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REVISTA

BRASILEIRA
DE

São Paulo
2009
Diretoria A B R A L I C 2009-2011

Presidente Marilene Weinhardt (UFPR)


Vice-presidente Luiz Carlos Santos Simon (UEL)
1º Secretário Benito Martinez Rodriguez (UFPR)
2º Secretária Silvana Oliveira (UEPG)
1º Tesoureiro Luís Gonçales Bueno de Camargo (UFPR)
2º Tesoureiro Maurício Mendonça Cardozo (UFPR)

Conselho Fiscal José Luís Jobim (UERJ, UFF)


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Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza,


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Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner,
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REVISTA
BRASILEIRA
DE

ISSN 0103-6963
Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.15 p. 1-195 2009
2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada
A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963)
é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura
Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega
professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura
Compa­rada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser


reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados,
sem permissão por escrito.

Editor Luís Bueno


Organizador Maurício Mendonça Cardozo
Comissão editorial Luiz Carlos Santos Simon
Benito Martinez Rodriguez
Silvana Oliveira
Luís Bueno
Maurício Mendonça Cardozo

Preparação/Revisão Patrícia Domingues Ribas


Diagramação Rachel Cristina Pavim

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação


Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) –
Rio de Janeiro: Abralic, 1991-
v.2, n.15, 2009

ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação


Brasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005
CDU 82.091 (05)
Sumário

Apresentação
Luís Bueno
Mauricio Cardozo 7

Artigos
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto
dos estudos portugueses e latino-americanos na Alemanha
Ligia Chiappini 9

A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria


Ferenc Pál 25

Tempos e contextos da literatura brasileira


na Argentina e no exterior
Florencia Garramuño 49

Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita


Abel Barros Baptista 61

O ameríndio como personagem do Outro na literatura


brasileira contemporânea: Órfãos do Eldorado e Nove noites
Rita Olivieri-Godet 89

Cânone literário e valor estético:


notas sobre um debate de nosso tempo
Idelber Avelar 113

O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro do Oprimido:


uma experiência na Carolina do Norte
Érica Rodrigues Fontes 151
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira
num curso de escrita criativa nos Estados Unidos
Heloisa Pait 173

Pareceristas 190

Normas da revista 191


7

Apresentação

Ao propor como tema os “Estudos de literatura


brasileira no exterior”, a Revista Brasileira de Literatura
Comparada procurou abrir um espaço para a discussão
dos diferentes lugares e dinâmicas de estudo da literatura
brasileira fora do Brasil, bem como de suas relações com o
deslocamento da posição ocupada pelo Brasil no cenário
político e econômico mundial nas duas últimas décadas.
Respondendo a essa proposta inicial, os artigos que
compõem este número da Revista formam três blocos di-
ferentes, organizados a partir da dimensão que privilegiam
em sua discussão.
No primeiro bloco, o que se destaca é a dimensão por
assim dizer institucional dos estudos brasileiros no exte-
rior. O artigo de Lígia Chiapinni é o significativo balanço
da experiência fundamental que representou a criação e
rápida extinção da única Cátedra de Brasilianística de uma
universidade alemã. Ferenc Pál e Florencia Garramuño,
por sua vez, traçam amplos panoramas históricos – com
um olhar atento ao futuro – dos estudos de literatura bra-
sileira em dois países que se localizam a distâncias (não só
geográficas) muito diferentes em relação ao Brasil: Hungria
e Argentina.
O segundo bloco é constituído por três trabalhos que
privilegiam a dimensão da análise literária. Abel Barros
Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, ao concen-
trar-se nas questões levantadas pelas leituras brasileira e
estrangeira de Machado de Assis, vale-se do conceito de
“hospitalidade” para discutir o estatuto do estudioso es-
trangeiro de literatura brasileira. Rita Cavalieri Godet, da
8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.14, 2009

Universidade de Rennes 2, ao realizar cuidadosa leitura de


obras de Milton Hatoum e Bernardo Carvalho, lança seu
olhar para a representação que a ficção brasileira contem-
porânea faz do ameríndio. Já Idelber Avelar, da Universida-
de de Tulane, ao tomar partido de sua posição de professor
brasileiro que atua nos Estados Unidos, convoca estudiosos
tanto brasileiros como estrangeiros para retomar um tema
fulcral da crítica: o do estabelecimento do valor.
O bloco final nos traz dois relatos que investem na
dimensão da experiência de professoras brasileiras nos Esta-
dos Unidos. No primeiro deles, Érica Rodrigues Fontes trata
de sua proposta de utilização dos fundamentos do Teatro
do Oprimido de Augusto Boal como instrumento de apro-
ximação de uma realidade que, em princípio, é estranha
ao aluno estrangeiro. No artigo que fecha este número da
Revista Brasileira de Literatura Comparada, Heloisa Pait
conta como procurou superar as dificuldades de discussão
de textos brasileiros em tradução no contexto de uma
instituição que, apesar de ter grande tradição, enfrenta as
dificuldades das pequenas faculdades americanas.

Luís Bueno
Mauricio Cardozo
9

Os estudos de língua e literatura


brasileiras no contexto dos estudos
portugueses e latino-americanos
na alemanha1
Ligia Chiappini*

resumo: Situação atual dos estudos de língua, literatura e cul-


tura brasileiras na Alemanha, descrita a partir da experiência
única da cátedra de Brasilianística que a autora ocupou por quase
quinze anos na Universidade Livre de Berlim. A interrupção
dessa experiência, a partir de 2010, confirmaria uma tradicional
contradição na Alemanha entre um grande interesse pelo Brasil
e um quase desinteresse por sua literatura.
palavras-chave: ensino e pesquisa, literatura brasileira,língua
portuguesa, reforma curricular, encerramento cátedra.
abstract: The current status of the studies of Brazilian language,
literature and culture in Germany is described by the author who
occupied the only Chair in Brasilianistik ever created in Germany
for almost fifteen years at the Freie University of of Berlin. The
interruption of this experience in October 2010, do confirm a
traditional contradiction in Germany between a great interest in
Brazil and almost no interest in its literature.
keywords: teaching and research, Brazilian literature, Portuguese

Em memória de Marlyse
1 language, curriculum reform, closure chair
Meyer. A literatura proveniente da América Latina tem
*
Professora catedrática de direito a ser considerada no mesmo nível que ou-
Literatura e Cultura Brasileiras tras literaturas, não deveria ser lida somente como
do Instituto Latino-Americano
veículo de informações sobre o país. Não é preciso
da Universidade Livre de
Berlim, entre 1997 e 2010. acentuar que uma obra literária transmite muitos
Atualmente trabalhando na elementos procedentes de outra cultura na ficção
orientação de teses no mesmo e desperta para outras formas de viver e de pensar.
Instituto, bem como na
pesquisa, junto ao Centro de
Porém os preconceitos ou, digamos, os clichês, que
Pesquisas Brasileiras, do qual é influenciam o diálogo entre o autor traduzido e o
co-fundadora.
10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

seu leitor estrangeiro, são, ao que parece, difíceis de


desaparecer na mente das pessoas.
(Ray-Güde Martin)

Nos meios cultos da Alemanha, a língua portuguesa


fica quase tão desconhecida como o pérsico ou o
sânscrito.
(Johann Jacob von Tschudi)

O objetivo deste texto é resumir um pouco o percurso


e a situação atual dos estudos de língua, literatura e cultura
brasileiras e de suas diferentes modalidades na Alemanha,
principalmente em Berlim, que conheço melhor, propondo
para nossa reflexão alguns problemas que pude identificar
em quase quinze anos de trabalho na Universidade Livre
de Berlim, como a primeira, única e, até segunda ordem,
última professora de Brasilianística da Alemanha. Esta
ironia se esclarecerá no decorrer deste texto, que atualiza
informações já divulgadas em algumas publicações ante-
riores.2 2
Por exemplo, no texto
Brasilianistik, em alemão, significa Literatura Brasileira “Literatura e cultura no
contexto dos estudos
ou Filologia Brasileira, por analogia a outras áreas desses brasileiros na Alemanha: a
estudos, tais como a Germanistik, a Hispanistik, a Anglizistik, cátedra de Brasilianística”
(Chiappini, 2005)
de mais longa tradição acadêmica. Na Universidade Livre
de Berlim, ela se localizou na confluência do Departamen-
to de Romanística com o Instituto de Estudos Latino-
Americanos. E, nesse contexto, adotou o tratamento da
literatura como manifestação cultural, abrindo-se a outras
linguagens, do cinema, da televisão, da música popular,
das artes plásticas, da poesia e narrativa orais. Para além
da filologia mas com a filologia, pois esta não deve ser
confundida com o estudo meramente formal dos textos
em si mesmos, pelo menos na terra de Spitzer, Auerbach,
Adorno e Benjamin, para citar apenas alguns dos grandes
estudiosos de língua alemã que trataram dos textos em seus
contextos e dos contextos nos textos.
Mas o que parece simples no enunciado acima é, na
verdade, muito complicado, pois a literatura brasileira
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto... 11

ainda enfrenta dificuldades para ser reconhecida em sua


autonomia (mesmo que relativa, como a de toda literatu-
ra), tensionada entre os Estudos de Literatura e Cultura
Latino-Americanos – hoje identificados com os Estudos
Culturais Norte-Americanos – e a Lusitanística, como par-
te da Romanística. Entre aqueles e estas, ela perde espaço e
visibilidade, mesmo em contextos nos quais se impôs como
necessária, depois de uma longa luta pela institucionaliza-
ção da disciplina, caso do nosso Instituto.
Em palestra realizada no primeiro simpósio inter-
nacional promovido pela Brasilianística, “Brasil: país do
passado?”, que se publicou posteriormente em livro com
o mesmo título, Dietrich Briesemeister (2000) faz um
balanço dessa luta, do início do século XIX ao final da dé-
cada de 90 do século XX, que ajuda a entender a situação
presente. Começa constatando nesse percurso um perma-
nente desequilíbrio na visão do Brasil pelos estudiosos na
Alemanha. Por um lado, seria esse País Tropical um paraíso
para geólogos, botânicos, sociólogos, geógrafos, etnólogos,
que sempre por ele se interessaram, sobre ele pesquisaram
e escreveram. Por outro lado, e paralelamente, haveria um
semidesconhecimento cultural e, mesmo, uma ignorância
quanto à “participação individual do Brasil na cultura
universal”, vigorando “enfoques valorativos eurocêntricos
3
Critérios e preconceitos e critérios preconceituosos” (Briesemeister, 2000, p. 349).3
que, aliás, tornaram a Ainda segundo Briesemeister:
vigorar, por parte dos que
nunca quiseram a cátedra de Os estudos brasileiros, no caso da literatura, sempre foi um
Brasilianística na Universidade
Livre de Berlim e retardaram
apêndice de Portugal, nos departamentos de Romanística
ao máximo a sua criação, das Universidades, ou dos estudos hispanoamericanos,
processo que durou de 1988 nos departamentos ou institutos latino-americanos. E aí
a 1995, e por parte dos que
também a situação piora dia a dia, com o português fazendo
provocaram, apoiaram ou
facilmente aceitaram a sua parte de uma estrutura que privilegia o espanhol (2000,
extinção quinze anos depois. p. 349).

O desconhecimento e o desinteresse não se manifes-


tariam apenas na ausência ou invisibilidade da literatura,
mas também na ignorância da dimensão que a própria lín-
gua portuguesa tem no mundo, sendo ela frequentemente
12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

comparada ao sânscrito e ao romeno, como línguas mais


ou menos exóticas e minoritárias:

Não obstante o número muito elevado e ainda o aumento


da população mundial dos países lusófonos em quatro
continentes (...), o ensino torna-se imperdoavelmente
reduzido nas universidades alemãs. O português entra em
competição com o espanhol como “terceira língua”, ficando
atrás em relação ao número de alunos (Briesemeister, 2000,
p. 350-351).

Briesemeister reconhece algumas raras exceções a


essa tendência ainda no século XIX, como a posição do
austríaco Ferdinand Wolf, autor de Le Brésil Littéraire,
publicado em 1863. Lamenta que esse exemplo não tenha
sido seguido como merecia e acusa mesmo um possível
retrocesso:

desde aquela obra singular de Wolf, não se fez muito nos


países de língua alemã a favor da pesquisa, da valorização
e da divulgação da literatura brasileira. Pelo contrário,
constata-se até uma tendência regressiva em comparação
com o posicionamento avançado do erudito austríaco
(Briesemeister, 2000, p. 351).

A regra continuaria sendo o predomínio do interesse


econômico, deixando as manifestações culturais sempre
em segundo plano, como no contraexemplo do livro de
Wilhelm Giese, O Brasil e a Alemanha: 1822-1922, em que
a literatura é a grande ausente. Isso revelaria um grande
desconhecimento tanto da dimensão quanto da qualidade
desta. O mesmo fenômeno nota Briesemeister nos livros
sobre literaturas latino-americanas, a maior parte dos quais,
até há pouco tempo, deixava de fora o Brasil:

(O) Brasil continuou ausente das obras que tratavam da


América Latina e, principalmente, de sua literatura, como
no livro de Max Leopold Wagner, Die Spanisch-amerikanische
Literatur in Ihren Hautströmungen, de 1924 (Briesemeister,
2000, p. 351).
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto... 13

Ainda nos anos 60 do século XX, falava-se freqüentemente


em América Latina, mas quase sempre com referência ex-
clusiva à América espanhola. Por exemplo, o livro de Michi
Strausfeld, Materialien zur lateinamerikanischen Literatur
(1976), só contém artigos dedicados a autores de língua
espanhola (Briesemeister, 2000, p. 351-352).

Defendendo a necessidade dos estudos regionais e, ao


mesmo tempo, a diversificação interdisciplinar, o mesmo
autor resume “o largo caminho da institucionalização”
(Briesemeister, 2000, p. 351) dos estudos portugueses e
brasileiros na Alemanha, pontuando, em 1912, a fundação
do primeiro Instituto Latino-Americano da Alemanha,
em Aachen, pelo cônsul Heirich Schüler. Ainda antes da
segunda guerra, a criação de três institutos que continu-
aram existindo depois dela: o Instituto de Pesquisas sobre
Ibero-América da Universidade de Hamburgo, o Instituto
Ibero-Americano do Patrimônio Cultural Prussiano, em
Berlim, o Instituto Português e Brasileiro da Universida-
de de Colônia. Destaca também novos centros, como o
Instituto de Cultura Brasileira, dos Frades Franciscanos,
em Mettingen, o Instituto Geográfico da Universidade
de Tübingen, o Centro Latino-Americano de Münster e,
finalmente, o Instituto Latino-Americano, da Universidade
Livre de Berlim, como primeiro centro de estudos interdis-
ciplinares sobre América Latina numa universidade alemã,
que só 25 anos depois de criado, ou seja, a partir de 1995,
foi “dotado de uma cátedra (única no país) de literatura e
cultura brasileiras.” (Briesemeister, 2000, p. 353)
Essa foi realmente uma conquista significativa. Cria-
da em 1989 e somente em 1997, depois de muitos prós
e contras, ocupada pela autora deste texto, a cátedra
mal completara um ano quando organizamos o simpósio
internacional, no qual foi proferida essa conferência de
Briesemeister, bem como a de Ray Güde-Mertin, da qual
tiramos a epígrafe acima.
14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Considerando as lacunas apontadas por esses e outros


estudiosos, a Brasilianística no LAI dedicou-se sobretu-
do ao estudo sistemático e à divulgação dos textos mais
significativos da Literatura Brasileira, embora ela tenha
trabalhado também com textos não canônicos e com tex-
tos que só podem ser considerados literários em sentido
amplo, tais como filmes, novelas de televisão, mitos, poesia
oral, entre outros.4 Mas isso não significou tratar os tex- 4
Para tanto, contou
tos isoladamente, havendo um esforço permanente para com uma ótima base
linguística dos estudantes,
relacioná-los com seus contextos, implicando um diálogo que aprenderam português
constante da crítica, da teoria e da história literárias com brasileiro com Berthold Zilly
e outros excelentes mestres,
a linguística, a economia, a história e as ciências sociais,
encarregados de cursos de
numa predisposição e abertura para a inter/pluri/transdis- língua, entre os quais, Zinka
ciplinaridade. Ziebell, hoje também leitora
na FU, Carlos Azevedo
Por outro lado, a proposta sempre foi trabalhar com o e Carlos Ladeira, ambos
Brasil sem deixar de levar em consideração a sua integração parcialmente financiados com
no mundo, a começar por tudo o que o une à América auxílio do governo brasileiro.

Latina, sem desconhecer suas especificidades linguísticas


e históricas; essa foi sempre a direção buscada.
A Brasilianística concebeu-se, assim, tanto como
parte de uma hipotética Weltliteraturwissenschaft quanto da
Romanística, da Lusitanística, da Literatura Comparada,
dos estudos de teatro, artes e comunicações, bem como da
Latino-americanística e em diálogo estreito com a Caribís-
tica, mas tudo isso sem esquecer sua base nos estudos de
literatura brasileira, que já constituem mais de dois séculos
de um saber acumulado, o qual não podemos esquecer,
como quem inventa a roda, a cada nova tendência teó-
rica produzida nos centros universitários hegemônicos da
Europa e Estados Unidos da América do Norte. 5
O termo se deve a Marlyse
A Brasilianística concebeu-se, ainda, como “Altos Meyer, que, já nos anos 1970,
e baixos estudos”5 de literatura e cultura e não como valorizava com saudável
distanciamento irônico os
Cultural Studies, porque estes muitas vezes tendem a con- estudos culturais para além dos
finar o estudo dos textos e a própria literatura nos países cânones literários, dedicando-
considerados periféricos a um conjunto de informações se, entre outros, aos estudos
sobre cordel e folhetim, muito
superficiais e até mesmo estereotipadas das produções antes de os Cultural Studies se
culturais, permitindo-se juntar num único seminário, de terem transformado em moda
modo indiscriminado, arbitrário e puramente folclórico, na América Latina.
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto... 15

aulas sobre descobrimentos, escravidão, Guimarães Rosa,


6
Como defendeu um colega música popular brasileira e jeitinho brasileiro.6
norte-americano no jornal da
Brazilian Studies Association
Finalmente, a Brasilianística sempre defendeu o espaço
(Brasa), associação de e a possibilidade de os escritores brasileiros escreverem e
brasilianistas dos Estados publicarem literatura, como em qualquer parte do mun-
Unidos. O jornal chama-se
Fagulha e no número de 1997
do, entendendo que negar essa possibilidade em nome da
estampou esse programa como democracia, como abertura para o não canônico, seria
alternativa aos programas um efeito perverso da atitude libertária, mesmo que bem
tradicionais de literatura e
cultura brasileira.. intencionada.
Como já foi dito, com esse cargo de titular para a Bra-
silianística criou-se a possibilidade de os estudos brasileiros
escaparem à situação de apêndice dos estudos portugueses
ou hispano-americanos. Para entender a importância disso
– sobretudo porque no Brasil poucos percebem a diferença
entre as condições de trabalho de um professor e de um
assistente ou de um leitor, para não falar dos professores
horistas ou encarregados de cursos –, é preciso saber que
na Alemanha, onde a hierarquia universitária se mantém
de modo muito rígido e conservador, um cargo de professor
implica um espaço próprio e possibilidades bem maiores de
fazer coisas que, aparentemente, todo docente universitário
com doutorado poderia fazer, como permite o sistema bra-
sileiro: desde orientar teses de doutoramento até coordenar
projetos, promover eventos, assinar convênios e gerenciá-
los. Isso tudo, mais o contrato permanente de trabalho,
possibilita uma continuidade de produção teórica e prática
no ensino e na pesquisa, tão importante na formação das
novas gerações. No caso da Brasilianística, permitiu con-
quistar um espaço autônomo para os estudos de literatura
e cultura, impedindo que se dissolvessem conteudística- e
redutoramente nas ciências sociais, embora vinculando-se
estreitamente a elas, pois a literatura sempre foi estudada
aí como parte da cultura e esta, como social e histórica.
Por outro lado, o aprofundamento da pesquisa e do ensino
específicos da literatura e da cultura brasileiras preservou,
e mesmo intensificou, o intercâmbio interdisciplinar com
os estudos hispano-americanos de literatura e cultura.
16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

É importante assinalar que o Instituto Latino-Ame-


ricano, apesar de suas contradições, ou mesmo por causa
delas, parece ser o lugar institucional ideal para uma dis-
ciplina desse tipo, pois permite não apenas aprofundar a
interdisciplinaridade mas também desenvolver atividades
que levem a superar culturalmente o tratado de Tordesilhas,
concorrendo para a integração da América Latina. Entre-
tanto, como vimos, a Brasilianística começou a funcionar
já num momento extremamente desfavorável, um ano
antes do balanço pessimista mas realista de Briesemeister,
quando a Universidade começava a ser pressionada para
ajustar-se às reformas neoliberais, ajuste esse que o autor
antecipou e que logo iríamos começar a viver de modo
vertiginoso, com a introdução das reformas curriculares
nas universidades alemãs e europeias, no sentido acor-
dado em Bolonha: generalização dos cursos de Bachelor e
Master e substituição dos cursos tradicionais de graduação.
O experiente professor e pesquisador já pressentia nessa
reforma novos entraves para os poucos progressos feitos
na institucionalização dos estudos de língua e literatura
brasileira, e mesmo portuguesa, na Alemanha, como a
então recente criação da Brasilianística. Tais entraves iriam
reforçar, segundo ele, aqueles identificados no passado, o
que o levava a sugerir um tanto profeticamente que tudo
tenderia a piorar:

O que impede quase insuperavelmente a independentização


dos estudos brasileiros nas condições precárias do momento
atual são as estruturas administrativas organizatórias da uni-
versidade alemã, tanto na sua tradição, como no âmbito das
reformas anunciadas para o futuro próximo (Briesemeister,
2000, p. 354).

E, realmente, piorou. A reforma universitária vinha


junto com significativos cortes de orçamento, prevendo
a extinção de postos e áreas inteiras. Nas Humanidades,
uma das primeiras áreas atingidas foi o português. Apesar
das várias realizações da Brasilianística – entre outras, a
oferta de quatro a cinco cursos diferentes por semestre, a
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto... 17

7
As recentes reformas orientação de mestrados e doutorados, a organização de
implicaram o fechamento simpósios, ciclo de palestras e publicações, o estabeleci-
de departamentos inteiros
de português em toda a
mento e gerenciamento de convênios internacionais com
Alemanha. Em Berlim, a outras instituições dedicadas à cultura e à língua brasileiras
Universidade Humboldt no Brasil e na Europa –, planejou-se e, em menos de cinco
encerrou mais radicalmente
esses estudos. A Universidade
anos, decretou-se o seu desaparecimento no âmbito mais
Livre tem mais condições hoje geral seja da Lusitanística, ao nível do BA,7 seja no âmbito
de manter uma parte deles, dos Estudos Culturais Latino-Americanos, ao nível do
mas o máximo que conseguiu
foi fazê-los sobreviver como Master.8
diploma complementar aos Ao nível do Bacharelado, a língua e a literatura bra-
Bachalerados da Romanística,
sileiras deslocaram-se para o departamento de Filologia
com um BA de estudos
brasileiros e portugueses Românica, como parte do BA de Estudos portugueses e
(valendo 60 pontos e não 90, brasileiros, enquanto a disciplina de Latino-americanística,
como os outros), o que significa
menos carga horária, menos
da qual fazia parte a Brasilianística como uma subárea,
disciplinas, menos professores: passou para o mesmo departamento, mas estranhamente
ou seja, uma formação mais assimilada ao BA de Filologia Espanhola, o que significa,
superficial na área.
concretamente, a exclusão do Brasil da América Latina ou,
8
O Master do Instituto prevê
um primeiro ano comum, com
então, a assimilação de uma língua de quase 200.000.000
cinco módulos obrigatórios de falantes, o português brasileiro, ao espanhol da Amé-
e alguns opcionais. Os rica. Motivos? Ao que parece, mais econômicos que
básicos são: Constituição da
América Latina; Conceitos
científicos.
e métodos da pesquisa sobre Não apenas a literatura brasileira se vê ameaçada.
América Latina; América Os “dilemas da institucionalização” ameaçam também a
Latina no contexto global;
Poder e diferença, além de um variante europeia da língua e os respectivos estudos literá-
módulo para desenvolvimento rios e culturais específicos da lusitanística. Como também
de projetos. Num segundo
previu Briesemeister, “torna-se impossível conciliar as
ano, os alunos podem
optar entre cinco áreas de necessidades da diferenciação adequada com os critérios
concentração: Transformação didáticos de aprendizagem e as relações histórico-culturais
e desenvolvimento; Literaturas
nas dinâmicas culturais da
dos países do mundo lusófono” (2000, p. 350). Ele enun-
América Latina; Antropologia ciou, em face disso, uma necessidade que estamos longe
cultural; Brasil no contexto de preencher:
global: literatura, cultura
e sociedade; Relações de
Sem dúvida, a especialização é absolutamente necessária,
gênero, formas de vida,
transformações. Esse master inevitável e urgente, não só para garantir, em nível institu-
começou em outubro de 2005, cional, a qualidade da pesquisa científica, mas também para
quando os novos bacharelados ajustar a formação profissional dos jovens universitários às
já haviam começado e hoje
já se evidencia em ambos a
exigências de hoje (Briesemeister, 2000).
necessidade urgente de serem
repensados e reformulados..
18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

A restrição da oferta no ensino de português, na


variante europeia e nas demais, entretanto, não foi acom-
panhada de uma diminuição da demanda, que continua
a crescer, mas está sendo canalizada, coerentemente com
a tradição de que nos falava Briesemeister, para cursos
destinados aos interessados das áreas consideradas mais
úteis, ligadas aos negócios ou às chamadas ciências sociais,
não aos estudos de literatura e cultura ou aos estudos
linguísticos, que eram contemplados normalmente no
antigo currículo.
No caso do Instituto Latino-Americano da Univer-
sidade Livre de Berlim, há um paradoxo. Trata-se, como
vimos, do instituto mais importante na Alemanha dedicado
aos estudos sobre a América Latina, com uma tradição
respeitável de estudos sobre o Brasil e que, recentemen-
te, se propôs a criar um Centro de Pesquisas Brasileiras.
Existindo desde meados da década de 1970, só em 1989,
como vimos, esse Instituto conseguiu abrir um cargo de
titular em literatura e cultura brasileiras, que quase dez
anos depois, em 1997, após muitas idas e vindas, com
tentativas de fechá-lo antes que começasse a funcionar e
tendo funcionado dois anos com professores substitutos,
veio a ser, finalmente, ocupado pela primeira colocada no
concurso feito em 1990. E justamente agora, quando ex-
pressivos resultados do trabalho aí desenvolvido começam
a aparecer,9 corta-se a sua continuidade, pela extinção do 9
Veja-se a lista das
cargo após a aposentadoria da sua titular. publicações, eventos, cursos e
projetos de pesquisa em nossa
Uma tarefa da Brasilianística, que por si só a justifica, homepage: <http://www.lai.fu-
consiste em, indo além do seu próprio gueto, ajudar a su- berlin.de/studium/disziplinen/
brasilianistik/index.html>.
perar tanto uma suposta autonomia absoluta dos estudos
filológicos quanto o preconceito de muitos brasilianistas das
ciências sociais, para os quais a literatura é vista ora como
uma joia supérflua, “sorriso da sociedade”, como queria o
escritor brasileiro Afrânio Peixoto no início do século XX,
ora como seu equivalente ao contrário: puro documento.
Essa concepção ainda positivista da literatura e das
artes embasa ou, pelo menos, justifica a criação de ba-
charelados disciplinares em que os estudos portugueses e
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto... 19

brasileiros têm menos pontos (60, contra 90 nos bachare-


A cada ano, a Associação
10
lados principais)10 e menos tempo ou nos Masters interdis-
dos Lusitanistas alemães faz
ciplinares, em que a literatura e a cultura submergem nos
um balanço do desmonte dos
estudos de língua e literatura chamados estudos de área, perdendo sua especificidade,
em língua portuguesa e o que implica a desconsideração total da questão estética,
constata que ele prossegue,
embora uma avaliação menos
pelo predomínio da análise conteudística ou a abordagem
pessimista não veja isso das condições de produção ou de recepção dos textos, ne-
como desmonte, mas como cessárias e esclarecedoras mas externas a eles e, portanto,
concentração desses estudos
em algumas universidades em
incapazes de dar conta da sua complexidade como objeto
detrimento de outras. feito de palavras que são ao mesmo tempo coletivas e
individuais.
Em meio a tantas mudanças, o que tentamos, no nosso
espaço cada vez mais restrito, foi resguardar o essencial,
que é a capacidade de trabalhar intensivamente, com pro-
fundidade, textos que constituem nosso objeto de estudo,
pois o que se ensina, neste caso, mais que uma série de
informações sobre eles, é uma atitude analítica, um método
para que cada um produza seu próprio método. Mais que
quantidade de informação, o que importa aqui é a quali-
dade da formação, e esta não se faz sem um domínio da
linguagem em que se expressa cada texto como produção
simbólica. No caso da literatura, sem o domínio da língua
e dos métodos de leitura desenvolvidos pelas teorias da
literatura, pelo menos desde Aristóteles, o que não sig-
nifica utilizá-los de modo acrítico ou extemporâneo, mas
tampouco fazer tabula rasa do capital teórico e analítico
aí acumulado.
Atualmente, começa-se a rediscutir as bases do
nosso Master de Estudos Latino-Americanos que se quer
interdisciplinar, mas não se sabe ainda muito bem o que
11
Nesse conjunto, a partir do
semestre de inverno de 2010,
fazer dos estudos da cultura quando esses ultrapassam as
a Brasilianística voltou a fazer leituras meramente conteudísticas e passam a investigar o
parte de uma só disciplina, tratamento dado aos temas, bem como a historicidade das
servida por apenas um cargo
de titular, que abrange toda formas. De todo modo, aí se procura articular em torno
a América Latina e o Caribe, de certos temas, considerados prioritários, as diferentes
como ocorria há quinze anos, o
disciplinas – Altamerikanistik (Antropologia e Arqueologia
que configura necessariamente
uma grande restrição, senão do continente americano), Lateinamerikanistik/Brasilianistik
um lamentável retrocesso. (Literatura e Cultura Latinoamericanas),11 História, Socio-
20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

logia, Ciências Políticas e Economia. No caso da literatura,


o que precisava ser compreendido, mas dificilmente o é,
nesse diálogo das disciplinas, é que, quando ela aparece
na sua complexidade, ao mesmo tempo como criação es-
tética e como documento, pode dizer muito mais sobre a
vida, principalmente se tratando do Brasil e da América
Latina, onde, como reconheceu há muito Antonio Can-
dido, tudo foi historicamente permeado pela literatura,
“desde o formalismo jurídico até o senso humanitário”,
chegando à “expressão dos sentimentos no âmbito fami-
liar” (Candido, 1989, p. 180). Parece óbvio – mas nem
sempre o óbvio é percebido como tal – que não é possível
realizar um trabalho inter ou transdisciplinar sem respeitar
os pressupostos epistemológicos e metodológicos próprios
de cada disciplina.
Quem estuda literatura e cultura num país como o Bra-
sil sabe que não é possível fazê-lo a não ser estabelecendo
comparações. A teoria e crítica literárias aí já nasceram
comparadas, mesmo que não quisessem sê-lo. E num país
onde a literatura se forma sob a pressão e a certeza de que
se está gestando com ela também a nação, não é possível
estudá-la sem relacioná-la intimamente com a História,
com a Sociologia, com a Política, com a Economia, com a
Antropologia. Mas é verdade que isso se fez muitas vezes
de modo implícito. O desafio, agora, é o de explicitar a
comparação imanente, o que implica a busca de padrões
e categorias que permitem tratar adequadamente seme-
lhanças e diferenças. Ao mesmo tempo, trata-se de um
desafio que é o desafio de todo trabalho interdisciplinar.
Como devem ser abordados os objetos literários a partir
da perspectiva dos estudos propriamente literários, a fim
de que esse diálogo realmente seja um diálogo e não a
submissão ou a diluição destes perante uma hegemonia
das ciências sociais?
Seja como for, é preciso reconhecer que, em Berlim,
tivemos até quase o final de 2010 uma situação que se pode
considerar de excelência na área dos estudos brasileiros,
incluindo a literatura e cultura. Essa excelência deriva de
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto... 21

que, além de contarmos com uma professora para essa cá-


tedra, contávamos também com um leitor extremamente
competente tanto no ensino da língua brasileira quanto
na tradução, crítica, teoria e história literárias, sem falar
nos encarregados de cursos que ajudaram a ampliar e di-
versificar a oferta de cursos desde o início. Essa excelência
precisa ser defendida e potencializada, o que foi previsto
no processo de criação do Centro de Pesquisas Brasileiras
acima referido, mas isso parece difícil de ser conseguido,
caso não se venha a compensar de forma consistente a
perda da Brasilianística.
A situação negativa que os estudos de literatura brasi-
leira, no contexto dos estudos de português em geral, vêm
enfrentando nos últimos anos, resumida ao longo deste
texto, provocou periodicamente balanços extremamente
negativos, dentro e fora da Alemanha. Eu mesma, com
base no texto citado de Briesemeister, mas também num
estudo de Walnice Nogueira Galvão e em informações
divulgadas nos encontros bienais da Associação de Lusi-
tanistas Alemães, reforcei esse tom pessimista em outras
publicações, o que chegou a ser lido como nostalgia, mas
que na verdade era realismo. Hoje em dia a situação
começa a mudar, graças à organização da comunidade
científica dos Lusitanistas e Brasilianistas, mas também
graças à importância reconhecida do Brasil para as relações
internacionais da Alemanha. Aqui e acolá há sinais de
resistência que nos impedem de desanimar, como foi o caso
do movimento iniciado pelos estudantes da Universidade
de Jena, sob o mote de “Wir wollen Portugiesisch” (Nós
queremos português). Pelo lado brasileiro, se antes havia
pouco incentivo, hoje se financiam novos leitorados para
compensar algumas perdas ou se estabelecem convênios
que permitem preservar sobretudo os cursos de língua que
sobreviveram nos novos currículos. Quanto à variante
europeia do português, o Instituto Camões, cujo apoio
aos leitorados parecia ter-se enfraquecido, volta a se fazer
presente, financiando pelo menos parcialmente alguns
leitorados, como ocorre atualmente na Universidade
22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Livre de Berlim e na Universidade Humboldt. Isso tudo


leva a juntar forças, num esforço de cooperar para vencer
a tendência a concorrer e dividir. Assim, no Bacharelado
de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade Livre
de Berlin, em que o português europeu é central, as outras
variantes da língua são, desde o início, objeto de estudos
comparativos. No que diz respeito à variante brasileira,
com ajuda da Embaixada Brasileira, estamos fazendo um
trabalho desde 2007 no sentido de conceber cursos de
cultura brasileira para além dos tradicionais e panorâmicos
cursos de civilização, produzindo e compilando tanto um
material básico para iniciantes, que vai de mapas a dados
numéricos e históricos, quanto outros mais complexos,
tais como textos de e sobre literatura e cultura, entre eles
os que tratam das manifestações culturais afro-brasileiras
ou dos povos indígenas. Também uma antologia de textos
curtos e atuais, de diferentes gêneros, em português brasi-
leiro, vem sendo preparada e sistematicamente atualizada,
como instrumento ágil para proporcionar aos estudantes de
português, desde o início da sua formação no bacharelado,
a experiência da variante brasileira. Assim, a partir dessa
base, eles terão oportunidade de desenvolver um conheci-
mento mais profundo e uma prática linguística mais ativa
nos módulos mais avançados, em que se trabalha mais
diretamente com o português do Brasil.
Uma produção de material didático de caráter contras-
tivo do português brasileiro com o português de Portugal
e de Angola, para ser usado no sistema do e-Learning, é
elemento de apoio básico nesse ensino. Dessa forma, os
diferentes registros da língua portuguesa e suas variantes
regionais e nacionais passam a ser considerados riqueza
comum e não instrumentos para reafirmar hierarquias e
12
Esse trabalho, que foi
justificar discriminações. No caso do Master de Estudos
iniciado e prossegue no
Latino-Americanos, também estamos produzindo um ma- âmbito de um convênio com
terial contrastivo, desta vez com o espanhol, já que a maior o Brasil, coordenado por Ligia
Chiappini e mediado pela
parte dos estudantes tem conhecimento dessa língua.12 Embaixada Brasileira, vem
Se pelo lado do ensino da língua esses são o panorama sendo desenvolvido pelas Dras.
e o desafio atuais, pelo lado da literatura talvez o desafio Zinka Ziebell e Rosa Henckel.
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto... 23

seja maior. Pois se já poucos reconhecem a importância


de estudar a língua portuguesa e suas variantes para a
comunicação e outros usos meramente instrumentais,
menos ainda se valoriza o conhecimento da língua como
matéria e forma da e na literatura, porque esta também só
interessa, como vimos, como documento ou como mer-
cadoria, no caso do best-seller. A literatura mais exigente,
que implica um grau mais alto de elaboração linguística,
é simplesmente demonizada ou ignorada, porque julgada
elitista, branca, ocidental. Desconsidera-se aí aquilo que
Antonio Candido definiu como contraveneno, que a boa
literatura carrega junto com as suas dimensões ideológicas
conservadoras.
No Instituto Latino-Americano tivemos por quase 30
anos um cargo pleno de leitor para Português Brasileiro e,
por quase 15 anos, simultânea e pioneiramente, um posto
de Professor para Literatura Brasileira, pois a Universidade
e pareceristas externos a ela reconheceram a autonomia
e a dimensão desta para comportar uma abordagem espe-
cífica. Mesmo assim, ainda não conseguimos despertar o
interesse de colegas e estudantes de outros departamentos
da mesma universidade, que trabalham com clássicos da
chamada literatura universal. E, do ponto de vista editorial,
o quadro tampouco é positivo. Um exemplo disso é o caso
de Guimarães Rosa. Considerado muito difícil e tendo suas
traduções em alemão esgotadas, dificilmente consegue
ser republicado. O ano do seu jubileu, 2008, coincidiu
com um debate sobre a literatura brasileira como um mau
13
Alusão a um debate negócio.13 Constatava-se aí que a literatura de qualidade
realizado no Instituto estaria perdendo terreno para a literatura meramente co-
Iberoamericano de Berlim
em parceria com o Instituto
mercial e para uma espécie de novo exotismo, expresso na
Goethe de São Paulo, em representação espetacular do brutalismo nas favelas, que
março de 2008. já em 1998 Ray Güde-Martin tematizava no trecho aqui
escolhido como epígrafe.
Mas, assim como Briesemeister, apesar do balanço
negativo, termina seu texto de modo otimista, citando o
crescente interesse de um certo público e a presença maior
dos escritores cineastas e artistas brasileiros em encontros,
24 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

recitais, colóquios, semanas culturais dedicadas ao Brasil,


bem como a atuação de colegas que ensinam, estudam,
traduzem e comentam o melhor da literatura brasileira,
além das associações que ajudam a manter a vitalidade do
setor, podemos ainda, mais de dez anos depois, acreditar,
apesar de todas as lacunas e retrocessos, que a indiferença
pela Literatura do Brasil e o seu desconhecimento podem
ser superados na Alemanha. Infelizmente, muito do diag-
nóstico de Briesemeister ainda vale para o presente e a
maioria dos brasilianistas alemães ainda “leva uma existên-
cia profissional acadêmica, em certo modo esquizofrênica,
rivalizante e paradoxal.” (Briesemeister, 2000, p. 354), mas
continuamos apostando que o trabalho desenvolvido no
espaço conquistado para a literatura brasileira no Instituto
Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim poderá
ajudar a superar essa esquizofrenia, pelo reconhecimento
das lacunas e a invenção de novos mecanismos que ajudem
a preservar e a desenvolver o que já foi realizado.

Referências
BRIESEMEISTER, Dietrich. Os estudos brasileiros na Alemanha.
In: CHIAPPINI, Ligia; DIMAS, Antonio; ZILLY, Berthold (Orgs.).
Brasil, país do passado? São Paulo: Boitempo, 2000. p. 349-357.
CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes. In: A educação
pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
CHIAPPINI, Ligia. Literatura e cultura no contexto dos estudos
brasileiros na Alemanha: a cátedra de Brasilianística. Martius-
Staden-Jahrbuch, São Paulo, n. 52, p. 251-263, 2005.
25

A imagem do Brasil e a
literatura brasileira na Hungria
Ferenc Pál*

resumo: O presente trabalho estuda as condições da recepção da


literatura brasileira na Hungria. Tendo-se inteirado da existência
do Brasil e obtido muitas informações deste país nos séculos XVII
a XIX, o público húngaro formou uma imagem do Brasil a que a
literatura, traduzida muitas vezes para servir interesses privados
ou políticos, não correspondia.
palavras-chave: imagem do Brasil, expectativas, exótico,
recepção da literatura.

abstract: This study examines the reception of the Brazilian


literature in Hungary. The Hungarian (reading) public has got
a lot of information about this country during the XVII-XIXth
centuries, so formed an image about Brazil what the literature,
translated for serving private or political interests, doesn’t suit
to.
keywords: image of Brazil, expectations, exotic, reception of
the literature.

Brasil e Hungria: primeiros contatos

Os húngaros, se bem que de uma forma e em condições


um pouco especiais, inteiraram-se da existência do Brasil no
século XVII, quando o autor da epopeia nacional húngara
Szigeti Veszedelem (“Desgraça de Szigetvár”), Miklós Zrínyi,
escritor, político e eminente militar da época, exclamou
*
Departamento de num libelo político as seguintes palavras contra a opressão
Português, Instituto de
turca: “Tenho notícias de que no Brasil há terras desertas
Romanística, FL da ELTE
(Faculdade de Letras da em abundância, peçamos pois ao rei espanhol [sic!] uma
Universidade Eötvös Loránd) província, façamos uma colônia tornando-nos cidadãos
de Budapeste.
26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

[daquele país]”(Zrínyi, 1661/2009).1 Podemos supor, sem 1


“Ugy hallom Braziliában
nos atrevermos a tecer proposições freudianas, que a partir elég puszta ország vagyon;
kérjünk spanyor királytul egy
de então o Brasil devia ou podia existir no subconsciente tartományt, csináljunk egy
húngaro como um lugar particular, distinto. coloniát, legyünk polgárrá.”
Nos séculos posteriores houve notícias esporádicas
do Brasil, em especial sobre a consequência do trabalho
dos jesuítas húngaros, entre eles János Zakariás e Dávid
Fáy, que participavam como missionários no levanta-
mento topográfico e na descrição das terras brasileiras.2 2
É em parte resultado do seu
trabalho o livro Itinerarium
Um conhecimento mais intenso, no entanto, começou
peregrini philosophi, Sinis,
a difundir-se no século XIX. O Brasil e a Hungria, ou Japone, Cicincina, Canada
melhor o Império Austríaco, que a Hungria integrava, et Brasilia definitum, editado
em 1720 na Universidade
mantiveram contatos diplomáticos a partir de 1817,3 e nos Arquiepiscopal, em Tyrnavae,
meados dos Oitocentos já havia um contato regular entre por Franciscum Szedlar e pela
os dois países, primeiramente por causa da emigração, que Sociedade de Jesus.

se iniciou depois da abolição do tráfico de escravos em 3


Cf. Ramirez, 1968. p. 243-
244.
1850. Entre os primeiros emigrantes supostamente havia
também húngaros cultos, versados na literatura, porque
na década de 1850 já temos notícias do Brasil que dizem
respeito a atividades de magiares. Em seu número 44, de 30
de outubro de 1859, o semanário de Budapeste Vasárnapi
Újság informa, na seção “Tárház” (“Depósito”), que “numa
antologia geral, publicada no Rio de Janeiro, acham-se onze
poemas húngaros” (Vasárnapi Újság, 1854-1860).
Nos jornais e revistas húngaros da segunda metade
do século XIX podemos ler muitas informações sobre o
Brasil. Quanto à presença do Brasil e das coisas brasileiras
no imaginário húngaro da época, as expectativas do público
são bem ilustradas pelo mesmo semanário Vasárnapi Újság,
cujas páginas trazem, em primeiro lugar, notícias interes-
santes, algumas vezes abordadas de forma científica, sobre
a curiosa flora e fauna brasileiras,4 bem como relatos sobre 4
“Tejfa” (Árvore que dá
leite) “ Um relato sobre a
viagens a esse país e nomeadamente ao Rio de Janeiro,5 fauna do rio Amazonas e do
informando que a região atrai os visitantes com a beleza da Rio Negro. Vasárnapi Újság, n.
sua vegetação, mas que, na questão do urbanismo, provoca 14, 4 jun. 1854.

má impressão aos viajantes europeus. Além de seus aspec- 5


Andersen – Dr. Hegeds.
“Utazás a föld körül” (Viagem
tos exóticos, as notícias também mostram o Brasil como
em torno da Terra). Vasárnapi
parceiro comercial e cultural da Hungria. Nas notícias po- Újság, n. 29, 17 set. 1854.
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 27

demos ler informações sobre o cultivo e comércio do café,


sobre o fato de que um comerciante húngaro transportou
vinhos de Arad, cidade do sul da Hungria de então, para a
6
Vasárnapi Újság, n. 27, 6 set. capital do Brasil, Rio de Janeiro;6 também se informa que
1857. a cantora Lagrange cantou uma ária do compositor hún-
garo Ferenc Erkel no Teatro da Ópera do Rio de Janeiro,
7
Vasárnapi Újság, n. 42, 17
e que um aristocrata húngaro, László Alvinczy, morreu no
out. 1858. Brasil.7
8
II. Dom Pedro brazíliai No enorme número de revistas e jornais que saíram
császár (D. Pedro II, imperador na Hungria do último terço do século XIX, juntamente com
brasileiro). Vasárnapi Újság, n.
informações de caráter político, como foi, por exemplo, o
47, 24 nov. 1889.
artigo de 1889 sobre a visita de Dom Pedro II à Hungria
9
Vasárnapi Újság, n. 17, 29
abr. 1883. nos anos 1870,8 ou informações sobre a proclamação da
“A vizi boa-kigyó” (A jibóia
10
República no Brasil e outros acontecimentos de política
– serpente da água). Hírmondó, interior, pretendia-se satisfazer a curiosidade do público
n. 23, p. 274, 1969. leitor em relação ao exotismo. Essa demanda pelo estranho,
11
Uma comunicação da exótico, pitoresco, etc., satisfazem-na tanto os artigos pu-
revista literária Nyugat,
blicados nos jornais como os livros publicados nessa época.
prestigiosa revista literária de
Budapeste da primeira metade Em um artigo no Vasárnapi Újság, “Egy magyar tengerész
do século XX, informa que o Brazíliában” (“Um marujo húngaro no Brasil”),9 Rthy
imperador tinha em grande
estima a obra de Mór Jókai.
Frigyes fala sobre o “povo estranho” que vive no Brasil,
No número 5 da revista, referindo-se dessa maneira à população negra, inexistente
publicado no ano de 1928, em território húngaro. Com estranhamento, também se
Gyula Szini fornece em “Jókai:
Egy élet regénye” (“Jókai:
fala na flora e fauna brasileiras. O artigo intitulado “A vizi
Romance de uma vida”) a boa-kígyó” (A jibóia – serpente da água), publicado no
seguinte informação sobre a Hírmondó,10 descreve alguns animais repulsivos do Brasil.
curiosa visita de D. Pedro a
Budapeste, no início da década Esta duplicidade da imagem ou dicotomia da re-
de 1870: “[Mór Jókai] tem cepção do Brasil também se observa na obra de Mór Jókai,
amigos soberanos. Dom Pedro,
romancista romântico de fantasia profícua, aliás escritor
o interessante imperador
brasileiro, hospedou-se favorito do imperador D. Pedro II,11 em cujas obras as aven-
intencionalmente no Hotel turas acontecidas no Brasil e certas peripécias econômicas
‘Angol királyn’, e não no
apartamento oficial, condigno
andam de mãos dadas. No conto do escritor intitulado Tíz
a um monarca, no Castelo de millió dollár (“Dez milhões de dólares”), os personagens,
Buda, a fim de poder ter um envolvidos em aventuras rocambolescas, graças a um
contacto mais íntimo e fácil
com o seu parente espiritual, o
dono de barco brasileiro passam uma semana no Rio de
bondoso Mór Jókai.” Janeiro.12 Mas, nos romances posteriores – para além de
Vasárnapi Újság, n. 49 a 52,
12 meras referências a um ou outro fenômeno curioso, como
dez. 1857. em Az arany ember (O homem de ouro, 1873), em que se
28 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

lê sobre um sapo luminoso que “irradia uma luz fosfores- Segunda parte: “[...] a
13

cente” e “canta de noite nos interiores, [...] às vezes tão peruiak, brazíliaiak mind csupa
ezüsttel fizetnek...” (Jókai, s/d).
alto que sua voz suplanta a dos cantores e da orquestra na
14
Primeira parte: “A senki
ópera” (Jókai, s/d) –, o romancista fala largamente sobre
szigete” (“Ilha de ninguém”):
as relações comerciais entre a Austro-Hungria e o Brasil. “Brazília fvárosa Rio de
No romance Fekete gyémántok (Diamantes pretos, 1870), Janeiro. Onnan hozzák a
gyapotot meg a dohányt,
por exemplo, escreve que “os peruanos e os brasileiros
ott vannak a leghíresebb
sempre pagam com prata”.13 E mesmo em Az arany ember gyémántbányák” (Jókai, s/d).
informa que “A capital do Brasil é o Rio de Janeiro. É de lá Primeira parte: “Amíg
15

que transportam para cá o algodão e o tabaco, lá estão as nem terjeszkedünk többre,


mint kávé, gyapot és
minas de diamantes mais famosas”.14 Na ficção fantástica
kolaj behozatalára [...]
A jöv század regénye (O romance do século vindouro, Kína [...] Japán és Brazília
1872) também se leem divagações de teor econômico: befoglalásával” (Jókai, s/d).

“Até não querermos mais do que a importação do café, do 16


“A liszt magyarországi
algodão e do petróleo [...] incluindo a China [...] o Japão termény volt, Rio de Janeiroig
Adria gzös szállította” (Jókai,
e o Brasil...”15 Em seu último romance, Ahol a pénz nem s/d).
isten (Onde o dinheiro não é deus, 1905), aparece a frase: 17
Dezs Migend: A brazíliai
“A farinha era um produto húngaro, foi o paquete Adria aranyhegyek árnyékában (Sob a
que a transportou até o Rio de Janeiro”.16 sombra das montanhas de ouro
brasileiras, Békéscsaba, 1926),
O Brasil, alvo da emigração húngara, e com um Béla Bangha: Dél-Keresztje alatt
contingente grande de emigrantes na primeira metade do (Sob a cruz do sul, Budapeste,
1934), Zoltán Nyisztor:
século XX, tornou-se um cenário real, onde as condições
Felhkarcolók, serdk,
de vida e de trabalho eram semelhantes às da Hungria, hazátlanok (Arranha-céus,
como afirmavam muitos livros de não ficção dessa época.17 selvas, apátridos, Budapeste,
1935) e Lajos Wild: Tizenöt év
Depois da Segunda Guerra Mundial, quando na Hungria
Brazíliában (Quinze anos no
aconteceu um câmbio de paradigma político, o Brasil, na Brasil, Arad, Vasárnap, 1936).
década de 1950, tornou-se terreno de lutas políticas das 18
Sobre a situação interna
forças populares contra o imperialismo e pela paz. Ao me- do Brasil saíram artigos
com títulos: “Brazília vezet
nos era assim que os órgãos políticos húngaros informavam
személyiségei az atomfegyver
seus leitores.18 betiltásáért” (Principais
Contudo, a exigência ou a ânsia do exótico continu- personalidades do Brasil
defendem proibição de armas
ava a existir por parte do público, no que dizia respeito nucleares, Tartós Békéért, n.
ao Brasil. Nos anos 1930 e 1940, quando por causa do 23, p. 4, 11 jun. 1950), “A
enorme número de emigrantes húngaros o Brasil entrava brazil nép lelkesen támogatja
a békeegyezmény megkötését
no dia a dia húngaro19 como um país “normal”, na ficção követel felhívást” (O
húngara de temática brasileira se registram ainda muitos povo brasileiro apoia com
elementos exóticos. Romances que se movem no universo entusiasmo o apelo por
celebrar o acordo pela paz,
das obras da literatura de cordel, como A brazíliai fenevad Tartós Békéért, n. 23, p. 2,
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 29

10 jun. 1951); “A brazíliai (A fera brasileira), de Tibor Magyar,20 o livro de contos


Kommunista Ifjúsági Villanó fények az serd mélyén (Luzes cintilantes no fundo
Szövetség újjászervezése” (A
reorganização das Juventudes
da selva), de Mihály Witte,21 e o Brazíliai nagybácsi (O tio
Comunistas brasileiras, Tartós brasileiro),22 de um tal László György, têm muito desse
Békéért, n. 3, p. 11, jan. 1951), exotismo. Outro Brasil, de aventuras na selva, se desenha
etc.
nos romances do ex-naturalista Gábor Molnár, que em
Cf. Boglár Lajos, 1997. O
19
1930 viajou à selva amazônica e, depois de perder a vista
autor foi cônsul húngaro no
Brasil entre 1928 e 1942. num acidente, regressou à Hungria e começou a escrever
20
Budapeste, 1940. ficção. O primeiro livro dele, intitulado Kalandok a brazíliai
Budapeste:
21
serdben (“Aventuras na selva brasileira”), saiu em 1940.
FerencesVilágmisszió kiadása, Nesse livro e nalguns outros que o seguiram ele não fez
1942. senão relatar o que tinha experimentado e visto naqueles
Budapeste: Nemzeti Figyel,
22
dois anos que viveu no Brasil, e o fez num estilo vivo e
1944.
vigoroso. Mas, com o tempo, essas experiências colhidas da
realidade ficavam em segundo plano, e o ambiente brasilei-
ro de pequenas povoações à beira da selva e dentro da selva
amazônica passou a ser palco de histórias movimentadas,
mescla do relato de experiências pretensamente vividas e
de histórias imaginadas.

Cf. Pál, 1996, p. 19-33 e


23
Presença da literatura brasileira na Hungria
Pál, 2004a, p. 11-37.
24
Fazendo referência à Podemos deduzir, do panorama histórico acima
“rivalidade” de Portugal e
do Brasil, que sempre nos
traçado,23 que o público húngaro havia muito tempo tinha
instiga a fazer cotejamentos, tomado conhecimento do Brasil e que esse país ocupava
podemos mencionar que um lugar privilegiado na consciência húngara.24 Assim,
tradicionalmente, e em
especial no século XIX, o
lentamente passava-se a ter condições de formar do Brasil
Brasil estava mais representado uma imagem diversificada e verídica que correspondesse
na imprensa húngara do à realidade do país.
que Portugal, apesar de que
alguns momentos da literatura Contudo, parece que há determinadas expectativas,
portuguesa, por meio da obra e preconceitos ou ideias fixas que orientavam e orientam
figura de Camões e de Pessoa,
o gosto do público, que prefere relacionar o Brasil com o
tenham um maior halo de
conotações na Hungria. Cf. exótico, o erotismo desenfreado ou requintado, as liberda-
Pál, 2004c, p. 161-171. des do carnaval e das praias do Rio de Janeiro, aventuras
25
Cf. Pál, 2004b, p. 121. entre os índios e na selva...
La force de l’âge. Em
26 Se dissemos em outra ocasião,25 citando palavras
húngaro: A kor hatalma. de Simone Beauvoir, para quem “a literatura é a melhor
Budapeste: Európa, 1965.
via para se conhecer um país estrangeiro”,26 no caso do
30 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Brasil havemos de acrescentar que, independentemente


do valor da obra e das intenções dos editores, só foram
aceitas pelo público e tiveram êxito na Hungria as obras
brasileiras que satisfizeram as expectativas acima enume-
radas. Esse critério talvez seja muito rigoroso e restritivo
mas, se queremos ultrapassar uma simples enumeração,
à maneira positivista, das obras traduzidas da literatura
brasileira, que representam uma matéria morta, existente
mas sem influência, temos de estudar a recepção das obras
brasileiras e ver quais delas tiveram impacto no meio hún-
garo, partindo das ideias de Ricoeur, Gadamer ou outros
teóricos que supõem alguma identificação conotativa com
uma obra para fazê-la sair do âmbito do simples terreno
denotativo.
As primeiras informações da literatura brasileira che-
garam por via dos verbetes das enciclopédias editadas na
viragem dos séculos XIX e XX. Em A Pallas Nagy Lexikona
(A grande enciclopédia da [Editora] Pallas) ainda não se
encontra uma informação sobre a literatura do país no
verbete Brazília,27 mas a alguns poetas destacados (como A Pallasz Nagy Lexikona, v.
27

Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e Tomás An- 3.

tónio de Gonzaga) a obra já dedica verbetes autônomos.


No volume 3, de 1911, da Révai Nagy Lexikona (Grande
enciclopédia de Révai) já se encontra um verbete em
separado sobre a “literatura brasiliana” rezando que “a
literatura brasiliana durante muito tempo foi apenas um
ramo da literatura portuguesa e só nos últimos tempos
começou a se desenvolver em rumo diferente” (Révai Nagy
Lexikona, 1911). Nessa enciclopédia já é maior o número
de autores com verbete autônomo (encontramos verbetes
sobre os autores mais importantes ou renomados do Ro-
mantismo, como Macedo, Álvares de Azevedo, Bernardo
Guimarães, etc.).
Nas enciclopédias posteriores, em especial nas enci-
clopédias de literatura universal, encontramos informações
cada vez mais sofisticadas sobre a literatura brasileira, até
que, na iniciativa de grande envergadura da Világirodalmi
Lexikon (“Enciclopédia da literatura universal”), publicada
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 31

entre 1970 e meados de 1990, figuram, além dos verbetes


sobre a literatura brasileira e fenômenos literários ligados
com o Brasil (como, por exemplo, o Modernismo), verbetes
sobre 228 escritores brasileiros.
Tratava-se de mera informação sobre as letras brasi-
leiras, que ainda não se fazia acompanhar de traduções de
obras para efetivo conhecimento por parte do público hún-
garo. Assim, com relação ao modo como as letras brasileiras
tornam-se de fato conhecidas na Hungria é bastante difícil
identificar os fatores determinantes da expansão desse
conhecimento: por um lado temos as primeiras notícias
informativas; em seguida surgem as primeiras publicações
de traduções que, na realidade, não são mais do que infor-
mações gerais dessa literatura, e após esse conhecimento
geral surgem ou podem surgir as obras com as quais o
público leitor tem já um contato mais familiar.
Parece-nos mais ou menos evidente que, até a publi-
cação dos primeiros volumes da “Grande Enciclopédia de
Révai”, quer dizer, até os anos 1910, não se traduzira obra
brasileira alguma para o húngaro, dado que nessa enciclo-
pédia não há referências a obras brasileiras publicadas em
húngaro, nem encontramos em nosso trabalho de pesquisa
nenhuma outra menção de obras traduzidas desse país.
A primeira obra brasileira traduzida para o húngaro,
segundo podemos afirmar hoje, foi um conto de Machado
de Assis, publicado em 1912 no jornal Világ de Budapes-
28
“Az ápoló” (“O te, com o título Az ápoló.28 Temos outro texto brasileiro
enfermeiro”). Világ, ano traduzido para o húngaro, incerto quanto aos dados bi-
III, n. 46, p. 1-2, 23 fev.
1912. Na seção de folhetim, bliográficos: é um conto de Ottavio Brandão, publicado
sem indicação do nome do no (suposto) número 1 da revista intitulada Új Hang, de
tradutor.
1931, uma revista político-literária publicada em Moscou.
Essa informação aparece na “Enciclopédia da Literatura
Világirodalmi Lexikon, v. 1, p.
29 Universal”.29 Infelizmente, não foi possível consultar, até o
1090. momento da redação deste artigo, o número mencionado
do periódico, de forma que não temos informação sobre
qual dos contos do autor figura na revista.
Por outro lado, há informações a respeito de um conto
de Monteiro Lobato que saiu na revista ilustrada de lite-
32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

ratura e artes intitulada Pásztortz (Fogueira de Pastores),


editada na Transilvânia.30 O conto Az élcfaragó (Fabricante 30
Az élcfaragó. In: Pásztortz
de piadas) saiu na seção “Narradores Estrangeiros”, e foi (Kolozsvár/Cluj), ano XVI,
n. 17, p. 391-393, 24 ago.
acompanhado de uma nota que, além dos dados biográfi- 1930. Sem nome completo do
cos, oferecia uma avaliação ponderada do autor: “Monteiro tradutor, indicado apenas com
Lobato é o criador da moderna literatura nacional no a abreviação: Szys.

Brasil. Tem por objetivo fazer um contraponto à literatura


francesa, e, ao mesmo tempo, revelar as enfermidades da
alma brasileira...” (Pásztortz, 1930, p. 391). A apresen-
tação avaliativa do autor faz-nos supor que é trabalho de
uma pessoa conhecedora da literatura brasileira e mostra
a seriedade daquela revista, que reunia uma série de escri-
tores da Transilvânia da época.
Assim, é num parecer bastante generalizado que um
livro de poemas, publicado em 1939, indica o primeiro
momento da difusão mais abrangente da literatura bra-
sileira na Hungria. Trata-se da seleção intitulada Brazília
üzen (“Mensagem do Brasil”), traduzida por Paulo Rónai.31 31
Para os poucos que
Este livrinho, que tem poemas de 25 poetas brasileiros da não conheçam seu nome,
informamos que Paulo Rónai
primeira metade do século XX, acompanhados de uma in- (1907-1992) é um literato
trodução que esboça o panorama da literatura (ou antes: da húngaro que em 1940
trasladou-se para o Brasil
poesia) brasileira, é uma publicação que lança os alicerces
como bolsista do governo
para um conhecimento ulterior, não obstante passar quase brasileiro e nesta sua nova
despercebido. Afinal, os critérios da seleção dos textos já pátria desenvolveu variada
atividade como tradutor,
contavam, de saída, com um círculo reduzido de leitores. crítico e historiador de
Paulo Rónai, no prefácio do livro, rejeitando satisfazer um literatura.
gosto pelo exótico ou movido por um interesse folclórico,
apresenta a poesia brasileira como manifestação “de um
jovem povo com cultura, enérgico e em vias de desenvol-
vimento, experimentando uma vida intelectual cada vez
mais profunda” (Rónai, 1939, p. 8).
Nos poemas da antologia prevalece um certo gosto ou
“ar” parnasiano. Sobre a poesia de Olavo Bilac, o tradutor
afirma: “Nos seus versos muito burilados, um pouco frios,
falta o couleur locale, contudo eles contêm uma cintilação
tropical indefinida” (Rónai, 1939, p. 8). A seleção deu
preferência aos poemas de alto quilate poético, universali-
zantes, relegando ao segundo plano aqueles que em versos
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 33

desiguais e livres apresentavam cores e tons mais ásperos,


mais modernos, como, por exemplo, os que Ronald de
32
Notamos, por outro lado, Carvalho escreveu a respeito do Brasil.32 Assim, dos 33
uma falta total de poemas da poemas do livro, reunidos em quatro pequenos ciclos, só
primeira fase do movimento
modernista, que, parece, não
oito do ciclo “Descobrimento do Brasil” evocam ambientes
correspondiam ao gosto do tipicamente brasileiros.
selecionador. Essa mesma Julgando-se objetivamente, pode-se dizer que tal
antipatia pela literatura da
vanguarda e/ou experimental princípio de escolha e apresentação dos poemas resultou
também se nota, muito mais do gosto intelectual urbano daquele momento. É essa mes-
tarde, na sua colaboração
ma voz universal, e não as peculiaridades exóticas, que se
para a Enciclopédia da
literatura universal, na qual, frisa na recensão informativo-crítica do publicista György
por exemplo, não aparecem Bálint, escrita alguns meses depois da publicação do livro
os representantes da poesia
de poemas de Paulo Rónai.
concreta, etc. Não sejamos,
contudo, injustos com Paulo
Rónai: em seu prefácio, ele Os livros de viagens ou os folhetos turísticos mostram só
fala sobre as dificuldades de o exotismo, no entanto os poetas informam sobre o essen-
obter livros do Brasil: pode cial. Esse essencial, esse “outro Brasil”, nós o encontramos
ser que simplesmente não
tivesse à mão todas as obras
nesse livro de traduções novo e belo. [...] Todos os poetas
necessárias para uma antologia são aparentados, afinal; a mesma coisa que causa dor ou
equilibrada. alegria aos poetas crioulos, negros, índios e mestiços causa-
33
É com estas palavras que o as também aos franceses ou húngaros. Suas vozes são afins
texto termina: “Agora desde e universais... (Bálint, 1939, p. 7)
escrivaninhas brasileiras, mãos
brancas ou negras batem o
sinal tranqüilizador, dizendo
Nessas palavras do jornalista, escritas na véspera da
que estão de guarda; e da Segunda Guerra Mundial, percebe-se também uma pre-
Europa maltratada bate-se a ocupação com os valores da cultura ameaçados. Assim,
resposta: ‘Obrigado!’” (Bálint,
1939a, p. 7) suas palavras sobre a poesia brasileira têm uma mensagem
34
Bálint, 1939b, p. 31.
política para a atualidade de então.33 Essa mesma posição
se reflete num outro texto dele, Brazíliai regény (Romance
35
Para os leitores mais
sagazes, que pensam descobrir brasileiro),34 escrito depois da leitura, em francês, do Dom
uma incongruência de datas, Casmurro de Machado de Assis, que ele apresenta como
assinalamos que o publicista
romance por excelência, quase instituição nacional. O
pôde ler as traduções de Paulo
Rónai antes da publicação jornalista que, segundo ele mesmo diz, se familiarizara
do livro Mensagem do Brasil, com o Brasil pela leitura das traduções de Paulo Rónai35
em agosto de 1939, porque
o tradutor publicara algumas
chega à conclusão, um pouco precipitada (e, já sabemos,
delas em diferentes revistas, falsa), de que os brasileiros são gente feliz porque têm pre-
anteriormente. ferência pela literatura pura, alheia aos trágicos problemas
nacionais, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com
a literatura húngara. Suas palavras novamente refletem
34 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

uma perspectiva universalizante, porque ele sublinha que


o maior mérito desse livro é que não é “nada brasileiro”:
“Nada tem de exótico, a não ser que os criados sejam
negros e um dos amigos do personagem principal sofra de
hanseníase.” (Bálint, 1939b, p. 31)
É curioso observar, nos intelectuais que formavam
o gosto literário daquela época, a falta de sensibilidade
diante do exotismo brasileiro, que se manifestava tão in-
tensamente nas obras de ficção de temática brasileira dos
escritores húngaros acima mencionados, ou ao menos dian-
te dos problemas específicos do Brasil, aspectos que tanto
marcaram, tempos depois, a visão da geração que travou
contato amplo e profundo com as letras latino-americanas,
incluindo as brasileiras, por meio dos escritores do boom,
notadamente Alejo Carpentier, Rómulo Gallegos, Gabriel
García Márquez, Juan Rulfo, etc.
Assim, em outra resenha crítica a respeito de Brazília
üzen (Mensagem do Brasil), publicada na revista literária
Nyugat (Ocidente), o autor escreve: “não procuremos
um exotismo exterior na poesia”. E justifica-se: “além dos
poemas de costume, que deixam entrever uma influência
francesa, encontramos, neste livro, alguns poemas de
pompa estranha e surpreendentes. O estranho não se diz
com respeito ao couleur locale...” (Nagy, 1939). Os poemas
caracteristicamente brasileiros passam quase despercebidos
para o crítico.
Como já mencionamos, essa atitude fundada no
eurocentrismo e afastada do gosto geral do público leitor,
que continuava interessado pelos momentos exóticos do
Brasil, também deformou a visão dos intelectuais (e de
seu público) de então, que não podiam ou não queriam
observar da literatura brasileira senão aquelas obras que
“demonstram que o espírito europeu não conhece frontei-
ras e num tempo futuro, quando já não existir na Europa,
povos mais novos e mais felizes irão retomá-lo na América”
(Bálint, 1939, p. 31).
Nesses anos aparecem mais duas obras literárias bra-
sileiras: Paulo Rónai publica, em 1940, uma seleção de
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 35

poemas de Ribeiro Couto, com o título de Santosi Versek


36
Budapeste: Officina, 1940. (Poemas de Santos),36 e o jornal Népszava publica em
37
“Egy brazil bérház”. Trad. por folhetins O cortiço, de Aluísio Azevedo, com o título Egy
Henrik Horváth. In Népszava brazil bérház (Um prédio brasileiro).37 Depois, em 1944,
(Budapeste), desde o n. 233,
de 1940, até o n. 20, de 1941.
essa tradução é publicada em forma de livro, com o título
Hangyaboly (Formigueiro).38
38
Esta edição de 1944
do romance de Azevedo A Segunda Guerra Mundial e o estabelecimento de um
(Budapeste: Anonymus) novo sistema político na Hungria, a “construção do socia-
teve uma pequena edição
lismo”, indicam uma mudança de concepção na recepção e
fac-similada de 30 exemplares:
Azevedo, Aluizio. Hangyaboly. interpretação da literatura em geral e da literatura brasileira
Budapeste: Íbisz, 2002. em particular. A literatura passa a ser uma arma da luta
ideológica. Dessa forma, já não se procuram nela valores
universais e eternos, senão uma resposta mais ou menos
imediata à realidade circundante. Alteram-se também os
horizontes da orientação literária: a literatura do “ocidente
culto” (França, Inglaterra, parte ocidental da Alemanha,
Estados Unidos, etc.) é considerada arte decadente e o
lugar dela, ocupa-o a literatura socialista, em primeiro lugar
a da União Soviética, dos países socialistas e a literatura
progressista dos países das Américas, África e Ásia.
Nesse novo horizonte cultural-literário, cabe ao
Brasil um lugar privilegiado. Sendo, em aparência, mais
independente em relação aos Estados Unidos do que os
outros países latino-americanos, o Brasil torna-se um
alvo privilegiado na luta contra o imperialismo ocidental.
Por essa razão, os romances do primeiro período de Jorge
Amado são publicados na Hungria e o autor, que circula
entre Praga e a União Soviética, torna-se um escritor de
presença contínua na imprensa.
Por isso, o tradutor de Dona Flor e seus dois maridos,
János Benyhe, pode escrever com plena razão, em 1970,
no posfácio desse livro: “Dez ou quinze anos atrás talvez
fosse supérfluo este posfácio. Jorge Amado foi o escritor
estrangeiro mais conhecido e mais popular na Hungria”
(Benyhe, 1970, p. 499). Entre 1947 e 1976 saíram quinze
livros de Jorge Amado (dois no final dos anos 1940, cinco
nos anos 1950, seis nos anos 1960 e três nos anos 1970,
não contando as inúmeras reedições).39 Sobre esses livros
36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

foram publicadas 26 recensões críticas.40 Mas o que mais 39


Oferecemos uma lista
demonstra a difusão da imagem de Amado como escritor completa das edições das obras
de Jorge Amado em húngaro
politicamente comprometido e como “zoon políticon” é o
(entre parênteses indicamos
grande número de escritos sobre a sua pessoa. Entre 1953 as edições posteriores): Terras
e 1975 saíram 16 artigos que diziam respeito a ele, e muitos do sem fim (Szenvedélyek
földje). Trad. Attila Orbók.
com títulos altissonantes, como: “Os eminentes soldados da
Budapeste: Káldor, 1947 (uma
paz: Jorge Amado” ou “Jorge Amado sobre o movimento segunda edição com o título
da paz brasileiro e sobre seu novo romance”.41 húngaro Végtelen földek.
Trad. Emil Hartai. Budapeste:
Com a profusão com que os romances de Jorge Ama- Szikra, 1950); Cacau (Arany
do circulavam na Hungria (com tiragens de 40 a 80 mil gyümölcsök földje). Trad.
exemplares), não é de estranhar que até hoje o Brasil Emil Hartai. Budapeste:
Szikra, 1949 (segunda edição:
apareça-nos tal como o escritor baiano o pintou. Tanto Európa, 1975); Vida de Luís
mais porque Jorge Amado foi o escritor brasileiro cujas Carlos Prestes, o cavaleiro
da esperança (A reménység
obras satisfaziam as expectativas do público leitor com o
lovagja. Életrajzi regény Luis
seu latente erotismo, em especial a partir de Dona Flor e Carlos Prestesrl). Trad. Emil
seus dois maridos, e a pintura do mundo colorido e exótico Hartai. Budapeste: Révai,
1950; Seara vermelha (Vörös
da Bahia.
vetés). Trad. Marcell Benedek.
Sobre Jorge Amado, um dos primeiros escritos é uma Budapeste: Szépirodalmi,
recensão crítica de Terras do sem fim, publicada na revista 1951; Jubiabá (Zsubiabá). Trad.
János Benyhe. Budapeste:
científico-ideológica do partido comunista, Társadalmi Szépirodalmi, 1952; Mar Morto
Szemle (Revista Social), que estabelece as forçosamente (Holt tenger). Trad. Sándor
necessárias linhas de interpretação dessa obra – válidas, in- Tavaszy. Budapeste: Kossuth,
1960; (segunda edição: idem,
diretamente, para os outros romances do mesmo autor: 1961, terceira edição: idem,
1973); A morte e a morte
Jorge Amado, Pablo Neruda e os outros escritores eminentes de Quincas Berro Dagua
[...] mostram uma nova cara da América Latina. Não é o (Vízordító három halála).
Trad. Lajos Boglár. Budapeste:
exotismo, ou a imagem das selvas sem fim que prevalece em
Európa, 1961; Gabriela, cravo e
suas obras, mas sim a violenta luta de classes simbolizada canela (Gabriela,
pela batalha entre os coroneis do cacau e seus escravos. szegf és fahéj). Trad. Sándor
(-z. -l. 1950, p. 834) Szalay. Budapeste: Európa,
1961 (segunda edição:
idem, 1975); A completa
Compreende-se este tom altamente engajado porque verdade sôbre as discutidas
se trata de um artigo de teor informativo que saiu numa aventuras do Comandante
Vasco Moscoso de Aragão,
revista teórica, mas as recensões publicadas nas revistas
Capitão de Longo Curso (A
literárias também incorrem nesse tom politizado em que vén tengerész). Trad. Sándor
não há lugar para análises estético-literárias. Na revista Szalay. Budapeste: Európa,
1963; Os pastôres da noite (Az
literária intitulada Csillag, da Associação Húngara de éjszaka pásztorai). Trad. János
Escritores, um dos historiadores de literatura daquele Benyhe. Budapeste: Kossuth,
1967; Dona Flor e seus dois
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 37

maridos (Flor asszony két período assim descreveu os fundamentos de “A terra de


férje). Trad. János Benyhe.
Budapeste: Európa, 1970;
frutos de ouro”:
Capitães da areia (A kiköt
rémei). Trad. Sándor Tavaszy. O romance de Amado é um escrito combativo, comunista.
Budapeste: Kozmosz Könyvek, Seus heróis verdadeiros são o povo e o homem de novo qui-
1971; Tenda dos Milagres
late, saído do povo e lutando contra os horrores do mundo
(Csodabazár). Trad. András
Gulyás. Budapeste: Európa, imperialista: o homem comunista. [...]
1976. A apresentação dessa podridão não desce ao naturalismo,
40
Queremos notar como é o reflexo verídico desta sociedade que requer amostras
curiosidade que do romance fidelíssimas da macabra dança do capitalismo. (Koczkás,
A completa verdade sôbre 1950, p. 61)
as discutidas aventuras do
Comandante Vasco Moscoso
Aragão, Capitão de Longo Essa imagem estreita, unilateral, subordinada a fins
Curso, intitulado em húngaro eminentemente políticos é a que se apresenta quando, a
A vén tengerész (“O velho
pretexto dos romances de Jorge Amado, fala-se sobre o
marinheiro”), saído em
1963, escreveram-se entre Brasil. Algumas vezes o discurso ganha tons de hino, como
maio e outubro daquele ano na recensão sobre Seara vermelha, que saiu num semanário
seis recensões informativas
nos mais diversos órgãos de
de literatura, Irodalmi Újság (“Jornal Literário”), em 1951:
imprensa. “Seara vermelha mostra o Brasil levantando-se”, pois “até
41
“A béke kiváló harcosai: aos operários miseráveis chegou a esperança que estimula
Amado Jorge”. Népszava a viver: a esperança da nova vida, do socialismo” (L. I.
(Budapeste), 30 maio 1953.
1951)
“Jorge Amado a brazil
békemozgalomról és új Ao final da década de 1950, essa imagem deformada
regényérl”. Szabad Nép do Brasil e de sua literatura começa a se matizar com
(Budapeste), 18 dez. 1953.
diferentes tons. Além de Jorge Amado, vêm aparecendo
outros escritores e, entre eles, alguns cuja obra tem outros
valores, não apenas políticos. Assim saíram dois poemas
de Jorge de Lima na revista de literatura mundial, Na-
gyvilág (fundada na época do “abrandamento” do poder
Nagyvilág (Budapeste). Ano
42 totalitário).42 E nas notas de viagens de um literato húngaro
IV, n. 8, p. 1173-1174, ago. que em 1961 publicou as suas Impressões do Brasil, depois
1959.
de assistir ao congresso do PEN Clube no Rio de Janeiro,
já se encontra um tom mais equilibrado. Para ele, a obra
de Jorge Amado é uma fonte de informação antes sensorial
que exclusivamente politizada sobre “esse peculiar mundo
popular, de cuja beleza e intimidade gostei tanto quanto
da sua rica fantasia e das suas múltiplas cores decorativas.”
(Stér, 1961, p. 729)
38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Em suas andanças pelo mundo brasileiro, o guia desse


literato húngaro é a monografia intitulada Geografia da
fome, de Josué de Castro. Mas Stér tem bastante sensi-
bilidade para ver e descobrir um Brasil excêntrico, mul-
tifacetado, de componentes culturais e étnicos múltiplos
e amalgamados, entre eles a música popular brasileira e a
sua melancólica melodia, ou o carnaval e seu simbolismo
popular, que Stér interpreta sob a influência do filme
Orfeu negro, do diretor francês Marcel Camus. Finalmente,
o viajante atreve-se a dizer aos húngaros que o Brasil não
deve ser entrevisto como um mero panorama ou cenário
de fundo político, e que aos intelectuais compete a tarefa
e a responsabilidade de formar a consciência do grande
público.
Com essa relativa abertura nos pontos de vista que
começava a prevalecer lentamente a partir do início dos
anos 1960 na política cultural e literária húngaras, começa
a diversificar-se a edição de livros e enriquecer-se a divulga-
ção da literatura brasileira. O autor mais divulgado ainda é
Jorge Amado, mas em harmonia com a renovada temática
da sua obra aparecem, também em húngaro, os romances
mais divertidos dele, que cativam o público.
O público requer já cada vez mais abertamente uma
recepção cultural mais sofisticada e diversificada. Após
os anos da ditadura forte e o total encerramento do país,
motivado pela Guerra Fria, surge uma exigência por bens
culturais anteriormente vedados, exigência que se vê satis-
feita, mesmo que um pouco contraditoriamente. Essa nova
forma de recepção do Brasil fora previamente preparada
por livros publicados a partir dos últimos anos da década
de 1950: As imagens do Rio, de Richard Katz,43 O inferno Riói Képek. Budapeste:
43

verde, de Erich Wustmann.44 Táncsics, 1958.

Sob outro prisma, obras como Trópusi Indiánok között. A zöld pokol. Budapeste:
44

Táncsics, 1959.
Brazíliai útijegyzetek (Entre índios do trópico. Notas de
viagem do Brasil), do etnólogo húngaro Lajos Boglár,
apresentam o Brasil dos trópicos, da selva e dos índios, esti-
mulando, assim, o interesse por outros aspectos desse país,
sublinhados aqueles que o distinguem da Europa. Será essa
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 39

busca do diferente, do exótico que marcará e determinará


o interesse pelo Brasil nos anos subsequentes.
Entretanto, publicam-se obras de autores comprome-
tidos, como as de Jorge Amado, já mencionadas: Quarto
Aki átment a szivárvány alatt.
45 de despejo, de Carolina Maria de Jesus,45 O ciclo do caran-
Budapeste: Kossuth, 1964. guejo, de Josué de Castro,46 São Bernardo e Vidas secas, de
Emberek és rákok.
46
Graciliano Ramos,47 e ao lado deles saem romances como
Budapeste: Kossuth, 1968.
O resto é silêncio, de Érico Veríssimo48 e O Guarani, de José
Emberfarkas. Budapeste:
47
de Alencar, embora este seja transposto para o húngaro em
Európa, 1962. Aszály.
Budapeste: Európa, 1967.
versão condensada, em uma edição para jovens.49
Por outro lado, e de forma menos manifesta, aparecem
A többi néma csend.
48

Budapeste: Európa, 1967. obras das mais diversas naturezas, mormente direcionadas
Máglyák az serdben.
49 aos intelectuais. Essa forma de publicação “velada”, um
Budapeste: Móra, 1970. pouco contrária à política cultural oficial, caracteriza em
primeiro lugar a revista de literatura mundial Nagyvilág e
algumas antologias de poesia e de prosa. Destinadas a um
público seleto, surgem nessas publicações, de forma espo-
rádica, muitos autores de valor da literatura brasileira.
Publicações como Dél keresztje (Cruzeiro do Sul, 1957),
Kígyóöl ének (Canto de matar cobras, 1973), Hesperidák
kertje (Jardim das Hespérides, 1971), Járom és csillag (Jugo e
estrela, 1984) divulgam a poesia latino-americana. Os poe-
mas são acompanhados de notas biográficas e bibliográficas;
dessa forma, em torno de 40 grandes poetas brasileiros são
publicados na Hungria. Essas antologias seguem o princípio
da antologia de Paulo Rónai, ou seja, selecionam os poemas
apenas pelo seu valor poético e estético e não demonstram
o menor interesse em ilustrar o desenvolvimento da história
literária brasileira. Fazem falta, por exemplo, poemas que
caracterizem os primeiros anos do Modernismo, ou do
Concretismo e de outras tendências experimentalistas.
Nesse mesmo contexto, publicaram-se contos de
Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa e Jorge Amado
em antologias de prosa latino-americana: Ördögszakadék
(Abismo de diabo, 1966), Dél-amerikai elbeszélk (Narra-
dores latino-americanos, 1970), Az üldöz (O perseguidor,
novelas latino-americanas, 1972).
40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Um dos grandes méritos da revista de literatura


mundial Nagyvilág é a apresentação de autores e obras, de
tendências e fenômenos literários, com base em critérios
puramente poéticos ou estéticos. Em 1961, a revista traz
informações sobre as atividades de Paulo Rónai no Brasil,
frisando a importância do seu trabalho no conhecimento
mútuo entre o Brasil e a Hungria (Gyergyai, 1961, p.
1566-1567). E é naquelas páginas que, em 1962, aparece
um estudo sobre o romance brasileiro contemporâneo
(Tavaszy, 1962, p. 1388-1391), assim como, em 1969,
um ensaio sobre o desenvolvimento da literatura latino-
americana (Benyhe, 1969, p. 1723-1731). Mencionamos
também certas resenhas sobre os livros de Jorge Amado,
sobre romances como O tempo e o vento, de Érico Veríssimo,
e Irmão Juazeiro, de Francisco Julião.
O texto de recepção mais característico dessa época
é o necrológio de Guimarães Rosa que Nagyvilág publicou
em 1968. Nele se fala na “síntese dos mágicos elementos
primitivos de mundos diferentes”, em “mitos de valor uni-
versal de conteúdo filosófico” (Rónai, 1968, p. 338-339) e
a linguagem engenhosa e estranha que o escritor compilou
para si e que se parece muito com a linguagem de James
Joyce. Tal análise da obra de Guimarães Rosa só se tornou
possível graças à mudança de tom que marcou a imprensa
política, única e oficial na Hungria de então. Assim, na re-
censão informativa que a revista teórica Társadalmi Szemle
publicou sobre Vidas secas, de Graciliano Ramos (Szllsy,
1967, p. 137), já se comenta a “exatidão sociológica” ao
lado dos valores estéticos da obra, numa análise mais fle-
xível e sutil do que se fazia nos anos precedentes.
A partir de meados dos anos 1970, sob a influência do
boom da literatura latino-americana em espanhol, relega-se
para o segundo plano a literatura brasileira, e em especial
a literatura chamada progressista. Na realidade, diminui
o interesse do público pelas obras brasileiras que tratavam
de uma forma direta os problemas políticos e sociais. O
exotismo dos autores do realismo mágico, a forte carga
intelectual dos pós-modernos como Julio Cortázar e Jorge
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 41

Luis Borges, e a urdidura complexa dos romances políticos


de autores peruanos ou mexicanos, tudo isso atrai mais o
interesse dos leitores húngaros. Só obras de Jorge Amado,
tais como Dona Flor e seus dois maridos ou Gabriela cravo
e canela, continuam cativando novas e novas gerações de
leitores.

Novos aspectos da presença literária brasileira


na cena húngara

Entretanto, surge, enquanto isso, uma nova geração


de divulgadores das letras brasileiras, marcados por um
gosto literário renovado e pelo objetivo de revelar aos
leitores húngaros os traços característicos e essenciais da
literatura brasileira.
Assim, entre 1983 e 1986, a Rádio Nacional Húngara
realizou uma série de emissões, de meia hora cada uma,
com o título Latin Amerika Irodalma (Literatura da Amé-
rica Latina). Essa série apresentou uma visão panorâmica
das literaturas do século XX naquele continente, com os
fenômenos novos e característicos da literatura brasileira:
o Pré-modernismo e o Modernismo, a poesia concreta, a
moderna prosa experimental e a da grande urbe, fazendo
conhecer ao público nomes que nunca haviam sido men-
cionados antes, como Oswald de Andrade, Haroldo de
Campos, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e Ignácio de
Loyola Brandão, que com sua obra despertaram o interesse
da elite intelectual.
Nessa época, transcorreu uma significativa etapa do
processo de divulgação da literatura brasileira na Hungria:
a publicação do Macunaíma, de Mário de Andrade. A tra-
dução dessa obra conheceu um verdadeiro êxito editorial,
pois em poucos meses esgotou-se uma tiragem de dez mil
exemplares. O público, ávido do exotismo – até então
condenado –, devorava o livro, que foi apresentado como
um grande acontecimento cultural tanto pelos programas
Szalontai, 1984. Bodor,
50 culturais de rádio e tevê quanto pelas recensões críticas.50
1984. Cserti, 1984. Nessa perspectiva, em resenha cujo título menciona a cé-
42 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

lebre epopeia finlandesa e que qualifica Macunaíma como


“Kalevala artificial da zona tórrida”, o crítico Pál Bodor frisa
com entusiasmo a mistura feliz de elementos intelectuais e
populares, a força primitiva da obra comentada:

Macunaíma é conseqüência da capitalização latino-ameri-


cana irregular e tormentosa, da americanização que abraça
aplastando a versatilidade étnica (lingüística, folclórica e
etnográfica) de múltiplas cores e raízes e dos excessos inte-
lectuais amotinados e revoltosos (Bodor, 1984).

A edição de Nove, novena, de Osman Lins,51 revela Kilenc és kilenced. Trad. Judit
51

certa perplexidade provocada por este câmbio de para- Xantus. Budapest: Európa,
1985.
digma no gosto dos divulgadores. O autor do posfácio,
ilustre estudioso e tradutor, evoca, um tanto indeciso, a
obra nordestina de Jorge Amado, a ambientação sulista de
Verissimo e as fortes cores mineiras de Guimarães Rosa,
lamentando que “os enérgicos elementos linguísticos deste 52
Járom és csillag (Jugo e
último faltem na obra de Osman Lins” (Benyhe, 1985, p. estrela), seleção, prefácio
e notas por János Benyhe.
211). Aqui aparece novamente, como referência, o ele- Budapeste: Kozmosz, 1984.
mento exótico, representado, neste caso, por Jorge Amado Na antologia aparecem
e Guimarães Rosa. poemas de Mário de Andrade,
Augusto dos Anjos, Manuel
Essas palavras do literato e tradutor János Benyhe no- Bandeira, Olavo Bilac, Raul
vamente aludem às contradições da “oferta e da procura” Bopp, Geir Campos, Ronald
da literatura brasileira na Hungria. Num debate transmi- de Carvalho, Vicente de
Carvalho, Francisco Antônio
tido pela rádio, um representante da velha estirpe pôs em de Carvalho Júnior, Antônio
confronto com a literatura de fortes cores brasileiras uma de Castro Alves, Raimundo
Correia, Bernardino da
literatura classicizante, pastoril, que se cultiva nos recantos
Costa Lopes, João da Cruz e
ocultos do Brasil e que conserva valores eternos, segundo Sousa, Luís Delfino, Teófilo
ele. Tal princípio distintivo, que se mantém quase intacto Dias, Carlos Drummond de
Andrade, Ascenso Ferreira,
desde a antologia de 1939, Mensagem do Brasil, predomina Antônio Cândido Gonçalves
igualmente numa antologia de 1984,52 a maior antologia Crespo, Alphonsus de
húngara da poesia latino-americana publicada até os dias Guimaraens, Sebastião Cínero
dos Guimarãens Passos, Luís
de hoje. O que surpreende é que a lista dos poetas moder- José Junqueira Freire, Jorge
nos é quase igual à da seleção de meio século atrás (apenas de Lima, Joaquim Maria
Ascenso Ferreira, Raúl Bopp e Vinícius de Morais são os Machado de Assis, Gregório
de Matos, Cecília Meireles,
nomes novos) e assim mesmo há muitas coincidências na Vinícius de Morais, Alberto de
escolha dos poemas. Oliveira, Rui Ribeiro Couto,
Augusto Frederico Schmidt.
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 43

Outro livro dessa natureza, situando-se entre o pas-


sado e o presente, foi a antologia Boszorkányszombat, de
53
Boszorkányszombat (Mistério 1986, uma coletânea de contos53 que reunia desde Pai
de sábado), sel. e notas de
contra mãe, de Machado de Assis, até Feliz aniversário,
Paulo Rónai. Trad. István
Bárczy, Éva Faragó, Ferenc Pál, de Clarice Lispector. A seleção criteriosa, acompanhada
Paulo Rónai, Eszter S. Tóth, de notas bibliográficas, foi recebida com entusiasmo da
Ervin Székely. Budapeste:
Európa, 1986. Na antologia se
parte dos críticos, talvez porque saísse ao mesmo tempo
encontram contos de Machado em que a edição em húngaro de A escrava Isaura,54 quer
de Assis: Pai contra mãe; Lima dizer, no auge do interesse do público pelo Brasil, suscitado
Barreto: O homem que sabia
javanês; Monteiro Lobato: O
pela telenovela feita com base no romance de Bernardo
comprador de fazendas; Mário Guimarães.
de Andrade: O peru de Natal; Ao se reler a resenha dessas duas obras, vale a pena
Aníbal M. de Machado:
O ascensorista; Rui Ribeiro meditar sobre a seguinte asserção: “A maioria dos contos
Couto: Mistério de sábado; João mostra gente lutando com seu fado, gente que quase nunca
Alphonsus de Guimaraens:
triunfa, num mundo de senzalas e casas grandes, um país de
Eis a noite!; Alcântara
Machado: As cinco panelas de tempo estancado, estagnado em cerimônias.” (Magyar Hírlap,
oiro; Luís Jardim: Paisagem 1987, p. 5). O grifado é nosso, porque novamente se faz
perdida; Carlos Drummond de
Andrade: Beira-rio; Orígenes
referência à imagem de um país exótico, ou seja, a imagem
Lessa: Roteiro de Fortaleza; do Brasil tal como vive no (sub)consciente das pessoas na
Marques Rebelo: Caprichoso Hungria. Com essa atitude pode-se explicar, talvez, o curio-
da Tijuca; João Guimarães
Rosa. A terceira margem do rio;
so e célebre episódio em que telespectadores húngaros de A
Aurélio Buarque de Holanda: escrava Isaura, anciãos de um pequeno vilarejo do interior
O chapéu de meu pai; Rachel do país, reuniram uma importante soma a fim de remir da
de Queirós: A donzela e a
moura torta; Lygia Fagundes escravatura aquela bela e talentosa jovem, inventada por
Telles: Venha ver o pôr do sol; Bernardo Guimarães havia mais de um século.
Oto Lara Resende: O retrato
A partir do final da década de 1980 mudaram, no en-
na gaveta; Clarice Lispector:
Feliz aniversário. tanto, os hábitos de leitura e o gosto do público húngaro,
54
Isaura, a rabszolgalány. Trad. e as séries televisivas ocuparam lentamente o lugar dos
István Bárczy. Budapeste: livros e da leitura. O grande público, outrora leitor ávido
Európa, 1987.
dos romances de Jorge Amado, afastou-se da literatura de
valor, e passou a ler obras de Paulo Coelho, que atualmente
é o autor brasileiro mais popular (e quase exclusivo) na
Hungria. Nestas últimas duas décadas, com a liberalização
da edição e do mercado de livro, houve possibilidade de
publicar autores mais sofisticados. Dessa forma, saiu em
Zero. Trad. Ferenc Pál.
55 1990 o Zero, de Ignácio de Loyola Brandão,55 que a crítica
Budapeste: Európa, 1990. recebeu como fonte de informação privilegiada a respeito
de um mundo caoticamente moderno (apud Wirth, 1991,
44 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

p. 11). Mais tarde saíram obras de outros escritores que


descreviam a vida de grandes centros urbanos, como con-
tos de Dalton Trevisan e de Rubem Fonseca, em revistas
literárias.
Com a mudança do gosto literário, os foros mais exi-
gentes da literatura, como a revista Nagyvilág, passaram a
conceder mais espaço à atual literatura brasileira.56 Nesse 56
Esta revista publicou, no
sentido, foram traduzidos para um seletíssimo público-leitor seu número de abril de 1991
(ano XXXVI, n. 4), o conto
poemas de dois representantes da poesia concreta, Haroldo “Bolívar”, de Victor Giudice.
de Campos e Décio Pignatari.57 Esses livros de poemas No número de agosto de
1992 (ano XXXVII, n. 8),
obtiveram, de um conhecido poeta experimental, Endre
publicaram-se dois contos de
Szkárosi, um parecer crítico, no qual ficou consignado o Dalton Trevisan.
reconhecimento da independência criativa dos autores Haroldo de Campos:
57

desse país dos trópicos: Konkrét versek (Poemas


concretos). Trad. András
A formação da [...] poesia concreta no início dos anos Petcz e Ferenc Pál. Seleção,
prefácio e notas de Ferenc Pál.
cinqüenta não é o primeiro exemplo de que nas circunja- Budapeste: Íbisz, 1997. Décio
cências da zona cultural euro-americana criam-se uma nova Pignatari: Vers-gyakorlatok
linguagem e uma expressão autêntica que correspondem (Exercícios de poesia). Trad.
às demandas intelectuais desta região (Szkárosi, 1999, p. András Petcz e Ferenc Pál.
Seleção, prefácio e notas de
14). Ferenc Pál. Budapeste: Íbisz,
1997.
Para além do material poético, a importância dessas
duas antologias reside na demonstração de que a litera-
tura brasileira tornou-se independente, e se pode dizer
que seus motivos regionalistas já se manifestam sob forma
universalizante.
No presente momento, uma antologia bilíngue, publi-
cada por iniciativa da Embaixada do Brasil e com o apoio do
Ministério das Relações Exteriores, representa na Hungria
a literatura brasileira. A modern brazil elbeszélés – Antologia De Antônio de Alcântara
58

Machado, Rachel de Queiroz,


do moderno conto brasileiro, selecionada pelo embaixador
Guimarães Rosa, Antônio
José A. Lindgren Alves, com introdução e apresentações Fraga, Clarice Lispector,
dos autores pelo diplomata, é um bom manual para co- Fernando Sabino, Otto Lara
Resende, Autran Dourado,
nhecer a prosa brasileira do século XX, segundo afirma
Ligia Fagundes Telles, Ingácio
um dos críticos do livro (Urfi, 2008). Na antologia figu- de Loyola Brandão, Márcio
ram contos de dezessete autores,58 dos quais as resenhas Souza, Rubem Fonseca, Adélia
Prado, Raduan Nassar, Moacyr
destacam Autran Dourado, Rubem Fonseca, e muito Scliar, Dalton Trevisan, Márcia
especialmente Guimarães Rosa, com o conto Duelo, pois Denser.
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria 45

este é o único conto em que aparece o elemento exótico


(apud Galamb, 2008). Isso distingue o conto de Rosa dos
demais textos, que correspondem aos cânones universais,
tanto nos temas elaborados como nos recursos artísticos
de que lançam mão.
Havemos de mencionar, além de Paulo Coelho, cujas
obras inundam as livrarias, o nome de Chico Buarque de
Budapeste. Trad. Ferenc
59 Holanda, que, com o romance Budapeste,59 também está
Pál. Budapeste: Atheneum, disponível nas estantes. Contudo, neste caso o fato de o
2000, 2005.
escritor/cantor ter escrito um romance cuja ação decorre
em parte em Budapeste é muito mais importante para os
leitores húngaros do que os valores estéticos do livro.
Resumindo, podemos dizer que neste momento a
literatura brasileira está relativamente bem representada
na Hungria, existem enciclopédias, antologias de poesia e
de contos que informam detalhadamente sobre autores,
tendências literárias, e assim podem informar e orientar
os interessados. Contudo, falta um vivo contato com as
letras brasileiras – as primeiras obras literárias apareceram
relativamente tarde e só raras vezes corresponderam às
expectativas do público, que formou uma imagem do Brasil
a partir das informações obtidas dos livros de viagens, da
imprensa e da mídia, e tacitamente sempre esperou que a
literatura correspondesse a esses estereótipos decorrentes
de “preconceitos” devidos a circunstâncias históricas di-
versas. Esse fato explica o êxito das obras de Jorge Amado
e o êxito isolado de Macunaíma, de Mário de Andrade,
e de certa forma a dificuldade da divulgação de autores
modernos cuja obra se afasta de uma imagem tradicional
do Brasil.

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49

Tempos e contextos da literatura


brasileira na Argentina
e no exterior
Florencia Garramuño*

resumo: O artigo discute diferentes momentos da difusão da


literatura brasileira na Argentina, analisando os diferentes con-
textos históricos e culturais como condições para a promoção
da literatura brasileira no modo de se pensar hoje – na era da
regionalização das culturas –, o modo como essa difusão, alicer-
çada numa perspectiva de literatura comparada, poderia ajudar
na construção de novas comunidades culturais.
palavras-chave: literatura brasileira, literatura latino-ameri-
cana, regionalização, literatura comparada.
abstract: The article discusses particular moments in the di-
ffusion of Brazilian Literature in Argentina, analyzing different
historical and cultural contexts as conditions for the promotion
of Brazilian Literature in Latin America. It seeks to think how
today – in the era of the regionalization of cultures – a compara-
tive literature perspective for the diffusion of Brazilian literature
can help in the construction of new cultural communities.
Universidad de San Andrés/
*
keywords: Brazilian literature, Latin American literature,
Conicet.
regionalization, comparative literature.
1
Uma primeira versão
deste texto foi apresentada Em dezembro de 2009, o Instituto Itaú Cultural
nesse evento, que marcou
o lançamento da base de realizou o I Encontro Internacional Conexões Itaú Cul-
dados Conexões, cujo tural – Mapeamento da Literatura Brasileira no Exterior,
objetivo é mapear e reunir um
em São Paulo.1 O evento estava destinado a mapear os
amplo e inédito número de
profissionais estrangeiros que brasilianistas que trabalham pelo mundo fora, com o alvo
estudam ou pesquisam temas e de construir novos laços e conexões entre aqueles que
autores da literatura brasileira.
trabalham sobre e com a literatura brasileira em universi-
Agradeço a Claudiney
Ferreira, Felipe Lindoso e dades e diversas instituições estrangeiras e fazê-los refletir
João Cezar de Castro Rocha em conjunto sobre o estado atual da literatura brasileira
o convite para participar do
encontro.
no exterior. Quais seriam os problemas e os impasses com
50 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

que os pesquisadores do Brasil se confrontam ao se encon-


trarem distantes do Brasil, dos livros, dos arquivos, dos
documentos, assim como da própria cultura brasileira? O
encontro não só congregou professores e pesquisadores de
universidades de diferentes países (Argentina, Inglaterra,
Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha e Japão, entre
outros), mas também convocou tradutores e editores de
literatura brasileira no exterior, que abriram um diálogo
fecundo sobre os dilemas da difusão da literatura brasileira
em extrema coincidência com os debates que preocupam
os pesquisadores, tanto que muitas vezes duas, e até três
das identidades profissionais (pesquisador, tradutor, editor)
reunidas no encontro encontravam-se numa mesma pes-
soa. O encontro foi frutífero não só em termos profissionais
e de contato – pelo fato de fazer se conhecerem pessoas que
trabalham com problemas afins –, mas também em termos
de difusão da literatura brasileira, já que a partir dele se
iniciaram muitos trabalhos em conjunto entre diversos
pesquisadores, tradutores e editores.
Do ponto de vista da pesquisa sobre a literatura
brasileira, talvez o mais produtivo do encontro tenha
sido a grande quantidade de perguntas teóricas que de-
sabotoaram das discussões e debates, a partir das quais é
possível vislumbrar uma transformação em andamento
de um conceito de literatura e de cultura brasileira que
leva em conta sua colocação na paisagem transformada
de um mundo contemporâneo no qual fronteiras e limites
são redesenhados cotidianamente, rearranjando regiões,
comunidades e preocupações que não teriam como não
influir numa disciplina tão sensível à sociedade e à cultura
como o é a dos estudos literários – ou de quaisquer dos
diversos ramos da arte.
Uma dessas questões – e a que me parece mais pre-
mente, já que condiz com muitas das características da
literatura mais contemporânea com as quais a minha
própria pesquisa vem lidando há algum tempo – é a da
situação complexa da difusão de uma literatura brasileira
contemporânea que já não parece poder ser contida nos
Tempos e contextos da literatura brasileira na Argentina... 51

parâmetros que definiram a instituição literária no passa-


do. Um grande número de textos brasileiros – assim como
também de textos de outros países e regiões – põe em cena
um extravasamento espantoso dos limites e fronteiras
que tinham definido o literário como um tipo de discurso
ancorado numa certa especificidade institucional. Entre
esses parâmetros hoje extrapolados, a própria noção de
literatura como instituição nacional fortemente ligada a
certos padrões de constituição de uma identidade nacional
é talvez um dos limites mais evidentemente ultrapassados,
embora não seja o único. O filho da mãe, de Bernardo
Carvalho (Carvalho, 2009), aparece como o exemplo mais
extremo desse afastamento da problemática do nacional na
literatura brasileira contemporânea que, no entanto, habita
um número cada vez maior de romances contemporâneos
– brasileiros, vale a pena ressaltar, ou não. Até que ponto
esse extravasamento de problemáticas nacionais – “especi-
ficamente brasileiras” – deveria modificar também a forma
de encarar as próprias ferramentas e conceitos para se
pesquisar e ensinar a literatura brasileira no exterior? Se a
literatura contemporânea já não se arrosta exclusivamente
à discussão de uma identidade nacional e se, pelo contrário,
parece se propor cada vez mais fortemente como imagi-
nação de comunidades e coletividades que desconhecem
a ferrenha ligação entre território, língua e nação –como
proporia Giorgio Agambem (2001) –, parece evidente
que, para a difusão e promoção dessa literatura brasileira
no estrangeiro, fomentar e alicerçar uma discussão dessas
novas “comunidades imaginadas” – para usar em um
sentido mais complexo o conceito de Benedict Anderson
(1983) – seriam estratégias mais sensíveis ao que essa nova
literatura pareceria estar discutindo.
E é nesse sentido também – uma vez que a literatura
brasileira no exterior está sempre se relacionando com as
formas da literatura dos países nos quais essa literatura está
sendo difundida, traduzida, pesquisada e, no contato com
essa cultura diferente, novos problemas surgem – que a
ideia mesma da difusão e promoção da literatura brasileira
52 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

no exterior compartilha muitos dos problemas que têm


se associado nos últimos anos à discussão da literatura
comparada, principalmente a partir de discussões como
as elaboradas por Emily Apter em The translation zone ou
Gayatri Spivak em Death of a discipline sobre os modos de
se pensar a literatura comparada – a disciplina, os seus
problemas, e as suas ferramentas – na era da regionaliza-
ção da economia global e, com ela, também das culturas.
Na proposta de Apter, a noção de tradução –linguística,
mas também cultural – tem um papel fundamental no
programa de uma “nova literatura comparada”. Segundo
ela, “in naming a transnational process constitutive of
its disciplinary nomination comparative literature breaks
the isomorphic fit between the name of a nation and the
name of a language” (Apter, 2003, p. 243). Também Spi-
vak tem elaborado algumas noções interessantes – e bem
complexas – sobre o problema da literatura comparada na
contemporaneidade, propondo uma colaboração entre os
estudos de área (“area studies”) e a literatura comparada
que poderia tentar “to figure themselves – imagine the-
mselves – as planetary rather than continental, global or
wordly” (Spivak, 2003, p. 72).
Outra das questões tem a ver com a possibilidade de se 2
A apresentação de
pensar a difusão – e, com ela, os “difusores” – da literatura Victor Mendes, professor de
University of Massachusetts
brasileira no exterior noutros termos que já não só do ponto Darthmouth, apontou, no
de vista de uma transmissão, divulgação ou propagação de encontro Conexões, para esta
uma literatura ou de um saber que existiria feito e pron- possibilidade.

to no Brasil e que os pesquisadores só transmitiríamos, 3


O livro de Sorá estuda
quatro períodos importantes:
deslocando-o em outros contextos. Seria uma forma de
o primeiro estende-se desde
produzir um saber novo, diferente do já conhecido, que se o século XIX até os anos
aproveitaria dessa mesma migração e deslocamento como 1930, quando se cristaliza, da
mão das políticas culturais
uma forma de produzir saberes “outros” que despontariam do Estado Novo de Getúlio
ao se confrontar a literatura brasileira com um contexto Vargas (1937-1945), a ideia
estrangeiro ao que essa literatura interpelaria de uma forma de uma “auténtica cultura
nacional brasileña” que
diferente.2 E aí a pergunta que surgiu é a de se uma institui- inicia o segundo período.
ção como o Itaú poderia, e como, não só atender à difusão Na primeira etapa veem-se
da literatura brasileira, mas também intervir na produção os vínculos estreitos entre
diplomacia e tradução e resulta
Tempos e contextos da literatura brasileira na Argentina... 53

surpreendente pela espantosa de esse “saber outro” que, no caso, estava se produzindo
atualidade das traduções:
Esaú e Jacob, de Machado
gerado precisamente por aquele encontro.
de Assis, por exemplo, cuja Algumas dessas questões dizem respeito a um mape-
primeira edição no Brasil é amento qualitativo da literatura brasileira no exterior que
de 1904, foi traduzido para o
espanhol só um ano depois, seria bem interessante fazer, além do mapeamento quan-
em 1905. Essa sincronia titativo. A identificação dessas questões e a elaboração
é, por sua vez, evidência
de respostas para elas, assim como a criação de redes de
de um intenso diálogo
entre a literatura argentina pesquisadores e de contatos e fluxos de saberes é, sem dúvi-
e brasileira no período, da, um dos grandes ganhos de encontros daquela natureza
principalmente durante os
anos do Romantismo. É no
em termos teóricos, além do fato pragmático – também
segundo período, no entanto, importante – de facilitação dessa rede e desses contatos.
quando a tradução mostra Fica claro que, ao se falar da difusão da literatura
seus vínculos com as políticas
estatais e com as a alianças
brasileira no exterior, é importante analisar os tempos e
políticas e ideológicas de contextos dessa difusão, levando em conta as diferentes
esquerda que nasceram do condições de possibilidade que esses tempos e contextos
exílio na Argentina de Luiz
Carlos Prestes e Jorge Amado. têm oferecido para o conhecimento da literatura brasileira
Um terceiro período, que em países estrangeiros.
Sorá denomina mercantil,
O antropólogo Gustavo Sorá começou a pensar
vai de 1945 a 1985 e exibe
a hegemonia do mercado algumas dessas questões para o contexto da Argentina
na seleção e produção da durante o século XX no seu importante livro Traducir el
tradução. Caberia ressaltar
a importância que nos anos
Brasil (2003). Partindo de uma pesquisa empírica sobre
sessenta adquirem questões as traduções de escritores brasileiros para o espanhol re-
ideológicas e o tipo de alizadas na Argentina, Sorá demonstrou que a tradução
problemas para os quais os
estudos sociais brasileiros vão
de autores brasileiros tem sido muito mais importante
ser tomados como modelos e constante na Argentina – segundo algumas variáveis
a observar, como se pode históricas – do que na maioria dos outros paises.3 Mas a
concluir da relevância que os
temas do desenvolvimento pesquisa demonstrou também outra consequência mais
econômico e social adquiririam relevante – e lamentável – ainda para a história cultural
nesse momento. Por
da Argentina e do Brasil: a de que a efetiva tradução de
último, um quarto período,
que Sorá denomina de autores brasileiros na Argentina não tem sempre ajudado
internacionalização, inicia-se a reduzir o mútuo desconhecimento entre os dois países.
em 1985, quando as relações
entre a cultura argentina
A pouca reedição e circulação desses livros é um dado
e brasileira resultam em incontestável: dos canônicos e importantíssimos livros
grande parte da mediação de brasileiros traduzidos pela Biblioteca La Nación – uma
intercâmbios internacionais
nas feiras de Frankfurt,
importante editora universalista – nas primeiras décadas
Barcelona, e dos circuitos do século XX, por exemplo (autores como os já na época
construtores do mercado afamados Machado de Assis, José de Alencar ou Aluísio
editorial internacional.
Azevedo), nenhum deles teve reedição alguma, muito
54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

embora muitos dos títulos dessa mesma editora que pro-


vinham de diferentes tradições literárias europeias tenham
sido reeditados ano após ano. A debilidade institucional da
Argentina em termos de bibliotecas, arquivos e instituições
dedicadas ao desenvolvimento do conhecimento sobre o
Brasil não contribuiu, por outro lado, para “atualizar” e
manter vivo o conhecimento do Brasil que esses livros
traduzidos poderiam – e deveriam – ter acarretado.
Fica claro a partir da leitura do importante livro de
Gustavo Sorá, portanto, que o significado dos livros tra-
duzidos em suas dimensões históricas depende das formas
nas quais esses livros são recebidos e apropriados por seus
leitores, assim como das posições no campo intelectual dos
agentes tradutores e dos pesquisadores, e que os problemas
da tradução não dizem respeito só a duas culturas nacionais
específicas, mas respondem a uma configuração interna-
cional de redes de relações linguísticas, demonstrando,
como diz Sorá, que “las fuerzas de internacionalización de
los mercados desde fines de los años ochenta remataron
el distanciamiento entre dos ‘culturas nacionales’ cuya
vigencia editorial es regulada en aduanas muy lejanas”
(Sorá, 2003, p. 221).
Era claro – a pesquisa demonstrava – que houve con-
dições para uma tradução bem rica naquele momento, mas
que na verdade ela não acarretou consequências de peso
para o efetivo conhecimento da literatura brasileira na
Argentina ou nos países de fala espanhola nos quais esses
livros brasileiros poderiam passar, desde esse momento,
a ser lidos. Se pensarmos na relação entre os escritores
argentinos da época e a literatura brasileira, ou entre os
críticos argentinos e a literatura brasileira, fica evidente
que essas traduções não fizeram com que a literatura ar-
gentina se alimentasse da brasileira nem que a brasileira se
alimentasse da argentina, nem, tampouco, que a literatura
brasileira ficasse conhecida na Argentina fora do interesse
de algumas pessoas específicas.
Um momento mais bem-sucedido dessa difusão foram
– sem dúvida – os anos 60 e 70 do século XX, quando a
Tempos e contextos da literatura brasileira na Argentina... 55

literatura brasileira pegou carona no boom da literatura


latino-americana – que, lembremos, foi construído parti-
cularmente por uma editora de origem espanhola, a Seix
Barral – e compartilhou com ela o seu momento de fama
internacional. É claro que, na época, o contexto político da
América Latina, com a Revolução Cubana e as instituições
que iriam se criar, fez com que a difusão da literatura brasi-
leira tivesse um impacto mais forte nas literaturas de língua
espanhola. É por esses anos que o que tinha sido conhecido
até então como “Concurso literário hispano-americano” foi
se denominar, com a entrada dos autores brasileiros, como
“Concurso literário latino-americano” e, logo em seguida,
tomou o nome de “Premio Casa de las Américas”, que
premiou autores brasileiros e contou no júri com escritores
e intelectuais brasileiros da talha de Antonio Candido,
Chico Buarque ou Davi Arrigucci Jr. Em depoimento em
Havana, Antonio Candido disse sobre o prêmio:

Para nós, brasileiros, geralmente tão separados dos irmãos


de fala espanhola, Cuba tem sido a grande mediadora, ao
criar a possibilidade de entendimento que se forma aqui e
se desenvolve fora, e ao tecer uma rede fraternal que abraça
o continente com suas possibilidades de compreensão e
intercâmbio (apud Cabañas e Fornet, 1999, p. 181).

Quando a Editorial Siglo XXI publica América latina


en su literatura, em 1972, a presença da literatura brasileira
no volume é incontestável, tendo ele artigos como os de
Antonio Candido, José Guilherme Merquior, Antonio
Houaiss, Haroldo de Campos, ou Emir Rodríguez Monegal
e outros críticos latino-americanos que fazem referência
à literatura brasileira, ou de tantos outros que, sem falar
exclusivamente da literatura brasileira, colocam em relação
a literatura hispano-americana e a brasileira referindo-se
a autores como Alencar, Machado, Casimiro de Abreu,
Guimarães Rosa, Clarice Lispector e tantos outros escrito-
res brasileiros citados e analisados nesses textos (Moreno,
1972).
56 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Para aqueles que, no fim da década de 1980, estudá-


vamos literatura na universidade argentina, esse livro foi
a descoberta de que a literatura brasileira existia numa
sintonia de problemas com a literatura latino-americana e
que ela própria podia se converter em um campo de estudo
e pesquisa para nós, os latino-americanos que queríamos e
pretendíamos construir uma América Latina grande, que
víamos representada na canção de Gilberto Gil com letra
de Capinam, Soy loco por ti América, que dançávamos e
cantávamos com fervor nas festas da época. E essa América
Latina grande não se preocuparia tanto com a questão da
identidade nacional ou regional, mas se assemelharia com
a corrupção das unidades homogêneas que Caetano Veloso
comemorava em Língua – canção que também dançávamos
e cantávamos ainda com mais fervor, se possível. Basta
lembrar o refrão de Língua para ouvir uma alusão leve a
essa América Latina, que Caetano repetia gozoso:

Flor do Lácio Sambódromo


Lusamérica latim em pó
O que quer? O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
(....)
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria. 4 4
“Soy loco por ti América”
foi composta sob o efeito
O leque que uma história da difusão da literatura da morte do Che Guevara
brasileira no exterior abre é bem complexo e não seria e gravada em Tropicália, em
1967. “Língua”, composta por
possível esgotar, em um único artigo, as discussões que um Caetano Veloso, aparece em
problema como esse abre. Uma questão que, no entanto, Velô, em 1984. Na canção,
é importante ressaltar é até que ponto essas condições, na Caetano retoma uma frase
famosa de Fernando Pessoa
época, colaboraram ou não para uma difusão efetiva, inten- em “A minha pátria é a
sa, perdurável, da literatura brasileira na América Latina. minha língua”, do Livro do
Segundo Pablo Rocca, “ningún crítico hispanoamericano desassossego, de Bernardo
Soares (Pessoa, 1982).
coetáneo de la nacionalidad que fuere se encargó, como
Monegal o como Rama, con tanto interés y persistencia de
Tempos e contextos da literatura brasileira na Argentina... 57

la literatura brasileña” (Rocca, 2006a, p. 56), o que é bem


pouco para um campo de crítica latino-americana que tem
5
Um trabalho mais sido bastante rico e produtivo.5 Eu acrescentaria que tanto
abrangente sobre as relações o trabalho de Rama como o de Rodríguez Monegal sobre
entre Emir Rodríguez Monegal
e Angel Rama com o Brasil a literatura brasileira talvez não tenham comparação, no
pode se encontrar no livro campo intelectual latino-americano, sobretudo o de Rama,
de Rocca, Ángel Rama, Emir
com a contribuição deles para a literatura latino-americana
Rodríguez Monegal y el Brasil.
Montevideo: Ediciones de la em espanhol. O que também é evidente é que o diálogo
Banda Oriental, 20 entre críticos de fala espanhola e portuguesa também tem
sido, apesar do diálogo entre Rama e Candido e outras
poucas honrosas exceções, bastante pouco produtivo.
Se esses tempos e contextos hoje são bem diferentes,
como se deveria pensar a difusão da literatura brasileira
na era da globalização e das culturas pós-nacionais ou
transnacionais? Como as diversas instituições de pesquisa
e ensino da literatura brasileira poderiam contribuir para
uma discussão dessas questões que, levando em conta
as condições atuais da globalização, possa se inserir no
contexto contemporâneo para tirar desse processo as boas
qualidades, aprofundá-las, e interromper aquelas outras
propriedades que levam ao apagamento das diferenças e
à imposição de lógicas homogeneizantes? Queremos con-
tinuar defendendo uma identidade da literatura brasileira
ou pretendemos abrir esse conceito? Como poderíamos
pensar e contribuir para a difusão da literatura brasileira
no exterior partindo da inspiração do título da coletânea
Nenhum Brasil existe (Rocha, 2003), tomado de emprés-
timo de um verso de Drummond? Qual seria a literatura
brasileira desse Brasil nenhum que quereríamos difundir, e
como deveríamos fazer essa difusão?
Hoje, quando a palavra de ordem é a redução dos
orçamentos no contexto da crise global, há evidência im-
portante sobre a multiplicação dos estudos comparativos
entre as literaturas e as culturas do Brasil e da Argentina,
e, em um sentido mais geral, sobre as literaturas latino-
americanas, que, tendo abandonado a preocupação pela
identidade latino-americana, incorporam nesse estudo as
58 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

culturas do Brasil sem os empecilhos do purismo linguístico


ou historiográfico do passado.
Hoje existe uma série dentro de uma editora argen-
tina (a Corregidor) especialmente dedicada à publicação
e tradução de literatura brasileira que vem, há quase dez
anos ininterruptos, publicando clássicos como Oswald de
Andrade ou Graciliano Ramos e literatura mais contem-
porânea, como Ana Cristina Cesar ou Leminski. Mas não
só. Também grande parte das maiores editoras argentinas
e multinacionais vem publicando em Buenos Aires, com
muito mais frequência, autores brasileiros contemporâneos
e clássicos: a nova edição que o Fondo de Cultura Econô-
mica fez de um livro que era inencontrável nas livrarias
argentinas, Os sertões, de Euclides da Cunha, junto com
livros como A descoberta do mundo, de Clarice Lispector,
ou os vários romances de João Gilberto Noll e Adriana
Hidalgo, ou Um amor anarquista e os vários textos que
Beatriz Viterbo vem publicando, assim como outros muitos,
tanto de ensaios, como o Balanço da bossa, de Augusto de
Campos, ou Literatura e vida literária, de Flora Sussekind,
demonstram uma presença cada vez maior da literatura
brasileira no catálogo de editoras argentinas. Mais impor-
tante do que o número de volumes publicados, no entanto,
é o fato de esses livros estarem hoje influenciando uma
escrita literária argentina que tem se nutrido deles e que,
por sua vez, também está nutrindo os escritores brasileiros.
E existe também, hoje, um diálogo muito mais intenso entre
a crítica argentina e a crítica brasileira.
O caso da poesia contemporânea é muito significativo.
A revista Tsé Tsé vem publicando uma série de livros e de
poemas, traduzidos e não traduzidos, e lançando dentro
de sua editora livros completos de alguns poetas brasilei-
ros contemporâneos, como o caso do Sublunar, de Carlito
Azevedo, ou No se dice, de Marcos Siscar. Tanto esses livros
como o contato fluido dos poetas argentinos e brasileiros
em festivais diversos, realizados tanto na Argentina como
no Brasil, evidenciam-se numa escrita poética que se
nutre desses contatos. Basta ler alguns poemas de Carlito
Tempos e contextos da literatura brasileira na Argentina... 59

Azevedo ou Marília Garcia para ver que essas influências


têm andado nas duas direções.
Os livros da coleção Vereda Brasil têm instalado um
conhecimento importante dos autores publicados, já que,
além de publicar o livro traduzido, cada volume traz estudos
preliminares e bibliografias que ajudam os livros traduzidos
a se instalarem no mercado e, mais importante ainda, na
cabeça dos leitores.
As verbas para projetos de cooperação internacional e
para trabalhos comparativos têm aumentado exponencial-
mente na Argentina, sobretudo na Secretaria de Ciência e
Técnica do Ministério de Educação da Argentina, que, em
parceria com a Capes do Brasil, tem financiado e continua
financiando pesquisas desenvolvidas por universidades
argentinas e brasileiras em conjunto.
É importante, nesse contexto, lembrar que difusão não
implica um trajeto de uma só via, mas que é uma viagem
de ida e volta, e em várias direções, que desenham uma
encruzilhada de fertilização cruzada, e que essa difusão
acontece num contexto global de poder e conhecimento
que influencia crucialmente a paisagem intelectual.
Pensar a difusão da literatura brasileira de uma pers-
pectiva de literatura comparada transformada, que já
não esteja procurando as identidades de uma literatura
como referentes de uma identidade nacional, mas que,
pelo contrário, se fundamente na relação dessa literatura
brasileira com as outras literaturas, talvez seja hoje uma
estratégia para transformarmos, na medida de nossas fracas
possibilidades, o papel da literatura brasileira, e com ela
o papel da literatura em geral – nesse novo mundo a cuja
transformação estamos assistindo.

Referências
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Valen-
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VELOSO, Caetano. Velô. Polygram, 1984.
61

Ideia de Literatura Brasileira com


propósito cosmopolita
Abel Barros Baptista*

Resumo: O ensaio procura rever o problema da relação da


literatura brasileira com a noção de literatura e a literatura
mundial. Partindo de uma noção que valoriza a literatura sobre
a língua, elemento de exclusão, regressa ao caso de Machado
de Assis para intervir no debate sobre o conflito entre local e
universal na sua obra e a respectiva recepção fora do Brasil.
Palavras-chave: literatura brasileira, literatura mundial,
nacionalismo literário, cosmopolitismo, Machado de Assis.
Abstract: The essay aims at a revision of the problem of
the relation between a national literature, as it seems to be the
Brazilian case, and the very idea of Literature, as a notion wi-
thout nation. Arguing for an idea of literature superseding the
language, as a way of exclusion, reviews the case of Machado de
Assis in order to step into de debate on universal versus local and
on the problem of the international reception of his work.
Keywords: Brazilian literature, world literature, literary
nationalism, cosmopolitism, Machado de Assis.

Outside of a dog, a book is a man’s best friend;


inside of a dog, it’s too dark to read.
Groucho Marx

1.

Pedir a um português que escreva sobre os estudos de


literatura brasileira em Portugal, e ademais como parte dos
“estudos de literatura brasileira no exterior”, não deixa
de envolver particularidades curiosas. A mais imediata
* Universidade Nova de será o sublinhado duma diferença dentro da língua: no
Lisboa
português europeu, não ocorre essa acepção de “exterior”
62 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

como conjunto de países constituído por todos os que não 1


Também se usa em Portugal
são o nosso. Usamos “o estrangeiro”, e diríamos “estudos a locução “lá fora”, mas
o advérbio indica registo
de literatura portuguesa no estrangeiro”. Mas talvez dis- coloquial e em regra requer
séssemos “estudos de literatura brasileira no estrangeiro” um “fora” de referência para
mais depressa do que estudos de literatura brasileira “fora o nosso primitivismo pôr os
olhos. E é curioso que um
do Brasil” ou “no exterior do Brasil”; a mesma construção dicionário on line de português
valendo, aliás, para outras literaturas, seja a inglesa, a alemã para brasileiros (Prata,
ou a italiana: como se houvesse uma substantivação de “o 1993) tenha necessidade
de esclarecer que a locução
estrangeiro” que o “exterior” já não alcançou. Digamos “deitar fora” não significa
que há sempre o “estrangeiro”, e sempre se sabe o que é: o “dormir fora de casa” mas
“jogar fora”, sem se aperceber
“exterior”, por seu lado, requer determinação.
de que “jogar fora”, por outro
Convenhamos que não há enorme diferença entre as lado, é também locução
duas palavras, estrangeiro é exterior e, até pela etimolo- portuguesa, do domínio
do futebol, e que significa
gia, significa o que é de fora ou vem de fora. Mas exterior precisamente “jogar fora de
excede estrangeiro e, enfim, pode nem ser estrangeiro. casa” por ser o oposto de
Daí que a modalidade portuguesa, no confronto com a “jogar em casa”. O verbete
completo diz isto: “Não
brasileira, permita, até estimule jogos de palavras fáceis: a significa, absolutamente, que a
formulação “nem todos os que vivem no estrangeiro são pessoa vá dormir fora ou, pelo
estrangeiros” resultaria em disparate se transposta meca- menos, dar uma deitadinha
na casa de um amigo ou
nicamente para “nem todos os que vivem no exterior são amiga. Nada disto. Deitar
exteriores”.1 Isto, falando de cidadãos; já tratando-se de fora é jogar fora. Você verá
várias placas em Portugal,
difusão de uma literatura nacional ou de estudos de uma
dizendo: Por favor, deite no
literatura nacional, o jogo de palavras, como todos, ao lixo! Não leve ao pé da letra.”
suspender a familiaridade, atrai a atenção para a definição Disponível em: <http://www.
marioprataonline.com.br/obra/
do exterior como estrangeiro, a determinação do interior literatura/adulto/dicionario/
como nacional, a orientação do interior para o exterior, a framegranda_a.htm>.
orientação do estrangeiro para o doméstico, a interferên- 2
Claro que estão disponíveis
cia do exterior no interior, no nacional, no que é nosso, várias descrições alternativas,
mormente as cínicas ou as
etc. Se dissermos que “nem todos os estudos de literatura
que derivam do sublinhado de
portuguesa conduzidos no estrangeiro são estrangeiros”, traços de degradação do ideal
a frase talvez não pareça logo o absurdo que é: o que cosmopolita. Por exemplo,
sugerindo que académicos
serão, propriamente falando, estudos “estrangeiros”? Já a medíocres procuram longe
formulação “nem todos os estudos conduzidos no exterior escritores obscuros para
são por isso exteriores” faz figura mais de problemática do fazerem carreira sem controlo
nem concorrência. Ou a
que disparatada. Ademais, suspensa de uma referência versão da pilhagem que
que destrince exterior de interior, promete alguma coisa Roberto Schwarz ofereceu
no ensaio a que mais adiante
pertinente. Com efeito, tratando-se de estudos, parece mais
me referirei, “Leituras em
pertinente delimitar “exteriores” do que “estrangeiros”, competição”: uma “guarda
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 63

avançada” do “centro” pilha talvez porque, kantianamente guiados pelo ponto de vista
as obras da “periferia” para
as incluir em repertórios
filantrópico universal, não acreditamos que os estudos pos-
internacionais, vai a “terras sam ser domésticos ou nacionais sem ao menos aspirarem
distantes” à procura do que a à condição universal. Pode, aliás, residir nessa aspiração
faz menos provinciana e por
isso não se importa de ignorar a razão última por que muitos académicos se dedicam a
a história e o contexto, desde estudar a literatura de países onde não nasceram, onde
que obtenha proventos fáceis
não viveram, aonde nunca foram, ou que só visitaram jus-
(cf. Schwarz, 2006, p. 66).
tamente porque se interessaram pela respectiva literatura
3
Certa tradição académica
chama “portugueses” – talvez alguma convicção de que a literatura, tendo país,
justamente àqueles estudos de no sentido em que pertence a este ou àquele aglomerado
língua, literatura ou cultura
nacional, em rigor não tem país, e ainda querendo tê-lo
portuguesa que no estrangeiro
são conduzidos por não muito fortemente, é sempre pouco para quem vive neste
portugueses; mas estes, como ou naquele aglomerado nacional.2 Então, esses académi-
cidadãos, evidentemente não
cos, que viajam por causa da literatura que não se fez na
se tornam portugueses. O
mesmo se passa de resto com sua terra, ilustram este princípio estranho: as pessoas têm
os brasileiros: um brasilianista necessidade de viajar porque as ideias e os estudos, não se
é alguém que se dedica aos
“estudos brasileiros”, e as
prendendo a nenhum espaço delimitado por fronteiras, não
universidades em princípio podem nem precisam de viajar. Nesse sentido, aqueles que,
não confundem brasilianistas literal ou figuradamente, vão de um país a outro por causa
com brasileiros. Isto, que vale
para as pessoas, não parece da literatura, nunca serão estrangeiros, mas hóspedes, e em
valer para as organizações nem princípio hóspedes de honra, quase cidadãos honorários.3
para os estudos. Um “Instituto
Note-se que, sem eles, é provável que hoje pagássemos a
de Estudos Brasileiros”, cheio
de brasilianistas ou cheio de Berlusconi para ler a Divina comédia, modalidade decerto
brasileiros, tanto pode estar muito inconveniente de prestar tributo ao princípio de
sediado em Roma como em S.
nacionalidade em literatura.
Paulo. Talvez se possa inferir do
exemplo que os estudos, porque Dir-se-á, por outro lado, que estes que viajam, filan-
de algum modo se dedicam ao tropos embora, se deslocam sempre para o território que
Brasil, são brasileiros sem serem
brasileiros e que se chamam
outros, por sua vez, chamam interior, casa, espaço domésti-
brasileiros precisamente na co, e que provincianismo é ver o exterior só como exterior,
medida em que estão no não como “o lar de outras pessoas”.4 Sem dúvida. Estamos
exterior do Brasil e num
interior que não se chama sempre em algum lugar – em algum local. A imediata con-
Brasil. sequência a extrair seria que o universal não existe, pela
4
Colho esta expressão na simples razão de que ninguém o pode habitar. A segunda
tradução para português da consequência é que, sem universal em que se apoie, o
conferência proferida por
Michael Wood num colóquio
cosmopolita pode estar condenado à errância eterna, o
sobre Machado de Assis na maior risco, sendo o menor, mas mais quotidiano, o de se
Universidade de Princeton, em ver obrigado a esbarrar em regras que lhe são adversas ou
janeiro de 2009 (Wood, 2009,
p. 187). a tolerar convicções que lhe repugnam.
64 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Eis o dilema: aquele académico que viaja para outro


lado por causa da literatura, e no propósito do estudo
dela, deve pretender tornar-se interior apesar de estran-
geiro ou, antes, esforçar-se por se manter exterior porque
estrangeiro? Qualquer estudo implica legitimidade e reco-
nhecimento, que ou provêm do interior da instituição em
que se trabalha ou do exterior dela, ou até de ambos: o
reconhecimento decisivo do brasilianista, da importância
do seu estudo e da relevância da sua pesquisa, há-de vir
do exterior ou de algum interior do Brasil? Ou o factor
decisivo estará antes nesse outro interior que é a instituição
exterior, não brasileira, que ao brasilianista lhe paga essas
viagens e esses estudos? E em nome de quê, de que padrões
ou critérios, essa instituição o avalia? Acaso da capacidade
de se tornar estrangeiro para não ser estrangeiro no país
da literatura que estuda?
Outra pertinência da distinção entre “exterior” e “es-
trangeiro” residiria então em que o “exterior” tem aptidão
superior à de “estrangeiro” para referir situações que en-
volvem instituições, disciplinas ou paradigmas. Trabalhar
no exterior de um paradigma pode ser mais perturbador
do que trabalhar no exterior de uma disciplina ou de uma
instituição; trabalhar no interior de um paradigma pode
ser condição necessária para trabalhar no interior de uma
disciplina e de uma instituição. Em todo caso, o interior
tornou-se demasiado escuro para que se consiga ler nele
com nitidez. A impossibilidade do interior bem circuns-
crito decorre da dissolução da autonomia numa rede de
instâncias por definição exteriores, fundações, agências
governamentais, outras universidades, editoras, centros
de pesquisa, numa rede tendencialmente tão diversificada
no mapa como similar nos padrões e critérios de avalia-
ção. Exterior deixou de significar estrangeiro: no mundo
universitário, desde logo, o interior não é nacional senão
depreciativamente, e o reconhecimento do pesquisador
ultrapassa já não apenas a nação, mas as próprias discipli-
nas. Eis outra forma de dizer que o universal não existe:
porque o local se tornou impossível.
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 65

Ora, uma literatura, como a brasileira, que se represen-


ta hegemonicamente como construção que circunscreve
o interior para que coincida com o nacional, não podia
senão ser muitíssimo sensível à diferença entre exterior e
estrangeiro. E há-de ser particularmente sensível à presen-
ça do estrangeiro no seu interior – e sobretudo à projecção
desse interior no exterior indeterminado do “estrangeiro”.
O que se deve então legitimamente exigir ao brasilianista?
Que estude e divulgue o Brasil de que a literatura brasileira
fala ou, antes, estude e divulgue a razão de a literatura
falar do Brasil? Que se interesse pela realidade nacional
brasileira ou, antes, pelo interesse da literatura brasileira
pela realidade nacional brasileira? Que se torne porta-voz
de uma literatura entendida como representação do Brasil,
no sentido mimético e no diplomático, ou, antes, analise o
processo por meio do qual no Brasil se procurou construir
uma literatura entendida como representação do Brasil?
Proponho designar cosmopolita a perspectiva que
estabelece essas distinções e argumenta em favor do se-
5
O presente ensaio conclui
gundo termo da alternativa, que preserva a relação com a
um percurso de estudos literatura, enquanto o primeiro a subordina a uma qual-
machadianos inaugurado quer relação com o Brasil. O propósito cosmopolita leva
há mais de vinte anos com
uma análise de “instinto de
em conta o desejo de criação de uma literatura a que os
nacionalidade”, que o leitor brasileiros possam chamar sua, mas postula que tal desejo
interessado pode encontrar não se confunde com o que eles ou todos nós chamamos
no meu livro A formação do
nome. Duas interrogações sobre literatura brasileira – nem é o único guia, muito menos o
Machado de Assis (Baptista, melhor, para a conhecer.
2003, p. 21-111; edição
O propósito cosmopolita não consiste, portanto, em
portuguesa de 1991). O artigo
de Roberto Schwarz atrás negar a nacionalidade da literatura brasileira em nome
citado, e a que voltarei mais de uma natureza intemporal e transcultural da literatura;
adiante, sendo uma reacção
à fortuna crítica de Machado
tampouco em afirmá-la ou sequer reconhecê-la: consiste,
fora do Brasil e ao que ele sim, em reconhecer o desejo de nacionalidade, delimitá-
chama “leitura internacional”, lo historicamente, desnaturalizá-lo e, enfim, identificá-lo
supostamente em competição
com a “leitura nacional”, é
como uma das forças da literatura moderna em acção no
suficiente para mostrar que se Brasil, como, aliás, noutras nações. Filiando-se, enfim, na
mantêm a actualidade crítica e linhagem que o primeiro grande espírito cosmopolita do
a energia polémica da análise
que propus do ensaio de Brasil, Machado de Assis, inaugurou com o célebre “ins-
Machado. tinto de nacionalidade”.5
66 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

2.

Auerbach perguntava num dos seus últimos ensaios,


“Filologia e Weltliteratur” (1952), se é possível algum senti-
do para Weltliteratur mantendo o termo na visão de Goethe,
isto é, relacionando-o tanto com o passado quanto com o
futuro e considerando o próprio estado do mundo:

O nosso planeta, o domínio da Weltliteratur, está a diminuir


e a perder diversidade. No entanto, a Weltliteratur não se
refere apenas ao que é genericamente comum e humano:
antes considera que a humanidade é o produto das rela-
ções frutuosas entre os seus membros. A pressuposição da
Weltliteratur é uma felix culpa: a divisão da espécie humana
em muitas culturas (Auerbach, 1969, p. 2)

A dificuldade é manter a tarefa da filologia diante


do processo de estandardização da vida humana à escala
global, que Auerbach detecta e cujo termo pleno, sublinha,
seria de um só golpe a realização e a supressão da própria
noção de Weltliteratur. Não cabendo aqui sequer tentar
resumir o argumento que ocupa a parte central do ensaio,
o meu propósito, ao convocá-lo, é citar o desfecho dele,
o modo como, sem nenhum paradoxo, acaba a declarar
que “a nossa casa filológica é o planeta, já não pode ser
a nação” (Auerbach, 1969, p. 17), e mais do que isso, a
formular certo programa de urgência: “devemos regressar,
em circunstâncias notoriamente diversas, àquilo que a
cultura medieval pré-nacional já possuía: a noção de que
o espírito não é nacional” (Auerbach, 1969, p. 17).
Espírito? Humanidade? O vocabulário não é segura-
mente de hoje: ou parece hoje muito pouco cosmopolita. O
colorido kantiano do meu título, num modo que sequer é
propriamente paródico, pode também desnortear, ou causar
estranheza pelo desuso: o melhor bem? o bem comum? o
bem supremo? E, no entanto, há por aí qualquer coisa de
urgentemente actual, que apresento nesta formulação de-
certo precária, como se se tratasse de um programa político:
o propósito cosmopolita consiste em reafirmar, na noção
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 67

moderna de literatura, a concepção visionária daquela felix


culpa como abertura dum espaço de hospitalidade incondi-
cional. Não um espaço superior e restrito, para onde alguns
poucos afortunados são cooptados, pela Unesco ou pelo
sucesso comercial, formando alguma espécie de cânone
supranacional ou literatura internacional; não um espaço
homogéneo, universal, sem fronteiras nem conflitos, onde
o espírito vagueia livre; não um espaço essencial de onde
derivem e se deduzam todos os espaços, mais restritos e
nada essenciais – mas o espaço que se abstém de limitar e
impor condições à entrada e estada do estrangeiro, aquele
que não pode deixar de ser reconhecido e não pode deixar
de se reconhecer como estrangeiro, e designadamente dele
espera a responsabilidade de circunscrever ele próprio a
sua incompreensão e a sua ignorância. Nos estudos literá-
rios, o propósito cosmopolita define o princípio teórico e
político que nos orienta a aproximação a qualquer texto
com a ideia de que o que há de nobre e de emancipador
na noção de literatura é o que nos anima a pressupor que
cada texto foi escrito na previsão do estrangeiro que um
dia o virá a ler e estará à altura de o ler precisamente na
medida em que for capaz de circunscrever os limites da
própria incompreensão sem perder de vista o privilégio
de habitar a mesma casa, que é a mesma não porque seja
desde sempre e essencialmente a mesma, antes porque a
caracteriza a hospitalidade incondicional. O fundamento
da hospitalidade não é a natureza humana nem alguma
ideia genérica de humanidade, mas uma ideia de literatura
definida precisamente pelo propósito cosmopolita: digamos
que o ensaio de propósito cosmopolita é o que se aproxima
da literatura presumindo que o que a constitui é o propó-
sito cosmopolita! Ou, em termos menos circulares, o que
se aproxima da literatura animado da convicção de que o
propósito cosmopolita é inerente à noção de literatura – um
propósito constitutivo da literatura moderna.
Essa concepção da literatura poderia receber outro
nome – tradução –, não fosse o traço decisivo do carácter
incondicional da hospitalidade. Decerto é quase de tra-
68 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

dução que se trata, mas passando entre os polos extremos


que a definem: a tradução visa necessariamente à inteligi-
bilidade sem restos – e por isso a hospitalidade é possível
–, mas nunca opera o transporte unívoco de um conteúdo
prévio – e por isso a hospitalidade é incondicional. A ideia
da literatura como hospitalidade incondicional recusa
tanto o universalismo como morada última que apaga
todas as línguas, quanto o nacionalismo da língua cioso do
núcleo essencial insusceptível de tradução. A literatura é
uma linha que passa entre esses dois polos, força que cria
unidades além deles e tensões por causa deles: unidades
apesar das tensões, tensões não obstante as unidades. E não
há razão para que essa ideia não seja válida no quadro da
mesma língua, ou do que com tanta facilidade se chama
“a mesma língua”. A língua, eis justamente o que separa:
porque é a língua que permite reconhecer o estrangeiro
como estrangeiro e sobretudo quando fala a mesma língua,
ou quando fala a nossa língua.
O sonho emancipador aqui seria, então, que a lite-
ratura unisse o que a língua separa, que a literatura se
constituísse morada de encontro, de cruzamento, de estada
e exercício da hospitalidade sem condições. O espírito é o
espírito da hospitalidade, o bem comum é o da literatura e
da partilha da literatura, e nesse sentido, como se compre-
ende, somos sempre estrangeiros diante de qualquer obra
de literatura. A definição de literatura podia, aliás, ser esta:
faz de quem dela se aproxima um estrangeiro e pelo mesmo
gesto oferece-lhe todas as condições para que se instale à
vontade. Como se o esperasse – e a melhor descrição de
literatura é essa, em que ela espera e depende do estran-
geiro para se constituir –, desde sempre destinando-se ao
mundo.

3.

Nas relações ou nos primórdios das relações entre


a literatura portuguesa e a brasileira, há um exemplo de
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 69

propósito cosmopolita pouco conhecido, o de Alexandre


Herculano.
Herculano escreveu uma longa carta a D. Pedro II sobre
A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães.
Datada de 6 de dezembro de 1856, permaneceu inédita, a
pedido do próprio Herculano, e surgiria apenas em 1947,
pela mão de Alcindo Sodré, no Anuário do Museu Imperial.
Hoje pode ler-se no volume da edição crítica dos Opúsculos
dedicado aos assuntos de literatura (v. Herculano, 1986,
p. 212-221). Anos antes, Herculano publicara um ensaio
a propósito dos Primeiros cantos de Gonçalves Dias, que
viria a ser incluído, a servir de prólogo, na 2.ª edição dos
6
Trata-se de “Futuro literário Cantos.6 Este texto, porém, trata das consequências para a
de Portugal e do Brasil”,
literatura portuguesa do aparecimento da brasileira, mais
originalmente publicado na
Revista Universal Lisbonense, do que da poesia de Gonçalves Dias: é um ensaio centrado
em 1947, e retomado nos na metáfora do jovem, o Brasil, que se ergue para criar o
Opúsculos (Herculano, 1986,
p. 199-204).
novo, embaraçando o velho decrépito, Portugal, atolado
no passado. Um ensaio escrito por um português – e que o
7
Permito-me remeter o leitor
interessado para o comentário assume expressamente.7
deste ensaio de Herculano que Ora, o primeiro traço que distingue a carta é que Her-
apresento em O livro agreste
(Baptista, 2005, p. 25 et seq.).
culano, para dar a opinião sobre o poema que D. Pedro II
lhe pedira, define com outra palavra a sua condição relativa
à nação brasileira, invocando-a até como fundamento da
incredulidade que fere a capacidade crítica: estrangeiro.
Escreve Herculano:

V. I. M. estranhará talvez que eu comece por uma declaração


de incredulidade que prejudica a crítica especial do poema
ou pelo menos a subordina a considerações superiores,
tornando-se por isso relativa em vez de absoluta. Duvido,
e muito, de que nesta nossa época o poema épico seja
possível na Europa, e mais ainda que o seja na América.
Duvido também de que um estrangeiro possa avaliar sob
todos os aspectos uma composição de semelhante natureza
(Herculano, 1986, p. 213).

Não é imediatamente perceptível o que faz o “es-


trangeiro” na análise de Herculano, e a carta merece um
estudo demorado que, tanto quanto sei, ainda não teve.
70 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Limito-me aqui a observações rápidas que me conduzem


ao meu ponto.
Desde logo, o “estrangeiro” não está onde se espera-
va. Herculano reputa impossível a epopeia – e sublinha
que nenhum dos “sumos poetas contemporâneos” a
tentou – em virtude das próprias exigências do género,
que se sobrepõem às condições actuais em que o poeta
eventualmente o tenta. Claro que o argumento envolve
um juízo sobre essas condições que não se confunde com
a noção das exigências do género: “a nossa geração não é
épica”, razão fundamental por que “a poesia é hoje quase
exclusivamente lírica e dramática”. E o Brasil, entretanto,
apresenta certa especificidade que Herculano também
não negligencia: diz ele que as eras heroicas e as gerações
épicas do Brasil seriam as do primitivo Portugal, “se uma
raça outrora única, não constituísse hoje duas nacionali-
dades distintas” (Herculano, 1986, p. 215). Por outro lado,
a nacionalidade brasileira não pode encontrar nos índios
um substituto para os primitivos portugueses:

aqueles [chefes índios] que se conservaram fiéis às tradi-


ções da pátria americana não têm identidade nem unidade
nacional com os brasileiros de hoje, e os que traíram os
interesses da sua gente e a religião dos seus antepassados
para se aliarem com os conquistadores, são, poeticamente
considerados, uma completa negação da generosidade e do
heroísmo da epopeia (Herculano, 1986, p. 215).

Em suma, o que seria adequado à epopeia não é


nacional, e o que se tornou nacional é indigno da epopeia.
Esta dificuldade, considera-a Herculano insuperável:

Duvido que o génio pudesse vencer estas repugnâncias,


porque as reputo insuperáveis. O que, porém, sei de certo é
que ele não poderia vencer a desarmonia do espírito público.
O Brasil é um império novo; mas os brasileiros são apenas
europeus na América. Não é, sob todos os aspectos, a sua
civilização o mesmo que a nossa? Não se confunde a classe
média do Brasil com a classe média da Europa, a um tempo
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 71

ardente nas suas paixões e céptica e fria nas suas opiniões


e ideias? Como estabelecer aí uma harmonia entre o poeta
épico e o público, que seria impossível aqui? (Herculano,
1986, p. 215)

Sublinhe-se que o “aqui” é a Europa, não apenas


Portugal. E sublinhe-se, acima de tudo, que o juízo de
Herculano sobre a epopeia não depende de ele ignorar
ou recusar a originalidade brasileira, mas justamente de a
considerar e estar convicto de que a pode descrever com
exactidão no que à epopeia diz respeito. O aspecto decisivo
é que, ainda que Herculano defendesse que a epopeia
seria possível no Brasil, por causa disto ou daquilo, o
próprio exercício do juízo havia de mantê-lo na mesma
casa daqueles que escreveriam essa epopeia, ou havia de
trazer estes para a casa em que ele os avaliasse – ou seja,
nesse juízo, a consideração da originalidade do Brasil não
faria de Herculano um estrangeiro. Isto não é o mesmo
que dizer que a originalidade do Brasil está de antemão
subordinada pela consideração das exigências do género
épico: é, antes, o mesmo que dizer que desta não decorre
nenhuma barreira que relativize ou desqualifique o juízo
como juízo de estrangeiro.
Onde se constitui, então, a barreira que define o
estrangeiro? Aí deparamos com a surpresa: a barreira é a
própria língua. Desde logo na diferença de estilos. Escreve
Herculano:

Pelo que respeita às formas externas do poema, recai aí a


outra dúvida de que no princípio falei a V. I. M. Pode sempre
o estrangeiro avaliar bem a frase, as comparações; a verdade
descritiva de um poema? Creio que não. Embora a língua
seja idêntica entre dois povos; há locuções que num país se
tornaram plebeias, antipoéticas, e que noutro são elevadas
ou pelo menos toleráveis (Herculano, 1986, p. 218).

Seguem-se exemplos de frases que a um ouvinte por-


tuguês pareceriam “baixas e triviais”, podendo não o ser
para um brasileiro: exemplos de como Herculano, nesse
72 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

particular, considera o seu juízo “portanto, incompetente”.


Outro aspecto, as comparações: “Das comparações tiradas
de entidades privativas da América ainda a crítica da Eu-
ropa está menos habilitada para ajuizar” (Herculano, 1986,
p. 218). A incompetência, porém, é decorrente da estipu-
lação de uma unidade prioritária: “Há, todavia, coisas em
que a crítica da Europa e a da América tem de concordar.
É acerca dos prosaísmos, das imperfeições de metro, das
incorrecções gramaticais” (Herculano, 1986, p. 219).
Numa palavra, a avaliação da epopeia defronta-se
com a barreira da língua, que, apesar de transnacional,
se torna nacional. A língua deixa o estrangeiro à porta:
sendo a mesma, é também o que separa e o que pode
separar sem deixar marca, quando é a mesma ou quando
se presume a mesma. Contudo, Herculano não postula
sequer a unidade poética da língua – como não postula
nenhum princípio de relativização poética em função da
diferença linguística. Justamente a unidade poética do
género circunscreve a área de incompetência ao mesmo
tempo que a subordina: nem defesa da unidade intemporal
e transnacional da língua para efeitos de epopeia, nem
condução do reconhecimento da diferença à renúncia
a um princípio de avaliação inerente ao próprio género
e portanto independente das particularidades locais.
É isto, creio, o paradigma do propósito cosmopolita na
avaliação literária. Delimitar a barreira, circunscrever a
área de incompetência e ponderar o conjunto: a própria
definição da crítica podia ser dada nesta tríade, que forma
o propósito cosmopolita. Herculano não precisa proceder
a uma expedição etnográfica para responder à solicitação
de Pedro II: chega-lhe o conhecimento da possibilidade de
a mesma palavra não ser a mesma palavra. E não precisa
rever a noção de epopeia, já de antemão aberta à possibi-
lidade da diferença local. O que cabe no seu propósito é
não deixar que o juízo se torne absoluto quando tem áreas
de incompetência, nem fazer alastrar a incompetência à
negação do juízo inteiro.
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 73

O propósito cosmopolita é a voluntária subordinação


a alguma noção de literatura pela comunidade dos que se
reclamam dela: é a aceitação da impossibilidade de nacio-
nalização plena das formas literárias, antigas ou modernas,
é o reconhecimento da estabilidade e da transportabilidade
das formas diante das modalidades de apropriação, de en-
raizamento, de particularização. O reconhecimento da di-
ferença local é inerente, por isso, ao propósito cosmopolita,
e aliás nem haveria necessidade de propósito cosmopolita
sem reconhecimento da diferença. Mais radicalmente,
não há literatura moderna sem incompetência declarada
do estrangeiro: é nela que se decide a possibilidade de a
literatura se erguer acima das condições particulares em
que surge. É na incompetência reconhecida mas circuns-
crita do estrangeiro que a literatura finalmente se cumpre
como literatura.
E isto é válido ainda quando a literatura se define
sobretudo como assunto nacional. O caso particular da
Confederação dos Tamoios atesta-o bem. Alexandre Her-
culano não foi apenas certeiro nas apreciações contidas na
carta, mas deixou eloquente exemplo de crítica literária em
que o propósito cosmopolita nem sequer é incompatível
com a instigação à “nacionalização” da poesia do Brasil, já
enfaticamente presente no ensaio sobre Gonçalves Dias.
A própria dependência da noção de literatura nacional em
que Herculano escreve as suas apreciações do poema de
Gonçalves Magalhães comprova que o propósito cosmo-
polita se caracteriza pela dependência de uma noção de
literatura capaz de tornar globalmente partilhável a própria
ideia de enraizamento no local nacional.
Ferdinand Denis, no seu Resumé, deve ter sido o pri-
meiro a expor uma ideia de literatura brasileira do ponto
de vista cosmopolita, quer dizer, subordinada a uma ideia
de literatura. Já a repetição de Denis pelo grupo da Niterói
inaugurou a ideia de literatura brasileira do ponto de vista
brasileiro, quer dizer, subordinada a uma ideia de Brasil.
Repegando a antinomia de início, Gonçalves de Maga-
lhães interiorizou Denis, não no sentido superficial de ter
74 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

assimilado a lição do estrangeiro, mas no mais decisivo de


ter tornado doméstico o que era cosmopolita, isto é, de ter
tornado dependente de uma pátria o que em si mesmo não
tinha pátria – uma ideia de literatura. E pôde fazê-lo pre-
cisamente porque essa ideia era cosmopolita e se oferecia
com a generosidade de quem trabalha para o bem comum,
para o ideal partilhável de uma literatura moderna formada
pela livre agremiação das particularidades expressas em
literaturas nacionais.
Num trabalho recente, Paulo Franchetti mostrou como
o programa literário de Magalhães depende da ideia de que
o Brasil estaria num segundo momento da sua história,
aquele em que “tomava consciência da sua especificidade e
se constituía plenamente como nação”. Daí que a oposição
antilusitana e anticlássica, que definem o romantismo de
Magalhães, coincidissem num “gesto de afirmação nacio-
nal e política da nova nação” (Franchetti, 2006, p. 115).
Apesar da adopção da França como matriz cultural, em
nome das ideias de liberdade e de universalidade, os dois
postulados básicos de Magalhães, que Franchetti identifica,
estruturam claramente uma posição anticosmopolita: o pri-
meiro é o do “instinto oculto”, a força com que a natureza
da terra guiaria a transformação completa da literatura
em literatura plenamente brasileira; o segundo diz que
“os temas, as formas e as técnicas da literatura europeia se
não obstruem, ao menos dificultam a expressão do caráter
nacional na produção letrada do país”. Franchetti mostra
de forma convincente como a articulação desses postula-
dos determinou decisivamente a historiografia e a crítica
literária posterior (Franchetti, 2006, p. 121 et seq.). E de
facto, desde aí, estruturou-se um dispositivo anticosmopo-
lita de equívocos, a saber: a) a confusão que dissolve toda
e qualquer diferenciação literária em “carácter nacional”
e a redução de todos os factores de diferenciação a um
único, a influência da realidade local; b) a crença em que
a representação da realidade local, sendo por virtude des-
sa influência uma inevitabilidade, determina a literatura
consciente ou inconscientemente e de modo distintivo;
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 75

c) a confusão do local com o nacional, que já Machado


denunciou, mostrando que querer ostentar certa cor local
e querer tornar nacional uma literatura não são projectos
necessariamente coincidentes; d) a confusão do projecto
de construção de uma literatura nacional, projecto de
afirmação política e de natureza prescritiva, quaisquer que
sejam as formas com que historicamente se reedita, com
a própria nacionalidade da literatura; f) enfim, a crença
num processo contínuo e irreversível – “instinto oculto”,
“tradição afortunada” ou “formação”, consoante os voca-
bulários –, em direcção a uma etapa final de nacionalização
definida pela harmonia entre literatura e terra, cultura
e nação, literatura e sociedade, modernidade artística e
modernidade social, etc.
O sintoma desse dispositivo de equívocos é a persisten-
te oposição entre o local e o universal, cuja fortuna brasilei-
ra decorre do obscurecimento da diferença entre a noção de
literatura como projecção subordinada a um ideal cosmo-
polita de literatura e a noção de literatura como projecto
subordinado a um ideal nacional de país construindo-se
dotado de literatura “própria”. Nesse preciso ponto, facilita
outra confusão, a do propósito cosmopolita com o pendor
para o universal. Mas a oposição do local ao universal é
sobretudo um instrumento do projecto de circunscrição
nacional da literatura. A estipulação do local por oposição
ao universal representa sempre o privilégio do local, do que
está antes da literatura e que logo transforma o universal
em mero repertório de temas e formas: é uma figura da
oposição da realidade à literatura e da subordinação da
literatura pelas representações naturalizadas da realidade.
Daí o efeito decisivo da sua persistência: local e universal,
na narrativa da “formação”, tornam-se polos em tensão de
um mesmo processo da literatura em direcção ao nacional,
o processo pelo qual a nação se revela a si mesma pela sua
literatura. Nesse sentido, a oposição do local ao universal
sobrevive por meio da oposição do consciente ao incons-
ciente e do voluntário ao involuntário: aqueles escritores
que se distanciam do projecto de nacionalização da lite-
76 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

ratura brasileira ou lhe permanecem indiferentes acabam,


tarde ou cedo, por nele ser harmoniosamente integrados,
ou como nacionalistas involuntários ou como cultores
de nacionalismo literário “mais profundo”. Eis como a
oposição entre local e universal se revela instrumento de
poder, de domínio de uma doxa interpretativa inimiga da
diferença cosmopolita: confundindo o cosmopolita com o
universal, dissolve-o num processo que não admite exterior,
onde não há efectiva alternativa para o nacional, o mesmo
é dizer, onde não há lugar para o estrangeiro.

4.

É impossível ignorar que o ideal de entendimento


universal inerente ao sonho emancipador da literatura
moderna ruiu há muito. Mas como ler Machado sem levar
em conta esse ideal, esquecendo-o ou desprezando-o?
Também não é possível, não apenas porque a obra macha-
diana se estruturou e destinou no âmbito definido por esse
ideal, projectando-se para um horizonte indeterminado no
tempo e no espaço, mas ainda porque é a esse mesmo ideal
que a grandeza de Machado remete o leitor cosmopolita,
exigindo, porém, a sua reformulação.
Daí que Machado de Assis seja o óbvio, quer dizer, o
incontornável ponto de crise do paradigma hegemónico
de autorrepresentação da literatura brasileira. Desde logo,
a ausência conspícua de empenhamento no local desafia
a imaginação e acaba por torná-lo prisioneiro inevitável
da ideia do “nacional mais profundo” ou do “nacional in-
consciente”, ambas destinadas a bloquear a possibilidade
de leitura cosmopolita da obra machadiana. Acresce que
qualquer dessas ideias acaba por tornar manifesto que o
propósito final de uma e outra é subordinar a inteligibili-
dade e avaliação da obra machadiana à possibilidade de
certa comunidade que se designa como brasileira a declarar
“inteiramente brasileira”. Mas, de um modo ou de outro,
há sempre uma linha de fuga por meio da qual Machado
se torna escritor sem pátria.
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 77

Veja-se o exemplo de Antonio Candido. Quando, na


Formação da literatura brasileira, escreve que Machado “se
embebeu meticulosamente da obra dos predecessores”;
que a “sua linha evolutiva mostra o escritor altamente
consciente, que compreendeu o que havia de certo, de
definitivo, na orientação de Macedo para a descrição de
costumes, no realismo sadio e colorido de Manuel Antônio
de Almeida, na vocação analítica de José de Alencar”; e
quando precisa, logo a seguir, que Machado “pressupõe a
existência dos predecessores, e esta é uma das razões da sua
grandeza” e “o segredo da sua independência em relação
aos contemporâneos europeus, do seu alheamento das
modas literárias de Portugal e França” (Candido, 1981, v.
2, p. 117-118), Antonio Candido não está apenas a situar
Machado no quadro nacional, limitando-o ao processo da
“formação da literatura brasileira”: está a recusar o ponto
de vista cosmopolita, precisamente porque estipula que a
inteligibilidade e a originalidade de Machado decorrem do
modo como ele próprio, “altamente consciente”, se inseriu
nesse processo. Nessa descrição, a “formação” de Machado
como escritor decorre essencialmente em ambiente domés-
tico e o estrangeiro não é mencionado senão para sublinhar
o alheamento e recusa que o excluem do processo.
Já quando fala de Machado nas Universidades da
Flórida e do Wisconsin, quase 10 anos depois da Formação,
dir-se-ia que o mesmo Antonio Candido se muda para o
lado adverso, isto é, o cosmopolita. Depois de dizer que
“o que primeiro chama a atenção do crítico na ficção de
Machado de Assis é a despreocupação com as modas do-
minantes e o aparente arcaísmo da técnica”, notando que
o escritor “cultivou livremente o elíptico, o incompleto,
o fragmentário”, acaba explicando que se tratava de uma
forma de manter na segunda metade do século XIX “o
tom caprichoso” de Sterne e de criar algum eco do “conte
philosophique à maneira de Voltaire” (Candido, 1995, p.
26). Já não se estranhará, depois disso, que as descrições
comparativas da página seguinte, em vez dos nomes de
78 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Alencar ou Macedo, convoquem Kafka, Dostoiévski, Gide,


Proust ou Faulkner.
O segundo Candido é melhor ou pior do que o pri-
meiro? Dir-se-á que se complementam, que o primeiro
valoriza o local, o segundo, o universal, polos necessários
de qualquer descrição rigorosa da obra machadiana, etc. A
verdade, porém, é que o segundo Candido não tem lugar
para o primeiro, e este não admite o outro. Decerto An-
tonio Candido, crítico inteligente e informado, não teria
duvidado de que o seu auditório na Flórida ou no Wis-
consin havia de permanecer razoavelmente indiferente se
ele insistisse em explicar-lhes que a grandeza de Machado
decorre de ter estudado Macedo e superado Alencar: não
porque os desconhecesse, mas porque o protagonista dessa
explicação não seria nenhum deles, nem sequer Machado,
seria a narrativa da “formação da literatura brasileira” – a
narrativa que precisamente os constitui estrangeiros diante
de Machado. Em vez disso, o que Candido faz não é diluir a
originalidade de Machado de Assis tornando-o aceitável ou
tolerável pelo estrangeiro ignorante das coisas brasileiras,
nem valorizar o universal em detrimento estratégico do lo-
cal: generosamente, deveríamos interpretar a diferença do
segundo ensaio à luz de um princípio de filantropia literária,
digamos assim, que consiste em procurar tornar inteligível
e apreciável um escritor a quem quer que se interesse por
escritores e literatura, ou seja, em fazer que o estrangeiro,
diante da sua obra, não depare com nenhuma barreira que
torne absoluta a sua condição de estrangeiro.
Como quer que seja, no “Esquema”, Candido não
apela a nomes familiares, seja Sterne ou Voltaire, mas a
uma tradição comum, a do romance europeu e da noção de
literatura que representa. É aí que o propósito cosmopolita
pode actuar, e por isso é aí que a incompatibilidade entre as
duas perspectivas salta inexorável. Para o mesmo fenóme-
no – a distância de Machado das “modas literárias” do seu
tempo –, Candido oferece duas descrições incompatíveis,
a da Formação, que o dá consciente dos predecessores e
a querer superá-lo, e a do “Esquema”, que o dá a recu-
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 79

perar uma linha do romance europeu que essas “modas”


interromperam: a primeira desenha uma linha contínua,
a segunda refere uma linha quebrada; a primeira postula
uma evolução irreversível, a segunda acredita no resgate
do anacrónico; a primeira está claramente circunscrita ao
espaço nacional, como se essa linha contínua e irrever-
sível se desenrolasse num compartimento estanque, ao
passo que a segunda requer um espaço difuso de trocas e
influências, não determinado nacionalmente. E, em cima
de tudo, a primeira requer o conhecimento do processo da
“formação” como condição da inteligibilidade de Macha-
do, a segunda não só o dispensa como torna Machado um
romancista muito mais relevante porque capaz de actuar
criticamente sobre a tradição e a actualidade da situação
literária europeia.
A diferença em nada depende da oposição entre local
e universal: em nenhum dos casos Machado é descrito
pelo penchant para o universal ou para o local, é antes a
mesma característica – o alheamento das “modas literárias”
europeias – que num caso se define dotada de conteúdo
nacional e no outro desprovida dele. A diferença entre os
dois Machados é gerada pela diferença entre duas atitu-
des diante da situação e da tradição literária europeia, e
na verdade expressão eloquente da diferença entre dois
Candidos: o Antonio Candido da Formação é o crítico
comprometido com a nação, empenhado em entregar aos
brasileiros um Machado que os represente, por numerosos
e sofisticados que sejam os mediadores dessa representação,
enquanto o Antonio Candido do “Esquema” é o crítico
comprometido com a literatura, na busca de um Machado
que o estrangeiro possa chamar seu sem que o brasileiro
se sinta espoliado.

5.

Que o primeiro Candido não pode desenvolver-se sem


erradicar o segundo, e que o segundo apenas emerge na
condição de destruir pressupostos básicos do paradigma crí-
80 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

tico do primeiro – eis o que curiosamente se comprova com


a peça final do edifício machadiano de Roberto Schwarz,
o ensaio “Leituras em competição”: os dois géneros que
Schwarz delimita, a “leitura nacional” e a “leitura inter-
nacional”, encontram afinal no próprio Antonio Candido
exemplar praticante, senão mesmo o primeiro.
De facto, para Schwarz, a “crítica internacional”
define-se por ler Machado sem considerar a relação com a
nação brasileira, mais propriamente, “crítica internacional”
é toda a que se não ocupa de esclarecer a relação entre o
carácter inconfundível da ficção machadiana e o carácter
inconfundível da nação brasileira. Em contrapartida, “crí-
tica nacional” não é a que se faz no Brasil, ainda menos
a que é feita por brasileiros, mas a que tem nessa relação
com a nação o centro de gravidade dos seus esforços, e que
aliás Schwarz descreve ainda segundo o modelo da linha
contínua, em progresso irreversível na direcção de uma
meta, que se presume tenha sido atingida pelo desenhador
da linha, seu principal praticante e intérprete, o mesmo
Schwarz. Nenhuma surpresa, aliás. Isso basta para perceber
por que motivo a “leitura nacional” é sempre referida no
singular, ao passo que se sugere que a internacional poderia
receber a designação alternativa de “várias não-nacionais”
(Schwarz, 2006, p. 64).
O ensaio é, na verdade, uma reacção a certa resenha
publicada em Nova York e que, sem agressividade mas
com assinalável contundência, danifica o sentido global
do trabalho de Schwarz. Trata-se de “Master among the
ruins”, de Michael Wood, professor de Princeton, que a
New York Review of Books publicou por ocasião da publica-
ção de novas traduções de Machado para inglês. Schwarz
refere-se expressamente ao artigo, classifica-o de “resenha
abrangente e consagradora do romance machadiano”,
sublinha que apresenta questões difíceis e incontornáveis
que definem a cena do debate entre a “leitura nacional”
e a “leitura internacional”, e refere, numa proposição in-
tercalada, quase despercebida, que Michael Wood “leva
em conta a crítica brasileira”. Ora, sendo certo que a
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 81

resenha dedica boa parte do seu espaço ao conjunto dos


romances machadianos da segunda fase, não deixa de
ser também uma resenha crítica da tradução inglesa do
livro de Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: e é
essa a forma, porque não se encontra outra, de “levar em
8
V. Wood, 2002. As novas conta a crítica brasileira”.8 Para dizer logo tudo, aquilo que
traduções, publicadas pela Schwarz apresenta sob a égide da distinção entre “leitura
Oxford University Press,
incluem Memórias póstumas
nacional” e “leitura internacional” são elaborações em
de Brás Cubas (1997) e resposta a observações críticas que Michael Wood coloca
Quincas Borba (1998), ambos ao trabalho crítico de Roberto Schwarz, mais precisamente
por Gregory Rabassa, Dom
Casmurro (1997), por John uma restrição fundamental, como já veremos.
Gledson, e Esaú e Jacó (2000), Por que então graduá-las em interpelação crítica da
por Elizabeth Powe. Outro
“leitura nacional”? Claro, já o deixei dito atrás, Schwarz
livro incluído no rol dos
resenhados é Machado de Assis: considera-se o terminus ad quem de uma linha de leitura
reflections on a Brazilian master que, lenta mas progressivamente, devolveu o verdadeiro
writer (1999), organizado
por Richard Graham, e que
Machado ao Brasil, resgatando-o de décadas de fortuna
inclui contribuições de, entre crítica irrelevante. Mas há mais em jogo: na exacta medida
outros, John Gledson e João em que a restrição de Wood não é periférica, nem acessó-
Adolfo Hansen. Mas o ensaio
efectivamente avaliado pela
ria, mas fundamental, Schwarz não pode reparar o dano
resenha é o de Schwarz. causado senão radicalizando a noção de “leitura nacional”
ao ponto de fazer dela uma barreira preservativa contra
o estrangeiro. Aí se confirma, então, e em pleno, como a
ideia cosmopolita, indo além da oposição entre universal
e local, é a única à altura da exigência de liberdade e de
inteligência que a obra de Machado coloca aos leitores.
Para o compreender, retenhamos a passagem em que
Schwarz se refere à resenha:

A certa altura do seu ensaio, Wood, que leva em conta a


crítica brasileira, propõe uma dissociação sutil. As relações
com a vida local podem existir, tais como apontadas, sem
entretanto esclarecer a ‘maestria e modernidade’ do escritor.
Ou, noutro passo: seria preciso interessar-se pela realidade
brasileira para apreciar a qualidade da ficção machadiana?
Ou ainda, a peculiaridade de uma relação de classe, mes-
mo que fascinante para o historiador, não será ‘um tópico
demasiado monótono para dar conta de uma obra-prima?’
(Schwarz, 2006, p. 64).
82 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Não é uma paráfrase inteiramente falsa; mas também


não é inteiramente fiel à resenha. Com efeito, essas obser-
vações e perguntas encontram-se no texto de Wood, mas
são formuladas na dependência dessa consideração crítica,
que Schwarz oblitera: “What Schwarz´s book doesn’t tell
us is why the novel [Memórias póstumas de Brás Cubas]
is so funny as well as so bleak.” A observação, de resto
inteiramente certeira, completa-se com esta outra, logo
a seguir: “Schwarz himself is clearly alert to the fun, and
writes repeatedly of the work’s comical and farcical effects.
But his thesis is a little grim and unrelieved, even when
the subject is not slavery” (Wood, 2002).
E é depois disso que Michael Wood formula as inter-
rogações que Schwarz cita e parafraseia. O que se perde
na paráfrase? Decerto a noção de que Wood pressente um
crítico severo e carrancudo, que toca o cómico para o dis-
solver numa tese monótona. Seria interessante, mas ainda
assim pouco relevante. Perde-se sobretudo a direcção do
comentário de Wood, o conteúdo dela e a especificidade
da pergunta implícita na observação crítica, e que seria, já
agora parafraseando Brás Cubas: por que cómico, se som-
brio, por que sombrio, se cómico? Ora, não se trata esta de
uma pergunta qualquer, e é a sua colocação diante da obra
de Machado e diante do ensaio de Schwarz, ou melhor, no
contexto da resenha de confronto do ensaio de Schwarz
com a obra de Machado, que lhe dá a importância decisiva
que obrigou à reacção de Roberto Schwarz.
Em primeiro lugar, ecoa nessa pergunta a questão de
Brás Cubas perante o próprio livro: é a questão das ra-
bugens de pessimismo e da possibilidade de a partir delas
se distinguir a forma livre tal como praticada pelo autor
defunto. Além disso, ecoa as palavras de Machado no
prólogo da 4.ª edição, quando, respondendo a Capristano
de Abreu e Macedo Soares, reitera Brás Cubas: “O que faz
do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele chama
‘rabugens de pessimismo’. Há na alma deste livro, por mais
risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que
está longe de vir dos seus modelos.” O passo é muito conhe-
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 83

cido e, aliás, crucial para entender a relação de Machado


9
Permito-me remeter o leitor com a figura de Brás Cubas,9 mas é, sobretudo, para o que
interessado para a análise agora nos interessa, o lugar primordial, digamos assim,
deste prólogo que levo a cabo
em Autobibliografias (Baptista, onde se decide a originalidade das Memórias póstumas de
2003, p. 331-337). Brás Cubas: e justamente na ligação, inusitada, entre a
forma livre e a filosofia. Hoje, pode dizer-se que não há
leitor competente que não saia da leitura colocando essa
pergunta, e a colocação provavelmente decide a compe-
tência de qualquer leitor: por que cómico, se sombrio, por
que sombrio, se cómico?
Em segundo lugar, não se trata apenas de uma questão
importante a que o livro de Schwarz não responde: é uma
questão que o livro de Schwarz não consegue impedir que
ressurja. Dir-se-ia que Brás Cubas e Machado, cansados de
tanta apropriação historicista e sociologizante, galgaram o
século e foram impelir um espírito americano desocupado
a reformular a pergunta de sempre: como que a usá-lo para
nos trazer a todos de volta ao decisivo. Se levarmos a sério
a narrativa de Schwarz da “leitura nacional”, desde a recusa
do “clássico nacional anódino” à deslocação do centro
para “o processamento literário da realidade imediata”; se
considerarmos que a meta intermédia desse processo em
curso é descrita como etapa em que “a composição, a cadên-
cia, e a textura do romance machadiano foram vistas como
formalização artística de aspectos peculiares à ex-colônia”;
se, enfim, retivermos a conclusão de que “passo a passo, o
romancista foi transformado de fenómeno solitário e inex-
plicável em continuador crítico e coroamento da tradição
literária local”, em “idealizador de formas sob medida, ca-
pazes de dar figura inteligente aos descompassos históricos
da sociedade brasileira” – então, a reiteração da questão
do cómico só pode significar que, ao menos para o crítico
americano, todo esse processo é inteiramente irrelevante: não
lhe resolve o problema da originalidade tal como o recebe
da leitura do romance e tampouco o substitui por outro.
A resenha, de resto, no tom de generosidade intelectual
e até de concordância complacente que assume, redunda
em dizer: “Sim, sim, a escravidão, as elites, pois, muito in-
84 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

teressante, mas afinal, diga-me, porque cómico se sombrio,


porque sombrio se cómico?”
Ora, essa narrativa da evolução da crítica a que
Schwarz procede não tinha ainda alcançado essa forma
sintética e expressiva de narrativa teleológica. Dava-se
dispersa, aqui e ali, em passagens particulares, entrevistas
ou resenhas, sobretudo sem a intenção delineadora de um
processo, contínuo, homogéneo e irreversível que Schwarz
agora definitivamente lhe imprimiu. Não era, pois, a essa
narrativa que Wood colocava restrições; dir-se-ia, até,
lendo-o, que nem tem ideia de que tal coisa pudesse ser
inventada. Mas a consequência não podia deixar de ser pre-
cisamente essa para quem, como Schwarz, trabalha dentro
de um paradigma que se define a partir dessa narrativa: ser
declarado desnecessário, irrelevante, além de deprimente e
monótono, a bem dizer despiciendo. Por outras palavras, o
procedimento de Schwarz consiste em formar e radicalizar
a narrativa que percebe posta em causa por uma resenha
que apenas implicava um livro... Por quê?
A razão é óbvia: para armar a defesa. Produzir a ver-
dadeira e exacta história da crítica machadiana, também
chamada “leitura nacional”, é o principal meio de defesa
contra a crítica que a põe em causa: é o meio de mostrar
ao elemento hostil a dimensão e a força daquilo em que
está a tocar. Não há nenhuma inocência na precisão com
que Schwarz sublinha que Wood não é “especialista em
Machado, nem brasilianista, mas um crítico e compara-
tista às voltas com a latitude do presente”: é o mesmo
que dizer que esse crítico é alguém de fora e que está por
fora, estrangeiro que permanece duplamente no exterior:
tocando num livro, fazendo o reparo de que não responde
à questão do cómico sombrio, o crítico estranho toca numa
tradição, num processo intelectual demorado – num país.
Talvez sem se aperceber disso, e então o crítico severo e
carrancudo sai do recolhimento e explica, e brandamente
repreendendo-o, assim se defende.
Mas a defesa tem a ambiguidade própria dos gestos
em pleno desastre. Justamente a necessidade de a armar
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 85

revela a vulnerabilidade da arma. Na medida em que se


trata de impor uma barreira que deixa o estrangeiro à porta,
porque incapaz de entender tudo o que está em causa, há
10
Veja-se o modo alguma eficácia argumentativa10 e até política: sempre se
complacente e um tanto deu mais um passo para delimitar o “nosso” por oposição
defensivo como Michael Wood
reagiu no artigo “Entre Paris ao alheio, para barrar o acesso do estrangeiro ao “nosso”.
e Itaguaí” (Wood, 2009), Mas precariamente, porque a própria condição em que a
propondo uma espécie de
defesa é armada e usada decorre já num cenário exterior
solução de compromisso em
que o “leitor internacional” ao nacional e em que o nacional como valor próprio não
pudesse tornar-se o mais tem sentido.
nacional possível e depois
“proveitosamente voltar para
Daí a relevância de o estrangeiro não ser qualquer, mas
casa e comparar”, e o “leitor americano, e americano de Princeton. Não apenas a con-
nacional” tivesse um “toque tundência da restrição que formula é inexorável, criando
de comparação extranacional”
(Wood, 2009, p. 83). Esse
por si só um estado de crise em todo o edifício da “leitura
compromisso redunda em nacional”: esse estrangeiro representa um poder que su-
“coexistência pacífica”, no planta as narrativas teleológicas para consumo doméstico.
sentido diplomático do termo:
cada um no seu território, Machado foi mais uma vez traduzido para inglês, a sua
ocupando-o e governando-o fortuna no mundo de língua inglesa pode aumentar – o que
legitimamente, sem prejuízo
implica inevitavelmente a desgraça da “leitura nacional”,
de aprenderem ou receberem
alguma coisa um do outro. se a “leitura nacional” se definir, como Schwarz a define,
Essa perspectiva, ao cabo, pela restrição das possibilidades da “internacional”.
recusa declarar que a posição
de Roberto Schwarz é
A defesa aberta da superioridade da “leitura nacional”
coerentemente incompatível é o melhor testemunho da incompatibilidade das inter-
com qualquer “leitura pretações centradas no problema nacional com a noção
internacional” de Machado.
moderna de literatura e, em particular, com a dimensão
emancipadora e a liberdade intelectual que lhe são ineren-
tes. A precisão de que o “nacional” não tem de coincidir
com o estrangeiro, porque “a cor do passaporte e o local de
residência dos críticos não são determinantes”, denuncia o
carácter profundamente anticosmopolita e discriminatório
da distinção: o estrangeiro que se integra no nacional é
tão-só o que se sujeita às regras que definem o nacional.
Não há lugar, nessa distinção, para o estrangeiro que se
interessa por Machado mas não se interessa pelo Brasil.
Essa condição é inconcebível para Schwarz. O estrangeiro
que se integrou na “leitura nacional” representa o êxito
do paradigma nacional, a força e capacidade de atrair os
outros ao espaço doméstico e principalmente representa
86 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

uma promessa de viabilidade de domínio sobre todos os


que se interessam e venham a interessar-se por Machado.
A “leitura nacional” não é hospitaleira, ou é hospitaleira
com muitíssimas condições: afinal, apenas aceita aqueles
que derem garantias sólidas de não perturbarem a segu-
rança interna. O estranho estrangeiro, o inassimilável, do
exterior ou do interior, representa a total impossibilidade
de governar os interesses, as paixões, os procedimentos e
as razões daqueles que se dedicam à leitura, ao ensino e
à divulgação da obra machadiana: não tanto aqueles que
ameaçam a nacionalidade de Machado, mas aqueles que
exemplificam que essa ameaça é não só inerente à obra
machadiana como é por ela procurada desde o início.
Daí que o propósito cosmopolita seja aquele que,
não obstante, não abdica desse governo, ou da ideia de
certo governo: mas presume-o no texto mesmo de Ma-
chado. Pressupõe o governo do texto como promessa de
inteligibilidade e prazer que o texto dirige à inteligência
e à paixão do estrangeiro. A questão do cómico sombrio,
como a questão da epopeia para Herculano, são exemplos
disso. De um modo ou de outro, há um século ou hoje, no
Rio ou em Nova York, alguma força requer dos leitores
a formulação da mesma pergunta, a que ecoa o espaço
primordial da originalidade das Memórias póstumas: por
que cómico, se sombrio, por que sombrio, se cómico? Sem
ignorar o espaço da sua incompetência, a competência
do leitor cosmopolita reside na capacidade de perceber
a relevância e a urgência dessa pergunta e fazer apelo à
hospitalidade incondicional.

Referências
AUERBACH, Eric. Philology and Weltliteratur. The Centennial
Review, East Lensing, v. 13, n. 1, winter 1969. Transl. by Mary and
Edward Said.
BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Campinas: Unicamp,
2003.
_____. O livro agreste. Campinas: Unicamp, 2005.
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita 87

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6. ed. Belo


Horizonte: Itatiaia, 1981.
_____. Esquema de Machado de Assis. In: _____. Vários escritos.
3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
FRANCHETTI, Paulo. Gonçalves de Magalhães e o Romantismo
no Brasil. Revista de Letras, São José do Rio Preto, v. 46, n. 2, dez.
2006.
HERCULANO, Alexandre Herculano, Opúsculos. V. Lisboa: Edito-
rial Presença, 1986. Edição crítica. Organização, introdução e notas
de Jorge Custódio e José Manuel Garcia.
PRATA, Mário. Schifaizfavoire – Dicionário de português. São Paulo:
Globo, 1993. Disponível em: <http://www.marioprataonline.com.
br/obra/literatura/adulto/dicionario/framegranda_a.htm>.
SCHWARZ, Roberto. Leituras em competição. Novos Estudos
Cebrap, São Paulo, n. 75, jul. 2006.
WOOD, Michael. Master among the ruins. The New York Review
of Books, New York, 18/07/2002.
_____. Entre Paris e Itaguaí. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.
83, mar. 2009.
89

O ameríndio como personagem


do outro na literatura brasileira
contemporânea: órfãos do
eldorado e nove noites
Rita Olivieri-Godet*

resumo: Este trabalho propõe-se a examinar a representação do


ameríndio e a relação entre identidade e alteridade que lhe é con-
substancial a partir da leitura de dois romances contemporâneos
brasileiros: Orfãos do Eldorado (2008), de como instância de
alteridade, em relação a um grupo de referência que se inscreve
no modelo da sociedade ocidental, questionando o lugar que ele
ocupa no espaço nacional. A análise desses textos romanescos
visa a discutir os elementos que fundamentam a figuração atual
do ameríndio na literatura brasileira.
palavras-chave: alteridade, ameríndio, literatura brasileira
contemporânea.
abstract: This work aims at the exploration of such repre-
sentation, analyzing the relation between identity and alterity
which is built-in, in two contemporary brazilian novels: Orfãos
do Eldorado (2008) written by Milton Hatoum and Nove Noites
(2001) by Bernardo Carvalho. These two stories choose the
Amerindian as a subject of alterity, in relation with a reference
group which belongs to the occidental society model, scruti-
nizing the position that it occupies in the national space. The
analysis of these novels will discuss some elements which form
the basis of contemporary figurations of the Amerindian in the
Brazilian literature.
keywords: alterity, amerindian, contemporary Brazilian lit-
terature.

Je crois que l’imaginaire a autant de réalité que le


matériel
Georges Duby et Guy Landreau, Dialogues
*
Université Rennes 2,
França.
90 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

L’Autre n’est pas un objet vide et indéterminé, prêt à


s’assujettir au regard et au traitement scientifique de
l’observateur. Il s’articule sur ses propres déterminations
et s’accompagne toujours de ce qu’on pourrait appeler
ses attributs.
Francis Affergan, Critiques anthropologiques

A produção literária contemporânea, gerada num


contexto multiétnico, plurilinguístico e multicultural de
nossas sociedades urbanas atuais, inaugura novas linhas
de força temáticas e formais. Meus trabalhos mais recentes
refletem sobre uma “poética da alteridade” como uma das
modalidades da ficção contemporânea brasileira, ainda
que esta vertente não se constitua numa exclusividade
nacional (Godet, 2007).
Utilizo o termo “poética” no sentido que lhe atribui
Linda Hutcheon: uma estrutura teórica aberta, em muta-
ção, que nos ajuda a organizar nosso pensamento crítico
(Hutcheon, 1991, p. 32). Não se trata de procurar um
invariante abstrato, uma regra ou uma lei, mas antes de
refletir sobre signos formais, temáticos e estéticos, comuns
a um conjunto de textos que participam da prática literária
contemporânea e que tendem a exacerbar a confronta-
ção com a alteridade. Os mecanismos especiais que eles
acionam para dizer nosso tempo induzem a uma espécie
de arqueologia das culturas e da linguagem, abrindo-se a
uma prática metadiscursiva que lhes permite fazer interagir
criação, crítica literária e teoria da cultura.
Assim, as narrativas que se inserem nessa poética da al-
teridade procuram alargar o imaginário nacional para além
de suas fronteiras, explorando uma geografia imaginária
da diferença cultural. E, quando se restringem ao espaço
nacional, o fazem para questionar o lugar que nele ocupa
o “estrangeiro de dentro”, como é o caso da representação
do índio como instância de alteridade.1 1
A esse respeito, ver a
Na dialética do “selvagem” e do “civilizado” que atra- obra de Janet M. Paterson
(Paterson, 2004).
vessa o processo de construção das identidades plurais e
problemáticas das Américas, a representação do ameríndio
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 91

ocupa um lugar central. Este trabalho pretende explorar


essa representação e a relação entre identidade e alteri-
dade que lhe é consubstancial a partir da leitura de dois
romances contemporâneos brasileiros: Órfãos do Eldorado
(2008), de Milton Hatoum, e Nove noites (2001), de Ber-
nardo Carvalho.
A representação das relações identidade/alteridade a
partir da escolha do ameríndio como personagem do Outro
tem a ver com a experiência do espaço e a temática da er-
rância. Esses elementos constitutivos dos textos fundadores
das literaturas americanas, que a produção contemporânea
não cessa de revisitar, autorizam certos críticos a postular
a existência de um cenário mítico americano, baseado no
mito da renovação, que se articula sobre valores antitéticos
2
Sobre o assunto, ver a entre espírito europeu e mundo selvagem americano.2 O
excelente introdução de Jean
questionamento da figuração do ameríndio como “es-
Morency à sua obra Le mythe
américain dans les fictions tranho estrangeiro de dentro” ajuda-nos a compreender
d’Amérique (Morency, 1994). o lugar que as sociedades urbanas modernas reservam a
esses povos, no contexto atual de nossas sociedades, no
qual imaginários “arcaicos” coexistem com imaginários
planetários. Essas questões atravessam a produção literária
3
Num artigo ainda inédito, recente no Brasil e nas Américas.3
“La poétique de l’altérité
et la représentation de
l’Amérindien dans la fiction
des Amériques”, examino a Orfãos do Eldorado: a alteridade ameríndia
questão numa perspectiva
comparatista que inclui
entre mito e história
romances quebequenses e
argentinos. A obra de Milton Hatoum interroga as formas de
interagir com o outro que conduzem a processos de hi-
bridismo, cruzando experiência vivida e memória, sem,
no entanto, escamotear seus aspectos traumáticos. Seus
narradores investigam as construções identitárias do
sujeito e da comunidade a partir do lugar fronteiriço que
ocupam entre familiaridade e estranhamento, atravessa-
dos por imaginários culturais diversos. No entanto, seria
redutor se ater às questões de fronteiras culturais que os
romances de Hatoum levantam sem considerar a relação
com a experiência íntima da alteridade que elas implicam,
92 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

praticando a passagem da etnicidade ao estranhamento,


permitindo assim o alargamento a uma perspectiva sub-
jetiva. Essa estratégia confere uma dimensão universal à
obra do autor amazonense e possibilita explorar as várias
facetas de uma região emblemática, sem cair na armadilha
de um regionalismo redutor.
“Em Manaus ainda hoje se encontram, de uma forma
muito mais ostensiva, os restos da sociedade nativa entre
‘as roupagens civilizadoras’”, escreve Hatoum, comentando
cartas de Euclides da Cunha nas quais se refere a essa cida-
de (Hatoum, 2000). Cidade compósita, híbrida, construída
a partir de múltiplas interações culturais entre as quais se
destacam elementos da problemática coabitação entre a
cultura tapuia e a modernidade transplantada, tematizada
no quarto romance do autor, recentemente publicado. Em
Orfãos do Eldorado (2008), Milton Hatoum continua a
explorar as relações interculturais, dando destaque para a
figura do ameríndio como instância da alteridade. Desde
o início de sua produção, o imaginário ameríndio sempre
fez parte do universo romanesco do escritor. Presença
constante, mas discreta, sobretudo nos seus dois primeiros
romances, Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irmãos
(2000), que colocam em cena o diálogo entre o mundo
amazônico e a imigração libanesa, sondando principal-
mente o lugar fronteiriço dos narradores, situado entre
dois mundos: a memória do passado herdado da família,
marcado por referentes culturais libaneses, e o presente do
país natal. A partir de Cinzas do norte (2005), os persona-
gens pobres e explorados dos ameríndios se tornam mais
visíveis, circulando entre os espaços da cidade e da floresta,
e terminam por ocupar um lugar cada vez mais central no
universo fictício do autor.
Com a publicação de Orfãos do Eldorado, o autor
aproxima o mito amazônico da Cidade Encantada do
mito do Eldorado para interrogar o diálogo entre as cul-
turas ameríndia e ocidental, examinando os efeitos de um
projeto de modernidade, sustentado pelas elites, no seio
da sociedade amazonense. A narrativa segue a trilha das
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 93

anteriores, ao escolher se dedicar às complexas interações


culturais pelo viés do drama íntimo de um narrador, Ar-
minto Cordovil, que entrelaça memória pessoal e coletiva,
história e mito, na busca de si mesmo e do sentido da sua
trajetória existencial. Assim, o relato de sua paixão por
Dinaura e a reconstrução do passado de sua família têm
como pano de fundo a história local (a guerra dos Cabanos)
e mundial (as duas Grandes Guerras), cruzando história
do indivíduo e da coletividade. Em Órfãos do Eldorado, o
processo de construção identitária do narrador-personagem
se realiza por meio do confronto com a alteridade paterna
e da atração pela alteridade ameríndia. Entre alteridade
rejeitada e alteridade desejada, a narrativa constrói as
complexas relações de Arminto com o espaço, seja ele
familiar, urbano ou natural. Revisitando o percurso da
infância à idade adulta, durante o qual Arminto transita
por um território cultural ambivalente, a narrativa encena
uma construção identitária sofrida, uma busca inútil de um
lugar habitável (Harel, 2005) por um sujeito atravessado
por imaginários diversos. O lugar fronteiriço ocupado por
Arminto permite explorar as relações de resistência ou de
abertura ao Outro, examinando o sentimento de pertença
de um sujeito desestabilizado.
Orfãos do Eldorado questiona o lugar da cultura ame-
ríndia no seio da sociedade brasileira a partir da experiên-
cia amazonense: fenômenos de imbricação mas também
de depauperação culturais; impregnação, trocas, mas do
mesmo modo estiolamento, aculturação. Figuração que
interroga as relações interculturais, levando em consi-
deração tanto os processos de aculturação resultantes de
políticas colonialistas quanto os cruzamentos culturais
que possibilitam o renascimento de tradições em outros
contextos. Da mesma forma que o romance se afasta de
uma representação idealizada do processo de mestiçagem
cultural, sublinhando a complexidade das trocas entre
culturas diferentes e evocando a história violenta de seus
ganhos e perdas, ele recusa-se a idealizar a relação com a
alteridade ameríndia.
94 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

A narrativa de Hatoum inspira-se no mito ameríndio


da Cidade Encantada para tecer os fios entre mito, história
e memória, questionando o processo de transmissão da
tradição e da autodeterminação a partir de dois planos:
o individual (que diz respeito à vida do narrador e da re-
lação com seu pai) e o coletivo (que trata das marcas da
presença da comunidade ameríndia e de sua relação com
a sociedade amazonense). Memória de uma vida, a do
narrador-personagem Arminto Cordovil. Este conta sua
história a um interlocutor cuja identidade só é revelada
no final, num posfácio no qual a voz autoral dá a conhecer
sua fonte: o que lemos é uma história que lhe foi contada
pelo seu avô. Mais uma vez, trata-se de uma questão de
herança, desta feita, a que diz respeito à própria narrativa.
Lugar de troca por excelência, convite à viagem, o discurso
literário reinventa mito, história e memória.
A intriga romanesca está centrada na crônica da vida
do narrador-personagem, Arminto Cordovil, que não
conheceu sua mãe, morta ao dá-lo à luz. Arminto tem a
impressão de que seu pai o culpabiliza por essa morte. As
relações entre pai e filho são frias. O menino cresce rejei-
tando todo tipo de identificação com o universo do pai, rico
proprietário de cargueiros que transportavam mercadorias
no rio Amazonas, entre os quais o Eldorado. Amamentado
por uma índia tapuia, ele foi criado por uma outra índia,
Florita, empregada que faz todo tipo de serviço, à qual
ele é muito ligado e que o iniciará à cultura ameríndia e
à vida sexual.
Florita é uma tradutora, no sentido amplo do termo.
Desempenha um papel de mediadora, criando pontes entre
a floresta e a cidade. Ela introduz Arminto no universo
ameríndio, aproxima-o das crianças indígenas da aldeia
situada nas cercanias da cidade, traduz para ele os mitos
e as lendas contadas pelos índios. Florita interpreta seus
sonhos e desejos, abrindo-lhe as portas à sensibilidade
ameríndia. Mas é por Dinaura que ele se apaixona louca-
mente, uma das moças pobres acolhidas pelo orfanato da
cidade, de origem e destino misteriosos: índia ou mestiça,
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 95

ela pode ser sua madrasta ou sua irmã, o leitor não o saberá
jamais. Dinaura, leitora de romances e igualmente sensível
ao mito indígena da Cidade Encantada, desaparece pouco
tempo depois da morte de Amando, pai de Arminto. Este
último, obcecado pelo desejo por essa “mulher encanta-
da”, que depois do seu desaparecimento se transformou
em lenda para os habitantes da cidade, não cessa de ter
visões e sonhar com ela. Arminto sonha com a mulher da
mesma forma que a população pobre da cidade sonha com
a Cidade Encantada, “uma cidade que brilhava de tanto
ouro e luz” (Hatoum, 2008, p. 64). O Eldorado naufraga,
Arminto gasta a fortuna herdada do pai e vende todas as
suas propriedades: a casa de Manaus, a mansão branca
de Vila Bela, a fazenda Boa Vida, que teve as plantações
de cacau destruídas pelas pragas (Hatoum, 2008, p. 67).
A crônica da decrepitude moral de Arminto e da deca-
dência de uma família é também a da Amazônia, região
que alterna períodos de fausto e de declínio. Mas o mito
indígena da Cidade Encantada é atemporal e persiste,
confundindo-se com o mito do Eldorado: “Houve tempo
em que Manaus, ou Manoa, era sinônimo de Eldorado, a
cidade prodigiosa que atiçava os sonhos febris dos nave-
gantes e conquistadores europeus ao mesmo tempo que se
4
Apresentação do romance furtava a todo esforço de localização”.4 Mitos e culturas
pela editora (orelha do livro). viajam e se entrecruzam.5 Contrastando com a miséria que
Ver também p. 99.
assola a cidade real, a utopia de um lugar ideal persiste no
5
“Mitos que fazem parte da imaginário amazônico:
cultura indo-européia, mas
também da ameríndia e de
muitas outras. Porque mitos, A Cidade Encantada era uma lenda antiga, a mesma que
assim como culturas, viajam e eu tinha escutado na infância. Surgia na mente de quase
estão entrelaçados. Pertencem todo mundo, como se a felicidade e a justiça estivessem
à História e à memória
escondidas num lugar encantado. Ulisses Tupi queria que
coletiva” (HATOUM, 2008, p.
106). eu conversasse com um pajé: o espírito dele podia ir até o
fundo das águas para quebrar o encanto e trazer Dinaura
para o nosso mundo. Sugeriu que eu fosse atrás de dom
Antelmo, o grande curandeiro xamã de Maués. Ele co-
nhecia os segredos do fundo do rio e podia conversar com
Uiara, chefes de todos os encantados que viviam na cidade
submersa (Hatoum, 2008, p. 64).
96 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Uiara, mãe-d’água, sereia, relatos e versões de mitos


errantes que se misturam e que constituem o imbricado
tecido narrativo do romance, num intenso trabalho inter-
textual que traz à tona a memória literária. Se o romance
glosa, alimentando-se assim de fontes populares que fazem
parte da memória coletiva, ele dialoga igualmente com a
tradição literária que recria esses mitos (Mário de Andrade,
José de Alencar, Homero).
Escrito em palimpsesto, o romance projeta a errância
de mitos e de textos, do poema homérico aos de Kons-
tantinos Kaváfis (além de “A cidade”, citado na epígrafe,
existe um diálogo implícito com “Itaca” que, em oposição
ao anterior, é um convite à viagem, à deambulação),
passando pela figura descentrada de um certo cavaleiro
que percorre as estradas da Mancha em busca de sua
Dulcineia. Figurações da errância física e mental que o
romance acolhe, criando analogias com o próprio percurso
do narrador-personagem.
Um exemplo marcante da escrita em palimpsesto do
romance é o reaproveitamento do poema de Konstanti-
nos Kaváfis “A cidade” (1910), que lhe serve de epígrafe.
Retomado pelo texto como “o poema grego” que Estilia-
no está traduzindo, este poema desencantado está em
consonância com a atmosfera desoladora que o romance
instaura. Poema que recusa todo tipo de promessa de um
outro lugar possível, que é a negação mesmo de uma certa
ideia da literatura como espaço liberador e de refúgio:
“Não encontrarás novas terras, nem outros mares”. Não
há portanto, do ponto de vista do texto poético que paira
sobre o romance, nenhuma possibilidade de viagem, ne-
nhum “ailleurs”, nenhuma esperança: “Sempre chegarás a
esta cidade. Não esperes ir a outro lugar,/ Não há barco
nem caminho para ti” (Kaváfis apud Hatoum, 2008, p. 7).
Por meio da combinação de elementos heteróclitos na sua
composição, que se alimenta tanto de fontes populares
quanto da tradição literária, a narrativa romanesca gera
uma tensão entre a voz individual e a voz coletiva: discur-
so da utopia e contradiscurso, sonho e pesadelo, versões
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 97

de mitos, traduções “traidoras”, articulação de diferentes


práticas discursivas, de diferentes visões de mundo. Na
trilha de Mário de Andrade, autor que o romance home-
nageia fazendo alusão à célebre viagem do modernista
6
“O escritor puxava à Amazônia,6 Hatoum fagocita e transforma elementos
conversa com todo mundo: diversos, fazendo-os coexistir no espaço do texto, espaço
índios, caboclos, artesãos e
compositores de toadas. E de representações memoriais.
não se cansava de anotar o No entanto, o narrador conduz o fio do discurso e é
nome de plantas e bichos.
por meio do seu olhar desencantado que o leitor descobre
Comia tudo, até piranha frita”
(Hatoum, 2008, p. 86). o universo amazônico. Sua narrativa fala de um desejo que
não pode ser satisfeito, narrativa de busca e de perda, narra-
tiva de uma impossível construção de plenitude identitária.
Arminto é um dos numerosos órfãos do Eldorado aos quais
o título do romance faz alusão. Ele recusa a identificação
à sua família, que representa o projeto de modernização
do país baseado numa política de colonização (massacre e
aculturação dos índios), seguindo o modelo do capitalismo
ocidental. O naufrágio do navio Eldorado constitui-se num
dos símbolos eloquentes do fracasso dessa política. Arminto
encontra-se impossibilitado de restabelecer os laços com
o passado que povoou o imaginário de sua infância; por
outro lado, sente dificuldade em encontrar seu lugar num
mundo que está desaparecendo, no qual a realidade não
cessa de desmentir as promessas de felicidade.
Quando passamos do mito à história, da miragem à
matéria do real, a visão de um território faustuoso e cheio
de promessas de felicidade transforma-se em ruínas, em
processo de plena degenerescência, marcado pelo desregra-
mento econômico e moral, pela violência, pelas doenças.
O tempo presente é o do sonho que se transforma rapi-
damente em pesadelo, no qual a história destrói o mito,
tempo que deixa transparecer os sinais de enfraquecimento
da cultura ameríndia:

A sala parecia um museu pobre e improvisado. No chão,


peças de cerâmica, máscaras de rituais e cacos de urnas
funerárias de tribos indígenas que já não existiam (Hatoum,
2008, p. 39).
98 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Desse modo, em Orfãos do Eldorado, a caracterização


dos personagens e a representação do espaço constroem
uma visão violenta, tirânica e mórbida da sociedade e do
território amazônico. A decadência do povo ameríndio está
principalmente representada pelas personagens femininas,
órfãs na sua maioria, vítimas da miséria e da doença, moças
sequestradas, violentadas, vendidas ou trocadas por mer-
cadorias para servir aos comerciantes de Manaus ou aos
homens políticos (Hatoum, 2008, p. 42). Assim como na
obra de Márcio Souza, outro grande escritor amazonense, o
romance denuncia a exploração sexual das mulheres e me-
ninas ameríndias. Outras formas de opressão, mascaradas
sob a aparência de proteção, são encenadas pela narrativa,
como as que sofrem as moças, como Florita, acolhidas pelas
famílias da cidade para servir de empregada doméstica,
num regime de semiescravidão. Há ainda as ameríndias
do orfanato que as freiras protegem do tráfico sexual, mas
que sofrem, no entanto, um processo de aculturação que
começa pela proibição de falar sua própria língua.
A violência é um dado consubstancial a essa realida-
de. Mesmo dissimulada, ela termina sempre por mostrar
sua face. A cena inaugural do romance é representativa
das relações que estabelece entre o mito, suas possíveis
interpretações e a realidade. Nela assiste-se ao suicídio
por afogamento de uma jovem índia. Florita, para pou-
par o menino Arminto, deturpa suas últimas palavras,
traduzindo-as por um relato perfeitamente integrado ao
universo cultural e mítico ameríndio: a mulher, atraída
por um ser encantado, teria escolhido ir viver junto com
ele no fundo do rio. Na verdade, a mulher se suicida por
ter perdido seu marido e seus filhos vítimas da miséria e da
doença. O momento dessa revelação, no final do romance,
próximo da morte de Florita, que a liberará de sua vida de
miséria material e afetiva, é também o da confissão de sua
imensa solidão.
A representação do espaço constrói um cenário mór-
bido por onde circulam personagens como Denísio cão,
o barqueiro, em alusão ao barqueiro infernal, que vem
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 99

reforçar a onipresença da morte nesse território. Aqui,


como no célebre romance A selva (1930), do escritor por-
tuguês Ferreira de Castro (1898-1974), a beleza grandiosa
e luxuriante da floresta esconde o regime de escravidão
ao qual os seringueiros são submetidos. A podridão está
7
Título de um subcapítulo de dissimulada sob sua beleza luxuriante. “Inferno e barbárie”7
um artigo de Milton Hatoum são a outra face da floresta:
dedicado aos romances A
selva, de Ferreira de Castro, e
O paraíso estava aqui, no Amazonas, era o que se dizia. O
Mad Maria, de Márcio Souza
(Hatoum, 1993). A leitura que existiu, e eu não esqueci nunca, foi o barco Paraíso.
desse texto ajuda a esclarecer Atracou aí embaixo, na beira do barranco. Trouxe dos
a percepção e a representação seringais do Madeira mais de cem homens, quase todos
do espaço em Órfãos do
cegos pela defumação do látex. Lá onde ficava a Aldeia, o
Eldorado.
prefeito mandou derrubar a floresta para construir barra-
cos. E um novo bairro surgiu: Cegos do Paraíso (Hatoum,
2008, p. 95).

“Cegos do Paraíso”. A imagem fala por ela mesma. As


novas vítimas da “modernidade na floresta” (Hardman,
1988), os imigrantes e migrantes nordestinos, ocupam o
lugar dos ameríndios, expulsos, mais uma vez, do território
que eles ocupavam nas proximidades da cidade. A memória
do texto de Ferreira de Castro se faz presente igualmente
pela alusão a um incêndio num seringal, que nos remete ao
incêndio do seringal Paraíso, episódio que fecha o roman-
ce do escritor português. Paraíso era também o nome do
seringal situado às margens do rio Madeira, onde Ferreira
de Castro, que emigrou para o Brasil quando tinha doze
anos, trabalhou como seringueiro durante quatro anos,
experiência que se encontra recriada no romance A selva.
Misturando referentes reais e ficcionais, a narrativa roma-
nesca expõe a oposição gritante entre os sentidos sugeridos
pelos topônimos (Vila Bela, Boa Vida, Ilha do Eldorado)
e a realidade. Imagens de um paraíso perdido, de “uma
sociedade que está morrendo”, para utilizar as palavras
de Euclides da Cunha ao comentar a obra Inferno verde,
do seu amigo Alberto Rangel (Cunha, 2000, p. 343-351).
Mil e uma histórias que sobrevivem e se metamorfoseiam
nos relatos literários.
100 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

A última viagem de Arminto (navegador de “viagens


supérfluas” entre Manaus e Vila Bela) pelo rio Amazonas
ganha um outro sentido. Personagem decadente da história
e do mito, Arminto parte na terceira classe de um navio
velho e sujo em busca da ilha do Eldorado, onde, doente,
Dinaura teria se refugiado. A ilha do Eldorado seria uma
das ilhas do Arquipélago das Anavilhanas, referente geo-
gráfico real, situado a 100 quilômetros de Manaus, um dos
lugares célébres do ecoturismo da Amazônia. A narrativa
evoca a beleza grandiosa da paisagem, recorrendo a uma
descrição lírica da maravilhosa visão do lago do Eldorado,
paisagem de beleza ímpar (Hatoum, 2008, p. 102). No
entanto, não há possibilidade de fusão harmoniosa com a
natureza, pois, desde o início, o texto não para de semear,
aqui e ali, sinais do mal-estar que Arminto manifesta, re-
metendo a uma relação disfórica que ele entretém com um
espaço onde impera uma ordem social injusta, representada
pela voz autoritária do pai:

Eu me sentia mal na Boa Vida. Lugar lindo, com guarás-


vermelhos e jaçanãs no céu e nas árvores. [...] Não era o
lugar que me perturbava: era a lembrança do lugar. Os filhos
dos empregados se aproximavam da varanda e paravam para
observar a casa; Crianças caladas, filhos de homens cala-
dos. Voz mesmo só a de Armando: voz para ser obedecida
(Hatoum, 2008, p. 67-68).

Durante a viagem de Arminto em busca do seu Eldo-


rado, a alternância entre as descrições líricas e os sinais
que maculam essa beleza da paisagem reforça a perspectiva
antagonista da representação do espaço adotada pelo ro-
mance. Trata-se de construir a visão de uma natureza que
abriga um mundo doente, repulsivo, nauseabundo, face que
se revela desde o momento em que fazemos a experiência
de penetrar nesse espaço:

Um volume escuro tremia num canto. Fui até lá, me agachei


e vi um ninho de baratas-cascudas. Senti um abafamento;
o cheiro e o asco dos insetos me deram um suadouro. Lá
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 101

fora, a imensidão do lago e da floresta. E silêncio. Aquele


lugar tão bonito, o Eldorado, era habitado pela solidão
(Hatoum, 2008, p. 102).

Podridão, doença, solidão, morte, múltiplos signos dis-


fóricos para evocar esse encontro fracassado entre o mito e
a história. O que se esconde sob as aparências da visão do
paraíso? A distância entre o sonho e a realidade que essas
imagens de um mundo em degeneração nos devolvem como
um espelho invertido. Essas imagens revelam um ponto de
vista pessimista sobre o processo histórico marcado pelas
injustiças, pelas escolhas políticas autoritárias, assinalando
o impasse do parâmetro do progresso como fundamento da
civilização. “Não há barco nem caminho para ti”, anuncia
o poema de Kaváfis, em consonância com o que escreve
o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, ao
afirmar que “O futuro prometido pela modernidade não
tem futuro” (Santos, 2000, p. 322). A herança comum
que o ameríndio compartilha com o homem ocidental é a
de serem órfãos da civilização, prisioneiros de um mundo
de cinzas, condenados a fazer viagens imaginárias que não
tranquilizam mais ninguém.
Essas cinzas do Norte dizem muito do estado de deriva
dos mitos e dos relatos que resultam do esforço contínuo
do sujeito na sua busca de imprimir um sentido à trajetória
humana. A obra de Hatoum não produz sombras consola-
doras, ao contrário, coloca o leitor perante a problemática
condição humana, erigindo a literatura como um dos lu-
gares possíveis de resistência, mesmo que seja para dizer a
impossibilidade da viagem. O lugar inaugurado pela cria-
ção literária está longe de corresponder ao de um refúgio
protetor. Hatoum pertence à linhagem de escritores que
produzem livros do desassossego: “é preciso aceitar que
a literatura complica o mundo”, sublinha Simon Harel
(2007, p. 12).
102 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Alteridade invisível: o índio em Nove noites, de


Bernardo Carvalho

No romance de Milton Hatoum, a experiência da


alteridade ameríndia gera uma espécie de fascinação pelo
Outro no único sujeito da enunciação, o personagem-
narrador Arminto Cordovil. Em Nove noites, de Bernardo
Carvalho, a representação do ameríndio é submetida a
diferentes pontos de vista assumidos por múltiplos sujeitos
do discurso. Nos dois romances, trata-se de abolir uma
representação realista do mundo. Para essas narrativas,
só existem visões do real. Mas, enquanto em Orfãos do
Eldorado a ambiguidade da narrativa decorre das inter-
relações entre mito e história e da complexa viagem ao
passado por meio da memória do narrador, em Nove noites
é a multiplicidade de vozes narrativas e a focalização que
tornam a percepção do real problemática.
Misturando fatos históricos, experiência vivida e
ficção, a narrativa de Nove noites ultrapassa as fronteiras
de gênero e situa-se a meio caminho entre autobiografia
ficcional e documentário jornalístico romanceado, instau-
rando o processo de mise en abyme do ato da escrita. Nove
noites tece sua trama em torno de um enigma: as razões que
conduziram o antropólogo norte-americano Buell Quain,
da Universidade de Columbia, ex-aluno de Franz Boas,
a se suicidar no Brasil, em 1939, aos 27 anos, quando da
sua estadia no Xingu com os índios krahô. Assim como
em Mongólia (2002),8 que se constrói em torno do desa- 8
Sobre Mongólia, ver Godet,
parecimento de um fotógrafo nos Montes Altai, a intriga 2007.

de Nove noites cruza várias versões e inscreve no seio da


narrativa o personagem do escritor que procura de forma
obsessiva preencher a precariedade do sentido, encontrar
a solução do enigma.
O interesse do personagem-escritor, narrador do
romance, por Buell Quain data de 2001, quando ele fica
sabendo, por acaso, de sua existência, ao ler no jornal um
artigo do antropólogo que se suicidou em plena floresta.
Desde então, procura compreender o gesto brutal do an-
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 103

tropólogo, que esfaqueou e mutilou seu corpo antes de se


enforcar. A razão da busca obstinada que leva o narrador a
se interrogar sobre a morte do antropólogo só será revelada
no final do romance: ela está relacionada com a infância,
com a imagem do seu pai, com sua relação como cidadão
brasileiro branco e urbano com o índio. Menino de seis
anos, o narrador frequentou com seu pai a região do Xingu,
onde este último tinha comprado uma fazenda. Mais de
trinta anos depois, ele será levado, por causa de sua inves-
tigação, a refazer a viagem nessa região e permanecerá na
mesma tribo de Buell Quain. Pouco a pouco, os elementos
da investigação sobre Quain se imbricam com lembranças
antigas do contato com os índios em companhia de seu
pai. Numa entrevista, Bernardo Carvalho afirma que seu
romance é uma interrogação sobre a paternidade: “Todo
mundo está à procura de um pai. Os índios querem um
pai, pois de uma certa maneira são órfãos da civilização.
Quain tinha relações complicadas com seu pai e ao mes-
mo tempo, ele representa o papel de pai com os índios. O
narrador, igualmente, justapõe a história do antropólogo
à de seu próprio pai” (Moura).
O romance alterna a narrativa da investigação con-
duzida pelo narrador com o testemunho fictício deixado
por Manoel Perna, engenheiro responsável pelo Serviço
de Proteção dos Índios, amigo de Buell Quain, a quem ele
teria feito confissões desesperadas durante nove noites
passadas na cidade de Carolina, a mais próxima da aldeia
indígena. A alternância de vozes narrativas é assinalada
por caracteres tipográficos. Às vozes desses dois narradores
acrescenta-se a voz de Quain, por meio de cartas que ele
deixa após sua morte, assim como testemunhos de diversas
pessoas que conviveram com ele. Todos esses elementos
trazem indícios da angústia e do desespero do antropólogo,
sem no entanto esclarecer o mistério. As diferentes versões
e visões acentuam o caráter polifônico do romance, des-
tacando as armadilhas de uma atividade interpretativa da
subjetividade do outro, cujo mistério permanece velado. É
a natureza inacessível do ser humano que é colocada em
104 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

evidência. Mais uma vez, Bernardo Carvalho elabora uma


narrativa labiríntica que desconfia do poder da linguagem
para elucidar o enigma do real.
Nove noites é, antes de tudo, um romance sobre as
relações de alteridade a partir de uma reflexão sobre o
procedimento antropológico, que em princípio se dedica
a compreender e a fazer compreender o Outro. A narra-
tiva nos fala dos laços indissolúveis entre a interrogação
sobre a estranheza do outro e o rastro subjetivo do sujeito
investigador: qualquer que seja o objeto da investigação, a
imersão no mundo do outro é sempre uma incursão íntima.
O trabalho de escrita que visa a constituir o outro só pode
se fazer pelo imaginário “par ce va-et-vient entre soi et
l’Autre [...] qui conditionne le sens, la compréhension, et
l’interprétation” (Affergan, 1991, p. 171).
A figura do ameríndio em Nove noites está inscrita
na temporalidade do século XX. Três momentos precisos
são evocados: o final dos anos 30, período no qual evolui
o personagem Buell Quain no meio dos índios brasileiros;
o final dos anos 60, que coloca em cena as lembranças da
infância do narrador com seu pai, explorando as terras da
Amazônia; e o início do novo milênio, quando encontra-
mos o narrador adulto em visita aos índios Krahô, seguindo
a pista de Quain. Apesar dos diferentes períodos históri-
cos aos quais o texto faz alusão, a representação do índio
permanece a mesma. O que predomina é uma percepção
negativa das marcas mais significativas da alteridade dos
índios, seus ritos, sua comida, seus laços de parentesco; a
recusa de ir em direção ao outro, em direção de suas singu-
laridades radicais; a imagem, enfim, de um povo decadente,
em processo de desaparecimento.
Em Nove noites, o índio é, antes de tudo, um objeto de
estudo. O texto tomanesco lembra os inúmeros antropó-
logos estrangeiros que se dedicaram ao estudo dos povos
indígenas do Brasil, como o grupo de Franz Boas, do depar-
tamento de antropologia de Columbia ao qual pertencia
Buell Quain, os europeus célebres como Lévi-Strauss e o
suíço Alfred Métraux. Nove noites chama a atenção sobre
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 105

essa espécie de instrumentalização do outro, alertando


também para o fato de que os textos construídos pelas ciên-
cias humanas estão longe de serem neutros, denunciando,
dessa maneira, a instrumentalização intelectual, política e
financeira. O romance revela o comportamento de certos
antropólogos, como o norte-americano William Lipkind,
que não somente teria vendido objetos que ele subtraía às
tribos indígenas, como teria transmitido relatórios políti-
cos ao governo americano. O Brasil dos anos 1930 e 1940
tornou-se um país-fetiche dos antropólogos e sociólogos: o
índio e o negro, objetos de culto da curiosidade científica
deles. Não se trata de desprezar as contribuições de grandes
pesquisadores à compreensão desses sistemas culturais,
liberando-os das ideias pré-concebidas da época, contri-
buindo para que elas gozassem de um reconhecimento
pleno. Mas não se trata tampouco de deixar passar em
silêncio um certo olhar dirigido a esse território e a seus
habitantes que não são brancos, reduzidos à categoria de
objeto de estudo. Mikhail Bakhtin lembra-nos que o ob-
jeto das ciências humanas é um sujeito e o método delas,
a interpretação. A questão levantada pelo texto de Nove
noites tem sentido: até que ponto esses sujeitos realmente
existiram como tais para todos esses cientistas? Até onde
o diálogo pôde se realizar? A obra contempla uma preo-
cupação que se faz presente na reflexão antropológica da
atualidade. O outro, como assinala Francis Affergan, não
é um objeto vazio e indeterminado, disposto a se submeter
ao olhar e ao tratamento científico do observador. Ele se
articula sobre suas próprias determinações e traz consigo
o que poderíamos chamar de seus atributos (Affergan,
1991).
Antes de viver com os krahô, o personagem antropólo-
go do romance, Buell Quain, interessou-se primeiramente
pelos trumai, que habitavam um dos territórios mais ina-
cessíveis da Amazônia. Ele encontrou aí um povo marcado
pelo processo de autodestruição, obcecado pela morte. Foi
expulso da tribo pelo Serviço de Proteção aos Índios, sem
que se conheça a razão dessa expulsão. O romance alude a
106 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

uma provável homossexualidade de Quain. Uma das pistas


sutilmente levantadas pelo texto romanesco faz alusão a
problemas de ordem sexual, ao lembrar as orientações do
Serviço de Proteção aos Índios, que proibia as relações se-
xuais com os índios (serviço que, aliás, foi criado em 1910,
pelo bisavô de Bernardo Carvalho, o célebre sertanista
Cândido Rondon). O fato é que o antropólogo parecia mui-
to afetado pela sua estadia na tribo dos trumai. É a imagem
de um homem aterrorizado, instável, desesperado que o
testemunho de Manoel Perna, o sertanista amigo de Buell
Quain, vai elaborar: com os trumai, ele teria encontrado
um povo cuja cultura refletia seu próprio desespero, sua
íntima decadência. A convivência com os krahô também
não o libera da solidão; o outro é sempre, para ele, uma
barreira intransponível. Quain não compreende os índios,
rejeita seus costumes, sua nudez, a maneira como eles cor-
tam o cabelo, enfim, ele os considera idiotas: “Encontrei
um grupo de índios krahô e eles parecem pavorosamente
obtusos. Têm cortes de cabelo engraçados, furam as orelhas
e continuam sem usar roupas nas cidades.” (Carvalho,
2001, p. 30). O antropólogo americano confessa sua difi-
culdade em trabalhar sobre os índios brasileiros e rejeita
parcialmente as marcas (consideradas desagradáveis) que
as culturas indígenas imprimiram à cultura brasileira. Para
Quain, o paraíso estaria em outro lugar, nas ilhas Fiji. O
território brasileiro nada mais é para ele do que o inferno.
A construção desse personagem antropólogo questiona seu
olhar etnocêntrico e sua atitude egocêntrica, denunciando
a utilização que se faz do Outro para fins que não lhe dizem
diretamente respeito (Carvalho, 2001, p. 163).
Para o narrador, o Xingu também é a imagem do in-
ferno: “O Xingu ficou guardado na minha memória como
a imagem do inferno” (Carvalho, 2001, p. 72). Suas lem-
branças da infância, quando fez a primeira viagem a essa
região, evocam um espetáculo deprimente, os índios repre-
sentando seu próprio papel para um público de brancos.
Além do mais, existe o medo que a criança sente desse povo
exótico e desse espaço selvagem: a casa solitária no meio
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 107

de lugar nenhum, no fim do mundo; a floresta agredida e


transformada pela violência de um desmatamento caótico
imposto pela nova ordem civilizacional. Para amainar a
decepção do seu primeiro contato com os índios, seu pai
lhe oferece um brinquedo, um Forte Apache de plástico,
símbolo estereotipado do índio selvagem, antítese da civi-
lização, mito deslocado significando o encontro abortado
entre o brasileiro urbano e os povos autóctones do Brasil.
Adulto, o narrador retorna à região seguindo os rastros de
Quain. É sempre o mesmo medo que o acompanha diante
dos ritos que ele não consegue compreender. Medo, mas
também recusa da alteridade linguística, comportamental,
recusa de compartilhar a comida deles, as brincadeiras, os
rituais. Ao mesmo tempo, o narrador sublinha o processo
de aculturação em marcha, índios que comem macarrão
e arroz com feijão, vestidos de short e calçando sandálias
japonesas, e relembra o massacre que os índios krahô so-
freram um ano após a morte de Buell Quain, quando os
fazendeiros mataram 26 deles. A narrativa coloca em evi-
dência o sofrimento de um povo empobrecido pela política
governamental, vítima de doenças e de comportamentos
viciosos transmitidos pelo contato com os ocidentais. Um
povo órfão, abandonado, marcado por um sentimento de
trágica impotência, um povo que não quer ser esquecido
pelos brancos.
O olhar do narrador recusa o paternalismo: se ele é
sensível ao sofrimento dos índios, ele não hesita, no en-
tanto, em expor seus preconceitos, mostrando o abismo
existente entre seu universo de intelectual urbano e o dos
povos autóctones. Uma só passagem no romance evoca a
possibilidade de um encontro, um só momento em que o
narrador se mostra atraído pelo outro, ao qual ele se refere
como “um dos espetáculos mais deslumbrantes da minha
vida” (Carvalho, 2001, p. 100): a cena na qual um velho
krahô entoa um canto em torno de uma fogueira numa
noite de lua. A harmonia dessa cena remete a uma imagem
arcaica, perdida no tempo, imagem ancestral comum a todo
ser humano, imagem depurada da história que o homem
108 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

construiu. Tão bela quanto frágil e efêmera. O raiar do


dia expulsará a poesia e restabelecerá a incompreensão e
o medo.
O narrador de Nove noites não compreende o papel que
os índios lhe atribuem nos seus rituais, nem o olhar que eles
lhe dirigem, percebido como indecifrável e ameaçador. No
romance de Bernardo Carvalho, a figuração do ameríndio
como personagem do outro explora a distância com o grupo
de referência ao qual pertence o personagem do escritor.
O que sobressai do efeito do outro sobre o sujeito do dis-
curso é sua incapacidade de ir ao encontro do ameríndio,
sua recusa em construir laços, sua tendência a se fechar
sobre suas próprias referências, como se a possibilidade
de um diálogo entre o Brasil ocidental e urbano e o Brasil
dos povos autóctones estivesse para sempre perdida. O
outro que o atrai não é o ameríndio, mas o antropólogo
norte-americano; este é o sujeito da alteridade produtora
de sentido que o aproxima de seu pai, de sua infância e
que o conduz a refazer a experiência na tribo indígena.
Para o narrador, o ameríndio é um tema enviesado; para o
antropólogo, um objeto de estudo, submisso a uma cons-
ciência que o constrói. A figuração do ameríndio em Nove
noites privilegia as diferenças como enfrentamento estéril.
Constatação de um encontro e de um diálogo frustrados, o
caminho escolhido pelo escritor coloca em evidência uma
representação do lugar marginal que a sociedade brasileira
reserva ao índio, o não-valor de sua cultura, a recusa em
considerá-lo como sujeito autônomo. O índio surge, então,
como o estrangeiro de dentro, distanciando-se de uma
tradição literária que tende a idealizar a figura do índio.
Qual o futuro para as relações interculturais entre uma
civilização que tem seu declínio anunciado e uma outra que
tem a expansão de sua dominação assinalada? O narrador
refere-se ao ponto de vista de Lévi-Strauss, que defende
uma comunicação “suficiente” mas não “excessiva” com as
culturas ameaçadas de extinção, para melhor as proteger
(Carvalho, 2001, p. 52). As teorias pós-modernas sobre
as relações interculturais se afastam dessa perspectiva e
O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 109

insistem nos aspectos positivos do inevitável processo de


hibridação (Canclini, 2004) ou de creolização (Glissant,
1996) que caracteriza a contemporaneidade: “Vivre la
totalité-monde à partir du lieu qui est le sien, c’est établir
relation et non pas consacrer exclusion,” afirma Edouard
Glissant (1996, p. 67). O texto de Nove noites não se ins-
creve em nenhuma dessas perspectivas. Em relação à dia-
lética do “selvagem” e do “civilizado”, ele recusa qualquer
possibilidade de contatos e trocas equilibrados e frutuosos
e elabora uma visão trágica de uma civilização em via de
extinção, reproduzindo a imagem de um índio aculturado,
decadente, reduzido a um objeto exótico ou a um objeto
de estudo. A cena que fecha o romance é particularmente
expressiva. Trata-se da viagem de volta do narrador, depois
de uma estadia nos Estados Unidos, país que visitou em
2001 na esperança de encontrar a família de Buell Quain.
Sentado no avião ao lado de um jovem estudante america-
no, eles iniciam uma conversa no momento em que o avião
está sobrevoando a região amazônica próximo ao local onde
Quain se matou. Ao ser abordado pelo narrador, que lhe
pergunta se ele vai ao Brasil para fazer turismo, o jovem
responde: “Eu vou estudar os índios do Brasil”.

Em Nove noites, a adoção do ponto de vista do brasi-
leiro urbano, branco e letrado projeta a imagem do ame-
ríndio como uma alteridade invisível e em via de desapa-
recimento, aliando-se a uma perspectiva comum a outros
romances da produção literária das Américas. Visão trágica
que lhe retira a perdurabilidade. Talvez porque nas nossas
sociedades cada vez mais compósitas, na imprevisibilidade
do mundo-caos, o romancista possa apenas registrar essa
invisibilidade do “estrangeiro de dentro”. Mas, ao fazê-lo,
confere-lhe, contraditoriamente, uma visibilidade.
Milton Hatoum se inspira em uma realidade na qual a
presença ameríndia é marcante, participando de um espaço
urbano híbrido. O ponto de vista adotado é o do brasileiro
que bebeu na fonte da cultura ameríndia e que é fascinado
110 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

por ela. Mesmo reconhecendo o processo de mestiçagem


cultural, Hatoum não o idealiza. O autor não se deixa
levar por uma ideologia da mestiçagem como elemento
consubstancial à nação brasileira. Adota outro ponto de
vista, preferindo destacar a construção dramática desse
espaço ambivalente, onde os conflitos herdados do colo-
nialismo se fazem presentes, denunciando assim o papel
marginal que a sociedade reserva ao índio. Figurado como
mediador do espaço e dos mitos entre a floresta e a cidade,
como elemento que se abre à relação com o Outro, nem
por isso o ameríndio escapa à condição subalterna e à visão
trágica que o condena ao desaparecimento. Adotando uma
perspectiva complexa do processo de inter-relação de cul-
turas e de imaginários, abrindo-se para a subjetivação da
experiência da alteridade, o escritor se distancia de um dis-
curso banal que se contenta em louvar as trocas culturais,
desconsiderando os aspectos da necessária reconstrução de
um “lugar habitável” para o sujeito. Hatoum recusa uma
visão reconciliadora do processo de mestiçagem, expondo
suas fraturas, transformando a escritura numa “zona de
tensões” (Harel, 2007, p. 108). Dessa forma, deixa transpa-
recer a ideia de que esse processo não é capaz de assegurar,
isoladamente, a existência de uma sociedade mais justa e
solidária nem para os ameríndios nem para os pobres bra-
sileiros inseridos na sociedade urbana, herdeiros de visões
do paraíso, abandonados à miséria e à orfandade.

Referências
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la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1991.
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entrar y salir de la modernidad. México: Grijalbo, 2004.
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O ameríndio como personagem do Outro na literatura... 111

GLISSANT, Edouard. Introduction à une poétique du divers. Paris:


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GODET, Rita Olivieri. Estranhos estrangeiros: poética da alteridade
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São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
HATOUM, Milton. Orfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia
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In: _____ et al. O espaço geográfico no romance brasileiro. Salvador:
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SANTOS, Boaventura de Souza. A utopia e os conflitos para-
digmáticos. In: _____. Pela mão de Alice. O social e o político na
pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2000.
113

Cânone Literário e Valor Estético:


notas sobre um debate
de nosso tempo
Idelber Avelar*

resumo: Este ensaio se insere no debate contemporâneo acerca


do valor estético, argumentando que culturalistas, revisores
do cânone, e esteticistas, defensores da primazia do cânone
ocidental, compartilham uma série de pressupostos. A partir
de uma compreensão do caráter contingente do valor estético
e da impossibilidade de fundamentá-lo de maneira imanente
à obra, sugerem-se algumas pautas para o debate, baseadas na
descontinuidade, frequentemente ignorada, entre os conceitos
de valor, de estética e de cânone.
palavras-chave: valor; cânone; estética; contingência.
abstract: This article is part of a contemporary debate on
aesthetic value. I argue that canon-revising culturalists as well
as aestheticists who defend the primacy of the Western canon
share a number of premises. Understanding the contingent
nature of aesthetic value and the impossibility of grounding it
immanently, I suggest a few possible routes for the debate, based
on the often ignored discontinuity among the concepts of value,
aesthetics, and canon.
keywords: value; canon, aesthetics, contingency.

Cânone e crítica formal

Este ensaio parte da premissa de que não há crítica


ou teoria literária, por mais descritiva, na qual não esteja
implícita uma posição sobre o valor. Como veremos, essa
premissa é simultaneamente negada e aceita pelos dois
polos de um debate que, com frequência, é apresentado
como uma polêmica entre defensores de um firme cânone
*
Tulane University.
114 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

ocidental e culturalistas favoráveis a uma relativização ou


abolição desse cânone. Além de tomar algumas posições
que não se alinham com nenhum dos dois polos, este en-
saio tenta demonstrar que a própria formulação do debate
é problemática, e que o valor estético e o cânone literário
podem e devem ser repensados em outros termos.
Há correntes críticas do século XX, sabemos, que
rejeitariam o pressuposto da inevitabilidade valorativa. O
estruturalismo, com seu afã científico e universalizante,
elaborou pouco sobre a questão do valor, optando por um
projeto que tinha um caráter mais descritivo que valorati-
vo, embora seus principais teóricos, como Roland Barthes e
Julia Kristeva, jamais tivessem escondido suas preferências
literárias, mesmo nos momentos de maior formalização do
método. Os textos de Roland Barthes em que a preocu-
pação com o valor se torna explícita são aqueles escritos a
partir do final dos anos 1960, depois da progressiva ruptura
com a formalização do estruturalismo, já numa fase de seu
pensamento em que são visíveis as inspirações nietzscheana
e lacaniana, discursos com fortes componentes axiológicos.
Hegemônico durante décadas na crítica estadunidense, o
New Criticism focalizou a valoração na diferença entre a
literatura e a cultura de massas, mas não em distinções
efetuadas no interior da série literária. Nas suas origens, nos
anos 1930, os new critics – John Crowe Ransom, Allen Tate,
R. P. Blackmur, Robert Penn Warren, Cleanth Brooks – se
diferenciavam dos filólogos então dominantes ao conferir
um papel edificante para a literatura, que fizesse desta o
antídoto contra a vulgaridade massiva associada à raciona-
lidade técnica moderna e à “dissociação da sensibilidade”,
conceito que herdaram de T. S. Eliot. A insistência dos
new critics no caráter desinteressado da literatura acabou
sendo um gesto no qual se albergava um nítido interesse,
visível na batalha que eles livraram contra o establishment
da filologia.
O New Criticism surgiu, portanto, como intervenção
numa polêmica culturalista – entendendo-se “cultura”
não no sentido antropológico, mas no sentido classista
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 115

e aristocrático do termo. Como apontaram Gerald Graff


(1987, p. 145 et seq.) e John Guillory (1993, p. 155-175), o
momento de triunfo do New Criticism na universidade e de
consolidação da poesia modernista no currículo coincidiu
com o arrefecimento dessa veia polêmica. Os new critics se
moveriam em direção à análise de estruturas internas dos
textos, nas quais invariavelmente encontrariam a ironia,
a ambiguidade e o paradoxo que eles antes reservavam
aos modernos e aos poetas metafísicos ingleses do século
XVII. A consolidação do método como leitura hegemônica
acabou acarretando a universalização dos traços que eles
antes só viam nos autores do seu paideuma particular. No
momento em que Northrop Frye publicou o hoje clássico
Anatomia da crítica (1957), no qual ele se distanciava tanto
do New Criticism como da Escola de Chicago, que era seu
principal antagonista, uma apresentação explícita do pro-
blema da valoração já era inevitável. Embora não fizesse ali
nenhuma referência ao trabalho da antropologia estrutural
que, na França, já se desenvolvia havia uma década com
Lévi-Strauss, Frye chegou a considerar “Poética estrutu-
ral” como um possível subtítulo para o livro, e alguns dos
eixos da obra revelavam nítido parentesco com o trabalho
que o estruturalismo literário francês realizaria nos anos
seguintes: as metáforas espaciais, o caráter sistematizador,
o jogo de antinomias, a centralidade do conceito de mito,
a insistência no imanentismo e no caráter autossuficiente
da crítica literária. Uma das diferenças importantes é que
Frye se dedicou longamente ao problema do valor literário,
ainda que fosse para negar sua pertinência para a prática
crítica. Tomo Frye como ponto de partida de uma demons-
tração do que considero o caráter aporético da discussão
sobre o valor literário:

Na história do gosto, onde não há fatos, e onde todas


as verdades já foram, de maneira hegeliana, quebradas
em meias-verdades …, sentimos talvez que o estudo da
literatura é relativo e subjetivo demais para ter sentido
consistente. Mas como a história do gosto não tem vínculo
116 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

orgânico com a crítica, ela pode ser facilmente separada


(Frye, 1957, p. 18).1 1
São minhas as traduções de
todas as citações de fontes em
línguas estrangeiras.
Um pouco antes, ele afirmara que “a história do gosto
não é parte da estrutura da crítica, assim como o debate
Huxley-Wilberforce não é parte da estrutura da ciência
biológica” (p. 18). O curioso da analogia de Frye, por certo,
é que está bem longe de ser uma verdade evidente que a
polêmica Huxley-Wilberforce não seja parte da “estrutura
da biologia” (seja lá o que for isso), assim como não é óbvio
que a polêmica Marx-Ricardo não seja parte da “estrutura”
da economia política. À medida que o leitor percorre as
páginas de Anatomia da crítica, vai se impondo uma con-
clusão: sempre que Frye diz que a crítica é “facilmente
separável” do gosto e do juízo valorativo, pode-se estar
razoavelmente convicto de que tal separação é a coisa
menos fácil que há.
O leitor o percebe quando chega o espinhoso momento
em que Frye tem de justificar suas escolhas. Para isso, ele
lança mão de uma curiosa tese, a de que é preferível que os
valores que subjazem às escolhas estéticas da crítica fiquem
escondidos, pois explicitá-los terminaria fundamentando
a crítica na história do gosto e, portanto, dinamitando a
separação que se havia proposto entre elas:

As estimativas comparativas de valor são realmente infe-


rências da prática crítica, mais válidas quando silenciosas,
e não princípios expressos que guiam sua prática. O crítico
verá logo, e constantemente, que Milton é um poeta mais
sugestivo e recompensador que Blackmore. Mas quanto
mais óbvio se torne isso, menos tempo ele desejará desper-
diçar insistindo na questão. Porque insistir nela é tudo o que
ele pode fazer: qualquer crítica motivada por um desejo de
estabelecê-lo ou prová-lo será meramente mais um docu-
mento na história do gosto (Frye, 1957, p. 25).

Anatomia da crítica sugere, simultaneamente, que 1)


a crítica é uma esfera separada da história do gosto; 2) é
“óbvio” que alguns poetas são melhores que outros; 3)
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 117

qualquer tentativa de explicar essa obviedade está fadada


a ser parte da história do gosto, não da crítica. Preso num
discurso que postula a separabilidade da crítica ante a
história do gosto, mas tropeça na constante interferência
desta sobre aquela, Frye não pode senão sugerir que os
fundamentos das escolhas valorativas permaneçam sem
discussão. Anatomia da crítica, um dos livros de crítica
literária mais influentes do século XX, se sustenta sobre
um tripé de premissas de visível precariedade: 1) a crítica
e o gosto não se misturam; 2) não se faz crítica sem uma
escolha valorativa; 3) já que a valoração é definida como
parte de uma história do gosto externa à crítica, mesmo
que reconheçamos que a atividade crítica depende de es-
colhas valorativas, teremos de esconder debaixo do tapete
os critérios que subjazem a elas, sob o risco de que todo o
edifício desmorone.
Seria possível demonstrar que a aporia detectada em
Frye se repete nos métodos interpretativos que tentaram fa-
zer da crítica literária uma operação descritiva na qual não
teria lugar o debate acerca das opções valorativas. Numa
2
Para o estruturalismo, ver futura história dos métodos formais no século XX,2 haveria
o notável trabalho de história que se dedicar especial atenção às maneiras como o desejo
intelectual já feito por François
Dosse (1991-92). de cientificidade entrou em choque com a inevitabilidade
valorativa. No caso do formalismo russo, esses dois eixos
coexistiram com certa tensão. O projeto de descrever cien-
tificamente a linguagem poética os levou a estabelecer a
noção de estranhamento (ostraneniye) como o mais próprio
da literatura. Shklóvski definiu o conceito como o processo
por meio do qual a novidade das operações poéticas sobre
a linguagem prolongaria a percepção, aumentando-lhe a
dificuldade. O estranhamento possibilitaria uma renova-
ção de uma experiência do mundo caracterizada por uma
percepção já automatizada, fruto da repetição constante.
No momento mais frutífero do desenvolvimento das pes-
quisas dos formalistas, a consolidação do poder político
nas mãos de Stálin os forçou ao exílio ou ao silêncio, não
antes que Yuri Tinianov formulasse algumas pistas acerca
do que poderia ter sido uma concepção formalista da
118 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

história literária. Para Tinianov, a literatura evoluiria por


meio da paródia, pelo estranhamento imposto a formas
literárias automatizadas pelo uso excessivo. Sempre que
um procedimento passasse a ser parte do repertório de
práticas já esperadas, uma operação paródica tenderia
a surgir, tornando visível a automatização anterior. Um
exemplo clássico é o que Dom Quixote fez aos romances
de cavalaria, expondo a artificialidade de suas convenções.
A sofisticação do aparato teórico dos formalistas os levou
do imanentismo textualista a uma incipiente teoria da
história literária, interrompida pela consolidação do poder
burocrático na União Soviética.
Apesar de que as observações feitas acima sobre Frye
não se aplicam aos formalistas, eles tampouco se dedicaram
a tematizar explicitamente o problema do valor. A insis-
tência na função descritiva da teoria literária, combinada
à condenação ao impressionismo dos simbolistas, ajuda a
explicar a relação multifacetada que os formalistas man-
tiveram com o tema do valor. A partir das premissas de
que o estranhamento é mais próprio à literatura e de que a
história literária evolui pela operação paródica sobre formas
anteriores congeladas, parece inescapável a conclusão de
que o valor está acoplado à realização desse programa:
quanto mais estranhamento e mais ruptura paródica com
as formas anteriores, mais valor. O edifício teórico dos
formalistas nos leva à conclusão ineludível de que Dom
Quixote tem um valor que Amadis de Gaula não apresenta,
de que as vanguardas realizam a vocação da literatura de
uma maneira que os parnasianos não fazem, e assim por
diante. As conhecidas afinidades entre o formalismo e o
futurismo russos emprestam credibilidade a essa tese. Não
há nada de condenável nessa axiologia, é claro. Mas reco-
nhecer sua existência – mesmo que implícita – é indício
adicional de que até nas empreitadas mais cientificistas da
crítica literária impõe-se a inevitabilidade valorativa. Mui-
to ainda poderia ser dito aqui, mas passemos ao extremo
oposto, ou seja, às correntes críticas que explicitamente
reivindicam a valoração como elemento constitutivo da ati-
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 119

vidade crítico-literária. Posição de destaque nessa vertente


cabe aos críticos que se ocupam das relações entre ética e
literatura, um debate cujas origens podem ser remetidas
aos Livros III e X da República de Platão.

Crítica ética e falácia igualitária

Wayne Booth, com seu The company we keep, ocupa um


lugar central no chamado ressurgimento da crítica ética nos
EUA. Na tentativa de esclarecer os valores que subjazem
às análises estéticas, Booth abraça o projeto humanista de
ilustração por meio das letras, que ele define como uma
“Conversa celebrando as muitas maneiras em que as narra-
tivas podem ser boas para você – com vislumbres de como
evitar seus poderes para o mal” (p. ix). Booth tenta resgatar
essa função humanista sem reduzi-la a um conjunto de
normas. Consciente de que as condenações moralizantes
de uma tradição que vai de Platão a Leavis deram à crítica
ética uma má fama, Booth coloca a pergunta: “Poderemos
esperar encontrar uma crítica que respeite a variedade e
ofereça um saber acerca de por que algumas ficções valem
[are worth] mais que outras?” (1988, p. 36). Como se verá,
a tarefa não é fácil.
Qualquer tentativa de sustentar este último postu-
lado – de que algumas ficções realmente valem mais que
outras – só poderia “respeitar a variedade” interrogando-
se sobre os processos históricos por meio dos quais certos
valores foram conferidos àquelas ficções. Se não, ou seja,
ao continuar tomando esses valores como intrínsecos, a
conclusão lógica, necessária, seria a defesa daqueles valores
sobre outros, que valeriam “menos”. O desafio que Booth
se coloca é manter algumas das premissas da teoria con-
temporânea (acerca da variabilidade histórica do sentido
ou da impossibilidade de uma medida transcendental de
valor), ao mesmo tempo em que continua se agarrando
a um conceito de literatura como fonte singular de um
“mergulho em outras mentes” (p. 142), que provocaria
uma “série de efeitos no ‘caráter’”, a saber, o Bem ou o Mal
120 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

aos quais o prefácio alude. Booth quer aceitar o pluralismo


hermenêutico da teoria literária contemporânea sem abrir
mão do absolutismo da filosofia moral. Company é, então,
uma minuciosa tentativa de aceitar a variabilidade de in-
terpretações sem deslocar a discussão do terreno do valor
intrínseco ao campo da valoração social. Booth “realiza”
essa tarefa por meio de uma série de exercícios de reductio
ad absurdum, como o contraste entre King Lear, de Shakes-
peare, e um exemplar da revista pornográfica Hustler, ou
entre um poema de Yeats e uma brincadeira improvisada
em verso. Depois de superar essas caricaturas, a grande
literatura emerge intacta, com sua insubstituível função
moral reassegurada. A reductio ad absurdum será uma das
estratégias retóricas favoritas dos que mantêm a referência
ao valor estético como propriedade intrínseca e resistem
ao argumento de que o valor só pode ser entendido por
meio da remissão ao seu solo social.
A necessidade de caminhar sobre a corda bamba que
separa o reconhecimento das contingências históricas do
compromisso humanista leva Booth a fazer uma série de
gestos na direção do relativismo: o que é bom cá não é bom
lá, pode ser bom para você mas não para mim, qualquer
virtude levada ao extremo pode destruir as outras, uma
dose excessiva de qualquer valor (seja a ironia, a abertura
formal ou qualquer outro) pode ser prejudicial em vez de
positiva, etc. Daí sua busca do meio do caminho, aquela
área cinza que permitiria ao crítico evitar qualquer “si-
logismo universal” (esta obra é boa porque apresenta X,
portanto todas as obras que apresentem X...) sem renun-
ciar à premissa de um valor ético intrínseco à literatura e
a algumas obras literárias mais que a outras. O objetivo é
evitar os “riscos” de “fechamento” ou “abertura” excessiva.
Os tropeços da crítica ética seriam explicáveis por sua ten-
tação especial de “sobre-generalizar”. A solução moderada
busca um pluralismo que mantenha a referência a um valor
intrínseco o qual, por mais variável que se conceda que ele
seja, termina sempre transcendendo os conflitos da valo-
ração social. No momento em que a teoria não consegue
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 121

fundamentar essa transcendência, compare-se a Divina


comédia com um exemplar da Revista Veja, constate-se a
óbvia diferença entre os valores intrínsecos e o problema
está “resolvido”.
Sempre que se remete um problema à “tentação de
sobre-generalizar”, o terreno está preparado para que o
liberal sensível procure a conciliação razoável. Essa mi-
tologia da ponderação não deixa de operar na teoria. Ao
contrário do que argumenta Booth, seu pluralismo não é
radical, e sim liberal. Ao se referir à crítica contemporânea,
Booth afirma que “a ênfase na variedade de interpretações
nos diz pouco sobre o valor real das obras” (p. 84). Essa
afirmação repousa sobre a premissa de que o valor é uma
espécie de propriedade inerente ou essência eterna, ou seja,
ela pressupõe uma recusa a considerar o argumento de que
todo valor é produto do choque de valorações contingentes
e historicamente variáveis, posição que Booth descarta
como “subjetivista” (p. 73). Os ataques ao “subjetivismo”
do ponto de vista de uma ética humanista são bem co-
nhecidos e Booth os repete em seu livro: “pressupõe-se
claramente uma completa equivalência na competência
de todos os intérpretes no argumento de que as obras não
possuem ou exercem valor inerente, mas que somente
são valoradas” (p. 85). Mas Booth parece ter entendido
mal a teoria da contingência. Afirmar que a valoração é
socialmente contingente não significa dizer que todos os
agentes valoradores são igualmente competentes. Signifi-
ca que “competência” não é um significante com sentido
unívoco e eterno, e que seu próprio conteúdo só pode ser
compreendido com referência ao contexto particular em
que algumas habilidades contam como competência e
outras, não.
A equação imaginária entre a contingência social do
valor e uma suposta igualdade entre os agentes valoradores
é o que Barbara Herrnstein Smith denominou a falácia
igualitária, ou seja, “a recorrente ansiedade / acusação /
reclamação de que a menos que se possa demonstrar que
um juízo é mais ‘válido’ que outro, todos os juízos devem
122 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

ser ‘iguais’ ou ‘igualmente válidos’” (Smith, 1988, p. 98).


A falácia igualitária se sustenta no que Marx chamava de
“robinsonada”, uma espécie de grau zero da axiologia que
replica a ilha de Daniel Defoe. Note-se um exemplo em
Booth: “me parece difícil acreditar que se uma pessoa de
nossa cultura que é completamente inexperiente em lite-
ratura não vê absolutamente nenhum valor, digamos, nos
romances de Faulkner, suas opiniões sejam tão pertinentes a
nosso discurso sobre Faulkner como as opiniões de leitores
experientes” (p. 85). A falácia é que, obviamente, uma
pessoa inexperiente em literatura não poderia pertencer à
mesma cultura e suas opiniões, por definição, não teriam
a mesma pertinência para o “nosso” discurso. Como a
desconstrução e o marxismo nos ensinaram de diferentes
formas, sempre há que se perguntar qual sujeito da enun-
ciação se esconde por trás de um pronome de primeira
pessoa do plural. Na verdade, é precisamente porque os
juízos não são igualmente válidos que os valores nunca são
intrínsecos, idênticos a si mesmos, e sim articulados por
meio de conflitos sociais. É exatamente por causa do fato
de que as valorações não são nem válidas da mesma forma
nem identicamente posicionadas nas relações sociais que
elas jamais são intercambiáveis. Eis aí a falácia da ansiedade
essencialista que preconiza que, se a compreensão do con-
ceito de valor se deslocou de uma imanência dormente a
uma rede de relações sociais, os valores ficaram, de alguma
forma, idênticos uns aos outros. A falácia igualitária con-
funde uma posição social construtivista com uma posição
moral e estética relativista.
Se os imanentismos formais não escapam da axiologia,
por mais que se queiram descritivos, a crítica humanista,
que não esconde seu compromisso com a noção de que a
literatura deve defender valores éticos, padece da impossi-
bilidade de fundamentá-los mais além da tautologia. Com
efeito, diferentes vertentes da crítica prescritiva arrolaram
fundamentos transcendentais a partir dos quais a literatura
deveria ser julgada: formação do caráter, mergulho na alma
humana, renovação da linguagem, progresso do espírito,
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 123

defesa do legado ocidental, emancipação do proletariado.


Mas nenhum desses fundamentos se sustenta como base de
uma estética sem remissão a outro valor que o justificaria. A
pergunta: “por que deve ser este o valor a partir do qual jul-
gar a literatura?” não pode ser respondida imanentemente.
Ela dispara, é inevitável, um processo de regressão infinita.
A fundamentação do valor na estética teria, assim, uma
estrutura abismal. Vários “defensores do cânone ocidental”
reagem nervosamente à demonstração da impossibilidade
de autofundamentação imanente do valor estético. Para
quem experimenta uma contingência como se esta fosse
uma não-contingência, uma alteração da ordem vigente
provocará a sensação de que qualquer ordem está se tor-
nando impossível. É o que vemos nas críticas estéticas de
Harold Bloom, em seu O cânone ocidental e, no Brasil, de
Leyla Perrone-Moisés, em seu Altas literaturas.

Crítica estética e pânico ocidentalista

Para Harold Bloom, feministas, marxistas, descons-


trucionistas, lacanianos, neo-historicistas e afrocêntricos
seriam os agentes contemporâneos de uma “Escola do
Ressentimento” que “nega a Shakespeare sua palpável
supremacia estética” (1994, p. 20) e proclama “a abertu-
ra do Cânone” (termo que Bloom insiste em grafar com
maiúscula) para a incorporação de obras que “não devem
e não podem ser relidas, porque sua contribuição ao pro-
gresso social é a generosidade de se oferecer para rápida
ingestão e descarte” (p. 30). Ironicamente, em alguém
que responsabiliza a Escola do Ressentimento pelo fato
de viver “no que considero a pior de todas as épocas para
a crítica literária” (p. 22), podemos censurar qualquer
coisa, exceto não ter tornado bem visível o seu próprio
ressentimento. Diante de certas frases de Bloom, como “o
radicalismo acadêmico chega ao ponto de sugerir que as
obras se incorporam ao Cânone por causa de propagandas
[advertising] bem-sucedidas e campanhas de doutrinação
[propaganda]” (p. 20), a única resposta possível é: quem ja-
124 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

mais disse isso? Qual feminista ou “afrocêntrico” de relevo


disse algum dia que a incorporação de uma obra ao cânone
se deve ao advertising e à propaganda? Desconhece-se, e o
livro de Bloom não ajuda, pois nas centenas de páginas de
queixas ressentidas contra a tal Escola de Ressentimento,
ele não nomeia seus supostos integrantes. Nas obras que se
dedicaram a revisar o cânone a partir de uma perspectiva
feminista, como The madwoman in the attic, de Sandra
Gilbert e Susan Gubar, ou de um ponto de vista afro, como
The signifying monkey, de Henry Louis Gates, certamente
não encontramos nenhuma equação entre a construção do
cânone e a propaganda. Se é correto afirmar que parte da
crítica contemporânea se dedica a questionar o processo
de emergência dos cânones, seria difícil encontrar um
estudo sério defendendo algo que vagamente lembrasse a
caricatura apresentada por Bloom.
Mais que atacar Bloom, trata-se aqui de assinalar um
paradoxo bem curioso que veremos reiterado no lamento
contra os estudos culturais. Se Bloom insiste com tanta
ênfase em afirmar que “Shakespeare inventou a todos nós”
(p. 40) – e é ubíqua sua afirmativa de que Shakespeare é
o pai de todos –, é impossível não se perguntar que pai é
esse que, mesmo perfeito, produz filhos tão bárbaros como
os desprezíveis afrocêntricos e feministas. Da leitura de
Bloom, retiremos mais um axioma: quanto mais ameaça-
dos se sintam os guardiães da suposta universalidade de
um determinado valor, quando mais socialmente precário
seja seu fundamento, menor será sua capacidade de entrar
em genuíno debate com a força emergente que aponta o
caráter contingente desse valor.
O mais surpreendente é que essa posição – defendida
nos EUA por Harold Bloom, um crítico associado à direita
mais conservadora – passou, há uma década e meia, a ser
representada no Brasil por Leyla Perrone-Moisés, ensaísta
que não tem nenhum histórico de associação com o con-
servadorismo político, que talvez seja a mais ilustre bar-
thesiana da América Latina e cujos primeiros livros foram
escritos na mais absoluta alegria e afirmação. É verdade
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 125

que a ensaísta brasileira se diferencia de Bloom, mas o


diagnóstico do que teria acontecido a partir da chegada dos
estudos culturais é fundamentalmente o mesmo, acrescido
do altamente antiantropofágico medo de que o Brasil se
contamine pela influência norte-americana: “o lamentável
de tudo isso é que muitos universitários brasileiros estejam
recebendo essas tendências norte-americanas sem o menor
espírito crítico” (Perrone-Moisés 1998, p. 195). Reen-
contramos em Altas literaturas o mesmo procedimento de
Bloom: o ataque a um adversário cujos representantes não
são nomeados e ao quais não se concede a generosidade
da citação. Observe-se, no capítulo 5 de Altas literaturas,
dedicado ao diagnóstico do presente, a abundância de
vozes passivas (“o cânone ocidental ... foi posto sob sus-
peita”, “a formação desse cânone foi examinada do ângulo
ideológico”, p. 196), de sujeitos ocultos e de sintagmas
como “alguns grupos”, “as feministas norte-americanas”,
“os particularistas”, “os anti-canônicos”. Jamais sabemos
quem são eles. Parecem não ter obra. Nos momentos em
que Leyla Perrone nomeia duas figuras envolvidas com o
debate sobre o cânone nos EUA – John Guillory e Barbara
Herrnstein Smith –, ela lhes atribui posições diametral-
mente opostas às que defendem em seus livros, gerando a
3
Minha primeira reação, ao dúvida sobre se ela realmente os terá lido.3
ler que Barbara Herrnstein Tomemos o diagnóstico da ensaísta brasileira sobre
Smith “considera que o
juízo de valor é indesejável”
as raízes da perda de relevância social da literatura e da
(Perrone-Moisés, 1998, p. daninha influência norte-americana:
230), foi achar que se tratava
de um erro tipográfico, posto Um curso de humanidades baseado na leitura de ‘grandes
que todo o livro de Smith
obras’ do Ocidente, como aquele que foi ministrado em
é uma análise do porquê
dos juízos de valor serem 1936 na Universidade Columbia por Lionel Trilling e outros,
inevitáveis. seria hoje impensável nos Estados Unidos. Na Universidade
de Stanford, por pressão dos grupos particularistas, a palavra
ocidental foi suprimida na denominação dos cursos sobre
cultura (Perrone-Moisés, 1998, p. 192).
O turco Homi K. Bhabha, introdutor dos estudos “pós-
coloniais”, colheu suas referências principais em Derrida,
Foucault, Kristeva, Lefort etc. Também é bastante irônico
126 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

que os “pós-coloniais” se insurjam contra o que chamam


genericamente de “ideologia ocidental”, munidos de argu-
mentos iluministas historicamente tão ocidentais quanto
o repudiado imperialismo (p. 194-195).
[...] há um contra-senso histórico no desejo de modificar o
cânone passado, para nele incluir os então excluídos [...].
Excluir do cânone um Dante, para colocar em seu lugar
alguma mulher medieval que porventura tenha conseguido
escrever alguns versos não seria ato de justiça; seria, no
máximo, uma vingança extemporânea [...]. As exclusões
ideológicas têm tido um efeito imediato e lamentável nos
currículos norte-americanos: Mark Twain e Faulkner,
porque eram escravagistas; Hemingway, porque era ca-
çador e machista; Melville, porque antiecológico etc. (p.
198-199).

Fica difícil realizar um debate a partir de tantos erros


factuais. Corrijamos alguns: 1) Homi Bhabha não é “tur-
co”, e sim indiano. 2) Bhabha não é o “introdutor” dos
estudos pós-coloniais, campo de estudos cujas genealogias
unanimemente (Desai e Nair, 2005) apontam como mo-
mento inaugural a publicação de Orientalismo (1978), de
Edward Said, palestino-americano de formação, aliás, bem
europeia e humanista. 3) Não se sabe quais seriam esses
teóricos pós-coloniais que se insurgem contra “o que cha-
mam genericamente de ‘ideologia ocidental’”, já que Leyla
Perrone os caracteriza genericamente, sem citações, mas é
sabido que a noção de ideologia tem pouca circulação nos
teóricos pós-coloniais, que herdam de Foucault a suspeita
ante o conceito. 4) Desconhece-se universidade estaduni-
dense que tenha excluído Mark Twain, Faulkner, Melville
e Hemingway do currículo, seja na pós-graduação em
literatura, seja na licenciatura em inglês; uma rápida busca
nos sistemas das cento e três instituições catalogadas pela
Carnegie Mellon como Research universities demonstra que
esses quatro autores continuam abundantemente presentes
em cursos, exames e teses. 5) Para qualquer conhecedor do
sistema universitário norte-americano, causa estupefação a
afirmativa de que é hoje “impensável” um “curso de huma-
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 127

nidades baseado na leitura das grandes obras do Ocidente”.


O curso que costuma atender pelo nome de Great Books
é um dos mais comuns em qualquer grade curricular de
qualquer boa universidade estadunidense. Como exemplo,
cito o que está sendo ministrado na minha própria, Tulane,
no primeiro semestre de 2010: a lista de leituras consiste
em Maquiavel, Cervantes, Hobbes, Rousseau, Stendhal,
Marx, Nietzsche, Dostoiévski, Freud, Virginia Woolf, Primo
4
A lista de leituras está Levi, Fanon e Coetzee.4 Não é exatamente uma seleção
disponível em: <http://honors. escalada por uma afrofeminista radical. O curso do segundo
tulane.edu/web/default.
asp?id=Courses>.
semestre cobre da Antiguidade até a Idade Média, inclui
Dante, e nele não há sombra de “alguma mulher medieval
que porventura tenha conseguido escrever alguns versos”.
6) A incrível afirmação de que em Stanford “a palavra
ocidental foi suprimida na denominação dos cursos sobre
cultura” merece parágrafos à parte.
É lamentável que uma ensaísta que dedica páginas a
criticar as simplificações da cultura de massas e da mídia
reproduza a distorção veiculada por Time, Newsweek e Wall
Street Journal acerca da polêmica em Stanford que desatou
as chamadas “guerras culturais” nos EUA. Uma breve
consulta à bibliografia séria acerca do incidente (Pratt,
2001; Casement, 1996; Graff, 1993) teria sido suficiente
para evitar o erro. Como sabem quase todos, os currícu-
los universitários norte-americanos incluem um curso de
obras-primas ocidentais que percorre, em geral, um trajeto
que vai de Homero (ou Platão) a Nietzsche, embora esses
autores também sejam lidos numa série de cursos que, em
Stanford, são parte de oito grades dentro das quais o aluno
pode cumprir os requisitos de humanas. Em março de 1988,
o Senado de Stanford decidiu aprovar uma proposta de
substituição de um desses cursos de “cultura ocidental”,
em uma das grades, por um curso intitulado “Culturas e
valores”, de cunho comparativo, onde se incluíam textos
“não-ocidentais” como os de Frantz Fanon e Rigoberta
Menchú.
Dentro de Stanford, a implantação do novo currículo
foi absolutamente tranquila, num debate já informado por
128 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

anos de reflexão sobre a necessidade de oferecer outras


versões sobre a modernidade. A votação no Senado foi
normal. A defesa do projeto foi ligeiramente politizada
por grupos de estudantes, mas tudo correu dentro da nor-
malidade que se espera de uma revisão curricular como
qualquer outra, exceto por um detalhe: as principais fun-
dações da direita norte-americana, grupos religiosos e o
Partido Republicano acompanhavam o debate de perto. A
grande imprensa passou a dedicar blocos de seus programas
à “eliminação da cultura ocidental no currículo das uni-
versidades americanas”, ao “assassinato de Shakespeare e
Platão” e à “intimidação de ativistas estudantis”. Estavam
lançadas as sementes do que se conheceria depois como
“as guerras culturais”.
Desde Watergate, a queda de Nixon e a consequente
desmoralização da direita americana, as forças conserva-
doras do país passaram a dedicar intenso esforço à vitória
na luta cultural. Investiram-se milhões de dólares na
construção de think tanks como a Heritage Foundation. Os
neoconservadores sabiam que era no terreno da cultura que
se jogaria a cartada decisiva.5 Em 1988, a direita republi- 5
Sobre o caráter ubíquo que
cana concluía oito anos de controle sobre a Casa Branca, tem adquirido a cultura como
terreno onde se jogam os
acabava de estrangular a revolução centro-americana, antagonismos políticos, ver o
estava pronta para presenciar a queda do comunismo e belo livro de Yúdice, 2004.
identificava na cultura a nova guerra que deveria vencer.
William Bennett (ex-secretário de educação no governo
Reagan), Herbert London (fundador do Hudson Institu-
te, um think tank de direita), Allan Bloom, autor de The
closing of the American mind, e Dinesh D’Souza, autor do
best-seller Illiberal education, passariam a acusar Stanford
de jogar no lixo a cultura ocidental, entre outras generali-
zações provocadoras de pânico. O livro de D’Souza atacava
especialmente a incorporação ao currículo do testemunho
de Rigoberta Menchú, ativista guatemalteca de etnia maia-
quiché. Menchú, que aprendeu espanhol já adulta, narrou
verbalmente sua história de vida à antropóloga Elizabeth
Burgos. O relato é indissociável das atrocidades cometidas
na guerra civil da Guatemala nos anos 1970 e 1980, de
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 129

responsabilidade de uma ditadura financiada pelos EUA.


O que enfurecia no testemunho de Menchú era que, ao ser
incluído num currículo universitário de culturas ocidentais,
ele dava uma resposta implícita aos que idealizam o Oci-
dente ou “os valores ocidentais” como cavalos de batalha
morais. O livro dizia: O Ocidente é isto aqui também, é
atrocidade também. É incoerente citar o axioma benja-
miniano acerca da inseparabilidade entre documento de
cultura e documento de barbárie (Perrone-Moisés, 1998,
p. 202) e reagir com pânico no momento em que se extrai
uma mínima consequência prática da profunda e radical
verdade desse axioma. A estas alturas, creio ser desneces-
sário confirmar que a presença do termo “ocidental”, em
incontáveis cursos de Stanford ou de qualquer outra boa
universidade norte-americana, jamais esteve em perigo.

Valor literário e apocalipse

Daí não se conclua que tudo vai bem com o ensino de


literatura nos EUA, ou que não exista nada a se criticar nos
estudos culturais e nas plataformas feministas ou étnicas
de revisão do cânone – simplesmente é melhor fazer os
balanços disciplinares com base em fatos e bibliografia, não
em projeções fantasmáticas. Os exemplos citados acima
ilustram algo que é frequentemente esquecido por ambos
os lados no debate sobre o valor. Apesar das aparências,
os cânones brasileiro, latino-americano e ocidental têm se
transformado de maneira lenta e modesta, bem menos
dramática do que seria de se imaginar por intervenções
apocalípticas (“estão assassinando Platão e Shakespeare”)
ou triunfantes (“estamos conquistando espaço para os
excluídos”). Proponho desenvolver aqui uma ideia que
parecerá estranha aos que acompanham as discussões sobre
o valor, especialmente aquelas marcadas por ansiedades
quanto aos estudos culturais: a rentabilidade do debate
sobre o valor estético costuma ser inversamente proporcio-
nal à sua acoplagem ao problema do cânone. Dito de outra
forma: o conceito de valor abre um horizonte riquíssimo
130 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

para a crítica literária, que só é obscurecido se o reduzimos


ao problema de quais autores farão parte do panteão de
leituras obrigatórias. Essa redução une esteticistas e cultu-
ralistas, “ocidentalistas” e “particularistas”. Perdido nesse
debate fica o fato óbvio, mas pouco analisado, de que o
conceito de valor não se reduz a suas consequências para
o cânone.
Aqui, continuo tomando Altas literaturas como inter-
locutor privilegiado, pela estatura intelectual inegável de
sua autora, por sua importância no debate crítico brasileiro,
pelo papel que cumpriu a beleza cintilante de livros como
Texto, crítica, escritura e Falência da crítica em minha própria
entrada na profissão e, acima de tudo, pelo fato de que a
obra não esconde os seus pressupostos axiológicos. Pode-se
criticar qualquer coisa na defesa que faz Leyla Perrone do
cânone moderno, menos a falta de explicitação dos valores
que a orientam. Aqui, sim, há uma diferença nítida com
Bloom, que defende seu cânone com base numa natura-
lização muito menos reflexiva. Essa extrema honestidade
intelectual me fascina em Altas literaturas, que teria sido
mais um magnífico livro de Leyla Perrone caso ela o ti-
vesse interrompido na página 173. A paixão e a erudição
com que a autora escreve os capítulos sobre Eliot, Pound,
Paz, Borges, Calvino, Butor, Haroldo de Campos e Sollers
contrastam nitidamente com a desinformação do capítulo
final, sobre a suposta barbárie que ela vê nos tempos atuais.
O contraste me fez recordar a observação de uma saudosa
professora, que insistia que os críticos literários deveriam
escrever sempre sobre aquilo de que gostam.
Depois de mapear os paideumas dos escritores-críticos
modernos, Leyla Perrone encontra alguns valores que
seriam comuns a todos. São eles: maestria técnica, con-
cisão, exatidão, visualidade e sonoridade, intensidade,
completude e fragmentação, intransitividade, utilidade,
impessoalidade, universalidade e novidade. Dificilmente
encontraremos uma síntese tão exata dos valores que
balizam a prática literária moderna. Leyla Perrone está,
inclusive, atenta ao fato de que esses valores podem estar
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 131

em contradição uns com os outros: afinal, não seria a


utilidade o oposto da intransitividade? Como conciliar
fragmentação e completude? Tecendo uma série de refi-
nadas distinções, ela mostra que os modernos coincidem
na “independência do objeto estético” (p. 164) – ou seja,
a intransitividade –, mas que isso não impede Eliot de ver
a utilidade da literatura na “preservação do idioma” ou
Sollers de associar “transgressão poética e subversão polí-
tica” (p. 165). O mesmo se aplica à aparente contradição
entre fragmentação e completude. Esta última, entendida
como coerência interna, não é contraditória com o ideal
da obra aberta (p. 160-163).
No entanto, a lista de características privilegiadas por
oito escritores-críticos que produziram o fundamental de
suas obras num brevíssimo intervalo de tempo (pouco
mais de meio século) pode balizar a compreensão do que
a modernidade literária pós-romântica privilegiou na sua
prática, mas ainda não diz nada sobre o valor estético
como tal. Supondo-se que esses traços são distintivos da
modernidade crítica, ainda restaria a pergunta acerca do
que fundamenta o valor estético encontrado por todos eles
em obras que não pertencem à modernidade e que foram
escritas de acordo com outras pautas. Seria a Divina comé-
dia um poema “fragmentado”? Teria a Odisseia o dom da
“concisão”? Como explicar o fato de que, para os modernos,
permaneça inconteste o valor estético de obras escritas a
partir de pautas diferentes e muitas vezes contraditórias
com aquelas privilegiadas em suas próprias práticas? Em
outras palavras, como fundamentar um conceito trans-
histórico de valor estético?
Leyla Perrone não se furta a encarar o problema. Em
resposta à pergunta “para que serve a literatura?” – ou seja,
já não a poesia, a ficção e o ensaísmo da modernidade crí-
tica pós-romântica, mas a literatura como tal –, a ensaísta
brasileira afirma:

Se nós acreditamos que a literatura tem a alta utilidade de


esclarecer, alargar e valorizar nossa experiência do mundo,
132 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

admitiremos que a história do conjunto de suas realizações


maximiza o proveito que podemos tirar do contato com
cada realização particular. E se a fruição da literatura, no
seu mais alto sentido de conhecimento e valorização da
experiência humana, é o nosso objetivo, seremos levados
a defender um certo tipo de história literária: aquela que
otimiza a fruição das obras (p. 21-22).

Algum aluno impertinente poderia encontrar uma


contradição entre essa definição de literatura e o cânone
defendido pelo livro. Partindo-se do pressuposto de que
a literatura, como tal, serve para valorizar a experiência
humana, seria difícil não escolher, digamos, Jorge Amado
sobre, digamos, Kafka. Afinal de contas, a “experiência
humana” que retrata a obra deste último é uma repetição
infinita de uma alienante brutalidade incognoscível para o
sujeito. Muito pouco se “esclarece” ali. No limite, não seria
absurdo dizer que a impossibilidade de “esclarecer, alargar
e valorizar nossa experiência do mundo” é o tema mesmo da
obra kafkiana. No entanto, Kafka é pilar central do cânone
estético defendido por Altas literaturas, e a afirmação de
que Jorge Amado lhe é superior, perfeitamente plausível
para alguém que trabalhe com uma definição historicizada
e agnóstica de valor literário, certamente seria rejeitada em
termos categóricos pela autora.
O objetivo aqui não é caçar contradições no discurso
alheio, mas exemplificar um postulado teórico que se
desprende da leitura de uma de nossas mais sofisticadas
ensaístas: qualquer definição trans-histórica de literatura,
qualquer resposta essencialista à pergunta sobre sua natu-
reza, qualquer tentativa de defini-la em termos puramente
imanentes fracassará no teste da falsificabilidade. Atendo-
nos à definição que oferece Leyla Perrone para o que “ser-
ve” a literatura, poderíamos perguntar: Quem é o “nós”
sujeito do verbo “acreditar” nesse trecho? Estamos todos os
consumidores de literatura incluídos nele? Será mesmo tão
impossível imaginar uma comunidade de leitores para os
quais a “utilidade” da literatura seria justamente a oposta,
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 133

não “esclarecer”, mas embaçar a experiência do mundo,


não valorizá-la, mas desvelar-lhe a miséria?
“Para que serve” a literatura é uma pergunta para a
qual não há resposta de antemão, em abstrato, sem referên-
cia aos conflitos e pactos sociais que presidem a circulação
dos artefatos verbais que, num momento muito recente – o
século XVIII –, passaram a ser designados como “litera-
tura”. Não há respostas imanentes às perguntas acerca de
qual é o valor desses artefatos e quais, entre eles, exibem
esse valor em medida superior aos demais. A universaliza-
ção, como essência do texto literário, de um conjunto de
postulados próprios a uma região e um momento histórico
só pode levar à incapacidade de ler o presente a não ser
como queda: “a literatura [...] recolheu-se a um canto”
(Perrone-Moisés, 1998, p. 178), “os novos escritores [...]
publicam livros light” (p. 178), “o desafeto progressivo pela
leitura é um fenômeno internacionalmente reconhecido”
(p. 178), “os livros de ficção se tornaram mais curtos e mais
leves” (p. 178), “a literatura [...] está muito ameaçada”
(p. 179). Aqui, prefiro ficar com Walter Benjamin, que,
no Passagen-Werk, apontava que a crença nos períodos de
declínio é coextensiva à crença entorpecida no progresso.
“Não há períodos de declínio” (Benjamin, 1991, p. 571).
O apocalíptico e o otimista progressivo representam duas
faces da mesma moeda.
Nos últimos anos, a literatura latino-americana ofe-
receu abundantes contraexemplos à percepção de que a
ficção se encaminhava necessariamente na direção do mais
breve e light. El pasado (2003), de Alan Pauls – segundo
muitos, o grande romance argentino da década e, segundo
o Le Monde, o grande romance de amor do novo século –,
desenvolve em mais de 500 páginas recheadas de um vasto
saber psicanalítico e cinematográfico uma história de amor
marcada por uma essencial e deliciosa assimetria: Rímini,
apaixonado por Sofia; Sofia, apaixonada por seu amor
por Rímini. A extrema erudição e extensão do romance
não o impediram de tornar-se um bem-sucedido filme em
mãos de Héctor Babenco. 2666, o romance póstumo do
134 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

chileno Roberto Bolaño, oferece, em mais de 800 páginas,


um relato que conjuga os horrores dos assassinatos de mu-
lheres na fronteira mexicano-americana com um estudo
da frivolidade cúmplice que Bolaño via como caracterís-
tica das cliques acadêmicas e literárias. Um defeito de cor
(2006), da mineira Ana Maria Gonçalves, apresenta, em
mais de 900 páginas, uma saga narrada por uma escrava,
Luisa Mahin ou Kehinde – possivelmente a mãe do poeta
Luiz Gama –, que compra sua liberdade e percorre oito
décadas de história brasileira e africana no século XIX,
numa narrativa que mescla testemunho, historiografia e
ficção sem nenhuma concessão ao naturalismo fácil. Os
leitores das obras de Ana Maria Gonçalves, Alan Pauls e
Roberto Bolaño são bem mais numerosos que nos fariam
crer os apocalípticos, especialmente no caso deste último,
cujo refinamento não impediu que ele se transformasse em
fenômeno editorial. Esses leitores com frequência teste-
munham que a sofisticação dos textos não é contraditória
com o interesse gerado pela peripécia.
Em meu trabalho sobre música popular, interessou-me
em certo momento a origem do discurso sobre a decadência
do samba: “Já não se faz mais samba como antigamente”.
Desde quando se diz isso? Minha hipótese inicial, a de que
o discurso coincidia com o início da apropriação bossa-
novista do samba de morro nos anos 1960, foi contradita
por inúmeras ocorrências anteriores dessa retórica, ainda
no contexto da Rádio Nacional, nos anos 1950. Voltando
ainda mais, encontrei outras instâncias na época do samba-
exaltação e da sobreorquestração do gênero no molde das
big bands norte-americanas. A hipótese de que a percepção
de uma decadência no samba datava dos anos 1940 foi, por
sua vez, contradita pela sua aparição durante a compra dos
sambas dos compositores negros do morro por intérpretes
brancos de classe média, como Francisco Alves, nos anos
1930. Estupefato, descobri que a afirmação de que já não
se faz samba como antes aparece no primeiro livro escri-
to sobre o samba, pelo jornalista Vagalume, em 1933. O
discurso de que o samba corre risco de morte tem a exata
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 135

idade do samba. Da mesma forma, o fato de que em 1964


o poeta mexicano Octavio Paz tenha reunido uma lista
de sinais de decadência da literatura não quer dizer que
“a situação em que hoje vivemos foi claramente prevista”
por ele (Perrone-Moisés, 1998, p. 179). Significa que a
existência de profetas da queda do valor literário é tão
antiga como a literatura mesma.

Axiologia, relativismo e contingência

O axioma da filósofa Barbara Herrnstein Smith é um


achado mais complexo e frutífero do que parece à primeira
vista: o valor é sempre e necessariamente contingente
(Smith, 1988, p. 30-53). Antes que a patrulha antirrelati-
vista afie suas garras, é bom esclarecer que “contingente”
não quer dizer “subjetivo” nem “relativo” nem “arbitrário”.
Um determinado valor ou sistema de valores pode perfei-
tamente ser objetivo (na medida em que ele independe da
subjetividade particular de qualquer membro da comuni-
dade interpretativa), absoluto (posto que não relativizável
dentro de tal comunidade) e motivado (no sentido de
que sua origem não é produto de uma eleição puramente
arbitrária). Nada disso mudaria seu caráter contingente.
A expressão-chave aqui, claro, é “dentro da comunidade”.
No espaço circunscrito da comunidade interpretativa em
questão, um valor pode ser absoluto, objetivo e motivado, e
continuaria sendo contingente. A coincidência de contin-
gências que conferem inteligibilidade a um valor pode ser,
inclusive, um dos elementos constitutivos da comunidade
mesma, um dos fundamentos que presidem a emergência
da própria comunidade.
Um valor é sempre o resultado de uma luta mas, uma
vez consolidado, esse valor contingente tenderá a aparecer
aos membros da comunidade interpretativa como uma
não-contingência. Bastaria pensar no considerável poder
de tração de valores como o mester de clerecía (a técnica
aprendida na tradição) na literatura tardo-medieval hispâ-
nica, a adequação aos modelos da Antiguidade na literatura
136 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

neoclássica do século XVIII, especialmente na França, ou


a inovação e a ruptura nas vanguardas de princípios do
século XX. Em cada um desses casos, a justificativa de
um valor contingente fez uso de um vocabulário da não-
contingência, ou seja, realizou uma transcendentalização
de um processo que era imanente à comunidade valorativa
em questão. Os juízos que se adéquam ao pacto valorativo
dominante tenderão a ser lidos como confirmação da ob-
viedade e naturalidade dos valores implícitos no pacto. Os
juízos discordantes tenderão a ser lidos como deficiência
ou falta de cultura do sujeito valorador. A transcenden-
talização dos resultados de um pacto particular é uma
estratégia comum e recorrente nas querelas entre escolas
e estilos literários, mas ela não é uma teoria da literatura
e do valor estético como tais, a não ser como sinédoque
cega a suas próprias condições de produção.
O grau de estabilidade de um determinado sistema de
valores em sua respectiva comunidade não diz nada sobre
sua suposta obviedade, nem sobre as propriedades intrín-
secas do objeto valorado, mas expressa a naturalização do
pacto valorativo. Tomemos um exemplo latino-americano:
é amplamente hegemônica a percepção de que, seja qual
for a crítica que se possa ter à estética do realismo mágico,
sua versão original, com Cem anos de solidão, de Gabriel
García Márquez, desfruta de um valor ausente em, digamos,
A casa dos espíritos, de Isabel Allende. É claro que é possível
questionar essa valoração (e já encontrei vários leitores,
particularmente leitoras, que afirmavam que o melodrama
de Allende lhes falava à experiência de uma forma que a
saga de García Márquez não fazia). Esse questionamento,
no entanto, não pode ocorrer sem que o sujeito se instale
em posição exterior a um consenso crítico que preside
as comunidades interpretativas nas quais circulam esses
textos. Um exemplo análogo, no Brasil, seria o hipotético
leitor que adentrasse as comunidades interpretativas den-
tro das quais circula o romance dos anos 1930 para propor
a tese de que Jorge Amado é superior a Graciliano Ramos.
A afirmação não está na esfera do indizível, mas ela não
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 137

pode ser acomodada nos pactos valorativos dentro dos


quais circulam os romances desses dois autores. A única
possibilidade que restaria a esse hipotético leitor seria des-
vendar a natureza contingente da aparente naturalidade
da valoração anterior, ou seja, questionar a totalidade do
pacto valorativo. Os defensores da naturalidade do pacto
valorativo em geral replicarão com a falácia desenvolvi-
mentista: o argumento de que a percepção minoritária é
produto de uma deficiência do sujeito valorador e que,
uma vez que os leitores sejam educados direitinho, todos
reconhecerão que não há como negar a superioridade
estética de García Márquez sobre Allende.
A posição que apresento aqui é, com frequência, con-
fundida com o bicho-papão do relativismo, que afirmaria
que todos os valores seriam igualmente válidos ou, para
usar a fórmula popular, que “daria tudo na mesma” (um dos
expoentes dessa desleitura, no Brasil, é o filósofo e poeta
Antonio Cicero, que insiste em igualar desconstrução e
relativismo). A acusação de relativismo tenderá a se repetir
quando, no interior de uma comunidade interpretativa, for
exposta a contingência que sustenta um valor supostamen-
te absoluto. Ao questionar a obviedade de valores como
“bondade”, “piedade” e “humildade”, Nietzsche ensinou
algo acerca de como funcionam as operações de naturali-
zação. Nietzsche não foi, de forma alguma, um relativista.
Ele afirmou taxativamente que os valores socrático-cristãos
são piores, mais baixos, valores de escravo, daninhos à
afirmação da vida. Mas, não por acaso, o neokantismo de
princípios do século XX leu como “relativistas” afirmações
do tipo “falar de justiça e injustiça em si carece de todo
sentido” (Nietzsche, 1967-77, p. 312). Com esse axioma,
Nietzsche sugeria, claro, que não há “justiça” até o momen-
to em que o mais forte estabeleça sua lei. Nessas polêmicas,
vale sempre a regrinha: ao ver alguém ser acusado de
relativista, dê uma olhada no absolutismo de quem acusa.
No caso do valor estético, a acusação de relativismo inva-
riavelmente remete a uma suposta tendência dos estudos
culturais – ou das demonizadas feministas e afrocêntricos
138 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

– de não aceitar a “óbvia” diferença de “qualidade” entre os


grandes monumentos da modernidade e as formas estéticas
mais populares ou massivas. Aceitar essa diferença seria
um pré-requisito para qualquer discriminação de valor. Ou
seja, a acusação de relativismo costuma pressupor que, se
essa distinção de valor não é aceita, nenhuma distinção
de valor é possível.
Recorro à etnomusicologia, na qual me parece que o
conceito de valor está colocado em terreno mais sólido.
Está demonstrado, com pesquisa formal e etnográfica
(Frith, 1996), que as distinções valorativas realizadas pe-
los fãs de música popular não são, absolutamente, menos
complexas, rigorosas, multifacetadas ou especializadas
que aquelas feitas pelos ouvintes do heterogêneo corpus
de peças europeias modernas que, a partir do século XX,
passou a ser agrupado sob o rótulo de “música clássica”.
Qualquer consumidor de música popular que acompanhe,
por exemplo, o heavy metal, poderá testemunhar acerca da
miríade de distinções de subgêneros baseadas em andamen-
to, instrumentação, vocalização, grau de distorção, volume,
temática das letras, performance, timbre ou padrão rítmico
– distinções incompreensíveis e ilegíveis para aqueles situa-
dos fora do pacto valorativo que preside o consumo do gê-
nero. Carece de qualquer fundamentação filosófica a ideia
de que a viabilidade do conceito de valor estético dependa
da aceitação de uma diferença essencial, imanente entre o
valor das obras agrupadas sob a rubrica da arte erudita e o
valor daquelas que convencionamos chamar de populares
ou massivas. Para seguir com a analogia musical: durante
décadas, os estudos de música brasileira trabalharam com
a noção de síncope como “irregularidade” essencialmente
africana. O próprio Mário de Andrade faz referência a
ela como característica “tida em geral como provinda da
Africa” (1987, p. 409). Ora, tal “irregularidade” provinha
do fato de que a teoria ocidental prevê compassos simples
(binários: 2/4, 3/4, 4/4) e compostos (ternários: 6/8, 9/8),
mas não prevê compassos que misturem de forma sistemáti-
ca agrupamentos dos dois tipos, exatamente a mistura que
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 139

é uma das marcas da música da África subsaariana. O re-


sultado é que “ritmos desse tipo apareceram nas partituras
como deslocados, anormais, irregulares (exigindo, para sua
correta execução, o recurso gráfico da ligadura e o recurso
analítico da contagem) – em uma palavra, como síncopes”
(Sandroni, 2001, p. 26). O valor rítmico contramétrico era
ilegível numa notação construída para descrever e privile-
giar a harmonia. A chamada “irregularidade africana” não
era senão a impossibilidade de que a partitura ocidental
descrevesse apropriadamente o novo objeto.
Os pactos valorativos na estética se tornarão visíveis
em proporção direta à exposição do caráter contingente dos
fundamentos que os sustentam. Dois exemplos, incluindo-
se um que ilustra minhas críticas às revisões feministas,
étnicas e pós-coloniais do cânone, ajudarão a encaminhar
a conclusão teórica. Na Argentina, nos últimos trinta anos,
nota-se uma acentuadíssima queda no capital cultural de
um escritor que chegou a ser considerado um dos maiores
do continente. Julio Cortázar, que inspirou uma geração
de neovanguardistas estéticos e revolucionários políticos, é
hoje invariavelmente visto como “escritor para adolescen-
tes” (Aira, 2001) que, “depois de Todos los fuegos el fuego já
não escreveu mais, dedicando-se exclusivamente a repetir
seus velhos clichês e a responder às exigências estereotipa-
das de seu público” (Piglia, 1993, p. 85). Incontáveis são
juízos contemporâneos que veem O jogo de amarelinha como
romance que “sofreu enormemente a passagem do tempo”
(Sarlo, 2008) e “está escrito para candidatos de agência de
turismo cultural”, uma “perfumaria free tax de aeroporto”
(Abraham, 2006, p. 39). Na Argentina, a avaliação mais
recorrente de Cortázar é que se trata de um escritor em
cuja obra talvez se salvem os primeiros contos, de Bestiario,
mas não muita coisa mais. Uma determinada conjunção
de fatores estéticos e políticos criou as condições para uma
leitura celebratória de Cortázar nos anos 1960. A obra
não parece ter renovado sua legibilidade depois daquele
contexto (o que não quer dizer, evidentemente, que não
possa vir a fazê-lo num momento futuro). O fato é que hoje
140 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

seria bastante difícil encontrar um estudioso de literatura


na Argentina que colocasse Cortázar no mesmo patamar
de, por exemplo, Juan José Saer. As comparações com Jorge
Luis Borges, comuns nos anos 1960, hoje soariam risíveis
aos ouvidos dos que circulamos no interior dos pactos
valorativos que presidem a circulação desses textos. Uma
tese que se propusesse a comparar “o fantástico em Borges
e Cortázar” é imaginável no Brasil, na Espanha e talvez
nos EUA, como demonstra uma pesquisa nos bancos de
dados da disciplina. Mas na Argentina ela seria recebida
como uma junção de termos incomensuráveis.6 6
Agradeço a Mariano
Com o exemplo de Cortázar, não quero me limitar a Siskind pela interlocução sobre
a perda de capital cultural de
ilustrar o óbvio, que o valor dos escritores na Bolsa Lite-
Julio Cortázar na Argentina
rária (segundo a feliz expressão de Leyla Perrone-Moisés) e também pela citação de
muda no tempo e no espaço. Há uma lição menos óbvia a Beatriz Sarlo.

se extrair daí, sobre a qual as revisões feminista, étnica e


pós-colonial do cânone ainda não refletiram o suficiente:
a incontornável descontinuidade entre valor estético e
resultado político, mesmo no caso das obras mais politiza-
das, como a de Cortázar. Um outro episódio de valoração,
também latino-americano, oferece algo a ser pensado pelos
dois polos do atual debate: a entrada do testemunho ao
cânone literário.
Em 1983, publicou-se o testemunho de Rigoberta
Menchú, resultado de 25 horas de gravações realizadas
pela antropóloga franco-venezuelana Elisabeth Burgos.
Era o auge dos movimentos de solidariedade à revolução
centro-americana, e a história de Menchú, formada na
luta contra os horrores do regime guatemalteco, como-
veu uma série de críticos de esquerda que buscavam
alternativas a uma política literária herdada do boom. O
testemunho havia recebido um primeiro reconhecimento
em 1967, quando Casa de las Américas criou uma cate-
goria especial para o gênero em seu prestigioso prêmio. A
publicação de Biografía de un cimarrón, de Miguel Barnet,
gerou comentários acerca de uma suposta transparência
da voz testemunhal, uma vantagem do gênero em relação
à literatura na representação dos excluídos. Seguindo-se à
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 141

publicação do testemunho de Menchú, George Yúdice opôs


a literatura como “portadora privilegiada da identidade
nacional” (1991, p. 20) ao testemunho como “expressão
de uma consciência liberada de tal elitismo” (p. 26). A
euforia levava a declarações como a de John Beverley, de
que enquanto a literatura na América Latina “tem sido
(principalmente) um veículo para engendrar um sujeito
adulto, branco, masculino, patriarcal e ‘letrado’, o teste-
munho permite a emergência – mesmo que mediada – de
identidades femininas, homossexuais, indígenas e proletá-
rias” (1993, p. 98).
Entretanto, no interior dos estudos sobre o testemu-
nho, a ênfase nas mediações por meio das quais a voz teste-
munhal se registra na escrita e a análise da descontinuidade
entre a posição do depoente (um subalterno, em geral
indígena, camponês ou imigrante) e a posição do mediador
(um intelectual, em geral um antropólogo) levou a própria
crítica a matizar a euforia do primeiro momento. Estudos
fundamentados no problema da mediação (Sklodowska,
1992), na aura de autenticidade da voz do subalterno (Mo-
reiras, 2001) ou no papel do testemunho como recuperação
imaginária de uma vocação política perdida na literatura
(Avelar, 2003, p. 51-104) relativizaram a “revolução”
testemunhal que parte da esquerda anunciara nos anos
1980. O saldo do episódio da canonização do testemunho
foi que o texto de Rigoberta Menchú produziu um impacto
importante, mas limitado, logo absorvido pelo pacto valo-
rativo que preside a leitura do corpus latino-americano. A
incorporação de depoimentos dos subalternos ao cânone
não representou nem um assassinato de Cervantes e Borges
pela barbárie iletrada, como chegaram a lamentar Roberto
González Echevarría e outros expoentes da direita crítica
latino-americana, nem um golpe ao poder “elitista” da lite-
ratura, como chegaram a celebrar John Beverley e George
Yúdice. Tanto esteticistas como culturalistas sobrestimam
as consequências da revisão de uma lista de leituras. Para
os primeiros, ela funciona como explicação simples para o
complexo quadro de perda de capital cultural da literatura.
142 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Para os segundos, funciona como mecanismo compensató-


rio que permite a apresentação de novas listas de leitura,
mais inclusivas, como se estas representassem uma vitória
política real contra o racismo, o sexismo, o etnocentrismo
e a opressão de classe. Ambos trabalham com o cânone,
o valor e a estética de forma a não permitir nenhuma
descontinuidade entre os três termos. A grande tarefa da
teoria não seria, então, salvar a literatura ou democratizar
o cânone, mas introduzir algum espaço de respiração na
interseção entre esses três conceitos.

Para uma genealogia do conceito de valor


estético

Os conceitos de valor e de estética terminaram, então,


sendo vistos como contíguos entre si por esteticistas e cul-
turalistas, como se toda estética pressupusesse a noção de
valor, ou como se valorar obras de arte sempre implicasse
que o juízo em questão fosse estético. Para concluir, sugiro
rotas de dissociação entre esses conceitos, com observa-
ções acerca do que denomino uma concepção agnóstica
de valor literário.
Recorde-se que, na Crítica do juízo kantiana, o con-
ceito de valor [Wert] não aparece no contexto do estabe-
lecimento da estética. Este é um fato filológico tão banal
quanto regularmente esquecido: na origem da estética,
não há conceito de valor. Kant faz, sim, referências ao
valor de um ato (§91), ao valor da existência humana
(§4) e à necessidade do postulado da existência de seres
racionais para que o mundo seja dotado de valor (§87).
Ou seja, todas essas ocorrências se referem a uma esfera
extraestética. A única menção ao valor num contexto
estético ocorre em §53, dedicado à comparação entre as
várias belas artes (segundo Kant, a mais alta seria a poe- 7
Que Antonio Cicero
sia). Mas não há, na Crítica do juízo, nenhuma hierarquia decrete que “quando digo que
um texto é [...] um poema
do belo, nenhuma atribuição de valor à beleza, no sentido
bom, não estou dizendo
mensurável, quantitativo que é próprio do conceito. Como meramente que gosto dele,
se sabe, para Kant, a estética seria a esfera da experiência mas que todo mundo que o
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 143

considere desinteressadamente desinteressada do belo, apresentada como apreço que


deve reconhecer” esse suposto
fato e que, por outro lado, “se
necessariamente demanda universalização, concordância
digo ‘eu gosto de abacate’, não de todos. Deixemos de lado o caráter escorregadio dessa
pretendo o mesmo” (2009a), premissa, já amplamente criticada pela tradição (a começar
não torna essa distinção
verdadeira. No mundo real, pelo próprio Hegel). Basta ler a analítica do belo (§6 a §22)
incontáveis leitores dizem para constatar que Kant o entende como objeto de um
que “No meio do caminho”
juízo de tipo, jamais de grau. Caso se apresente a objeção
é um bom poema e outros
incontáveis leitores dizem de que a impossibilidade de submeter o belo a fórmulas
o contrário, exatamente comparativas contraria todo o senso comum que desenvol-
como ocorre com o gosto do
abacate. Decretar que estes
vemos como consumidores de arte, não custa lembrar que
últimos são maus leitores não o próprio pilar da analítica kantiana do belo – a demanda
resolve o problema teórico. de concordância universal sobre o juízo – também embute
Quando Cicero afirma que
Barbara Herrnstein Smith, ao
um patente contrassenso.7
propor a tese da contingência Por isso, não há que se repreender Barbara Herrnstein
do valor, “nem sequer se dá Smith por remeter o valor estético ao terreno da economia
conta de que, ao dizer tais
coisas, incorre em paradoxos (Perrone-Moisés, 1998, p. 230). Na verdade, não há outro
que solapam suas próprias vocabulário que não o da economia. Todas as definições
teses” (2009b, p. 8), ele parece
não econômicas de valor estético que tenham pretensões
não ter se dado conta de que
há um capítulo inteiro de trans-históricas incorrem em versões mais ou menos
Contingencies of value dedicado sofisticadas de uma tautologia: define-se o valor como a
a refutar a objeção de que
supostamente não se poderia
presença de certos traços formais (sejam quais forem) ou
afirmar que o valor é sempre a capacidade de produzir certas sensações. Esses traços ou
contingente sem cair em potencialidades passarão a ser apresentados como caracte-
contradição. Quem afirma a
contingência do valor não está
rísticos da experiência estética, sendo sua maior ou menor
conferindo ao objeto valorado presença em cada obra o critério para sua valoração. Ao
um atributo que permaneceria enfrentar-se com a pergunta acerca de como se chegou a
no tempo. Os enunciados
falsificáveis evidentemente delimitar o terreno propriamente estético, remete-se o in-
não se submetem às mesmas terlocutor à existência de obras que exibem... aqueles traços
regras de verificabilidade dos
inicialmente definidos como característicos do estético!
não falsificáveis. Ou seja,
é pueril argumentar que Não é à toa que os alunos não aceitam isso facilmente.
não podemos afirmar que Ao propor que não há conceito não tautológico de
“o sentido não é eterno e
unívoco” pelo fato de que essa
valor estético fora da economia, não sugiro, evidentemen-
frase supostamente teria um te, que o valor estético de Grande sertão: veredas possa
sentido eterno e unívoco. A ser deduzido do preço da mercadoria comercializada pela
frase não confere um atributo
ao sentido; ela se limita a
Editora Nova Fronteira. Sugiro, sim, que esse valor se deduz
apresentar uma negativa. Em num contexto eminentemente relacional, econômico, no
bom português: no debate qual atos de valoração socialmente situados entram em
entre agnósticos e crentes, o
ônus da prova cabe a estes. conflito, em negociação e em articulação, mediados por
144 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

instituições como a escola, a imprensa e a crítica, num pro-


cesso que conforma um equilíbrio nunca completamente
estável – o que venho chamando aqui de pacto valorativo.
Para compreender sua dinâmica, vale a pena refletir sobre
como a economia política entendeu o valor.
Já está presente em Aristóteles a compreensão de uma
diferença clara entre o valor de uso e o valor de troca:
“todas as coisas que são trocadas devem ser de alguma
forma comparáveis. É para esse fim que se introduziu o
dinheiro” (1133a). O conceito da comparabilidade univer-
sal precede, portanto, a economia política em mais de dois
milênios. É o próprio Marx que, no primeiro capítulo de
Capital, dedicado à mercadoria, dá o crédito a Aristóteles
como o “primeiro pesquisador a ter analisado a forma-
valor” (1952, p. 71). As genealogias da economia política
em geral conferem a Riqueza das nações, de Adam Smith,
o mérito da ruptura com a natureza circular do debate
anterior, entre fisiocratas e utilitaristas. Smith escapa da
circularidade da equivalência universal das mercadorias ao
dotar um conceito de um papel transcendental, que serve
de fundamento a todas as outras trocas: “o trabalho é a
real medida do valor intercambiável de todas as mercado-
rias” (Smith, 1999, p. 581). É o trabalho que lhes confere
valor e explica a possibilidade de equivalência entre duas
mercadorias distintas. A consolidação da teoria do valor-
trabalho, com Ricardo, ocorre não a partir do fato de que
o “trabalho seja um valor fixo, constante e permutável
sob todos os céus e todos os tempos, mas sim porque todo
valor, qualquer que seja, extrai sua origem do trabalho”
(Foucault, 1992, p. 269). O conceito de valor, pelo menos
na economia política, na qual ele sempre teve sua morada
mais sólida, pressupõe um transcendental, o trabalho, que
delimita uma região na qual a representação “não tem mais
domínio” (Foucault, 1992, p. 270).
O objetivo aqui não é traçar uma analogia entre o valor
estético e o valor econômico, mas justamente notar que há
uma operação analógica silenciosa, de rentabilidade limita-
da, nas teorias imanentistas do valor estético. A economia
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 145

política sempre enfatizou, claro, que a lei do valor-trabalho


se aplica a objetos reprodutíveis, e que o cálculo do valor
da mercadoria como quantidade de trabalho socialmente
necessário para a sua produção não se aplica a objetos esté-
ticos. Atesta-o a célebre observação de Marx na introdução
aos Grundrisse, de que o mistério não era explicar que a arte
grega emergiu como produto de circunstâncias históricas
particulares próprias à sociedade helênica, mas entender
como e por que os poemas homéricos, produtos do que ele
chamou de “infância da humanidade”, ainda nos fascinam
e mantêm sua legibilidade. A manutenção do valor de uma
mercadoria ao longo do tempo se explica pelo fato de que
ali se aninha uma quantidade determinada de trabalho que
mantém alguma tradutibilidade (com as naturais oscilações
que serão fruto das próprias variações no valor do tipo de
trabalho que se encontra ali congelado). Na economia, a
teoria do valor depende de um transcendental, o trabalho.
Na ausência desse transcendental, a teoria do valor esté-
tico só pode definir o valor imanentemente a partir das
operações circulares descritas acima, não muito diferentes
das equivalências universais tautológicas dos economistas
anteriores a Adam Smith. O trabalho que produz a obra
de arte não é traduzível, e portanto sua permanência no
tempo não se explica imanentemente:

A permanência de um autor clássico como Homero se


deve não ao valor supostamente transcultural ou universal
de suas obras mas, pelo contrário, à continuidade de sua
circulação numa cultura particular. Repetidamente citada
e recitada, traduzida, lecionada e imitada, e completamente
inserida numa rede de intertextualidade que continuamente
constitui a alta cultura [...], essa altamente variável entida-
de à qual nos referimos como “Homero” recorrentemente
entra na nossa experiência em relação com uma grande
variedade de nossos interesses, e pode assim realizar várias
funções para nós (Smith, 1998, p. 52-53).

Evidentemente, essa observação não é o fim, mas o


prolegômeno da pesquisa. Haveria que se estudar o que,
146 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

em cada situação e contexto, permitiu que cada obra reali-


zasse as funções que os vários leitores, instituições, escolas,
academias e intertextos lhe atribuíram ao longo dos anos.
No caso do debate sobre o valor que tem se desenvolvido
nos estudos de literatura brasileira e latino-americana,
ganharíamos terreno se o dissociássemos da polêmica entre
o culturalismo e os defensores do “cânone ocidental” e o
remetêssemos a todo o vasto material que pode informar
uma futura história da construção do valor literário no
Brasil: o erudito mapa traçado por Raúl Antelo do ideário
da transgressão na modernidade (Antelo, 2001), a valiosa
sequência de pesquisas feitas por Marisa Lajolo e Regina
Zilberman sobre a história da leitura e do livro (Lajolo
e Zilberman, 1991; 1996; 2001), o estudo de Roberto
Ventura sobre as polêmicas literárias, essas verdadeiras
máquinas de produção e destruição de valor (Ventura,
1991), as pesquisas de Flora Süssekind sobre as relações da
literatura com outros discursos, como os relatos de viagem
(Süssekind, 1990) ou as tecnologias da reprodução (1987),
a recuperação de facetas pouco exploradas dos escritores
mais canônicos, como a recente antologia de escritos de
Machado de Assis sobre a afrodescendência realizada por
Eduardo de Assis Duarte (2007), para não mencionar mais
que alguns exemplos. Acredito que ainda sabemos pouco
sobre o papel das antologias, de Manuel Bandeira (1963)
a Italo Moriconi (2000; 2001), na conformação do sistema
de valores literários brasileiros. A história da profissiona-
lização do escritor e das suas relações com a imprensa e
com o mercado ainda nos oferece vastas zonas de pesquisa
não realizada. Para além do lamento de que a internet é
responsável por uma queda na qualidade e na frequência da
leitura das novas gerações – queixa jamais fundamentada
com pesquisa empírica e agora patentemente desmentida
(Castells, 2009) –, uma série de novos escritores faz uso das
tecnologias de publicação online para circular seus textos
e manufaturar concepções emergentes de valor literário.
O postulado da contingência essencial do valor só abre
um espaço de relevância ainda maior para essas pesquisas.
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... 147

Estabelecer com a valoração uma relação menos essencia-


lista e mais agnóstica não implica que o crítico deixará, em
situações e contextos específicos, de exercitar os juízos de
valor que são uma inevitabilidade da própria prática críti-
ca. Significa que não se confundirão esses juízos com uma
teoria geral do valor. No horizonte imenso aberto por esta
última, as querelas sobre o cânone ocidental talvez não
passem de uma nota ao pé de página.

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151

O ensino de literatura brasileira


por meio do Teatro do Oprimido:
uma experiência na
Carolina do Norte
Érica Rodrigues Fontes*

resumo: Este trabalho analisa experiências no ensino de litera-


tura brasileira realizadas com alunos estadunidenses da Univer-
sidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (UNC-CH). Ao
utilizarmos um método teatral baseado no Teatro do Oprimido,
de Augusto Boal, pretendemos criar uma relação ideológica
entre os alunos americanos e não só a literatura brasileira, mas
o contexto brasileiro, de forma a lidar mais eficientemente
com algumas questões apresentadas em nossa literatura e que
concernem diretamente textos de autoria feminina, em especial
textos escritos na segunda metade do século passado. Aqui
se propõe uma avaliação de exercícios a partir da leitura de I
love my husband, de Nélida Piñon, Menina de vermelho a
caminho da lua, de Marina Colasanti, e A hora da estrela, de
Clarice Lispector.
palavras-chave: literatura brasileira, Teatro do Oprimido,
educação.
abstract: This paper analyzes experiences with the teaching of
Brazilian literature. These experiences were done with American
Students from the University of North Carolina at Chapel Hill
(UNC-CH). By using a theater method based on the Augusto
Boal’s Theater of the Oppressed, we intended to create an ideo-
logical relationship between the American students who took the
course and not only the Brazilian literature but also the Brazilian
context, as a means of dealing more efficiently with some issues
presented by our literature and which directly concern texts by
women authors, especially texts written during the second half

Professora adjunta de of the last century. Here I propose an evaluation of the exercises
língua inglesa (Graduação) done based on the reading of Nélida Piñon I love my husband,
e de literatura (Mestrado
Marina Colasanti’s Little Girl in Red on her Way to the Moon
em Letras) da Universidade
Federal do Piauí (UFPI). and Clarice Lispector’s The Hour of the Star.
152 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

keywords: Brazilian literature, Theater of the Oppressed,


education.

Introdução

Ensinar literatura brasileira no exterior (e para estran-


geiros) está obrigatoriamente atrelado a uma experiência
cultural, a uma exposição sobre a história e política bra-
sileiras. Nos Estados Unidos, tal ligação se torna indis-
pensável, pois, embora neste país da América do Norte
exista muita exposição à cultura de outros países, não há
de fato acesso à perspectiva ideológica de outras nações.
Assim, torna-se um compromisso do professor de literatura
brasileira, no contexto estadunidense, criar para os alunos
possibilidades de interação com a mentalidade brasileira,
com a interpretação brasileira de mundo. Muito mais do
que o ensino de movimentos literários, métrica ou outros
assuntos de interesse da literatura, é em sua temática que
nossa literatura parece ser mais enriquecedora quando
pertencente a um currículo estrangeiro.
Depois de ensinar em cinco turmas de graduação a
matéria Literatura Lusófona na Carolina do Norte, e por
ater-me principalmente ao ensino das obras escritas no
Brasil, percebi dois pontos de interesse comum das culturas
e literaturas estadunidense e brasileira: as minorias políticas
e as questões identitárias. Portanto, ao selecionar textos
para leitura e debate em sala, procurei priorizar esses dois
temas.
Como afirma Leonard Davis: “Novels do not depict
life, they depict life as it is represented by ideology”1 (Davis, 1
Romances não mostram
1987, p. 24). De
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fato, os textos escolhidos foram considera- a vida. Eles mostram a vida
como representada pela
dos representativos da ideologia brasileira contemporânea ideologia. Minha tradução.
com atenção para os temas supracitados, pois, como afirma
Linda Hutcheon (1999), a ideologia é a própria repre-
sentação da cultura. Houve, portanto, uma preocupação
com a criação de uma estratégia de relacionamento entre
a nossa realidade e a realidade do país onde a nossa está
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 153

sob estudo, pois, embora muitas vezes essa ideologia esteja


clara para um nacional da literatura lida, para o estrangeiro
ela precisa ser apontada.
Como exemplo, cito um momento de debate sobre
a personagem Macabéa do romance A hora da estrela, de
Clarice Lispector. Para os alunos do curso, em sua maioria
nascidos em um contexto rural como o da Carolina do Nor-
te, era quase impossível entender a condição tragicômica
dessa personagem, pois ela está inserida em um contexto
urbano, onde mora longe de seu estado de origem, com
pessoas desconhecidas. Os fatos engraçados que acontecem
na vida de Macabéa são gerados pela sua estranheza, pela
sua falta de adaptação à sociedade, sua marginalidade. Se
nos EUA a principal razão para os jovens saírem de sua terra
natal é estudar em uma boa instituição, no Brasil o principal
motivo para o êxodo jovem tem razões muito diferentes:
a fuga da fome, da miséria e da pobreza. Para os alunos
norte-americanos, portanto, entender o comportamento
de Macabéa tornava-se difícil. Eles consideravam-na sim-
plesmente um ser humano desprovido de inteligência e,
então, digno de risadas e deboche. Foi preciso comparar
a situação dessa personagem com uma vítima da pobreza,
fome e desastres naturais no estado do Mississippi (o mais
pobre dos Estados Unidos) para que os alunos entendessem
a tragicomicidade da obra.
Muito provavelmente pela dificuldade de localizar
pontos de interseção entre as duas culturas é que outros
instrutores do curso supracitado haviam detectado que a
participação dos alunos nas discussões era bastante inferior
às suas expectativas e que as atividades, em muitos casos,
eram desinteressantes para os discentes. Foi principalmente
por causa do aparente desinteresse dos alunos pela disci-
plina que resolvi implementar em minha aula de literatura
exercícios de teatro para posterior montagem teatral e um
segundo momento de discussão. A metodologia escolhida
foi a do Teatro do Oprimido, objeto de minha pesquisa de
doutorado.
154 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

O projeto relatado neste artigo teve por objetivo a


melhor absorção de conteúdos literários pelos alunos de
literatura de graduação de diversos cursos da Universi-
dade da Carolina do Norte em Chapel Hill (UNC-CH).
Realizado de agosto de 2004 a julho de 2006, ele revela
experiências ocorridas nas turmas de Português 40 (In-
trodução à Literatura Lusófona), das quais fui instrutora,
enquanto aluna de mestrado e doutorado na UNC-CH.
Neste artigo, analiso exercícios teatrais desenvolvidos
a partir de três textos brasileiros de autoria feminina: I
love my husband, de Nélida Piñon, Menina de vermelho a
caminho da lua, de Marina Colasanti, e A hora da estrela,
de Clarice Lispector.
Os textos foram analisados e encenados a partir de
traduções inglesas das obras, nos moldes do Teatro do
Oprimido e principalmente do Teatro Fórum (técnica de
Boal para discussão de problemas sociais no palco, a ser ex-
plicada a seguir, juntamente com sua adaptação para a aula
de literatura). Por meio dessas técnicas e de sua adaptação
para as aulas, os alunos se colocam no lugar de personagens
brasileiros, discutem a resolução do seu problema e depois
trazem algumas situações para o contexto estadunidense,
ao debater ou analisar problemas equivalentes nas duas
Américas ou, mais especificamente, nos dois países.
Há pelo menos dois fatores que favorecem a utilização
do método teatral de Boal nessa aula de literatura: a ideo-
logia sob a qual os textos tratados foram escritos (condição
subalterna da mulher e a sua necessidade de liberação) e
o fato de o Teatro do Oprimido ser um tipo de teatro que
tem como proposta final a discussão de problemas sociais.
Esses textos traduzem opressões contemporâneas vivencia-
das no Brasil e que têm equivalentes na sociedade norte-
americana, ainda que estes não sejam divulgados. Assim,
descreveremos como foi proporcionada essa ligação entre
a identidade norte-americana e a identidade brasileira para
o ensino de literatura brasileira, visando exclusivamente a
um melhor aproveitamento literário e cultural dos alunos,
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 155

originado por uma maior convivência com as obras, por


meio do envolvimento teatro-lúdico.
Neste artigo me concentrarei no resultado concernen-
te ao trabalho desenvolvido com os textos supracitados. As
duas últimas obras foram estudadas no final do semestre,
indicando um envolvimento mais profundo dos alunos
com a metodologia.

As observações descritas a seguir foram feitas a partir das


experiências de sala de aula e baseadas nas ideias retiradas
do livro Técnicas latino-americanas de teatro popular, de
Augusto Boal. Os seus métodos teatrais, mais divulgados
com a publicação do livro Teatro do Oprimido, ocorrida no
início dos anos 1970, ficaram conhecidos em todo o mundo
e priorizam uma participação mais ativa do espectador, que
vai além do modelo observador e consciente apresentado
2
Walter Benjamin explica pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht.2
que, no teatro épico de Brecht,
priorizam-se a crítica social e a É no Teatro Fórum, uma das técnicas do Teatro do
interrupção da ação dramática
(os momentos narrativos são
Oprimido, em que há o incentivo à discussão de proble-
exemplo dessa interrupção) mas sociais, que a participação da plateia pode ser mais
para reflexão sobre a crítica claramente notada. Neste modelo de teatro, a primeira
encenada. O público, porém,
não participa do espetáculo
parte de uma peça é tradicional (com a separação entre
ativamente. No teatro de Boal, público e atores), se dá em aproximadamente 30 minutos
diferentemente, o público e apresenta pelo menos um problema ou erro em cada
pode interferir diretamente
na ação, encenando suas cena. Por erro entende-se uma situação social de opressão,
sugestões, ainda que sob a sendo o erro, portanto, cometido pelo opressor e também
supervisão e orientação de um
por uma falta de postura mais libertária do oprimido. Na
diretor, o Curinga.
segunda parte da peça, que é introduzida por um Curinga,
espécie de diretor teatral, perito na metodologia de Boal, o
objetivo do público é, então, tentar consertar ou remediar o
erro. O Curinga indica para a plateia que as cenas poderão
ser modificadas por meio da substituição do oprimido (de
acordo com a ideologia do Teatro do Oprimido, somente
o oprimido pode ser substituído), com quem a plateia é
levada a se identificar. Muitas vezes ela (plateia) até tem
uma história que já auxilia esse processo, visto que mui-
tas das peças são apresentadas em edifícios públicos, tais
156 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

como escolas, hospitais e prisões, e retratam os contextos


socialmente carentes do espectador.
As exceções com relação à substituição ocorrem so-
mente no caso de o opressor tornar-se ainda mais cruel em
sua opressão, postura justificada pelo fato de que o Teatro
do Oprimido é do oprimido, feito por ele e mostrado para
ele, com protagonistas que querem mudar a sua história
de vida. Quando o opressor é modificado, não há muito
que o oprimido possa fazer a respeito, já que a plateia é
inicialmente incentivada a identificar-se com o oprimido.
Ou seja, ao substituir o opressor, a plateia tenta modificar
uma postura sobre a qual não tem nenhuma influência
no dia a dia, pois não é esse o papel que faz e, consequen-
temente, não é a substituição do opressor que modificará
ou ensaiará uma modificação social. Além disso, o sistema
social não testemunha uma frequente mudança na atitude
de pessoas que fazem o papel de opressores, pois estes, de
acordo com o Teatro do Oprimido, tendem a permanecer
iguais. A atitude daquele que é vítima de opressão, porém,
deve mudar para que, então, lentamente, o sistema mude
a seu favor.

O Teatro do Oprimido em I love my husband

Nas aulas mencionadas, usei a ideia geral do Teatro


do Oprimido, que divide a sociedade no binário oprimido-
opressor (equivalentes ao protagonista e antagonista,
respectivamente) para estudar as relações presentes nos
textos e, a partir de então, sugerir uma interpretação mais
profunda destes. Passemos então a um breve relato das
experiências que, por si só, serão perfeitas ilustrações de
como a leitura de um conto ou outro tipo de texto literário
pode ser enriquecida com este método. Comecemos com
I love my husband.
Nesse conto, temos o retrato de uma mulher que é
praticamente escrava de seu marido: faz para ele café todos
os dias, prepara tortas de chocolate, evita falar de amor
com ele porque há, na concepção deste, muitos outros
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 157

problemas que merecem mais atenção, como, por exemplo,


a situação econômica do país. Esta mulher, completamente
submissa a seu marido, segue mecanicamente as ações
que são esperadas dela como uma boa esposa: está feliz
quando ele chega em casa às sete da noite e tenta reclamar
cada vez menos do seu serviço de casa. No final do conto,
relembra os votos de seu casamento e conclui que, sim,
ama seu marido, embora o que ela relata seja digno do
sentimento oposto.
Após a leitura desta obra, houve um debate sobre a
literatura de autoria feminina nos anos 1980 como reacio-
nária à predominância de textos de autores masculinos até
pouco tempo antes dessa década. Depois de traçarmos um
breve painel sobre a liberação da mulher e sua repercussão
na literatura, comentamos o conto propriamente dito.
Com relação a esse texto, pedi aos alunos que fizessem
um exercício anterior à identificação do opressor e oprimi-
do da obra, normalmente o primeiro passo para aplicação
da metodologia de Boal. A turma foi dividida em duplas e
pedi a elas que escolhessem o momento que demonstrasse
uma intensa emoção e que exagerassem essa emoção em
uma cena teatral. Por termos pouco tempo para apresentar
esse exercício, apenas três cenas foram mostradas para toda
a turma, após um curto período de prática, e merecem
atenção particular.
Na primeira cena, uma aluna se comportou como uma
guerreira, gritando e portando-se ferozmente. Revelou-se
então sensual e bela durante a ausência de seu marido.
Essa cena levou-nos a debater sobre o caráter frustrante
do cárcere privado da esposa do conto, combatido em sua
vida onírica. A segunda cena mostrou um marido mais
agressivo do que o descrito no conto, o que exigiria uma
postura mais firme de sua mulher para que esta pudesse
ter uma vida mais digna. A última cena mostrou a esposa
literalmente como uma escrava, absolutamente dominada
pelo marido e impossibilitada de mover-se por si só.
Depois desses exercícios, discutimos a natureza da
opressão nesse conto e chegamos à conclusão de que ela
158 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

é proveniente do machismo e da condição subalterna da


mulher, muitas vezes aceita por ela mesma passivamente.
No texto, a liberação dessa dona de casa acontece somen-
te em um mundo fantasioso, quando ela se mostra uma
amante selvagem, cercada por javalis e pelo Clark Gable.
Posteriormente, as duplas definiram o opressor e o
oprimido, encenando suas adaptações de I love my husband.
Uma das duplas mudou o final do texto, sendo o marido
vítima de homicídio. Nessa adaptação, a mulher se mos-
trou falsamente mais solícita e amável do que no conto,
o marido se mostrou mais agressivo e inconformado com
a mulher e o homicídio aparece como resolução óbvia,
embora não seja esse o objetivo do Teatro do Oprimido,
que quer fornecer para o público, por meio do teatro, os
meios para que o problema seja examinado, e não sua
resolução.

O Teatro do Oprimido em Menina de vermelho a


caminho da lua

O segundo texto em questão, Menina de vermelho a


caminho da lua, trata do universo infantil pervertido pela
desigualdade social. O título alude à cor da roupa de uma
menina de aproximadamente dez anos de idade que in-
tenciona brincar em um parque de diversões, mesmo não
tendo dinheiro para isso.
A história inicia-se com a mãe de duas meninas con-
tratando um narrador a partir de um anúncio de jornal
para relatar o episódio do pseudoencontro entre ela e a
menina de vermelho. Embora a mãe prefira uma mulher
para narrar a história, tem de aceitar um homem, única
pessoa que responde ao anúncio, requerendo que ele use
roupa de mulher para ver se, de alguma forma, terá uma
atitude mais feminina. Assim, o homem escreve todo o
tempo vestindo uma saia rosa e um lenço na cabeça, e com
pouquíssima autonomia, pois a mulher se declara deten-
tora dos fatos, fazendo com que sejam narrados segundo
a preferência dela.
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 159

O conto narra a ida dessa mãe com suas duas filhas a


um parque de diversões em um sábado e, principalmente,
seu encontro com a realidade de uma menina de rua de
dez anos de idade que, por não ter dinheiro para andar na
mesma atração que suas filhas (uma bolha, espécie de pula-
pula), insinua-se sexualmente para o homem responsável
pelo brinquedo para poder brincar de graça. O estilo do
texto descreve o erotismo e a sexualidade precoces de uma
pré-adolescente que usa seu corpo como meio de adquirir
aquilo que ela não pode com dinheiro. Verbos que aludem
à experiência sexual (“penetrar” e “perfurar”, por exemplo)
são uma constante em todo o texto, usados mesmo quando
não descrevem momentos sexuais. Quando acaba o sábado
e essa menina descalça vai embora, sendo observada pela
mãe das duas meninas, sua figura juvenil mancha o ar de
vermelho (referência à cor de sua roupa), indicando, muito
provavelmente, a perda da inocência e o ingresso em um
mundo cruel para os desprovidos de bens materiais.
Na discussão inicial, vários foram os pontos levantados
a respeito desse conto. Nele, há uma menina que precisa
utilizar-se de táticas sensuais e até sexuais para conseguir
o que a falta de dinheiro não lhe proporciona, um homem
sem voz e submisso a uma mulher (na figura do narrador)
para quem trabalha e a discrepância social entre as filhas
da mulher que contrata o narrador e a menina de verme-
lho no parque. Não podemos deixar de falar também da
omissão dessa mulher em relação à situação da menina de
vermelho e da literatura como canal de reação social, pois
é ela o meio que a mulher usa para tornar a sua história
pública e passível de crítica.
Os alunos mostraram-se surpresos principalmente
em relação à prostituição infantil que, nos EUA, não é
tão visível ou noticiada quanto na América Latina. Como
lemos uma tradução para o inglês intitulada Little girl in
red on her way to the moon, o fato de a menina usar de arti-
fícios sexuais se torna ainda mais desconcertante, porque
ela não é apenas uma menina. Na tradução inglesa, ela é
uma menininha, o que acentua ainda mais a pouca idade
160 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

de um ser humano já iniciando na prostituição. Em alguns


momentos, os alunos questionaram a sensualidade precoce
da cultura latino-americana, mas foi necessário indicar para
eles a drástica diferença entre sensualidade e prostituição
como meio de sobrevivência, o que independe da idade,
comumente atingindo as crianças de rua, que muitas vezes
assumem uma vida com hábitos adultos antes mesmo de
chegarem à adolescência.
Por conta da alusão da história à prostituição infantil,
os alunos foram motivados a buscar informações a respeito
do tópico e descobrir a situação desse crime em vários
países. O resultado dessa pesquisa foi apresentado indivi-
dualmente na aula imediatamente posterior. Esse resultado
confirmou a incidência da prostituição infantil nos países
em desenvolvimento, onde há crianças de rua em maior
quantidade. Para a surpresa de muitos, no entanto, também
existe prostituição infantil em grande quantidade nos EUA,
principalmente nas regiões menos desenvolvidas.
Após a discussão da obra literária e apresentação de
sua crítica social, chegou o momento de aplicar a metodo-
logia de Boal ao texto. A turma foi dividida em seis grupos,
de aproximadamente cinco componentes cada. O primeiro
passo para o trabalho em grupo foi definir onde havia a
opressão no texto ou quem era o oprimido e estava lutando
pelo seu lugar na sociedade. Nesse ponto, normalmente
temos acesso a diversas interpretações de uma mesma obra.
Embora tenhamos a menina de vermelho como protago-
nista e possivelmente a única apontada como oprimida
na leitura inicial, existem outras opressões: a opressão
pela qual passa a mãe das duas meninas, que contrata um
narrador para a sua história, exatamente para desabafar e
se eximir da culpa de não ter feito nada para ajudar uma
menina da idade de suas duas filhas. Há a opressão do
homem contratado para narrar a história travestido de
mulher e sem a possibilidade de expressar a sua voz, pois
esta é da mãe das meninas (uma inversão da opressão à
qual normalmente as mulheres são submetidas).
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 161

Assim, os seis grupos mostraram diferentes facetas da


opressão em Menina de vermelho a caminho da lua. Um dos
grupos acentuou a opressão à qual foi submetido o narrador,
salientando o fato de que são oprimidos todos os que agem
sem ter autonomia sobre suas ações. Outro grupo chamou
atenção para a angústia da mãe ao narrar a história por
meio desse homem, pois também nisso via-se uma falta
de liberdade para que essa mulher expusesse seu ponto de
vista livremente, talvez aludindo ao que historicamente
acompanhou (e muitas vezes ainda acompanha) a trajetória
da mulher no Brasil. Outros dois grupos preferiram falar da
menina de vermelho e da precocidade de suas ações por
conta de sua situação social. E os últimos dois resolveram
falar do homem como vítima da prostituição infantil, pois,
como vimos, a opressão a ele não passou despercebida no
conto. Assim, uma situação encenada na aula (uma adap-
tação do texto original) por um desses dois últimos grupos
demonstrou as agruras de um menino que fora expulso de
um orfanato e começou a se prostituir como resultado do
preconceito social, porque ao sair do orfanato ninguém
lhe deu emprego.
Ao lidarmos com a metodologia de Boal, os objetivos
são claros: identificar a opressão e criar meios para que
o oprimido tenha voz para lutar contra ela. As diversas
interpretações da opressão mostradas no conto motivaram
debates sobre a origem da opressão sexual e sobre o que
favorece a sua proliferação dentro do sistema no qual vi-
vemos. Houve, surpreendentemente, uma discussão sobre
quem sustenta a prostituição em países desenvolvidos e em
cidades universitárias americanas, como é o caso de Chapel
Hill, onde esta discussão específica ocorreu. Nessa cidade
universitária de uma área abastada dos Estados Unidos,
há um local que está aberto 24 horas por dia: o University
Massage, onde sempre se deve utilizar a porta traseira (con-
forme aviso fixado na porta). Esta é provavelmente uma
das poucas casas comerciais que nunca fechou as portas
nesta cidade. Depois de uma longa discussão a respeito da
prostituição local, vimos que, muitas vezes, o sistema social
162 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

sustenta a prostituição, sendo esta mantida por pessoas


instruídas e ricas. A partir daí refletimos sobre o que pode
ser feito para minimizar esse poder opressor.

O Teatro do Oprimido e A hora da estrela

O próximo texto em discussão foi o romance A hora da


estrela, de Clarice Lispector. Embora ele tenha sido escrito
e publicado antes de Menina de vermelho a caminho da lua,
sua extensão e diversidade temática explicam a preferên-
cia por estudá-lo no final do curso. Juntamente com Um
sopro de vida, esse romance pretende entender a própria
existência, coincidindo com o final da vida de Lispector, em
1977, que é aludida quando a autora utiliza-se de questões
de autoria no romance. Em vários momentos, Lispector
divaga sobre o poder do autor ao dar vida e matar, poder
concedido por ela a Rodrigo S. M. para dar início e fim a
sua protagonista.
Em A hora da estrela, Clarice Lispector não mantém o
foco em suas protagonistas donas de casa dominadas por
um sistema que subjuga a mulher, à semelhança de outros
de seus contos e romances, colocando-as quase como um
objeto em suas próprias residências. Nessa obra, a autora
deixa o universo da alta classe média para penetrar no
mundo marginal e excluído do nordestino que se muda
para o sudeste em busca de uma vida melhor. Embora sua
protagonista seja novamente uma mulher com o nome
estranho de Macabéa, nome que remete aos revoltosos
macabeus, seu namorado, Olímpico, também é tão excluído
quanto ela. Isso se torna óbvio quando lemos a respeito do
primeiro encontro dos dois, onde se veem quase como em
um espelho, pois reconhecem um no outro sua origem e
trajetória de vida. Mas o foco é mesmo a moça virgem que
bebe coca-cola e tem um nome estranho, uma vida estra-
nha, um namorado estranho. A personagem de Clarice em
seu romance final é quase subumana, mas nem um pouco
irreal para aqueles que conhecem a população brasileira.
Talvez por isso a história de Macabéa seja mais trágica para
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 163

os que a leem no Brasil e mais engraçada para os que a leem


fora do Brasil, mas para os dois grupos a história sempre
mantém seu quê de tragédia e comédia.
O título e seus vários subtítulos (A culpa é minha, O
direito de protestar e Uma saída discreta pela porta dos fundos,
entre outros) indicam que a protagonista é uma vítima so-
cial. Sua hora de brilhar só acontece mesmo no momento
da morte. Seu namorado a trata mal do início ao fim do
relacionamento. Até quando ela pede que ele compre um
café para ela, recebe uma resposta grosseira. E, ao pedir
por açúcar, Olímpico afirma que ela pagará a diferença de
preço, se for o caso.
O mais interessante no relacionamento dos dois são
os diálogos, pois Olímpico se julga inteligente e vencedor,
mas nunca sabe as respostas para as perguntas de Maca-
béa. Na verdade, ele nunca assume sua ignorância em
relação às respostas. Diz que Macabéa só faz perguntas
tolas e, sobre alguns questionamentos da moça, afirma que
as respostas não são apropriadas para uma moça virgem
como ela. A difícil convivência dos dois, muito mais por
parte de Olímpico do que de Macabéa, pois esta sempre se
desculpa por erros que ainda nem cometeu, decreta o fim
do relacionamento. Olímpico a troca por Glória, colega
de trabalho de Macabéa, mulher mais encorpada do que
a colega nordestina e também mais provocante e sensual.
Logo depois, a própria Glória sugere a Macabéa que vá à
casa de Madame Carlota, ex-prostituta e agora cartomante,
para ver o que a aguarda no futuro. E é Carlota que prevê
um futuro brilhante para Macabéa, o que não ocorre em
vida, pois a protagonista morre em seguida.
Após uma breve exposição sobre o romance e a dis-
cussão inicial a respeito da obra com as turmas, há um
interesse maior nos tópicos relacionados à mulher. Isso
porque, da protagonista às coadjuvantes, as mulheres estão
todas em uma situação de opressão social. O tratamento ao
qual é submetida Macabéa pelo chefe, namorado, colegas
de quarto e de trabalho demonstra que ela é vista quase
como um animal, desprovido de qualquer capacidade in-
164 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

telectual, situação explicável pelo seu contexto, pois quase


não frequentou a escola, pratica um trabalho mecânico
(datilografia), que nem executa muito bem. No entanto,
embora muitas vezes a capacidade intelectual da persona-
gem não motive nenhuma pena ou simpatia, o fato de que
Macabéa gostaria de conhecer mais o mundo não pode ser
negado, pois sempre indaga sobre aquilo que quer saber,
ouve ópera e escuta a informativa Rádio Relógio. Glória,
a colega estenógrafa de Macabéa, é um objeto sexual. Sua
sensualidade cultivada tem o único objetivo de fazer com
que ela sempre seja admirada e amparada por um homem,
que nunca fique só. Glória é o que é por causa do outro.
E, por causa de sua preocupação com a aparência, agride
Macabéa, chamando-a de feia. Madame Carlota, outra
mulher de destaque na obra, sugere a Macabéa que se
envolva com uma mulher, pois os homens são agressivos
e ela não está preparada para isso.
Ao passarmos para a leitura da obra sob a perspectiva
do Teatro do Oprimido, houve preferência para uma en-
cenação do relacionamento entre Macabéa e Olímpico,
muito provavelmente pela clareza da opressão. Como a
turma fora dividida em dez grupos de três componentes
cada, procederei ao relato das experiências de apenas
quatro grupos. A minha escolha se dá ao fato de que esses
quatro grupos trataram de situações e de personagens
diversos.
O primeiro grupo focou os diálogos de Olímpico e Ma-
cabéa, embora exagerando a agressão verbal à protagonista.
Esse exagero é muitas vezes necessário para que a opressão
se torne visível, como apontado por Peggy Phelan (1993).
Mas os personagens mantiveram a sua essência: enquanto
Macabéa se achava a principal culpada pela impaciência
de Olímpico e de tudo de errado que acontecia, ele se
manteve como o político do futuro que venceria todo e
qualquer obstáculo.
O segundo grupo mostrou Olímpico e Macabéa como
pessoas quase semelhantes. Os dois atores usaram maquia-
gem e figurino similares e os diálogos chamaram atenção
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 165

para os pontos em comum que já aparecem no romance:


origem, estilo de vida, expectativas (se ele quer ser político,
ela quer ser estrela de cinema) e a exclusão social na qual
vivem, pois são nordestinos morando na zona mais nobre
do Rio de Janeiro.
O próximo grupo salientou a esdrúxula competição de
Glória com Macabéa porque, embora na história Glória seja
mais desejada pelos homens do que sua colega nordestina,
ela está muito longe de atingir o padrão de beleza da mídia:
a cor de seu cabelo é falsa, suas roupas são bregas e seus
namorados são todos do naipe de Olímpico.
O último grupo do qual falaremos ateve-se à relação
de Madame Carlota e Macabéa, sendo as duas considera-
das oprimidas socialmente, embora vítimas de opressões
de naturezas diferentes. Enquanto Madame Carlota teve
de se prostituir para sobreviver quando jovem, Macabéa
tem de aguentar os desaforos de seu chefe, pois, além de
não ser uma boa datilógrafa, dificilmente conseguirá outro
emprego que sustente as suas já tão básicas necessidades.
Mesmo que uma personagem não oprima a outra, na en-
cenação Madame Carlota foi mostrada como a voz social
que indica a pouca esperança para jovens como Macabéa.
É ela quem faz soar a voz que exclui os feios, pobres e
marginalizados.
Os debates que se seguiram focalizaram principalmen-
te na mulher como objeto sexual, no preconceito regional
e no machismo da sociedade. Vimos que, embora esses
problemas não sejam exclusivos do Brasil, há na América
Latina uma tendência cultural ao subjugo do feminino pelo
masculino e o machismo é muitas vezes também percebido
em mulheres como Glória, que necessitam trabalhar sua
sensualidade de acordo com o que é esperado pelos homens
para se sentirem incluídas na sociedade.
Para todas as obras descritas acima, os passos segui-
dos foram escrever e encenar trechos das obras literárias
sem, no entanto, apresentar uma solução ao adaptá-las.
Semelhantemente às peças do Teatro Fórum, o objetivo
das encenações na sala de aula era o clímax do conflito,
166 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

que convida à intervenção e discussão de assuntos interes-


santes dos materiais lidos. De fato, a crise nunca deve ser
totalmente resolvida, pois o Teatro do Oprimido só coopera
com os meios para que isso ocorra socialmente, trazendo
à tona o que gera a opressão e propiciando uma discussão
cênica do problema. Assim, nunca nos preocupamos com
a resolução do conflito, mesmo que encenado. De fato,
nesse ponto do curso não houve interesse em favorecer
a substituição dos personagens, mas em responder a per-
guntas tais como:
1- O que você faria se estivesse no lugar de tal personagem?
2- O que motiva tal personagem a agir desse jeito?
3- Tal personagem é o oprimido?
4- Como tal personagem deve agir para se libertar desse
contexto opressor?

O texto aberto

O processo pelo qual passam as obras literárias acima


descritas é definido por Umberto Eco (1979) em sua teoria
“A poética da obra aberta” do livro O papel do leitor. Eco
afirma que, sempre que um trabalho de arte é recebido
por um leitor ou espectador, há, além da recepção, uma
re-performance deste. Nessa re-performance, uma nova
percepção do trabalho acontece.
Isso pode ser percebido em cada uma das adaptações
demonstradas pelos grupos. Inclusive como já visto aci-
ma, a percepção de quem oprime e de quem é o oprimido
pode mudar dependendo de quem lê a obra ou assiste à
sua encenação.
Para que essa re-performance seja útil para a discussão
de uma obra, sua visualização se torna primordial. Por isso,
no Teatro do Oprimido tal fato é quase uma exigência: após
a divisão das relações de opressão do texto, é necessário
que haja uma teatralização delas. Normalmente, as várias
percepções interpretativas ocorrem exatamente nesta
terceira parte. Antes desse estágio, muitas vezes é difícil
para o aluno entender os textos de literatura brasileira.
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 167

Várias vezes eles julgam os textos de nossa literatura como


negativos ou deprimentes.
Em I love my husband, muitas vezes os alunos não con-
seguem compreender a postura irônica da protagonista ao
descrever sua rotina submissa e afirmar que ama o homem
que mais faz com que ela trabalhe sem parar, sem dar a ela
o carinho e a afeição esperados. Acham que o fato de ela
repetir que o ama indica que está conformada com a situ-
ação. Até mesmo no final, quando a protagonista relembra
o início da união, ela parece conformar-se com toda a sua
vida em comum com esse homem. É necessário conviverem
com essa personagem para entenderem que essa repetição
da frase “Amo meu marido” é muito mais para resultar em
algo positivo do que para retratar algo positivo.
Em A hora da estrela, muitas vezes os alunos não con-
seguem entender Macabéa e suas motivações. Acham-na
ridícula, exagerada e seus problemas parecem não ter
fundamento. No entanto, quando citamos a semelhança
do seu universo com o de personagens de regiões mais
pobres dos Estados Unidos, os alunos passam a entender
a tragédia na vida dessa personagem. Como em todas as
outras obras, a opressão está numa esfera invisível, social
e politicamente apresentada. A partir dessa conclusão, o
mundo que cerca Macabéa passa a ser o que a oprime e ela
passa a ser a vítima. O mundo opressor pode, no entanto,
ser personificado em personagens como Olímpico, tão
nordestino quanto Macabéa, mas que a recrimina e detesta
quase como se esta fosse um ser de outro mundo.
Essa interpretação inicial inesperada também ocorre
quando da leitura de Menina de vermelho a caminho da lua.
Em um primeiro momento, nenhum estadunidense enten-
de o que leva essa jovem menina a se prostituir. Acham que
não há nada que justifique a prostituição de uma criança.
Mas, quando procedemos à análise do contexto social e
econômico latino-americano, o caso muda de figura. Quan-
do fazemos, além disso, uma comparação entre a realidade
da América do Sul e as semelhanças entre essa região e as
regiões economicamente menos favorecidas dos Estados
168 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Unidos, percebemos que as diferenças são ínfimas. Se a


vida da menina que protagoniza a história é resultado de
um descaso histórico com a situação da população perten-
cente à classe baixa e os meninos e meninas de rua, essa
opressão é traduzida de duas maneiras pela mãe que detém
a história: ao se omitir com relação à menina e ao subjugar
o homem que narra a história. E é importante vermos que,
ao escrever sobre a história, o que a mãe realmente deseja
é pôr um fim na dor que sentiu ao compartilhar a situação
da menina e esperar que a história não se repita.
Todas as histórias narradas almejam, portanto, o fim
do subjugo das suas protagonistas, pois, retratando um
universo afeiçoado à opressão, pretendem fazê-lo visível,
para que possa ser mais facilmente combatido. Os três
textos têm, portanto, uma natureza muito mais positiva
do que negativa, ao implicitamente indicar o desejo de
mudança com relação à situação das vítimas de opressão
sexual, econômica e social.

Conclusão

Embora exista campo para divergência quanto à natu-


reza da opressão de uma história, o opressor mais forte só
será achado depois que a cena (simples diálogo que precisa
inicialmente detectar a situação-crise do oprimido, situ-
ação esta da qual ele quer sair) for montada e que outros
(membros da plateia) puderem cooperar para o desenvolvi-
mento da resolução da crise do protagonista. Muitas vezes,
só depois que diferentes cenas sobre diferentes questões
foram montadas e algumas pseudossubstituições ocorreram,
a turma chegou à conclusão de que a opressão não era o
que tinha sido inicialmente pensado.
Os temas de A hora de estrela e Menina de vermelho a
caminho da lua são bastante similares, se pensamos na natu-
reza opressora dos dois. As histórias narram as adversidades
na vida de duas jovens que são vítimas da pobreza, não
vivem com suas famílias e estão à margem da sociedade.
Nas duas obras, por exemplo, a pobreza apresenta a maior
O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 169

fonte de depressão das personagens, pois sua força está


além de um extermínio imediato. Combatê-la está fora do
alcance dos protagonistas e do nosso próprio, como plateia
participativa. Mas a essa conclusão só chegamos depois de
experimentar possibilidades com o texto e ver quem ou o
que oprimia mais certo personagem.
Talvez Macabéa e a esposa de I love my husband tenham
sido as personagens mais difíceis de encenar segundo as
técnicas do Teatro do Oprimido, pois são personagens
cabisbaixas que se comportam de forma oposta ao que nos
leva a pensar, respectivamente, um nome de guerreira e
uma vida fantasiosa de guerreira. Macabéa não reage nem
se irrita nunca. A esposa também não, pelo menos apa-
rentemente. Macabéa se desculpa até mesmo pelos erros
alheios. Quando Olímpico a ofende e termina o namoro
com ela, ela prefere calar-se a ofendê-lo também. Talvez
por isso ela seja completamente desassistida pela sociedade
na qual está inserida e inicialmente indigna de compaixão
na sociedade norte-americana, que não louva as vítimas ou
os indivíduos que não sabem lutar pelos seus direitos.
A utilização do método do Teatro do Oprimido fez-me
perceber, desde o primeiro dia de aula, que muitas dessas
questões jamais seriam tratadas se não dessa forma. Se
houvéssemos apenas feito uma discussão, com perguntas
direcionadas, possivelmente teríamos chegado apenas aos
dois primeiros níveis de interpretação supracitados. Foi o
sucesso dessas primeiras experiências que me motivou a
prosseguir com a aplicação dos exercícios do Teatro do
Oprimido em outros textos.
Para Boal, o teatro só pode ser do oprimido se ele parti-
cipar do seu processo. Da mesma forma, pelas experiências
vistas até a presente data, percebo que a literatura só se
torna objeto de intensa discussão se o aluno puder entrar
no contexto do livro, participando da vida dos personagens
como se fosse a sua própria, o que é exemplificado com o
exercício aplicado em I love my husband, Menina de vermelho
a caminho da lua e A hora da estrela. A discussão também
é motivada pela transferência do contexto da obra para o
170 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

contexto do leitor ou espectador, aplicando uma realidade


literária a uma realidade social, tal como visto nas análises
acima. Somente a partir de um profundo envolvimento
com a obra literária, pela sua imaginação, o aluno contri-
buirá com um avanço no campo interpretativo da obra,
relacionando-a com suas próprias questões e fazendo-a
parte da sua vida.

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O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro... 171

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173

As alunas e os contos: a narrativa


curta brasileira num curso de
escrita criativa nos Estados Unidos
Heloisa Pait*

resumo: Este artigo relata uma experiência de ensino num curso


de pós-graduação lato sensu em escrita criativa nos Estados Uni-
dos, no qual se buscou apresentar os principais autores brasileiros
do conto e da crônica. São examinados os principais desafios para
o ensino de literatura brasileira em tradução para o inglês, tais
como a falta de informação inicial sobre o Brasil e o contexto
institucional. Também é relatado no artigo o crescente interesse
dos alunos pela literatura brasileira e pelos gêneros apresentados.
Conclui-se que a riqueza do conto e da crônica brasileiras de fato
serviu de ponte para o diálogo intercultural almejado.
palavras-chave: literatura brasileira, contos, crônicas, ensino,
Estados Unidos.
abstract: This article narrates a teaching experience in a
graduate program in creative writing in the United States
which introduced the main Brazilian short story and chronicle
authors. The main challenges involved in the teaching of Bra-
zilian literature in translation are examined, such as the lack
of basic information about Brazil and the institutional context.
Students’ increasing interest in Brazilian literature and in the
genres presented is also examined. The article sustains that
the richness of the Brazilian short narrative made possible the
desired intercultural dialogue.
keywords: Brazilian literature, short stories, chronicles, tea-
ching, United States.

Quando cheguei lá, estranhei o vazio do campus, até


liguei para meu irmão. “Ninguém veio falar comigo, o que
*
será?”, perguntei. “É normal, os professores ainda não vol-
Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita taram do verão”, ele disse, sem se preocupar. Mas veio o
Filho (Unesp - Araraquara). outono, uma estação linda nos Estados Unidos, o céu azul,
174 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

o ar fresco. Só não veio aquele diálogo intelectual que eu


esperava. É que eu conhecia a universidade americana por
meio da muito particular New School for Social Resear-
ch, universidade visitada por Habermas e Derrida, Rorty
e Melucci, que já tinha tido no corpo docente Hannah
Arendt e outros. O nosso cotidiano de estudantes de pós-
graduação, discutindo sobre a política, a linguagem e a vida
em Nova York, primordialmente entre os alunos europeus
e latino-americanos e com os professores novaiorquinos,
era de uma riqueza intelectual inesgotável. Eu costumava
dizer: isso aqui é divertido como voltar ao Pequeno Príncipe
na Rua Avaré.
Também conhecia as Faculdades de Artes Liberais. Mi-
nha cunhada estudou no intelectual Swarthmore College.
Eu havia dado uma palestra no hippie Hampshire College,
e lecionado no questionador Lang College. Então, vejo
agora, conhecia uma fatia do ensino superior americano
muito estreita, a das instituições progressistas e disputadas.
Críticas e rigorosas. E pulei no que as pessoas se referem
como “Real America” – não numa América Real qualquer,
que poderia ser bem interessante, com seus valores sólidos,
e sua self-reliance, mas num lugar muito particular que re-
fletia os problemas das pequenas faculdades americanas,
como a evasão e a busca permanente de alunos para cobrir
custos relativamente fixos. Pois, para manter o impecável
imenso jardim e os prédios centenários e amortizar a re-
cente construção do ginásio, era mesmo preciso um bom
dinheiro.
Tive, no primeiro semestre, além da solidão e de uma
grande confusão quanto aos objetivos da instituição, al-
guns bons alunos num curso introdutório sobre o Brasil.
Corrijo-me: tive algumas boas alunas. A instituição era
uma das poucas faculdades americanas que ainda se dedi-
cavam exclusivamente ao ensino de mulheres. Ao longo
do século XIX, muitas delas foram criadas na costa leste,
complementando as faculdades para homens, e no oeste as
novas faculdades já eram criadas para os dois grupos, desta
forma dando acesso ao ensino superior a um grande nú-
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira... 175

mero de mulheres. A maioria dessas instituições tornou-se


mista ao longo do século XX, tais como Radcliffe College,
que se juntou a Harvard College, mas outras continuam
admitindo apenas mulheres, como Smith College, uma
das mais concorridas faculdade americanas. Na segunda
metade do século XX, a justificativa para continuar man-
tendo o ensino separado era que as mulheres teriam me-
lhores condições de ensino caso não tivessem de disputar
a atenção dos professores com os homens em sala de aula.
Era um argumento de peso decrescente, mas, de qualquer
modo, eu estava dando aulas numa instituição que havia
escolhido manter a tradição.
Mas o modo como a instituição conseguia financiar a
tradição era abrindo uma série de cursos de pós-graduação
lato sensu em áreas mais aplicadas, abertos aos homens.
Ainda assim, talvez pela natureza dos cursos ou pela tradi-
ção, a maioria dos alunos eram mulheres. Como disse, no
outono tive algumas alunas muito boas, que escolheram
escrever sobre aspectos muito interessantes da cultura
brasileira, como as tentativas de reforma do ensino médio
ou sobre a participação de jovens artistas plásticos em co-
munidades na internet. O trabalho que mais me chamou a
atenção foi sobre um assunto que eu mesma desconhecia: a
existência de um cinema mudo brasileiro muito ligado com
tendências europeias da época, mas pouco conhecido tanto
no Brasil como nas pesquisas no exterior. Mas as alunas
capazes de produzir trabalhos autônomos eram poucas;
grande parte tinha dificuldades com a leitura e a escrita e,
diferentemente de nossos alunos, uma certa apatia na sala
de aula e desinteresse sobre o mundo.
Não eram as únicas; entre os professores detectei tam-
bém uma falta de curiosidade sobre o Brasil, obviamente
com exceções. Afinal, eu estaria ali para isso, para trazer
um pouco do Brasil para o campus. A instituição tinha um
programa já antigo, no qual a cada ano um país determi-
nado era escolhido; um professor visitante era chamado e,
além disso, havia palestras e eventos sobre o país e a região.
Aquele era o ano do Brasil. Eu, particularmente, acho o
176 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

Brasil bem interessante, e acho que nisso tenho vasta com-


panhia além das fronteiras nacionais. Então, não entendia
bem a falta de interesse sobre o meu país. Eu assuntava: por
que escolheram o Brasil? Como esse programa de estudos
internacionais se coaduna com os objetivos educacionais
dirigidos a esse corpo discente? Não tinham respostas, e
como já virou clichê falar de experiência kafkiana, vou
evitá-lo, mas a verdade é que eu estava bem perdida.
A cidade onde a faculdade se localizava era parte do
que os americanos chamam de Rust Belt, o Cinturão da
Ferrugem, região americana do meio-oeste que sofreu
com o colapso da indústria pesada ocorrido na segunda
metade do século XX. A desindustrialização trouxe para a
região problemas sociais enormes. Em Detroit, por exem-
plo, esse processo econômico, aliado a tensões raciais e
erros crassos de planejamento urbano, ainda se reflete no
cotidiano difícil de populações inteiras. Mas há também
o problema simbólico: como construir uma identidade
urbana a partir de uma não identidade? “A cidade que
não é do automóvel”, ou “a cidade que não é do aço” são
títulos difíceis de se portar. Todos temos um pouco disso,
os paulistanos com sua cidade que não é da garoa ou os
cariocas com sua cidade que não é capital. Mas redefinir a
identidade de uma cidade é importante; em certa medida
eu vivi essa indefinição como deslocamento, eu não sabia
exatamente onde estava. E só conseguia me localizar no-
vamente quando viajava pelo país e encontrava pontos de
referência antigos ou explorava novos.
Foi nessa situação de deslocamento urbano e isolamen-
to intelectual que o semestre da primavera começou; eu
daria aulas apenas para alunos do programa de escrita cria-
tiva, em nível de pós-graduação. Algumas alunas iriam, ao
fim do semestre, no verão do hemisfério norte, passar duas
semanas no Brasil, numa viagem patrocinada pela escola
e organizada por uma instituição brasileira reconhecida,
especializada nesse turismo acadêmico. Os programas de
intercâmbio são marca registrada das universidades ame-
ricanas. Alguns são bem rigorosos, têm a duração de um
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira... 177

semestre e são precedidos por estudos de línguas e cursos


preparatórios e envolvem cursos regulares ou estágios em
países estrangeiros. Outros são apenas passeios pelo Caribe.
Esse me pareceu ser um turismo cultural inteligente para
alunos com interesse em expandir seus horizontes mas sem
o tempo de preparo anterior na língua e história do país.
Sobre os cursos de escrita criativa, são também comuns
nos Estados Unidos, tanto na graduação como na pós. São
cursos para quem quer escrever ficção ou não-ficção, que
incluem literatura mas que têm um sentido mais prático
que analítico. Os alunos podem aí se especializar em lite-
ratura infantil, literatura de viagens, e assim por diante.
Pela turma que peguei, não pude descobrir exatamente o
objetivo profissional do curso; a maior parte dos alunos
estava em momentos de transição e buscou o mestrado
como forma de se rearticular.
Propus um curso sobre contos e crônicas; escrevo
contos eu mesma, e sou fascinada pela narrativa curta
que fica em nossas mentes muito depois de terminada a
história. Além disso, a narrativa curta brasileira tem um
lugar muito especial para nós leitores brasileiros, que temos
acesso a elas nos jornais e revistas. Ela se alimenta e faz
parte de nosso cotidiano. Ao longo de minha estada nos
Estados Unidos, eu quis obviamente mostrar um Brasil
verdadeiro, com contribuições à cultura mundial, que
fosse além dos estereótipos tropicais. Então, nada melhor,
pensei, do que uma área da cultura na qual nós temos uma
certa “vantagem comparativa”, como é o caso da narrativa
curta brasileira. Tive de negociar o conteúdo do curso a
cada aula, pois dividia o curso com outra professora, que
queria dar uma visão mais abrangente da cultura brasileira,
incluindo o cinema, a política, a história e a literatura. Eu
queria falar dos contos. Queria mostrar por meio deles
alguma coisa do que somos.
Não que houvesse estereótipos nas salas de aula. A
dificuldade na graduação foi, na verdade, sua ausência.
Todos nós conhecemos os estereótipos antigos, Zé Carioca
e Carmen Miranda. Depois há os novos, Brasil do desma-
178 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

tamento e dos meninos de rua. Reais todos, talvez, mas


parciais, incompletos, mal-entendidos. Entre as esquerdas,
há também a construção mítica do presidente socialista que
se contrapôs à ordem neoliberal. Mas lá naquela faculdade
eu vi a ausência de informações sobre o Brasil. O que im-
pressionava era que o Brasil fosse tão grande, diziam, maior
que a Venezuela. Tudo o que eu falasse era novidade, pois
o Brasil praticamente não existia no imaginário de muitos
alunos, que língua mesmo falavam ali? No curso de pós,
entretanto, havia informações dispersas prévias. Havia o
Paulo Coelho, havia a Clarice Lispector. Havia a presença
de uma comunidade negra importante. Enfim, havia re-
ferências poucas mas queridas que fizeram aqueles alunos
se inscreverem em meu curso. Na primeira aula, notei que
quase nenhum aluno tinha interesse específico sobre o
conto ou a crônica. Nosso elo, então, era o interesse difuso
naquele país latino-americano desconhecido e uma vaga
curiosidade sobre o conto e a crônica.
Montei o curso de modo muito tradicional, apresen-
tando cronologicamente os principais autores da narrativa
curta brasileira, que estão, em sua maioria, traduzidos. Um
bom apanhado dos contos está numa antologia da Oxford
University Press (Jackson, 2006). Estão ali Machado de
Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Hilda Hilst,
Moacyr Scliar, Milton Hatoum e tantos outros. Senti
falta de Márcia Denser apenas, que encontrei em outras
traduções (Sadlier, 1992). Já nas crônicas é diferente; não
há antologias de crônicas que reúnam vários autores. As
crônicas de “Life as it is”, de Nelson Rodrigues (2008),
recentemente publicadas, são espetaculares nos dois sen-
tidos; diferem muito, por exemplo, das crônicas de Ignácio
de Loyola Brandão que lemos às quintas no Estadão. Há
também crônicas de Clarice Lispector em “Foreign legion”
(Lispector, 1992), que reúne contos de “A legião estran-
geira” e crônicas de “Para não esquecer”. As crônicas são
maravilhosas, mas, assim como no caso anterior, não são
representativas do gênero. Então, para falar das crônicas
havia um obstáculo muito concreto.
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira... 179

A respeito dos contos, a dificuldade era de natureza


distinta. Os principais autores estavam presentes na anto-
logia da Oxford e também em inúmeras outras traduções.
Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e
Moacyr Scliar estão bem traduzidos, nos romances e tam-
bém nos contos. Mas, por razões práticas, eu dava prefe-
rência aos contos da antologia; a biblioteca tinha poucos
recursos e era preciso fazer escolhas. E os contos ali tinham,
em geral, um tom sério e pesado que não trazia a leveza da
prosa brasileira. Parecia que os textos mais densos, mais
“profundos”, se qualificavam melhor para a tradução que
o cômico e o banal. Então, de Mário de Andrade, lemos
o triste “Piá não sofre? Sofre”, por exemplo. E nós brasi-
leiros não fazemos desse banal a nossa melhor poesia? A
uma certa altura, uma aluna perguntou se era tudo assim
pesado na literatura brasileira. Tínhamos acabado de ver
o filme “Vidas secas”, por sugestão da outra professora.
Eu disse que não, de jeito nenhum, mas isso me motivou
a continuar tentando. Tentando o quê?
Tentando, acredito, forjar alguma comunicação real
que havia me escapado nos meses anteriores. Lembro que
numa das primeiras semanas na cidade fiz uma feijoada
para algumas pessoas, que vieram polidamente, comeram,
conversaram sobre a faculdade e foram embora sem me
deixar com a sensação de plenitude que tenho depois de
cozinhar para amigos e conhecidos no Brasil ou no exterior.
Já adianto ao leitor, pois não sou muito de suspenses, que
a última feijoada, que fiz por ocasião de meu aniversário,
ao final de minha estada, foi bem diferente. Avisei que o
horário era o brasileiro, ou seja, pedia que chegassem a
partir da 1 da tarde, e não pontualmente nesse horário.
E para cada um eu pedi que trouxesse uma coisa: o arroz,
os pratos, cadeiras extras, etc. Fiz a couve e a feijoada,
em três panelas distintas: uma para os vegetarianos, uma
sem carne suína, pois um dos meus melhores amigos na
faculdade era muçulmano, e outra com joelho de porco e
costelas. Uma colega me disse, depois das caipirinhas, em
volta dos convidados aboletados no apartamento pequeno,
180 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

que nunca havia se sentido tão à vontade. Notei ali o tanto


de esforço que há em nossa descontração.
Ficou espremido, eu deveria ter dado destaque, o
maravilhoso “Memórias de um sargento de milícias” (Al-
meida, 2000). Não são contos nem crônicas, é na verdade
um romance escrito em capítulos publicados em série, mas
quem é que vai dizer que não são boas crônicas imagina-
das? E havia tradução. Era no começo do semestre, e eu
ainda me adaptava ao curso a quatro mãos. Mas acho que
o texto de Manuel Antônio de Almeida fez tanto sentido
aos alunos como a primeira feijoada que ofereci aos colegas.
Pareceu à classe que o autor ria de algo que não deveria
ser piada, as tantas violências domésticas que pipocam no
tempo do Rei. A outra professora notou a ausência dos
negros e pobres na narrativa. Eu fiquei lavando os pratos
de uma feijoada sem festa. Machado os surpreendeu, pela
literatura e também pela modernidade de um Brasil antigo,
com leis, advogados, mulheres reflexivas.
Discutimos um pouco a natureza do conto, sobre
seus recursos, desafios e desfechos, a partir de Bosi (1994)
e Piglia (2000). Mas, nessas alturas, pensar o conto era
uma viagem minha, que acredito pouco interessava aos
alunos, ainda se familiarizando com a narrativa, ou com a
professora, interessada nas relações entre a realidade social
e o caráter político da arte brasileira. Pedi aos alunos que
escrevessem um conto; deveria conter um encontro entre
um brasileiro e um morador local, num dia importante
para a cidade. O encontro deveria ter algo de erótico e de
conflituoso, e poderia estar no fim ou no início da narra-
tiva. Queria que eles se sentissem confortáveis no gênero,
e também que por meio do conto começassem a pensar
sobre as diferenças entre as culturas americana e brasi-
leira. O resultado foi maravilhoso: imigrantes brasileiros
discriminados que falavam palavrão, americanos que de
repente se lembravam das comidas e cheiros brasileiros,
encontros, choques. Claro, eu também queria ver no papel
as minhas próprias emoções. Buscava um elo. E encontrei
um primeiro elo.
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira... 181

Clarice foi fácil. Todos adoraram. As traduções eram


boas, cobriam muita coisa. Isso queria dizer que eu podia
escolher meus contos favoritos, e apresentá-los com paixão
(Lispector, 1984). Assim como com Machado, a surpresa
de uma escrita sofisticada, que falava à alma. Duas alunas
em particular usaram o texto de Clarice para uma jornada
de descoberta que encantou a todos, explorando o olhar
perscrutador de Clarice e o modo sutil como ela define os
ambientes externos e a vida interior dos personagens. O
perigo de Clarice é cairmos numa deferência exagerada à
poesia e virtuosidade da autora. Então, depois, ao final de
uma das aulas sobre a autora, pedi que formassem peque-
nos grupos, escolhessem um pequeno trecho de um dos
contos discutidos e elaborassem uma pequena cena. Eles
toparam. E rimos com a cena final de “Amor”, com o ma-
rido atordoado sem compreender a fuga da esposa etérea,
interpretada por uma aluna em quem eu via algo da pró-
pria autora. Rimos com outras cenas também, quebrando
a solenidade do texto, apropriando-nos da humanidade
daqueles personagens intensos da autora.
Achei Guimarães Rosa difícil de apresentar. Algo se
perde na tradução do autor, não só pelo uso particular
que faz da linguagem, mas também pela musicalidade do
texto (Pessôa, 2006). Recortei alguns trechos de “Grande
sertão: veredas” (Rosa, 1963) que tinham jeito de conto,
e contei para eles “A hora e a vez de Augusto Matraga”,
que não achei traduzido. Sim, contei. Pois o conto não
traz, junto a sua modernidade, um diálogo com a tradição
oral? Então por que não simplesmente contar as histórias
de que eu gostava mais? Por que me prender a traduções
selecionadas? Quando havia coisas que eu queria dar, mas
não havia tradução, eu contava. A biblioteca da universi-
dade estadual local, por exemplo, tinha uma coletânea de
contos regionais maravilhosa, organizada por Graciliano
Ramos (1966). Uma delícia. Então, passei tardes lendo as
histórias e escolhi algumas para recontar. Fiquei animada.
Tensa também, era um desafio. Eu conseguiria trazer o
182 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

texto para a sala de aula? Recontar em inglês uma história


querida? Com alguns, consegui; com outros, não.
Mas tudo é questão de treino. Para as crônicas, além
das de Clarice e de Nelson Rodrigues, também escolhi al-
gumas da coletânea “Cem melhores crônicas brasileiras do
século” (Santos, 2005). E recontei. Muitas tristes, algumas
cômicas, fiz rir, emocionei. Aquele elo que eu buscava,
aquele diálogo em qualquer forma que fosse, eu o via sendo
construído, talvez por mim. Talvez por uma turma aberta e
interessada. Mas a partir do conto e da crônica brasileira.
E isso me tocava profundamente; é impossível descrever o
valor que passamos a dar à comunicação humana, expressa
por meio de atos cotidianos às vezes até singelos, quando
dela somos privados. Naquela classe – fazendo rir e chorar
com histórias –, eu voltava à minha humanidade normal
de quem fala e escuta. No fim do curso agradeci aos alu-
nos, claro, mas agradeço agora a Clarice e Rosa; a Scliar e
Machado; a Denser e Ângelo. Agradeço aos tradutores e
editores também, sem dúvida conscientes de serem pontes
precárias nesse importante diálogo entre as gentes. Estavam
todos eles ali presentes nas aulas, todos eles lá. Sem eles,
éramos estranhos, com eles nos conhecemos; sem eles,
éramos sem graça; com eles, viramos personagens fascinan-
tes de um teatro próprio. Sem eles, eu, ao menos, não era
gente, quanto mais professora. Com eles, virei professora
de novo, falando para uma audiência interessada de um
lugar que eu já havia visitado. Então, agradeço.
O risco que eu havia corrido era de ter virado naquela
sala de aula uma simples nativa que conhecia os hábitos
vigentes, o que havia acontecido em outros ambientes da
faculdade anteriormente. Era um pouco ofensivo, mas aci-
ma de tudo frustrante; numa reunião de preparação para a
viagem ao Brasil, por exemplo, me chamaram para conver-
sar com os alunos, alguns dos quais estavam matriculados
em meu curso. Falei sobre a história política recente, sugeri
a leitura de alguns livros para quem quisesse se aprofundar
e, como sempre quando falo do Brasil, me entusiasmei.
Mas as perguntas foram sobre aspectos corriqueiros da
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira... 183

cultura nacional: “No Brasil, as pessoas jantam tarde?”


Respondi que jantávamos no horário normal; “aqui é que
jantam um pouco cedo,” eu disse... Quanto ao meu curso,
os alunos se matricularam num curso de uma brasileira;
entenderam que ali havia um diferencial. Mas, quando a
outra professora se juntou ao curso – bem, uma dinâmica
em que eu fosse a nativa e ela a antropóloga podia ter se
instaurado. E desse lugar de nativa, inconscientemente
familiar a minha própria cultura, eu não teria podido falar
dessa literatura de que eu gosto e que é minha.
Algo que me encanta na literatura brasileira é o tex-
to macio, o texto sem asperezas. Mesmo Márcia Denser,
irônica, crítica de tudo, tem aquele amor ao detalhe, a
uma certa delicadeza textual. A palavra que eu usava em
aula é essa: nossa cultura é soft, lembrem disso. Pode ser
violenta, pode ser mordaz, mas tem uma maciez que você
não encontra na literatura americana. Uma literatura
que anda de chinelo, e não de salto alto, fazendo barulho,
pretensiosa. Mesmo o texto filosófico de Clarice reforça o
lado banal das grandes questões humanas. Mas isso pode
se perder na tradução. É algo intangível, e daí talvez as
escolhas, pelos editores, pelos textos que não se calquem
apenas nessa leveza, que tragam o drama pesado ou polí-
tico. Então eu sentia que era eu que devia tentar explicar
isso, da melhor forma possível. Quando dei as aulas sobre
as crônicas, um pouco disso ficou evidente. Os alunos se
encantaram com uma literatura sobre e também disponível
no cotidiano dos leitores de jornais. Com a capacidade
de olhar o cotidiano de um jeito rico – ou com a riqueza
de nosso cotidiano, não sei mais. Mas eu também trouxe,
numa aula, uma seleção de chorinhos que, eu esperava,
trouxessem a musicalidade de nossa língua e de nosso texto
que a tradução nunca poderia trazer.
Quando, na metade do semestre, os alunos apresen-
taram os projetos de seus trabalhos, me vi num dilema.
Sou naturalmente uma professora crítica, e nesse caso em
particular eu via muitos problemas nos trabalhos, que me
pareciam mais leituras neutras comentadas que exercícios
184 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

de interpretação que trouxessem novos aspectos dos textos


e autores lidos. Mas será que eu tinha autoridade para cri-
ticar os trabalhos, nessa classe dada em colaboração? E será
que os alunos me escutariam, ou me viam apenas, como
disse anteriormente, como a nativa de plantão? Esse receio,
paradoxalmente, foi muito produtivo. Pois meu espírito
crítico teve de ser controlado, e isso não é mau... Comecei
a aula perguntando se eles gostariam de ter minhas críticas.
Eles assentiram. E lasquei uma boa aula sobre a noção de
interpretação de Peirce. Sobre a produção de sentido no
jogo simbólico. Não falei dos trabalhos, dos projetos. Falei,
indiretamente, que queria saber mais sobre as leituras dos
alunos sobre os textos, sobre interpretações corajosas, sobre
o que os contos e crônicas realmente haviam falado para
eles, pois cada texto diz uma coisa para cada leitor. Quem
era aquela Clarice ali, que estava sendo produzida naquela
sala de aula daquela faculdade daquela cidade do Cinturão
Enferrujado americano? Que esquecessem a Clarice que
eles achavam que os professores achariam a correta. Na
aula seguinte, quando comentamos os projetos propria-
mente ditos, os alunos mesmos – eu tinha na verdade um
aluno e o restante da pequena classe formado por alunas
– trouxeram tudo o que tinham pensado em escrever mas
não consideraram acadêmico o suficiente.
Uma coisa que me surpreendeu na classe foi a curio-
sidade sobre a filosofia da linguagem e as teorias sociais.
Haviam me dito, antes do curso, que os alunos de pós
tinham dificuldades de leitura e escrita comparáveis às dos
de graduação. Sou sempre otimista quanto aos alunos, mas
minha experiência no semestre anterior tinha me revelado
uma falta de familiaridade com a investigação intelectual
que eu não associava com o ambiente universitário. Então
me surpreendi. Ali estava uma turma que queria usar os
textos de Clarice para compreender o existencialismo,
e de Machado para entender a relação entre a raciona-
lidade e as crenças populares no Brasil do século XIX.
Alguns tinham já familiaridade com estudos culturais e
feminismo, mas para outros alunos aquele curso abriu as
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira... 185

portas para Merleau-Ponty, Simmel e outros pensadores


bastante sofisticados. A ponte, novamente, foram aqueles
nossos autores brasileiros, cotidianos e complexos, banais
e sofisticados: falar da existência humana a partir de um
ovo que se quebra dentro da rede.
Resolvi dar uma aula sobre a literatura judaica no
Brasil (Waldman, 2003), mas fazendo pontes com as li-
teraturas de outros países também, mostrando o caráter
diaspórico da literatura brasileira, na qual também víamos
escritores de origem árabe, japonesa e, obviamente, afri-
cana. Discutimos como no Brasil e nos Estados Unidos as
identidades nacional e étnica aparecem na literatura de
modos distintos, mas não opostos, pois nos dois países as
identidades se enriquecem, mesmo quando em tensão.
Foi uma aula já ao final do curso, e isso foi bom: saímos
então do lugar chamado Brasil para situarmos o Brasil no
mundo, recebendo influências mil, e com pontes indo
também a lugares mil. Os alunos ficaram encantados com
aquelas influências literárias antigas que entraram no Brasil
mas também na literatura europeia e americana; era tudo
novidade.
Também ao final do curso, examinamos a literatura
escrita por mulheres negras, e aí o processo foi inverso.
Havia apenas uma coletânea disponível (Alvares e Lima,
2004), mas o tema geral da situação da mulher negra nas
Américas era de conhecimento de todos. Então, mesmo
com pouco material, a discussão foi rica e acalorada. A
faculdade havia convidado, no semestre anterior, como
parte dos eventos do Ano do Brasil, a poeta amazonense
Astrid Cabral, cuja palestra algumas alunas haviam visto. E
isso serviu de ponte para falar de Milton Hatoum e de sua
Manaus misturada, indígena, árabe, brasileira. Enfim, ao
final do curso não havia mais tempo para se aprofundar nos
autores, mas sim para introduzi-los e esperar que aquele se
constituísse num primeiro contato com essa nossa literatu-
ra. Funcionou? No todo, penso que sim. Ao final do curso,
os alunos apresentaram os trabalhos para a classe, trabalhos
que de um modo ou outro já conhecíamos a partir de lei-
186 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

turas e discussões anteriores. Todo o material apresentado


era colocado no ambiente educacional virtual Moodle, o
que permitia essa troca de modo fácil e intuitivo.
Não consigo terminar este artigo antes de falar breve-
mente dos trabalhos. Um aluno fez uma análise filosófica
de “O ovo e a galinha”, de Lispector. Duas alunas escre-
veram também sobre a autora. Uma escreveu sobre uma
experiência de infância que se assemelhava ao olhar de
estranhamento de Ana, no conto “Amor”, que a leitura de
Clarice evocou. A outra, a partir de conversas com leitores
de seu círculo de amizades, procurou investigar que tipo
de reflexão os textos de Clarice evocavam. Um trabalho
que debatemos muito em aula foi escrito por uma aluna
caribenha, que procurou refletir sobre sua própria cultura
repleta de misticismos a partir do conto de Machado “A
cartomante”. Uma excelente aluna de graduação que se
matriculou no curso escreveu sobre os dilemas de gênero
que apareciam em Machado e também em Nelson Ro-
drigues. Foram aulas de troca intensa, pois a essa altura
todos se sentiam um pouco autores uns dos trabalhos dos
outros.
O que ficou dessa experiência? Que ensinar literatura
brasileira no exterior é um trabalho coletivo. Eu tinha a
sensação de uma profunda solidão, é certo. Mas estavam
lá comigo não apenas os autores que fizeram a nossa lite-
ratura, como também seus editores e tradutores na língua
inglesa. Tinham certamente um olhar distinto do meu;
viam valor em textos que não me chamavam a atenção, e
às vezes deixavam de lado algumas gemas. Mas estavam lá
na sala de aula, me ajudando a construir essa ponte que é
um dos motores da literatura, o compartilhar de experiên-
cias. Também aprendi que o contexto no qual esse ensino
se dá é importantíssimo. Sem alguma referência inicial,
mesmo que inconsistente, é difícil tocar adiante o projeto
educacional. Na classe em que havia ideias iniciais sobre o
Brasil, como foi o caso desse curso de literatura, é possível
ir adiante, elaborar, avançar. Em outras, é possível o apren-
dizado individual, mas talvez não o coletivo. Além disso, há
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira... 187

também as ideias iniciais da instituição e dos colegas sobre


o Brasil; o que esperavam de mim? Como imaginavam um
professor brasileiro? Lembro-me que, em uma conversa
sobre a crise econômica, uma colega fez um aposto para
explicar quem era Keynes. Fiquei me perguntando qual era
o Brasil que ela imaginava, onde professores universitários
da área de ciências humanas não conheciam Keynes. Ou
qual era o mundo. Essas expectativas todas entram na sala
de aula, e acredito que bater de frente com elas não seja
a melhor alternativa, mas sim ir sutilmente as aceitando
e subvertendo.
Pois por que não às vezes ser um pouco a brasileira pa-
lhaça, estereotipada? Num belo dia resolvi traduzir o poema
“E agora, José?”, de Drummond. Fiz um primeiro esboço,
mostrei a um poeta novaiorquino com quem tenho um óti-
mo diálogo literário e pessoal, dei umas mexidas e pronto.
Coloquei o poema em nosso site na internet, mas numa
aula também coloquei o próprio Drummond declamando
o poema, obviamente em português. Depois li o poema
em inglês, para que eles compreendessem o significado. E
aí começou a brincadeira: li o poema em português, para
que eles se familiarizassem com a língua. Alguns alunos
faziam um curso bem introdutório, de conversação, com
uma brasileira que morava na cidade e, além de dar aulas
de línguas, também cantava na ópera e lecionava voz. Mas
a maioria não conhecia nada da língua. Depois, li o poema
imitando o sotaque baiano, claro que explicando que era
apenas uma imitação de paulista, nada mais. Os alunos
riram. Uma até confessou que agora se dava conta que
seu professor de capoeira falava mesmo daquele jeito, não
estava tirando sarro dela nas aulas com aquela entonação
vagarosa, musicada. E até tentei uma imitação de carioca,
que não funcionou tão bem.
A professora com quem dividi o curso queria apre-
sentar um panorama geral sobre a cultura brasileira, e eu
queria examinar o conto, a produção literária brasileira,
pois acredito que a partir de nossas realizações é que pode-
mos nos reconhecer como iguais, fugir do exame desigual
188 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

de um povo sobre o outro. Mas de certo modo eu também


apresentei esse panorama geral, trazendo a música, o sota-
que, os meus próprios contos, as minhas histórias pessoais
e a minha vivência. De certo modo, eu fui um pouco a
nativa... Uma nativa de óculos, digamos.
Consegui dar um curso sobre o conto como forma
literária? Isso fica em aberto. Muitos alunos disseram se
surpreender com a forma sintética e evocativa que nós
dominamos tão bem. Mas não sei se afirmo que realmente
investigamos a forma. Acho que ela serviu de elo entre nós,
de um modo que outra forma talvez não o fizesse. O roman-
ce sempre seria comparado ao que os alunos já conheciam
da literatura inglesa e americana. O conto disse para eles
que há outras formas de pensar, de sentir, de viver. O con-
to brasileiro talvez tenha sido porta de entrada para uma
sensibilidade distinta – e para uma sociabilidade distinta
também. Vieram em maio ao Brasil. O que viram? Com
quem conversaram? Como se sentiram? Não sei. Sei que,
para os alunos que fizeram esse curso, as vozes de nossos
escritores estavam com eles, onde quer que tenham ido.

Referências
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Oxford University, 2000.
Alvares, Miriam; Lima, Maria Helena. Women righting: afro-
Brazilian women’s short fiction. Mango Publishing, 2004.
Bosi, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix,
1994.
Jackson, K. David. Oxford anthology of the Brazilian short story.
Oxford: Oxford University, 2006.
Lispector, Clarice. Family ties. Austin: University of Texas,
1984.
_____. Foreign legion: stories and chronicles. ������������������
New Directions Pu-
blishing Corporation, 1992.
PESSÔA, André Vinicius. Uma poética da musicalidade na obra de
João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado)
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira... 189

– Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Piglia, Ricardo. Formas breves. Barcelona: Anagrama, 2000.
Ramos, Graciliano. Seleção de contos brasileiros. Rio de Janeiro:
Edições de Ouro, 1966.
Rodrigues, Nelson. Life as it is. Host Publications, 2008.
Rosa, João Guimarães. The devil to pay in the Backlands. Knopf,
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Sadlier, Darlene J. One hundred years after tomorrow: Brazilian
women’s fiction in the 20th century. Indiana University, 1992.
Santos, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
Waldman, Berta. Entre passos e rastros. São Paulo: Perspectiva,
2003.
Pareceristas

Arnaldo Franco Junior


Benito Martines Rodriguez
Clarissa Jordão
Eurídice Figueiredo
Isabel Jasinski
Luís Bueno
Luiz Carlos Simon
Mauricio Mendonça Cardozo
Marilene Weinhardt
Paulo Soethe
Renata Telles
Silvana Oliveira
Susana Scramin
191

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úscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de
rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a).
O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da
sigla;
192 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico


e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida
de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado
em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de
margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo
3 linhas e no máximo 10;
- Palavras-chave – dar um espaço em branco após o re-
sumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto
10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito,
itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5
palavras-chave;
- Abstract – mesmas observações sobre o Resumo;
-  Keywords  – mesmas observações sobre as palavras-
chave;
- Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento
simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo
entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas,
quando houver;
- Parágrafos – usar adentramento 1 (um);
- Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a
primeira letra em maiúscula, sem numeração;
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etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do
padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo
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acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10.
- Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras
em língua estrangeira – itálico.
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seguidas das seguintes informações entre parênteses: so-
brenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano
de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com
recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte
11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobre-
Normas da revista 193

nome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de


publicação e página(s).As citações em língua estrangeira
devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé.
- Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das
referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas
e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando
constituírem textos já publicados, devem incluir referência
completa, bem como permissão dos editores para publi-
cação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas
quando absolutamente necessários.
- Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos
textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS
deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento,
duas linhas antes da primeira entrada.

Alguns exemplos de citações 


• Citação direta com três linhas ou menos 
[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e
sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é
o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa
única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de
nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)
• Citação indireta 
[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992),
não há qualquer reivindicação de possíveis influências
ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta
que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética
drummoniana.
• Citação de vários autores 
Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos
e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry,
1991; Borges, 1998; Campos, 1969)
• Citação de várias obras do mesmo autor
As construções metafóricas da linguagem; as indefinições;
a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confron-
to entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens
194 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009

em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários


são todos componentes de um caleidoscópio que põe em
destaque o valor estético da obra de Saramago (1980,
1988, 1991, 1992)
• Citação de citação e citação com mais de três linhas 
Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um
trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...]
o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara
em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e,
de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva
inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes
não havia, concebendo que todo o homem tem potência
de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999,
p. 148)

Alguns exemplos de Referências


• Livro
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Para-
doxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
• Capítulo de livro 
BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In:
JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários
e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional,
o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33.
• Dissertação e tese
PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção
poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004.
Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas, Universidade de São Paulo.
• Artigo de periódico
GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma bre-
ve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57,
2004.
Normas da revista 195

• Artigo de jornal 
TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São
Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.
• Trabalho publicado em anais 
CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Ma-
ria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e
Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.
• Publicação on-line – Internet 
FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e
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Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Dis-
ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517-
106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6
fev. 2009.

Observação Final: A desconsideração das normas implica


a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão
devolvidos ao(s) autor(es).

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