou em chinês, em voz alta, com a maior
naturalidade. O velho que era seu cáften estava por
perto. Ficou a observar-nos, ali sentadas com os olhos
fechados, e pôs-se a dar gargalhadas. Mas isso não
afetou Ah King. Continuou tranqüilamente a conver-
sar com seu novo Senhor.
— Esse mesmo Deus vai dar-lhe poder para a
oração, disse-lhe.
Daí a pouco ela estava orando numa belíssima
língua estranha.
Uns dez minutos depois, ela ergueu os olhos, o
rosto radiante de felicidade. Chegou então o momento
que eu mais temia. Não tinha nada para dar a ela. Não
tinha uma casa para abrigar prostitutas, e minha bolsa
estava vazia.
— Sabe de uma cdisa, Ah King? Você não
precisa mais recorrer aos homens para obter sua
porção diária de arroz, falei com ela. Busque a Deus.
— Você está querendo dizer que ele vai cair do
céu? indagou.
— Talvez, repliquei falando seriamente. Deus
pode muito bem mandar arroz do céu para você. A
partir de agora você não pode mais viver nesse tipo de
vida.
— Pois da próxima vez que nos encontrarmos,
disse ela, vou lhe contar como foi que o arroz veio.
Saí dali, deixando-a sentada no caixote de
laranja. Não estava muito satisfeita de fazer aquilo,
mas resolvi confiá-la inteiramente a Deus.
Uma semana depois encontrei-a novamente.
— Já aprendi muitas coisas, disse-me ela. Acho
que é certo Deus me dar dinheiro para o arroz, mas
não para a heroína.
Foi a última vez que a vi. Mais tarde indaguei às
outras prostitutas onde ela estava, e responderam:
— Ah, ela não trabalha mais nisso. Foi para um
lugar desses aí, para se libertar da droga.
Gosto de imaginar Ah King num lugar
qualquer, sentada, e Deus derramando arroz para ela,
como chuva.
13
Testemunhos
Estava muito escuro, aquela noite, na Cidade
Murada. Quatro ou cinco rapazes achavam-se em
nosso pequeno salão do clubinho, assistindo a um
jogo de pingue-pongue. Uma figurinha patética
surgiu em dado momento, na claridade do ambiente.
Era muito jovem e magérrimo. Notava-se claramente
que era viciado em heroína. Reconheci Bibi, o irmão
mais novo de Winson. Estava fugindo da polícia.
Chamei-o para que se sentasse num banco de
madeira, e falei-lhe de Jesus. Tive a impressão de que
ele começou a entender a mensagem, mas não ficou ali
mais que uma meia hora. Prometeu-me que voltaria,
e, de fato, alguns dias depois reapareceu. Falei-lhe um
pouco mais, e disse-lhe que já tinha conhecimento
suficiente para tomar, sozinho, a decisão de seguir a
Cristo.
— Não posso mais continuar encontrando-o,
pois estarei desrespeitando a lei. Vou orar por você, e
quando estiver disposto a seguir a Cristo, pode me
chamar, que irei com você à delegacia para se entre-
gar. Acompanharei todo o seu processo, pois, se
realmente se dispuser a orar, tenho certeza de que
tudo sairá bem.
Mas ele não se entregou. Mais tarde, foi preso e
mandado para a cadeia. Fui visitá-lo, mas, assim que
foi solto, voltou às drogas. Um dia ouvi dizer que fora
outra vez preso por dois crimes bastante graves. Uma
das acusações era que ferira um jornaleiro e roubara o
relógio dele. A segunda era de assalto. Logo que
fiquei sabendo dos detalhes das acusações, senti que
ele não era culpado de pelo menos uma delas. No
momento em que supostamente estaria assaltando o
jornaleiro, ele estava no clubinho conversando
comigo. Fui vê-lo na prisão, e fiquei sabendo que
estava disposto a confessar tudo, pois, embora fosse
inocente das duas acusações, tinha cometido uns vinte
roubos em outro lugar.
— Vou-me confessar culpado e acabar logo com
isso, disse com um tom de resignação.
— Mas não pode, insisti, isso não é verdade.
Diga ao juiz que você cometeu os outros crimes, mas
diga a verdade.
No julgamento, ele se declarou inocente, mas
foi considerado culpado, apesar de meu depoimento.
Ao explicar o caso, o juiz disse que acreditava que eu
estava falando a verdade, mas achava que a outra
testemunha se confundira a respeito da hora do crime.
E encerrou o caso.
Eu passara muitos dias no fórum orando, e
acabei ficando conhecida dos policiais. No fim do
julgamento, quando eu saía da sala do júri, um
inspetor de polícia me deteve.
— Como você se envolveu nisso? indagou.
— Bom, acontece que sou crente.
— Então, por que está depondo a favor de um
criminoso?
— Sei que ele é criminoso, e sei que praticou
muitos furtos, mas esse aí ele não praticou.
— Pois eu também sou cristão, disse o policial.
Procure ver as coisas por esse prisma. Quando esse
pessoal comete um crime, geralmente sabemos quem
o cometeu, mas nem sempre temos provas para
prendê-lo. Por isso, os acusamos de crimes para os
quais possamos "arranjar" provas. É duro, mas é justo.
E a sociedade sai ganhando, concluiu ele.
— Mas, a longo prazo, repliquei, o efeito sobre a
sociedade é negativo. Isso destrói o respeito pela lei,
pela polícia e pela verdade. O criminoso aprende a
pensar que ser preso não tem nada a ver com sua
culpa ou inocência. É simplesmente falta de sorte sua.
— Mas, pelo menos, estão recebendo castigo
pelos seus crimes, argumentou o inspetor.
— Mas não reconhecem que estão pagando
pelos atos praticados, repliquei. E ficam fortemente
revoltados por estarem presos sob acusações falsas. E
quando saem, a primeira coisa que querem fazer, é
praticar o crime pelo qual foram castigados. Acham
que, já se que cumpriram a pena por ele, têm o direito
de cometê-lo.
Afinal, o homem encerrou a conversa meio
desajeitado.
— E, nunca tinha pensado nisso dessa maneira,
comentou e afastou-se apressadamente.
Quando Bibi saiu da prisão, encontrei-o
novamente. Seu rosto parecia acinzentado e tinha
profundas olheiras. Voltou direto a tomar drogas.
Prometera modificar-se, mas achava-se sem forças
para tal. Os viciados têm uma frase que gostam de
repetir quando vão a uma "boca" de drogas: "Meu
coração ainda não tinha decidido, mas meus pés
foram por si mesmos."
Bibi arranjou o emprego de coletor de lixo, a fim
de comprar a droga. Era o mais baixo tipo de trabalho
ali, mas ele tinha que ganhar algum dinheiro para
adquirir a heroína. Mas o que ganhava não era
suficiente; e voltou então a roubar. Sempre que me
via, dava um jeito de fugir. Mas geralmente eu
descobria onde ele estava morando. Certa vez, uma
emissora de televisão foi à Cidade Murada fazer um
filme sobre nosso trabalho. Procuramos Bibi, e ele foi
filmado em casa. A família transformou o aconteci-
mento numa novela. A mãe chorava:
— Conserte a vida de meu filho, Poon Siu Jeh,
dizia ela. Leve-o para sua casa e faça dele um homem
bom.
É lógico que não era assim que as coisas se
passavam. Bibi tinha conhecimento da verdade, sabia
que só ele poderia tomar a decisão de modificar-se. Eu
já tinha aprendido que havia um tempo certo para se
pregar e falar, e um tempo em que não se falava mais.
E este tempo chegara para ele; então disse-lhe que
havíamos chegado ao fim da linha.
— Esta é a última vez que venho falar-lhe. Você
já conhece o caminho da salvação. Agora é com você.
Pode escolher se quer segui-lo ou não. Não quero
vê-lo mais enquanto estiver nesse estado, pois você
não precisava estar assim. Quando estiver disposto a
mudar de vida, aí então pode me procurar.
Uma semana depois, ele veio.
— Agora estou disposto, falou. Para mim,
chega. Não há outro jeito. Não consigo me livrar do
vício sozinho. Não posso ficar em casa, senão irei
vender drogas para comprar a minha. Por favor,
ajude-me.
Oramos durante muito tempo. Bibi foi cheio do
Espírito e começou a falar numa nova língua. Depois
me disse:
— Agora, você tem que me levar para sua casa.
Dei um suspiro profundo e respondi:
— Sinto muito, mas não temos vagas. Ele ficou
muito irritado. Sua única salvação seria ir para uma
das casas de Estêvão.
— Mas você tem que deixar eu ir para lá, berrou
ele. Não pode querer que eu fique pelas ruas, pois
continuarei a tomar heroína. E nenhum crente de
verdade pode tomar essa droga.
Conversei com os Willans e com os obreiros da
terceira casa, pedindo que o recebessem, mas
recusa--se. Sara explicou:
— Não podemos recebê-lo, porque não estamos
condições.
— Mas tem que receber, argumentei. Esse é o
objetivo dessas casas, isto é, que os moços possam
desenvolver-se na vida cristã. Agora você não quer
deixar que eu leve um aí, porque deseja a casa bem
acertadinha.
— Não será bom trazer nenhum rapaz para
uma a que não esteja com tudo acertado, replicou ela
com firmeza. Se os que estão aqui não tiverem um
relacionamento sólido para suportar a vida de mais
um, ele terá que esperar até que já estejam mais
firmes.
Ela tinha razão. Era seu dever proteger os
membros de "nossa família". Se eu fosse simplesmente
colocando mais e mais pessoas ali, desordenadamen-
te, a situação poderia tornar-se caótica, como já o fora
antes.
Tive que procurar Bibi e dizer-lhe que não havia
vagas mesmo. Encontramo-nos junto a uma barraca
de lanches. Ele ficou furioso comigo, quando lhe dei a
notícia.
— Bibi, disse procurando acalmá-lo, só por um
momento, pare de olhar para si mesmo e de pensar
que nossa casa é a sua salvação. Olhe para o céu. Olhe
para o alto e pense naquele que criou o céu, a terra, o
mar e os pássaros. É ele quem faz tudo. E foi ele quem
decidiu que seu Espírito habitasse em nós. Por quê?
Por que Jesus deixou toda a sua glória e veio aqui e foi
chicoteado, morreu e ressuscitou para que tivéssemos
seu Espírito. Não é maravilhoso pensar que o Espírito
do Deus que criou o mundo todo possa realmente vir
morar em nós? Pare de ficar pensando que nossa casa
é a sua salvação e pense em como nosso Deus é
grandioso.
Deixei-o naquela barraca, orando, e saí para
conversar com outro viciado. Voltei meia hora depois
e encontrei-o ainda ali, de olhos fechados e um leve
sorriso no rosto. Chamei-o, mas não respondeu. Na
terceira vez que o chamei, abriu os olhos com muita
relutância. Contou-me que tinha visto Jesus. Ele
estava no alto de uma montanha e Jesus se aproxima-
ra dele com a mão estendida, dizendo-lhe:
— Bibi, você quer me seguir?
— Quero, Senhor. A quem mais eu poderia se-
guir? replicou ele.
Então o Senhor o tomara pela mão e o
conduzira por um caminho belíssimo.
— Era um lugar lindo. Havia flores lindas por
ali, e pássaros, e o perfume era muito doce. Estávamos
andando por aquele caminho, quando a ouvi
chamar-me, mas não queria voltar.
Daquele momento em diante, em vez de ficar
com a idéia fixa de que nossa casa era sua única
salvação, passou a olhar para o seu Criador,
esperando só nele. No dia seguinte, abriu-se uma vaga
para ele em nossa terceira casa. E ele ficou ali dois
anos. Foi um dos melhores rapazes que já tivemos lá.
Durante o processo de libertação da droga, levou uma
vida normal. Certo dia, seus familiares ligaram para
Jean e Rick informando que o pai dele estava à morte,
e o rapaz foi visitá-lo no hospital. O pai, que também
se libertara do ópio e se tornara crente, disse:
— Agora estou pronto para ir para o céu, pois
Jesus transformou meus filhos em homens bons.
Mas não morreu. Os filhos oraram por eles e foi
curado.
Como havia vários obreiros trabalhando na
Associação Estêvão, eu podia sair mais às ruas. Os
viciados espalhavam a notícia do nosso trabalho, e
pessoas de todas as partes da colônia procurava-nos
em busca de ajuda. Um policial crente deu-me um bip,
para que eu pudesse ser contactada onde estivesse, a
qualquer momento. Assim achei-me cada vez mais
envolvida em tribunais e julgamentos. Certo dia eu
havia assistido a um julgamento e, quando saía, ouvi
alguém me chamando:
— Poon Siu Jeh! Estão-me acusando
injustamente! Ajude-me!
Olhei para trás e vi o rapaz que iria ser julgado
em seguida, sendo levado para o tribunal. Não o
conhecia. Mas pude perceber o desespero em seu
rosto sujo. Eu não tinha condições de saber se ele
estava falando a verdade ou não, e mesmo que o
soubesse, não tinha direito de falar no tribunal.
Entretanto, aquele rapaz estava para enfrentar aquela
batalha sozinho. Tive uma inspiração súbita e
levantei-me.
— Meritíssimo, disse, não conheço bem o
acusado, mas creio que é possível que não tenha tido
acesso a um defensor. Será que poderia suspender o
caso até que façamos verificações nesse sentido?
O juiz ergueu as sobrancelhas. Era uma solicita-
ção meio incomum. Virou-se para o acusado.
— Você deseja um representante? indagou.
— Quero, respondeu o rapaz. Mas depois que
fui preso, não me deixaram dar um telefonema.
O juiz suspendeu o julgamento por vinte e
quatro horas, e então fui falar com o rapaz. Fiquei
sabendo que tinha o apelido de Sorchuen, e que tinha
conhecimento a meu respeito por intermédio de seus
"irmãos" de Chaiwan.
Tremia convulsivamente e seus olhos estavam
vermelhos e lacrimejantes. Fungava o tempo todo.
— Não tenho muito tempo para lhe falar de
Jesus, mas se você clamar a ele, ele o ouvirá e o
salvará.
Imediatamente, os sintomas de carência da
droga desapareceram, e suas feições relaxaram.
Quando o vi no dia seguinte, tinha o rosto tranqüilo e
feliz.
— Orei a Jesus, disse ele, e agora me sinto to-
talmente diferente.
Sorchuen foi declarado culpado das acusações
que pesavam contra ele. Depois de sair da cadeia, foi
preso de novo, mas telefonou-me da delegacia. Fui
visitá-lo acompanhada de um excelente advogado.
Fora preso sob a acusação de arrombar vários carros
no distrito de Shaukiwan. Segundo ele, isso era
mentira. Afirmava que no momento do crime ele se
achava no cinema, assistindo a um filme pornográfico,
em Wanchai. Terminado o filme, pegara um ônibus
para ir a Chaiwan, mas fora detido por dois detetives
que lhes ordenaram que descesse e fosse "falar".
Pediram-lhe que os ajudasse a encontrar outro
quadrilheiro de nome Morgwai, (diabo), e o levaram
num carro particular até um cinema, à procura do
outro. Ali, Sorchuen viu um amigo seu, mas não
conseguiram localizar o "Diabo"; então os homens o
levaram para a delegacia, e o indiciaram sob aquela
acusação, depois de ele haver assinado uma
declaração incrimina-tória na delegacia de polícia.
Como muitos dos outros rapazes, Sorchuen
afirmava que apanhara para confessar o crime. Vim a
saber que muitos não chegavam a apanhar, mas
tinham tanta certeza de que isso aconteceria, que
assinavam as confissões, incriminando-se. Muitos
acusados eram condenados com base apenas em sua
confissão, sem testemunhas, provas, nada.
Eu e Davi, o advogado, resolvemos investigar
os fatos por nossa conta. Ele escreveu à polícia
solicitando o número da placa dos carros que
supostamente Sorchuen tinha tentado arrombar. Fui
procurar o "Diabo", mas soube que também tinha sido
preso. Encontrei, porém, o amigo que o rapaz vira no
cinema. Ele se lembrava bem do dia e da hora.
Sorchuen estava preso e não poderia ter entrado em
contato com esse amigo. O rapaz disse que ele o tinha
visto três horas antes da hora em que, segundo os
autos, ele fora preso em Shaukiwan. Fiquei convicta
de que estava falando a verdade, já que as duas
versões eram idênticas.
De posse das placas dos veículos fomos a
Sheko, onde morava o dono de um deles.
Conseguimos localizá-lo e perguntamos onde
normalmente estacionava o carro.
— Normalmente, respondeu ele, no
estacionamento de Shaukiwan.
Mas no dia do roubo, não o tinha deixado lá.
Tínhamos, afinal, uma testemunha.
Toda essa agitação em torno de um caso de
menor importância era muito incomum, e o escritório
da promotoria ficou alerta.
Num dos intervalos do julgamento do caso, o
advogado de acusação pediu para falar comigo. Tinha
ficado muito irritado com o interrogatório longo e
minucioso levado a efeito pela defesa.
— Por que vocês dois estão-se dando tanto
trabalho por um caso tão insignificante? indagou ele.
Se não fosse isso, já estaria tudo encerrado a essa
altura. De qualquer modo, é uma questão tão trivial.
— Será que não se deve apresentar a melhor
defesa possível em favor do acusado?
— Claro, replicou, mas por que perder tempo
com um caso desses? objetou.
— Porque cremos que o acusado é inocente,
respondi.
Olhou-me grandemente espantado.
— Mas a ficha desse homem tem dezenas de
condenações!
— Estamos falando das acusações de hoje.
Tenho certeza de que não cometeu esse crime.
— Olhe, minha cara, já estou em Hong Kong há
seis meses...
Entretanto, aquele foi um dos poucos casos em
que me envolvi, nos quais o acusado não foi declarado
culpado. E estávamos com Sorchuen nas mãos tam-
bém. No dia em que tínhamos orado na cela da
delegacia, eu lhe falara do fato de que Jesus está vivo.
Mas ainda teria que aprender que a maneira de se
tornar seu discípulo não era assistindo a um filme
pornográfico.
Após este caso, Davi representou vários outros
acusados, e certa vez provocou a abertura de um
precedente jurídico em Hong Kong. Foi numa ocasião
em que alguns rapazes foram presos por terem-se
declarado membros de uma sociedade tríade. Embora
uma pessoa não possa ser presa por ser membro de
uma quadrilha, se se mantiver calada, pode ser presa
caso se declare como tal. Dois dos rapazes tinham as-
sinado confissão nesse sentido. Mais tarde afirmaram
que o tinham feito sob coação. Os outros se declara-
ram culpados.
O julgamento de problemas semelhantes, isto é,
de membros de uma sociedade tríade, geralmente era
rápido, mas esse acabou-se tornando extremamente
complicado. Os dois rapazes acusados tinham-se tor-
nado cristãos havia mais ou menos um ano. Muitos de
nós estávamos orando para que esse julgamento, de
alguma forma, fosse para a glória de Deus. Um
indivíduo que fosse membro ativo de uma sociedade
tríade não poderia ser cristão, pois as duas coisas
eram incompatíveis.
A polícia apresentou sua primeira testemunha.
Ele se apresentou no tribunal e deu seu depoimento.
— Sou um dos dirigentes de uma 14K. Pelos
regulamentos de uma sociedade tríade, uma vez
membro de uma delas, o indivíduo é membro para
sempre. Embora hoje eu fique o tempo todo dando
depoimentos na polícia, ainda sou membro da 14K.
Argumentamos que nossos rapazes já não
pertenciam à tríade, porque tinham recebido o
batismo cristão, renunciando assim à condição de
membros dela. Perante o juiz os rapazes declararam:
— Já fomos membros da quadrilha. Agora não
o somos mais.
Outra testemunha técnica foi um filólogo chinês
que explicou que a confissão dos rapazes tinha sido
traduzida para o inglês, como se eles tivessem dito:
"Sou membro de uma sociedade tríade". Mas esse
sentido era questionável, pois na língua chinesa não
havia tempos verbais, nem presente nem passado.
Nosso argumento era de que tinha dito realmente:
— Sim; fui membro de uma tríade.
Depois apresentamos outra testemunha, Ah
Kei, que tivera na sua quadrilha a mesma graduação
que o rapaz que testemunhara pela polícia.
— Também sou um número 426 da 14K. Mas
tornei-me cristão e renunciei à quadrilha. Esses dois
rapazes que estão sendo julgados eram meus irmãos
menores. Já disse aos membros do grupo que não sou
mais responsável por eles. Se quiserem seguir a Jesus,
são livres para fazê-lo.
O juiz já tivera de passar várias horas escutando
essa gente falar de batismo, conversão e etc. Normal-
mente, nesse tipo de caso, os indiciados eram logo
condenados ou absolvidos.
— Não vejo por que um homem tenha que ficar
marcado para toda a vida, disse ele afinal. Se ele
deseja mudar de vida e tornar-se cristão, muito bem.
Caso encerrado.
Uma razão pela qual não havia mais
absolvições, era que o povo de Hong Kong não se
dispunha muito a depor nos tribunais. Havia uma
desconfiança geral da justiça. Mas eu, como era
ferrenha defensora do sistema judiciário britânico,
crendo que ele era justo, tentei convencê-los de que, se
falassem a verdade, não poderiam deixar de ser
justificados. Se tantos casos eram julgados
desfavoravelmente a eles, isso se devia ao fato de eles
próprios se omitirem tanto.
Como eu ia muitas vezes ao tribunal, comecei a
notar certos indivíduos que apareciam com regulari-
dade. Havia, por exemplo, uma velhinha com uma
longa trança que lhe caía pelas costas. Tinha nas mãos
uma espécie de lista, e ficava ali sentada a manhã
inteira, declarando-se culpada de pelo menos umas
vinte acusações, sob nomes diversos. Quando um
desses nomes era chamado, ela se levantava e
murmurava:
Yauh (presente).
Em seguida, anotava diante do nome a quantia
a da multa a ser paga. Vim a saber que era assim que
ganhava a vida. Como não tinha mais condições de
ficar na rua vendendo seus artigos, ia ao tribunal
responder pelas infrações de seus colegas vendedores
de rua, para que pudessem continuar com seus negó-
cios. Para isso, recebia uma pequena quantia.
Havia ali também um velho de setenta anos que
fazia a mesma coisa. As acusações eram lidas:
— Uso de tóxicos e posse de instrumentos para
consumo de tóxicos.
O velho acenava afirmativamente, muito
satisfeito.
— Cinqüenta e oito condenações anteriores por
infrações semelhantes.
E ele continuava a acenar que sim, sorrindo.
— Cem dólares de multa, ou cinqüenta dólares,
e um dia de detenção.
E o homem se afastava com um amplo sorriso
no rosto. Comentei com Ah Keung:
— Ele sempre tinha a má-sorte de ser preso.
— Não, não, explicou ele. Esse homem é um
"ator". Ganha dos donos da sala de drogas para ser
preso.
Quando os proprietários das salas eram
informados de que a polícia ia dar uma batida,
fechavam tudo, deixando ali somente um velho
viciado, que então era preso e indiciado. Devido à sua
idade e ao número de condenações anteriores, recebia
uma sentença leve. A loja lhe pagava cento e
cinqüenta dólares para fazer isso, e ainda lhe fornecia
ópio de graça: assim ele podia cultivar seu vício e,
depois de pagar a multa, ainda lhe sobrava algum
dinheiro.
O pai de Ah Keung pediu-me certa vez que
socorresse seu filho Ah Pooi, que tinha sido preso por
ter roubado um rádio de um velho, fora da Cidade
Murada. Mas, no momento do roubo, ele estivera
dentro da cidade, conversando com uma velhinha. A
mulher negou-se a depor. O pai também vira os dois
detetives levarem o rapaz, mas não queria ir depor.
— Pa mahfan, não quero envolvimento com a
polícia. É muito perigoso, argumentava.
Como estava ligado à jogatina ilegal, achava
que era preferível ficar em paz com a polícia, do que
defender o filho. Mesmo assim desejava que eu o
ajudasse. Expliquei-lhe que, como ele estava retendo
uma informação de vital importância, eu não poderia
fazer nada.
Eu tinha que me controlar muito, para não me
deixar dominar pela raiva, quando a verdade era
derrotada. Mas também tinha que tomar cuidado,
para não ser usada por indivíduos inescrupulosos,
que não tinham o mínimo interesse em mudar de
vida.
Muitas pessoas foram tocadas devido a esses
problemas no tribunal, e, se parecia que os tribunais
terrenos eram injustos, era cada vez maior o número
de pessoas que compreendiam o que era ser justifica-
do nos celestiais. Um maravilhoso exemplo disso foi
Suenjai, um criminoso que se reabilitou. Durante dez
anos, ele tinha levado uma vida certinha, trabalhando
arduamente para sustentar a esposa e quatro filhos.
Certo dia foi preso sob a acusação de bater carteiras.
Tive certeza de que não fizera aquilo. Foi um golpe
muito duro para ele.
A esposa dele entrou em contato comigo e
visitei-o na cadeia, onde aguardava julgamento.
Estava muito ressentido e revoltado. Queria falar-lhe
de Jesus, mas ele não queria ouvir sermões; pus-me
então a orar. Aí ele ficou calmo. Não tinha uma Bíblia
em mãos, apenas um livrete com trechos do Sermão
do Monte. Achei que não era uma literatura bastante
adequada, pois não continha a mensagem da
salvação. Não tendo, porém, outra coisa, deixei-a com
ele, para que a lesse.
Na primeira vez em que fui visitar o centro de
triagem, Suenjai estava sentado no meio de um
pequeno grupo. Perguntei-lhe:
— Por que Jesus teve de morrer?
— Porque está escrito: "Não penseis que vim
revogar a lei ou os profetas: não vim para revogar,
vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: Até
que o céu e a terra passem, nem um Í ou um til jamais
passará da lei, até que tudo se cumpra." Foi a resposta
dele.
O Sermão do Monte levou-o à fé. Pediu a Jesus
que entrasse em sua vida e recebeu o Espírito Santo.
Pouco antes do dia do julgamento,
perguntei-lhe como iria apresentar sua defesa.
Resolvera não apresentar defesa nenhuma. Ia apenas
declarar-se inocente. Comecei a aconselhá-lo a não
fazer isso, mas ele me interrompeu.
— A Bíblia diz: "Seja, porém, a tua palavra: Sim,
sim; não, não. O que disto passar, vem do maligno."
Suenjai foi condenado. Embora fosse obrigado a
ficar preso um ano e três meses por um crime que não
cometera, conservou-se sempre alegre, nunca cessan-
do de louvar a Deus. Aliás, alguns de seus vizinhos,
quando ouviram falar da maneira como ele se condu-
zira no tribunal, ficaram tão impressionados, que me
pediram que fossemos falar-lhes desse Jesus que tinha
poder para transformar o coração do homem.
Um dia, Suenjai contou-me que ganhara para
Cristo doze prisioneiros. Fiquei um pouco em dúvida,
pois sabia que seus conhecimentos teológicos eram
baseados apenas em três capítulos de Mateus, algu-
mas conversas comigo, e em sua própria experiência.
— Bem, explicou ele, uma noite um dos compa-
nheiros da cela acordou aos berros, contorcendo-se na
cama, como se estivesse sufocando. Percebi que estava
sendo agarrado por um demônio. Então, levantei-me
e disse: "Satanás, em nome de Jesus, saia dele!" Mas
nada aconteceu. Falei de novo: "Saia dele, já disse." Fiz
que ia dar um chute no espírito, e ele saiu, e o colega
ficou calmo e tranqüilo. Os outros colegas me
perguntaram:
— Que foi isso? O que você fez?
— Foi Jesus, respondi.
— Então disseram que também queriam crer
nele. E assim expliquei-lhes como poderiam fazê-lo.
Três dias depois que Suenjai foi solto, sua
esposa fugiu com outro homem e se prostituiu. Mas
ele permaneceu fiel em oração, e, em encontros
posteriores com a mulher, ela ficou tão impressionada
com a atitude de compaixão e perdão da parte dele,
que acabou voltando para o marido.
Durante algum tempo, ele realizou reuniões de
oração em seu pequeno apartamento, convidando
todos os vizinhos. Um ex-detento que assistiu a uma
dessas reuniões, afirmou:
— Quando vi o que aconteceu com esse meu
amigo, não pude deixar de receber a Jesus em meu
coração.
E Deus não operava apenas no coração dos
criminosos, mas em várias ocasiões tocou
profundamente na vida de pessoas ligadas aos
processos. Quando Ah Kit foi julgado, eu, Jean e
vários outros membros de nosso grupo fomos assistir
ao julgamento.
Após o veredito, quando o juiz o confiou às
nossas mãos, um inspetor de polícia procurou-nos
mostrando-se muito interessado em nosso trabalho.
Sugeriu que fôssemos almoçar juntos para
continuarmos a conversa. Várias horas depois, ele
conseguiu dizer o que estava querendo.
— Sei que o que vou dizer é meio estranho,
principiou, mas, quando vocês entraram no tribunal
hoje de manhã, olhei para vocês, e, bom... parecia que
havia uma auréola na cabeça de cada um.
Não tive vontade de rir; pelo contrário, engoli
em seco várias vezes.
Nós o convidamos para a reunião de oração dos
sábados à tarde, e ele compareceu. Acho que nunca vi
uma pessoa que ficasse tão tocada por uma reunião de
oração. No final, comentou:
— Normalmente, aos sábados à noite, saio com
os colegas para beber. Mas hoje estou vendo que vocês
aqui estão realmente sendo inspirados por uma coisa
que não compreendo bem.
Fiquei aliviada ao ouvi-lo emitir um comentário
tão positivo; pois, durante a reunião, uma das moças
se aproximara dele e lhe indagara sem rodeios se era
salvo. Fiquei preocupada, pensando que ele pudesse
ter ficado agastado com um "ataque" tão direto. Mas
não. E ao sair, levou consigo um exemplar do livro de
Jean.
Leu-o durante todo o domingo. Afinal, teve que
ajoelhar-se e orar. Em seguida, ligou-nos e disse que
queria receber o batismo no Espírito Santo.
— Não consegui dormir, explicou. Fiquei só
pensando no que vi ontem à noite; vi gente falando
em línguas; vi com meus próprios olhos como a vida
dos moços foi transformada. E cheguei à conclusão de
que Jesus tem que ser mesmo real. E hoje pela manhã
orei a ele pedindo que entrasse em minha vida.
No domingo seguinte, ele foi batizado no mar,
juntamente com a esposa e com um antigo
quadrilheiro.
Logo, muita gente ficou sabendo da conversão
do policial. Seus amigos notaram que sua vida
mudara completamente. A conversão de Ted causou
um grande impacto no Departamento de Polícia de
Hong Kong.
Não muito tempo depois disso, um de seus
colegas, que fazia oposição à sua conversão, disse-lhe:
— Pelo menos espero que você não tente
mudar-me.
— Não, replicou Ted, não estou tentando
modificar você. Sei que quando você se arrepender
tudo vai-se acertar.
— Bom, mas se eu "apagar" antes?
— É, realmente isso pode acontecer, replicou
Ted.
14
E Pôr em Liberdade os Cativos
Certo dia recebi uma belíssima carta de um
chinês de Taiwan, que se encontrava preso no centro
de triagem, aguardando julgamento. Na ocasião em
que o conhecera ali, era um homem revoltado, cheio
de ódio. Em suas roupas havia uma tarja branca, que
indicava ser ele um indivíduo perigoso. Na mesma
cela, estava com ele um rapaz da Cidade Murada, que
lhe falara a meu respeito.
Então fui falar de Jesus a Ah Lung. O que ele
esperava era que eu iria ajudá-lo a sair da prisão.
Contudo, depois de ouvir-me, disse que queria crer no
Senhor. Respondi-lhe que teria de perdoar os guardas
da cadeia e abandonar os ressentimentos.
— Não me peça para fazer isso, resmungou.
Nunca poderia amar esses homens.
— É lógico que não pode perdoá-los, enquanto
não compreender que você foi perdoado.
Expliquei-lhe que, fosse o que fosse que tivesse
feito, Jesus perdoaria seus pecados. A seguir, orei, e
senti o impulso de falar em língua estranha. Então ele
pôs-se a interpretar-me em voz suave.
— Deus me falou que não poderá me perdoar,
enquanto eu não perdoar a outros. Então, voluntaria-
mente, perdôo os guardas.
E ele se tornou um detento-padrão. Modificou
seu depoimento, declarando-se culpado no tribunal.
Mais tarde nos disse:
— Tive que reconhecer que fiz uma porção de
coisas erradas. Foi a primeira vez em minha vida que
admiti que estava errado.
Ah Lung testemunhou para um rapaz que
estava aguardando o julgamento por crime de
estupro, e que assistiu a um dos estudos bíblicos que
eu realizara no centro.
— Vi o que aconteceu com Ah Lung, quando
creu em Cristo. O que há nisso tudo que faz um
homem durão tornar-se uma pessoa de coração
brando? Quero conhecer este Jesus.
Expliquei-lhe que Jesus era o Filho do Deus
to-do-poderoso, que morrera pelos pecadores.
— Você crê que ele era o Filho de Deus?
perguntei. -
— Não entendo bem essas coisas, respondeu, os
olhos fixos no tampo da mesa.
— Mas você deseja crer?
— Está bem, respondeu, continuando com os
olhos baixos.
— Crê que ele morreu pelos seus pecados?
— Isso também eu não entendo.
— Não tem importância se você não
compreende bem essas coisas. Deseja crer nisso?
— Está bem, respondeu, ainda sem erguer a
cabeça.
— Crê que ele ressuscitou dos mortos?
— Ah, creio, disse prontamente, e afinal ergueu
o rosto.
— Por que tem tanta certeza disso, mas não tem
certeza das outras coisas? indaguei curiosa.
— Porque senão você não estaria aqui na cadeia
conversando comigo.
— Pois bem, você deseja segui-lo? perguntei.
— Se ele é o Deus verdadeiro, é lógico; a quem
mais eu iria seguir?
— Está bem. Jesus lhe dará poder para viver a
vida cristã, pois ele não espera que você tenha essa
vida obedecendo a um conjunto de regrinhas. Isso é
impossível. Ele irá dar-lhe seu Espírito, para que este
o ajude nisso.
Duas semanas depois, vi no jornal que seu caso
tinha sofrido uma reviravolta. No julgamento, ele se
dirigira ao juiz e dissera:
— Meu advogado instruiu-me para dizer-lhe
que sou inocente, mas tenho que confessar que sou
culpado, pois agora creio em Jesus.
Foi sentenciado a nove anos de detenção.
Quando fui visitá-lo na penitenciária, sorriu para
mim.
— Estou tão feliz de saber que meus pecados
foram perdoados, Sr.ta Poon, exclamou ele.
E nunca cessava de testemunhar de Jesus aos
outros, dizendo:
— É maravilhoso saber que Jesus levou sobre si
todos os nossos pecados, até o tão terrível estupro.
Essa atitude se acha em franco contraste com a
que vi em Daih So, quando fora visitá-lo, havia dois
anos, no mesmo lugar. Não tivera permissão para
utilizar uma sala privativa, e conversara com ele no
salão geral. Os prisioneiros ficavam dentro de um
compartimento, e a parede de separação consistia
numa telinha muito fina, que não me permitia ver
claramente suas feições.
Daih So tinha apenas trinta anos, mas como era
viciado em heroína desde os treze anos, parecia mais
um velho. Estava sempre babando, mas eu gostava
muito dele, pois parecia haver uma aura de inocência
em torno de sua pessoa. Certa vez, ele me deu a mais
clara definição de pecado que eu já ouvira até então.
— O que é pecado? perguntara-lhe.
— Isso é simples, replicara. Pecar é andar em
nossos próprios caminhos.
Mas aquele dia na prisão, sua atitude era outra.
— Não adianta ficar conversando comigo, Sr.ta
Poon, falando que tenho de largar as drogas. Isso é
impossível. Também não me peça para orar. E se
deixar uma Bíblia aqui, não vou lê-la.
E assim dizendo, deu-me as costas, para
encerrar a conversa.
Saí dali profundamente desolada, mas
continuei orando por ele. Aquele pobre homem estava
convicto de que não poderia parar de tomar drogas na
cadeia.
Mais ou menos uns seis meses depois, eu
.estava andando pela Cidade Murada, quando um
desconhecido meio gorducho correu para mim.
— Poon Siu Jeh! Sou eu, Daih So!
— Daih So, você saiu da cadeia? E por que está
tão bem assim?
— Eu queria mesmo contar a você. No dia em
que foi lá falar-me de Jesus, eu não queria ouvir, e
chamei o guarda para me levar de volta. Mas quando
cheguei à porta, olhei para trás e vi você sentada,
parecendo tão triste. De repente, senti uma forte
convicção e pedi ao guarda para voltarmos.
Entretanto, quando voltei, você já tinha saído. Então
fiz o que tinha me falado. Cheguei à cela e orei em
nome de Jesus, e assim fiquei liberto da droga.
Houve ocasiões em que mandamos pessoas
para a cadeia, em vez de ajudá-las a escapar dela.
Muitos dos rapazes que chegaram à nossa casa tinham
cometido crimes, pelos quais nunca haviam sido
presos.
É verdade que tinham deixado para trás todo o
passado, mas, às vezes, algumas coisas ficavam a
importuná-los, e tinham que reparar o erro no plano
humano também.
Ah Wah, por exemplo, queria ir à delegacia
para entregar-se, por ter deixado de se apresentar
quando devia. Ele fora preso em julho por posse de
drogas, mas foi solto sob fiança, com a instrução de
apresentar-se no tribunal daí a duas semanas.
Naturalmente, ele não tinha a mínima intenção de
apresentar-se. Mas não sabíamos disso, e o recebemos
numa das Casas de Estêvão em novembro.
Os meses foram-se passando, e sua consciência
começou a importuná-lo. Então ele confessou que
deveria ter ido a julgamento. Conversando com Ah
Wah achei que a possibilidade de ele ser liberto era
ínima. Quando cometera o último delito, encontra-se
cumprindo pena em liberdade. Então, era bem
provável que fosse preso ao apresentar-se. Seria muito
difícil evitar isso. Disse a ele e a todos os rapazes de
nossas casas que orassem.
Todos oramos muito em línguas naquela
manhã de segunda-feira. Afinal, seguimos para a
delegacia, onde nos serviram um cafezinho e pediram
que esperássemos. Dissemos várias vezes que Ah
Wah deveria ser preso, mas não pareciam muito
interessados. Afinal, levaram-no para tirar impressões
digitais, para fazer uma identificação precisa. Estava
com tão boa aparência, que os homens que estavam
tirando as impressões pensaram que fora ali para se
candidatar a um emprego. Afinal ele conseguiu
convencê-los de que fora entregar-se, explicando que
Jesus transformara sua vida.
Finalmente, chegou o momento em que fomos
convidados a entrar numa viatura, e nos dirigimos
para o tribunal, orando todo o tempo. O juiz pergun-
tou-lhe por que não fora apresentar-se, e ele respon-
deu:
— Eu era viciado, e sinto muito ter agido assim.
Mas agora creio em Jesus, e vim para entregar-me.
— Meu parabéns, disse o magistrado, tomou
uma decisão muito sensata. Desejo-lhe muitas
bênçãos nesta nova vida. Pode ir.
Ah Wah apenas teve que assinar um
compromisso de boa conduta, e, depois disso, nunca
mais foi preso. Ficou muito feliz e aliviado, e quando
chegou de volta, houve um grande regozijo em nossas
casas.
De meu contato com tantos detentos, aprendi a
fazer diferença entre os termos hauh-fui (sentir muito)
efui-goih (arrepender-se). Muitos criminosos ficavam
bastante sentidos por terem sido presos, mas bem
poucos se arrependiam do erro cometido.
Um dos que estavam constantemente errando
era Ah Bill, que ficou em nossa casa apenas dez dias, e
afinal resolveu que já estava apto a cuidar, ele mesmo,
de sua vida. Mas não sabia o que fazer com a
liberdade e com as decisões que tinha de tomar. Foi
preso e escreveu-me da cadeia.
Querida Pullinger,
Faz muito tempo que larguei o povo aí da casa.
Espero que Jesus os abençoe em tudo.
Terei que ficar aqui dez meses, depois então
poderei ter minha nova vida de novo. Espero poder
arrepender-me e ser aceito pelo Senhor mais uma vez.
Orem por mim, sim?
Fui transferido de área, pois fiz uma coisa
muito errada aqui na prisão. Mas agora está tudo
certo, pois aprendi a ser obediente. Você tinha-nos
visitado e ensinado a Bíblia para nós, mas não dei
ouvidos e desobedeci aos regulamentos.
Logo que vim para a prisão, eu costumava ir à
capela todos os domingos e orava em língua estranha
todas as noites. Alguns dos homens aqui diziam certas
coisas a meu respeito. Diziam por exemplo:
— Você crê em Cristo, mas mesmo assim tem
que ficar preso.
Naqueles momentos, eu ficava com muita raiva,
mas quando o milagre de Deus entrou em meu
coração, consegui esquecer as palavras deles.
Agora estou seguindo a Jesus. E para terminar,
quero dizer uma palavra aos novos irmãos. Deus nos
tem dado muitas oportunidades, mas será que a»
estamos levando a sério? Tenho passado por muitas
dificuldades, mas apesar disso pude receber um
pouco de sua graça.
Ficaria muito feliz de receber uma carta sua no
mês que vem. E eu responderia para fazer-lhe
algumas perguntas sobre a Bíblia.
Espero que esteja gozando boa saúde.
Ah Bill.
Ah Bill foi um dos que descobriram que era
mais fácil ser crente dentro de uma prisão. Não que
ele gostasse da cadeia; claro que não. Mas é que ali
não tinha que tomar ele mesmo as decisões de todos
os dias. E cada vez que era liberto, tinha menos
capacidade de viver do lado de fora.
Outro rapaz, Ah Kit, foi entregue aos nossos
cuidados e falou-me de Kwok, um amigo da cadeia.
Embora Kwok fosse policial, também era membro de
uma tríade, e participara de uma batalha entre qua-
drilhas. Um dos rapazes de outra quadrilha fora
morto durante a briga. Cinco dos quadrilheiros foram
julgados.
Era um rapaz tranqüilo, do interior, vindo de
Novos Territórios. Era muito cortês, de aparência
limpa. Quando lhe falei de Jesus, só conseguiu com-
preender que ele era o Filho de Deus.
— Mas que esperança há para mim? repetia ele
tristemente. Que futuro me espera?
— Você sabia que dois homens da Bíblia, dois
homens que Deus usou muito, mais que todos os
outros, tinham sido assassinos?
Ele teve uma expressão de espanto.
— Um deles era Davi, continuei, e o outro
Paulo. Paulo foi chamado para pregar a Boa-Nova do
perdão de Deus. E ele tinha matado os cristãos. Mas,
ao usar este homem, Deus mostrou todo o significado
do evangelho.
— Quer dizer então, disse Kwok, que além de
ser perdoado, posso vir a trabalhar para Deus?
Essa idéia de que poderia ser útil para Deus foi
de tanto estímulo para ele, que fez uma oração
jubilosa, como se seu coração estivesse estourando de
regozijo.
Dois dias depois fui visitá-lo novamente. Estava
radiante.
— Sr.ta Poon, disse ele, tenho uma paz tão
grande no coração. Agora sei que meu passado foi
perdoado e tenho esperanças para o futuro. Não me
importa se serei condenado ou não. Agora tenho
esperança.
No dia seguinte, ele foi sentenciado à morte.
Lembro-me de que fiquei a observá-lo no momento
em que era pronunciada a sentença. Estava profunda-
mente calmo. Mas o outro rapaz que fora condenado à
morte juntamente cóm ele estava aterrorizado.
Levantou os braços algemados até a altura do pescoço
fazendo a mímica do enforcamento, e riu.
Nos dois anos que se seguiram não consegui
mais entrevistar-me com Kwok. Por fim, sua sentença
foi comutada para prisão perpétua.
Afinal, quando pude vê-lo novamente,
sentia-me muito nervosa, pois conversara com ele
apenas duas vezes, tendo-lhe falado muito sobre
Deus. Ele sabia que Jesus era o Filho de Deus, que ele
o amava e morrera por ele, e tinha orado e recebido o
poder do Espírito Santo. E era só isso.
— Coitado, pensava eu, provavelmente já
esqueceu tudo que lhe falei.
Quando entrei, não sabia exatamente o que ia
encontrar. Mas ele veio correndo para a sala de visitas,
muito radiante. Nunca tinha visto uma alegria tão
pura no rosto de um homem.
— Oh, Poon Siu Jeh, falou quase sem fôlego,
tudo isso é maravilhoso! Tenho uma paz tão grande
no coração, uma alegria tão grande de saber que meus
pecados estão perdoados. Oro todos os dias em minha
cela, de manhã e à noite. Oro naquela língua que Deus
me deu, e sei que ele compreende o que vai em meu
coração. Tenho falado aos outros presos sobre Jesus, e
uns seis deles creram também. Aqui está o nome
deles.
Deu-me uma lista com os nomes, e mais tarde
os visitei. Um deles era o rapaz que fizera a mímica do
enforcamento no dia do julgamento. E eles eram
realmente crentes. Jamais conheci um grupo de ho-
mens que entendesse o que significava Jesus ter dado
a vida por eles, melhor do que aqueles ali.
Dei uma Bíblia a Kwok, e ele leu o Novo Testa-
mento em dois meses. E leu-o duas vezes antes que eu
o visse novamente e ele pudesse perguntar-me:
— Ah, Sr.ta Poon, o que significa "gentio"?
Os seus convertidos também se desenvolveram
bastante. Tinham seus próprios cânticos, que o Espí-
rito Santo lhes inspirava. E oravam uns pelos outros,
quando adoeciam.
Certo dia visitei Kwok, e estava um pouco
temerosa de que não me dessem permissão para
vê-los mais.
— Não se preocupe conosco, Poon Siu Jeh,
disse-me sorrindo, procurando reanimar-me. Estamos
muito bem. Estamos orando por você.
São os homens mais livres que conheço.
Recebi várias cartas deles, e alguns jovens de
nosso grupo escreveram para eles também, inclusive
alguns estudantes.
Prezado William,
"Graças sejam dadas ao Senhor Jesus Cristo,
pois pelo seu maravilhoso nome nós nos conhecemos.
Glória a Deus!
"Quero agradecer-lhe muito por ter-me escrito
palavras de encorajamento e ensino, para eu com-
preender o amor de Deus. Jackie costuma visitar-nos
aqui na prisão todos os meses, para explicar-nos o
evangelho. Realmente estamos muito tocados por isto,
pelo grande amor de Deus. Todas as vezes que ela
vem, nos sentimos muitos felizes. Acredito
firmemente no que a Bíblia nos afirma sobre Jesus
Cristo ter morrido por nós, e, com toda sinceridade,
espero fazer o máximo por ele.
"Pelo poder do Espírito Santo, Deus me tem
dado muitas oportunidades de testemunhar a outros
aqui, e muitos deles querem falar com Jackie, mas
tenho a impressão de que têm segundas intenções.
Mas eu apenas oro para que o Espírito Santo opere no
coração deles, para que sejam totalmente
transformados.
"Por favor, ore por nós aqui.
"Saúdo-o no mome de Jesus.
Kwok."
Na primeira vez que visitei Ah Lung conheci
um outro prisioneiro que estava sendo julgado por ter
tentado entrar em Hong Kong, com uma grande
quantidade de heroína, a maior que já se descobrira
num navio. Logo que o conheci, começou a discutir
comigo sobre os pormenores de seu processo.
— A única razão por que estou aqui, disse-lhe, é
falar-lhe sobre Jesus.
— Mas não posso tornar-me cristão, replicou
Go Hing. Deixe-me contar-lhe uma história.
Há mais de vinte anos, uma familia chinesa
fugiu da China para Taiwan. Nessa família havia um
garotinho de mais ou menos quatro anos. Certo dia,
ele saiu de casa e foi brincar com um amigo no pátio
da escola. Ali havia uma lagoazinha. E ele caiu dentro
dela. O amiguinho dele ficou tão apavorado, que saiu
correndo e não disse nada para ninguém.
Horas depois, o diretor da escola voltou ali e
viu, horrorizado, o corpo do menino boiando na água.
Puxou-o para fora, mas não conseguiu reanimá-lo
mais. Mandou chamar os pais, e a mãe ficou fora de si
de desespero, e insistiu para que o levassem a um
hospital. Naturalmente, já era tarde demais para
salvá-lo, e os médicos deram o atestado de óbito.
Afinal, com muita tristeza, a mãe levou o corpinho do
filho para casa e vestiu-o com uma mortalha. Bem no
meio da noite, o garoto sentou-se e disse:
— Por que estou vestido com essas roupas? A
mãe pensou que se tratasse de uma visão.
— Você se lembra de que caiu dentro da lagoa?
indagou ela.
— Lembro. Estava afundando na água e abri a
boca para gritar pedindo socorro, mas a água entrou
por ela. Nesse instante, vi um homem vindo em
minha direção.
— Um homem? Quem era ele? indagou a mãe.
— Bom, ele veio e me tirou da água, respondeu
o garoto.
— Sabe o nome dele? perguntou ela.
— É Jesus, replicou o menino.
Aquela família nunca tinha ouvido falar de
Jesus antes. Mas, daquele dia em diante a mãe e toda a
família tornaram-se discípulos de Jesus.
Go Hing contou-me essa história com muita
emoção. Depois perguntou:
— Sabe por que conheço essa história? Eu era
aquele menino. Voltei da morte, e desde então minha
família sempre foi crente. Mas não posso ser crente
porque eu conhecia a verdade, e não segui a Jesus.
— Pois tenho uma coisa muito boa para lhe
dizer, Go Hing. Jesus não espera que o sigamos com
nossas próprias energias. Portanto, se você disser a ele
que está arrependido e pedir-lhe perdão, ele o
perdoará. Ele lhe dará poder para segui-lo. Também
lhe dará uma nova língua, para se comunicar com ele.
Ali mesmo nós oramos, e ele começou a orar em
língua estranha; depois pôs-se a chorar. Após alguns
instantes disse:
— Essa é a primeira vez que choro, desde que
me tornei adulto. Agora sei que Jesus está comigo.
Passados alguns dias, fui visitá-lo novamente e
conversei com ele.
— Você sabe que deve confessar a verdade no
tribunal, não é?
— Estou com muito medo, replicou. Não vou
conseguir.
— Mas você tem de falar a verdade. Você agora
é crente.
— Se me confessar culpado desse delito, serei
condenado à morte. Em Taiwan, dão pena de morte
para tráfico de drogas, assalto à mão armada e por
assassinatos.
— Estou só dizendo que você tem de falar a
verdade, disse-lhe. Sabe que Cristo salvou sua vida, e
não pode obedecê-lo apenas parcialmente.
O rapaz foi sentenciado a doze anos de
detenção. Pouco antes de voltar à Inglaterra, pude ir
visitá-lo na Prisão Stanley. Logo que olhei para ele
através do vidro de comunicação, começou a chorar,
mas estava sorrindo.
— Só quero lhe dizer uma coisa, falou. Sou
conhecido como um homem muito durão. Fui mari-
nheiro muitos anos, e não tenho medo de ventos e
ondas bravias. Quando fui preso, sabia que ia passar
muitos anos sem ver minha esposa e filhos, mas não
chorei. Só houve duas ocasiões em minha vida em que
chorei. Uma foi quando você me visitou na prisão e
recebi a Jesus e seu Espírito Santo; e a outra é agora.
Hoje estou chorando de alegria, porque sei que meus
pecados foram perdoados. Quando você me disse que
eu devia confessar a verdade, eu não tinha a menor
intenção de fazê-lo, mas fiz um acordo com Deus. Eu
disse a ele: "Se ela vier me visitar hoje, à tarde
confessarei a verdade." Você veio, então revelei à
polícia que havia mais heroína naquele navio. Natu-
ralmente, meus colegas ficaram furiosos comigo, por-
que havia ali uma fortuna escondida. A polícia não
ficou satisfeita, porque isso a deixou muito mal vista.
O juiz ficou com raiva e me deu uma sentença pesada.
E aqui ele sorriu para mim e concluiu.
— Sei que tenho uma sentença pesada, mas
meus pecados estão perdoados, e um dia irei para o
céu. E isso é melhor do que ter uma sentença leve
aqui, e depois ir para o inferno.
15
Andar no Espírito
Certa vez, um marinheiro americano resolveu
me passar um sermão por causa do meu dom de
línguas. Achava que eu estava exagerando um pouco.
Ele próprio tinha o dom, mas exercitava-o com muita
parcimônia. Expliquei-lhe que sempre falava em lín-
guas, quando andava pela Colônia, pelas ruas. E
convidei-o para acompanhar-me numa de minhas
rondas por Hong Kong, orando os dois, sem cessar.
No dia seguinte, nos encontramos e fomos
caminhando do Setor Oeste até o cais.
Numa das ruas, uma rua tão íngreme que era
feita de degraus, vimos um homem que morava num
armário. Durante o dia, ele vendia verduras ali, e, à
noite, subia nele para dormir. Com uma população de
quatro milhões e meio de pessoas, ocupando cada
metro quadrado do lugar, havia famílias inteiras
morando num só cômodo.
Um pouco mais abaixo, encontramos uma
velhinha que estendeu-nos uma tijela de plástico.
Ninguém na cidade tinha dinheiro ou espaço
sobrando, então ela ganhava a vida mendigando.
Continuando a caminhada, vimos uma
garotinha de mais ou menos cinco anos, carregando às
costas uma criancinha, pois os pais tinham que
trabalhar. Ninguém estava cuidando da pequenina e
suja menina de cinco anos, mas ela estava cuidando
do nenê.
Depois passamos por um rapazinho que pagava
para ter o privilégio de dormir em cima de um balcão
de loja. Parara de estudar logo após o curso primário.
Queria continuar estudando, mas os pais o
haviam tirado da escola para trabalhar. Todas as vezes
que o encontrava, pedia-me para falar inglês com ele,
para praticar um pouco e poder conseguir um
emprego melhor.
Chegando ao fim da rua, eu tinha a sensação de
que passara toda a minha vida ali, e que poderia amar
todas aquelas pessoas e conhecê-las bem. Mas entra-
mos na outra rua, que era uma réplica da primeira. E
depois desta, outra igual. Contei ao marinheiro como
havia perguntado a Deus que setor de sua obra iria
caber a mim, e ele me respondera enviando-me para a
Cidade Murada, e concedendo-me os maravilhosos
eventos dos doze anos seguintes.
Aquele marinheiro ficou pasmado com essa
nova visão que tivera de Hong Kong. Mas meu
objetivo naquele dia fora incentivá-lo a andar no
Espírito. Então comecei a orar, à medida que
caminhávamos mais. Atravessamos a baía e chegamos
à Rua Jordan. Entramos num prédio que alardeava
bordéis e dan-cings, um lugar onde os viciados em
heroína se reuniam. Havia várias pessoas deitadas
pelas escadas. Estávamos procurando um certo
marginal. Eu fora ali à procura de Mau Wong, que era
"protetor" de várias prostitutas, e assim ganhava
bastante dinheiro.
Quando o encontramos, estava em péssimo
estado. Sentia forte dor de estômago e vomitava
muito. Não se achava em condições de ouvir-me falar
de Jesus, e então eu e o jovem americano
simplesmente impusemos as mãos sobre ele e oramos
silenciosamente, no Espírito, pedindo sua cura.
Imediatamente, a dor passou, e em sua fisionomia
surgiu uma expressão de espanto. Podia afinal
sentar-se tranqüilamente e escutar-nos. Aceitou a
Jesus e foi batizado no Espírito no mesmo instante.
Mal termináramos de orar, quando ele se ergueu, saiu
correndo, e voltou daí a pouco trazendo consigo um
homem de magro e chupado. Mau Wong explicou que
aquele seu amigo estava com dor de dente. Será que
poderíamos orar por ele? Então oramos por aquele
outro também. Foi curado na hora, e depois lhe
falamos de Jesus. Ele também quis receber a Cristo e
seu Espírito, e o fez imediatamente.
Tive oportunidade de visitar Mau Wong várias
vezes, para falar-lhe mais a respeito de Jesus. Da
segunda vez em que o vi, explicou-me que, como era
crente, tinha de ganhar a vida de forma honesta, e que
iria tornar-se engraxate.
Eu e o americano continuamos nossa ronda por
Hong Kong. Atravessamos a baía de volta e pegamos
um micro-ônibus para ir a Chaiwan. Eu ia orando o
tempo todo, em voz baixa. O moço achava que orar
num ônibus já era demais, mas depois do que vira na
Rua Jordan, pôs-se a orar também. O dia inteiro nós
oramos sem cessar, parando apenas para as refeições,
ou para conversar com as pessoas que encontrávamos
pelo caminho.
Em Chaiwan, fomos para um salão de drogas.
Receberam-nos como se já estivessem nos esperando.
— Poon Siu Jeh, disse-me um viciado, pode
arranjar-me uma Bíblia?
Um velho indagou:
— Onde posso ir para ouvir mais a respeito de
Jesus e sua doutrina?
— Você não precisa ir a um culto, para ouvir
falar de Jesus, respondi. Eu mesma posso falar-lhe.
Sentei-me ali e pus-me a explicar o plano da
salvação, e um bom grupo foi-se aglomerando ao nos-
so redor para escutar-nos. O velho aceitou a Jesus com
a sinceridade de uma criança. Depois passou a fre-
qüentar regularmente nossas reuniões aos sábados.
Quando saímos, Ah Wing nos acompanhou.
Era um dos homens que vendia heroína. Paramos
numa barraca de lanches para comer, e ele também.
Mas era só isso que queria, uma refeição gratuita. Eu
estava-lhe falando de Jesus, mas ele estava-se
apressando para podermos ir logo comer.
— Está disposto a crer que Jesus é o Filho de
Deus? indaguei.
— Não tenho certeza, replicou. Talvez.
— E você crê que ele morreu por você?
— Não entendo isso.
— Isso não tem importância. Quer crer?
— Está bem, resmungou ele.
— Está disposto a crer que ele ressuscitou dos
mortos?
— Bom, acho que ele deve ter ressuscitado
mesmo, aquiesceu.
— E você quer segui-lo?
— Ah, quero, isto é, se ele é mesmo o Deus
yerdadeiro, é lógico.
— Ah Wing, por que não pergunta a Deus se
Jesus é o Filho dele ou não? Tenho certeza de que ele
responderá, disse-lhe, e pus-me a orar silenciosamen-
te, fazendo um aceno ao americano, para que se
juntasse a nós.
Alguns instantes depois, ergui a cabeça,
julgando que já havíamos orado o suficiente. Mas,
quando olhei para aquele traficante de drogas, vi que
ainda estava orando, e continuou a orar por muito
tempo. O marinheiro fora sentar-se numa outra
banqueta, procurando dar a entender que não tinha
nada conosco. Mas, quando viu a expressão do rosto
de Ah Wing, sua atitude mudou inteiramente. Suas
feições tinham uma aparência celestial. Afinal,
quando levantou o rosto, perguntei:
— O que foi que viu?
— Bem, quando estava orando, vi uma espécie
de um quadro, e acho que era Jesus. Estava sentado a
uma longa mesa e havia outros homens em torno dela.
Estavam passando uns para os outros um pedaço de
pão, e depois um cálice de vinho, e todos bebiam.
Expliquei-lhe que aquilo significava, que Jesus
havia dado seu corpo e seu sangue por nós.
Na continuação de nossa caminhada, mais duas
pessoas se converteram, e meu amigo americano não
precisou mais de argumentos sobre o valor de se orar
no Espírito.
O marinheiro escreveu ao casal Willans
indagando se poderia trabalhar conosco, depois que
desse baixa da marinha. Eles responderam que àquela
altura poderíamos ter cinco casas, cinqüenta, ou
nenhuma. E que estaríamos nas mãos de Deus, para
agir do modo que ele determinasse, quer nos
mandasse ir para a China, ou incumbisse-nos de
instalar mais doze apartamentos para os rapazes.
Muitas vezes, não tínhamos onde abrigar
aqueles que ganhávamos para Cristo. Eu achava que
tinha a responsabilidade de cuidar de cada um, até
que ele acertasse a vida. A maioria deles não tinha um
lar, nem roupas, lutavam com sérios problemas de
personalidade, bem como vício de drogas e doenças
diversas.
Mais tarde, senti que devia voltar a Chaiwan e
procurar Ah Wing para fazer com ele um trabalho de
consolidação. Não o encontrei, mas vi Ah Kwan, que
conversava com alguns traficantes de droga. Todos
me trataram muito bem, mas senti que devia
dizer-lhes que, embora Jesus os amasse e eu também,
o negócio que faziam era repulsivo. Ah Kwan disse
que só poderia arrepender-se na semana seguinte,
pois precisavam dos lucros dos três dias seguintes.
Respondi-lhe que ninguém pode escolher a hora para
se arrepender, e que se ele não seguisse a Jesus
imediatamente, iria preso dentro de poucos dias.
Quatro horas depois, foi apanhado e sentenciado a
trinta dias na cadeia. Então espalhou-se em Chaiwan o
boato de que eu era profeta.
Nunca mais vi Ah Wing, o traficante, mas
confiei plenamente em que Deus cuidaria dele melhor
do que eu poderia fazê-lo, já que ele o ama mais que
eu.
Voltei então ao ponto de partida: primeiro,
crera que Deus pode curar um viciado em drogas
instantaneamente. Depois, que ele só poderia
firmar-se, se eu pudesse fornecer-lhe uma atmosfera
de segurança. Finalmente vim a crer que poderia
deixá-los inteiramente aos cuidados do Senhor.
Um outro irmão carnal de Goko voltou do
Canadá. Era um homem alto, de modos brandos,
impeçavelmente vestido. Conhecemo-nos no
casamento de Johnny. Ele convidara membros de sua
antiga quadrilha para que seu casamento fosse um
testemunho para eles.
— Tenho que dar-lhe um aperto de mão, Sr.ta
Pullinger, disse-me o irmão de Goko. Criei-me na
Cidade Murada com esses rapazes, e decidira estudar
direito para ajudá-los. Mas agora estou vendo que não
há mais nada para eu fazer. Você já fez tudo.
Prontamente recusei seus louvores,
explicando-lhe quem realmente fizera toda a obra.
Fomos caminhando pelas ruas da Cidade
Murada em direção ao clubinho. Muitos dos negócios
ilícitos da Cidade Murada haviam-se fechado. Isso se
devia em parte ao fato de que muitos dos rapazes da
14K tinham-se convertido.
O irmão de Goko entrou ali e logo gostou. Nas
noites seguintes, assistiu às nossas reuniões e conver-
sou comigo.
— Como resolve seus problemas de dinheiro?
indagou ele um dia.
— Ah, Deus cuida de nós, repliquei. Quando
precisamos de dinheiro, oramos.
— Está bem, mas, falando de maneira prática, de
onde ele vem? Ele não cai do céu, cai?
— Bem, isso até pode acontecer, respondi.
Naquele momento bateram à porta e entrou um
velhinho, que me entregou um envelope.
— Poon Siu Jeh, disse ele, eu estava andando
pela rua e uma pessoa me entregou esta carta.
Olhei para ela. Estava escrita em inglês: "Jackie
Pullinger — Walled City (Cidade Murada)." E era só.
Abri-a, e dentro havia a quantia de cem dólares,
enviada por um homem que eu não conhecia e de
quem nunca ouvira falar. Mostrei aquilo para o irmão
de Goko, e ele ergueu as mãos.
— Eu me rendo, falou. „
Depois ele se foi, e saí por aquelas ruas sozinha,
passando pelas prostitutas, pelos cinemas pornográfi-
cos, pelos salões de drogas e jogatina. Passei pelo
lugar onde, um ano antes, tinha presenciado um
começo de briga entre dois desconhecidos, brandindo
facões.
Saí da cidade e passei pelo local onde estivera o
prédio da Rua Lung Kong; era apenas um monte de
entulho. Lembrei-me de que Goko morava no edifício
do outro lado da rua.
Alguns meses antes, sua esposa havia
desaparecido, após perder uma grande quantia em
dinheiro no jogo. Estava com muito medo de voltar
para casa, sabendo que ele iria castigá-la severamente.
Então raptou um filho dele com uma antiga amante, e
escondeu o garoto, de apenas quatro anos, num
apartamento. Depois telefonou para ele e disse que
devolveria a criança, se ele perdoasse sua falta. Ele
não quis prometer nada, e logo colocou os quadrilhei-
ros na pista do apartamento. Mas a esposa dele não
queria ficar à espera de que ele a encontrasse.
Aterrorizada com o marido, forçou o garotinho a be-
ber veneno e depois bebeu também, e ambos morre-
ram.
Eu tinha feito o propósito de ver Goko pelo
menos uma vez por ano, e quando nos encontramos
outra vez para tomar chá, apresentei-lhe minhas
condolências. Fez uma expressão de desdém quando
mencionei a esposa, mas pude sentir que sofria pela
perda do filho. Percebi nele também medo da solidão,
e como queria tanto ganhá-lo e tocar seu coração,
disse-lhe que percebera seus temores.
— Como você sabe? Nunca contei a ninguém
que tenho medo, confessou ele.
E Goko disse-me que nunca falara de seus
sentimentos a ninguém.
Tanto Goko como Sai Di tinham atitudes seme-
lhantes com relação a Cristo, mas o irmão canadense
se confessava crente abertamente.
— Não estou dizendo que não creia em Jesus,
diziam eles. Mas tenho observado vocês, os crentes, e
já notei que a maioria ganha muito pouco em seus
empregos. Mas eu tenho que mentir, roubar, trapacear
para sustentar minha família, e sei que os crentes não
podem fazer essas coisas. Por isso não quero ser
crente, porque, se o fosse, queria ser um crente de
verdade. Sei que Jesus pode me sustentar, mas quero
ter certeza de que ele irá sustentar também os meus
seguidores.
Sempre respeitei a opinião desses dois irmãos, e
tenho orado para que eles vejam que Deus é suficien-
temente poderoso para suprir todas as suas
necessidades. Mas estou certa de que nenhum deles
fará uma entrega pessoal insincera. Muitas vezes, em
minhas conversas com Goko, tenho-o ouvido dizer:
— Está bem, se aquele irmão deseja ser crente,
tudo bem. Mas que siga a Jesus direitinho. Não quero
que ele saia daqui hoje e volte amanhã. Se quer ser
crente, então que seja um bom crente.
Afastei-me da casa de Goko e dirigi-me para as
Casas de Estêvão, onde os rapazes que continuavam a
caminhar no Espírito se tornavam homens dignos de
todo respeito e confiança. Os que tinham conhecido a
Cristo, mas deixavam as casas prematuramente, a fim
de seguir seus próprios impulsos, sempre acabavam
tendo problemas.
Certa vez, um viciado de Chaiwan resumiu
tudo isso muito bem:
— Ouvi dizer que Jesus faz o mesmo milagre
para todos os rapazes que vêm a esse lugar. Mas sei
também que a decisão de perservar ou não, ah!, isso é
com o rapaz.
CONTRACAPA

Caça ao Dragão
No coração de Hong Kong, encontra-se a
temida Cidade Murada, verdadeiro inferno de tráfico
de drogas e de jogatina ilegal. Os forasteiros não são
bem recebidos ali. A própria polícia tem receio de se
aventurar naqueles domínios. Ali florescem a
prostituição, a pornografia e o vício da heroína. E
nessa área pequena e apertada vivem amontoadas
pelo menos trinta mil pessoas — talvez o dobro.
Quando Jackie Pullinger saiu da Inglaterra, não
tinha a menor idéia de que Deus a estava levando
para trabalhar justamente na Cidade Murada. Mas,
quando começou a falar de Jesus ali, rudes
quadrilheiros se converteram, prostitutas largaram o
ofício... e Jackie tropeçou na descoberta de um novo
método de tratamento para a dependência das drogas.
Caça ao Dragão é um relato honesto, desafiante e
inspirador, que revela a fibra, o amor e a dedicação de
uma jovem disposta a tudo para servir a Deus.

Editora Betânia
Leitura para uma vida bem sucedida

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