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Título do original em inglês:
Chasing the Dragon
Copyright © 1980, Jackie Pullinger.
Publicado na Inglaterra por Hodder
and Stoughton, Londres.
Printed in Brazil
Índice
Prefácio
Glossário
1. Rastros de Sangue
2. Para a China de "Canoa"
3. Uma Cidade Chamada Trevas
4. O Clubinho
5. Luz nas Trevas
6. As Quadrilhas
7. O "Irmão Maior" Está Olhando por Você
8. Perseguindo o Dragão
9. "Doenças" da Infância
10. É Jesus Mesmo
11. As Casas de Estêvão
12. Acolhendo Anjos
13. Testemunhos
14. E Por em Liberdade os Cativos
15. Andar no Espírito
Para minha família, especialmente meu Pai.
Glossário
Amah: empregado (a).
Congee: um mingau de arroz que se come no
café da manhã.
Daih lo: Irmão Maior.
Daih ma: Mãe Maior, a esposa mais velha de um
chinês.
Daih pai dong: barraca de rua.
For-gei: garçom ou operário.
Fui-goih: arrepender-se.
Gong-sou: conversações entre quadrilhas
inimigas, como tentativa de solucionar diferenças.
"Hai bin do ah?": De onde você é?
Hak Nam: Trevas (Nome que muitas vezes é
empregado para identificar a Cidade Murada de
Hong Kong.)
Hawh-fui: sentir muito um erro cometido.
Kai na: madrinha
Kai neui: afilhada (Estes dois termos são
empregados para designar o relacionamento de uma mulher
com uma criança que ela toma para criar.)
Kung-fu: um tipo de arte marcial chinesa.
Lap-sap: lixo.
Mama-san: mulher que tem a seu encargo várias
prostitutas jovens ou bar-girls.
"M'gong?": Não quer falar?
Mintoi: edredom.
"Moe yeh": Nada.
Pahng-jue: chefe de um salão onde se vende ou
toma drogas.
"Pa mafan": medo de complicações.
Pin-mun: comércio ilegal.
Poon Siu Jeh: Pullinger em chinês.
Sai lo: Irmão Menor.
Sai ma: Mãe Menor, esposa mais nova ou
concubina de um chinês.
Seui Fong
14 K Nome das diversas quadrilhas tríades que
são ilegais em Hong Kong.
Ging Yu
Wo Shing Wo
_____________________
*O grande líder da Inglaterra na II Guerra
Mundial, muito querido e respeitado por todo o
povo.
Eu e minha irmã estávamos sentadas à mesa do
internato tomando chá com o inevitável pão preto. A
cabeceira encontrava-se uma garota maior de nome
Mirissa. Pensei em iniciar educadamente uma conver-
sa, mas, infelizmente, escolhi o assunto errado. Tendo
ouvido a primeira transmissão radiofônica de um
programa de Billy Graham, mencionei como ficara
impressionada com o evangelista.
— Puro emocionalismo de massa! exclamou a
moça desdenhosa.
Eu tinha tanto respeito pela opinião das pessoas
mais velhas, que depois, todas as vezes que se con-
versava sobre isso na escola, eu dizia com ironia:
— Puro emocionalismo de massa!
Chegou a época de nossa "confirmação" na
igreja. Eu estava levando tudo muito a sério, mas
sentia que os outros só estavam interessados nas
roupas novas e no "chá de confirmação", que teríamos
depois da cerimônia. Meu medo era que o ministro
nos perguntasse, individualmente, em que críamos.
Mas ele não o fez. Contudo, resolvi fazer-lhe uma
pergunta.
— Em que devo pensar, no momento em que o
Bispo impuser as mãos sobre mim?
— Ah, bem... é... ore! disse ele afinal.
Eu e Gilly fomos até a frente e nos ajoelhamos, e
o Bispo impôs as mãos sobre nós. Só me recordo de
que, ao voltar para meu lugar, estava sentindo uma
grande alegria. Minha vontade era rir de felicidade.
Que atitude mais imprópria! Afinal, era um culto de
confirmação espiritual, e aquele era o momento mais
solene. O riso seria depois, na hora do chá. Eu tinha
pensado antes que gostaria de me comportar de
maneira bastante reverente e elegante nesse culto, e
não parecia haver nenhuma associação entre ele e
aquela alegria tão despropositada. Eu estava entre-
gando minha vida a Deus, e não esperava receber
nada em troca.
A primeira coisa que fiz depois disso foi pegar a
lista telefônica e procurar endereços de missões.
— Desejo ser missionária, escrevi para elas, e
creio que deveria começar a preparar-me desde já.
Quais os cursos que devo fazer?
Em resposta, eles me mandaram dizer que
haviam colocado meu nome no seu rol de associados
jovens.
Nas férias, geralmente, eu trabalhava na fábrica
de papai, ou então dava aulas particulares, ou funcio-
nava como "carteiro" para o Correio, na época do
Natal. Já me considerava uma pessoa integrada à
sociedade.
Depois, fui para o Real Conservatório de
Música, onde descobri que os músicos achavam que o
amor era o grande inspirador da música, e tive muito
trabalho para me livrar de um pistonista.
Vez por outra, eu passava pela sala da União
Cristã e via lá o quadro de avisos. Sentia um aperto na
consciência. Mas aqueles jovens ali me pareciam tão
desinteressantes e sem graça, e, além disso, na sua
maioria, eram organistas. Na cantina da escola, assen-
tavam-se sempre juntos, parecendo muito santos; não
me atraíam em nada. Não sabia sobre o que conver-
savam e nem me interessava saber. Davam a im-
pressão de serem muito solenes e tristes, e embora me
garantissem que minha vida mudaria depois que eu
viesse a "conhecer Jesus", eu não queria mudar para
ficar igual a eles.
Nesse tempo, eu gostava de freqüentar
festinhas, mas a principal forma de divertimento ali
ou era imoral ou desinteressante. Contudo, eu sempre
ia esperando encontrar ali o homem dos meus sonhos.
Foi só depois de muito tempo que compreendi que ele
nunca poderia estar presente numa daquelas festas.
Certo dia, eu estava no trem, voltando da escola
para casa, quando encontrei duas ex-colegas de esco-
la. Elas me convidaram para ir a uma reunião em uma
casa, onde um pregador maravilhoso faria palestras
sobre a Bíblia. E eu fui. Ele era realmente fabuloso.
Mas todas as outras pessoas também o eram. E o que
mais me impressionou foi que eram todos gente
normal, como eu. As moças usavam maquilagem. Os
rapazes conversavam sobre corrida de automóvel —
no entanto estavam ali porque desejavam estudar a
Bíblia. Naquele ambiente foi muito fácil falar sobre
Deus.
Contudo, eu ainda ficava incomodada quando
ouvia falar em céu e inferno. Mas o que mais me
transtornava era a idéia de que ninguém podia chegar
a Deus, a não ser por intermédio de Jesus. Compreen-
di que ou eu tinha que aceitar tudo que Jesus dissera a
respeito de si próprio, ou abandonar de vez a fé cristã.
E não foi sem relutância que orei a ele dizendo que
acreditava em tudo que ele dissera. E assim me
converti.
Passei a ter uma vida ainda mais cheia do que
antes. Pouco depois disso, um homem me perguntou
se eu acreditava em Deus.
— Não, respondi. Eu o conheço. É diferente.
Tenho paz e sei para onde estou indo.
Mas essa nova vida também me trouxe alguns
problemas. Certo dia, após o estudo bíblico, as moças
tiveram um momento de oração. Abri os olhos para
dar uma espiada. Sorriam parecendo muito felizes.
Fiquei abismada, pois se críamos que iríamos para o
céu por causa de Jesus, a recíproca também era
verdadeira — quem não cresse nele não iria. "Como
essas pessoas podem ficar sentadas aí sabendo disso?"
pensei. "E as pessoas que ainda não ouviram as
boas-novas?"
Em conseqüência disso, passei a tomar parte
numa cena que teria abominado, antes de minha
conversão. Estava tocando piano numa reunião de
jovens evangélicos em Waddon, cantando hinos sobre
a salvação. Foi aí que tive certeza de que minha vida
havia-se modificado mesmo.
Depois que me formei, comecei a dar aulas de
música. Mas eu queria dedicar toda a minha vida a
uma obra qualquer, em algum lugar. E não havia nada
que me impedisse de fazê-lo. Voltou-me a idéia de ser
missionária. '
Então escrevi para missões, escolas e
companhias radiofónicas da Africa. E todos
responderam da mesma forma — não queriam meus
préstimos.
— Ainda não podemos dar-nos o luxo de ter
músicos por aqui, diziam.
Não me deixei abater, e tratei de pedir
conselhos às pessoas que melhor pudessem me
orientar.
— O que você acha que devo fazer de minha
vida? indagava.
— Já orou pedindo a orientação de Deus?
replicavam.
Já havia orado, mas Deus ainda não tinha me
dado uma resposta clara. A Bíblia ensinava que eu
deveria crer e ele me orientaria. Uma noite, sonhei que
nossa família estava reunida à mesa da sala de jantar,
olhando um mapa colorido da Africa. Entre os
diversos países daquele continente havia um que
estava colorido de cor-de-rosa. Inclinei-me mais para
ver qual era. Estava escrito "Hong Kong".
Quando acordei, escrevi para o governo de
Hong Kong explicando que era professora de música,
formada, e gostaria de lecionar nesse país.
Responderam dizendo que não havia vagas para
músicos. Recorri então à minha sociedade
missionária. Impossível, responderam. Não aceitavam
candidatos a missionário com menos de vinte e cinco
anos. Eu teria que aguardar um pouco mais.
Ao que parecia, havia interpretado erradamente
o meu sonho.
Certa vez fui orar em uma pequena igreja de
um povoado, um lugar muito calmo. Ali tive uma
visão de uma mulher de braços estendidos, como se
estivesse implorando ajuda. Fiquei a me indagar o que
ela queria. Parecia desejar alguma coisa desesperada-
mente. Seria auxílios do Fundo Cristão? Depois, foram
surgindo umas palavras que iam passando à minha
frente, como se fossem a ficha técnica de um
programa de televisão: "O que você pode nos dar?" O
que, em verdade, eu poderia dar a ela? Se fosse
missionária, o que iria dar às pessoas? Daria o que
aprendera em meus estudos? Deveria talvez atuar
como intermediária para conseguir-lhes alimentos,
dinheiro ou roupas? Se eu lhes desse apenas essas
coisas, quando saísse de lá, voltariam a ter fome. Mas
a mulher da visão estava com fome de um alimento
que ela não conhecia.
Ocorreu-me, então, que o de que ela precisava
era o amor de Jesus. Se ela o recebesse, quando eu
saísse de lá, ela ainda estaria satisfeita, e poderia até
transmiti-lo a outros. Finalmente sabia o que tinha a
fazer — só não sabia onde.
Pouco depois disso, encontrei um amigo que
morava em West Croydon, que sabia que eu estava
orando sobre meu futuro.
— Já recebeu a resposta? indagou.
— Não, respondi.
— Gostaria de assistir às nossas reuniões? inda-
gou. Lá estamos sempre recebendo respostas.
Será que aquela gente de West Croydon
pensava que tinha uma espécie de monopólio de
Deus? Fiquei curiosa para saber o que acontecia nas
reuniões.
— Logo que cheguei, alguém me disse que não
ficasse espantada se acontecesse algo de extraordiná-
rio. Sentei-me perto da porta. Ao que parecia, iriam
exercitar os dons espirituais, e eu queria ter facilidade
de escapulir, caso fosse necessário.
Não estava muito certa sobre o que iria haver
ali. Pensava que talvez alguém fosse profetizar em
voz alta. Mas a reunião foi muito ordeira e calma, com
orações normais e os hinos de sempre. Um ou dois dos
presentes realmente falaram numa língua que eu não
compreendia, mas até certo momento não houve
nenhuma profecia estrondosa, nem voz estridente de
Deus falando comigo.
Mas depois ela veio.
Uma pessoa começou a falar em voz tranqüila, e
logo tive plena certeza de que aquilo era para mim.
"Vá. Confie em mim e eu a guiarei. Eu a
instruirei sobre o caminho em que deve andar. Eu a
guiarei com meus olhos."
Tive certeza de que Deus estava com minha
vida em suas mãos, e que muito breve iria
conduzir-me a algum lugar.
Não havia dúvida de que o povo de West
Croydon recebia respostas de Deus. Voltei para casa, e
pus-me a aguardar maiores orientações. Ainda não
sabia para onde deveria ir. Dei aviso prévio em todos
os empregos, de modo que estivesse livre para partir
logo após o encerramento das aulas.
Durante os feriados da Páscoa, trabalhei
durante uma semana na igreja de Richard Thompson.
Ele me conhecia havia bastante tempo, e eu sentia que
poderia ajudar-me. Disse-lhe que eu e Deus nos
achávamos numa encruzilhada. Ele me ordenara
claramente que fosse, mas não me dissera para onde.
— Se Deus está ordenando que và, é melhor
você ir, replicou ele.
— Mas como, se não sei para onde ir. Todos os
meus pedidos de trabalho estão sendo rejeitados.
— Bem, se você já tentou todas as formas
convencionais de trabalho missionário e Deus
continua dizendo para você ir, é melhor você começar
a mexer-se. Se já tivesse um emprego, a passagem, o
lugar para ficar, a aposentadoria e pensão, não
precisaria confiar nele, continuou Richard. Desse
modo, qualquer um pode ser missionário. Se eu fosse
você, compraria passagem num navio com destino ao
ponto mais distante possível, embarcaria nele, e
depois iria orando todo o tempo, perguntando a Deus
onde deveria descer.
Depois de vários meses, era a primeira vez que
eu recebia uma resposta definida.
— É uma idéia maravilhosa, respondi. Mas me
parece errada, pois eu adoraria fazer isso.
Eu ainda pensava que tudo que o crente fizesse
tinha que implicar em sofrimento, e que não podia ter
nenhuma satisfação em sua fé.
Mas Richard afirmou que esse plano era bíblico.
Abrão, por exemplo, deixara sua terra e, obedecendo a
uma ordem de Deus, seguira para a terra prometida
sem saber para onde ia, pois confiava em Deus.
— Não há o que temer, se você se colocar
inteiramente nas mãos de Deus, disse Richard com
muita seriedade. Se ele não quiser que você tome esse
navio, ele a deterá, ou poderá levar a embarcação para
qualquer lugar do mundo.
A idéia me pareceu fascinante.
O conselho de Richard era um pouco incomum,
mas muito sábio. Em nenhum momento, ele me deu a
impressão de que eu entraria no navio como uma
pessoa comum, e sairia dele transformada em missio-
nária, pronta para trabalhar. O que eu tinha de fazer
era simplesmente seguir a Deus, aonde ele me man-
dasse. Assim compreendi que não tinha nada a temer
nessa aventura.
Então fiz o que ele dissera. Procurei o navio
mais barato, com o percurso mais longo possível, que
passava por muitos países. Ia da França ao Japão.
Comprei a passagem, e tudo estava resolvido.
Naturalmente, eu teria que enfrentar meus pais
e amigos. Alguns se mostraram descrentes. Meu pai,
com muito bom-senso, insistia em que eu pensasse
muito, em minha "viagem de canoa para a China".
Meus pais estavam satisfeitos com a minha ida, mas
um se preocupava com o outro. Orei pelo problema, e
uma noite escutei os dois discutindo, cada um tentan-
do convencer o outro de que estava tudo certo.
O pessoal da minha sociedade missionária já
não se mostrou tão entusiasmado.
— Que conselho mais irresponsável para um
pastor dar a uma jovem, disseram. E suponhamos que
não tenha sido o Espírito Santo quem ditou as
palavras para Richard Thompson?
O dia em que parti foi um desses dias em que
tudo dá errado. O táxi que havíamos contratado para
nos levar a Londres apareceu com uma hora de atraso.
Mas afinal vi-me acomodada no vagão do trem com
minha bagagem. Richard Thompson surgiu correndo
pela plataforma, gritando:
— Glória a Deus!
E daí a pouco o trem arrancou.
O agente da imigração voltou-se para mim
muito transtornado. Por um instante pensei que eu
tinha vindo de tão longe até a Ásia, apenas para ser
repatriada. Mas de repente lembrei-me do texto que
lera pela manhã: "Eis que nas palmas das minhas
mãos te gravei." Se meu nome estava gravado ali,
então Deus sabia tudo que me dizia respeito.
— Espere um pouco, disse eu, lembrando-me
repentinamente de um afilhado de minha mãe. Eu
conheço uma pessoa aqui. Ele é da polícia.
O resultado foi dramático. Naquela época, 1966,
a polícia era tida em alta conta, e qualquer um que
tivesse um conhecido na força policial, obviamente
era uma pessoa direita.
Devolveram-me o passaporte resmungando
que eu poderia desembarcar, sob a condição de que
deveria procurar emprego imediatamente. Na opinião
deles, meu dinheiro não daria nem para três dias de
estada em Hong Kong.
3
Uma Cidade Chamada Trevas
A Cidade Murada é guardada dia e noite,
continuamente, por um exército de vigias. Assim que
um estranho qualquer se aproxima, os vigias vão
passando a notícia de boca em boca. Aqueles rapazes
saem correndo por entre barracas de lanche, entrando
e saindo por portas, e atravessando ruelas estreitas. As
verdadeiras atividades da cidade ficam
completamente camufladas para um forasteiro. Portas
se fecham, janelas são cerradas e a queima de incenso
disfarça o acre odor do ópio.
Um dos nomes chineses dados à Cidade
Murada é "Hak Nam", que significa "trevas". E
realmente trata-se de um lugar de trevas horríveis,
tanto físicas quanto espirituais. Mas quando se
conhecem os homens e mulheres que vivem e sofrem
em tal lugar, podemos ficar condoídos, cheios de
compaixão.
A Sr.a Donnithorne me convidara para visitar o
jardim da infância e a igrejinha que organizara ali,
mas não me havia preparado devidamente para o que
iria ver. Pegamos um carro até a rua Tung Tau Chuen,
situada nos arredores da cidade. É a rua dos dentistas
clandestinos, que exercem seu trabalho ilegalmente,
pois dentistas práticos não podem operar em Hong
Kong.
Logo atrás desses bizarros cômodos erguiam-se
os precários arranha-céus da Cidade Murada.
Passamos apertadamente por um vão entre duas das
lojas de dentistas e pusemo-nos a caminhar por um
beco escorregadio. Nunca me esquecerei do mau
cheiro e da escuridão reinante. Era um cheiro fétido de
comida azeda e de excremento, misturado ao de lixo e
de vísceras de animais. Fomos andando por entre as
casas, e a parte superior delas se projetava sobre a rua,
formando uma espécie de arco sobre o beco.
Parecia-me estar caminhando por um túnel
subterrâneo.
A medida que avançávamos, minha amiga ia
comentando algumas coisas: à nossa direita uma in-
dústria de flores de plástico; à esquerda, uma velha
prostituta, que era velha e feia demais para conseguir
fregueses. Então ela contratava meninas prostitutas
para trabalharem para ela. E essas tinham muitos
clientes. Nesse lugar depravado, a posse de uma
criança prostituta era considerada apenas como uma
excelente fonte de renda. "Tia Donnie" avisou-me que
mantivesse o rosto voltado para o chão, caso alguém
resolvesse esvaziar na rua seu urinol, no momento em
que passávamos embaixo. Depois vinha o cinema de
filmes pornográficos, uma espécie de pavilhão,
inteiramente lotado.
Mas havia um comércio normal também. Vimos
homens carregando na cabeça latas de concreto
re-cém-misturado. Mulheres, tendo nas mãos imensas
sacolas cheias de flores artificiais, iam saindo das
pequeninas saletas onde eram fabricadas. Ali não se
observava o "Dia do Descanso". Cinco feriados ao ano
eram mais que suficientes. Para um chinês, é de
suprema importância que os filhos trabalhem para os
pais, muitas horas por dia.
Como pode existir um lugar destes bem no
meio de Hong Kong, a Colônia da Coroa Britânica?
Há cerca de oitenta anos, quando a Inglaterra se
apossou da ilha chinesa de Hong Kong, da Península
de Kowloon e dos territórios contíguos a ela, foi feita
uma exceção. A velha cidade murada de Kowloon
deveria permanecer sob a jurisdição da China, com
seu mandarim, sujeita às leis chinesas. Mais tarde o
mandarim morreu, e seu cargo nunca foi ocupado,
nem por outro chinês nem por um inglês, e assim a
desordem passou a reinar na Cidade Murada, onde
prevalece até hoje. Ela se tornou um paraíso para o
contrabando do ouro, antros de jogatina ilegal e todo
o tipo de vícios. O desentendimento com relação à sua
posse significava que a polícia não podia impor a lei e
a ordem dentro dela. Quando querem procurar crimi-
nosos ali, entram em grupos grandes.
A cidade tem uma população muito grande,
mas é pequena. Em apenas seis acres de terra, vivem
trinta mil pessoas, ou o dobro. As condições
habitacionais são apavorantes. Não existem leis
regulamentando a construção das casas; por isso as
ruas se acham "entulhadas" de prédios de
apartamento, situados em ângulos os mais loucos,
sem água, luz ou esgoto. Excrementos são atirados nas
ruas, que exalam constante mau cheiro. No andar
térreo, existem apenas dois banheiros para as trinta
mil pessoas. E esses dois não passam de buracos feitos
no chão sobre fossas já transbordantes. Um é para as
mulheres e o outro para os homens.
Seria muito improvável que num lugar como a
Cidade Murada houvesse escolas e igrejas. Mas a Sr.a
Donnithorne tinha conseguido abrir uma escolinha
primária. Os professores não eram formados, mas
haviam feito o curso secundário. Era uma escola
pequena, com várias centenas de alunos. No primeiro
dia em que fui visitar o local, Tia Donnie pediu-me
que lecionasse nela. Antes de pensar duas vezes
repliquei:
— Pois não!
E sem que soubesse claramente em que estava
me metendo, concordei em dirigir a bandinha de
percussão, ensinar canto e conversação em inglês, três
vezes por semana.
Pelo sistema chinês, aprende-se tudo de cor. E
todos os meses se fazem provas, bem como ao fim do
semestre e do ano. A criança reprovada nos exames
finais tinha que repetir todo o ano escolar.
As aulas da bandinha e de canto não apresenta-
vam muita dificuldade para mim, mesmo levando-se
em conta que não conversava muito com os alunos,
mas, quanto às aulas de conversação, meu fracasso foi
total.
Tentei vitalizar mais as aulas dramatizando as
histórias, mas eles não corresponderam. Todas as
vezes que tentava fazer isso aconteciam verdadeiras
guerras na sala de aula. A liberdade que eu tentava
aplicar, em poucos minutos transformava-se em anar-
quia.
Uma vez por semana, à noite, havia um culto
numa das salas de aula. E a Sr.*a Poon — nome que,
orgulhosamente, me deram em chinês — tocava o
harmónio.
A maioria das pessoas que vinham era
constituída de mulheres mais velhas, algumas
carregando crianças presas às costas. Vim a descobrir
depois que muitas delas, sendo analfabetas, vinham à
igreja para ter aula de leitura. Começavam cantando
entusiasticamente, em voz bem alta. Em seguida, a
instrutora bíblica expunha os ensinamentos em
cantonês. Nessa época, eu não entendia uma palavra
do que era dito, mas sentia que participava do culto.
Na primeira noite em que lá estive, uma mulher
me captou a atenção, naquele grupo de chineses. Era
uma velha verdureira: tinha o rosto muito sulcado de
rugas, e apenas dois dentes, que estavam sempre em
evidência, pois a mulher sorria constantemente. Ela se
aproximou de mim e puxou-me pela manga, com
veemência. Ficou falando e falando, sorrindo e
puxando a manga. Pedi a alguém que interpretasse
para mim o que ela estava dizendo.
— Até a semana que vem! Até a semana que
vem!
Tive vontade de dizer a ela que não poderia ir
todas as semanas, pois morava muito longe, e quando
voltava para casa já era muito tarde, e eu tinha que me
levantar cedo para dar aula. Mas senti que não
conseguiria explicar-lhe tudo isso. Ela só
compreenderia que eu estaria ali ou não estaria. Então
resolvi ir ao culto todos os dias, só por causa dela.
Aquela altura, eu já tinha um emprego fixo:
dava aulas numa escola primária, pela manhã.
Lecionei ali durante seis meses. Além disso, auxiliava
Tia Donnie na escolinha dela, três vezes por semana, à
tarde, tocava nos cultos de domingo, e preparava
programas musicais em prol de várias instituições de
caridade. Isso tomava todo o meu tempo.
Na segunda vez que fui à Cidade Murada, tive
uma sensação maravilhosa: aquela vibração interior
que se tem no dia do aniversário. E comecei a me
indagar por que me sentia tão feliz. E na outra vez que
fui ali, experimentei exatamente a mesma coisa. Isso
me parecia um pouco descabido, num lugar tão
revoltante como aquele. E, no entanto, quase todas as
vezes em que me encontrava nesse reduto de
marginalidade, nos doze anos que se seguiram, sentia
o mesmo gozo. Eu já tivera um vislumbre dessa
alegria no dia da minha "confirmação", e depois
quando recebera a Jesus em minha vida — mas
experimentar o contentamento espiritual nesse lugar
profano?
— Aquele ali é viciado, disse-me Tia Donnie
certa manhã, quando nos dirigíamos para a escola.
Nessa ocasião, eu ainda não sabia direito o que
significava ser viciado. Ele iria nos agredir, roubar-nos
o relógio ou ter um acesso? Era um homem de aspecto
patético, que, com movimentos lentos, catava coisas
num monte de lixo. Estava examinando os detritos ali
deixados, um por um, para ver se havia algum objeto
que pudesse ser de valor para ele. Dava a impressão
de estar muito doente, o rosto muito pálido, e parecia
ter setenta anos e não trinta e cinco. Usava uma
camiseta de algodão bastante suja e sandálias de
plástico, já bem gastas. A maioria dos chineses anda
sempre muito limpa, mas o Sr. Fung estava imundo.
Seus dentes eram pretos, quebrados. O cabelo cortado
rente indicava que acabara de sair da prisão. Mas,
para ele, a cadeia era apenas um lugar para dormir e
comer com mais regularidade.
Mas, na verdade, cama e comida não era o que
importava para ele. Fung vivia para "perseguir o
dragão". Essa maneira chinesa de tomar droga tem
seu ritual próprio. O viciado chega a um local de
comércio de drogas, pega um pedaço de folha de
alumínio e coloca nela alguns grãozinhos de heroína.
Acende um paviozinho feito de papel enrolado e
coloca sob o alumínio, a fim de aquecer a droga. A
heroína vai-se derretendo lentamente,
transformando-se numa espécie de melaço escuro e
fumegante. Ele coloca na boca a parte externa de uma
caixa de fósforo para servir de funil, pelo qual ele irá
inalando a fumaça. Em seguida, põe-se a mover a
folha de alumínio, fazendo o filete de líquido grosso
escorrer de um lado para outro, acompanhando o
movimento da fumaça com a boca. Chamam a isso
"perseguir o dragão".
Pouco depois, fiquei sabendo que nem todos os
viciados tinham uma aparência como a do Sr. Fung.
Alguns deles estão sempre bem vestidos. Para estes, o
fato de se apresentarem bem é uma evidência de que
não se acham escravizados ao dragão. Como passara a
ir à cidade com freqüência, vi o Sr. Fung muitas vezes.
Comecei a me indagar se não deveria fazer alguma
coisa por ele e por outros iguais a ele.
A prostituição raramente era camuflada. A pri-
meira prostituta que vi ali chamou minha atenção por
estar usando batom e esmalte num tom vermelho
berrante. Ficava o dia inteiro agachada na rua, uma
rua tão estreita que o rego do esgoto passava perto de
seus pés. Rua abaixo havia outras delas, sentadas
sobre caixas de laranjas e uma delas tinha até uma
cadeira. Na sua maioria também eram viciadas em
drogas. As marcas escuras no dorso da mão
revelavam que injetavam heroína diretamente na veia.
Eu passava ali todos os dias e nunca saberia dizer
quando estavam acordadas ou dormindo. Estavam
sempre pendendo a cabeça, o branco dos olhos
amarelado pelo torpor da heroína.
Um dia tentei tocar na menorzinha. Aprendera
a "Jesus te ama", em chinês.
— Yeh sou ngoi nei, falei.
Mas ela se encolheu toda, fugindo ao meu
contato. Vendo a expressão de seu rosto, compreendi
subitamente que cometera um erro. Ela colocara uma
barreira entre nós, e eu não sabia o que fazer para
derrubá-la. A moça estava fortemente constrangida,
porque eu, uma jovem "limpa", cometera um engano e
tocara nela, uma suja.
Fui percebendo aos poucos que as mulheres
mais velhas se engajavam na obtenção de clientes.
Quando os homens saíam do cinema pornográfico, as
mama-sans quase os agarravam e puxavam para ali. As
vezes dava para ouvi-las dizer, empurrando-os escada
acima:
— Venha, ela é bem jovem, e é barato.
Naturalmente, as mocinhas não ficavam com o
dinheiro. A maioria das prostitutas era
controlada por quadrilhas, e os bordéis só podiam
funcionar com permissão da quadrilha, que
controlava a área em que se encontravam.
Havia duas mocinhas que eu via
ocasionalmente. Uma delas era aleijada e a outra
retardada. Ambas eram prisioneiras. Nunca saíam a
não ser acompanhadas por uma mama-san. Eram
visitadas por três clientes a hora. Nessa época uma
tinha treze e a outra quatorze anos. Mais tarde, vim a
saber, através de um membro da quadrilha, como
essas moças eram iniciadas nesse tipo de vida.
Os rapazes organizavam uma festinha e
convidavam mocinhas. Durante a festa, as jovens
eram seduzidas. Se resistissem, eram estrupadas. Via
de regra, cada membro da quadrilha pegava sua
menina e ficava com ela durante alguns dias. Depois
que percebia que ela já estava afeiçoada a ele e
acostumada com o sexo, ele a entregava a um bordel.
Outras mocinhas se prostituíam, porque seus
pais não tinham condições de sustentá-las, e as
vendiam para o comércio da prostituição, onde
permaneciam até se tornarem mais adultas. Depois
disso, muitas dessas antigas meninas-prostituas
fugiam de seus donos e se lançavam na carreira,
fazendo a única coisa que sabiam. Algumas dessas
crianças iniciavam este tipo de vida com nove anos de
idade.
Comecei a planejar um modo de alcançar essas
moças, que estavam sempre tão bem vigiadas. Afinal
tive que desistir disso e "arquivei" mentalmente o
problema, mas tinha esperanças de que um dia
pudesse encontrar um homem que se interessasse por
esse trabalho, e pudesse pagar a quantia necessária
para uma hora com elas, mas que, nesse tempo,
pregasse o evangelho para a jovem. Talvez juntos, eu e
ele, pudéssemos conceber um plano de fuga para elas,
se alguma quisesse abandonar esse tipo de vida.
4
O Clubinho
Às vezes penso que a verdadeira razão por que
criei o clubinho foi Chan Wo Sai. Era um rapazinho
feioso, de quinze anos, e com tantos problemas,
quantos pode ter qualquer outra pessoa. Conheci-o
quando dava aulas de inglês e canto na Escola
Primária Oiwah, três tardes por semana. Estava ensi-
nando uma musiquinha muito simples, sem arroubo
nenhum, e, no entanto, lá estava Chan Wo Sai
parecendo realmente empolgado com uma
cançãozinha infantil. Girava os olhos e estalava os
dedos. Depois levantou-se e pôs-se a dançar pela sala,
vindo em minha direção, remexendo os quadris com
um jeito bem sensual. Mandei que voltasse para o
lugar, e passei a ensinar outra música. Após a aula,
procurei descobrir as origens dele.
Chan Wo Sai nascera ali mesmo, na Cidade
Murada. A mãe era prostituta e o pai, um bêbedo.
Viviam num pardieiro, numa casa que havia desaba-
do. Toda a família ocupava um quartinho minúsculo.
Na casa ao lado, moravam algumas prostitutas. Desde
que se entendeu por gente, o garoto passou a conviver
com esses fatos; eram parte de seu quotidiano. Seus
horizontes eram limitados pelo bordel ao lado, os
antros de jogo um pouco abaixo e os salões de ópio
depois desses. Na Cidade Murada não havia nada que
oferecesse a alguém uma atividade mais construtiva.
Então procurei conhecê-lo e ajudá-lo a melhorar
de vida.
Isso seria um pouco difícil, já que eu não falava
uma só palavra de cantonês. E para dificultar ainda
mais as coisas, ele tinha uma deficiência de fala que
embaraçava ainda mais nossa conversa. Nosso único
ponto em comum era uma espécie de tambor que eu
havia dado a ele. Consistia numa membrana de
borracha presa numa armação de madeira, na qual se
batia com baquetas; uma bateria surda. Ele tinha que
treinar naquilo, mas não tinha o menor senso de
ritmo. Mas ele se mostrava muito satisfeito, pois era a
primeira vez na vida que alguém demonstrava algum
interesse por ele.
A medida que os dias iam passando, percebi
que estava constantemente pensando nele, e isso me
deixou um pouco alarmada. Minha mentalidade
inglesa me levava a crer que qualquer amor por um
rapaz tinha que ser de natureza romântica, e, sendo eu
crente, isso teria que terminar em casamento. Mas,
naquele caso, obviamente, isso era impossível, e até
mesmo ridículo. Meu bom-senso dizia que ele era um
rapaz feioso, com uma formação das piores possíveis.
Mas eu realmente o amava e orava por ele constan-
temente. Cheguei a um ponto em que estaria disposta
a dar minha vida por ele.
Algum tempo depois, vim a compreender o que
se passava comigo, e fiquei bastante surpresa. Era
como se Deus tivesse me concedido um amor especial
por ele, que eu deveria demonstrar, embora não se
tratasse de um sentimento que devesse ou pudesse ser
retribuído. Era um amor que tinha por objetivo o bem
dele, e diferia bastante do amor que eu sentira por
outras pessoas, para o qual sempre tinha desejado
alguma forma de retribuição.
Dentre os vários grupos humanos necessitados
que pululavam a Cidade Murada, o mais desatendido
era o dos adolescentes. As crianças menores, pelo
menos, tinham a chance de freqüentar uma escola
primária. Mas os adolescentes não tinham nada. Era
praticamente impossível estudar num ginásio. E eles
tinham de trabalhar nas indústrias de plástico, onde
ganhavam pouquíssimo.
Muitos rapazinhos, e até mocinhas, saíam de
casa e iam viver com outros jovens em cômodos
miseráveis. Pouco depois, não tendo nenhuma
atividade, caíam na senda do crime. Muitas vezes, as
quadrilhas é que lhes ofereciam a única forma de
ocupação possível.
Durante o verão de 1967, toda a China fora con-
vulsionada pelas atividades da Guarda Vermelha.
Aquela "epidemia" chegou também a Hong Kong.
Houve tumultos por toda a colônia. Vim a descobrir,
porém, que alguns rapazes da Cidade Murada esta-
vam sendo pagos para participarem do tumulto. Per-
cebi então que poderia convencê-los a fazer um
piquenique. Então, num dia úmido de junho, disse a
Tia Donnie em tom bastante pomposo:
— Acho que Deus está querendo que eu
organize um clubinho para jovens.
Eu imaginava o trabalho sendo realizado com o
auxílio de uma equipe de obreiros cristãos da ilha de
Hong Kong, todos escolhidos a dedo, que iriam avan-
çar sobre a cidade com um programa de ação mu.'to
bem planejado, enquanto eu ficava sentada, assistindo
e aplaudindo.
Meu plano era termos um salão que abrisse
todas as noites, e aos sábados e domingos. Seria um
lugar onde os rapazes pudessem jogar tênis de mesa e
engajar-se em outras atividades saudáveis, mas igual-
mente um lugar onde ouvissem falar de Jesus. Mas Tia
Donnie tinha uma atitude mais prática.
— Ótimo! Há anos estou orando por isso.
Quando pretende começar? A semana que vem?
Começamos uma semana depois. Ainda dava
para contar nos dedos as palavras de cantonês que eu
sabia. Não contava com minha equipe escolhida a
dedo e não tínhamos um local para nos reunirmos.
Mas passamos a usar uma sala da escola nos sábados
à tarde. E Gordon Siu; um jovem chinês que eu
conhecera na Orquestra Juvenil, veio em meu auxílio
como intérprete, tornando-se um esteio para mim. Ele
me ajudava a alugar ônibus, acompanhava-nos nos
piqueniques, ou ia patinar conosco. Pouco depois,
começaram as férias, e, ao pensar que os rapazinhos
poderiam envolver-se mais nos tumultos de rua,
resolvi ampliar ainda mais nossas atividades.
De reuniões apenas aos sábados, passamos a ter
um completo programa de verão, com piqueniques,
caminhadas a pé e visitas às plantações do
refloresta-mento. E nos anos que se seguiram
realizamos o mesmo programa em julho e agosto.
Os primeiros a aparecer foram os adolescentes
de treze e quatorze anos, que traziam também seus
amigos de fora. Todos sabiam que eu estava ali
basicamente porque era cristã, e que em toda a
programação sempre haveria uma pequena palestra
no início. Eles não gostavam muito de ouvir falar de
Jesus. Nem ao menos sabiam direito quem ele era.
Alguns jovens me disseram que não poderiam ir ao
clubinho.
— Nós bebemos e fumamos, vamos ao cinema e
jogamos, e sabemos que os crentes não fazem essas
coisas.
Pouco depois, Chan Wo Sai largou a escola.
Estando com quinze anos, era um dos mais velhos
alunos do quarto ano. Achava-se com quatro anos de
atraso, pelo menos, em seus estudos. Ele resolvera não
concluir o ano. Fora aberto um novo cinema, e ele
conseguira um emprego de vender ingressos.
Para a inexperiente professora inglesa, largar a
escola primária era uma coisa terrível. Durante todo o
período das férias, tentei persuadir o garoto a voltar.
Por fim, ele resolveu ir conversar com os professores,
mas eles se recusaram a recebê-lo.
— Olha, Jackie, disse um deles, ficamos muito
satisfeitos quando ele decidiu sair, porque não conse-
guíamos controlá-lo mais. Pois que vá!
E era uma escola missionária! Os professores
eram crentes, e eu imagina que, quando se reuniam
para orar, intercediam por alunos difíceis e
problemáticos como Chan Wo Sai.
Mas a verdade era que a maioria deles mal
havia completado o segundo grau. Diziam-se cristãos
apenas para conseguirem o emprego, e eram
incapazes de controlar quaisquer alunos, a não ser que
fossem bastante dóceis.
A única alternativa que restava a Sai era fazer
um curso profissionalizante, onde pudesse aprender
algum ofício. Viemos a descobrir, porém, que ele não
se qualificava para nenhum deles, ou porque já
passara da idade, ou porque não tinha terminado o
primário, ou porque não falava inglês. Todas as portas
se fechavam para Chan Wo Sai, embora ele tivesse
apenas quinze anos.
O que iria suceder-lhe? Parara de estudar e, ao
que parecia, a única perspectiva de vida para ele era
vender ingressos no cinema. Não havia nada mais que
eu pudesse fazer por ele, a não ser manter o clubinho
em atividade. Vários dos seus amigos que paravam de
estudar iam para as quadrilhas. Sentiam que ali
tinham uma função na vida. Tinham sua posição certa
e eram tratados como uma pessoa importante.
Encontravam ali até um pouco de carinho e afeto,
consideração e amizade, o que não achavam em ne-
nhuma outra parte. Tanto na igreja como na escola, o
sucesso nas provas era sinônimo de valor e integri-
dade. Mas nem nas quadrilhas nem em meu clubinho,
eles escutavam palavras de condenação ou rejeição
pelo fracasso.
O nosso Clubinho Jovem era realmente bem
diverso de tudo o mais que havia na Cidade Murada.
Ninguém obtinha lucros com ele; não era controlado
por chefes de quadrilhas. Tivemos de mudar várias
vezes, mas era sempre o mesmo. Um salão com alguns
joguinhos tais como mesa de pingue-pongue e alvo
para dardos, alguns bancos toscos e uma estante com
alguns livros evangélicos".
Outro rapaz que vim a conhecer bem naquela
época foi Nicholas. Tanto o pai como a mãe já tinham
sido processados por venda de drogas, e a família
toda vivia numa das piores casas que já vi. As duas
filhas mais velhas eram prostitutas. E todos moravam
em apenas um cômodo pequeno e malcheiroso.
Os membros da igreja não gostavam de
Nicholas, pois ele, do mesmo modo que Chan Wo Sai,
exercia uma influência negativa sobre os outros
alunos da escola. Naturalmente eles sabiam que suas
irmãs eram meretrizes e o pai viciado em ópio. Na
opinião deles, o fato de eu receber Nicholas em nosso
clubinho implicava em descrédito para o bom nome
da igreja cristã. Eu não devia nem ser vista em
companhia dele.
Eu sabia que o rapaz tinha má conduta e estava
sempre dando trabalho. Mas eu o amava, embora isso
fosse absurdo. Jesus viera ao mundo por causa de
pessoas iguais a ele, o que também não fazia muito
sentido.
Resolvi então fazer-me amiga dele e visitá-lo
seguidamente. Interessava-me bastante por ele.
Encontrava-o nos antros de droga, e, quando era
preso, acompanhava-o à delegacia, e ali orava por ele.
Mas nada disso o tocava para que se modificasse.
Vim a compreender depois que naquele lugar
de tamanhas trevas não havia a noção do conceito de
retidão. O crime, a mentira e a corrupção eram coisas
certas, desde que dessem lucro. Mas as pessoas que
assim pensavam assumiam uma atitude de moralida-
de em minha presença. E achavam que tal atitude era
correta, já que eu era representante da Igreja, do
Sistema.
— Nicholas é um menino terrível, dizia a mãe,
repreendendo-o bem na minha frente, e depois se
lamentava: não sei por que meus filhos são todos uns
perdidos.
E ela era uma pessoa que preparava os
saquinhos de heroína para vender aos viciados.
Tempos depois, uma das meninas mais novas,
Annie, também se tornou prostituta. Mas, afinal,
acabou fazendo um bom casamento. O noivo era
for-gei, mas também trabalhava para a polícia, fazendo
a arrecadação do dinheiro do suborno. Annie ficou
muito feliz de se casar com ele, pois o rapaz tinha seu
próprio carro. E sua mãe também ficou encantada.
Certo dia, quando eu caminhava pela rua, um
velho correu ao meu encontro. Tinha o rosto esquelé-
tico dos viciados em ópio, e estava furioso.
— Poon Siu Jeh, você tem que reclamar na
polícia. Era proprietário de um salão de consumo de
ópio, um homem muito importante na Cidade
Murada.
— E por que eu deveria reclamar? indaguei.
— Por que fecharam todas as salas de ópio,
disse ele muito encolerizado.
— Mas estou muito satisfeita de saber que
fecharam as salas de ópio, respondi. Por que deseja
que eu reclame?
— Porque deixaram as de heroína funcionando,
e pagamos a eles a mesma quantia que os outros. Isso
não é justo.
Não se tratava do que era certo e errado, mas
justo e injusto.
Joseph foi um dos primeiros presidentes do
clubinho. Não tinha nenhuma ligação clara com o
crime organizado, como Nicholas e Chan Wo Sai.
Quando ele estava com seis anos, seu pai casou-se de
novo; e como a madrasta não gostasse dos enteados,
não lhes dava o que comer. Então Joseph e sua irmã
Jenny tiveram que sair mendigando. Mas um pastor
de Novos Territórios os apanhou e enviou para a
escola da Tia Donnie. Depois de terminar o curso
primário, Joseph arranjou um quarto para morar e
pôs-se a trabalhar em serviços pesados, sempre que
conseguia algum. Pouco depois, sua irmã foi morar
com ele.
Depois, tipos como Nicholas começaram a fre-
qüentar seu cômodo, passando a noite ali, e seu
quartinho se tornou uma "incubadeira" de quadri-
lheiros. Passei a visitá-los com regularidade. A irmã
também estava correndo perigo moral. Aos quinze
anos era muito bonita, e estava-se deliciando com a
liberdade que tinha. Podia conversar à vontade com
os amigos do irmão. Senti que, se continuasse moran-
do com ele, ela iria fatalmente acabar tomando o
caminho inevitável. Não poderia abrigar a ambos em
minha casa, já que havia outra moça da Cidade
Murada, Rachel, morando comigo. Mas achei que
Jenny poderia vir. Convenci-a a sair de lá para ficar
conosco. Arranjei uma escola secundária para ela, mas
o desejo da moça era voltar para a Cidade Murada, e
durante o período em que esteve conosco, causou-nos
muitos problemas.
Outro rapaz que freqüentava assiduamente o
clubinho era Christopher, que morava num casebre.
Para se chegar lá, descia-se por uma ruela escura,
onde não penetrava a luz solar. Em determinado
ponto, havia alguns galinheiros feitos de engradado
de refrigerantes. Era ali. Subia-se uma escadinha de
madeira, e estava-se na casa dele. A porta era aberta
de baixo para cima, como um alçapão. Era apenas um
cômodo. Uma cortina servia de tapume para o canto
onde a família dormia. Nele havia apenas dois
beliches e todos dormiam naquelas duas camas, os
pais e seis filhos.
O resto do aposento estava ocupado por
imensas pilhas de artefatos de plástico, com os quais a
mãe dele trabalhava, ganhando mais ou menos um
dólar por dia. Todos os filhos tinham que ajudá-la. A
filha mais nova nem chegara a terminar a escola. Aos
treze anos fora trabalhar numa fábrica de artigos de
plástico. E todo o dinheiro que ganhava tinha que ser
entregue à mãe. E depois que chegava do serviço,
tinha que trabalhar mais, pregando lantejoulas em
roupas. Quando fazia uma blusa de frio, por exemplo,
ganhava mais três dólares, que, naturalmente, seriam
de sua mãe.
Assim Christopher começou a trabalhar, e seu
dinheiro também era entregue à mãe. Era uma tradi-
ção dos chineses, uma lei não escrita: os filhos tinham
que pagar aos pais pelo sustento deles recebido. A
ambição dos pais era aposentarem-se e serem susten-
tados pelos filhos. Os jovens chineses não tinham
nenhuma satisfação ao receberem seu pagamento,
pois nunca ficavam com ele. Os pais retinham tudo. A
mãe de Christopher foi assim ajuntando dinheiro e,
mais tarde, comprou um apartamento para si, fora da
Cidade Murada.
Muitos casais chineses têm família numerosa
por razões econômicas: para que fiquem ricos ao
envelhecer. Tive a impressão de que a afeição familiar
não se baseava em um amor mútuo, mas, sim, em
interesses econômicos.
Ah Lin, a irmã mais nova de Christopher, afinal
se rebelou contra aquela exploração. Conheceu em sua
fábrica um rapaz que gostava dela, mas a mãe proibiu
o namoro. Também não permitia que ela freqüentasse
o clubinho, pois as atividades dele eram, em sua
maior parte, recreativas. O divertimento, pura e
simplesmente, não deveria existir para ela. A menina
tinha que ficar em casa, e olhar os irmãozinhos, ou
então montar as peças dos objetos de plástico, ou
buscar água. Finalmente, a garota, com quatorze anos,
fugiu de casa e foi morar com o rapaz. A mãe
conseguiu pegá-la de volta e trancou-a em casa. O que
ela fizera significava não apenas vergonha para a
família, mas também um rombo nas finanças dela.
Sendo as meninas tratadas assim, como se fossem
bens particulares, não é de se estranhar que caíssem
na prostituição para se libertarem.
Minha tarefa era fazer o povo da Cidade
Murada entender quem fora Cristo. Se não
conseguiam compreender as palavras que
pregávamos sobre Jesus, então nós, os crentes,
tínhamos que demonstrar na prática quem ele era,
pelos nossos atos e conduta. Então iniciei o que eu
chamava de "andar a segunda milha". Parecia que
havia muitos cristãos que não se importavam de
andar a primeira milha; muitos que não se dariam ao
trabalho de andar duas e nenhum que quisesse andar
três. Aquele povo ali precisava que se andasse com
eles uma maratona.
Fui-me envolvendo cada vez mais com os
rapazes, seus familiares e seus problemas. Implicava
em viver diante deles de maneira prática, para que
vissem quem Jesus era, e o conhecessem. Um exemplo
desse tipo de conduta foi o que se deu, quando um
dos rapazes me pediu que ajudasse sua irmã a
conseguir matrícula numa escola secundária. O
processo normal era ficar na fila um dia inteiro,
apenas para pegar um formulário para fazer o exame
de admissão.
Aquela família esperava que eu simplesmente
fosse à diretora e lhe dissesse:
— Olhe, eu sou fulana de tal, conheço o Dr.
Sicrano. Será que poderiam admitir aqui essa menina?
Mas não fiz isso. Entrei na fila, como todo
mundo, e eles ficaram muito espantados, pois quando
haviam pedido meu auxílio, não era isso que tinham
em mente.
Eu só podia dar esse tipo de ajuda durante as
férias, pois estava dando aulas de música em tempo
integral no Colégio Anglo-Chinês para meninas. Mas
durante muito tempo, muitas pessoas se agregaram a
mim simplesmente pensando que, se ficassem em
meu grupo, talvez conseguissem um certificado de
batismo ou um documento qualquer que lhes
possibilitasse emigrar para os Estados Unidos. Eram
os "crentes da sopa". Tratavam-me como haviam
tratado outros missionários, crendo que eu fosse uma
presa fácil. Estavam constantemente pedindo dinheiro
emprestado. E não acreditavam, quando eu lhes dizia
que não o tinha. Os diálogos eram quase sempre mais
ou menos assim:
— Poon Siu Jeh, estou sem emprego e meu
dinheiro acabou.
— Mas eu não tenho dinheiro.
— Ah, mas você deve ter sim. Você é muito rica.
— Não; não tenho dinheiro nenhum.
— Tem, sim. Você tem uma igreja na América
que a sustenta.
— Não, não tenho igreja. E eu vim da Inglaterra.
Mas não sou sustentada por igreja nenhuma.
— Ah, qualquer dia desses você pega um jato e
volta para sua terra.
— Não; não existe a menor probabilidade de
isso acontecer, pois não tenho dinheiro para a
passagem, respondia eu com toda a sinceridade.
— Então seus pais lhe mandam dinheiro.
— Meus pais também não têm muito dinheiro,
replicava.
Aquela altura, Ah Ping entrava na conversa. Ele
pensava um pouco mais que os outros, e seus
comentários eram sempre mais precisos.
— É, talvez você não tenha dinheiro mesmo,
mas sempre pode ir embora, se quiser. Nós não
podemos. Não temos para onde ir. Mas vocês, os
ocidentais, podem pegar o avião e ir embora, e depois
se esquecem completamente de nós.
— Não, Ah Ping. Não estou pensando em ir
embora e esquecer vocês.
Mas Ah Ping sabia falar, quando se
entusiasmava. E hoje ele iria dizer uma coisa que
todos eles pensavam.
— Vocês, os ocidentais, continuou ele, vêm aqui
e falam de Jesus para nós. Ficam aqui um ou dois
anos, para aplacarem a consciência, e depois vão
embora. Esse Jesus chama vocês de volta para fazer
outro trabalho, na sua pátria. É verdade que lá muitos
conseguem angariar bastante dinheiro para nós, po-
vos mais carentes. Mas continuam bem, morando em
belas casas, com geladeiras e empregados, enquanto
nós continuamos vivendo aqui. Mais cedo ou mais
tarde, você também irá embora.
Era um forte libelo contra aqueles evangelistas
que chegavam a Hong Kong, cantavam lindos hinos
sobre Jesus e depois pegavam o avião e iam embora.
— ótimo, dizia Ah Ping, ótimo para eles e para
nós também. Teríamos muito prazer em crer em Jesus,
se também pudéssemos pegar um avião e viajar pelo
mundo todo, como eles. É muito fácil para eles cantar
hinos que falam de amor, mas o que sabem a nosso
respeito? Nada; não sabem nada. E não nos
conquistam tampouco.
Houve ocasiões em que tentei conversar com os
guardas das salas de jogo, mas quando mencionava
que Jesus os amava, eles acenavam a cabeça afir-
mativamente.
— Ótimo! Muito bom! diziam. Mas isso não
significa nada para nós.
E não significava mesmo, pois a maioria nem
tinha idéia de quem era Jesus, e do que fosse amor. E
eu continuei a pregar, dizendo que Jesus poderia
dar-lhes uma nova vida, mas não pareciam entender
nada.
5
Luz nas Trevas
Jesus não apenas afirmou que era Deus, ele de-
monstrou isso. Fez os cegos recobrarem a visão, os
surdos, a audição, e os mortos voltarem à vida.
Alguns cristãos diziam que estas coisas ainda
aconteciam em nossos dias, mas eu não as estava
vendo.
Meus amigos missionários não podiam
auxiliar-me muito nessa questão. Muitos deles tinham
vivido sempre na China e se sentiam meio
desarvorados. Alguns ainda tinham certos ranços
culturais, e começaram a influenciar-me a tal ponto,
que passei a me preocupar com detalhes tais como se
devia usar vestidos sem mangas ou se devia ir nadar
aos domingos. Eu não pertencia a nenhuma missão, e,
na verdade, estava bem livre de imposições. Contudo,
estava me sentindo tolhida, infrutífera.
Certo dia fui tocar harmónio na Capela. Lá
conheci um casal chinês que iria dirigir o culto, e
percebi neles uma vitalidade e um poder que eu
desconhecia. Imediatamente, tive vontade de saber
por que eram tão diferentes. Não falavam inglês
muito bem, e eu mal falava chinês.
— Você não possui o Espírito Santo, disseram.
Ligeiramente indignada repliquei que o tinha
sim.
"É lógico que possuo o Espírito", pensei comigo
mesma. "Se não o tivesse não poderia crer em Jesus."
Mas estava claro que aquele casal tinha algo que
eu não tinha, e eu o reconhecera, apesar de não ter
entendido bem a mensagem. Eles denominavam-no
possuir o Espírito Santo, ao passo que eu preferia
outra expressão. Mas, se Deus tinha outra bênção para
mim, gostaria de recebê-la, e deixaria para depois a
nomenclatura teológica. Então combinei visita-los em
seu apartamento no dia seguinte.
O apartamento deles, como milhares de outros
da cidade, tinha apenas um cômodo. Havia ali uma
mesa sobre a qual se viam um prato com laranjas e
outro com pedaços de flanela molhada. As laranjas
eram usadas tradicionalmente pelos chineses para
qualquer comemoração, e os pedaços de flanela eram
para quando eu chorasse.
Senti meu coração pulsar com força, pois não
sabia exatamente o que iria acontecer ali. Então me
sentei, e eles impuseram as mãos sobre minha cabeça
e começaram a falar repetidamente:
— Agora comece a falar, agora comece a falar,
agora comece a falar...
Mas não aconteceu nada. No grupo de West
Croydon havia algumas pessoas que falavam línguas
estranhas, mas ninguém gostava de conversar muito
sobre esse dom. Parecia-me maravilhoso ter uma nova
língua na qual pudesse expressar a Deus todos os
pensamentos, mas fechei a boca firmemente. Se Deus
quisesse dar-me o dom, ele teria que fazê-lo, e não eu.
Contudo, estava-me sentindo cada vez mais
envergonhada, além de um grande desconforto e
muito calor. Eles iriam ficar muito desapontados, se
nada acontecesse. Afinal, não consegui me conter
mais, e abri a boca para dizer: "Ajudem-me!" Foi aí
que começou. Logo que fiz aquele esforço consciente
para abrir a boca, percebi que estava falando
fluentemente uma língua que nunca aprendera. Era
uma língua muito bela, bem articulada, suave e
coerente. Não tive a menor dúvida de que tinha
recebido o sinal. Mas não me sobreveio nenhuma
alegria esfuziante. Foi totalmente desprovido de
emoção.
O casal chinês ficou encantado ao ver que eu
falara em línguas, embora um pouco surpreso de não
me ver chorar. Mas eles choraram um pouquinho.
Ainda me sentia um pouco constrangida, e saí assim
que pude. Quando estava à porta, disseram-me:
— Agora você pode esperar que os outros dons
do Espírito vão aparecer também.
Mas não entendi bem o que quiseram dizer. Na
semana seguinte, todos os dias, ficava esperando que
o dom de cura ou o de profecia surgissem de repente.
Eram os dois únicos dons do Espírito de que eu ouvira
falar. Eu não tinha dúvida nenhuma acerca da valida-
de e do uso deles, mas não sabia quando uma pessoa
reconhecia que os possuía.
Outra coisa que me intrigava um pouco era o
fato de não estar dominada pela emoção. Lera livros
que haviam-me deixado com a impressão de que
aquela experiência iria fazer-me andar nas nuvens.
Procurei, então, alguém em Hong Kong que pudesse
dar-me umas explicações sobre isso, mas não
encontrei ninguém. Alguns amigos missionários me
disseram, em tom sombrio:
— Na China, aconteceu uma coisa muito
perigosa que ocasionou divisão nas igrejas.
Os missionários pentecostais informaram-me
que haviam feito um acordo com os demais
evangélicos de não conversarem com outros sobre os
assuntos em que divergissem, falando só sobre Jesus.
Mas o ensino sobre os dons estava na Bíblia, tinha
vindo de Deus, como isso poderia ser perigoso?
Com o passar dos meses, comecei a pôr de lado
a questão toda. A experiência não havia mudado em
nada a minha vida espiritual. Ainda continuava ron-
dando a Cidade Murada, todas as noites ia a um culto
qualquer, procurava ajudar as pessoas, mas parecia
que não estava conseguindo nada. Senti como se
tivesse sido enganada.
"Quem eles pensam que são?" indaguei comigo
mesma, na primeira vez que ouvi falar do casal
Willans. Era um casal americano, a filha Suzanne e
uma amiga, Gail Castle, que acabara de chegar a
Hong Kong. Eles iam realizar reuniões de
oração. "Hong Kong não precisa de mais reuniões de
oração. Eu mesma tenho reuniões todos os dias. Eles
deveriam, primeiramente, conhecer a situação da
igreja aqui."
Já haviam-se passado dois anos desde que eu
chegara da Inglaterra, e um ano que eu supunha haver
recebido "o dom do Espírito". Sentia-me uma
autoridade na questão de reuniões de oração da
Colônia. Mas uma amiga minha, Clare Harding,
insistiu em que eu fosse, dizendo que seria uma
reunião carismática.
— Está bem, vou freqüentar durante algum
tempo, respondi.
E foi então que fiquei conhecendo Rick e Jean
Stone Willans.
— Você tem o dom de línguas, Jackie? indagou
Jean. Ora em línguas?
— Para dizer a verdade não o faço. Não vejo
nele muita utilidade. Não me ajudava em nada; então
parei de orar.
— Mas isso é um grande erro, disse ela. Não se
trata de um dom de emoção, para satisfação própria, é
um dom do Espírito. A Bíblia ensina que aquele que
ora em línguas é edificado espiritualmente. Portanto,
não se importe muito com o que sente, exercite-o.
E assim ela e Rick me fizeram prometer que iria
orar em minha língua celestial todos os dias. E em
seguida, para meu espanto, sugeriram que orássemos
juntos em línguas. Eu não estava muito certa se isso
era correto, pois a Bíblia ensina que as pessoas não
podem falar línguas em voz alta, todas ao .mesmo
tempo. Explicaram que Paulo se referia a um culto
público, onde um estranho poderia entrar e pensar
que estavam todos loucos. Mas nós três ali não
iríamos escandalizar ninguém. Iríamos simplesmente
orar a Deus numa língua que ele nos concedera.
Não houve jeito de escapar, e então nos
pusemos a orar. Senti-me meio ridícula, dizendo
coisas que não entendia. Mas, em dado momento, eles
pararam de orar e eu fui impelida a continuar. Faria
qualquer coisa para não estar ali, orando em voz alta,
em língua estranha, diante daqueles americanos. Mas
quando pensei que estava para morrer de vergonha,
Deus me falou:
— Você não quer ser ridícula por amor a mim?
Entreguei os pontos.
— Está bem, Senhor, isso não faz muito sentido
para mim, mas como foste tu quem inventaste esse
dom, ele deve ser bom.
Quando acabamos de orar, Jean falou que Deus
lhe havia dado a interpretação do que eu dissera. Meu
coração estivera clamando pelo Senhor, como se
estivesse nas profundezas de um vale, e ele no pico
das montanhas. Eu lhe dirigira palavras de adoração e
suplicara que ele me usasse.
Tomei a decisão de nunca mais desprezar o
dom, se Deus me ajudasse a orar daquela maneira
todas as vezes em que o exercitasse. Aceitei o fato de
que ele estava-me ajudando a aperfeiçoar minha
comunhão e súplica.
E, dali por diante, passei a orar todos os dias na
linguagem do Espírito. Antes de fazê-lo, porém, eu
dizia:
— Senhor, não sei orar e nem por quem devo
interceder. Peço-te que ores por meu intermédio, e me
conduzas às pessoas que te desejam.
Mais ou menos um mês e meio depois, comecei
a notar que acontecia um fato maravilhoso. As
pessoas com quem eu falava de Cristo, criam nele. A
princípio, não entendi direito, e pensei que tinha
descoberto, por acaso, uma nova e excelente técnica
de evangelização. Mas, na verdade, eu dizia as
mesmas coisas que antes. Depois compreendi o que
havia acontecido. Eu estava falando de Jesus a pessoas
que realmente desejavam ouvir. Deixara que Deus
participasse de minhas orações e isso tivera um
resultado direto em meu trabalho. Eu estava pedindo
a Deus que realizasse sua vontade por meu
intermédio, quando orava na língua que ele me dera.
E não poderia orgulhar-me de nada. Só poderia
maravilhar-me de ver como Deus permitia que eu
tivesse uma pequena participação em sua obra. E aí
veio a emoção. Ela veio, quando vi os resultados
dessas orações.
Passei a conhecer melhor os Willans, e eles se
me tornaram ótimos amigos e conselheiros.
Experimentei mais uma vez a gloriosa liberdade de
viver, que possuímos em Cristo Jesus. Ao me
converter, eu aceitara o fato de que Jesus havia
morrido por mim, mas a partir de então eu começava
a ver os milagres que ele estava operando no mundo
hoje.
6
As Quadrilhas
— Hai bin do ah? De onde você é?
Aterrorizado, o rapazinho fitou os quatro mem-
bros da famigerada quadrilha 14K que avançavam
para ele ameaçadoramente. Em gíria da quadrilha,
estavam indagando a qual daqueles grupos ele
pertencia. Mas o rapaz não conseguia responder,
tremia demais.
— M'gong? Não quer falar, hein?
Ah Ping, o porta-voz da turma, aproximou-se
mais até ficar a um passo dele. Não havia meio de
escape. O rapaz estava encurralado num dos becos da
Cidade Murada. Eles o atormentavam, ironizando seu
medo, avançando lentamente, como que deliciando-se
sadicamente com o pavor que lhe inspiravam.
O primeiro soco veio com grande rapidez, e
atingiu-o nas costelas — o treinamento que os
chineses têm no kung-fu produz grande flexibilidade e
economia de movimentos, que torna o soco preciso e
mortal. O menino caiu, e logo recebeu mais pancadas
no estômago, peito e virilha. Ele gemia, e se contorcia,
mas não disse nada. Então os outros foram
empurrando-o rua abaixo, chutando-o, enquanto ele
seguia aos tropeções, e depois se afastou
manquejando. Ficou então sabendo o que acontecia,
quando alguém entrava em território inimigo, sem a
devida proteção.
Aquilo dava enorme satisfação aos membros
das quadrilhas. Eles estavam no controle de tudo que
se passava ali em seu território. Foi aí que fiquei
sabendo que o salão que eu alugara situava-se bem no
meio da área controlada pela 14K, pois acabava de
presenciar aquela cena repulsiva.
— Por que fizeram isso? indaguei. O que aquele
rapazinho fez a vocês?
Ah Ping deu de ombros.
— Talvez nada, respondeu anuindo. Mas ele
não se identificou, então tínhamos que dar-lhe uma
lição. Provavelmente é dos nossos inimigos, o Ging
Yu, e temos que mostrar a eles quem é que manda
aqui.
Nos seus primórdios, a Sociedade Tríade era
uma agremiação secreta chinesa, cujos membros
faziam o juramento de derrubar o governo dos
opressores estrangeiros, e restaurar ao poder a casa
governante da China, a Dinastia Ming.
Nos dias atuais, a antiga Sociedade Tríade
encontra-se degenerada, tendo-se subdividido em
centenas de pequenos grupos, todos alegando ser um
prolongamento da tradicional Sociedade Tríade. Na
verdade, não passam de quadrilhas de marginais, que
utilizam esse nome e os rituais da antiga sociedade
apenas para camuflar suas atividades criminosas. No
passado, o indivíduo que quisesse filiar-se a uma das
sociedades tríades tinha que submeter-se a uma série
de rituais. Entre eles contavam-se decorar poesias,
aprender certas formas de aperto de mão e assinatu-
ras, e beber sangue, bem como derramar sangue.
Quando um homem entrava para uma delas, tinha
que jurar que iria seguir seu "irmão" para sempre. Este
era conhecido como daih lo, irmão maior; e o iniciante
era o sai lo, irmão menor. E esse laço era indissolúvel.
Um candidato a membro da Sociedade Tríade poderia
pedir a um membro efetivo dela que o deixasse
"segui-lo", e assim este se tornava seu irmão maior.
Cada quadrilha possuía uma complicada hierarquia
de deveres e posições de liderança. Alguns dos chefes
eram identificados por nomes estranhos, e outras
vezes apenas por números, tais como 489, 438, 26 e
415. Os membros comuns eram chamados penas de
49.
As quadrilhas espalhavam terror por toda a
Hong íong, o que facilitava a extorsão de pagamento
por proteção. A Cidade Murada era sede perfeita para
as quadrilhas. Ali operavam dois grupos principais,
geograficamente separados por determinada rua. O
Jing Yu tinha o controle de todas as salas de venda
consumo de heroína. Também recebia o pagamento
por proteção, e explorava a prostituição no setor a este
da Rua Principal. Mas os quadrilheiros mais temidos
eram os da 14K. Esse nome deriva do fato de ela haver
sido organizada na Rua Wah, n.° 14, em Tantão, com o
objetivo de ajudar a causa da China Nacionalista.
Dizia-se que ela contava com cem mil membros em
todo o mundo, e mais sessenta mil só em iong Kong, e
que controlava o comércio do ópio, os antros de
jogatina, filmes pornográficos, bordéis de crianças e
outros negócios, no setor oeste da cidade.
Seu comando era descentralizado, e a quadrilha
dele cada área tinha seu próprio dirigente, que
cuidava los interesses dela no local. Mas todos
conheciam os chefes principais, e os membros das
quadrilhas-irmãs eram chamadas de "primos". Assim,
em questão de minutos, um grupo tríade poderia
chamar a si dezenas de "irmãos", e, caso necessário,
podia organizar ama briga em poucas horas,
envolvendo centenas de quadrilheiros.
Enquanto as pessoas não ligadas às tríades
andaram pela cidade "rezando" para não serem
detidas, até mesmo os que pertenciam a Ging Yu ou
14K, quando saíam dela, só caminhavam em seu
próprio território. Eu, porém, andava por todas as
ruas indistintamente, chegando a conhecer o lugar
melhor que os próprios marginais, que se achavam
restritos a apenas um lado da cidade.
Os quadrilheiros que conheci observavam
aquela velha máxima de que existe honra até mesmo
entre ladrões. Em troca de uma obediência irrestrita
por parte do seu sai lo, o daih lo lhe prometia proteção.
Se um irmão menor fosse preso, o seu irmão maior
tinha que tomar providências, para que na prisão ele
recebesse comida, drogas e proteção, embora fizessem
restrições ao uso de drogas, já que sua ausência
diminuía sua utilidade para a quadrilha. E foi minha
preocupação pelos viciados que mais tarde me
aproximou de alguns líderes tríades, levando-me a
tomar chá com eles.
Não fiquei espantada ao saber que Christopher
iria ser iniciado numa 14K. Como poderia andar por
ali, se não pertencesse a uma quadrilha?
Ele freqüentara o clubinho com certa
assiduidade, mas, depois de certo tempo passou a me
evitar. Todas as vezes que tentava aproximar-me dele,
desaparecia. Começou a jogar e estava sempre em
companhia de marginais. Contudo, não queria que eu
visse o que estava fazendo. Chegou o dia em que o
apanhei. Encontramo-nos frente a frente, num beco
muito estreito, e ele não poderia dar para trás. Estava
encurralado. Eu carregava meu pesado acordeon e
pedi-lhe que carregasse o instrumento para mim, à
oficina de consertos. E enquanto caminhávamos, eu ia
conversando com ele.
— Christopher, em sua opinião, por que Jesus
veio ao mundo?
Ele não respondeu.
— Foi por causa dos ricos ou por causa dos
pobres? continuei.
— Por causa dos pobres, disse.
— Mas ele ama os bons ou os maus? indaguei.
— Jesus ama os bons, Sr.ta Poon.
— Errado. Sabe de uma coisa? Se Jesus vivesse
no mundo hoje, estaria aqui na Cidade Murada,
sentado naqueles engradados de laranjas,
conversando com as prostitutas e cáftens, bem lá na
lama.
Não é correto dizer a um chinês que ele está
errado, mas eu estava ansiosa para que ele compreen-
desse o que eu queria comunicar-lhe. Não era hora de
me importar com convenções.
— Era nas ruas que ele passava grande parte do
tempo, conversando com criminosos conhecidos, e ia
numa igreja arrumadinha e limpa, esperando que os
bonzinhos fossem lá.
— E por que ele fez isto? perguntou incrédulo.
— Porque foi para isso que veio, respondi
lentamente. Não foi para salvar os bonzinhos, mas
para salvar os maus, os perdidos.
De repente Christopher parou. Estava pasmado
com o que ouvira. Aquela altura, tínhamos saído da
idade Murada e passávamos pela rua do mercado, ele
disse que queria ouvir mais, e então deixamos o
acordeon na oficina ali perto e nos sentamos num
banco público. Narrei-lhe a história de Naamã, o
general que fora atacado de lepra, e concluí:
— É muito simples. A única coisa a fazer é
buscar Jesus e ser purificado.
Os veículos passavam por nós aos roncos; o
povo conversava em altos brados, como se faz em
Hong Kong. Um avião desceu para aterrissar. Mas
hristopher não estava escutando nada. Tinha os olhos
fechados e falava baixinho. Estava confessando a Jesus
que falhara em sua vida, e lhe pedia que o purificasse.
E sentado ali à beira da rua poeirenta e barulhenta, ele
se tornou crente.
No sábado seguinte, ele apareceu no clubinho e
stemunhou diante dos outros, dizendo que na semana
anterior não cria em Jesus, mas agora o conhecia, na
palavra foi acolhida, a princípio, com silêncio. Ias logo
começaram as chacotas e risos. Rapazes de família
ruim simplesmente não se tornavam crentes, isso era
para moços bons, educados, classe média. Ele devia
estar brincando.
Mas não estava. E recusou-se a continuar com
sua iniciação na quadrilha. Já estava com o livro de
regulamentos que deveria memorizar, mas devolveu-.
Uma coisa dessas nunca acontecera antes, no meio
aquela gente. E sua decisão foi uma revelação para
mim também. Jesus estava em Hong Kong também,
tanto quanto estava na Inglaterra; e aqueles que o
buscassem poderiam encontrá-lo.
A transformação que se operou em Christopher
foi notável. Passou a trabalhar tão bem na fábrica, que
foi promovido. Passava todo o tempo livre no
clubinho, e aos domingos ia aos cultos na igreja.
Continuei a orar em Espírito em minha devoção
particular, e outros rapazes como Christopher tam-
bém fizeram a decisão de converter-se a Cristo. Reu-
níamos para estudar a Bíblia e orar, muitas vezes, e
um dia, quando estávamos orando, um deles recebeu
uma mensagem em línguas.
Esperamos uns instantes, e daí a pouco
Christopher começou a dar a interpretação, em
cântico.
Caça ao Dragão
No coração de Hong Kong, encontra-se a
temida Cidade Murada, verdadeiro inferno de tráfico
de drogas e de jogatina ilegal. Os forasteiros não são
bem recebidos ali. A própria polícia tem receio de se
aventurar naqueles domínios. Ali florescem a
prostituição, a pornografia e o vício da heroína. E
nessa área pequena e apertada vivem amontoadas
pelo menos trinta mil pessoas — talvez o dobro.
Quando Jackie Pullinger saiu da Inglaterra, não
tinha a menor idéia de que Deus a estava levando
para trabalhar justamente na Cidade Murada. Mas,
quando começou a falar de Jesus ali, rudes
quadrilheiros se converteram, prostitutas largaram o
ofício... e Jackie tropeçou na descoberta de um novo
método de tratamento para a dependência das drogas.
Caça ao Dragão é um relato honesto, desafiante e
inspirador, que revela a fibra, o amor e a dedicação de
uma jovem disposta a tudo para servir a Deus.
Editora Betânia
Leitura para uma vida bem sucedida