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Escrita, som, imagem:

perspectivas contemporâneas

Márcia Arbex
Miriam de Paiva Vieira
Thaïs Flores Nogueira Diniz
Organizadoras
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© Márcia Arbex; Miriam de Paiva Vieira; Thaïs Flores Nogueira Diniz
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização da editora.
As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus autores e não expressam
necessariamente a posição da editora.

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E73

Escrita, som, imagem: perspectivas contemporâneas / organizadoras Márcia Arbex, Miriam


de Paiva Vieira, Thaïs Flores Nogueira Diniz. - 1. ed. - Belo Horizonte [MG]: Fino Traço,
2019.

276 p. : il. ; 22 cm.


Inclui bibliografia
ISBN 978-85-8054-400-8

1. Intermidialidade. 2. Comunicação de massa e as artes. I. Arbex, Márcia. II. Vieira,


Miriam de Paiva. III. Diniz, Thaïs Flores Nogueira.

19-54823 CDD: 709.05 CDU: 7.038.53

Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644

Conselho editorial Litteris


Jacynto Lins Brandão (UFMG)
Ana Zandwais (UFRGS)
Beth Brait (PUC/SP)
José Luiz Fiorin (USP)

Fino Traço Editora ltda.


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Belo Horizonte. MG. Brasil | Telefone: (31) 3212-9444
finotracoeditora.com.br
Sumário

Introdução 7

Parte I: Transformações

1 - Nostalgia das mídias no cinema latino-americano contemporâneo 15


James Cisneros
2 - Transcriações visuais de Grande sertão: ilustrações e quadrinhos recriam

o pacto rosiano 31
André Melo Mendes; Mírian Sousa Alves
3 - Revisitando Shakespeare em House of Cards 45
Brunilda Reichmann
4 - Do Facebook para o livro : redes sociais digitais como espaço para a escrita

(poética) do cotidiano 63
Vanessa Cardozo Brandão

5 - Samambaia: uma casa (trans)formada por poesia e romance 83


Miriam de Paiva Vieira
6 - Interações intermidiáticas em música, literatura e pintura: Schubert, Müller
e Friedrich 103
Mônica Pedrosa de Pádua; Cecília Nazaré de Lima

7 - Do sagrado ao profano: as “Ceias” de Yinka Shonibare 121


Thaïs Flores Nogueira Diniz
Parte II: Confluências
8 - Escrita com forma e cor na poesia concreta 135
Júlio Castañon Guimarães
9 - A transmissão da música na poesia de Moya Cannon 147
Luci Collin
10 - Artur Omar: o artista que viaja na cor 161
Vera Casa Nova
11 - Poética do intervalo no livro de diálogo fotoliterário 171
Márcia Arbex
12 - Literatura bárbara: Diary of an amateur photographer 189
Angelo Mazzuchelli Garcia
13 - “Tudo, no mundo, existe para chegar a um livro” ou diálogos e cruzamentos
entre obras enciclopédicas 205
Maria do Carmo de Freitas Veneroso
14 - A trajetória poética de Márcio Sampaio 221
Marília Andrés Ribeiro
15 - Brazil’s Inhotim: modernist paradise and/or political mediation 233
Lauren S. Weingarden
Nota sobre os autores 265
INTRODUÇÃO

O livro Escrita, som, imagem: perspectivas contemporâneas reúne


ensaios de pesquisadores e professores que investigam questões de natureza
transdisciplinar, envolvendo a  literatura, a música, as artes visuais, a fotografia,
a arquitetura, o cinema, bem como as mídias televisivas e digitais, visando
a compreensão dos novos fenômenos culturais da contemporaneidade. O
objetivo desta publicação é contribuir para a consolidação das pesquisas no
campo dos estudos da intermidialidade, por meio da discussão de questões
conceituais e da divulgação de pesquisas na área.
Os quinze capítulos que compõem este livro foram reunidos em duas
partes, de acordo com o principal foco de suas abordagens. A primeira
parte – Transformações – abre-se com o ensaio de James Cisneros, “Nostalgia
das mídias no cinema latino-americano contemporâneo” em que se discute
como a tecnologia digital está sendo usada, na cultura visual contemporânea,
para recuperar estéticas próprias às antigas mídias. Esta nostalgia analógica,
que aparece tanto no cinema comercial como no documentário histórico,
é um sintoma de uma nova experiência histórica que vem de um tempo
estagnado, de um presente perpétuo, que está impondo um novo modo
de ver as imagens. Tomando como exemplos os filmes No (2012) de Pablo
Larraín e A cidade é uma só? (2011) de Adirley Queirós, propõe-se uma
aproximação intermidial que analisa os filmes tanto na sua dimensão formal
e semiótica como no contexto global da cultura visual que está emergindo
com as tecnologias digitais e o “presentismo”.
Em “Transcrições visuais de Grande sertão: ilustrações e quadrinhos
recriam o pacto rosiano”, André Melo Mendes e Mírian Sousa Alves analisam
duas transcriações específicas do romance Grande sertão: veredas, de João
Guimarães Rosa: as 71 imagens que Arlindo Daibert criou nos anos 1980 e
a adaptação para os quadrinhos realizada, em 2014, por Eloar Guazzelli e

7
Rodrigo Rosa. O ensaio visa investigar como essas obras traduziram e/ou
recriaram a representação do pacto com o Diabo realizado pelo protagonista
da história, o jagunço Riobaldo, procurando perceber similaridades e
afastamentos, os ganhos e as perdas que essas transcriações trouxeram ao
texto rosiano.
Brunilda Reichmann, em “Revisitando Shakespeare em House of
Cards”, se dedica ao estudo das retomadas contemporâneas do texto do
célebre dramaturgo. Na atualidade, a trilogia política de Michael Dobbs e
as séries televisivas da BBC e a da Netflix, todas intituladas House of Cards,
celebram o Shakespeare ao evocar temas, contextos e personagens; ao expor
a dissimulação, a corrupção, a violência e a criminalidade encontradas no
universo literário desse dramaturgo. Dentre essas produções, House of Cards
da Netflix é a mais conhecida e comentada, muitas vezes por espectadores
que desconhecem sua origem; o ensaio se detém, portanto, na trilogia política
de Dobbs e na série da BBC, para trazer ao leitor/espectador informações
sobre os textos-fontes da série da Netflix.
Vanessa Cardozo Brandão examina, em “Do facebook para o livro :
redes sociais digitais como espaço para a escrita (poética) do cotidiano”, o
fluxo de circulação de textualidades midiáticas; investiga o movimento de
trânsito da produção literária na internet para o espaço mais canônico da
literatura: o do livro. A partir da experiência singular do autor que se fez
escritor em seu perfil no Facebook, Anderson França, o Dinho, reflete-se
sobre a apropriação poética desse espaço que cria uma fresta por onde emerge
uma escrita poética do cotidiano. A partir da perspectiva da intermidialidade,
colocam-se vários cruzamentos entre literatura e mídias sociais digitais: entre
gêneros (da crônica à biografia, da comédia à tragédia), entre linguagens (do
texto escrito, imagético e multimídia) e entre meios (da internet ao livro). 
O ensaio intitulado “Samambaia: uma casa (trans)formada por poesia e
romance”, de Miriam de Paiva Vieira, trata de um dos marcos da arquitetura
modernista no Brasil: a casa projetada por Sérgio Bernardes a partir da
encomenda de Lota de Macedo Soares, companheira da poeta Elizabeth
Bishop. Além de inspirar o poema de Bishop, “Song for a Rainy Season”, a casa
também tem presença marcante nos romances Flores raras e banalíssimas:

8
a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop (1995), de Carmen
Oliveira, e The More I Owe You (2010), de Michael Sledge, traduzido por
Elisa Nazarian como A arte de perder (2011). O ensaio investiga como a casa
Samambaia é revelada em forma de poesia e prosa por meio do fenômeno
intermidiático écfrase, a partir de um modelo interpretativo para estudo da
tipologia écfrase arquitetônica.
Em “Interações intermidiáticas em música, literatura e pintura: Schubert,
Müller e Friedrich”, Mônica Pedrosa de Pádua e Cecília Nazaré de Lima
confrontam mídias distintas a partir de uma proposta metodológica que
constitui a imagem como um operador de leitura intermidiático. A canção Gute
Nacht, de Franz Schubert, é inicialmente estudada como transposição do
poema homônimo de Wilhelm Müller e, em seguida, ambos são comparados a
Paisagem de inverno com igreja, quadro de pintura de Caspar David Friedrich. 
Deduz-se que imagens de grande poder expressivo, que revelam interseções
entre os múltiplos campos artísticos, podem ampliar o universo perceptivo
das obras de arte e auxiliar nos processos interpretativos dos leitores.
Para concluir essa primeira parte do volume, o ensaio “Do sagrado ao
profano: as ‘Ceias’ de Yinka Shonibare”, no qual Thaïs Flores Nogueira Diniz
discute o conceito de adaptação. O termo adaptação serve para descrever
a habilidade que os seres vivos e as culturas têm de se ajustar ao meio
ambiente. Assim como a mitologia usou a narrativa e as formas imagéticas
para traduzir as crises humanas e os mistérios universais, os textos bíblicos
também têm  sido traduzidos em pinturas, textos literários e esculturas, todos
eles tentando ilustrar ou comentar sobre fatos que fizeram parte de nossa
cultura. Recentemente, entretanto, em vez de apenas ilustrar ou comentar
esses fatos, as adaptações dos textos bíblicos passaram a criticá-los, como
é o caso da obra do artista nigeriano Yinka Shonibare inspirada na famosa
pintura de Leonardo da Vinci, “A última ceia”, estudada pela pesquisadora.
A segunda parte deste livro — Confluências — abre-se com o ensaio
de Júlio Castañon Guimarães, “Escrita com forma e cor na poesia concreta”,
em que se investiga como a escrita da poesia concreta, em particular a
obra de Augusto de Campos, implica o recurso a elementos provenientes
de outros campos que não o literário, não somente como referência, mas
como componentes da elaboração dos poemas. Das artes plásticas à música,

9
passando pelo projeto gráfico, o poema concreto – muitas vezes efetivamente
um poema-quadro – constrói tipograficamente objetos que de variadas
formas se relacionam com essas práticas. As reflexões de Mallarmé, bem
como as noções de intervalo e de suporte, tal como expostos por Anne-
Marie Christin, constituem uma possibilidade de enfoque dessas questões
na escrita tipográfica do concretismo.
Em “A transmissão da música na poesia de Moya Cannon”, Luci Collin
apresenta a poeta irlandesa Moya Cannon, cuja obra vem sendo amplamente
comentada principalmente pela relação que estabelece com os estudos de
ecocrítica e história. Contudo, é raro a crítica contemplar o fato de essa
poesia apresentar uma intensa confluência com a música, desde a expressão
musical na Natureza, a transmissão ancestral de ritmos e canções ao longo
da história da coletividade humana, até a presença do fenômeno musical na
contemporaneidade. Assim, o ensaio investiga como a música alimenta a
sensibilidade poética de Cannon, como o tratamento da linguagem poética
é afetado ou balizado por essa relação e, sobretudo, como a poeta pensa e
se apropria desse espaço de intermidialidade e trânsito entre as linguagens
musical e literária reconfigurando-o enquanto “espaço de transmissão” de
essencialidades poéticas.
Vera Casa Nova, em “Arthur Omar: o artista que viaja na cor”, trata
das confluências entre as imagens e o texto de Arthur Omar no livro O
esplendor dos contrários (2002), considerado um arquivo fotográfico da
Amazônia. A ensaísta dialoga filosoficamente com o autor e fotógrafo que,
tal um antropólogo visual, mostra a cor e os fluxos da imagem nas paisagens,
produz uma eco-estética e revela os signos com a emoção na ponta dos
olhos, guiando o leitor a refazer, a seu turno, essa trajetória verbo-visual.
Márcia Arbex, em “Poética do intervalo no livro de diálogo fotoliterário”,
examina a interação entre um tipo particular de imagem – a fotográfica – e
o texto poético em Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debré (2000),
produção que reúne o texto de Michel Butor e fotos do ateliê do artista plástico
Olivier Debré, realizadas por Julius Baltazar. Nesse álbum  há um intenso
cruzamento de olhares acentuado pela disposição em díptico, criando uma
relação especular entre as mídias que vai além da ilustração, da transposição ou
da descrição. Pretende-se mostrar que essa interação é própria a uma poética

10
do intervalo, do entre-dois, decorrente das contaminações transgressivas e
dinâmicas que se estabelecem entre as duas mídias.
No ensaio “Literatura bárbara: Diary of an amateur photographer”,
Angelo Mazzucheli Garcia afirma que até meados do século XX, o design
gráfico era tido como uma atividade essencialmente anônima, mas teorias
pós-modernistas da área criaram condições para o desenvolvimento de
trabalhos mais pessoais. Nesse contexto, surgiram diversos projetos de design
gráfico que deram origem a um novo tipo de escritor: o que concebe obras
literárias explorando o potencial gráfico/visual de signos verbais e visuais,
aliando-os, de forma indivisa, à narrativa. Um desses projetos é a obra Diary
of an amateur photographer: a mystery, do britânico Graham Rawle, baseado
no elo que se estabelece entre a criação literária e sua concretização sob a
forma impressa/visual.
Privilegiando as interartes, e tendo como principal referência as relações
entre palavras e imagens, Maria do Carmo de Freitas Veneroso, no ensaio
“Tudo, no mundo, existe para chegar a um livro’ ou diálogos e cruzamentos
entre obras enciclopédicas” estabelece aproximações entre obras artísticas
que podem ser consideradas enciclopédicas e enciclopédias acadêmicas. São
enfocados os seguintes trabalhos: o filme Encyclopaedia Britannica (1971),
de John Latham, a série de fotolitografias Paisagens, coisas, bichos e um
mergulhador (1995), de Mário Azevedo, os livros de artista Il faut ce qu’il faut
(1964), de André Balthazar e René Bertholo e The world explained (2012),
de Erick Beltrán, em diálogo com a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert,
a Enciclopédia Britânica e a Wikipedia. A ensaísta demonstra que enquanto
algumas dessas obras enciclopédicas foram criadas com o intuito de conter
todo o conhecimento, outras questionam essa possibilidade.
Marília Andrés Ribeiro discute, em “A trajetória poética de Márcio
Sampaio”, a relação intermidiática entre a poesia e as artes visuais na poética
desse artista, que vem desempenhando papel importante no contexto artístico
de Minas Gerais desde os anos de 1960. A apresentação de sua trajetória
como artista visual demonstra o quanto ela está ligada à sua atuação como
poeta, crítico e curador. Ao analisar determinados trabalhos de Márcio
Sampaio, a autora não apenas revela o aspecto intermidiático dessa obra,

11
mas também o intenso diálogo que estabelece com as tendências artísticas
contemporâneas.
A segunda parte desta publicação se encerra com o ensaio de Lauren
S. Weingarden, “Brazil’s Inhotim: Modernist Paradise and/or Political
Mediation”. A pesquisadora interroga o modernismo brasileiro e suas
motivações políticas, a partir dos trabalhos de Hélio Oiticia, Cildo Meireles
e Tunga, tendo como ponto de partida uma discussão sobre seu contexto de
apresentação: a coleção de arte contemporânea de Inhotim, cuja proposta seria
a de oferecer uma síntese de diversas correntes artísticas e criar um diálogo
entre artistas mineiros, brasileiros e internacionais. A ensaísta questiona
se a “síntese” que a coleção busca oferecer não apresentaria uma ilusão
brasileira de globalização ao invés de um modernismo brasileiro carregado
de dissidência.
O conjunto de ensaios aqui reunidos resulta, portanto, em uma seleta
relevante e oportuna que convida ao debate teórico, ao retomar temáticas
e autores já consagrados, vistos sob novo prisma, e à descoberta de artistas
contemporâneos que articulam a escrita, o som e a imagem em processos
criativos os mais diversos.
Nossos agradecimentos a Arthur Omar, Julius Baltazar, Graham Rawle,
Mário Azevedo, Márcio Sampaio, Bryan Barcena e Philippe Enrico que
muito contribuíram para esta publicação ao autorizarem a reprodução de
suas obras visuais neste livro.    

As organizadoras

12
Parte I
Transformações

13
14
NOSTALGIA DAS MÍDIAS NO CINEMA
LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO

James Cisneros
Université de Montréal

Num estudo sobre o impacto das novas tecnologias de comunicação na


cultura, Lisa Gitelman define as mídias como sujeitos históricos reflexivos:
suas inscrições contêm informação legível sobre o passado, mostrando sons
e imagens de outras épocas, enquanto a materialidade das inscrições impõe
uma maneira de ler que também tem uma historicidade própria. As mídias de
inscrição ocupam um lugar fundamental em nosso entender da história, visto
que toda nova mídia dá acesso a dados históricos despercebidos, modifica
a maneira de gravar e ter acesso aos eventos do passado e projeta uma
nova luz sobre os modos como outras mídias os representaram. Ao estudar
a historicidade das mídias, devemos enfocá-las como aparelhos técnicos
materiais que também são “sítios sociais embutidos”, onde os novos usos e
interpretações da sua funcionalidade resultam numa revisão constante das
significações que têm produzido1. Pensar a historicidade das mídias requer,
então, um estudo não somente de como são usados, mas igualmente de como
são representados nos discursos sociais, duas dimensões que sempre estão
mudando, às vezes de modo gradual e apenas discernível. A intermidialidade,

1. GITELMAN. Always Already New, p. 6. Todas as traduções são minhas, salvo indica-
ção em contrário.

15
conceito reflexivo, oferece uma maneira de formular a questão sobre esse
duplo papel histórico das mídias. Nestas páginas, usamos a intermidialidade
como um conceito-guia para um método de pesquisa que analisa como
certos artefatos respondem ou fazem eco das práticas e histórias de mídias
distintas. Esse conceito, próprio à produção científica contemporânea, pode
ser usado para esclarecer como as mídias cumprem a sua dupla função de
inscrição e transmissão, influenciando o modo como o presente lida com
formas de saber e cultura passadas.
Uma mudança recente da paisagem mediática se manifesta na
recuperação das tecnologias analógicas, que, desde a perspectiva do progresso,
estavam relegadas ao olvido. Uma das consequências imprevistas da vaga
digital é uma nova apreciação de mídias velhas, uma nostalgia que, nos
últimos quinze anos, tem surgido entre os membros da jovem geração que
cresceram na época digital. Várias reportagens têm mostrado a tendência: os
“hipsters” estão usando máquinas de escrever nas praças públicas2; a venda
de discos de vinil em 2017 igualou níveis atingidos em 19913; os toca-discos
estão aparecendo nos cafés Starbucks4; e são moda as tatuagens de bobinas
de celuloide e outros produtos analógicos5. Essa “nostalgia analógica,” termo
cunhado por Laura Marks6, toma muitas formas na produção audiovisual
contemporânea, aparecendo tanto no vídeo experimental como no cinema
comercial e no documentário histórico. Distingue-se de outras formas de
nostalgia associadas à produção audiovisual – como o cinema chamado “pós-
moderno”, teorizado por Fredric Jameson – pela dimensão propriamente
mediática, ou seja, pela focalização no suporte material e as formas expressivas
que ele possibilita. Filmes como Forrest Gump (Robert Zemeckis, EEUU, 1994)
e O artista (Michel Hazanavicius, 2011) usam o desenho digital para imitar
as imagens da época do celuloide, do noticiário dos anos 1960 e do cinema

2. Cf. http://www.telegraph.co.uk/men/the-filter/virals/11675023/Hipsters-really-are-
using-typewriters-in-public-places.html.
3. Cf. https://www.theguardian.com/music/2017/jan/03/
record-sales-vinyl-hits-25-year-high-and-outstrips-streaming
4. Cf. https://www.buzzfeed.com/t0ph3r/the-most-hipster-hipster-youll-ever-see-
5bwv?utm_term=.qekOPozbk#.tmJolYdvp.
5. Cf. https://www.pinterest.ca/tattoomaze/tattoo-film/?lp=true.
6. MARKS. Touch: Sensuous Theory and Multisensory  Media, p. 152. Ver também o
livro editado por Katharina NIEMEYER, Media and Nostalgia.

16
mudo dos anos 1920, enquanto documentários como Apocalypse (Isabelle
Clarke e Daniel Costelle, France 2, 2014) colorem imagens da Segunda Guerra
Mundial para, segundo o produtor, “dar mais proximidade a imagens que
podem aparecer muito remotas aos jovens”7.
Nesse contexto de recuperação das mídias e de renegociação dos seus
significados, a questão intermidial está no nexo entre a materialidade técnica
que distingue o analógico do digital, as diferentes formas de expressão
estética próprias a cada tecnologia e as práticas de recuperação atuais que
as fusionam. Para fazer uma análise intermidial da nostalgia das mídias será
necessário considerar a mudança na cultura audiovisual e, mais precisamente,
na historicidade dessa cultura, na sua relação com a experiência do tempo que
provê o contexto da recuperação vigorosa de mídias tomadas por obsoletas.
Em continuidade, exploraremos essa dimensão temporal para logo considerar
o novo olhar que emerge com a tecnologia digital. Terminamos com análises
de como o cinema atual está recuperando as velhas mídias, por meio de uma
perspectiva nostálgica, como vemos no longa-metragem de ficção No, do
chileno Pablo Larraín, ou numa perspectiva crítica, com A cidade é uma
só?, um filme meio ficção, meio documentário, do cineasta ceilandense
Adirley Queirós. Os dois filmes usam imagens de arquivo para oferecer
comentários sobre a política, a historicidade das imagens e a experiência
do tempo mediatizada.

O “presente amplo” e a intermidialidade


A nostalgia mediática é parte de uma nova experiência do tempo
histórico. Para Svetlana Boym, a nostalgia é uma “emoção histórica,”8 uma
relação específica ao tempo, que nos permite visitar uma outra época como
se visitássemos um outro país. Para o nostálgico, o tempo não é irreversível,
e o passado, que não termina de passar, fica submetido à perspectiva do
presente. A nostalgia seria um sintoma de uma mudança profunda na maneira
de experimentar o passar do tempo, argumenta Boym, que se deve em
parte à simultaneidade e coesão ilusórias propagadas com o ciberespaço. O

7. Louis Vaudeville, citado em EKCHAJZER.


8. BOYM. The Future of Nostalgia, p. 10.

17
seu diagnóstico de uma “epidemia global” de nostalgia no fim do milênio
coincide com outras observações sobre a temporalidade de nosso mundo
contemporâneo.
O tempo linear e progressivo herdado dos séculos 18 e 19 está sendo
eclipsado. Um olhar “presentista”, o termo usado pelo historiador François
Hartog9, está tomando o lugar do olhar que estava fixo no futuro. Esse
tempo, que tem orientado tanto os parâmetros da experiência subjetiva
como a investigação nas humanidades, está sendo substituído pelo tempo
estagnado de um presente perpétuo. Hans Ulrich Gumbrecht o denomina
“nosso presente amplo” e, como Boym, o conecta com as novas tecnologias
de comunicação. O futuro, disse, “não se apresenta mais como um horizonte
aberto de possibilidades; ao invés disso, ele é uma dimensão cada vez mais
fechada a quaisquer prognósticos”, e o passado não oferece mais “pontos
de orientação” porque “os passados inundam o nosso presente” com as suas
modas e as suas músicas. Nessa recuperação, cada dia mais forte, “os sistemas
eletrônicos automatizados de memória têm um papel fundamental” na
ampliação das simultaneidades que formam o nosso presente.10
Se o presente é ampliado pelos sistemas eletrônicos que dão acesso
aos arquivos das modas passadas, a nostalgia agrega a recuperação das
próprias mídias que se usavam para veicular essas modas, adicionando outras
percepções – e outro aisthesis – às coleções informacionais expandidas. A
ampliação de informação nos dá acesso a mais de tudo, mais moda, mais
música etc., mas o efeito de maior importância é que a proximidade entre
o presente e os artefatos do passado torna difícil a distinção das origens
históricas dos produtos das mídias, criando uma confusão de épocas. Ou
seja, o crescimento do presente também o muda na sua natureza, fazendo a
experiência do tempo ser mais constante, senão homogênea, um zumbido
contínuo e sem variações, como um portal que está sempre aberto, 24/7.11 É
justamente na interação entre as novas e velhas mídias, como veremos, que
essa perda de alteridade histórica é mais visível.

9. HARTOG. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. 


10. GUMBRECHT. Nosso amplo presente. O tempo e a cultura contemporânea, p. 15-16,
grifos no original.
11. CRARY. 24/7. Capitalismo tardio e os fins do sono.

18
O conceito de intermidialidade nos ajuda a entender esse diálogo por
meio de um enfoque na materialidade distinta das mídias, claro, mas também
porque a sua natureza reflexiva está relacionada a uma diferença temporal.
Por um lado, a intermidialidade é um sintoma do auge das mídias que estão
expandindo o presente amplo, um conceito cuja invenção assinala um tipo
de saber interdisciplinar que concorda com o novo regime de historicidade.
Como sintoma, participa na atual crise das humanidades que foram erguidas,
como o mostra Michel Foucault, com a “idade da história” do episteme
moderno12, crise que se manifesta com outras aproximações “inter-” e “pós-”,
que indicam a perda do tempo progressivo pelo qual as humanidades foram
institucionalizadas. Por outro lado, a intermidialidade surgiu para ajudar com
a análise da nova paisagem mediática, incluindo a temporalidade que lhe é
própria e as formas de saber que se usam para entendê-la. Mas para poder
explicar a nossa realidade hipermediada, é imperativo que o conceito possa
explicar o seu próprio status de sintoma, que possa virar-se para si mesmo
num duplo movimento que está sempre desfasado em vez de plenamente
presente. A intermidialidade, nessa constante volta reflexiva, oferece um olhar
anacrônico sobre o seu próprio funcionamento e sobre a paisagem midiática
na qual opera.13 Assim, o conceito estimula um pensamento crítico sobre o
presente, que se vê sob a óptica de uma diferença ou alteridade temporal. É
essa dimensão anacrônica que, para Éric Méchoulan, pode elucidar os nexos
entre as percepções materiais das mídias e os seus significados possíveis:
“O presente deve ser concebido sob a forma anacrônica de um retorno
ou de uma dobra do tempo (ana-chronos, é um tempo que retorna) [...]
Pensar a situação como uma dobra do tempo na qual dispositivos sensíveis e
disposições inteligíveis são contraídos é justamente o que a intermidialidade
deveria assumir”.14 Se a nostalgia é um exemplo mais da expansão do presente,
a intermidialidade, aplicada em contracorrente, procura enquadrá-la desde
uma perspectiva anacrônica.

12. FOUCAULT. Les mots et les choses, p. 229. Nos seus comentários sobre a crise das
humanidades e a estagnação temporal, Gumbrecht segue Foucault e Reinhart Koselleck.
13. CISNEROS. “Remains to be Seen. Intermediality, Ekphrasis and Institution”.
14. MÉCHOULAN. “Intermédialité: le temps des illusions perdues”, p. 14-15.

19
Nostalgia das mídias: um novo olhar
Os especialistas das tecnologias da comunicação e da cultura audiovisual
coincidem com Gumbrecht, Boym e os outros pensadores do tempo histórico:
o uso da tecnologia digital para recuperar a estética própria dos produtos da
cultura analógica está criando uma experiência mediática dominado pelo
presentismo. O resultado é um novo olhar que está mudando o modo de
entender todas as imagens, sejam elas digitais ou analógicas.
As distintas historicidades do analógico e do digital se entendem
melhor se tomamos uma mídia, a fotografia, como exemplo, e enfocamos
nas dimensões distintas. A materialidade, primeiro, da foto analógica inclui,
no processo de captação da imagem, uma placa ou película banhada em
produtos químicos e, no processo de impressão, um rolo revelado e o papel
fotográfico; o cinema analógico usa a mesma tecnologia. Esses suportes
materiais são perecíveis, e estão marcados pelos sinais da sua história: com o
tempo, o papel fotográfico fica amarelo, o celuloide cinematográfico, rosado;
os negativos se arranham com o uso, marcando cada nova cópia com o signo
da deterioração. A materialidade da foto digital – tão diferente que deveríamos
considerá-la outra mídia – é feita de algoritmos que são processados por
qualquer CPU, e as imagens podem ser vistas em qualquer tela digital; se
o usuário decide imprimi-las, cada nova impressão será como a primeira,
porque o material eletrônico não se deteriora com o tempo. A foto digital
não mostra as marcas do passar do tempo e, salvo por um problema maior
que afeta todas as CPUs em que está guardada, tampouco é perecível.
Se pensamos logo nos discursos que se têm erguido a respeito do processo
de captação, a diferença entre as duas formas fotográficas é fundamental. A
especificidade da foto analógica se tem definido, desde pouco depois da sua
invenção, pela existência necessária do objeto representado. Essa dimensão
dêitica distingue a foto das outras tecnologias de inscrição, tal como explica
Roland Barthes:
A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. O discurso combina
signos que certamente têm referentes, mas esses referentes podem ser
e na maior parte das vezes são “quimeras”. Ao contrário dessas imita-
ções, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla

20
posição conjunta: de realidade e de passado. [...] O nome do noema
da Fotografia será então: “Isso-foi” [“Ça a été”], ou ainda: o Intratável.15

Junto com a exatidão da representação, é essa presença necessária


do modelo diante do objetivo da câmera que dota a foto com um olhar
que vê a imagem como o traço da existência, um olhar credível que faz da
fotografia um instrumento verídico. A existência do referente, a marca de
realidade e de passado, é a qualidade que se menciona ao louvar a utilidade
científica da fotografia. Dá o status de prova às imagens captadas. As imagens
fotoquímicas são tão difíceis de manipular que as fotos modificadas ficam
famosas ou notórias segundo o caso: as fotocolagens surrealistas de Grete
Stern, que combinam imagens diferentes sem costuras visíveis, ou as fotos
que mostram Josef Stalin caminhando com, e logo depois sem, um camarada
que foi removido da vida política. Eis a conexão entre a materialidade da foto
analógica e a cultura visual – o referente necessário e (quasi-) permanente da
emulsão química suscita um olhar preciso, com uma historicidade específica.
Essa cultura visual muda com a foto digital. Fabricados com algoritmos,
cujo princípio é a manipulação infinita, as novas imagens se modificam
com o premir de um botão ou de uma tecla. Entre o uso do Photoshop nas
revistas de moda e os apps dos smartphones, a foto digital se define e se
entende como manipulável. Como a pintura ou o discurso, os algoritmos
possibilitam o cultivo de quimeras. Ao contrário do seu precursor analógico,
a foto digital está desatracada da “dupla posição” de realidade e de passado
descrito por Barthes.
A foto digital perde o antigo laço com o passado por várias razões:
primeiro porque é possível manipulá-la para se assemelhar a uma foto velha,
amarelada e arranhada – vários apps estão programados para justamente
dar uma pátina histórica às fotos pessoais favoritas: OldPhoto, Vintage
Photo, Pixlromatic etc; segundo, porque esse “mimetismo digital”, uma
das qualidades mais apreciadas e desenvolvidos da nova tecnologia, pode
reproduzir os estilos dos produtos analógicos com tanta perfeição que é
quase impossível detectar a diferença. Esse mimetismo está motivado pela

15. BARTHES. A câmara clara. Nota sobre a fotografia, p. 115.

21
“credibilidade”16 das velhas fotos que a tecnologia digital procura recuperar
ao mesmo tempo que, paradoxalmente, a sua manipulação infinita mina a
veracidade que a cultura visual tem associado à fotografia analógica.
A tecnologia digital também mostra um nexo inédito entre a fotografia e o
passado porque – e isto é o mais importante – a manipulabilidade algorítmica
está mudando a maneira de contemplar as imagens e a cultura visual que
acompanha o objeto olhado – ou seja, está mudando o olhar no qual, diria
Gitelman, as imagens estão embutidas. Como é impossível distinguir entre
os conteúdos semióticos idênticos de uma foto analógica e outra digital,
todas as fotos serão vistas, especialmente pelas gerações futuras, sob um
prisma digital. Ou seja, a nova cultura visual está mudando o modo como
todas as fotos são vistas, e as imagens fotoquímicas estão perdendo a “dupla
posição” que as dotava de um tipo de credibilidade derivada da imunidade
à manipulação17. O resultado é uma indistinção geral que atinge todos os
aspectos das duas imagens, incluindo a historicidade que as distinguia.
Com a imposição da cultura visual própria à tecnologia digital, todas as
imagens estão sendo incorporadas ao presente amplo. Como argumenta
David Rodowick, enquanto as fotos analógicas mostram um “passado [que] é
sentido como uma dimensão temporal ontologicamente distinto”, as imagens
digitais “moldam um passado que se sente como historicamente presente
e no qual nos sentimos conectados ou integrados; por outras palavras,
expressam um passado imediato, cumulativo, que continua a fazer parte
do nosso presente histórico”.18
A cultura (audio) visual que define como olhamos as imagens é tão
ou mais importante do que a diferença material das imagens ou da sua
semiótica quase idêntica. A mudança nessa cultura, uma mudança geracional,
converge com a alteração profunda na experiência do tempo histórico que
tem contribuído para a “epidemia global” da nostalgia. No momento de
analisar um filme ou outro artefato cultural, é importante se dar conta dessa
dimensão, que pode não figurar nem na narração nem na imagem, mas que,
contudo, orienta o modo como a técnica material se conjuga com os seus

16. ROSEN. Change Mummified. Cinema, Historicity, Theory, p. 309. Ver a discussão
sobre o mimetismo digital (digital mimcry) e a questão da credibilidade, p. 312-313.
17. WILLEMAN. “Reflections on Digital Imagery: Of Mice and Men”.
18. RODOWICK. The Virtual Life of Film, p. 146.
22
significados possíveis. Uma análise intermidial considera essa conjugação
na sua anacronia, enfocando na historicidade do olhar.

Dois exemplos cinematográficos: nostalgia presentista vs. memória


crítica
Se alguns filmes parecem abraçar o presente amplo, outros mostram as
consequências da perda da alteridade do passado. Para apreciar a diferença,
analisaremos dois filmes que tratam de questões de recuperação e imitação
das mídias ultrapassadas, dos arquivos e da política. Um primeiro exemplo
é o filme de ficção No, do cineasta chileno Pablo Larraín (2012), que trata
do plebiscito que destitui do poder o general Augusto Pinochet em 1988.
O filme adota a perspectiva da campanha que não queria a continuação do
regime militar e que acabaria ganhando o plebiscito. A composição do filme
é bastante particular: uma terceira parte é composta de imagens de arquivo
tomadas das transmissões televisivas das campanhas do “No” e do “Sí” e de
outros programas de televisão; a parte ficcional foi filmada com a mesma
tecnologia usada para as imagens de arquivo, a vídeo U-Matic e as câmaras
Tube, dando, assim, a mesma textura às novas imagens da narrativa inventada.
Em No, a convergência entre as velhas e novas imagens elabora uma
estética que acentua a mensagem central do filme: a campanha do “No”, que
estabelece os parâmetros de um novo jeito de fazer política, televisivo, com
uma linguagem publicitária, no qual o Chile se encontra emaranhado até
hoje. Essa perspectiva mostra a continuidade entre os anos 1980 e a atualidade
e tem uma dimensão crítica, que está acompanhada por um forte impulso
nostálgico que eclipsa a distância entre o presente e o passado.
O cineasta reconhece a importância das diferenças tecnológicas para
a expressão formal, e disse usar o vídeo dos anos 1980 para
criar uma ilusão no espectador, e [para] que ele não pudesse distinguir
entre o arquivo e a parte de ficção, o que acabaria fazendo o nosso
material se transformar em documentário. Se tivéssemos filmado em
HD, o espectador estaria todo o tempo entrando e saindo do relato.
Também é uma forma de protestar contra o HD, da sua hegemonia, do

23
formato que faz todas as imagens serem iguais – o que as faz perder
a identidade.19

A recuperação do vídeo U-Matic procura apagar a diferença entre


imagens de ficção e de arquivo. Larraín procura um realismo que submerja
o espectador num contínuo de imagens indiferenciadas que servem os
fins do relato que se constrói. O que prima é essa indiferença das imagens,
que absorve os documentos de arquivo numa versão ficcional dos eventos
históricos ou que, ao contrário, “transforme” o novo material ficcional em
documento. Nos dois casos, a resultante indistinção provoca uma perda
da alteridade histórica das imagens. Larraín respeita a “identidade” das
velhas imagens em termos técnicos, desde a perspectiva da produção, mas,
ironicamente, não desde a perspectiva da sua historicidade.
O melhor exemplo de como esse presentismo se manifesta no filme é o
casting de Gael García Bernal. O ator, um dos mais reconhecidos do cinema
mundial contemporâneo, está fortemente associado com a sensibilidade do
mundo de hoje. Ao contrário de um ator desconhecido, Bernal assegura que
o filme fica marcado pelo presente quando nos leva, tal como Virgílio, pelas
paisagens dos anos 1980. Tudo na composição do ator e do personagem –
como o uso anacrônico do skate, emblema da juventude atual – mostram
o passado sob a perspectiva do presente. Seu personagem, membro da
classe criativa20, também é muito do nosso tempo: trabalha numa agência
de publicidade antes de ajudar o campo do “No” com a sua campanha,
maquilhando a mensagem política da esquerda com a estética da publicidade.
Podemos vê-lo discutindo e, logo após, em várias largas sequências, rodando
com uma equipe de filmagem os anúncios televisivos que serão usados
pelas campanhas, ou seja, inventando o que vão ser cenas do passado. Na
montagem final de No, o espectador vê o personagem ficcional filmando e,
imediatamente depois, as autênticas imagens de arquivo gravadas nos anos
1980. Essas sequências, que se assemelham a um documentário – a palavra
é de Larraín – no estilo do making of, oferecem assim uma mise-en-scène
da nostalgia mediática, mostrando quanto o passado se imagina como uma
extensão do nosso presente.

19. FERNÁNDEZ. Gael García Bernal y el director Pablo Larraín nos hablan de No.
20. FLORIDA. The Rise of the Creative Class.

24
A imitação das imagens de mídias obsoletas não está, no entanto,
condenada à nostalgia e, como mostra um segundo exemplo, pode até mesmo
contribuir à elaboração de uma memória crítica. Com a longa-metragem de
2011, A cidade é uma só?, Adirley Queirós explora as conexões entre o arquivo
e a historicidade das imagens na cultura visual que se tem estabelecido com
o mimetismo digital. Mesclando documentário e ficção, o filme considera a
história da “campanha de erradicação das invasões” de 1971, que procurava
justificar o realojamento de famílias, instaladas no centro de Brasília, para a
periferia da nova capital. Os trabalhadores que tinham construído o plano
piloto foram realocados para Ceilândia, cidade satélite cujo nome é derivado
da campanha. Esse filme, como os outros de Queirós, conta a história de
uma comunidade que vive as consequências da sua expulsão da metrópole,
para assim responder, com uma negativa, à interrogação do título.
O filme é constituído de três relatos paralelos: um sobre o passado e os
arquivos, outro sobre a política eleitoral contemporânea e um último, mais
breve, sobre a especulação imobiliária. O primeiro relato, o mais importante
para a nossa análise, está apresentado em estilo documentário, mas, à medida
que o filme vai avançando, o espectador percebe que esse estilo deriva de
um artifício baseado nas mídias e que se constitui de uma imitação que se
faz passar pelo original. Esse relato acompanha Nancy Araújo, cantora e
apresentadora de rádio, nos seus esforços para reencontrar os rastros da
campanha de que participou quando era menina. A música é o índice mais
forte da memória de Nancy, que se lembra muito bem do jingle da campanha,
uma canção com o título de “A cidade é uma só”, que cantou com as colegas
do curso primário para uma transmissão de televisão. Nas entrevistas com
o cineasta, ela relata as suas memórias sobre a sua participação na canção,
detalhando como as meninas estavam vestidas, como foram filmadas e como
era o cenário para a representação televisiva. É possível vê-la num estúdio
de rádio, onde um guitarrista a ajuda a rememorar a música. E a vemos nos
arquivos da capital, procurando uma cópia da transmissão televisiva entre
os materiais da campanha de erradicação das invasões.
Queirós adota o que parece ser uma construção de documentário clássico
para a pesquisa de Nancy: as imagens dela recordando a sua experiência de
recolocação e a sua participação no jingle estão intercaladas com imagens

25
de arquivo que ilustram as facetas da campanha. Numa das primeiras
sequências, vemos o que parece ser um trecho da transmissão de televisão
no qual participaram as meninas da turma de Nancy. Essa montagem tem
uma função dupla: primeiro, marca a diferença entre as cenas que estão
filmadas no presente, incluindo as entrevistas com o cineasta, às vezes visível
no quadro, e os elementos de arquivo que o filme recupera para o relato
histórico: os jornais da época, com manchetes que apoiam a campanha;
cartazes desenhados para promover a relocação dos moradores; fotos que
se usaram para organizar o realojamento; mapas do novo assentamento e
planos para o desenvolvimento urbano; em segundo plano, também serve
para – e isso é fundamental – preparar o terreno para mostrar um engano: as
imagens televisivas não saíram do arquivo, e, sim, foram inventadas segundo
as indicações de Nancy e filmadas com um estilo visual que reproduz com
exatidão a estética da televisão dos anos 1960 e 1970, em preto-e-branco
e com o palpitar catódico da época. Depois, na segunda parte do relato,
vemos Nancy ativamente reconstituindo a transmissão nos menores detalhes,
incluindo o vestuário das meninas e o cenário do estúdio televisivo.
Queirós fabrica uma imitação para logo mostrar o processo de (re)
construção do documento de arquivo falseado. Ao mostrar essa maquinaria,
chama a atenção para a ambiguidade temporal que deriva da nostalgia
mediática. Educa o espectador, mostrando quanto a historicidade das
imagens se tem perdido com a cultura visual atual. Em vez de nos deixar
na ambiguidade, mostra a mise-en-scène do presentismo como uma trapaça
visual que apaga a alteridade temporal necessária para qualquer política de
memória. Ao contrário do filme de Larraín, que submerge o espectador
numa indistinção entre novas e velhas imagens, o filme de Queirós mescla
procedimentos do cinema de ficção e do documentário para situar o
espectador numa posição crítica. Como para treinar o olhar, as sequências
em torno da imitação das imagens de televisão documentam uma ficção.
Essas sequências sintetizam uma preocupação central do cinema de
Queirós: a hibridação de gêneros cinematográficos, documentário e ficção,
que foram institucionalizados como opostos. A dimensão formal, que Queirós
considera a mais revolucionária do cinema atual, mescla os dois gêneros como

26
parte fundamental da “apropriação simbólica das narrativas”21. O filme A
cidade é uma só?, produto dessa motivação política, insiste em que a cidade
não é uma só porque está atravessada por tempos que não são únicos nem
homogêneos. Isso se nota com a Nancy, como temos visto, mas também
com o personagem de Dildu, candidato às eleições municipais, que vemos
cruzar a cidade em busca de apoio para a sua plataforma, elaborando a sua
estratégia publicitária. Essas sequências estão filmadas com uma linguagem
documentária, sem controle sobre as cenas filmadas nas ruas da cidade, mas
também fica claro que o Dildu é um personagem que faz a campanha para as
câmaras, e que numerosas entrevistas e encontros são encenados. Porém, a
mescla mostra a realidade da segregação social e urbana: a campanha solitária
do Dildu contrasta com a de outros candidatos de maiores recursos, assim
como as imagens documentárias da carreata de Dilma se contrastam com o
personagem ficcional, desolado e minúsculo no primeiro plano do quadro;
o Dildu reclama a indenização dos moradores deslocados como parte da
sua plataforma; quando Dildu dorme no ônibus de volta para Ceilândia, a
trilha sonora reproduz a narração de um documentário que trata da “épica
aventura de Brasília”, contrastando a visão do arquivo oficial da vida dos
moradores de periferia. Esses exemplos mostram como os procedimentos
formais elaboram um “contra-discurso memorialístico”22 a partir de uma
diferença temporal contrária ao presentismo.
Se No e A cidade é uma só? coincidem no seu interesse pela recuperação
das imagens produzidas por mídias ultrapassadas, divergem, por outro
lado, na sua maneira de incorporá-las à dimensão formal, resultando em
diferenças importantes no sentido que dão à desfase temporal das imagens.
Essas diferenças foram percebidas por uma aproximação intermidial que
analisa os filmes tanto na sua dimensão formal e semiótica—na mescla de
documentário e ficção—como no contexto global da cultura visual que está
emergindo com as tecnologias digitais. Enfocando na diferença temporal,
atento à anacronia, essa aproximação conjuga uma preocupação pelo presente
amplo com a prática da imitação e uma gama de possibilidades de significação.

21. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=clBYcHjLuTA.


22. MESQUITA. Um drama documentário?, p. 72; ver o artigo para os outros pontos
desse parágrafo.

27
Estuda os filmes como instâncias de mídias socialmente “embutidas” cuja
reflexividade histórica veicula um (contra)discurso histórico ao mesmo
tempo que enquadra uma mudança emergente em nosso entender da história.

Referências
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Júlio Castañon Guimarães Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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ELLIS-PETERSEN, Hannah. Record sales: vinyl hits 25-year high. Disponível
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FERNÁNDEZ, José Gómez. Gael García Bernal y el director Pablo Larraín
nos hablan de No. Tarántula Revista Cultural. Disponível em: http://
revistatarantula.com/gael-garcia-bernal-y-el-director-pablo-larrain-nos-
hablan-de-no/. Acesso em: 7 jan. 2018.
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses, Paris: Gallimard, 1966.
FLORIDA, Richard. The Rise of the Creative Class, New York: Basic Books,
2004.

28
GITELMAN, Lisa. Always Already New. Media, History, and the Data of
Culture. Cambridge, MA.: MIT Press, 2006.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente. O tempo e a cultura
contemporânea. Tradução de Ana Isabel Soares. São Paulo: Editora da UNESP,
2015.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências
do tempo. Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart, Camila R.
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Montreal, Université de Montréal, n. 1, printemps, p. 9-28, 2003.
MESQUITA, Cláudia. Um drama documentário? Atualidade e história em
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Disponível em: http://www.telegraph.co.uk/men/the-filter/virals/11675023/
Hipsters-really-are-using-typewriters-in-public-places.html. Acesso em: 7
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YOUTUBE. Adirley Queirós fala sobre cinema e política no Brasil. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=clBYcHjLuTA. Acesso em: 7 jan. 2018.
WILLEMAN, Paul. “Reflections on Digital Imagery: Of Mice and Men”
in New Screen Media: Cinema/Art/Narrative, editado por Martin Rieser e
Andrea Zapp. London: BFI Film Classics, 2002.

29
30
TRANSCRIAÇÕES VISUAIS DE GRANDE
SERTÃO :
ILUSTRAÇÕES E QUADRINHOS RECRIAM O
PACTO ROSIANO

André Melo Mendes


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Mírian Sousa Alves
CEFET- MG

Sessenta anos atrás, foi lançado um dos livros mais importantes da


literatura brasileira:  Grande sertão: veredas, escrito pelo mineiro João
Guimarães Rosa. Ao longo da sua história, a obra inspirou inúmeros
trabalhos críticos e traduções para outras mídias. Para muitos considerada
obra “intraduzível”, Grande sertão: veredas foi sempre um desafio para aqueles
que almejaram adaptá-la para outros suportes.
Apesar do fracasso de muitas dessas traduções, algumas tiveram
melhor sorte, como as 71 imagens que Arlindo Daibert criou nos anos
1980 e a premiada adaptação para os quadrinhos realizada pelos gaúchos
Eloar Guazzelli e Rodrigo Rosa, em 2014.23 Nessas transcriações, pode-se
afirmar que os artistas/ criadores/produtores conseguiram resultados de
indiscutível qualidade. Mesmo em trechos de grande tensão narrativa e

23. A publicação recebeu o troféu HQMix 2015 de melhor adaptação para os


quadrinhos.

31
enorme ambiguidade, como a representação do pacto de Riobaldo com o
diabo, essas obras apresentaram boas soluções verbovisuais.
Na obra de Rosa, o sertão físico é transpassado pelo sertão metafísico,
no qual Satanás dá as cartas. A ambiguidade relacionada à existência do
Côxo, o local por ele ocupado e a possibilidade de com ele estabelecer um
pacto são algumas das principais questões que perpassam o pensamento
de Riobaldo, personagem-narrador do romance. “Pois, não existe! E, se
não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele?” 24; “Explico
ao senhor: o diabo vige dentro do homem [...] Solto, por si, cidadão, é que
não tem diabo nenhum”.25 Inúmeros outros trechos poderiam elucidar a
dimensão e a recorrência dessa inquietação vivida pelo personagem.
será que [...] quando um tem noção de resolver a vender a alma sua, que
é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita está
só é certificando o regular dalgum velho trato – que já se vendeu aos
poucos, faz tempo? [...] quem-sabe, a gente criatura ainda é tão ruim,
tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando
por intermédio do diá? [...] Que é que de verdade a gente pressente?
Dúvido dez anos.26

Neste artigo, vamos trabalhar com o conceito de tradução vinculado


ao viés que a entende como transcriação. Desde os estudos propostos por
Jakobson, a noção de tradução encontra-se alargada e não mais se restringe
à mera possibilidade da versão em outra língua, de um texto considerado
“original”. Como lembra Jacques Derrida, em Torres de babel, o linguista russo
Roman Jakobson iniciara a exploração do conceito de tradução intersemiótica
nos seus trabalhos, nos anos 1960, considerando como tradução a obra
que, entre outras possibilidades, interpreta signos linguísticos por meio de
signos não-linguísticos.
Como se sabe, a noção de tradução já havia ganhado novos contornos
desde a publicação do prefácio escrito por Walter Benjamin para sua própria
tradução dos poemas de Baudelaire, em 1923, intitulado “A tarefa do tradutor”.

24. ROSA. Grande sertão: veredas, p. 39.


25. ROSA. Grande sertão: veredas, p. 10.
26. ROSA. Grande sertão: veredas, p. 40.

32
Se, originalmente, o objetivo do tradutor era tornar compreensível um termo
ou discurso original para alguém que desconhecia a língua de origem; na
outra vertente, baseada nas reflexões benjaminianas sobre as traduções
poéticas, a tradução de determinadas obras encontra-se desvinculada da
noção de repetição da informação do texto-fonte e aproxima-se da tarefa
da criação. O tradutor, a partir daí, passa a exercer nova função.
Enquanto na primeira abordagem o texto original é considerado
inviolável, para essa corrente, a tradução atualizaria e transformaria o original,
e, justamente por não ser fiel ao texto-fonte, possibilitaria ao original sua
“sobrevivência”, uma vez que pode atualizá-lo e suplementá-lo. Essa ideia
de tradução como recriação é a base da teoria desenvolvida por Ezra Pound
e pelos poetas concretistas brasileiros, como os irmãos Augusto e Haroldo
de Campos.
A tradução realizada por Daibert do romance rosiano aproxima-se
dessa segunda vertente, embora Daibert não tenha usado apenas o texto de
Rosa como referência para seu trabalho. Segundo o artista, suas imagens são
comentários visuais sobre o sertão, sobre a forma de criação de Guimarães
Rosa e sobre as possibilidades do desenho como linguagem.
Como explicita Diniz, “inúmeros fatores, que não os intersemióticos,
insinuam-se no texto durante o processo de tradução”.27 E, entre esses
aspectos, a autora ressalta a escolha de aspectos culturais como o elemento
primordial na passagem de um texto a outro. Nosso trabalho, portanto,
consiste, primeiramente, em compreender os aspectos trazidos pelos artistas-
tradutores que atualizaram o texto rosiano e, em segundo lugar, verificar
como essa atualização multiplica as possibilidades de leitura do texto literário
que lhes serviu como ponto de partida.
No que diz respeito à existência do “pacto” e do próprio diabo, as imagens
criadas por Arlindo Daibert têm uma abordagem semelhante à de Guimarães
Rosa em Grande sertão: veredas. No livro, a narrativa de Riobaldo deixa
sempre uma dúvida sobre a existência ou não do demo, assim como não se
sabe ao certo se o jagunço fez ou não o pacto. Apesar da série conter várias
imagens com referências diretas (e indiretas) ao Cujo e ao Pacto, neste artigo

27. DINIZ. Literatura e cinema: da semiótica à tradução cultural, p. 13.

33
vamos nos concentrar na análise da prancha 8 e da prancha 41, passando
também pela prancha 9, que é uma espécie de síntese de toda a série.28
A série criada por Daibert tem 71 obras, das quais 51 são desenhos, e o
restante são xilogravuras. Escolhemos essas três pranchas por acreditar que
elas representam bem a maneira como Daibert aborda o tema supracitado.
Para auxiliar as análises, utilizamos o texto de Julio Castañon que acompanha
o livro Imagens do sertão, edição publicada pela Editora UFMG (1998), em
parceria com a Editora UFJF, que reúne todas as imagens criadas por Daibert
para essa série, assim como os comentários do próprio Daibert acerca da
série, reunidos por Castañon no livro Caderno de escritos (1995).
Um bom ponto de partida para falar sobre a presença ou não do diabo
e do pacto nos desenhos escolhidos é a prancha 9, que não tem título. A
princípio, a impressão que temos é que se trata de um amontoado de imagens
de letras, sem uma clareza aparente do assunto, como indica a Figura 1. Se o
leitor diminuir a velocidade do seu olhar e dedicar mais tempo à percepção
dessa imagem, poderá perceber que ela é composta de vários estratos. O
primeiro deles expõe o mapa do sertão, o “mapa real do campo de ação do
romance, os territórios do Urucuia, São Francisco e sertão da Bahia”.29 Sobre
ele, pode-se perceber o mapa ficcional criado por Poty para as orelhas do
livro, combinados de maneira a formar uma espécie de L. Sobreposta a esse
estrato, espalhada por toda a imagem, há uma série de letras que se parecem
a garatujas infantis. Essas letras formam palavras que se referem aos diversos
nomes do diabo e que são citados por Rosa ao longo da sua narrativa.

28. As pranchas de Daibert aqui mencionadas podem ser encontradas no livro


DAIBERT, Arlindo. Imagens do Grande sertão. Editora UFMG/UFJF, 1998.
29. DAIBERT. Imagens do Grande sertão, p. 37.

34
Figura 1: montagem realizada pelo autor a partir das seguintes imagens:
da esquerda para a direita, prancha 9 de Daibert, mapa ficcional criado por
Poty (1ª edição de ROSA. Grande sertão: veredas) e garatujas (detalhe da
prancha 9).

Fonte: DAIBERT. Imagens do Grande sertão.

Para entendermos melhor essa estratégia, vale citar a xilogravura “O


diabo não há” (1984)30, realizada anteriormente a esse desenho, em que o
artista apresenta de forma bem mais clara os nomes do Demônio, em uma
relação de tensão com o título. Na prancha 9, Daibert mantém a rusticidade
da letra, mas disfarça o nome do Diabo quando o insere sobre o mapa que
representa a história de Riobaldo – a ambiguidade sobre a existência ou não
do Demônio permanece.
O recurso utilizado por Daibert, a explosão do texto na prancha 9,
explora os aspectos visuais do texto, evocando as qualidades rústicas do sertão
por meio das garatujas. Ao mesmo tempo, a estratégia dificulta a percepção
dos nomes, sugerindo que o diabo está por toda parte, mas que sua presença
é difícil de perceber. A frase que se encontra na base da imagem, SATANÃO!
SUJO! S... SERTÃO... tanto pode significar a síntese das palavras Satanás e
Sertão, por meio do seu nome espalhado pelo mapa, como pode aludir a
uma negação da sua existência: Satanás, não! (Satanás não há).
Ainda na prancha 9, uma figura situada bem no canto esquerdo se
destaca. Ela ocupa o mesmo lugar de uma figura desenvolvida por Poty no

30. A xilogravura “O Diabo não há” pode ser vista nas páginas 104 e 105 do livro DAIBERT.
Imagens do Grande sertão.

35
mapa criado para o livro. Entretanto, as formas não são exatamente iguais,
sendo possível perceber a interferência de Daibert. Chama a atenção o fato
de que, mesmo sofrendo algumas modificações, a imagem mantém seu
caráter ambíguo, podendo se referir tanto à iconografia do demônio como
à iconografia da heráldica (FIG. 2).

Figura 2: é notável que a imagem de Poty/Daibert oscila entre o mal (demônio)


e o bem (heráldica) evocando uma ideia de ambiguidade.

Fonte: montagem realizada pelo autor.

Visando estabelecer pontes de sentido entre as imagens, podemos


perceber que Daibert utilizou a mesma referência para construir outra
figura na prancha 8 (FIG.3), na qual existem várias digitais escuras, dispostas
em um círculo concêntrico, com uma bola amarelo-alaranjada no centro.
Exatamente ali se encontra a figura à qual nos referimos. Na imagem, a figura
de Poty trabalhada por Daibert lembra um dragão, símbolo que encarna tanto
significados “positivos” quanto negativos. Na imagem analisada, apesar de
manter a referência à heráldica, a ambiguidade é diminuída na medida em
que sabemos que o significado do nome “Lúcifer”, o Diabo, é Portador da
Luz, luz que pode ser encontrada no centro da imagem, no círculo amarelo-
ouro. Além disso, uma das representações de Lúcifer é a do dragão.

36
Figura 3: montagem realizada pelo autor na qual a prancha 8, de Daibert, é
dissecada em seus principais elementos (“Lúcifer” e as digitais).

Fonte: DAIBERT. Imagens do Grande sertão.

Completando essa referência luciferiana e em direção a uma interpretação


bem singular sobre o pacto com o demônio, a escolha de digitais distribuídas
de forma concêntrica podem ser interpretadas como as diversas pessoas que
fizeram o pacto. No tempo histórico em que se desenrola a história, algo em
torno do início do século XX, no sertão de Minas Gerais, lugar afastado da
cidade, a grande maioria dos habitantes era formada por pessoas analfabetas
– letradas como Riobaldo existiam em menor número.

Outras pranchas remontam ao imaginário do pacto


A prancha 41, cujo título é Pacto, também exibe várias camadas de
imagens e traços, rabiscos, garatujas e textos. Em uma delas, uma das
primeiras, vamos perceber mais uma vez o uso das qualidades icônicas do
texto. Nesse caso, há uma interdição do texto por meio do tamanho, o que
direciona o olhar do leitor para as qualidades formais das palavras.

37
Figura 4: montagem realizada pelo autor na qual se vê a prancha 41 e um
detalhe ampliado em que fica evidente que, nessa imagem, o texto não tem a
função de comunicar um conteúdo, a escrita funciona como puro dado visual.

Fonte: DAIBERT. Imagens do Grande Sertão.

Essas qualidades revelam um domínio da escrita por parte daquele que


a executou, sugerindo que o autor tem domínio dessa técnica. Compare, por
exemplo, com os nomes do diabo escritos na prancha 9. Sabendo que o título
dessa imagem é Pacto, podemos supor que esse seria o texto do contrato
com o diabo. Entretanto, a imagem (prancha 41, figura 4) pode referir-se a
qualquer texto. Pode ser, por exemplo, um trecho do livro, como Daibert
escreveu em outras imagens. Nesse exemplo não importa exatamente o
que está escrito, mas, sim, sua qualidade imagética que sugere habilidade
na escrita.
Pelo fato de Riobaldo ser retratado como o jagunço letrado, podemos
relacioná-lo com esse texto e, assim, imaginar que essa imagem é uma
referência ao pacto que Riobaldo fez com o Diabo. É importante notar o
contraste com a prancha 8, em que os pactos de pessoas analfabetas foram
“assinados” com a digital de cada um deles. Poderíamos pensar que uma
daquelas digitais corresponderia ao pacto firmado por Hermógenes, por
exemplo.
Daibert retoma ainda a ambiguidade do texto rosiano, baseando-se na
presença de interdições em suas imagens. Na prancha 9, a veladura parcial
dos nomes do Demônio acaba ressaltando sua presença quase total sobre o

38
sertão. A forma da letra contribui para evocar a primitividade e rusticidade
do sertão, aspectos que são reafirmados nas imagens apropriadas do mapa
de Poty, que dialogam com as pinturas rupestres. Já na prancha de Daibert,
a forma controlada do texto manuscrito no fundo contrasta com o tom
vermelho da letra R e pode referir-se ao sangue do pacto de sangue, ao tom
da paisagem do sertão, ao sangue da guerra.
Na obra de Daibert, podemos perceber seu esforço em sugerir o “efeito”
de sertão na mesma direção daquele proposto por Rosa, no qual predomina a
rusticidade, a primitividade e também os aspectos metafísicos. Essa percepção
confirma as impressões de Castañon expressa no livro Imagens do sertão, em
que ele afirma que, por trás de cada desenho, há uma reflexão que orienta a
criação do artista. Podemos dizer que, no caso das imagens produzidas por
Daibert, os aspectos ressaltados seriam a ambiguidade sobre a existência ou
não do diabo/pacto, a natureza dupla do sertão (física e metafísica) e sua
característica rústica.

O encontro com o Xú
Na cena do pacto, no romance gráfico Grande sertão: veredas, de Eloar
Guazzelli e Rodrigo Rosa, Riobaldo torna-se mero componente do cenário.
O corpo da personagem é misturado ao corpo das letras. A estratégia, além
de aumentar a tensão dramática da cena, lembra um importante aspecto que
deu origem à forma das letras na escrita oriental: sua imitação dos gestos e
posturas corporais. Os artistas gaúchos apostam na representação do corpo
da personagem como extensão da natureza. Ao minimizar o corpo de
Riobaldo na cena, que é reduzido a uma das pontas de um tridente, e ampliar
a dimensão da letra, que sem a contenção dos balões, expande-se por quase
toda a página, a transposição parece reafirmar o poder da palavra expresso
no romance como a única existência indiscutível. Se, em Guimarães Rosa,
o Coisa-má tem sua existência questionável, o mesmo não é dito sobre a
palavra: “O que é pra ser – são as palavras!” 31

31. ROSA. Grande sertão: veredas, p. 48.

39
Figura 5: a representação do corpo de Riobaldo na cena do pacto.

Fonte: ROSA. Grande sertão: veredas: adaptação da obra de João Guimarães Rosa, p.138-139.

Essa similaridade entre a letra e o corpo ou os gestos corporais, muitas


vezes esquecida no mundo ocidental, constitui uma importante chave
de leitura das HQs. Como claramente explicitado pelo cartunista norte-
americano Will Eisner, nas HQs, a possibilidade de a imagem ser lida como
texto, e do texto ser lido como imagem torna-se ainda mais evidente que
em outros sistemas semióticos. Com base na observação dos ideogramas
orientais, Eisner apresenta um exemplo bastante elucidativo sobre o conceito
de devoção. O caractere egípcio, assim como o chinês , utilizado para designar
o conceito de devoção evoca, por meio de seus traços, a postura de um corpo
humano ajoelhado com as mãos unidas, em sinal de súplica.32
Partindo desse ponto de encontro entre a postura corporal e o formato
das letras, a HQ aqui analisada, ao reduzir o tamanho do corpo da personagem
e ampliar o corpo da fonte, lembra a possível troca de lugares ocupados por
cada uma delas, ou seja, o texto torna-se desenho, e o desenho torna-se
texto, exatamente como proposto por Will Eisner. Acoplada a essa ideia, a

32. A imagem desses caracteres pode ser vista em EISNER. Quadrinhos e arte sequencial:
princípios e práticas do lendário cartunista, p. 8.

40
composição da página sugere uma coincidência entre o corpo de Riobaldo
e o espaço ocupado pelo maligno. Ao exibir o jagunço com os braços
estendidos para o alto, o desenho possibilita que o corpo físico da personagem
integre a composição gráfica do nome de o Xú, tanto verticalmente, como
horizontalmente. A estratégia reforça as ideias do romance – “o diabo vige
dentro do homem”33 e “ele está misturado em tudo” 34-, ao mesmo tempo
que sugere, mas não afirma, com certeza, que houve o encontro de Riobaldo
com o diabo na encruzilhada.
Ao expor as letras que fazem menção aos vários nomes do Côxo,
sobrepostas ao mapa do sertão, cortado pela forma de um tridente, a cena
do pacto proposta pela edição do romance na novela gráfica replica, de certa
forma, a ilustração do mineiro Arlindo Daibert. Como as várias traduções de
um romance ampliam os sentidos do texto, ao analisar uma transcriação, é
preciso levar em conta as diversas traduções já feitas do mesmo texto-base,
já que elas também modificam, de alguma maneira, o sentido do texto de
origem. Ao atualizar o texto literário, as traduções ou transcriações aqui
em foco parecem trazer nova espessura à ideia do pacto narrado na obra
rosiana, como mostra a figura 3.
Os trechos literários aí sobrepostos não se restringem às garatujas. A
mancha rosiana também pode ser aí percebida no desenho dos buritis e dos
vaqueiros, nos círculos que guardam o R, de Riobaldo e o D, de Diadorim,
na imagem do demônio, próxima à margem esquerda da ilustração, ou ainda
na figura do triângulo, que também faz menção ao pacto. Considerando-se
a repetição dessas imagens nas diversas traduções e adaptações já divulgadas
em nosso meio social, a aparição desses símbolos parece trazer à tona toda a
carga mítica encapsulada em cada um deles. A exacerbada sobreposição de
signos que fazem menção à mesma ideia parece adicionar espessura à cena
dramática aí explicitada. Como ecos do grito emitido por Riobaldo, cada uma
dessas marcas gráficas replica o desejo do personagem em encontrar o Cujo.

33. ROSA. Grande sertão: veredas, p. 10.


34. ROSA. Grande sertão: veredas, p. 11. Diversos outros trechos reafirmam a premissa da
onipresença do demo. “Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres,
nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”?”
(ROSA. Grande sertão: veredas, p. 10).

41
Na novela gráfica, o corpo de Riobaldo torna-se o centro do tridente
(FIG. 3). Ao erguer os braços, o corpo da personagem replica o movimento
proposto pela parte superior da encruzilhada. É curioso observar que o
alinhamento do texto grafado em vermelho, que faz menção ao grito de
Riobaldo, enquanto esse chama pelo Arrenegado, também acompanha a
curva proposta pela forma do tridente. O personagem encontra-se no centro
da imagem, enquanto o som dirige-se para o alto.
Ao transpor o texto literário que explica o pacto para a linguagem da HQ,
os adaptadores beberam também da herança iconográfica da representação
do Côxo. A fim de representá-lo graficamente, dando forma à inquietação de
Riobaldo, os artistas buscaram os traços do maligno no imaginário medieval.
Embora faça clara referência à cena dramática na qual o sujeito que quer
pactuar deve ir à meia-noite a uma encruzilhada, chamar fortemente o Cujo
e esperar, o texto rosiano não descreve a figura aqui exibida, apenas sugere
sua aparição, após o cheiro de breu queimado, sem, contudo, explicitar sua
forma.
O senhor imaginalmente percebe? O crespo – a gente se retém – então
dá um cheiro de breu queimado. E o dito – o Côxo – toma espécie, se
forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com
sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois. O senhor vê,
superstição parva? Estornadas!... “O Hermógenes tem pautas...” Provei.
Introduzi. Com ele ninguém podia ? O Hermógenes – demônio. Sim
só isto. Era ele mesmo. 35

Os chifres, as garras e os cascos, inferindo a mistura entre humano


e animal foram resgatados de outras representações do mesmo mito, e
não propriamente do texto Grande sertão: veredas. Curiosamente, Daibert
também recupera a figura do demo tal como esse era visto antes do final
da Idade Média.

35. ROSA. Grande sertão: veredas, p. 48.

42
Considerações finais
Tanto no que se refere à existência do Demônio quanto à realização do
pacto, Daibert opta por seguir a direção proposta por Rosa de explorar a
ambiguidade existe/não-existe, ou melhor, o paradoxo, não existe e existe.
Pensando com o auxílio da semiótica, é possível compreender esse paradoxo:
o Diabo não existe como coisa em si (abordagem kantiana), mas existe na
linguagem, ou seja, como representação, como signo. Considerando que
nosso contato com a realidade se dá por meio da linguagem, então ele tem
existência, já que é uma representação, um signo, e quanto mais falamos
nele, mais sua existência é reforçada, mais força tem como significante.
A tradução visual proposta pela HQ acompanha essa proposta:
quando Riobaldo conversa sobre o Diabo, é usada uma imagem do Diabo
que corresponde a um estereótipo clássico para ilustrá-lo. Entretanto, no
momento em que a narrativa correspondente ao Pacto, a presença do Cujo
não é percebida, se não por meio dos seus nomes, escritos em vermelho contra
o fundo negro. Independentemente da existência “real” do Diabo (como
coisa em si), o Pacto existiu, na medida em que Riobaldo se transformou
“realmente” após deixar a encruzilhada.
No caso do trabalho de Daibert, vale ressaltar que sua tradução levou em
conta não apenas o texto de Grande sertão: veredas, mas a própria maneira
como o escritor escreveu esse texto, ou seja, misturando diversas outras
narrativas vinculadas a assuntos diversos, inclusive à sua própria vida, como
o gosto pelo esotérico e pela alquimia. A tradução proposta pela HQ também
apresenta traços dessa multiplicidade de referências, como se pode ver nesse
artigo, quando mostramos a proximidade visual entre a imagem do Pacto
da HQ e a prancha 9 de Daibert.
Por esses motivos, acreditamos que 71 imagens que Arlindo Daibert
criou nos anos 1980 e a adaptação para os quadrinhos realizada pelos gaúchos
Eloar Guazzelli e Rodrigo Rosa, em 2014, tiveram êxito em transcriar a obra
Grande sertão: veredas, apresentando soluções verbovisuais complexas e fiéis
ao espírito da obra de Rosa.

43
Referências
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro tradu-
ções para o português. Organização de Lucia Castello Branco. Belo Horizonte:
Edições Viva Voz, 2008.
DAIBERT, Arlindo. Imagens do Grande sertão. Editora UFMG/UFJF, 1998.
DAIBERT, Arlindo. Caderno de escritos. Júlio Castañon Guimarães (Org.).
Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.
DERRIDA, Jacques. Torres de babel. Tradução de Junia Barreto. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
DINIZ, Thaïs Flores Nogueira. Literatura e cinema: da semiótica à tradução
cultural. Ouro Preto: Editora UFOP, 1999.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial: princípios e práticas do lendário
cartunista, 4ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas: adaptação da obra de João
Guimarães Rosa. Roteiro: Eloar Guazzelli; Ilustração: Rodrigo Rosa. 2ª ed.
São Paulo: Globo livros Graphics, 2016.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.

44
REVISITANDO SHAKESPEARE EM HOUSE OF
CARDS

Brunilda Reichmann
Uniandrade - PR

“Celebração” é possivelmente o termo mais abrangente utilizado


por Thomas Leitch, no livro Film Adaptations and Its Discontents36, ao se
referir a vários tipos de adaptação fílmica, e está intimamente relacionado
ao conceito de “homenagem”, apresentado por Linda Hutcheon em Uma
teoria da adaptação37. A celebração, no sentido de homenagem, pode se
referir tanto ao texto-fonte como ao autor daquele texto38. Quer o adaptador
utilize a transficcionalidade39, quer faça apenas alusão ao título de uma
obra existente, o interesse e a criatividade do artista se detêm, por algum
tempo, naquele texto, não importa a mídia ou mídias utilizadas, trazendo
ao segundo texto algo já existente em outro universo ficcional ou artístico.
Segundo Saint-Gelais, a transficcionalidade defende que universos ficcionais
ou personagens desses universos transitam e atravessam fronteiras que
demarcam diferentes mídias.

36. LEITCH. Film Adaptations and Its Discontents, p. 93-126.


37. HUTCHEON. Uma teoria da adaptação, p. 07-08.
38. Utilizamos o termo “texto” para indicar qualquer modalidade de produção artística
ou midiática.
39. SAINT-GELAIS. Fiction Transfuge.

45
Ao analisarmos adaptações ou recriações, são vários os tipos de
celebração que encontramos. A maioria delas, no entanto, pode ser inserida
dentro de uma dessas três modalidades: 1) celebração por meio da presença
de um texto-fonte em um texto-alvo; 2) celebração por meio da recriação
de um texto-fonte; 3) celebração por meio da alusão de um texto-fonte em
um texto-alvo.
A celebração por meio da presença é a mais difícil de ser encontrada.
Implica a presença do texto-fonte em sua totalidade no texto-alvo. Essa
dificuldade se torna maior quando falamos em diferentes mídias. Podemos
citar como exemplo o poema “Kubla Khan” (1798), de Samuel Taylor Coleridge,
recitado na sua íntegra pela protagonista do musical Xanadu (1980), dirigido
por Robert Greenwald. Nosso encontro com poemas usualmente ocorre
por meio de palavras impressas em papel e não pela recepção auditiva dos
versos. E no caso do musical, o poema de Coleridge, recitado dentro de uma
mídia também visual, multiplica as modalidades em que poemas podem
ser recepcionados pelo ouvinte/espectador. A integralidade dos versos no
musical é uma celebração, no sentido de homenagem, enaltecimento artístico
e público, exaltação ou louvação do poema de Coleridge.
Celebração por meio da recriação é o tipo de adaptação mais
frequentemente encontrado. Nele podemos incluir todas as adaptações
fílmicas de romances e peças, com uma proximidade maior ou menor entre
o texto adaptado e a adaptação. Nesse tipo de celebração, ajustes como
compressão, expansão, atualização, recontextualização são necessários ao
se considerar a linguagem para a qual o texto-fonte está sendo transposto.
Os exemplos são abundantes: O Grande Gatsby, de Baz Luhrmann; Romeu
e Julieta, de Franco Zeffirelli, de Baz Luhrmann, de Carlo Carlei (para 2017);
Hamlet, de Laurence Olivier, de Franco Zeffirelli, de Michael Almereyda,
de Javor Gardev; Orgulho e preconceito, de Robert Leonard, de Joe Wright,
entre muitos outros. A adaptação da trilogia House of Cards, de Michael
Dobbs, para The House of Cards Trilogy, série da BBC, dirigida por Paul Seed,
pertence a esse tipo de celebração. Na série, há celebração dos romances
políticos de Dobbs e de peças de Shakespeare.

46
Celebração por meio da alusão é também uma prática bastante usual. Por
exemplo, ao iniciarmos a leitura do romance Purgatório (2009), do jornalista
e escritor argentino Tomás Eloy Martínez (1934-2010), a intertextualidade
se impõe, ao nos depararmos com o diálogo inevitável entre o título do
romance de Martínez e Purgatório, segundo livro da Divina Comédia, do
poeta italiano Dante Alighieri (c. 1265-1321). Do início ao fim do romance,
Martinez celebra, homenageia, atualiza e recontextualiza a obra do poeta
medieval italiano, mas a celebração não fica apenas na intertextualidade ou
na “mudança de gênero – de poema para romance –”, uma das colocações
de Hutcheon40. No romance de Martínez, há dezenas de alusões a filmes,
programas de TV, músicas, obras de arte. Esse tipo de celebração implica
aumento da densidade do texto-alvo, que se torna, pelo intenso diálogo
entre artes, plurissignificativo.
Entre os muitos escritores renomados, Shakespeare é possivelmente o
autor mais celebrado do mundo. São inúmeras e incontáveis as recriações
de suas obras, principalmente das peças teatrais. Na atualidade, a trilogia
política de Michael Dobbs e as séries televisivas da BBC e da Netflix,
todas intituladas House of Cards, celebram o dramaturgo ao evocar temas,
contextos e personagens e ao expor a dissimulação, a corrupção, a violência
e a criminalidade encontradas no universo literário de Shakespeare. Entre
essas produções, House of Cards da Netflix é a mais conhecida e comentada,
muitas vezes por espectadores que desconhecem sua origem. Portanto,
neste artigo, vamos nos ater à trilogia política de Dobbs e à série da BBC,
para trazermos ao leitor/espectador informações sobre os textos-fontes da
série da Netflix.

A Trilogia de Michael Dobbs


Michael Dobbs, hoje Lord Dobbs, quando atuava como assessor da
primeira-ministra Margaret Thatcher (1987), da Inglaterra, conheceu os
bastidores da política britânica em detalhes e revela esse conhecimento na
trilogia política que inspirou as séries britânica e norte-americana. O primeiro

40. HUTCHEON. Uma teoria da adaptação, p. 29.

47
desses romances (publicado em 1989) foi traduzido para o português em
2014, mas conservou o título em inglês – House of Cards. Esse mesmo título
de sucesso foi repetido nas traduções dos outros dois volumes (publicados
em 1902 e 1904, respectivamente): House of Cards – xeque-mate (Livro 2) e
House of Cards – o último ato (Livro 3), ambas de 2016.
Neles, Dobbs recria, com ironia e sarcasmo, os bastidores da monarquia
parlamentarista da Inglaterra. Cada capítulo apresenta uma epígrafe ao início,
ou seja, uma possível reconfiguração de apartes – ditos mordazes e picantes,
e muitas vezes tragicômicos, sobre a política da Inglaterra.
Se, por um lado, as epígrafes dos três volumes levam o leitor a hesitar
entre a comicidade e a tragicidade da narrativa, emaranhadas na vida pública
e privada, tão próprias do dramaturgo inglês, por outro, elas afinam o ouvido
do leitor à voz e planos do protagonista Francis Urquhart, tornando mais
fácil a aceitação das vilanias cometidas ou que viriam a ser cometidas por
ele. A narrativa de Dobbs é construída de forma episódica, mas, nos dois
primeiros volumes, conserva a linearidade. No terceiro volume, há uma maior
complexidade técnica até então não registrada: há fusão entre passado e
presente, entre arrependimento e crueldade, entre determinação e dúvida.
A narrativa caminha, portanto, num crescendo de intensidade dramática
e apresenta um final ousado, inesperado, surpreendente e bombástico no
terceiro volume.
House of Cards (Livro 1) revela que a dissimulação, a intriga, a traição,
a criminalidade reinam nos bastidores do poder, não importa o país. Ao
ajudar a eleger o primeiro-ministro fictício que sucede a Margaret Thatcher,
impulsionado pelo instinto de vingança por não ter conseguido um cargo
sênior no gabinete, Francis Urquhart, vice-líder da bancada conservadora
do Parlamento inglês, promete se vingar e trabalha para a desmoralização e
queda do primeiro-ministro, Henry Collingridge, que ajudara a eleger. Ele tem
nas mãos os políticos do país e está disposto a tudo para se tornar primeiro-
ministro. Mortima, sua esposa, é silenciosa e quase invisível no romance.
Sabemos que eles têm um casamento aberto, sem cobranças. Afastam-se de
casos ou amantes em época de campanha.

48
House of Cards – xeque-mate (Livro 2): depois de pavimentar sua escalada
ao poder, o primeiro-ministro recém-eleito, Francis Urquhart, tem de lidar com
o Chefe de Estado. A monarquia na Grã-Bretanha fica, então, sob escrutínio
do primeiro-ministro, que ameaça expor segredos reais quando seus planos
são questionados pelo rei idealista. As diferenças de opinião entre Urquhart
e o rei rapidamente se transformam em hostilidade aberta. A batalha entre os
dois é travada, pelo lado de Urquhart, com pesquisas de opinião fraudulentas,
manchetes manipuladas, escândalos sexuais e ameaça de desastre econômico,
que, ao mesmo tempo, empenha-se em destruir o rei, seus familiares e amigos.
As peças “do jogo de xadrez” são cuidadosamente movimentadas no jogo de
poder entre Urquhart e o rei até o xeque-mate.
House of Cards – o último ato (Livro 3): Francis Urquhart está prestes a ser
o primeiro-ministro que permanece, no século XX, por mais tempo no poder,
mais do que os 4.227 dias de Magaret Thatcher. No entanto, o povo inglês está
cansado dele, e o movimento para forçá-lo a afastar-se cresce continuamente.
Ele, no entanto, ainda não está pronto para deixar o poder. Se o público exige
mudança, é precisamente isso que ele vai lhes dar, no mau sentido. O Francis
Urquhart desse volume é mais cruel e determinado, porém fragilizado pela
idade. Após dez anos como chefe do governo, é constantemente visitado
por fantasmas do passado. Ele vivencia com frequência detalhes de crimes
perpetrados por ele no passado: os sons que marcaram a queda da jornalista
e amante Mattie Storin do terraço do Parlamento, dez anos antes, e a visão
e o cheiro dos corpos de dois adolescentes cipriotas, ao serem queimados
vivos, há cerca de 40 anos.

The House of Cards Trilogy (série da BBC)


The House of Cards Trilogy, levada ao ar de 1990 a 1994, tem como
diretor Paul Seed e como personagens principais Henry Collingridge [David
Lyon], primeiro-ministro; Francis Urquhart – F.U. [Ian Richardson], vice-
líder do Partido Conservador; Elizabeth Urquhart [Diane Fletcher], esposa,
incentivadora e cúmplice de Urquhart; Mattie Storin [Susannah Harker],
jornalista e amante de Urquhart.

49
Essa série é uma celebração por meio da recriação da trilogia de Dobbs
em audiovisual e se mantém próxima aos romances. Não podemos dizer que
ela estende a diegese, pois tem apenas 12 episódios na totalidade, divididos
em três temporadas, cada uma recriando um volume da trilogia. A primeira
temporada foi ao ar em 1990, logo após a publicação do primeiro romance
da trilogia de Dobbs. Essa temporada se caracteriza por citar trechos de
Macbeth, Ricardo III e Otelo, de Shakespeare, ipsis litteris, o que não ocorre
nos romances. Em termos de técnica cinematográfica, grande ênfase é dada
ao rosto e expressão do olhar de Urquhart. Sendo ator shakespeariano, Ian
Richardson traz ao seu desempenho uma “tensão” das peças de Shakespeare e
fala, também com o olhar, aos seus espectadores. Uma rápida observação da
capa do DVD, leva-nos imediatamente a Dobbs e a Ricardo III. “This is the
fire of my discontent” [Este é o fogo de nosso desgosto]41, escreve o escritor
contemporâneo, reconfigurando a primeira linha de Ricardo III: “Now is the
winter of our discontent” [Agora, o inverno de nosso desgosto]42. A imagem
do fogo na capa do DVD relaciona-se de forma contundente à paixão pelo
poder que queima no âmago de Urquhart. A única alteração de nome na
série, de Mortima para Elizabeth, desfaz a excentricidade do nome nos
romances, faz alusão a Elizabeth I e a Elizabeth II (reinado de maior duração
na história do Reino Unido) e sugere uma sobreposição da força inerente
às duas rainhas na personagem feminina da série. Agora Elizabeth não só
está presente e tem voz, como é instigadora e cúmplice, tanto nos planos
insólitos como nos assassinatos do marido, fazendo alusão à Lady Macbeth.
Seguem-se outras peculiaridades da série: o abuso do mantra, com
pequenas variações: “You might as well think that, but I couldn’t possibly
comment”; a filmagem do espaço de “reclusão” do protagonista: o terraço
suspenso no prédio do Parlamento, de onde ele pode observar seu “reino”;
as cenas intercaladas de Urquhart com a espingarda, matando aves com seu
tiro certeiro, e de enormes ratazanas movendo-se nos telhados dos prédios
da administração de Londres e em locais imundos da cidade londrina: em
viadutos abandonados e lixões da cidade.

41. Todas as traduções são minhas, salvo indicação contrária.


42. Tradução de Barbara Heliodora.

50
O protagonista utiliza um modus operandi muito peculiar ao vazar
informações para a jornalista. Ele não as passa diretamente; vai insinuando
e fazendo perguntas que são repondidas pela jornalista, para parecer que
ela própria chegou ao “furo de reportagem”, que ele tem intenção de fazer
vazar. Por isso, Urquhart repete: “You might as well think that, but I couldn’t
possibly comment” [Você pode muito bem chegar a essa conclusão, mas eu
não posso comentar]. Urquhart refugia-se, para usufruir suas conquistas
e observar seu “reino” no terraço do prédio do Parlamento. É um lugar
aparentemente desconhecido dos demais e principalmente da jornalista
Mattie. Na série, Mattie descobre que Urquhart é o assassino do Diretor de
Publicidade do Partido Conservador, Roger O’Neill, quando ela está com o
amante no terraço e é convidada para passar um tempo com ele em sua casa
de campo. O’Neill morrera envenenado na estrada que leva à casa de campo.
As cenas em que atira nas aves com precisão, enquanto conversa com
seus espectadores, apresentadas como um refrão, são simbólicas dos tiros
certeiros contra seus oponentes, ao colocar seus planos de destruição em
execução. As cenas das ratazanas não são apenas fictícias, apesar de elas
carregarem um significado simbólico muito sugestivo sobre os políticos
ingleses na série, inclusive sobre Urquhart.43 Além de transmissores de mais
de cinquenta e cinco doenças, entre elas a leptospirose, as ratazanas e os ratos
são famosos por serem considerados “atletas em sua especialidade”44. Atleta
em sua especialidade e rápido na invenção de atalhos para chegar ao poder,
Urquhart depõe seu líder – o primeiro-ministro Henry Collingridge – pela
sagacidade de suas sugestões e propostas, pela vilania de sua atitude e pela
corrupção de seus intentos. Resumindo, as ratazanas e os ratos simbolizam
o caráter espúrio do parlamentar que provoca a disseminação da “praga”
ou do mal na administração de seus países.
Além da inserção dessas cenas simbólicas na série da BBC, a grande
modificação se dá na conclusão da série se comparada à trilogia. No terceiro
romance de Dobbs, o primeiro-ministro é assassinado num comício de seu
opositor – Tom Makepeace – pelo cipriota grego, Evanghelos Passolides, irmão

43. CARMO. Ratazana gigante capturada nos arredores de Londres. Correio da Manhã.
44. KENSKI. Rato, o pior amigo do homem.

51
dos adolescentes mortos em Chipre. O cipriota é, por sua vez, assassinado
por Corder, segurança do primeiro-ministro. Na série, não há comício, mas
a inauguração da estátua de Margaret Thatcher, momento execrado por
Urquhart. Nesse momento, um franco atirador, contratado pela esposa e pelo
segurança, atira no primeiro-ministro. Matar Urquhart é a solução encontrada
por Elizabeth e Corder, para que o primeiro-ministro se transforme em mártir
e herói. Para Dobbs, o “nascimento” de Francis Urquhart acontecera aos 23
anos, em Chipre, quando queimara vivos os adolescentes; na série, só os queima
depois de tê-los matado com tiros, para que não possam ser identificados.
Agora nascimento e morte se unem, pois ele é assassinado pelo irmão daqueles
adolescentes. De qualquer forma, em ambos os textos, o cipriota é considerado
o assassino, e Urquhart vence no final. No romance, Makepeace, que estava
praticamente eleito, diante de um público de 40.000 pessoas, é derrotado pela
presença, pelas palavras e pela morte de Urquhart, e o partido Conservador
permanece no poder. Na série, ele entra para a História, sendo considerado
um dos mais heroicos e longevos chefes de governo do Reino Unido.

House of Cards, da BBC, e Shakespeare


O protagonista da série da BBC, Ian Richardson, é um ator shakespeariano
e leva para suas atuações a experiência da interpretação de peças de
Shakespeare, recriando características de protagonistas como Macbeth,
Ricardo III e Iago, e se movimentando no substrato shakespeariano, já
existente na trilogia de Dobbs.
O protagonista (nos romances e na série) sente-se traído por seu superior,
pelo não cumprimento de promessa feita ou expectativa não consumada.
Assim como em Otelo, peça na qual Iago, que acreditava ter direito ao cargo
de Tenente, é preterido por Otelo, que dá o cargo a Cássio, Urquhart sente-se
traído pelo primeiro-ministro, ao não lhe ser dado o cargo de conselheiro
sênior no gabinete do líder político da nação.

52
Em Otelo, Iago, irado, desabafa com Rodrigo:
Iago: [...] três grandes nomes
Da cidade, para ver-me seu tenente,
Suplicaram por mim; e tenho fé
Que sei meu preço e mereço o posto
Mas ele [Otelo], só pensando em seus caprichos [...]
Renega os que me apoiam: “Juro”, diz,
“Que já selecionei meu oficial.”
E quem é ele?
Um grande aritmético, sem dúvida,
Um tal Michele Cassio, florentino,
Amaldiçoado com uma bela esposa
Que nunca pôs em campo um esquadrão,
Nem sabe como as tropas são dispostas
Melhor que uma mulher [...]
Ser guarda-livros desse matemático;
Pois ele, agora, é que será tenente,
E eu, por Deus, alferes do ilustríssimo. (Ato 1, Cena 1)

A série tem início com uma gravação plongé da escrivaninha de Urquhart.


A câmara então faz um close na cabeça do vice-líder que, recolhido em seu
gabinete, toma em suas mãos a foto de Margaret Thatcher, observa-a e diz:
“Nothing lasts forever!”[Nada dura para sempre!] e emborca a foto sobre a
escrivaninha. Vira-se e, olhando fixamente para o espectador, diz: “Even the
most long and glittering reign must come to an end” [Mesmo o mais longo
e esplêndido reinado deve chegar ao fim]. Ao relatar a “traição” à sua esposa
Elizabeth – o primeiro-ministro não vai lhe dar um cargo sênior em seu
gabinete, como esperado por Urquhart –, ela o incita a vingar-se do primeiro-
ministro. Há, portanto ajustes, recontextualização e atualização de Macbeth,
de Shakespeare, que, depois de escutar os vaticínios das bruxas, chega ao seu
castelo e é recebido por Lady Macbeth, que o incentiva a apressar sua ascensão
ao trono da Escócia, assassinando Duncan, o rei e amigo.
O protagonista demonstra um desejo implacável pelo poder. Urquhart
não titubeia em cometer assassinato, se o crime o livrar de “contratempos” ou

53
o levar mais próximo ao poder. O primeiro a ser assassinado é Roger O’Neill,
assessor de imprensa do parlamento, corrupto e viciado em cocaína. Ao
descobrir o envolvimento de Urquhart no assassinato do assessor, a jornalista,
Mattie Storin, amante do parlamentar, é assassinada por ele, com conhecimento
ou aval da esposa. Temos aqui uma releitura de Macbeth e de Ricardo III, no
que se refere ao instinto assassino de seus protagonistas. Com Macbeth, o
desejo de eliminar Duncan, o rei da Escócia, surge ao escutar a predição das
bruxas que o saúdam como Duque de Cawdor, Duque de Glamis e futuro
rei da Escócia. Esse desejo é acolhido e estimulado por Lady Macbeth. Na
série da BBC, ao sair da festa de final de ano, depois da eleição do primeiro-
ministro Collingridge, uma das convidadas, considerada uma bruxa por
Elizabeth, diz a Urquhart que ele deveria ser o primeiro-ministro. Ele se
afasta e, antes de entrar no carro, repete a predição das bruxas em Macbeth:
“Duque de Cawdor, Duque de Glamis e futuro rei da Escócia”. Com Ricardo
III, o desejo de ser rei o faz ordenar a morte de todos os membros da sua
família que teriam direito à ascensão ao trono antes dele e propor casamento
(depois de ter eliminado a esposa Lady Anne) a uma das sobrinhas, filha do
rei, seu irmão, que o antecedeu, para “legitimar” sua conquista. Assim como
Ricardo III, Urquhart também deixa um rastro de sangue na sua trajetória.
Urquhart é ardiloso, movido por ambição, crueldade, vilania e inveja.
Quando outro político é escolhido para fazer parte do gabinete do primeiro-
ministro, inicia-se o desejo de vingança do protagonista, que detém informações
privilegiadas sobre seus colegas ou arma e grava situações e diálogos
comprometedores, de envolvimento com drogas, prostituição, corrupção e
traição, para chantageá-los e tirá-los do caminho em sua escalada ao poder.
Ricardo III, cego pela ambição de chegar ao trono da Inglaterra, não hesita
em mandar matar irmãos e sobrinhos, ainda crianças. Macbeth, ao ver as
primeiras predições das bruxas se realizarem, é movido pela devastadora
ambição de ver a última predição – tornar-se rei da Escócia –, concretizar-
se. Portanto, mesmo antes de hospedar Duncan, o então rei da Escócia, em
seu castelo, planeja, juntamente com a esposa, o assassinato do soberano.
Depois, já coroado rei, acreditando também na predição das bruxas que os
próximos reis da Escócia seriam da linhagem de Banquo, seu companheiro

54
de batalha, contrata assassinos para matar Banquo e seu filho durante um
passeio a cavalo. Banquo é morto, mas seu filho escapa. Quando Macbeth
não consegue destruir os líderes da rebelião que almejam derrotá-lo, mata
suas famílias e empregados. A vida de Macbeth, a princípio guerreiro de
grande valor, depois do encontro com as bruxas, é marcada por um rastro
de sangue até sua morte. Já na peça Otelo, o mouro de Veneza é manipulado
por Iago que, revoltado por não ter sido escolhido como tenente, vinga-se ao
inventar que a esposa do general está envolvida emocionalmente com Cássio,
que tinha sido escolhido em seu lugar. Otelo tem um papel semelhante ao do
primeiro-ministro dos romances e da série da BBC. É ingênuo a ponto de se
deixar levar pelas insinuações do alferes, de ver “provas da infidelidade da
esposa” onde elas não existem, de ficar “cego de ciúme” e convencido de que,
como as mulheres de Veneza eram levianas, Desdêmona também o seria,
além do fato de que, assim como habilmente enganou o pai, com a mesma
facilidade enganaria o marido. Collingridge, assim como Otelo, passa a ser
uma marionete nas mãos do subalterno que tem sede por vingança e almeja
o poder.
Urquhart tem grande poder de dissimulação e manipulação – segundo ele,
é necessário ter um “peão” para os serviços “sujos” e a mídia para vazamentos
de informação sigilosa, revelação de segredos degradantes dos parlamentares
e manipulação de resultados de pesquisa de opinião, mudando assim o rumo
da política. Geralmente os alvos escolhidos são viciados e, ao cooptá-los,
o protagonista os salva de acusações que poderiam vir a comprometê-los.
Faz homens “fracos”, com dependência química e histórico de corrupção e
relacionamento com prostitutas, servirem a seus propósitos espúrios e, ao se
tornarem uma ameaça, realiza uma “queima de arquivo”. Na série, conhecemos
os planos de Urquhart por meio dos apartes, que são de fundamental
importância para o conhecimento da personagem e o desenvolvimento da
narrativa, como vemos principalmente em Ricardo III e em Otelo, com o
personagem Iago.
Em outras palavras, a quebra da quarta parede, ou seja, as informações
que outros personagens desconhecem e são passadas para os espectadores pelo
“vilão” nos apartes ou nos solilóquios – quer em Ricardo III , quer em Otelo

55
(com a personagem Iago) – são incluídas na série. Essas informações “sigilosas”
nos aproximam do vilão e nos tornam cúmplices em suas maquinações e
crimes. No início da série, o protagonista Urquhart leva-nos pela mão para
contextualizar o momento e apresentar os personagens; para descrever outros
parlamentares com expressões desairosas e revelar planos maquiavélicos de
forma irônica e jocosa, banalizando muitas vezes atitudes imorais e criminosas
e, assim, manipulando-nos como manipula seus líderes. Urquhart entra na
sede do Parlamento e sobe as escadas conversando com os espectadores,
dias antes da vitória do primeiro-ministro do partido Conservador, Henry
Collingridge. Ao passar por seus companheiros, vai descrevendo aqueles
que terão mais importância na narrativa. O plano de vingança, que surge
após a eleição, não é conhecido pelos outros personagens. Nós, no entanto,
temos essa informação privilegiada. A revelação de vingança dá-se por meio
de um aparte, quando Urquhart, sozinho, sentado à mesa do seu gabinete,
revela que as coisas não vão ficar como estão. Portanto, é por meio dos
apartes, técnica bastante utilizada em Otelo e Ricardo III, que conhecemos
a verdadeira natureza de Urquhart. Os apartes e solilóquios de Ricardo e
de Iago, semelhantes aos da série, também nos revelam o “vício/arte da
dissimulação” e, principalmente com Iago, o poder de manipulação e o
planejamento meticuloso de sua vingança.
Em Ricardo III, o caráter dissimulado do protagonista não é uma
informação privilegiada dos espectadores. Essa característica já é conhecida
por algumas das personagens, principalmente pelas mulheres da corte.
“Sangrento és, sangrento será o teu fim”, havia vaticinado a mãe de Ricardo.
Além da ideia fixa de matar aqueles que estão no caminho de sua escalada
ao trono da Inglaterra, há poucos momentos em que ele arquiteta outros
planos, como, por exemplo, quando ele conquista Lady Anne e casa-se
com ela e, tempos depois, solicita que espalhem a notícia de que ela está
muito doente, para que sua morte não seja apenas outra surpresa com a
qual a corte e o povo inglês tenham de se deparar. A morte de Lady Anne
o deixaria livre para pedir a mão da sobrinha em casamento, legitimando
sua ascensão ao trono.
Iago, por outro lado, além de ser dissimulado, arquiteta um plano ardiloso
e sutil para incutir em Otelo um ciúme avassalador de sua esposa Desdêmona.

56
Dos personagens shakespearianos mencionados neste trabalho, Iago é quem
tem o maior poder de articulação e manipulação. Ele é habilidoso nas ações,
na fala, na expressão corporal e facial. No início de sua insinuação a Otelo
de que Desdêmona é infiel, ele “finge relutar” em dizer o que pensa, repete
as perguntas feitas por Otelo, numa pretensa tentativa de evitar falar sobre
o problema, e franze a testa para indicar uma possível preocupação.
Iago: Nobre senhor...
Otelo: o que me diz Iago?
Iago: durante sua corte, soube Cássio
Do seu amor?
Otelo: Desde o início... Mas por que a pergunta?
Iago: só para satisfazer um pensamento.
Sem mais mal.
Otelo: Mas no que pensou Iago?
Iago: Eu não julgava que a conhecesse
Otelo: Serviu-nos de correio muitas vezes.
Iago: É mesmo
Otelo: É mesmo? É mesmo: mas o que vê nisso.
Ele não é honesto?
Iago: Honesto, senhor?
Otelo: Honesto? Sim, honesto.
Iago: Senhor, no que eu saiba.
Otelo: O que está pensando?
Iago: Pensando, senhor?
Otelo: Pensando, senhor? Por Deus, faz de eco,
Como se ele pensasse em algum monstro,
Feio demais pra vista: o que é que pensa?
Ouvi, há pouco, que não gosta disso,
Quando Cássio saiu; do quê não gosta?
E quando disse que sabia tudo,
Durante minha corte, disse “É mesmo?”
Franzindo nesse instante a sua testa
Como tentando trancar em seu cérebro

57
Alguma ideia horrível: se me ama
Diga o que pensa. Otelo (3.3.19-15)

Iago tem um senso apurado para as fraquezas de suas vítimas. Ele sabe
que é mais eficaz insinuar algo a Otelo do que levá-lo à ira, ao ser direto
em sua fala. Em vez de verbalizar sua calúnia, ele fala da leviandade das
mulheres de Veneza e da facilidade com que Desdêmona enganara seu pai.
Iago: [...] Olhe bem a sua esposa com Cássio;
Com um olhar sem ciúme ou segurança.
Não quero vê-lo, nobre e generoso,
Ser por isso abusado; fique alerta:
Conheço os hábitos da nossa pátria;
Em Veneza elas deixam ver coisas
Que não ousam mostrar a seus maridos:
O feito só não pode ser sabido.

Otelo: O que me diz?

Iago: Ela enganou o pai para casar-se,


E ao parecer temer o seu aspecto,
Ela o amava.

Otelo: Amava, sim.

Iago: E então...
Se tão jovem podia fingir tanto,
Cegando o pai a ponto de ele crer
Que houvesse bruxaria: mas me culpo
E só imploro pelo seu perdão,
Por tanto amá-lo. Otelo (3.3. 19-15)

Iago desempenha um variado número de papéis de forma convincente:


com Otelo ele transita de empregado leal a amigo honesto e solidário; com
Desdêmona ele é simpático e afável; com Cássio ele é informal e amigável;
com Rodrigo ele pode revelar um pouco mais de sua vil personalidade, mas
só sabemos quem ele realmente é pelos seus solilóquios e apartes. Urquhart,
assim como Iago, provoca e administra uma série de desastres na vida de

58
outros personagens, seus colegas e supostos amigos; arquiteta sua vingança
e a queda de seu superior ou desafetos passo a passo; desempenha vários
papéis, dependendo do momento e da pessoa com quem está conversando;
tem uma percepção apurada a respeito das fraquezas de suas vítimas. Sabe
que meias palavras e insinuações são mais poderosas e destrutivas do que
acusações declaradas e abertas.
A série da BBC, portanto, atualiza o contexto das peças de Shakespeare
e afina as características do protagonista ao contexto adaptado. As alusões
constantes a vilões em Shakespeare celebram as criações do dramaturgo,
intensificando a crueldade humana dentro de um cenário contemporâneo.

Considerações finais
House of Cards (trilogia e série da BBC) compreendem, grosso modo, dois
ou mais textos em interação (intertextualidade entre as peças de Shakespeare e a
trilogia de Michael Dobbs); duas ou mais mídias em interação (intermidialidade
entre a trilogia de Dobbs e a série da BBC) e duas ou mais culturas em interação
(interculturalidade entre a Inglaterra dos séculos XVI e XVII e a Inglaterra do
século XX). Na Inglaterra de Shakespeare imperava a monarquia absolutista,
na qual o rei é o chefe de estado e o chefe do governo. Na Inglaterra de
Dobbs, a monarquia parlamentarista tem a rainha como chefe de estado e
o primeiro-ministro como chefe de governo. Portanto, como dissemos no
início do trabalho, ajustes, atualizações, recontextualizações são necessários
para a recriação e recepção das séries.
Enfim, tanto a trilogia de Dobbs como a série da BBC celebram a arte
de Shakespeare: os romances políticos de Dobbs atualizam os temas do
dramaturgo inglês, recontextualizando as paixões humanas nas esferas
políticas da Inglaterra no século XX. A série da BBC adapta esses romances
e insere técnicas utilizadas pelo dramaturgo, como apartes e solilóquios, para
adentrar não apenas a natureza do protagonista, mas para também cativar
o espectador que detém informação privilegiada e se torna cúmplice nas
tramas, corrupção e vilania de líderes políticos.
Digno de nota, antes do fechamento deste artigo, é o comportamento
de Collingridge, primeiro-ministro do Reino Unido. Ele é manipulado pelo

59
protagonista, afasta-se do cargo e não concorre à reeleição. Apesar de ser
ingênuo como Otelo e facilmente enredado pelas maranhas sutis e silenciosas
daquele de quem planeja se vingar, é um personagem ponderado, lúcido,
comprometido com o desenvolvimento e progresso do país e com o seu
povo. O primeiro-ministro Collingridge e também o rei representam com
dignidade e consciência a vontade pública de acertar, de fazer o melhor pelo
povo de seu país. O maior problema desses líderes é a confiança depositada
em políticos inescrupulosos e corruptos que os cercam. Acompanha essa
construção positiva dos líderes da nação uma apologia a Elizabeth I (rainha
da Inglaterra de 1558 a 1603), nos tempos de Shakespeare, e a Elizabeth II
(rainha da Inglaterra de 1953 até a atualidade), nos tempos de Dobbs e Seed.

Referências
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da Manhã. Disponível em: http://www.cmjornal.xl.pt/insolitos/detalhe/
ratazana_gigante_capturada_nos_arredores _de_londres.html. Acesso em:
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2014.
DOBBS, M. House of Cards – xeque-mate. Tradução de Carlos Haag. São
Paulo: Benvirá, 2016.
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e Ana Amélia de Queiroz C. de Mendonça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2013. (Saraiva de bolso)
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do francês por Cibele Braga, Erika Vieira, Luciene Guimarães, Maria Antônia
Ramos Coutinho, Mariana Arruda e Miriam Vieira. Edições Viva-Voz. Belo
Horizonte: UFMG/Faculdade de Letras, 2010.

60
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HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel.
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KENSKI, R. Rato, o pior amigo do homem. Disponível em: http://super.
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LEITCH, Thomas. Between Adaptation and Allusion. In: Film Adaptations
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22, p. 104-107 (maio, 2017).
PAVIS, P. Dicionário de teatro. Tradução sob direção de J. Guinburg e Maria
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SAINT-GELAIS, R. Fiction Transfuge. Paris: Seuil, 2011.
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STAM, R. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade.
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TWEETER@HOUSEOFCARDS. Twitter oficial de House of Cards brinca
com crise política do Brasil. Disponível em: http://www.infomoney.com.br/
negocios/como-vender-mais/noticia/6475319/twitter-oficial-house-cards-
brinca-com-crise-politica-brasil. Acesso em: 29 maio 2017.

61
62
DO FACEBOOK PARA O LIVRO : REDES
SOCIAIS DIGITAIS COMO ESPAÇO PARA A
ESCRITA (POÉTICA) DO COTIDIANO

Vanessa Cardozo Brandão


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Em que fronteira borrada entre mídia e arte poderia um conjunto de


textos publicados no Facebook adentrar o universo literário? Como textos
escritos e lidos na vida cotidiana, registrados e recebidos no espaço fluido
da ocorrência da tela de celular que corre ao deslizar de um dedo (ou do
computador) podem ser definidos? Entre relatos biográficos e ficção, entre a
vida vivida, midiatizada e narrada em rede, entre a web e o livro – em que lugar
estará um escritor que se fez no espaço das redes digitais? Considerando-se
que possam ser literários os textos produzidos no e para o fluxo intermídias
na web, em qual gênero podem ser encaixados os textos de uma voz autoral
que se manifesta por meio de sucessivas postagens no Facebook: biografia,
poesia, contos, crônicas? Aliás, se ainda precisamos de categorias literárias,
seriam essas as mais adequadas para assegurar a compreensão do fenômeno
literário do nosso tempo?
“O que é a literatura?” Essa não parece ser a questão central para o tempo
carregado de narrativas em que vivemos. Assim como Antoine Compagnon,
considero urgente interrogar “Literatura pra quê?” (2012). Por também julgar
essa a mais importante questão é que se justifica o trabalho sobre a literatura

63
possível no mundo das mídias, nas redes sociais digitais. Uma questão que
não se volta apenas a uma forma literária ou a uma “expressão da ficção”,
mas antes é dirigida à crítica do nosso conhecimento – vasto e ao mesmo
tempo ainda precário – desse objeto impreciso e mutante que é a Literatura.
Na tela das redes digitais, a escrita poética acontece quase que
concomitantemente à leitura e recepção estética, chamando a atenção para a
discussão que se pretende apresentar de forma preliminar e hipotética neste
breve ensaio, dentro do contexto mais amplo da pesquisa sobre manifestações
da literatura em espaços digitais: a compreensão da literatura como topografia
do texto, espaço-paisagem de natureza poética que se manifesta por meio da
escrita. Se a tela se configura como espaço-mídia, no mundo da mediação
das tecnologias de comunicação digital, de forma paralela, as múltiplas telas
digitais podem também restituir a escrita como lugar, ou ainda, o texto como
“disposição topográfica” de uma “página paisagem”45, tomando por inspiração
a leitura de Michel Collot sobre o elo entre arte, paisagem e sensação, que
na literatura se manifesta pelas palavras como matéria originária.
Fenômeno bastante recente, o trânsito entre a tela e o livro torna-se cada
vez mais frequente46. Vários poetas estão fazendo uso das redes digitais como
espaço de escrita e interação com seus leitores, migrando posteriormente à
mídia-livro. O autor que abordaremos neste ensaio realizou este movimento:
dos textos da linha do tempo publicados no Facebook para o livro Rio em
Shamas (2016). Anderson França – o Dinho – foi escolhido como objeto
desta análise não apenas por ter realizado essa transposição, mas porque,
nos seus textos, o elo entre literatura e espaço se oferece para reflexão em
várias dimensões. Em sua escrita, soma-se à transposição da tela para a
página outra importante questão da teoria literária: a do elo entre espaço
e sua representação na expressão poética do texto. Todas essas camadas
podem ser vistas na escrita do autor. Da tela da maior rede social digital do
nosso tempo emergem “páginas-paisagem” da realidade urbana do Rio de
Janeiro. Cada postagem é um acontecimento que se desvela ao olhar do leitor,

45. COLLOT. Poesia, paisagem e sensação, p. 26.


46. Cf. reportagem de Juliana Lima no Jornal Nexo que mostra a conexão entre a
emergência de novos escritores e poetas nas redes sociais digitais e o mercado editorial:
“Quem são os ‘instapoetas’, que fazem sucesso publicando poemas no Instagram.”.

64
convidando-o à visão-sensação da cidade carioca, que parece se apresentar
como um conjunto ambivalente: por um lado, expressão de visualidades da
realidade exterior de um lugar – a geografia suburbana carioca –, por outro,
expressão poética de experiências e sensações vividas por um sujeito-objeto
dessa cidade, que as compartilha com o leitor em sua escrita cotidiana, escrita
e lida no espaço da rede social digital.

Configurações poéticas nas redes sociais digitais: o espaço da


escrita em fluxo
Comecei a ler Anderson França em um procedimento comum à leitura
em redes sociais digitais: a descoberta do texto por compartilhamento/
recomendação de amigos. Depois de dois ou três textos que me impactaram
fortemente – textos que foram “curtidos e compartilhados”, fazendo minha
interação de sentidos no ato da leitura se tornar uma ação de interatividade
digital típica da mídia propagável, nos termos de Henry Jenkins (2014) –,
foi natural adicioná-lo às minhas preferências de leitura por meio da ação
“seguir perfil”: essa affordance47 típica dos leitores das redes digitais, propiciada
pela disposição tecnológica.

47. Embora não seja o recorte deste artigo explorar em profundidade os mecanismos de
leitura nas redes digitais, toma-se aqui o conceito de affordance, de Gibson, apropriado
para pensar a relação entre agente e ambiente no seu entorno, porque essa perspectiva
se alinha à percepção da importância do espaço nos processos de percepção e ação dos
sujeitos, pensando em termos de uma inter-ação entre leitores e ambiente de leitura. Aqui,
affordance diz das possibilidades de ação dos sujeitos dentro das configurações das redes
digitais pela sua estrutura tecnológica e o modo como ela prescreve determinadas ações
de leitura, como o ato de seguir perfil de um autor por parte dos leitores, o que termina por
materializar maior ocorrência dos textos desse autor na tela-página desse leitor por meio
de sua interação com a rede. (Ver GIBSON. The ecological approach to visual perception:
classic edition, 2014).

65
Figura 1: perfil de Dinho no Facebook.

Fonte: <https://www.facebook.com/DinhoEscritor/>. Acesso em: 13 out. 2017.

Assim como no passar das páginas de um livro, a cada texto, constrói-


se no imaginário do leitor um escritor, e, pouco a pouco, o espaço da tela
converte-se em uma sequência de “páginas” lidas, assim reconhecidas pelos
seguidores – fato que se comprova reiteradamente pela leitura dos comentários
dos leitores e várias postagens, na maior parte elogiando a qualidade do
texto e recomendando a leitura dos textos do escritor a amigos. A qualidade
poética do texto é reconhecida por muitos (em menos de dois anos a página
do escritor alcançou quase 110 mil “curtidas”) e se manifesta como expressão
de uma voz que, no caso de Anderson França, revela aos olhos do leitor um
ponto de vista singular sobre a realidade sub-urbana (abaixo da superfície
da cidade), periférica (deslocada do centro), marginal (à margem): uma
escrita que desloca a língua da servidão ao poder - literatura.
Dessa forma, a literatura emerge como acontecimento, revelando-se
enquanto é tecida: não aparece de pronto, como objeto literário inteiro,

66
senão como uma atividade escrita que revela sua potência na interação e no
seu impacto afetivo sobre o leitor. Literatura que não pode ser meramente
dada como tal, mas que deve ser percebida, construída e tomada em termos
filosóficos de seu propósito textual.
Aqui recupero a pergunta de Antoine Compagnon, que parece mais
relevante para o nosso tempo de ampla midiatização, por isso mesmo
abundante de narrativas, ficções e escritas: “literatura pra quê?”. Com essa
mudança, Compagnon parece olhar de outro modo para a literatura – não
mais interrogando-se apenas o que constitui o fazer literário: o ato de escrever,
de escrever desviando sentidos. Mais do que ser capaz de nomear o que é
um objeto literário, interessa-nos interrogar o que pode o homem fazer com
a literatura. O que podem os textos, como matéria, fazer com o homem,
para que possam assim alcançar uma determinada função mediadora da
realidade por meio da linguagem que justifique o “desvio” operado pelo texto.
Em busca de um meio termo, Compagnon mostra como a teoria literária
recentemente busca reabilitar o conceito de mimese não como imitação
(como Platão imaginava), mas antes como forma de (re) conhecimento e,
portanto, compromissada com o mundo e com a realidade. Seguindo essa
perspectiva, buscando superar a visão binária da literatura, interessa-nos
mostrar como o jogo entre representação expressiva das forças do mundo
opera por meio do texto, na própria atividade da escrita – literatura é, em
si, entre-lugar ou, nos termos da teoria da comunicação e das mídias, é
uma forma de mediação pela expressão, que pode ser feita em diferentes
espaços midiáticos onde o texto se apresente: forma de conhecimento do
mundo pela experiência de descolamento operada na relação entre sujeitos,
da escrita e da leitura.
Em paralelo, resgatamos a visão de Michel Collot, para quem as noções
de horizonte e paisagem parecem também aproximar-se da concepção da arte
para além do binarismo na representação, em especial a do espaço-mundo:
entre o objetivo e o subjetivo, o exterior e o interior, a representação e a
expressão sensível do mundo que nos afeta: “a paisagem se situa, histórica
e estruturalmente, entre um pensamento simbólico do Lugar, que dominou
a Antiguidade clássica e a Idade Média, e um conhecimento científico do

67
espaço que se desenvolve nos tempos modernos.”48 Interessa-nos destacar,
no pensamento de Collot, a compreensão do texto poético em sua “proposta
de fruição da poesia entendida como um lugar de reativação das sensações e
dos afetos”49. Para o poeta e teórico, a ideia de paisagem torna-se importante
conceito para pensar a expressão poética ao longo da história da arte e,
fundamentalmente, seu resgate na poética contemporânea.
Nossa tradição liga a paisagem à ordem da representação; tratar-se-ia de
uma realidade exterior, oferecida totalmente ao olhar, que a arte e a literatura
teriam por missão reproduzir tão fielmente quanto possível, pelos meios da
figuração ou da descrição. Se se tratasse exatamente disso, e somente disso,
não haveria admiração pelo fato de ela ter desaparecido da pintura e da
literatura modernas, pois, para dizer a verdade, semelhante coisa não existe
em nenhum lugar, nem no mundo da vida nem no da arte. Desde as primeiras
definições da palavra nas línguas europeias, por volta da metade do século
XVI, fica evidente que a paisagem não é o “país” real, mas o país tal como é
posto em forma pelo artista, ou pelo ponto de vista de um sujeito. É assim
uma realidade tão interior quanto exterior, tão subjetiva quanto objetiva,
que se presta tanto a entrever quanto a perceber: não é um dado objetivo,
imutável que basta ser reproduzido. É um fenômeno que muda, segundo
o ponto de vista que se adota, e que cada sujeito reinterpreta em função
não somente do que ele vê, mas do que ele sente, experimenta e imagina. 50
Na perspectiva de Collot, a paisagem dá a ver um universo de expressão
que transcende as fronteiras da representação do mundo, criando um estado
de percepção que confunde exterior e interior, em que sujeito torna-se
também objeto de apreensão: é ele mesmo também apreendido na mesma
medida em que sua visão apreende o mundo. Essa compreensão do texto
como o lugar – ou melhor, a paisagem – onde a relação ambivalente sujeito-
espaço é passível de ser sentida, mais do que percebida, parece ser o modelo
de muitas expressões poéticas contemporâneas, em que os sujeitos da escrita
se percebem e mostram como parte da paisagem experimentada, vivida
e expressa no texto. Assim, o texto de Dinho torna-se, nesse trabalho,

48. COLLOT. Poesia, paisagem e sensação, p. 18.


49. COLLOT. Poesia, paisagem e sensação, p. 17.
50. COLLOT. Poesia, paisagem e sensação, p. 19.

68
instrumento para tornar visível determinado modo de ver a literatura como
escrita-espaço – o texto é o lugar-tela por meio do qual se estabelece um
fluxo de sentidos: mediação poética da realidade pela materialidade do
desenho das letras na tela, o desenho da paisagem, expressão do sensível.
Dinho fala sobre o Rio de Janeiro – sobre a cidade e uma realidade social,
sob determinado ponto de vista: o do filho de uma retirante nordestina,
o de um “gordo fodido da turma” (palavras de Marcelo Rubens Paiva, em
prefácio de Rio em Shamas, 2016), de um ativista de empreendedorismo social
da periferia, do protestante com uma visão social e engajada da religião –
traços da biografia de Dinho aparecem pelos poros de seu texto, lado a lado
com a ficcionalização da sua experiência na cidade, atravessados por um
estilo que usa o humor tanto quanto denuncia a violência na crítica social,
põe em revisão suas memórias de infância de um Rio de Janeiro pouco
acolhedor para muitos, que só encontram seu lugar na periferia, revelando
uma geografia da cidade pouco conhecida pelos leitores com seus clichês
de cidade maravilhosa:

CHRONICLES OF A LOSER

Ele entrou no trem, em Bangu, eram 11 da manhã.


Calça de brim, camisa por dentro. A gola da camisa
encardida. Os sapatos gastos, bons para dias de sol.
Estavam abertos na costura da sola. Se chovesse, molhava os
pés.
Ele andava com o cuidado de posicionar os pés num ângulo
em que as pessoas não percebessem o rasgo. Nem sempre
conseguia.
Fez 40 cópias de currículo na xerox perto da passarela do
trem. Gastou, naquele tempo, uns 2 reais. Num tempo em
que a passagem do trem é 85 centavos e a coxinha 1 real, isso
era uma grana.
Tava desempregado desde há quase um ano. Lula tava sendo
maneiro, mas Lula não conseguia resolver tudo.

69
Aliás, nem Lula, nem Jesus, nem Freud. Ninguém resolvia a
vida dele, em particular. Aliás, tem tanto caso perdido nesse
mundo que não tem governo, nem deus, nem ideologia que
resolva.
Era angustiado demais pra continuar na função de porteiro
do Sindicato dos Securitários, no Encantado. Lavava os
muros com creolina pela manhã, tirava o cheiro de mijo da
calçada. E depois se enfurnava na guarita apertada pra ler
uma edição antiga de O Capital, que comprara num sebo
perto do Polo 1 de Madureira. Só saía da guarita pra varrer
folhas.
Varria folhas, abria portas, voltava pra ler. A cabeça cheia de
ideias.
Não fumava maconha, não era bom de sexo, não ia pro
baile, não tinha como desaguar as angústias.
Era um protótipo de recalcado. Aliás, é o que dizem dele,
até hoje. Que foi PhD em recalque. Pegou o elevador até o
último andar do prédio da faculdade Cândido Mendes, na
praça 15. O prédio mais alto dali. Muitos escritórios. Muitas
chances de ter um emprego. Aceitava qualquer coisa. Mas
qualquer coisa não aceitava ele.
Foi batendo de porta em porta, deixando currículo,
descendo escadas, suando na testa, recepcionistas olhavam
com indiferença, outras sorrindo, outras apenas pelo
interfone: “Deixa na porta. Obrigado”.
Estava nos primeiros andares. Entrou na escada de
emergência, sentou, cansado, e da mochila tirou um pacote
de Trakinas de morango. Comeu, e uma senhora, bem
vestida, passou fumando. Olhou pra ele, com o peso do
mundo nos olhos, deu boa tarde. Apagou o cigarro e foi
embora.

70
Ele faz mais dois andares, retoma a maratona. Numa sala, a
mesma senhora atende. Ele ri, dá o currículo, e ela pede pra
ele esperar.
Depois de uns minutos ela volta. Pega o currículo dele, e
põe 10 reais na sua mão.
-Você precisa almoçar, jovem.
E fecha a porta.
Ele volta pra escada. Passam uns auxiliares de limpeza
olhando pra ele, suado, com 10 reais na mão. Não lhe
passara pela cabeça que uma pessoa, com sapatos rasgados,
camisa encardida e suado, não conseguiria emprego ali.
Tentar isso era se expor a compaixão alheia.
O Rio tem desses desesperos. Um dia desses, um homem
distribuía currículos num sinal, na Lagoa.
Então, depois de um dia nas escadas do prédio, ele vai
embora, andando, pra Central, come uma coxinha. Cada
mordida, e o perfume do frango seco desfiado com
Guaravita, era como se fosse jantar no Porcão.
Tá tudo na mente.
Entra no trem, já eram 4 da tarde.
Os olhos não suportam o cansaço e o sol. Dormir no trem é
uma experiência que, quem teve, sabe que dentro do vagão,
os sonhos são outros. São mais simples, possíveis, e de
pouco brilho.
Como na velhice51.

O texto da crônica apresenta poucas alterações em relação ao originalmente


publicado em postagem feita por Anderson França no Facebook, em janeiro
de 2016: a troca de “semáforo” por “sinal” revela o pequeno mas concreto
esforço dos editores em tornar o texto mais compreensível a leitores de
fora da realidade carioca. A supressão da frase de abertura “Você precisa
almoçar”, de maior potencial de interação direta com os leitores na rede
social, no contexto temporal da postagem. Em geral, a ausência de grandes

51. DINHO. Rio em Shamas, p. 52 a 54.

71
intervenções comprova que a seleção de textos publicados no Facebook feita
para o livro de crônicas Rio em Shamas guarda grande fidelidade textual
com relação às publicações originais.
No entanto, o que se pretende aqui não é enfatizar a dimensão da
tradução/transposição midiática para realizar uma leitura do estilo literário
de um escritor, como Dinho. Mais do que isso, pretendo mostrar o modo
como diversos elementos na composição textual do escritor são responsáveis
por converter um lugar improvável – como a linha do tempo da mídia
social Facebook, mediada por algoritmos de recomendação que tendem a
recomendar conteúdos por similaridade de gosto, crenças e valores, deixando
pouco espaço para a “abertura” poética nos termos de Collot – em uma
topografia que desenha o horizonte literário para os leitores, no fluxo das
redes.
Assim parece operar a composição/recepção dos textos de Dinho no
Facebook: antes de serem reconhecidos por editores ou críticos de literatura,
eram vistos e comentados pelos seus leitores pelo viés de um olhar poético. De
fato, talvez esse contrato – estabelecido pela mediação do texto, na atividade
da escrita em rede – tenha sido o principal fator que deu visibilidade aos
textos de Dinho e o fez chegar aos olhos/mãos de uma das maiores editoras
de literatura no Brasil: o grupo Companhia das Letras.
Nesse sentido, ao apresentar a construção de uma poética nos textos de
Dinho, partimos da compreensão do texto como paisagem: mais do que o livro
como a mídia da literatura (ou o gênero como classificação literária, ou o estilo
como marca de autoria), o texto é, em si, o lugar que deve ser compreendido
como espaço concreto de possibilidade de configuração literária. Utilizando
o caso do Dinho, brevemente apresentado, desejamos chamar a atenção para
a ambivalência na definição da literatura, simultaneamente como objeto (em
sua autonomia literária configurada na expressividade) e como processo de
agenciamento estético engendrado nesse objeto.
O crítico Luiz Costa Lima realiza uma reflexão inspiradora ao mostrar
como o conceito clássico merece uma leitura contemporânea, com a finalidade
de reabilitar o pensamento sobre a potência da literatura em um lugar que
não seja confinado a uma normatividade. Parece-nos importante que Costa

72
Lima apresente o efeito sobre o receptor como um grande valor, por bastante
tempo ignorado, mesmo em uma leitura da teoria clássica desde Aristóteles:

Independente das imensas polêmicas, acumuladas desde a redescoberta


do texto, que vão desde a tradução adequada para phobos e katharsis, na
passagem, é evidente que o gênero poético máximo para Aristóteles, a
tragédia, realiza-se por meio do pathos, do impacto passional provocado
no receptor. Bastará reconhecê-lo para que se entenda o que, na
reconsideração da mímesis, será mantido de sua concepção antiga.
Mas isso não impede que procuremos enriquecer esse acolhimento pela
recorrência a comentadores, aos quais estaremos também prestando
nosso reconhecimento. Os primeiros são os já tantas vezes citados
Dupont-Roc e Lallot, a propósito do sentido da catarse. Ela, dizem
os autores, não se impõe simplesmente por haver um relato (mythos),
mas sim porque piedade e terror derivam da “alquimia mimética”, i.e.,
decorrem da depuração formal operada pelo poeta trágico. O efeito
trágico é, portanto, análogo à construção formal do mímema (cf. Dupont-
Roc, R. e Lallot, J.: op. Cit., 190). Vale desde logo reiterar que a mímesis
artística não depende simplesmente da matéria com que trabalha, as
imagens, mas da configuração que alcançam. 52

Com base na formulação de Costa Lima, ancorada em uma profunda


análise do conceito de mímesis, fundante na teoria da literatura, busco
também mostrar como é necessária uma configuração poética, mediada
pela escrita e alcançada na esfera da leitura, para ultrapassar a compreensão
normativa do texto literário, de uma materialidade literária pronta e fixa, mas
como um objeto dinâmico que depende da interação com o leitor. Para isso,
realiza-se aqui a aproximação entre as concepções de Barthes, Compagnon
e Costa Lima sobre o papel da literatura como ação a ser desempenhada no
movimento – fluxo – de troca e interação de sentidos entre autor e leitores,
mediados pelo texto, e o conceito de “configuração midiática” da arte, por
meio do paradigma da intermidialidade apresentado em sua complexidade
por Irina Rajewsky (2012).

52. COSTA LIMA. Mímesis: desafio ao pensamento, p. 42 e 43 (grifo nosso).

73
Na aproximação que aqui busco estabelecer, tomo emprestada a ideia
da “configuração midiática” de Rajewsky, que parece produtiva por trazer
um novo olhar sobre o fazer literário, dada sua visão sobre o caráter de
construto e jogo com as fronteiras materiais das diversas textualidades
artísticas. De modo similar, pode-se buscar compreender a literatura em seu
caráter de jogo e construto textual: mesmo sendo o texto o objeto primário
do agenciamento literário, no tempo da comunicação digital e seus fluxos
midiáticos, ele pode sair de seu lugar canônico de mídia literária – o livro.
Cabe lembrar que, como mídia para a literatura, o livro também é resultante
de uma série de convenções materiais e comerciais da prática historicamente
construída no mercado editorial, atravessado por mediações do poder dizer
“isso é literatura”, por meio do agenciamento da crítica.
Com um olhar contemporâneo e atento às materialidades diversas pelas
quais o texto pode transitar no mundo de hoje – dos muros das cidades às
telas dos celulares – pode emergir uma percepção da ação da literatura em
outros espaços, desde que se desenhe sobre ele um olhar dinâmico sobre a
materialidade do texto e a relação dessa materialidade e os efeitos produzidos
sobre os leitores em um determinado contexto (temporal e espacial), tomando
como literária uma ação poética (performance /configuração).
Por esse olhar, encontrando paralelos entre determinado modo de ver
o texto – como mídia – na teoria da literatura e um modo de compreender
as artes no paradigma da intermidialidade, como configuração complexa
atravessada pelas materialidades midiáticas, propomos falar de uma
“configuração poética” possível pela interação do texto com o leitor, em
um dado contexto (no caso aqui apresentado, o das mídias sociais digitais)
– certamente não propenso, mas ainda assim possível de fazer emergir a
escritura do mundo, tal como o conceito de punctum de Roland Barthes em
A câmara clara (2015): uma fresta que se abre no detalhe de uma imagem
ao olhar do leitor em busca do sensível.
Para isso, defendo neste ensaio a ideia do texto como paisagem,
materialização espacial em sua concretização midiática: falar de configurações
é enfatizar uma cartografia, desenhar fronteiras e fluxos entre os variados
espaços da arte (o texto, a tela, o suporte), o espaço da literatura, da ficção,

74
da escrita – enfim, variadas configurações do espaço da geografia imaginária,
do real a um rearranjo de mundos possíveis por meio do texto.
Com interesse que transcende a tradicional análise do espaço ficcional,
que ronda os estudos da literatura, exploramos o espaço não apenas na
dimensão cenográfica – a cidade como pano de fundo – nos textos.
Considerando o texto como página-tela-paisagem, torna-se possível perceber
o olhar geográfico sobre a cidade nos textos de Dinho, mas sobretudo os
jogos com o espaço da própria escrita e da literatura: o jogo com a página,
a tela do dispositivo digital, a poesia visual – nesse lugar de fluxo e trânsitos
entre a visualidade nas letras e nos estudos intermídia.
Nessa compreensão da literatura, territórios improváveis podem se
tornar o lugar em que o texto emerge, das frestas da vida cotidiana, para
materializar-se diante do leitor. Com a emergência da internet – a princípio
com os blogues e mais recentemente com as redes sociais digitais –, outros
espaços coletivamente constituídos e propícios a interações passaram a
configurar-se como possibilidade da escrita. Mas assim como a existência
de uma folha e caneta não fazem a literatura, a mera existência de espaços
digitais não pode ser tomada, em si, como condição favorável à emergência
de novas vozes literárias. Se a internet potencializou a escrita com a criação
de novos espaços, por outro lado, o reconhecimento de um texto como
literário ainda depende da configuração poética alcançada: tomando o texto
como topografia, esse se torna o lugar de observar essa configuração, que se
fundamenta no reconhecimento de uma forma expressiva.
Pelas suas affordances fortemente ancoradas na maior visibilidade
de conteúdos recomendados aos leitores por meio do reconhecimento
de seu gosto, as redes sociais digitais são cartografias em configuração
propícia ao fechamento mais do que a abertura do sentido, em especial
com o agenciamento de algoritmos que tendem cada vez mais à entrega
de conteúdo “recomendado”, tornando visível ao leitor os conteúdos que
correspondem à imagem da própria identidade. Como, então, nesse espaço
improvável, a escrita se torna um gesto de subversão? O texto literário torna-
se acontecimento – dinâmico, configuração alcançada na interação com o
leitor. Se a escrita carrega o poder subversivo, ela só se tornará possível se a
leitura se tornar um lugar de reconhecimento da potência do texto.

75
O espaço literário – a cidade, a tela, a página, o livro.
Embora o caso da transposição midiática do texto de Dinho das telas
do Facebook para as páginas do livro possa ser abordado de várias maneiras,
dentro da perspectiva da intermidialidade (pensando nos 3 grupos de
fenômenos dos estudos de intermidialidade, apresentados por Rajewsky53),
interessa-nos aqui destacar um elemento: o uso do texto escrito como matéria,
como dispositivo de interação com os leitores no fluxo das redes digitais.
O espaço das redes sociais digitais pode ser tomado como fluxo de
interações intermidiáticas (com outras formas midiáticas, como imagem e
vídeo, e com fácil configuração intertextual, pela associação a outros textos),
que pode ser apropriado para propiciar a configuração poética de texto, assim
como o exemplo de Anderson França nos mostra. A rede Facebook traz, na
sua materialidade, a configuração de um fluxo dinâmico de relações entre
sujeitos e textos, que podem ser vistos nas “impressões” que se revelam na
tela. O texto se torna mais do que um objeto: é um território a ser percorrido,
tanto quanto a cidade que é tematizada por Dinho em suas postagens e
depois transpostas para o livro Rio em Shamas. Na literatura de Dinho, o
espaço será um elemento importante a ser trabalhado em vários sentidos.
O primeiro deles constitui-se pelo espaço real tematizado: a transposição
da paisagem suburbana do Rio de Janeiro para a tela do Facebook. Nesse
sentido, é emblemático o texto extraído do Facebook “Leblon em Shamas”,
publicado na rede, em abril de 2016, e que deu origem ao título do livro
posteriormente publicado:
Você tá por dentro do Rio? Não?
TOME.
Se você caminha de Madureira a Coelho Neto,
SE CONSEGUIR CHEGAR DE UM PONTO A OUTRO
vai encontrar obstáculos como:
BOPE entrando na Serrinha cuspindo SHAMAS em morador

53. Rajewsky fala em três grupos de fenômenos nos estudos do intermidialidade: 1) inter-
midialidade no sentido estrito de transposição midiática; 2) intermidialidade no sentido
de combinação de mídias, como nas formas multimídia; 3) intermidialidade no sentido de
referências intermidiáticas, ou ainda no campo da intertextualidade. (2012, p. 58)

76
Estação do BRT em SHAMAS pela morte de um menino
Acari em SHAMAS pela presença da CORE e da Federal e Coelho Neto
em SHAMAS porque hoje explodiu um prédio –
EXPLODIU UM PRÉDIO.
As UPA fechada, as escolas ocupada, os cara assaltando de bike e abriu
mais uma ESPETERIA no bairro
Espeteria e Igreja da Nova Vida – parem.
MAS AÍ TEM UMA COROA MADAME DA ZONA SUL (a mesma
que mandou excluir esse texto do Facebook depois que 1 milhão de
pessoas leram) que ficou XATIADA num post do Neto (procure) em
que ela comenta a situation of Brazil porque
CAMINHANDO DO LEBLON ATÉ IPANEMA ~ ou seje ~ESSE
BRASIL DE VERDADE, essa alma de Emmanuel, esse iate de ouro,
viu que o restaurante da ROBERTA SUDBRACK – onde os ARROZES
custam 275 REAIS
DOIS CENTOS E SETE DEZENAS MAIS CINCO REAIS
<<<< ARROZ >>>>
esse restaurante estava, esse, vazio,
E ISSO TÁ DANDO MEDO, E O BRASIL TÁ DERRETENDO, E
ESSAS SÃO AS CIRCUNSTÂNCIAS MAIS QUE SUFICIENTES PARA
PRENDER A DILMA PRENDE A DILMA
Eu ontem no Pavuna lotado às 5 da tarde cheguei em Del Castilho
grávido do vagabundo que me sarrou por 9 estações e tive que me casar
com ele, e ela diz que o Brasil está derretendo porque [...] 54

Alguns elementos textuais são, nas postagens de Dinho,


frequentemente trabalhados por meio de uma “visualidade” do texto na tela:
o uso de caixa alta, itálico, o espaçamento das frases na disposição visual. Há
ainda o uso de recursos imagéticos, associados, com alguma frequência, a essa
expressividade visual da escrita. O uso de recursos textuais como recursos
gráficos – um traço atribuído pela crítica à estética concretista – aparece
como elemento marcante na maior parte das postagens feitas por Anderson
França. Esse elemento, que foi preservado apenas na visualidade do texto

54. DINHO. Rio em Shamas, p. 33-34.

77
escrito na transposição para o livro, aparece originalmente no Facebook
não apenas como materialização do estilo, mas ainda como forma de atrair
para o leitor das redes digitais pontos/frases do texto que possam captá-lo
para a estética de Dinho.
A caixa alta, em particular, parece ainda ter outro possível sentido na
proposta autoral: encenar no plano expressivo a linguagem forte da violência
que vem do ponto de vista do escritor. Uma determinada perspectiva da
cidade do Rio de Janeiro se abre nas maiúsculas e negritos de Dinho, bastante
associados a termos de linguagem vulgar e a erros de grafia, de concordância,
ao uso de abreviaturas e intervenções nas palavras que parecem criar um
“neologismo do erro” (como a palavra “shamas”), muitas vezes levando
ao efeito de se estar não apenas lendo, mas ouvindo a dicção de uma voz
do subúrbio carioca encenada no texto da tela. Erros de grafia, oralidade,
violência na escrita, humor: esses elementos parecem sair da paisagem
urbana carioca para se desenhar em uma visualidade encenada no texto de
Dinho. As cenas por ele desenhadas vêm de situações vividas, mas muitas
vezes transitam para a ficcionalização, tornando difícil para o leitor situar
o texto entre biografia e imaginário.
É por meio da tematização das tensões estabelecidas nos trânsitos
de diferentes sujeitos pelos espaços urbanos do Rio de Janeiro que Dinho
introduz a reflexão sobre as angústias do sujeito “à margem” de uma cidade-
promessa, uma cidade ideal e irreal, incapaz de acolher e tornar-se espaço
para a realização da vida. A cidade, nos textos (memórias, contos, crônicas?)
de Dinho, é signo de vidas precárias. É frequente na sua escrita a narrativa de
tensões sociais encarnadas na expressão de realidades vividas (ou imaginadas)
por sujeito que tem uma relação ambígua com a cidade – sujeito-dono-da-
escrita e sujeito-suburbano “fudido de grana” (p. 110) que reivindica seu espaço
social fazendo uso da escrita, mas também se mostra apartado na realidade
concreta do cotidiano. Entre essas suas realidades, está a escrita de Dinho:
Fui me desprendendo do sentimento de inferioridade, uma gravidade
fudida que me puxa pra baixo sempre que alguém me elogia. Porque
eu deveria ser porteiro, e não escritor. Quando dei minha primeira
entrevista, como escritor, para O Globo, a jornalista me perguntou: “De

78
onde vem a inspiração?”. Conto pra ela que não tenho essa resposta?
Ou conto, simplesmente, que trabalho vendendo comida com minha
esposa, ou dou aulas, ou palestras, ou lavo louça, ou pego ônibus, ou
vivo a vida, e de repente, o texto vem?55

Aqui, é a vida que aparece expressa na escrita, que parece ser a realização
de um duplo movimento: apossar-se da cidade que te escapa, que te exclui,
que te subjuga. Apossar-se da cidade, do espaço social, por meio da posse
do espaço da fala: das letras na tela, da escrita do texto, da autoria de si. A
apresentação dos espaços da cidade – o espaço do escritor, que começa a
ser reconhecido como tal, e o espaço do suburbano que trabalha para pagar
as contas – põe em tensão, na narrativa, dois polos de naturezas opostas.
A esse movimento, soma-se outro: o do espaço da escrita – a transposição
do texto em rede para a página do livro.
Para concluir, retomo a postagem “Leblon em Shamas”, feita originalmente
no Facebook em abril de 2016. Já falei do texto, em si, de certas características
da expressão poética na escrita de Dinho, mas em se tratando de materialidade
midiática das redes, é preciso destacar um fato emblemático: o apagamento
do mesmo texto pelo Facebook. Por falar do Leblon e de uma determinada
classe de pessoas do Leblon, o texto provocou a ira de usuários da rede social,
que se organizaram e denunciaram o texto. Como empresa, o Facebook
escuta essas denúncias e frequentemente retira as postagens da plataforma,
em uma espécie de “censura autorrregulada” pelos próprios usuários. Assim,
o texto que em apenas dois dias havia alcançado um milhão de leitores foi
excluído da rede, sob denúncia: existiu como escrita, persistiu como efeito,
mas os rastros de sua materialidade digital desapareceram da mídia digital.
Foram apagados, para depois emergirem na materialização em outro espaço,
mais perene: o das páginas do livro.
A publicação no espaço-potência das redes digitais teve a sobrevivência
efêmera típica desse lugar, revelando uma ambivalência espacial interessante
no contexto dessa leitura: o texto na rede social digital emerge, é lido e
desaparece, pela “censura” autorregulada das redes digitais, em seu esforço
de agradar e atender ao público. Seus rastros, entretanto, permanecem no ato

55. DINHO. Rio em Shamas, p. 111.

79
da leitura. E encontram outra forma de existência quando se materializam
nas páginas impressas e ganham perenidade no espaço mídia-livro. Sem
emergir na tela do Facebook, o texto não teria alcançado sua configuração
poética e não teria se tornado acontecimento – provavelmente, não teria
sido transposto às páginas do livro.
Por causa da potência de mobilização do leitor do texto, essa postagem foi
a inspiração para o título do livro Rio em Shamas. Concluo com o relato desse
evento que parece ser elemento inspirador da leitura que aqui desejo propor:
o texto como topografia, lugar de potência literária, porque é espaço da
performance de interação entre a escrita e a leitura. Das redes ao livro: desde
que os suportes midiáticos sejam vistos não como essência e materialidade
rígida, mas como entre-lugares – espaços de mediação – poderemos olhar
para a literatura não mais como um objeto autônomo, passível de ser descrito
em sua literariedade, mas como forma de comunicação, interação de sentidos
na troca de pontos de vista a serem descobertos entre autor e leitor, na
descoberta coletiva do mundo, via texto.

Referências

BARTHES, Roland. A Câmara Clara - nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 2015.
COLLOT, Michel. Poesia, paisagem e sensação. Tradução de Fernanda
Coutinho. Revista de Letras, Fortaleza, v. 1, n. 34, p. 17-26, jan./jun. 2015.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG, 2012.
FRANÇA, Anderson. Rio em Shamas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2016.
FRANÇA, Anderson. Perfil do Facebook. Disponível em <https://www.
facebook.com/DinhoEscritor/>. Acesso em: 13 out. 2017.
GIBSON, James J. The ecological approach to visual perception: classic edition.
Psychology Press, 2014.
JENKINS, Henry; FORD, Sam; GREEN, Joshua. Cultura da conexão: criando
valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014.

80
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Civilização Brasileira,
2000.
LIMA, Juliana Domingos. Quem são os ‘instapoetas’, que fazem sucesso
publicando poemas no Instagram. Jornal Nexo, São Paulo, 27 de dez. 2017.
Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/12/27/Quem-
s%C3%A3o-os-%E2%80%98instapoetas%E2%80%99-que-fazem-sucesso-
publicando-poemas-no-Instagram>. Acesso em: 5 jan. 2018.
RAJEWSKY, Irina O. A fronteira em discussão: o status problemático das
fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade.
In: DINIZ, Thaïs F. N.; VIEIRA, André S. (org.). Intermidialidade e estudos
interartes: desafios da arte contemporânea, v. 2, p. 51-74, 2012.

81
82
SAMAMBAIA: UMA CASA (TRANS)
FORMADA POR POESIA E ROMANCE

Miriam de Paiva Vieira


Universidade Federal de São João del Rei- UFSJ 56

Um dos marcos da arquitetura modernista no Brasil, a casa Samambaia


é localizada nos arredores de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro. O
arquiteto Sérgio Bernardes foi agraciado com o primeiro prêmio da segunda
Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo em 1954 pelo projeto da casa,
encomendado por Lota de Macedo Soares, companheira da poeta Elizabeth
Bishop. Além de inspirar o poema (ganhador de prêmio Pulitzer) de Bishop,
“Song for a Rainy Season” (“Canção do tempo das chuvas”), a casa também
tem presença marcante nos romances Flores raras e banalíssimas: a história
de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop (1995), da brasileira Carmen
Oliveira, e The More I Owe You (2010), do norte americano Michael Sledge,
traduzido por Elisa Nazarian como A arte de perder (2011).
O objetivo deste ensaio é demonstrar como a casa Samambaia é
revelada em forma de poesia e prosa por meio do fenômeno intermidiático

56. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico  e Tecnológico - Brasil (nº do processo: 168942/2017-8).

83
écfrase57. Para tal, vamos nos valer do modelo interpretativo58 para estudo da
tipologia écfrase arquitetônica, cuja elaboração foi norteada pelo estudo de
transferência de características de mídias proposto por Lars Elleström (2014),
aliado às noções de perspectiva e corporeidade, e ainda pela retomada dos
conceitos de enargia59 e periegese60 na Antiguidade. O modelo interpretativo
proposto compreende quatro tipos de écfrases arquitetônicas: contemplativa,
performativa, simbólica e técnica. São consideradas écfrases arquitetônicas
contemplativas trechos ecfrásticos em que determinada “personagem
contempla uma edificação ou paisagem urbana a partir de um ponto de
vista específico, sem que o agente focalizador interaja fisicamente com o sítio
arquitetônico focalizado.” 61 As écfrases arquitetônicas performativas, por
sua vez, “são aquelas que acontecem quando o observador, seja o narrador,
seja a personagem, está fisicamente dentro de um sítio arquitetônico. Ao
circular pela edificação, entrando, saindo, subindo, descendo, como que em
um tour”. Nesse caso, “o leitor deixa de ser um mero espectador e envolve-se
em uma performance virtual”. E ainda, uma vez que “o conhecimento prévio
do leitor é de suma importância nos estudos sobre écfrase, as passagens
ecfrásticas que demandam do leitor uma maior bagagem cultural ou técnica
são nomeadas, respectivamente, écfrase arquitetônica simbólica e écfrase
arquitetônica técnica”62. Além do poema “Song for a Rainy Season”, trechos
dos romances A arte de perder e Flores raras e banalíssimas ilustram aqui
incidências da tipologia écfrase arquitetônica.

57. Sobre como a écfrase, recurso retórico utilizado na Antiguidade, foi incorporada pelos
estudos da intermidialidade na contemporaneidade como um fenômeno midiático, ver:
VIEIRA. Écfrase: de recurso retórico na antiguidade a fenômeno midiático na contempo-
raneidade, p. 45-57.
58. Para o estudo detalhado deste modelo proposto para o estudo da tipologia écfrase
arquitetônica, ver: VIEIRA. Écfrase arquitetônica: um modelo interpretativo.
59. Sobre a importância do resgate da enargeia, ou enargia, nos estudos contemporâneos
da écfrase, ver: VIEIRA. Écfrase: de recurso retórico na antiguidade a fenômeno midiático
na contemporaneidade, p. 49-51. A tradução “enargia” foi adotada para o termo enargeia
(ou enárgeia), conforme sugerido por Melina Rodolpho (2012, p. 21) em Écfrase e evidência
nas letras latinas: doutrina e práxis.
60. Recurso utilizado na retórica para descrever lugares, paisagens e edificações, a ferramenta
epistemológica periegesis, ou periegese, facilita o alcance da enargia em écfrases arquite-
tônicas. Para mais, ver VIEIRA. Écfrase arquitetônica: um modelo interpretativo, p. 246.
61. VIEIRA. Écfrase arquitetônica: um modelo interpretativo, p. 252.
62. VIEIRA. Écfrase arquitetônica: um modelo interpretativo, p. 252.

84
Samambaia em forma de poesia
A visualidade dos poemas de Elizabeth Bishop que tratam da paisagem
tropical e escritos durante sua estadia no Brasil é bastante aclamada pela
crítica. Um deles, publicado na revista The New Yorker, em 8 de outubro de
1960, é “Song for a Rainy Season” 63. À primeira vista, o poema é dedicado à
peculiar mudança de clima tão comum durante a época das chuvas na região
serrana do estado do Rio de Janeiro. As referências ao clima e à natureza são
óbvias. Regina Przybycien argumenta que “‘Samambaia’ sugere vida vegetal:
nascer, crescer, maturar, como as plantas dos trópicos”64. No entanto, Bishop
faz menção a detalhes que, segundo o narrador do romance de Carmen
Oliveira, louvam a casa, “não somente como um marco da arquitetura, mas
como uma permanente open house à natureza”65, enfatizando a importância
da paisagem natural na arquitetura modernista.
O clima peculiar de Petrópolis é evocado pelas referências a “imagens
da água em suas diversas formas: chuva, nuvem, cascata, neblina, arco-
íris, riacho, orvalho, que envolvem a casa numa camada vaporosa, quente
e protetora”66, camada que desaparece quando o sol surge na “alvorada
cor de leite”. Essas referências evocam o sentido do olfato, uma vez que o
cheiro provocado pela chuva em contato com a vegetação costuma provocar
lembranças naqueles que vivem em regiões com esse tipo de clima. E ainda

63. Tradução de Paulo Henriques Britto: Oculta, oculta,/na névoa, na nuvem,/a casa que é
nossa,/sob a rocha magnética,/exposta a chuva e arco-íris,/onde pousam corujas/e brotam
bromélias/negras de sangue, liquens/e a felpa das cascatas,/vizinhas, íntimas./Numa obscura
era/de água/o riacho canta de dentro/da caixa torácica/das samambaias gigantes;/por entre a
mata grossa/o vapor sobe, sem esforço,/e vira para trás, e envolve/rocha e casa/numa nuvem
só nossa./À noite, no telhado,/gotas cegas escorrem,/e a coruja canta sua copla/e nos prova/
que sabe contar:/cinco vezes – sempre cinco – /bate o pé e decola/atrás das rãs gordas, que/
coaxam de amor/em plena cópula./Casa, casa aberta/para o orvalho branco/e a alvorada cor/
de leite, doce à vista;/para o convívio franco/com lesma, traça,/camundongo/e mariposas
grandes;/com uma parede para o mapa/ignorante do bolor;/escurecida e manchada/pelo
toque cálido/e morno do hálito,/maculada, querida,/alegra-te! Que em outra era/tudo será
diferente./(Ah, diferença que mata,/ou intimida, boa parte/da nossa mínima, humilde/
vida!) Sem água/a grande rocha ficará/desmagnetizada, nua/de arco-íris e chuva,/e o ar
que acaricia/e a neblina/desaparecerão;/as corujas irão embora,/e todas as cascatas/hão de
murchar ao sol/do eterno verão BISHOP. O iceberg imaginário, p. 168-173.
64. PRZYBYCIEN. Feijão-preto e diamantes: o Brasil na obra de Elizabeth Bishop, p. 82.
65. OLIVEIRA. Flores Raras e banalíssimas, p. 86.
66. PRZYBYCIEN. Feijão-preto e diamantes: o Brasil na obra de Elizabeth Bishop, p. 83.

85
evocam o tato, através da sensação da umidade na pele. Já a audição é evocada
pela expressão “no telhado, gotas cegas escorrem”, que remete ao barulho
da chuva caindo na telha de alumínio, e pelos verbos “cantar” e “coaxar”,
nas expressões “o riacho canta dentro da caixa torácica”, “a coruja canta sua
copla” e “rãs gordas [...] coaxam de amor”, que fazem alusão a uma certa
sensualidade na qual a casa está envolta. A vegetação abundante revelada
por “bromélias negras de sangue, liquens e a felpa das cascatas”, que brotam
“por entre a mata grossa”, onde se encontram também as “samambaias
gigantes” que, respectivamente, dão nome à fazenda e à casa lá construída.
O narrador do poema, que se encontra do lado de fora da cena enquadrada,
“como um observador atento, mas não diretamente envolvido”67, contempla
a construção organicamente inserida na Mata Atlântica.
A expressão “mapa iletrado do bolor”,68 uma referência à enorme mancha
de mofo em forma de mapa localizada no exterior da casa, pontua o modo
como os materiais revelados pela estrutura construtiva são deteriorados pela
combinação das intempéries, a vegetação e o passar dos anos. A passagem
do tempo é marcada não somente pelos marcadores dêiticos “à noite” e “a
alvorada”, mas também por fenômenos vistos somente à luz do dia, como
o “arco-íris”, e por animais noturnos, como a “coruja [que] nos prova que
sabe contar”. Przybycien percebe o final do poema como “uma premonição
da poeta de que a Samambaia é apenas abrigo temporário”, e sugere que “as
nuvens e a neblina envolvem a habitação como uma película, protegendo-a da
aridez do mundo”69. Mas, de acordo com a relação espaçotemporal sugerida
por Elleström (2010), a mudança climática causada pelas intempéries revela
gradualmente uma construção harmonicamente inserida na natureza, pois
a névoa, na qual a casa está inicialmente envolta, será descortinada quando
surge o sol, fazendo com que se sintam em um “eterno verão”. Essas mudanças
radicais no clima – névoa, chuva, sol escaldante – acontecem em questão
de segundos.

67. PRZYBYCIEN. Feijão-preto e diamantes: o Brasil na obra de Elizabeth Bishop, p. 84.


68. No original: “mildew’s ignorant map”.
69. PRZYBYCIEN. Feijão-preto e diamantes: o Brasil na obra de Elizabeth Bishop, p. 84.

86
Os termos que qualificam a casa – “oculta na névoa, na nuvem”, mas
“aberta para o orvalho branco e a alvorada cor de leite”, assim como as
expressões “casa que é nossa sob a rocha magnética” e “o vapor sobe, sem
esforço, e vira para trás, e envolve rocha e casa numa nuvem só” – guiam
o olhar do leitor pelo espaço no qual a casa está implantada. Em suma, as
referências à construção em si são sutis, quase escondidas sob camadas
espessas de referências ao ambiente tropical. O leitor não interage diretamente
com a edificação per se, e sim com o sítio arquitetônico e seu entorno, sendo,
portanto, um caso de écfrase (de arquitetura) contemplativa em que a casa
modernista é envolvida pela paisagem natural.

Samambaia em forma de romance I: A arte de perder


O romance A arte de perder traz longos trechos descritivos, muitos dos
quais podem ser considerados écfrases, em alguns dos casos, arquitetônicas.
A casa Samambaia é o objeto de um desses trechos. Além da reprodução
das duas primeiras estrofes de “Song for a Rainy Season”,70 o narrador faz
claras referências intramidiáticas a esse poema de Bishop.
O romance de Sledge inclui uma detalhada descrição da mudança
do cenário urbano do Rio para a natureza abundante das imediações de
Petrópolis que irá anteceder a écfrase arquitetônica da casa Samambaia.
Lota busca Elizabeth71 em seu apartamento no Rio de Janeiro para conduzi-
la até Samambaia em seu Jaguar conversível vermelho. Nessa primeira vez
em que as duas ficam a sós, o narrador focaliza as impressões de Elizabeth
enquanto “o carro ziguezagueava subindo a encosta atrás de Copacabana,
Lota acelerando nas curvas até os pneus guincharem”. Ao longo do trajeto,
“os detalhes contrastantes do Rio estendiam-se a sua frente, as subidas e
descidas dos morros povoados por favelas e apartamentos, os altos edifícios
modernos no centro, Cristo acima, o porto, as cadeias distantes de montanhas”.
Apenas quando finalmente chegou “ao cume foi que o carro parou” para,
em seguida, ser lançado “no espaço” e descerem “desabaladas. [...] Próximo
ao fim da descida, Lota parou em um cruzamento onde um bonde passou

70. SLEDGE. A arte de perder, p. 86.


71. O autor Sledge opta por chamar as protagonistas pelo primeiro nome: Elizabeth e Lota.

87
à frente delas”72. Neste trecho, que antecede a écfrase arquitetônica, o efeito
“montanha-russa” é reforçado pelo ritmo irregular da mudança de marchas
ao longo do caminho tortuoso, sugerindo o quão irregular é a topografia da
região. Com o auxílio de uma periegese – “ziguezagueava”, “chegaram ao
cume”, “parou”, “subidas e descidas”, “no centro”, “acima”, “distantes”, “desceram
desabaladas”, “parou em um cruzamento” –, o olhar do leitor é guiado pelo
narrador, enquanto as duas protagonistas aprendem reciprocamente sobre
suas personalidades nos breves diálogos que entremeiam a mudança de
paisagem.
O narrador, sob a ótica contemplativa da personagem Elizabeth, guia
o leitor para dentro do ambiente envolto por “réstias de névoas” e coberto
pela “densa cerração”. Aos moldes das descrições de florestas selvagens,
“na proteção do carro, Elizabeth pouco podia ver dos arredores além do
rendilhado dos ramos sobre suas cabeças e o anteparo de espessa folhagem
dos dois lados da estrada”. Enquanto a poeta pensa que “teria que escrever
uma nota para a srta. Breen73”, para relatar sua chegada “às Verdes Moradas,74
exatamente como” as duas amigas haviam imaginado durante a viagem
de navio, “Lota [prossegue] discorrendo sobre a arquitetura modernista
brasileira”75. “Você lê muita poesia?” A pergunta de Elizabeth interrompe Lota,
que afirma apreciar a obra dos amigos Manuel Bandeira e Carlos Drummond
de Andrade76. Ainda que o assunto tenha se voltado para nomes da poesia
brasileira, Elizabeth continua atenta às mudanças sensoriais provocadas pelo
trajeto íngreme que ganha altitude e é sentida pelos ouvidos.
Ao se dissipar, a cerração se transformara em uma luminosa e
esplendorosa neblina. O sol começou a lhe aquecer a pele. Então, viu
que o nevoeiro não tinha simplesmente se evaporado, mas que elas [Lota

72. SLEDGE. A arte de perder, p. 37.


73. Personagem do poema “Chegada em Santos” (BISHOP. O iceberg imaginário, p. 136-
139). No romance de Sledge, a personagem Elizabeth conhece a Srta. Breen no navio, e, “em
seus devaneios”, as duas “imaginavam o mesmo Brasil, as mesmas tapeçarias de florestas
verdejantes, as mesmas cores dos pássaros e das flores” (SLEDGE. A arte de perder, p. 14).
74. Referência ao romance exótico Green Mansions (1904), de W. H. Hudson, sobre o
encontro de um viajante que foge de Caracas para as florestas da Guiana e lá envolve-se
com a nativa Rima.
75. SLEDGE. A arte de perder, p. 40.
76. SLEDGE. A arte de perder, p. 41.

88
e Elizabeth] tinham subido acima dele [de carro], e estavam agora numa
altura que olhavam por cima das nuvens. Por toda parte havia picos de
montanhas cobertas de vegetação; os vales abaixo se voltavam para os
rios de um branco almofadado. Um sentimento de saciedade brotou
do peito de Elizabeth, um momento de prazer sufocante.77

A descrição da paisagem, que irá inspirar o poema ainda a ser escrito no


tempo diegético, demonstra como Elizabeth sente-se bem naquele ambiente
tropical. Ao chegarem ao destino, o narrador relata:
Então, ali estava a famosa casa. Introduzida por um plano de concreto
que quase contundiu seu nariz. Lota entrou por um buraco na parede,
e Elizabeth seguiu sua anfitriã por uma série de longos cômodos de
concreto, cada um se comunicando com o próximo. Quando pararam,
fizeram uma curva de volta para onde tinham começado. Como pro-
metido, o limite entre interior e exterior se confundia, impedindo seu
reconhecimento. Parecia não haver qualquer interior. A casa se abria
para o céu, e naquele momento não tinha paredes externas, apenas
grandes buracos escancarados para o lado externo. Vergalhões finos
de aço, quase delicados, se encaixavam sobre suas cabeças, e Lota dis-
se que elas logo serviriam de apoio a um telhado feito de placas de
alumínio. Os vergalhões lembravam os ramos de árvores entrelaçados
que Elizabeth havia acabado de ver na subida da serra. Aqui e ali tra-
balhavam homenzinhos morenos com chapéus de palha surrados. Um
deles carregava pedras em um carrinho de mão, outro as talhava com
um cinzel, afixando-as com argamassa em um muro de mais de quatro
metros de altura. Vários outros suspendiam os suportes em encaixes
feitos no concreto78.

As duas personagens estão dentro da cena de ação no início do tour


pela obra. Com o auxílio de uma periegese, a corporeidade e o sentido
sensório-motor são ativados pelo narrador ao conduzir o leitor em torno e
por dentro da construção.

77. SLEDGE. A arte de perder, p. 41.


78. SLEDGE. A arte de perder, p. 43, grifo do autor.

89
O uso da periegese é potencializado na primeira metade da passagem
(até a expressão “grandes buracos escancarados para o lado externo”). A
combinação das ações das personagens – “introduzida”, “entrou”, “seguiu”,
“pararam”, “fizeram uma curva em volta” – e características da construção –
“série de longos cômodos”, “um se comunicando com o próximo”, “o limite
entre interior e exterior se confundia”, “parecia não haver nenhum interior”,
“não tinha paredes externas” e os “grandes buracos escancarados para o
lado externo” – promovem a integração dentro-fora/interior-exterior. Já a
corporeidade e o sentido sensório-motor são destacados pela intensidade
com que Elizabeth está fisicamente inserida no enquadramento – ela quase
colide com uma das paredes a ponto de quebrar o nariz – e pela maneira
como Lota entra na casa – “por um buraco na parede”. O narrador guia o
leitor pela obra sob o ponto de vista de Elizabeth, que, por sua vez, é guiada
por Lota. O autor brinca, assim, com a noção de perspectiva, seja técnica, seja
literária. A personagem Elizabeth, cuja focalização é tomada pelo narrador,
percebe, pelo interior da cena enquadrada, que o dentro e o fora se misturam.
Essa integração do “interior” – palavra marcada em itálico no livro – com o
exterior é um dos objetivos da arquitetura modernista. Logo, esse pequeno
trecho da passagem, que inicia com as personagens percorrendo a edificação,
pode ser lido como uma écfrase arquitetônica performativa.
Na segunda metade do trecho (a partir da palavra “vergalhões”),
o narrador destaca que “os vergalhões [lembram] os ramos de árvores
entrelaçados”. Isso é, os elementos de sustentação do telhado79 remetem
a uma forma da natureza, outro preceito do movimento. Elizabeth, agora
posicionada do lado de fora da encenação dos “homenzinhos morenos”,
distrai-se com essas formas da estrutura do telhado e começa a prestar
atenção nesses trabalhadores e no serviço por eles executado (carregar e talhar
pedras com cinzel, afixar argamassa, suspender suportes), como se estivesse
assistindo a uma performance teatral. Esse trecho mais “contemplativo” é
interrompido pela explicação de Lota:

79. Neste trecho, dá a entender que a casa fora coberta com telhas de alumínio desde
a construção, porém tal solução construtiva foi empregada somente após o sapê usado
originalmente ter apodrecido.

90
– Minha casa é a primeira no Brasil a incorporar este estilo de telhado –
explicou Lota. – Os pedreiros acham que sou louca. Nunca viram nada
parecido. Claro que não viram, é revolucionário. Se deixo de vigiá-los
por um minuto, fazem as coisas a sua maneira, com a mesma frequência
com que digo o oposto. Então, ficam furiosos quando tenho que gritar
com eles para que ponham abaixo o que fizeram e recomecem. Passamos
o dia todo gritando uns com os outros.
Ela [Lota] riu ao contar isso, como se o processo de altercação e
desconstrução fosse outro aspecto de trabalho que lhe agradasse
profundamente. Como que para exemplificar o que acabara de dizer,
Lota aproximou-se do mestre de obras e em poucos momentos sua voz
começou a subir, enquanto um grupo de homens olhava para o chão
sem expressão, sacudindo a cabeca. A certa altura, particularmente
estridente, houve uma objeção em coro dos homens. Lota imediatamente
os interrompeu80.

A modalidade semiótica, segundo Elleström (2010), diz respeito à


comunicação durante as etapas do processo arquitetônico. Apesar de Lota
se divertir em seu relato, o trecho evidencia o atrito causado pela resistência
dos trabalhadores na adoção de novidades construtivas (grifos em itálico).
Ou seja, no romance de Sledge a comunicação entre as partes não é tão
bem-sucedida quanto no romance de Oliveira, em que Lota desempenha
com sucesso o papel de mediadora, como veremos na próxima seção. A
personagem Elizabeth, que também estava confusa com aquela novidade
arquitetônica e compreende a frustação dos operários, prefere evitar a
discussão entre Lota, o mestre de obras e o “grupo de homens que olhava
para o chão sem expressão, sacudindo a cabeça”. O narrador então relata
que a poeta
[...] afastou-se da discussão e saiu por um dos enormes buracos da
parede. A casa era estranha, era preciso se acostumar com ela. Simpatizou
com os operários. Ela também nunca tinha visto nada parecido. Era ao
mesmo ao mesmo tempo sólida e leve, séria e alegre, como a própria

80. SLEDGE. A arte de perder, p. 43, grifos nossos.

91
Lota. Apertou os olhos e imaginou o que ela [Lota] havia descrito –
uma casa revestida de vidro, uma caixa de joias de vidro na encosta,
convidando a natureza a entrar por todos os lados – e teve uma visão de
quão imensamente linda ela seria. Da laje de concreto onde Elizabeth
estava, a vista era apenas a mais recente de uma série de paisagens de
tirar o fôlego. Um vale verde esplendoroso estendia-se a sua frente, com
montanhas recobertas de mata subindo pelo outro lado. Detrás da casa,
uma parede perpendicular de granito negro subia verticalmente por no
mínimo trezentos metros, como algo saído de Edgar Rice Burroughs.
Quase que se esperava que um pterodátilo deslizasse pela lateral do
rochedo. Longos veios corriam verticalmente pela pedra negra, como
rastros de lesmas gigantes, enquanto nuvens caíam em cascata por
sobre a borda, criando uma cachoeira de névoa que constantemente
evaporava e se regenerava. O sol queimava em sua pele e sobre sua
cabeça, mas antes que se desse conta, uma nuvenzinha passou por cima
e resfriou o ar, aliviando qualquer desconforto. Lota estava construindo
uma casa no paraíso81.

Após sair fisicamente da cena enquadrada “por um dos enormes buracos


da parede”, Elizabeth lembra que Lota “havia descrito” que a casa seria
“revestida de vidro, uma caixa de joias de vidro na encosta, convidando
a natureza a entrar por todos os lados”. Nesse momento, a enargia é
desencadeada na mente da personagem através da descrição verbal daquilo
que Lota imagina que viria a ser a casa um dia: Elizabeth tem “uma visão de
quão imensamente linda [a casa] seria”82, ou seja, em vez de interagir com
a construção, a poeta prefere reviver o que está em sua memória, como
que em uma écfrase de segundo grau, ou seja, a écfrase que se dá na mente
do leitor é amalgamada com a écfrase que se dá na mente da personagem.
Em seguida, o narrador estabelece o local exato de onde Elizabeth observa
a casa, “da laje de concreto”, aos moldes do poema “Song for a Rainy Season”,
e continua a écfrase, fazendo agora presente a paisagem natural em que a casa
está inserida, em detrimento da casa propriamente dita. Muito provavelmente,

81. SLEDGE. A arte de perder, p. 43-44.


82. SLEDGE. A arte de perder, p. 44.

92
o público-alvo norte-americano desconhece a vegetação típica da floresta
atlântica que envolve a casa. Consequentemente, a estranha referência a Edgar
Rice Burroughs83 parece-nos um recurso utilizado pelo autor para auxiliar
a visualização de um meio ambiente selvagem, a fim de tentar desencadear
o almejado efeito de enargia. O narrador ainda faz uma inusitada menção a
um tipo específico de dinossauro. Mas após essas referências que, para nós,
brasileiros, podem soar como inadequadas, o narrador faz uma série de
referências intratextuais ao poema de Bishop – “nuvens caíam em cascata”,
“cachoeira de névoa que constantemente evaporava”, “nuvenzinha passou
por cima e resfriou o ar” (grifos em itálico) – , que, por sua vez, faz parte
da bagagem cultural do leitor-modelo de A arte de perder.
Em suma, nessa longa sequência, após descrever o cenário da paisagem
tropical, as personagens interagem com a construção com auxílio da
periegese. Essa interação é intercalada por trechos contemplativos, sob a
ótica de Elizabeth, e interrupções, por parte de Lota, até o momento em que
a poeta se desloca para o lado externo da construção. Ainda que sinta os
efeitos provocados pelo sol, que queima “em sua pele”, ou pela nuvem, que
“resfriou o ar”, Elizabeth deixa de interagir com o meio ambiente e passa a
observar a paisagem. Essa mudança de ponto de vista, de dentro para fora
da cena enquadrada, faz com que a écfrase arquitetônica da casa Samambaia
deixe de ser performativa, que se dá na mente do leitor, e torne-se do tipo
contemplativa, que espelha o que se passa na mente da personagem.
Em um dos raros momentos em que o narrador focaliza uma écfrase
sob a ótica de Lota, a casa é reapresentada como um fracasso.84 Lota comenta
que “tinha sonhado com uma casa que mostrasse suas costuras, virada do
avesso, para revelar o modo como fora construída”, ou seja, “exatamente
aquilo que a maioria dos arquitetos procurava esconder”. O narrador explica
que “podia ser um dado de beleza por si só. Sem segredos escondidos por
detrás das paredes, sem recorrer a truques, tudo transparente. Uma casa que
mostrasse exatamente como fora erigida e que, ao mesmo tempo, fosse de

83. O escritor norte-americano Edgar Rice Burroughs é o criador da personagem Tarzan.


84. Tal fracasso não é mencionado nos produtos culturais brasileiros investigados e muito
menos nos registros históricos pesquisados, em que Lota é representada como uma figura
batalhadora e vitoriosa.

93
tirar o fôlego”85. Apesar do tom negativista da passagem, a casa projetada
por Bernardes é um dos marcos da arquitetura brasileira exatamente devido
à transparência dos vidros e materiais aparentes que revelam o modo como
fora construída, onde não se tem nada a esconder. Nessa écfrase arquitetônica
contemplativa, o uso dos verbos “tinha”, “mostrasse”, “podia”, “fosse” e da
expressão “exatamente aquilo que a maioria [...] procurava esconder”
demonstra o pesar da personagem Lota, como se a verdade que buscava
pudesse refletir também sua vontade de revelar seu relacionamento afetivo
para o mundo, sem omissões ou segredos.
A casa é ainda reapresentada verbalmente sob o ponto de vista de
Elizabeth em mais dois breves trechos ecfrásticos:
Elizabeth ficou um tempo deitada, olhando para fora da janela enquanto
o sol surgia e uma suave luz amarela filtrava-se pelo vale. A janela
também emoldurava a principal estrutura da casa, onde, através do
vidro, ela podia ver Maria varrendo. Era isso o que acontecia na casa
de Lota, nada era escondido, não havia falsas aparências. O que se via
era o que se tinha. Não era corrompido [grifo do autor]. Ela adorava
aquela visão com todo o seu ser86.

No primeiro trecho, a janela limita e enquadra o interior e o exterior, que


se confundem. Mas essa confusão não incomoda a personagem, que aprecia
“com todo o seu ser” por meio da cena percebida pelo sentido da visão (grifos
em itálico). A transparência daquele sítio arquitetônico não “corrompido”,
onde “nada era escondido”, acolhia seu ser sem ressalvas. Deitada em sua
cama, Elizabeth observa atentamente a maneira como a estrutura da janela
emoldura não só o vale gradualmente iluminado pelo sol, mas também figura
da criada Maria. Ou seja, vários planos são abrangidos pelo campo de visão
da personagem nessa écfrase arquitetônica contemplativa.
A casa que Lota construíra era tão deslumbrante que Elizabeth podia
vagar por seus cômodos, olhando e suspirando, como se estivesse
apaixonada. Cada detalhe arquitetônico dialogava com a natureza –
as janelas que atraíam a luz de todos os ângulos, as paredes de pedras
cobertas de liquens, os animais selvagens que passavam por aqueles

85. SLEDGE. A arte de perder, p. 164.


86. SLEDGE. A arte de perder, p. 150, grifos nossos.
94
cômodos com tanta liberdade quanto seus moradores humanos. Como
é que ela chegara à conclusão de que deveriam deixar aquela casa, que
consumira metade de sua vida para ficar pronta, tão cedo? Dez anos
haviam passado rápido demais. [...] depois que a casa ficou pronta, ela
mal parecia reparar nisso. Agora era o parque, o parque, nada além
do parque87.

Neste segundo trecho, a poeta não se conforma em se mudar daquele


lugar “deslumbrante” e deixa transparecer indícios de irritação com a
dedicação excessiva de Lota ao trabalho, uma vez que só pensava no projeto e
execução do Parque do Flamengo. “Olhando e suspirando”, Elizabeth vagueia
pelos cômodos da casa e convive harmoniosamente com os animais selvagens
que transitam pelo sítio “arquitetônico [que dialoga] com a natureza”. No
entanto, a finalização da obra fez com que Lota perdesse o interesse nos
almejados contrastes provocados pela casa Samambaia.
Em A arte de perder, as écfrases arquitetônicas são focalizadas tanto
por Elizabeth quanto por Lota e revezam-se, respectivamente, entre o tipo
contemplativo e o performativo, de modo a revelar a integração entre o
interior-exterior e obra edificada-natureza, característica do estilo orgânico
da arquitetura modernista.

Samambaia em forma de romance II: Flores raras e banalíssimas


O enredo do romance Flores raras e banalíssimas: a história de Lota
de Macedo Soares e Elizabeth Bishop (1995) também apresenta o episódio
em que Lota conduz Bishop em seu Jaguar do Rio de Janeiro até a casa
Samambaia. Durante o percurso, a poeta “não sabia como proceder”88 em
relação aos modos afáveis (demais) da motorista, que a fitava diretamente
dentro dos olhos e provocava contato físico. A trajetória é narrada sob o
ponto de vista de Bishop89, que comenta o modo como Lota “arrancou e [as
duas] saíram avoando” serra acima “em meio a um cenário deslumbrante”. A
poeta “queria parar, saltar do carro” durante todo o percurso até Petrópolis,
“uma cidadezinha encantadora”, com suas “ruas formadas por casarões

87. SLEDGE. A arte de perder, p. 210.


88. OLIVEIRA. Flores Raras e banalíssimas, p. 15.
89. A autora Oliveira opta por chamar a personagem poeta pelo sobrenome: Bishop.

95
solenes, com jardins bem cuidados ornados de hortênsias”. O narrador usa
as expressões adverbiais “de repente” e “subitamente” a fim de enfatizar o
caráter inesperado do percurso exótico, que passa “por uma estrada estreita
e esburacada”. Enquanto faz “malabarismos para se esquivar de pedras e
buracos” 90, Lota conversa normalmente:
– Isto aqui vai melhorar. – Vupt. – Recebi as terras de Samambaia de
herança de minha mãe, há uns dez anos. Primeiro foi o inventário, muito
demorado, tive que repartir tudo em partes milimetricamente iguais
com minha irmã. Depois resolvi fazer um loteamento de alta classe. O
processo de desmembramento também é interminável, envolve uma
papelada dos diabos. Somente agora pude começar as obras da casa.
Mais tarde vou tratar dessa estrada. – E vupt91.

A fala de Lota revela sua confortável situação econômica para a


personagem recém-chegada ao Brasil. A velocidade com que ela percorre as
curvas da subida da serra – o que não incomoda Bishop, que está deslumbrada
com a exuberância da vegetação – é enfatizada pela onomatopeia “vupt”
(grifos em itálico). Ao chegar ao destino, a poeta ergue a cabeça para admirar
aquele “lugar incrível. À distância, as montanhas azuladas. Em torno, a
mata. À frente, poderosa, uma enorme rocha de granito”92. Ao chegar à
construção da casa, ela vê
dois homens seminus [...] encarapitados no topo de uma parede.
Conduzida por Lota, Bishop percorreu a obra de cabo a rabo, pisando
no chão de cimento fartamente decorado por patas de cachorro. Aqui
vai ser isso, ali vai ser aquilo, ia dizendo Lota, entusiasmada. Um suave
toque no braço significava que estava na hora de Bishop continuar
andando. Lota contava como tinha planejado aquela casa, com alguém
cujo nome Bishop não entendeu. A americana, num aturdimento, entendia
vagamente que ali se ergueria uma casa sem paredes, ou então se tratava
de um corredor em torno do qual haveria uma casa93.

90. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 15-16.


91. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 15-16, grifos nossos.
92. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 16.
93. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 16-22, grifos nossos.

96
Além das novidades próprias de quem chega a outro continente, o
fato de ser conduzida pela “obra de cabo a rabo” provoca na escritora um
estranhamento (grifos em itálico) em relação aos detalhes construtivos que
vão sendo percebidos aqui e ali e se misturam com o jeito envolvente de
Lota, cujo “suave toque no braço significava que estava na hora de Bishop
continuar andando”. A forte personalidade de Lota é gradualmente revelada,
sob o ponto de vista da poeta, durante o tour pelo sítio da Alcobacinha, local
onde está sendo construída a casa Samambaia.
O trecho evidencia dois importantes aspectos técnicos referentes
ao processo arquitetônico: o primeiro diz respeito à concepção da obra
e à elaboração do projeto: foi Lota quem concebeu a ideia da casa, mas
quem a projetou foi “alguém cujo nome Bishop não entendeu”, e quem
está executando a obra são trabalhadores “seminus [...] encarapitados no
topo de uma parede”94. O outro aspecto diz respeito ao entendimento entre
as partes, que é fator relevante no aspecto semiótico de todo o processo
arquitetônico. A falha na comunicação entre a visitante e a guia, devido ao
idioma ou ao aturdimento de Bishop, sugere ao leitor o potencial do que
poderia vir a ser aquela construção: uma “casa sem paredes” ou “corredor
em torno do qual haveria uma casa”. Essa passagem, que demanda um certo
conhecimento das condições nas quais a casa foi projetada, demonstra que o
uso da periegese, aliado ao preenchimento de tais lacunas, pode justapor dois
tipos de écfrase arquitetônica: a performativa e a técnica, aquela atribuída
a um leitor informado.
A partir desse momento, tanto na écfrase quanto no relacionamento
que começa a surgir, a poeta passa a ser conduzida por Lota:

[...] Uma trilha levava até a cachoeira. Bishop lamentava não ter trazido
a agenda. Ia arrolando tudo mentalmente, a variedade de cores que
encontrava: verde-escuro, verde-azulado, oliva, púrpura, ferrugem,
amarelo, outro amarelo, vermelho sangue, branco-esverdeado. Ouvia
o trepidar oculto da cachoeira.
Lota ia guiando.

94. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 16.

97
– Cuidado aí: espinho! – Dava a mão a Bishop, ajudando-a a contornar
uma pedra ou a escorregar pelo limo de outra.
Quando chegaram à cachoeira, Bishop reparou no contato alegre daquela
massa d’água com outros organismos vivos, avencas, bromélias, musgos.
– A água que consumimos é captada aqui – interveio o espírito prático
de Lota. – A corrente vai seguindo adiante e passa lá perto de casa.
Venha, vou lhe mostrar95.

Guiada pelo olhar prático de Lota, a personagem Bishop memoriza


a paisagem multicor que irá inspirar o poema “Song for a Rainy Season”,
parcialmente reproduzido nas páginas 87 e 94 do romance de Oliveira. A
relação intramidiática entre o poema e o romance é aqui marcada pelo
verbo “ouvia” (em itálico) que evoca o sentido da audição devido ao barulho
da cachoeira e pela menção ao limo na pedra e outros “organismos vivos”,
tais como avencas (planta muito semelhante e às vezes confundida com
samambaias), bromélias e musgos. Como no poema, a umidade causada
pela ação das intempéries e da vegetação sobre a construção é evocada em
um breve trecho, em que o narrador fala que “os mofos da premiada casa
continuavam a atuar sobre a árvore brônquica da frágil americana, [que] tinha
longas crises de asma”96. Outra referência midiática ao poema “Song for a
Rainy Season”, aparece nas páginas 76 e 77 do romance em forma de fotografia.
A expressão “mapa iletrado do bolor” faz referência ao borrão no canto
inferior direito da parede clara abaixo das janelas, que aparece nitidamente
na reprodução fotográfica desta parede externa. Fotografias, como essa da
“casa aberta” e sua respectiva legenda: “Lota, Bishop (no interior), uma
nuvem particular e uma parede inteira para o mapa do bolor”, auxiliam na
construção do conhecimento do leitor e suplementam os trechos ecfrásticos.
Confortável naquele inusitado ambiente acolhedor, “Bishop não falava
mais em voltar para o [apartamento no bairro] Leme. Simplesmente ia
ficando”97. O narrador, sob a ótica de Bishop, enquadra a écfrase com o
verbo “olhar” (grifos em itálico):

95. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 22, grifo nosso.


96. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 69.
97. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 25.

98
Naquela manhã, Bishop olhava Lota movimentar-se de um lado para
outro, orientando a colocação das treliças do telhado. Para desespero
dos dois pedreiros, aquele telhado não tinha ripas nem telhas de barro,
como convém a qualquer telhado. Era uma maluqueira feita de placas
de alumínio, sustentadas por vigas metálicas.
Como a obra era caríssima, Lota tinha decidido construir os elementos
arquitetônicos mais audaciosos posteriormente, e terminar primeiro um
núcleo básico com quarto, sala, banheiro e cozinha. As paredes já estavam
de pé. Agora era cobri-las, o que conseguiria tão logo promovesse a
conversão de sua indisposta dupla de auxiliares.
Bishop não se cansava de olhar, era bonito uma pessoa sonhar e construir
sua própria casa98.

O léxico técnico é simples: substantivos – “treliças”, “telhado”, “ripas”,


“telhas de barro”, “placas de alumínio”, “vigas metálicas”, “paredes”, “quarto”,
“sala”, “banheiro” e “cozinha” – e verbos relacionados com construção –
“orientar a colocação”, “sustentar”, “construir” e “cobrir”– reforçam a
materialidade concreta da arquitetura. Mas a materialidade virtual também
está presente, pois a pessoa que concebeu a ideia da casa, Lota, é aquela
que está literalmente colocando a moradia de pé. A tridimensionalidade
é marcada pelo volume da edificação através do telhado que está prestes
a ser colocado em cima das paredes já construídas. Assim como em A
arte de perder, a personagem Bishop observa a cena descrita pela écfrase
contemplativa, como se estivesse em uma galeria, observando uma obra de
arte, ou em um teatro, assistindo a uma performance encenada por Lota e
pelos dois trabalhadores inseridos dentro do espaço arquitetônico como se
fosse um cenário.
Como a obra da casa Samambaia dura vários anos, Lota desdobra-se
para manter Bishop por perto e anuncia a construção de um estúdio que
seria “um cantinho só dela, para ela ficar fazendo poesia”. A percepção que
as duas protagonistas têm do projeto que está sendo elaborado faz com que o
narrador alterne a perspectiva de quem lidera a écfrase. A explanação inicia
sob o ponto de vista da “arquiteta”, que “já tinha até escolhido o lugar: ia ser

98. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 26, grifos nossos.

99
de frente para o riacho, de forma que poderia ficar ouvindo o barulhinho
da água correndo. Mas de costas para a casa, para Bishop não se distrair
com o que estivesse acontecendo por lá”99. A focalização é alternada quando
atônita, Bishop via as mãos mágicas de Lota desenhando a planta do
estúdio. A sala com uma janela de correr, o banheiro, a estufa, a cozinha,
uma poltrona bem confortável. Bishop ficaria totalmente independente.
Hum? O chão vai ser de tijolo de barro, fica ótimo. As paredes, caiadas.
Quando olhar pela janela, vai ver o riacho passando e todas aquelas
árvores. Que tal? Você vai ter serenidade para escrever.

Bishop escutava em silêncio. Os olhos inchados ardiam. As mãos de


Lota segurando a sua a confortavam.100

O trecho apela para os sentidos (grifos em itálico) da personagem poeta


tanto no momento presente quanto na projeção mental do que o estúdio iria
proporcionar-lhe no futuro: (a) a visão prazerosa das “mãos mágicas de Lota
desenhando a planta do estúdio”, aliada à imagem mental do “riacho passando
e todas aquelas árvores”, que virá a ter através da janela, contrastando com o
ardor que está sentindo em seus “olhos inchados”, resquício da reação alérgica
que teve ao caju; (b) o “barulhinho da água correndo”, que escutará no futuro,
contrastando com o “silêncio” do momento em que ouve a proposta de
Lota; (c) o conforto das mãos de Lota segurando as dela naquele momento
e o conforto a ser oferecido pela poltrona no futuro. Essa passagem, que é
para nós uma écfrase arquitetônica contemplativa, verbaliza a destreza da
autora em guiar o olhar da poeta durante a demonstração da elaboração de
etapas iniciais do processo arquitetônico: o programa do escritório, com
banheiro, estufa e cozinha; a definição da implantação da construção no
terreno – de costas para a casa, com vista para a mata à frente do riacho –;
os aspectos construtivos – tijolo de barro no chão, paredes caiadas, janela
de correr –; e a definição do layout de mobiliário, que terá uma “poltrona
bem confortável”.

99. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 38.


100. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 38, grifos nossos.

100
Todos os detalhes pensados na concepção do estúdio de Bishop visam
a proporcionar uma (falsa) independência para que a poeta possa produzir
e assim manter-se serena e sóbria. A poeta, que sofre de alcoolismo, é capaz
de ficar menos suscetível ao álcool sempre que consegue envolver-se por
inteiro na escrita. “Colocando pedra sobre pedra, Lota ergueu do nada o
prometido estúdio de Bishop”101, que, por sua vez, deixa fluir as futuras
possibilidades proporcionadas pelo momento presente.
Uma vez que a poeta se instala na moradia e na vida de Lota, elas vivem
um momento de harmonia em que “partilhavam uma felicidade robusta,
quase não desciam [para o Rio de Janeiro], quedavam-se naquela casa em
construção no meio das nuvens”102. No romance Flores raras e banalíssimas,
o narrador demonstra, através das écfrases arquitetônicas, que a casa da
montanha concilia o sonho de Lota de construir uma obra de vanguarda à
vontade de Bishop de ter um lugar para chamar de lar.
Em A arte de perder, as écfrases arquitetônicas auxiliam a construção
do imaginário do ambiente tropical onde a ação acontece. Afinal, a paisagem
da Mata Atlântica não faz, necessariamente, parte da bagagem visual dos
leitores norte-americanos em potencial. Já em Flores raras e banalíssimas,
as écfrases arquitetônicas são mais breves, e muitas vezes mais técnicas
do que poéticas, mas fazem a arquitetura tão presente na narrativa que
Samambaia atua quase que como personagem que une as duas protagonistas,
Lota e Bishop, que depois serão afastadas por outra obra arquitetônica, o
Parque do Aterro do Flamengo. Referências diretas ao poema de Bishop
por meio de citações, explícitas e implícitas, aparecem nos dois romances.
Em ambos, características do movimento arquitetônico em voga no tempo
diegético são reveladas por meio écfrases. Nessas passagens, o leitor é levado
a experimentar fisicamente a organicidade da casa inserida na natureza por
meio da integração entre o interior e o exterior, característica intrínseca à
arquitetura modernista brasileira. Ou seja, a écfrase arquitetônica é capaz
de situar a arquitetura histórica, geográfica e também esteticamente.
Em suma, a partir da aplicação do modelo interpretativo para o
estudo da tipologia écfrase arquitetônica em forma de poesia e prosa, a

101. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 62.


102. OLIVEIRA. Flores raras e banalíssimas, p. 56

101
delimitação das especificidades da arquitetura potencialmente reveladas
por meio de palavras demonstra como a literatura é capaz de desencadear
uma interação da personagem e, consequentemente, do leitor tanto com o
processo arquitetônico como com a edificação per se.

Referências
BISHOP, Elizabeth. O iceberg imaginário. Seleção, tradução e textos
introdutórios de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
BISHOP, Elizabeth. Song for a Rainy Season. The New Yorker, New York,
p. 40, 8 Oct. 1960.
ELLESTRÖM, Lars. Media Transformation: the transfer of media characteristics
among media. Houndmills: Palgrave Macmillan, 2014.
ELLESTRÖM, Lars. Media Borders, Multimodality and Intermediality. New
York: Palgrave Macmillan, 2010.
OLIVEIRA, Carmen. Flores raras e banalíssimas: a história de Lota de Macedo
Soares e Elizabeth Bishop. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
PRZYBYCIEN, Regina. Feijão-preto e diamantes: o Brasil na obra de Elizabeth
Bishop. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
RODOLPHO, Melina. Écfrase e evidência nas letras latinas: doutrina e
práxis. São Paulo: Humanitas, 2012. (Letras Clássicas).
SLEDGE, Michael. A arte de perder. Tradução de Elisa Nazarian. São Paulo:
Leya, 2011.
SLEDGE, Michael. The More I Owe You. Berkeley: Counterpoint, 2010.
VIEIRA, Miriam de Paiva. Écfrase arquitetônica: um modelo interpretativo.
Aletria, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 241-260, 2017. Disponível em: <http://
www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/issue/view/605/showToc>.
VIEIRA, Miriam de Paiva. Écfrase: de recurso retórico na antiguidade a
fenômeno midiático na contemporaneidade. Todas as Letras, São Paulo, v.
19, n. 1, p. 45-57, 2017. Disponível em: <http://editorarevistas.mackenzie.br/
index.php/tl/article/view/9955/6384>.

102
INTERAÇÕES INTERMIDIÁTICAS EM
MÚSICA, LITERATURA E PINTURA:
SCHUBERT, MÜLLER E FRIEDRICH

Mônica Pedrosa de Pádua


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Cecília Nazaré de Lima


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Textos musicais, literários e pictóricos têm, cada qual, sua maneira


própria de significar, inerente aos tipos de suportes que os veiculam. A
linguagem literária, por exemplo, apoia-se em referentes que, de certa
forma, dirigem sua interpretação. Os textos musicais e pictóricos, por sua
vez, com possibilidades mais amplas de significações não determinadas
por convenções, admitiriam um tipo de apreciação analítica que pudesse
ser traduzida em linguagem verbal? Ao confrontarmos mídias distintas,
uma das questões que se apresentam, para além das tipologias de textos
intermidiáticos, é a de como encontrar maneiras de leituras que utilizem
parâmetros comuns que possibilitem relacionar esses diferentes textos,
seus pontos de confluência ou distanciamento, bem como suas maneiras
de interação.
Neste trabalho, adentramos nessa discussão tomando como objeto de
estudo a canção Gute Nacht, de Franz Schubert (1797‐1828). Posteriormente,

103
comparamos essa canção com uma pintura de Caspar David Friedrich
(1774‐1840), procurando destacar possíveis aproximações. Para nos
auxiliar nesse processo, partimos das categorias midiáticas de Rajewsky e
Clüver, bem como ideias e conceitos de Nattiez e Manguel. Para pensarmos
as maneiras de interação entre as mídias e seus pontos de confluência,
utilizamos nossa proposta metodológica que constitui a imagem como um
operador de leitura para as diferentes mídias. Trabalhamos com imagens
mentais de características sensoriais diversas, visuais, auditivas, cinestésicas,
cenestésicas, que podem ser percebidas em suas resultantes imagéticas:
tempo, espaço, movimento e sentimento.

Intermidialidade e transmidialidade
Para a abordagem interpretativa das obras neste trabalho, enfocamos,
inicialmente, teorias sobre intermidialidade que tiveram início na década
de 1990 e que deram origem a um vasto número de concepções. O termo
intermidialidade pode ser utilizado de forma genérica para todo o fenômeno
que ocorra entre mídias.103 Utilizaremos um conceito expandido de mídia,
que abrange não apenas aquelas costumeiramente assim designadas, tais
como as mídias impressas, eletrônicas ou digitais, mas também as artes
– música, literatura, pintura, arquitetura e suas formas mistas, como a
ópera, o teatro ou o cinema.104
Irina Rajewsky propõe três subcategorias intermidiáticas: transposição
midiática, como, por exemplo, adaptações cinematográficas, que implica
a transformação de um determinado produto de mídia; combinação de
mídias, que abrange fenômenos como ópera ou os quadrinhos, por exemplo;
e referências intermidiáticas, obtidas por meio da evocação ou da imitação,
em uma mídia, de técnicas de diferentes mídias.105
Com base nas subcategorias propostas por Rajewsky, podemos, a
princípio, considerar uma canção como uma combinação de mídias. Valendo-
nos ainda das classificações formuladas por Clüver, consideramos a canção
como um texto multimídia, no qual o texto literário e o texto musical têm

103. Cf. RAJEWSKY. Intermidialidade, intertextualidade e “remediação”.


104. Cf. CLÜVER. Inter textus / Inter artes / Inter media.
105. RAJEWSKY. Intermidialidade, intertextualidade e “remediação”. p. 22.

104
sua própria coerência e ambos podem ser lidos separadamente.106 Por outro
lado, não podemos deixar de levar em conta a transposição midiática que se
opera no processo da escrita de canções. Transforma-se uma ideia poética
em ideia musical, ou vice-versa, utilizando-se de novos meios. Podemos falar
em tradução intersemiótica, na medida em que o processo do músico ou
do poeta é criativo, ambienta, suporta e transforma a mídia original. Ainda
assim, a canção é, ela própria, uma obra original, e a inter-relação entre os
seus textos gera um produto novo, no qual música e poesia apresentam-se
de forma sincrônica, em relações de justaposição e complementaridade.
Assim sendo, uma canção pode ser considerada como a união de
duas mídias, a literária e a musical. Na performance de uma canção, outras
mídias podem ser levadas em consideração, como o gestual, o cenário, a
iluminação, o que torna a canção uma forma mista intermidiática. Interessa-
nos investigar os diálogos que se operam entre as mídias, as aproximações
e distanciamentos, as interferências de uma na outra e suas resultantes
consequentes dos processos de transposição e combinação, e destacar o
resultado dessa interação, concentrando-nos, neste trabalho, na música e
na poesia – as mídias que originalmente dão forma à canção.
Além disso, a transmidialidade é um conceito que será aproveitado
neste estudo, já que pretendemos apresentar relações que estabelecemos
entre a canção de Schubert e a pintura de Friedrich.
Rajewsky, ao abordar o fenômeno transmidiático, cita como exemplo o
aparecimento de certos procedimentos estéticos, motivos ou narrativas em
diferentes mídias.107 Como modelo mais específico desse fenômeno, ela cita
a estética do futurismo, percebida em diferentes mídias, como a pintura, a
escultura, o teatro e a música, a partir dos meios expressivos e formais de
cada mídia. Segundo a autora:
A realização concreta dessa estética é, em cada caso, necessariamente
específica da mídia, mas por si mesma ela não é, contudo, limitada a uma
mídia específica. Até certo ponto, ela é realizável de forma transmidiática,

106. CLÜVER. Inter textus / Inter artes / Inter media.


107. RAJEWSKY. Intermidialidade, intertextualidade e “remediação”, p. 16.

105
isto é, possível e realizável em um cruzamento de fronteiras entras as
mídias.108

Poderíamos citar outros exemplos entre os movimentos artísticos do


ocidente, em que elementos, ideias ou motivos de uma arte transitavam para
outras artes, entre as quais está também a música. As ideias monotemáticas
do período barroco, o contraste de ideias distintas, a tese e a antítese, e seu
desenvolvimento tipicamente pertencente ao período clássico, bem como
a liberdade formal e a expansão das possibilidades expressivas, abrindo
espaço para a individualidade e o subjetivismo características das artes do
período romântico, são alguns desses exemplos. No entanto, se, na estética do
futurismo, a ênfase nas máquinas, nos seus mecanismos e nas suas sonoridades
pode ser um elemento mais claramente perceptível entre diferentes mídias,
em outras, as aproximações possíveis de ser estabelecidas talvez sejam menos
evidentes, mas existem. Nesse sentido, a leitura de diferentes mídias por
meio de imagens pode ser uma ferramenta bastante eficaz.

A imagem como operador de leitura intermidiática


Cada mídia pode ser considerada como um sistema semiótico distinto,
com sua maneira peculiar de possibilitar a expressão. Ao interpretarmos
textos formados por mídias diferentes, somos confrontados com uma grande
questão: como encontrar parâmetros comuns de modo a poder comparar
diferentes textos e perceber as inter-relações que surgem das combinações
intermidiáticas? A linguagem verbal, por exemplo, se apoia em referentes
estabelecidos por convenções que nos auxiliam na atribuição de significações
aos textos. Nas artes plásticas, encontramos diferentes graus de significação,
mais ou menos convencionais, que nos abrem para várias possibilidades de
leituras. Como nos diz Menguel, imagens picturais nos permitem relatar
narrativas que transmitem “alusões, insinuações e suposições”.109
Na música, as convenções de significados são encontradas em seu nível
intrínseco, ou seja, possíveis significados surgem quando relacionamos os

108. RAJEWSKY. Intermidialidade, intertextualidade e “remediação”, p. 39.


109. MENGUEL. Lendo imagens, p.55.

106
elementos musicais entre si, como, por exemplo, notas, acordes, tipos de
harmonia, forma musical. De modo semelhante, uma grande parte das
significações que podemos atribuir aos textos poéticos advém de elementos
não verbais, como o ritmo ou a sonoridade das palavras, o que torna a
poesia a mais musical das artes literárias. Assim sendo, ao procurarmos
estabelecer inter-relações entre música e outras mídias, adentramos o campo
da semiologia da música110, levando em conta significações que podemos
chamar de extrínsecas, que dizem respeito à criação de significados por meio
da relação da música com aspectos extramusicais, como, por exemplo, os
elementos do mundo que nos cerca, objetos ou sentimentos.
Sabendo que a interpretação envolve bagagens culturais distintas e
percepções particulares, consideramos que a atribuição de significados a
um texto deve ter rigor metodológico e evitar os processos aleatórios ou
exclusivamente subjetivos. Concordamos com Humberto Eco quando diz
que “a interpretação deve falar de algo que deve ser encontrado em algum
lugar, e de certa forma respeitado”.111
Para o propósito do nosso trabalho de investigar as inter-relações entre
literatura, música e pintura, utilizaremos a imagem, conceito transversal que
perpassa as diferentes mídias, como um operador de leitura que visa conectar
elementos heterogêneos: linguagem verbal, linguagem musical, linguagem
pictórica, palavras, sons, visualidade. A proposta, desenvolvida inicialmente
pela primeira autora deste trabalho,112 é ancorada na semiologia da música,
em descobertas da neurociência e no conceito de iconicidade de Peirce,113
uma vez que são enfocados interpretantes não governados por convenções,
mas, sim, pela similaridade e relações de comparação.
O termo imagem é usualmente utilizado para se referir a imagens visuais,
como desenhos, pinturas ou vídeos. A proposta aqui utilizada estende a
concepção de imagem para as várias imagens, de características sensoriais
diversas, que são formadas em nossas mentes. Pensamos imagens, como

110. Cf. NATTIEZ. Music and Discourse.


111. ECO. Interpretação e super interpretação, p. 51.
112. PÁDUA. The perception of Art songs through image; Imagens de brasilidade nas
canções de câmara de Lorenzo Fernandez.
113. PEIRCE. Semiótica.

107
nos diz o neurocientista Antônio Damásio, para quem “o conhecimento
factual – para o raciocínio e para a tomada de decisões – chega à mente
sob a forma de imagens”.114 Assim, além de imagens visuais, temos imagens
formadas pelos nossos vários sentidos, como as imagens auditivas, cinestésicas
(movimento) ou cenestésicas (sensibilidade visceral – emoções).
Damásio distingue as imagens percebidas das imagens evocadas. Por
exemplo, ao ouvirmos música, formamos imagens sonoras percebidas,
enquanto justapomos, em processos de evocação, imagens de outras
características sensoriais, recorrendo à memória de experiências, em
processos relacionais e de comparação.
As categorias de imagens em poesia, música e pintura que propomos
baseiam-se em características comuns a essas mídias: imagens de tempo,
imagens espaciais e plásticas, imagens de movimento e imagens de
sentimentos, apreendidas pelos nossos vários sentidos e percebidas em
operações conceituais.
A imagem tempo, de um tempo evocado, diverso do tempo transcorrido,
pode ser criada por meio de repetições, rupturas, contrastes de andamentos
e de campos harmônicos, de planos ou cores, entre outros elementos. A
imagem espacial e plástica pode resultar, principalmente, da organização de
parâmetros como a altura, a intensidade e o timbre, aliterações, assonâncias
e rimas, planos, perspectivas e cores. Métrica, ritmo, rimas, andamentos,
escalas, saltos, perspectiva, pontos de fuga criam imagens de movimento.
Por fim, são apresentadas as imagens de sentimentos – paisagens corporais
– nas associações de estruturas poético-musicais-pictóricas com emoções.
Na obra multimídia, a imagem final é resultado da justaposição de várias
imagens, fragmentada, dinâmica e em constante modificação.

Interação entre poesia e música na canção Gute Nacht


Gute Nacht (Boa noite) é a primeira canção do ciclo de 24 canções
Winterreise (Viagem de Inverno), escrito para canto e piano pelo compositor
austríaco Franz Schubert (1797-1828). A canção foi escrita com base no

114. DAMÁSIO. O erro de Descartes, p. 123.

108
poema homônimo do poeta alemão Wilhelm Müller (1794-1827), integrante
de uma coleção de 24 poemas publicada em 1824. Schubert descobriu o ciclo
de poemas em 1826 e finalizou a música das 12 primeiras canções no início
1827, e as restantes, ao final do mesmo ano.115
Gute Nacht Boa Noite

Fremd bin ich eingezogen, Como estrangeiro cheguei,


Fremd zieh’ ich wieder aus. Como estrangeiro parto.
Der Mai war mir gewogen Maio me foi benfazejo
Mit manchem Blumenstrauß. com muitos campos de flores.
Das Mädchen sprach von Liebe, Ela falou de amor,
Die Mutter gar von Eh’, - sua mãe até de casamento;
Nun ist die Welt so trübe, agora o mundo está turvo
Der Weg gehüllt in Schnee. e o caminho coberto de neve.

Ich kann zu meiner Reisen Não posso escolher a hora


Nicht wählen mit der Zeit, de minha viagem,
Muß selbst den Weg mir weisen preciso achar meu próprio caminho
In dieser Dunkelheit. nesta escuridão.
Es zieht ein Mondenschatten Minha sombra, que a lua projeta,
Als mein Gefährte mit, é minha companheira de viagem,
Und auf den weißen Matten e sobre os campos de neve
Such’ ich des Wildes Tritt. procuro as pegadas dos animais sel-
vagens.
Was soll ich länger weilen,
Daß man mich trieb hinaus ? Por que ficaria aqui mais tempo,
Laß irre Hunde heulen para que expulsassem ?
Vor ihres Herren Haus; Que vão os cachorros soltos
Die Liebe liebt das Wandern - latir na porta de seus donos.
Gott hat sie so gemacht - O amor ama viajar
Von einem zu dem andern. de um lugar para outro,
Fein Liebchen, gute Nacht ! foi Deus que assim o fez:
boa noite, minha querida.
Will dich im Traum nicht stören,
Wär schad’ um deine Ruh’. Não quero perturbar seus sonhos,
Sollst meinen Tritt nicht hören - por que turbaria sua paz?
Sacht, sacht die Türe zu ! Você não ouvirá meus passos
Schreib im Vorübergehen quando suavemente eu fechar a por-
Ans Tor dir: Gute Nacht, ta.
Damit du mögest sehen, Em minha saída escrevo
An dich hab’ ich gedacht “Boa noite” em seu portão,
para que você veja
que esteve em meu pensamento.

115. Cf. Mckay. Franz Schubert, p. 271-288.

109
O poema, em primeira pessoa, é composto de quatro estrofes de oito
versos hexassílabos, em linguagem simples e direta, sem metáforas. O ritmo
é regular, e as rimas sempre alternadas ABABCDCD. Nele, o eu lírico, um
andarilho, narra sua decisão de abandonar a cidade na qual se encontrava e
a pessoa pela qual havia se enamorado, e partir em viagem, à noite, através
da neve, deixando à moça um bilhete de boa noite.
Vejamos como os objetos muito concretos apresentados no poema nos
permitem evocar imagens que constroem o espaço da história: o percurso
da caminhada nos campos de neve, pegadas dos animais, a casa (porta e
portão), a cidade (os cachorros nas portas), os campos de flores. O padrão
cromático sugerido pelas palavras do poema cria um contraste de claro/
escuro entre a escuridão da noite e a claridade da neve e da lua, além de
uma nuance diferenciada com os campos de flores rememorados. Cria-se
assim uma imagem espacial cujos detalhes vão tomando formas de amplas
dimensões e colorido predominantemente escuro.
O poema alterna acontecimentos no presente – a caminhada na neve – e
lembranças de episódios ocorridos num passado não muito distante, criando
a imagem de um tempo descontínuo, oscilante entre o tempo presente e o
tempo da rememoração. A regularidade do ritmo e das rimas, entretanto,
cria imagens de um movimento contínuo, regular e ininterrupto que denota
o movimento de uma caminhada, abraçando o presente e o passado.
Juntamente com as antíteses do chegar e do partir, são expressos
sentimentos de rejeição, inadequação e solidão, mas também de ternura,
amor e liberdade. As estações do ano – inverno e primavera – , denotam
sentimentos sombrios e prazerosos.
A canção possui estrutura formal regular com seções e frases recorrentes,
mas que também se contrastam, sobretudo nos direcionamentos. Apresenta
economia de material melódico, rítmico e harmônico e rítmica regular,
com ênfase no compasso e ritmo de marcha. As modulações que ocorrem
são para tonalidades próximas à tonalidade principal, Dó menor, ou de sua
homônima, Dó maior (Mi b maior, Lá bemol maior e Fá maior) (Figura 1).

110
Figura 1: Síntese harmônica da canção Gute Nacht. 

Fonte: figura realizada pelas autoras. 

A seguir, apresentamos o esquema tonal e formal da música para a


primeira (Tabela 1) e quarta (Tabela 2) estrofes da canção Gute Nacht.
A regularidade do ritmo e das rimas do poema é levada para a escrita
musical, que nos apresenta um ritmo de marcha regular ao longo de toda a
canção, o que nos permite evocar imagens de um movimento contínuo de
caminhada. Essa regularidade é enfatizada pela quadratura das frases musicais.
Apesar desse movimento contínuo e regular, a canção é, harmonicamente,
bastante estática, com ênfase na tonalidade principal e afastamentos para
tonalidades próximas. Ainda assim, o encadeamento harmônico, aliado
à condução das linhas melódicas, confere às frases direcionalidade,
impulsionando-as com a expectativa das resoluções.
A construção musical da canção cria um espaço sonoro mais constrito,
delimitado pela economia de material melódico e harmônico que,
imageticamente, transpomos para o espaço de ação do personagem que
apenas inicia sua caminhada. Esse espaço é conformado, principalmente,
pelo campo harmônico da tonalidade de Dó menor e pelos distanciamentos
para tonalidades próximas. Podemos perceber um padrão crômico
predominantemente escuro, com a supremacia da tonalidade de Dó menor
nas três primeiras estrofes da canção, intercalado com algumas colorações
mais claras das tonalidades de Mi bemol maior e Lá bemol maior. Esse padrão
contrasta com a claridade da tonalidade homônima, Dó Maior, presente na

111
última estrofe da canção. Os direcionamentos melódicos são contrastantes,
geralmente descendentes, em momentos de tonalidade menor, e ascendentes,
nos de tonalidade maior, o que auxilia na criação de momentos de expansão
e contração espacial.

Tabela 1: Esquema tonal e formal da música para a primeira estrofe de


Gute Nacht
A MÚSICA 1ª ESTROFE DO POEMA
Introdução (6 c.)
Como estrangeiro cheguei,
Dó menor (8 c.), movimento melódico Como estrangeiro parto.
descendente
Maio me foi benfazejo
com muitos campos de flores.
Mi b maior (4 c.), movimento melódi- Ela falou de amor
co ascendente
sua mãe até de casamento;
Lá b maior (4 c.) repetição transposta (Ela falou de amor,
da frase anterior
sua mãe até de casamento)
Interlúdio (2 c.) – ênfase no trítono
agora o mundo está turvo
Dó menor (8 c.) e o caminho coberto de neve
(agora o mundo está turvo
e o caminho coberto de neve)
Fonte: tabela realizada pelas autoras.

112
Tabela 2 – Esquema tonal e formal da música para a quarta estrofe de Gute
Nacht116

A MÚSICA ÙLTIMA ESTROFE DO POEMA


Introdução (6 c.)
Não quero perturbar seus sonhos,
Dó maior (8 c.), movimento me- por que turbaria sua paz?.
lódico descendente
Você não ouvirá meus passos
quando suavemente eu fechar a porta.
Fá maior (4 c.), movimento meló- Em minha saída escrevo
dico ascendente
“Boa noite” em seu portão,
Dó maior (4 c.) repetição trans- para que você veja
posta da frase anterior
que esteve em meu pensamento.
Interlúdio (2 c.) II – I ambos
maiores (lídio)
Em minha saída escrevo
Dó maior (8 c.) “Boa noite” em seu portão,
para que você veja

que esteve em meu pensamento.


Dó menor (1 c.)
Conclusão (5 c.)
Fonte: tabela realizada pelas autoras.

O jogo entre tonalidades e desenhos melódicos cria imagens de


sentimentos que se justapõem às imagens de rejeição, solidão, ternura
e liberdade percebidas no poema. A construção musical cria um tempo
descontínuo, de idas e vindas, que é o tempo da memória, ao mesmo tempo

113
em que fixa o momento do presente com as imagens da caminhada. Vejamos
a primeira e a última estrofe da canção.
No início da canção (4 primeiros versos), chamam a atenção o
motivo melódico em movimento descendente na linha do piano, que será
posteriormente retomado pela linha do canto, e a insistência na tônica, tanto
nas resoluções melódicas e harmônicas quanto em sua repetição na linha
do baixo. O movimento melódico descendente, sobretudo nas tonalidades
menores, carrega em si as conotações de tristeza e queda, e a insistência do
retorno à tônica parece fixar essa realidade, enfatizando a criação de imagens
de sentimentos doloridos. Ao buscarmos significações no texto poético que
acompanha essa passagem musical, chegamos a um personagem que é sempre
um estrangeiro, tanto ao chegar quanto ao partir. Apesar da lembrança do
mês de maio com suas flores, no terceiro e quarto verso, o colorido musical
dessa primeira subseção se mantém invariável.
Com os versos “Ela falou de amor, sua mãe até de casamento” ocorre
a primeira mudança de colorido harmônico, com as modulações para Mib
maior e Láb maior. Essa subseção da canção consta de duas frases musicais
formadas por melodias ascendentes, com a repetição da mesma letra, sendo
a segunda uma transposição ascendente ao intervalo de quarta justa, como
que reforçando a ideia anterior. O ritmo regular no acompanhamento passa
a apresentar algumas semicolcheias que conferem uma maior leveza ao
trecho e diálogo com a linha vocal. Com base nessa subseção, podemos
evocar imagens de sentimentos ternos que acompanham o momento da
rememoração.
Segue-se um interlúdio com modulação de volta para Dó menor. Como
a tonalidade de Lá b maior é o VI grau de Dó menor, o retorno à tonalidade
principal se dá de forma abrupta e dramática, apesar de ser diatônica, como
que arrancando o personagem de seu devaneio de volta para seu presente
dolorido. A dramaticidade da passagem se dá principalmente pela ênfase no
trítono, tanto na condução melódica do encadeamento (Lá b – Ré) quanto
pela qualidade do acorde do segundo grau diminuto.
Em “agora o mundo está turvo e o caminho coberto de neve”, o
trecho musical apresenta duas frases melódicas, como pergunta e resposta:

114
linha melódica descendente seguida de melodia ascendente finalizada em
movimento ascendente da escala menor melódica, o que confere a ela ,
melodicamente, uma coloração mais aberta com a presença da 6ª maior (Lá
bequadro). Na segunda vez, a finalização omite a subida da escala melódica e
conclui com a tônica em região grave. Há aqui uma mistura de possibilidades,
linhas descendentes e ascendentes, coloração maior da escala melódica
e, posteriormente, sua omissão, deixando em evidência a cor menor da
tonalidade principal. O trecho nos permite evocar imagens de ambiente
mais turvo, e sentimentos de insegurança e agitação.
Na última estrofe da canção, a modulação para a tonalidade de Dó
maior, aliada à rememoração dos movimentos suaves do personagem ao
sair da casa, cria imagens de sentimentos leves e fluidos.
Na próxima subseção, a modulação para Fá maior e depois Dó maior
acompanha a expressão “boa noite”. A segunda frase do trecho é conclusiva
tonalmente com a função de tônica no acompanhamento, mas com a sensação
de suspensão na parte vocal que, pela primeira vez, termina na terça do
acorde de Dó maior, conotando inconclusão e distanciamento no momento
da rememoração da ação que precedeu a partida do viajante.
Segue-se outro interlúdio com o mesmo motivo dos interlúdios anteriores,
só que agora o II grau é maior (Ré maior) resolvendo na tônica também
maior (Dó maior), com acordes e relações harmônicas proporcionadas pela
escala maior lídia (Dó lídio), a mais aberta das escalas modais tradicionais.
A terceira subseção repete toda a letra da segunda, com material
melódico ligeiramente variado, mas com a manutenção da relação harmônica
do interlúdio precedente, criando leveza e abertura, amplitude, liberdade e
decisão. Essa seção tem um compasso de prolongamento com a repetição
da última frase do poema e da melodia anterior, porém com terminação
em Dó menor, trazendo de volta sentimentos tristes.
As resultantes das imagens que são ativadas e evocadas pela interação
da música e do poema da canção em questão podem ser resumidas da
seguinte maneira:
a) Imagens de Movimento: contínuo e regular (ritmo de marcha, quadratura
das frases, estaticidade harmônica, afastamentos para tonalidades próximas);

115
b) Imagem de Espaço: delimitado, mas com momentos de expansão, com
predomínio de cores escuras (neve, pegadas, lua, casa, ambiente noturno,
presença de outras cores economia de material melódico, rítmico e harmônico,
predomínio da tonalidade de Dó menor e distanciamentos para tonalidades
próximas);
c) Imagens de Tempo: tempo circular, com direcionalidade e retorno (tempo
presente, métrica regular, rítmica silábica, quadratura das frases; tempo
da lembrança recente, momentos de afastamentos sempre com retorno à
tonalidade principal);
d) Imagens de Sentimento: sentimentos sombrios e ternos (dor, rejeição,
solidão, tonalidades menores, linhas descendentes; sentimentos de amor
e liberdade, tons maiores e melodias leves e ascendentes; dramaticidade,
modulação abrupta, sforzatos, trítono).
A combinação dessas imagens complementa e magnifica a significação
dos textos, compondo um todo multifacetado e rico em possibilidades
sensoriais.

Paisagem de inverno com igreja e Boa noite: interações


transmidiáticas
Antes de abordarmos o fenômeno da transmidialidade, ou o aparecimento,
na pintura de Friedrich, dos motivos e de características observados na canção
de Schubert e no texto de Müller, vale dizer que, embora contemporâneos
e pertencentes ao mesmo período estético, o Romantismo, os três artistas
nunca se encontraram. Também cabe ressaltar que as relações transmidiáticas
que serão estabelecidas a seguir entre a pintura e a canção partiram de uma
percepção sensível das autoras, apesar de não haver nenhuma confirmação ou
negação de que a primeira inspirou a segunda. Mesmo assim, as confluências
entre essas manifestações artísticas podem ser estabelecidas, expandindo o
campo de interpretações artísticas, como pretendemos demonstrar.
Nessa pintura de Caspar David Friedrich (1774-1840), Paisagem de
inverno com igreja (1811) (Fig.2),116 importante representante da pintura

116. Caspar David Friedrich, Winter Landscape (Paisagem de inverno com igreja), 1811,
óleo sobre tela, 32, 5 x 45 cm. The National Gallery, Londres.

116
romântica alemã, percebemos nitidamente dois planos: um mais ao fundo e
ao alto da tela, sombrio, esfumaçado, porém delimitador de uma localidade;
o outro à frente, na parte inferior da tela, claro, vago e amplo.

Figura 2: Caspar David Friedrich - Winterlandschaft mit Kirche [Public domain]

Apesar da estaticidade dos poucos elementos que compõem a obra, a


composição e as sutis gradações tonais que expressam a distância que separa
os dois principais planos conduzem o olhar do espectador ao movimento,
de um plano ao outro, e catalisam a sugestão do movimento do andarilho,
que, no entanto, está parado, orando, recostado em uma grande pedra, e
seus cajados deixados sobre a neve.
A correspondência de elementos presentes nos dois planos é também
bastante evidente, como podemos observar na identificação formal e
simbólica entre o grande pinheiro com o crucifixo do primeiro plano e
a catedral. De maneira análoga, o agrupamento de pedras e pinheiro do
plano intermediário, à direita da tela, apresenta similitude com a catedral.
Se na música de Schubert percebemos a economia de material melódico,
rítmico e harmônico, com o predomínio da tonalidade de Dó menor com

117
a qual as demais tonalidades que perpassam pela peça se relacionam, seja
como tonalidades vizinhas ou tonalidade homônima, na pintura também
observamos o predomínio do plano sombrio e a supremacia temática
da catedral, tanto em seu aspecto pictórico e formal, notadamente pelos
contornos coniformes e orientações espaciais ascendentes, quanto pelo
seu simbolismo religioso. Os elementos que se assemelham com esse tema
principal da pintura, tais como as pedras e os pinheiros, destacam-se por
suas diferentes posições e dimensões na composição da tela e pelos sutis
matizes de cores que os diferenciam.
O subdimensionamento da figura do andarilho, seu afastamento da
cidade e seu estado solitário, aliados ao ambiente noturno e invernal, criam
imagens de solidão e dor, que se contrapõem a sentimentos de conforto que
podem advir da oração. Se no poema de Müller conhecemos as circunstâncias
do sofrimento do viajante, na pintura de Friedrich temos uma história a ser
imaginada. A imagem temporal dessa história circula do tempo presente
num local ermo, claro e nítido, a um tempo de rememoração esfumado
e sombreado, que pode ser tanto um ponto de partida como de chegada.
As resultantes imagéticas ativadas e evocadas na leitura da pintura de
Friedrich guardam grande proximidade com aquelas formadas com base nos
textos de Müller e de Schubert e, de certa foram, sua percepção se tornou
mais evidente e ampliada devido ao conhecimento desses últimos. Essas
resultantes podem ser assim resumidas :
a) Imagens de Movimento: estaticidade e afastamento (estaticidade dos
elementos; movimento de um plano a outro);
b) Imagem de Espaço: delimitado, mas com momentos de expansão, com
predomínio de cores escuras (dois elementos principais, o pinheiro e a
igreja; dois planos e locais distintos; dois padrões cromáticos principais com
predomínio de tons sombreados);
c) Imagens de Tempo: Tempo circular, com direcionalidade e retorno (tempo
presente - plano inferior, claro, próximo; tempo da memória - plano superior,
distante);
d) Imagens de Sentimento: sentimentos sombrios e ternos (dor, rejeição,
solidão - tonalidades escuras, afastamento; conforto - oração, religiosidade).

118
Considerações finais
Parece-nos inegável a comparação que pode ser estabelecida entre
essas distintas proposições artísticas, a pintura de Friedrich, a música de
Schubert e o poema de Müller. Os resultados alcançados podem enfatizar
características de uma época na qual os três artistas se inserem e que marcaram
os diferentes movimentos artísticos daquele período. No entanto, o que nos
interessa destacar neste estudo é que, por meio da utilização do conceito
de imagem como um operador de leitura de textos inter e transmidiáticos,
acionamos imagens mentais pelas quais percebemos as coisas, as pessoas e
os objetos que nos rodeiam e relacionamos essas percepções, estabelecendo
elos, empatias e conclusões sobre as expressões e os significados dessas
coisas, pessoas e objetos.
Neste trabalho, foi possível observar pontos de confluência entre os textos
inter e transmidiáticos, bem como suas maneiras de interação. No caso da
canção de Schubert, a combinação dos textos poético e musical magnificou
seu conteúdo imagético, dando origem a um novo original sensorialmente
rico e com múltiplas possibilidades de significações.
As associações da canção de Schubert com a pintura de Friedrich,
apresentadas por meio do conceito de imagem como elemento unificador
da percepção artística, possibilitaram a tradução da percepção criativa das
autoras sobre a proximidade temática das duas produções artísticas em
questão e, consequentemente, a ampliação das possibilidades de percepção
de determinadas práticas artísticas por meio de suas relações com outras.
A pesquisa que vem sendo desenvolvida pelas autoras visa incrementar
o universo dos estudos dos textos inter e transmidiáticos, nos campos da
música, literatura e artes plásticas e ampliar os horizontes de interpretação
das práticas artísticas.

Referências
CLÜVER, Claus. Inter textus / Inter artes / Inter media. In: Aletria, p. 11- 41,
jul- dez. Belo Horizonte: UFMG/Poslit, 2006.
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano.
São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

119
ECO, Umberto. Interpretação e super interpretação. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MCKAY, Elizabeth N. Franz Schubert: a biography. New York: Oxford
University Press, 1996.
NATTIEZ, Jean-Jacques. Music and Discourse: Toward a semiology of music.
Princeton: Princeton University Press, 1990.
PÁDUA, Mônica Pedrosa de. The perception of Art songs through image:
a semiotic approach. In: MAEDER, C.; REYBROUCK, M. (org.), Music,
Analysis, Experience: new perspectives in musical semiotics. Leuven: Leuven
University Press, 2015. p. 235-237.
PÁDUA, Mônica Pedrosa de . Imagens de brasilidade nas canções de câmara
de Lorenzo Fernandez: uma abordagem semiológica das articulações entre
música e poesia. 2009. 275 f. Tese ( Doutorado em....) – Faculdade de Letras
da UFMG, Belo Horiozonte, 2009.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Tradução de de José Teixeira Coelho
Neto. São Paulo: Perspectiva, 2005.
RAJEWSKY, Irina O. Intermidialidade, intertextualidade e “remediação”:
uma perspectiva literária sobre a intermidialidade. Tradução de Thaïs Flores
N. Diniz e Eliana L. Reis. In: DINIZ, Thaïs F. N. (org.), Intermidialidade e
Estudos Interartes, v.1. Belo Horizonte: UFMG, 2012. p. 13-43.

120
DO SAGRADO AO PROFANO:
AS “CEIAS” DE YINKA SHONIBARE

Thaïs Flores Nogueira Diniz


Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG/CNPq

All adaptations express or address a desire to return


to an “original” textual encounter; [...] every “return” is
inevitably transformative of its object—whether that object
be the original text or the memory of its encounter.
Rachel Carroll

Adaptação é um termo que descreve um fenômeno que acontece desde


sempre. Inicialmente referia-se principalmente à passagem de um texto
verbal, preferencialmente um romance, para o cinema. Porém, hoje o esco-
po se ampliou e o termo adaptação se refere à transformação de produtos
de mídias diversas em várias outras. Assim, temos uma gama enorme de
configurações derivadas de textos verbais e de outras mídias em filmes e
em diversas outras práticas artísticas. O foco do estudo das adaptações
passou agora a incluir, além do estudo das mídias, também o estudo das
especificidades de suas técnicas e o da posição de quem adapta – leitores e
espectadores – que devem “ler” e “ver” a partir de seus lugares, resultando
em diferentes atividades de adaptação aos novos contextos. Assim, dentro

121
do estudo das mídias, podemos dizer que as adaptações são processos que
envolvem manobras industriais, acadêmicas, culturais e históricas.
Em sentido mais amplo, o que chamamos de adaptação sempre significou
a capacidade de ajustes, sejam eles humanos, culturais ou biológicos, como
um meio de sobreviver, progredir ou simplesmente mudar. As sociedades
antigas foram caracterizadas por sua habilidade de adaptar-se às condições
sociais e ambientais. A versão mais aceita dessa habilidade é o esquema de
Darwin, descrito como um processo pelo qual formas biológicas se sucedem
numa contínua evolução para a sobrevivência e o progresso. Dentro de um
contexto mais restrito, a adaptação pode se constituir de atividades mitológicas
e teológicas – que se configuram como narrativas e imagens. As mitologias,
então, são vistas como formas e métodos para adaptar as crises da humanidade
e os mistérios do universo a formas narrativas e imagéticas, enquanto são
transportadas ao longo de vários períodos históricos e de várias culturas.
A tradição de adaptar e transformar mitos continua nos tempos modernos
por meio de narrativas canônicas que circulam como variações imagéticas.

Segundo Corrigan117 as adaptações das escrituras sempre seguiram


os mesmos procedimentos que envolveram os mitos nas várias culturas:
transposições, acúmulos, adaptações de histórias e parábolas. Existem trechos
bíblicos que descrevem verdadeiros rituais. É o caso da “Ceia do Senhor”,
episódio representado por inúmeros artistas. A Ceia, que ocorria na Páscoa,
ou a “Ceia do Senhor”, como é mencionada no Novo Testamento, é um
dos eventos mais comoventes da Bíblia: em poucas horas, Jesus foi traído,
entregue às autoridades e julgado por uma corte ilegal, submetido a falso
testemunho e crucificado sem ter cometido nenhum crime, mesmo após ser
declarado inocente por Pôncio Pilatos. Segundo São Mateus, esse episódio
é narrado da seguinte maneira:
Enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o, partiu-o e
o deu a seus discípulos dizendo: Tomai e comei; isto é o meu corpo.
A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças a Deus, deu-o a seus
discípulos dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o

117. CORRIGAN. Defining Adaptation, p.26.

122
sangue da aliança, derramado em favor de muitos, para remissão dos
pecados. Digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto
da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no
reino de meu pai. (Mateus 26: 26-29)

O trecho fala de um dogma da religião católica – o da transubstanciação –,


isto é, a transformação de uma substância em outra e a presença sacramental
de Jesus Cristo na Eucaristia. Transubstanciação é um termo escolástico
usado pelo Catolicismo para explicar a conversão do pão e do vinho na
substância do corpo e sangue de Cristo. O termo teológico, em uso desde o
século XII na Igreja Católica, expressa a presença real de Cristo na Eucaristia,
ocorrida, durante a celebração, pela mudança da substância do pão e do
vinho na substância do corpo e sangue de Cristo.
No Novo Testamento, portanto, o que chamamos de Santa Ceia é a
última refeição feita por Jesus em companhia de seus discípulos numa sala
em Jerusalém, onde dois acontecimentos importantes são sempre retratados
na maioria das obras que se referem a esse episódio: (a) a revelação de que
um deles trairia o Mestre bem como a consequente reação deles e (b) a
instituição do sacramento da Eucaristia, representação da transubstanciação.
Esse dogma da transubstanciação é um verdadeiro exemplo de adaptação/
transformação/ tradução que vem sendo representado artisticamente ao longo
dos tempos. Uma das mais conhecidas da civilização ocidental é a famosa
pintura de Leonardo da Vinci intitulada A Última Ceia (FIG. 1).
O quadro de Da Vinci tem servido frequentemente de referência para
outras obras de arte, além de ser reproduzido ou parodiado na cultura
ocidental. Em um lado da mesa, os doze apóstolos, cada um com um
semblante diferente, reúnem-se em grupos de três, deixando Cristo no
eixo central da composição, de braços abertos, resignado e tranquilo. O
artista, um dos expoentes máximos do Humanismo no século XV, foi sempre
interessado em retratar a realidade, conseguindo representar, com maestria,
reações físicas e emocionais.

123
Figura 1: Leonardo da Vinci, A Última Ceia, 1498, pintura sobre parede,
4,60m x 8,80m. Igreja Santa Maria delle Grazie, Milão.

Fonte: https://cenacolovinciano.vivaticket.it/

Até o século XVII, a relação das obras sobre textos bíblicos com os leitores
autorizados pode ser descrita como um comentário aos textos sagrados.
Porém, a partir daí, houve um redirecionamento da hermenêutica: a relação
descrita como comentário aos textos religiosos transformou-se em um
comprometimento mais ativo e crítico por parte de leitores eruditos e, muitas
vezes, de leigos. Isso provocou uma mudança radical pela qual a interpretação
das escrituras e de outros textos passaram: não mais seria um comentário
sobre a obra / o texto, mas uma espécie de crítica, uma adaptação textual
mais intelectual da obra “primeira”. Esse procedimento representou uma
mudança significativa na relação histórica dos leitores dos textos e assinalou
uma redefinição contínua da adaptação como uma crítica mais produtiva
ou uma interpretação mais subjetiva, cujos vestígios ainda se encontram
nos séculos XX e XXI118. Em vez de simplesmente comentarem o texto
de origem, essas novas reescritas passaram a olhá-lo de modo diferente,
tentando complementá-lo ou mesmo melhorá-lo. É o caso, por exemplo,
de reproduções sui generis – como uma escultura feita em sal, na mina de

118. CORRIGAN. Defining Adaptation, p. 26.

124
Wieliczka, na Polônia, e outra feita de chocolate, por um artista chinês – e
de várias pinturas, esculturas, mosaicos, fotografias e adaptações para a
literatura baseados nesse quadro.

Muitos poemas relacionados a esse trecho bíblico foram escritos. Alguns


funcionam como écfrase, isto é, como “uma representação de configurações
visuais não cinéticas como objetos semióticos [que] verbaliza percepções
de características de configurações de fato existentes ou reações a elas, ou
sugere a existência perceptiva de tais configurações na realidade virtual
ou fictícia.”119 Outros poemas, porém, fazem apenas alusão ao episódio
ou abordam ainda aspectos a ele relacionados. Um exemplo desse tipo de
poema é “Upon Seeing Leonardo da Vinci’s ‘The Last Supper’, Milan, 1904”,
de autoria de Rainer Maria Rilke.
Embora o poema não tenha sido traduzido para a língua portuguesa,
pode-se demonstrar, por meio de sua paráfrase, que a voz poética não tenta
descrever a pintura de DaVinci, e, sim, interpretar o comportamento de
Cristo, assim como comentar o episódio e sua repercussão na vida. O
texto refere-se aos discípulos, atônitos e perturbados, reunidos para essa
última ceia em volta de Cristo que, como um sábio, decide seu destino e
deixa aqueles a quem pertencera, retirando-se e passando por eles como
um estranho. Comenta o isolamento da velhice, que o ajudara a preparar-
se para os atos mais intensos e que agora cai sobre aquele que andará mais
uma vez pelo Jardim das Oliveiras e perderá de vista aqueles que o amam.
Estes, amedrontados, agitam-se e procuram uma saída, mas cientes de que
o Mestre estará presente sempre e em todo lugar.
O poema foi escrito após Rilke ter tido acesso à obra de Da Vinci em 1904
e se comporta como uma reação a ela, não se configurando nem como uma
écfrase nem como sua tradução. As imagens usadas pelo poeta simbolizam
a dificuldade de comunhão com Deus, num tempo de solidão e falta de fé.

119. CLÜVER, Ekphrasis and Adaptation, p. 473. No original: “Ekphrasis is an enargetic


representation of non-kinetic visual configurations as semiotic objects. It verbalizes per-
ceptions of, or reactions to, characteristic features of configurations that actually exist
or suggests the perceived existence of such configurations in virtual, or fictive reality.”

125
Ao abordar temas como esses, Rilke se define como uma figura transitória
entre os escritores modernistas.
Eis o poema, em sua tradução para o inglês por Albert Ernest Flemming:
Here they are gathered, wondering and deranged,
Round Him, who wisely doth Himself inclose,
And who now takes Himself away, estranged,
From those who owned Him once, and past them flows.
He feels the ancient loneliness to-day
That taught Him all His deepest acts of love;
Now in the olive groves He soon will rove,
And these who love Him all will flee away.

To the last supper table He hath led.


As birds are frightened from a garden-bed
By shots, so He their hands forth from the bread
Doth frighten by His word: to Him they flee;
Then flutter round the table in their fright
And seek a passage from the hall. But He
Is everywhere, like dusk at fall of night.

A descrição do quadro de Da Vinci e a reação a ele é também o assunto


de um trecho de Rambles in Germany and Italy, uma narrativa de viagem
escrita por Mary Shelley, na qual duas viagens à Europa realizadas com o
filho são narradas:
Primeiro visitamos o inigualável afresco de Leonardo da Vinci. Como
são vãs as cópias! Nunca vi uma expressão como essa do original na
face do Salvador. Grandiosidade e amor – essas são as palavras que o
descrevem – ligadas à ausência de toda a artimanha que expressa a
natureza divina como nunca vista em nenhuma pintura.120

120. No original: “First we visited the fading inimitable fresco of Leonardo da Vinci. How
vain are copies! Not in one, nor in any print, did I ever see the slightest approach to the
expression in our Savior’s face, such as it is in the original. Majesty and love—these are
the words that would describe it—joined to an absence of all guile that expresses the divine
nature more visibly than I ever saw it in any picture.”

126
Nesse trecho, podemos perceber a reação do narrador ante a majestade
do quadro, que também motivou especulações por parte de escritores e
historiadores da arte.

Como dito anteriormente, a partir do século XVIII, a relação entre


uma obra religiosa e sua adaptação passou a ser de crítica. Em vez de
simplesmente comentarem o texto anterior, as novas reescritas passaram a
olhá-lo de modo diferente, tentando complementá-lo ou mesmo aprimorá-
lo. Complementação é a função, por exemplo, da pintura de Salvador Dalí.
Salvador Dalí foi um importante pintor catalão, conhecido pelo seu
trabalho surrealista. Seus quadros chamam a atenção pela incrível combinação
de imagens bizarras, como nos sonhos, com excelente qualidade plástica.
Dalí foi famoso por seus trabalhos nas áreas de cinema, escultura e fotografia,
mas também por sua tendência a atitudes e realizações extravagantes.
Em 1955, esse artista também realizou sua última ceia, um óleo sobre tela
medindo 167 cm x 268 cm, atualmente na Galeria Nacional de Washington
D.C.121, obra que causou muita polêmica: primeiro, porque a imagem do
artista irreverente não combinava com o tema religioso; segundo, porque
muitos acreditam que, para o rosto de Cristo, o pintor usou, como modelo,
Gala, sua esposa.
Entre as críticas positivas ao quadro, está a ideia de que Dalí conseguiu,
por meio de duas estratégias, revitalizar a imagem tradicional da devoção.
A primeira consistiu em introduzir a figura colossal de um homem com os
braços abertos, representando o Deus Humanizado, como se abençoasse o
grupo ali reunido; a segunda foi retratar Cristo com o corpo translúcido,
não mais humano, mas divino, por meio do qual se pode ver um barco,
simbolizando, talvez, um chamado a Pedro, o pescador que funda a Igreja.
Segundo Novak, esse complemento à obra de Da Vinci vai além. Ele entende
que a Santíssima Trindade está ali simbolizada: Cristo, a figura translúcida
ao centro do quadro; o Pai (na figura do dorso que abraça os personagens)
e o Espírito Santo (na figura de uma pomba pousada no ombro de Cristo,

121. Salvador Dalí, The Sacrament of the Last Supper- oil on canvas overall: 166.7 x 267 cm
(65 5/8 x 105 1/8 in.). Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.46590.
html. Acesso em: 18 mar. 2018.

127
formada pelas linhas de seu cabelo e queixo). Ainda para Dalí, as figuras
assumidas como apóstolos são importantes não pela sua personalidade,
mas, sim, por suas ações: encontram-se em posição de prece e de adoração
e dirigem sua atenção não para Cristo (cujo corpo translúcido simboliza sua
ausência), mas para o altar. O que inspira essa adoração encontra-se sobre
a mesa: o pão e o vinho, a Eucaristia, o sacramento da Última Ceia. Para
Novak, “o que é retratado é a realidade invisível – Cristo, o sacramento de
Deus na terra, o Pai em seu Céu místico de doze lados – verdadeiramente e
realmente presente para aqueles que o recebem”122.Todos esses elementos dão
suporte à ideia de que o pintor catalão não pintou um quadro histórico da
última ceia, como o fez o pintor renascentista, mas nos mostrou a presença
real de Cristo na Eucaristia.

Embora também prestando sua homenagem à obra de Da Vinci, o


artista Yinka Shonibare a adapta, fazendo uma crítica voraz à nossa era.
Yinka Shonibare MBE, nascido em Londres em 1962 e educado na
Nigéria desde os três anos de idade, é conhecido por sua obra composta de
tableaux, manequins acéfalos em costumes deslumbrantes confeccionados
em batique, tecido popular na África. Combina a beleza de sua arte com
erudição e sagacidade. Crescendo entre Lagos e Londres, proclamou-se
“um híbrido pós-cultural”. Desse lugar, explora, por meio de mídias, como a
fotografia, a escultura, a instalação, a pintura, a fotografia e o filme, questões de
identidade cultural, raça, classe e história. Joga com os estereótipos culturais,
subverte-os e identifica tropos culturais ricos e complexos como o batique
africano. Considera-se verdadeiramente bicultural e tenta abrir debates
sobre questões políticas, culturais e sociais que dão forma à nossa história
e constroem nossas identidades. Tornou-se conhecido por suas instalações
em que usava os tecidos africanos para subverter as leituras convencionais de
identidade cultural, como se vê em suas exposições no museu em Rotterdam
e em suas performances-solo em Londres.

122. No original: “Also depicted is the invisible reality – Christ, the sacrament of God on
earth, the Father in this mystical 12-sided heaven – truly and really present to those who
receive them”.

128
Em 2013, a Galeria Stephen Friedman exibiu algumas de suas obras
numa exposição que focalizava a corrupção, o excesso e o escárnio, atitudes
que teriam levado a sociedade atual à crise econômica contemporânea. Aqui
o artista explora a adoração das mercadorias de luxo e o comportamento da
indústria das transações bancárias, prestando, ao mesmo tempo, homenagem
a uma das obras mais famosas da humanidade. A exposição, intitulada POP,
não só apresenta algumas das mais ambiciosas obras daquele período, mas
também reflete o comprometimento do artista com o comentário social.
A peça central da exposição – Last Supper (after Leonardo) (2013) –123
é a maior e mais complexa obra do artista: uma descrição subversiva, uma
apropriação da Última Ceia, de Leonardo da Vinci, em que Bacco, o deus
romano do vinho, um sátiro meio homem meio bode – símbolo de frivolidade,
sexualidade e instinto animal – substitui a figura central de Cristo. À sua
volta, nesse banquete de libertinagem, estão os doze discípulos acéfalos em
poses sexuais e animalescas.
Filtrada pelas lentes dos vitorianos, a cena se desenrola num ambiente
dionisíaco de uma festa hedonística. Ao remover as cabeças, uma estratégia
de toda a sua obra até aquela data, o artista evita a associação com raça. Em
presença do tableau, somos ainda lembrados das bárbaras decapitações
da Revolução Francesa, período marcado pela corrupção e excessos. Em
referência direta aos excessos do mundo, esses convidados devassos deixaram
seus problemas de lado, sem preocupação com o amanhã. Espalhados sobre a
mesa, encontram-se os restos de uma festa farta, cheia de guloseimas e luxo.
Esse quadro dramático, um momento congelado no tempo, convida-nos a
andar a sua volta e a maravilharmo-nos com sua exuberância.
Ao fim do século XX e início do século XXI, as três tendências e práticas
da adaptação que se alternaram ou se sobrepuseram ao longo dos tempos
continuaram presentes – evolução, fidelidade e intertextualidade – mas outros
procedimentos foram também introduzidos. Assim, além das adaptações de
música, de programas de TV, de videogames e de adaptações na internet,

123. SHONIBARE. Last Supper (after Leonardo), 2013. Disponível em: <http://www.stephen-
friedman.com/exhibitions/past/2013/yinka-shonibare-mbe-pop/last-supper-after-leonardo>.
Acesso em: 18 mar. 2018. Acesso em: 19 mar. 2018.

129
houve uma ênfase no uso de modelos mais flexíveis de adaptação e tradução
e na elaboração do ler e ver como atividades de adaptação. 124
Foi o que aconteceu com a recente obra de Shonibare, Last Supper
Exploded, uma animação baseada na escultura de 2013, descrita
anteriormente125, que também explora a corrupção e a luxúria, em referência
à crise recente. Nessa versão digital da obra anterior, Shonibare anima suas
figuras, levando o impacto visual desse “clip” a um nível grotesco ainda maior.
Diferentemente da escultura “original”, a figura de Cristo/Baco é removida
e, assim que a animação é iniciada, todos os personagens, já com as cabeças
recuperadas, são “decapitados”. O ato é acompanhado por uma música de
Mozart momentaneamente interrompida pelo som de uma faca e de um
líquido que escorre: sangue jorra dos pescoços decapitados das figuras e se
espalha pelas paredes, em câmera lenta. A cena evoca riso e não repulsa,
suscitando curiosidade no espectador até que, num corte, a tela escurece.

Esse exemplo ilustra então um processo que se confunde com a


intermidialidade, termo chave que também define adaptação, processo
que se abre a influências da performance, da música, das atividades
políticas e de muitas outras plataformas sociais e culturais.126 Com esses
novos direcionamentos, enfatiza-se o compromisso material que dá forma
tanto ao movimento de textos entre várias mídias (textos que se movem
entre livros, computadores, jogos de computador, IPads e outros recursos)
quanto ao movimento de ideias, posições sociais e identidades entre culturas,
através de fronteiras geográficas e tradições epistemológicas e filosóficas.
Esse movimento adaptativo tende a enfatizar a manipulação, a apropriação e
a transformação de material-fonte que resulta em amostragens, mestiçagens
e religações, como as que foram apresentadas anteriormente. Se a adaptação
tendeu no passado a se concentrar nas relações, trocas e conexões entre
literatura e outras mídias, hoje se procura entender como as adaptações podem
ser realizadas por meio da cultura – não apenas nas artes, mas em áreas e

124. CORRIGAN. Defining Adaptation, p. 31.


125. SHONIBARE. Last Supper Exploded. Disponível em: https://www.seditionart.com/
yinka-shonibare/last-supper-exploded. Acesso em: 13 fev. 2018.
126. CORRIGAN. Defining Adaptation, p. 32.

130
práticas como a história, a tecnologia, as práticas tradutórias, a política, a
pedagogia e a economia. Do mesmo modo, as perspectivas contemporâneas
têm acomodado em camadas as dimensões e definições de adaptação além
da textualidade e incluído imperativos industriais, comerciais e tecnológicos,
assim como pressões econômicas e sociais e a construção psicológica e física
de subjetividades e identidades. Pelo fato de essas perspectivas e atividades
se encontrarem em constante evolução, não pode haver nenhuma definição
estável de adaptação: nós é que precisamos mudar e refocalizar regularmente
ou correr o risco de nos perdermos no passado.

Referências
CARROLL, Rachel. Adaptation in Contemporary Culture: Textual Infidelities.
Continuum, 2009.
CLÜVER, Claus. Ekphrasis and Adaptation. In: LEITCH, Thomas. The Oxford
Handbook of Adaptation Studies. Oxford University Press, 2017. p. 459-476.
CORRIGAN, Timothy. Defining Adaptation. In: LEITCH, Thomas. The
Oxford Handbook of Adaptation Studies. Oxford University Press, 2017. p. 23-35.
DALÍ, Salvador. The Sacrament of the Last Supper- oil on canvas overall:
166.7 x 267 cm (65 5/8 x 105 1/8 in.).Disponível em: https://www.nga.gov/
collection/art-object-page.46590.html. Acesso em: 18 mar. 2018.
NOVAK, Michael Anthony. Misunderstood Masterpiece: Salvador Dali’s
“The Sacrament of the Last Supper”. America: The Jesuit Review, 5 nov. 2012.
Disponível em: <https://www.americamagazine.org/issue/misunderstood-
masterpiece>. Acesso em: 2 fev. 2018.
SANDERS, Julie. Adaptation and Appropriation. London e New York:
Routledge, 2006.
SHONIBARE, Yinka. Last Supper Exploded. Disponível em: https://www.
seditionart.com/yinka-shonibare/last-supper-exploded . Acesso em: 13 fev.
2018
SHONIBARE,Yinka MBE, Last Supper (after Leonardo), 2013, 13 life-size
fibreglass mannequins including a hybrid figure with fur legs and hooves,
Dutch wax printed cotton textile, reproduction wooden table and chairs,
silver cutlery and vases, antique and reproduction glassware and tableware,

131
fibreglass and resin, 158 x 742 x 260 cm (62 1/4 x 292 1/8 x 102 1/2in). Disponível
em: <http://www.stephenfriedman.com/exhibitions/past/2013/yinka-
shonibare-mbe-pop/last-supper-after-leonardo>. Acesso em: 19 mar. 2018.

132
Parte II
Confluências

133
134
ESCRITA COM FORMA E COR NA POESIA
CONCRETA

Júlio Castañon Guimarães


Fundação Casa de Rui Barbosa

O poema de Mallarmé “Un coup de dés” teve uma única publicação


em vida do autor: a que ocorreu na revista Cosmopolis, em 1897. Sabe-se
que aí o poema não foi publicado exatamente da forma como havia sido
concebido. Isso só veio a ocorrer com a publicação em livro em 1914, depois
da morte do autor: o poema então saiu quase conforme o projeto original,
pois ainda continha aspectos problemáticos (a não utilização do tipo que
teria sido previsto pelo poeta é um ponto discutível). Entre a publicação
na revista e a publicação em livro, além de outras discrepâncias, às vezes
menores, às vezes maiores – tipo, corpo, espaços, alterações de texto –, o
que interessa aqui é uma grande diferença num elemento que é, em vários
níveis e mesmo literalmente, central para o poema. Na edição da revista, o
texto que está disposto em cada página não havia sido planejado para ser
assim apresentado. A disposição prevista para o texto era outra, ou seja, é
a que se tem na edição em livro. O que na revista ocupa uma página, no
livro está distribuído por duas páginas uma ao lado da outra – par e ímpar.
Anne-Marie Christin assinala que “deve ter sido considerável o espanto
causado pelo “Coup de dés”, quando foi possível descobri-lo numa forma
que correspondia, no essencial em todo caso, aos desejos de seu autor, na

135
edição de 1914. O espetáculo dessas imensas páginas duplas rompia de
maneira radical com os hábitos de leitura da poesia tradicional”.127
Nesse impacto, destaca-se um aspecto: a conformação do poema em
sua publicação em livro implica – e é o que fica de imediato mais evidente
– uma nova disposição do texto na página, um amplo remanejamento da
espacialização. Há também o impacto proporcionado pelo branco da página,
conforme salienta também Anne-Marie Christin: “a novidade mais flagrante
revelada por essa edição [...] reside na importância quase monstruosa que
Mallarmé aí reservou para o branco”.128 Mas a referida conformação do poema
implica também e sobretudo – e é o que mais interessa aqui – que o texto
se organize tendo como eixo a linha entre as páginas, onde o livro se dobra.
Como o próprio poeta diz em “Crise de verso”: “Tudo se torna suspenso,
disposição fragmentária com alternância ou face a face, concorrendo para
o ritmo total, que seria o poema calado, nos brancos”.129 Esses brancos são
outra consequência da distribuição do poema em páginas duplas, quando
eles se tornam mais amplos, mais evidentes. E então fica mais evidente
também que eles não são apenas consequência de um espaçamento – são
também uma construção do poema. No prefácio que acompanhou sua
publicação em Cosmopolis, eram referidas tanto a importância dos brancos
quanto a “visão simultânea da Página: esta agora tomada como unidade”.130
Numa carta a André Gide (citada por Paul Valéry no texto que dedica ao
poema), Mallarmé, além de referir a “paginação, onde está todo o efeito”,
diz também: “O navio aí se inclina, do alto de uma página ao pé da outra”.131
Está referida aí justamente a passagem de uma página a outra em que se
distribui o poema. De resto, a carta menciona também a deficiência da
apresentação do poema na revista, que não foi uma etapa de sua elaboração,
mas a circunstância de uma publicação com limitações, ou seja, a revista
não tinha condições de publicar o poema tal como concebido no projeto
do poeta, embora ele não tenha criado obstáculos para essa publicação

127. CHRISTIN.. L’expérience du Coup de dés, p. 167.


128. CHRISTIN. L’expérience du Coup de dés, p. 168.
129. MALLARMÉ. Crise de vers, p. 367.
130. MALLARMÉ. Préface, p. 455.
131. Apud VALÉRY. Le coup de dés. Lettre au directeur des Marges, p. 627.

136
imperfeita, justamente por compreender que não seria viável outro tipo de
solução naquele caso. Valéry, no texto referido, ressalta que o poema não
foi composto em duas etapas, sendo a primeira a do texto e a segunda a de
sua configuração espacial. Ressalta também que Mallarmé “havia estudado
muito cuidadosamente (mesmo nos cartazes, nos jornais) a eficácia das
distribuições de brancos e de preto, a intensidade comparada dos tipos”.132
A propósito desse conhecimento do emprego de brancos e preto a partir
de cartazes e jornais e a propósito ainda do eixo das páginas, Johanna Drucker
menciona a possibilidade tanto da existência de vários eixos na tipografia,
até mesmo dos anúncios mais banais, quanto do surgimento de regras mais
estritas para tipografia assimétrica a partir da década de 1920. Observa a
seguir que “na década de 1890, havia mais tolerância quanto à combinação
de blocos de tipo centrados e descentrados em um único documento, e as
tensões que surgem do fato de haver múltiplos eixos de equilíbrio em uma peça
são usadas nos arranjos de Mallarmé”.133 Apresenta, então, como ilustração
para esse comentário, páginas publicitárias que mostram a possibilidade de
vários eixos de estruturação tipográfica das páginas.
Augusto de Campos, na década de 1950, já havia criado poemas como
“tensão” (1956) e “uma vez” (1957). Considerando esses poemas, sua imagem,
bem como as noções envolvidas em sua configuração, não deixa de provocar
alguma surpresa o poema que, nessa mesma época, ele publicou na revista
Invenção, número 3, de junho de 1963. Trata-se de “A Mário Faustino,
aeromorto”, que ficou nas páginas da revista, não tendo sido retomado pelo
autor em seus livros. Mário Faustino havia morrido num acidente aéreo
pouco antes, em 1962, e a revista o homenageia com o poema de Augusto
de Campos, um artigo de Benedito Nunes e uma antologia de seus poemas.
É possível supor várias razões para Augusto de Campos não ter retomado
o poema. Escrito sob o impacto da morte de Mário Faustino, o poema
posteriormente talvez não atendesse às exigências do autor. De fato, pode-se
logo ver como ele difere do que o autor fazia à época. E nem é preciso uma
leitura mais detalhada para que se perceba que visualmente esse poema está

132. VALÉRY. Le coup de dés. Lettre au directeur des Marges, p. 627.


133. DRUCKER. The visible word, p. 53.

137
no âmbito do “Un coup de dés”, de Mallarmé. O poema recorre ao uso de
caixa alta e baixa, itálico e redondo, ao espaçamento do texto, distribuído
de vários modos – escalonado de cima para baixo e da esquerda para a
direita, agrupado em blocos em diferentes pontos da página, e assim por
diante. Mesmo sendo possível identificar as várias diretrizes da conformação
do poema, provavelmente o que mais salta aos olhos é a sua distribuição,
espalhado, por assim dizer, pela página, assim como o que resulta desse
espalhamento: os espaços abertos.
Ainda que distinto dos poemas que o autor produziu à época, o poema
sobre Mário Faustino não é um caso completamente isolado. Dez anos
antes, Augusto de Campos publicou “Poetamenos”, cujo texto também era
distribuído de forma espacejada pela página. Aqui, porém, destaca-se o
uso da cor, que é um elemento fundamental para a organização do poema.
A cor, por exemplo, como que estabelece uma espécie de rotas de leitura
dentro dos poemas.
Esse uso da cor é um elemento novo na poesia do autor e não será usado
durante certo tempo ou só o será ocasionalmente. Voltará, porém, a aparecer
em determinados períodos de forma intensa. Ao lado desse elemento, a cor,
verifica-se que os exemplos mencionados são poemas que ocupam uma
página, poemas que de fato foram concebidos para uma página. Augusto
de Campos produziu, porém, poemas que não se ajustam à página, como
se pode ver em exemplos de vários tipos. Podem ser lembrados o poema
“cidade”, que exige uma longa faixa, ou o poema “greve” que ocupa duas
páginas superpostas, uma delas transparente.
Em Colidouescapo, de 1971, tem-se um poema que não se limita à página,
ocupando todo um livro, o que ocorre também em outros casos, como o de
Equivocábulos, do ano anterior, 1970. Todavia, em Colidouescapo, o poema
opera justamente com a passagem de uma página para outra. As folhas,
mesmo dobradas como cadernos, não são ligadas umas às outras. O poema
compõe-se de fragmentos de palavras, cada um ocupando uma das quatro
páginas do caderno, sempre dispostos na mesma altura e sempre alinhados
ao lado da dobra. Assim, nas faces internas do caderno, o fragmento de
uma página é seguido pelo fragmento da página seguinte, formando seja

138
uma palavra existente, seja um neologismo; nas faces externas, a mesma
situação se produz entre o fragmento da primeira página e o da última; e
por fim, a mesma situação se produz de um caderno a outro. Além disso,
como os cadernos não são encadernados, eles podem ser organizados de
numerosos modos, o que acarreta a produção de novas palavras. Nesse caso
de Colidouescapo, a função das páginas não encadernadas não é a mesma que
a de outros trabalhos de Augusto de Campos, como no já citado Poetamenos,
caso em que as folhas soltas dão independência, de modo a possibilitar
uma aproximação com as artes visuais, com quadros, como se cada página
fosse um quadro. Em Colidouescapo, as páginas não encadernadas não têm
a finalidade de dar independência simplesmente; elas desempenham um
papel na própria composição do texto. E é graças à dobra das páginas que
esse papel se cumpre no sentido em que a dobra atua no Un coup de dés
de Mallarmé. A dobra funciona, no Colidouescapo, também como eixo de
formação do texto e de sua leitura.
Em um trabalho de dobra e cor, bem como de alguns outros elementos
novos, o conjunto dos Poemóbiles, de 1974, foi realizado em colaboração
com o artista e designer Julio Plaza. A origem do conjunto são trabalhos
exclusivamente visuais de Julio Plaza, publicados em 1969, com o título Objetos
– cadernos compostos de duas folhas superpostas, coladas parcialmente uma
na outra e dobradas, sendo as faces internas constituídas por superfícies
impressas em serigrafia numa única cor. Quando aberto o caderno, um
sistema de cortes na folha impressa com a cor cria formas tridimensionais,
dispõe a página em vários planos. Essa edição dos Objetos já trazia um
poema de Augusto de Campos, “abre/open”. A seguir, o poeta criou outros
onze poemas para o conjunto intitulado Poemóbiles. O texto é impresso
não simplesmente no que se poderia dizer a superfície da página, mas,
sobretudo, e de modo mais específico, nas partes das páginas que formam
vários planos, de modo que sua leitura se faz em conjunto com as formas
que surgem quando da abertura do caderno. Todavia, o que aqui de imediato
interessa é que, nos Poemóbiles, as páginas, as faces internas, são brancas; é
o texto que está impresso em cores, que se transferem da superfície que vem
a constituir vários planos para o texto. É como se as cores enfatizassem a

139
condição de objeto visual do texto na página/plano construído em branco.
E a leitura desses poemas faz-se tanto com a forma, seus vários planos, uma
forma em movimento com a abertura e o fechamento do caderno, quanto
com a cor e com a dobra da página.
Temos ainda outro exemplo de poema de Augusto de Campos não
incluído em seus livros. Trata-se de um poema publicado na revista Invenção,
número 2, de 1962. Aqui se dá uma divisão da página em nove retângulos
proporcionais à página, ou seja, com forma similar à da página. O poema
se intitula “Cubagrama” – vale lembrar que, mais ou menos na mesma
época, Décio Pignatari escreveu o poema “estela cubana” (é o período em
que ocorrem vários episódios políticos importantes da história cubana).
Trata-se assim de poemas diretamente ligados a circunstâncias – e no caso
do poema de Augusto de Campos, seu aspecto visual lembraria cartazes,
tanto que houve mesmo uma impressão em cartão avulso de dimensões um
pouco maiores que as da página da revista, uma espécie de pequeno cartaz. O
título do poema, “Cubagrama”, faz lembrar algo como “diagrama”. A divisão
da página parece que surge de imediato como uma forma de organização.
Se aqui não há a dobra, o poema de qualquer modo se distribui como que
em várias páginas. A organização do poema é complexa e envolve não só
a distribuição pelos retângulos, mas também a posição do texto dentro de
cada um dos retângulos. Esses dois aspectos conjugam-se com um jogo de
cores, de fragmentação vocabular, de tipos de corpos diferentes. A leitura
far-se-á levando todos esses elementos em conta, e certamente não se trata
de uma leitura linear, mas de uma leitura de cada um dos blocos e das
articulações entre os blocos.
Temos, então, com base nesses exemplos, alguns elementos e algumas
questões: a dobra da página como eixo, o espaçamento, as formas tipográficas
e tridimensionais, bem como as cores. A esse conjunto é preciso acrescentar o
branco, que não é apenas o espaço da página que não foi ocupado. Voltando
a Mallarmé, sabe-se que, com ele ainda em vida, teve início o processo de
publicação de “Un coup de dés” em livro, projeto interrompido por sua
morte em 1898. Todavia, antes de morrer, ele corrigiu várias provas de uma
futura edição. É possível ver que boa parte das correções que fazia tinha a

140
ver com a disposição do texto, seja isoladamente no espaço da página, seja
numa relação entre as diferentes partes do texto. Essas correções são até
mesmo mais numerosas que as correções relativas a problemas de ordem
propriamente textual.
Ainda no tocante à disposição na página do poema “Un coup de dés”,
incluindo-se aí as diferenças de corpo dos tipos, Johanna Drucker observa:
Um dos efeitos disso é proporcionar uma ilusão espacial, como se os
elementos da linguagem alcançassem seu tamanho relativo na página
por um contraste de peso real, físico e pelo efeito óptico de distância.
Como no caso de uma constelação estelar, o surgimento de palavras
como figuras em um plano uniforme parece ser resultado de elas terem
sido esquematizadas em um único plano visual, em vez de na realidade
existirem no mesmo plano espacial. Assim, as mudanças de tamanho
criam um espaço ilusionista bem como um espaço gráfico e abstrato
dento do vazio branco da página.134

Não estão em jogo, portanto, apenas espaçamento – na verdade, o que


há é uma espacialização – e uso habitual de diferentes corpos como realce ou
mesmo composição de uma imagem tipográfica. Ao identificar a criação de
um “espaço gráfico”, Johanna Drucker ressalta que tudo se dá no vazio branco,
que, desse modo, adquire uma função nesse processo. Assim, em relação
a esse “vazio branco da página”, vale lembrar que, na carta de Mallarmé, a
que aqui já se fez menção, diz ele: “Tal palavra em caracteres grandes pede
sozinha toda uma página de branco”. É verdade que a formulação pode
justificar-se pela peculiaridade da linguagem de Mallarmé, mas não há como
deixar de ver aí um aspecto quantitativo – “toda uma página de branco”, ou
seja, um bom espaço em branco. Pede-se, assim, uma boa quantidade de
um dos materiais do poema.
Valéry referiu-se ao poema de Mallarmé como “máquina inteiramente
nova que a gráfica Lahure havia aceitado construir”135. No mesmo texto,
emprega ainda a palavra “fabricação”, que, mesmo sendo corrente em francês
para essa situação, nesse sentido, não deixa de se associar aos outros vocábulos

134. DRUCKER. The visible word, p. 54-55.


135. VALÉRY. Dernière visite à Mallarmé, p. 632.

141
aqui ressaltados: “Mallarmé se inquietava com os supremos detalhes da
fabricação do Coup de dés.”136 Refere-se ainda, no texto anteriormente citado,
a “álbum de imagens abstratas”137, a “figura do pensamento”138 , dizendo
também que, até então, ninguém havia imaginado “dar à figura de um
texto uma significação e uma ação comparáveis às do próprio texto.”139 Essas
formas de referir-se ao poema salientam tanto sua dimensão visual quanto
sua peculiar composição, afirmando tanto o aspecto da elaboração (máquina)
quanto uma complexidade identificada com abstração e pensamento. Não
deixam de ter afinidade com o que Johanna Drucker diz numa perspectiva
mais analítica – o “espaço gráfico é abstrato”. Toda a questão é situada numa
perspectiva ainda mais abrangente quando Anne-Marie Christin observa:
Tudo mudou no pensamento ocidental do escrito com o Coup de dés
de Mallarmé. Pela primeira vez em sua história, os herdeiros do alfabeto
que nós somos tomaram consciência do fato de que não dispunham
simplesmente, com esses tantos signos, de um meio mais ou menos
cômodo de transcrever graficamente sua fala, mas de um instrumento
complexo, duplo, ao qual bastava reintegrar a parte visual – espacial –
de que fora privado para lhe restituir sua plenitude ativa de escrita.140

A perspectiva é abrangente não só por situar o poema de Mallarmé como


o elemento que afeta “tudo”, no tocante à maneira ocidental de considerar
a escrita, mas por considerá-lo como sumário de uma transformação
fundamental. A espacialidade tal como configurada no poema – sempre,
segundo Anne-Marie Christin, está associada a um “semantismo espacial”
a uma “dinâmica semântica”, graças a uma sintaxe que tem a ver com o
intervalo entre as imagens em fases remotas da escrita. Esse intervalo pode
ser entendido como a necessidade intelectual de representação do espaço.
Daí provém a função fundadora da superfície do suporte, que possibilita a
constituição de uma escrita visual, como se dá no poema de Mallarmé e na
poesia visual que a ela veio se seguindo. No caso de Augusto de Campos,

136. VALÉRY. Dernière visite à Mallarmé, p. 632.


137. VALÉRY. Le coup de dés. Lettre au directeur des Marges, p. 627.
138. VALÉRY. Le coup de dés. Lettre au directeur des Marges, p. 624.
139. VALÉRY. Dernière visite à Mallarmé, p. 632.
140. CHRISTIN. Présentation, p. 7.

142
a função do suporte e do intervalo é explorada de diversos modos em sua
produção, como configuradores da imagem constituída pelo poema. Um
bom exemplo é o do poema “greve”, composto de duas folhas que se sucedem,
sendo a primeira transparente.
O poema “sem saída”, do livro Não (2003), constitui uma situação
bastante especial, entre outras razões pelo modo como incorpora a cor. O
poema encerra o livro, estampado na quarta capa – e a esse respeito, o poeta
diz no prefácio do livro: “estampado na quarta capa, quase fora do livro,
saindo dele”.141 Assim, “quase” fora do livro, o poema de qualquer jeito é ainda
parte do livro, e assim traz a quarta capa de certo modo para dentro do livro.
É composto de um grande número de letras, até mesmo de um amontoado
de letras, num conjunto multicolorido. O tipo empregado é de difícil leitura,
e inicialmente as letras podem até ser vistas como apenas figuras de cor.
Sobre um fundo negro, confundem-se inúmeros pequenos blocos de cor.
No entanto, pouco a pouco, é possível identificar sílabas e palavras, mesmo
se algumas vezes os caracteres se superpõem. Ao mesmo tempo, percebe-se
também que as cores funcionam como identificadores dos segmentos de
textos. No entanto, diante do todo, há uma espécie de impossibilidade de
leitura do texto, que, como se pode perceber por algumas ligações entre os
fragmentos, fala justamente da falta de saída, da situação de impasse. Antes
de tudo, poder-se-ia considerar que se trata de um poema que de certo
modo desempenha o papel de poema-chave ou poema-síntese de um livro
que leva o título tão evidentemente negativo de Não, encerrando-o nesse
impasse de leitura. Todavia, é preciso observar que a leitura do poema e do
livro não pode desconhecer a significação da impressão do poema na quarta
capa, dado que matiza essa leitura. No caso do poema e do livro, trata-se
de negação, mas, no caso do poema na capa, trata-se de uma mudança da
função da capa, que, além de conter as páginas, recebe uma parte da obra; a
capa faz, portanto, parte da obra. A despeito do impasse sugerido, instaura-
se um movimento entre as partes do livro, movimento que, por sua vez,
participa da significação da obra. A propósito desse movimento, pode-se
lembrar, ainda uma vez, o comentário de Valéry sobre o “Un coup de dés”:

141. CAMPOS. Não, p. 11.

143
“Mas uma página, em seu sistema, deve, dirigindo-se ao olhar que precede
e envolve a leitura, ‘intimar’ o movimento da composição”.142
A imagem, ou seja, o que se vê na quarta capa do livro Não, sem um
olhar mais detido e analítico, pode lembrar um trabalho do pintor americano
Ellsworth Kelly, intitulado Cores do espectro arranjadas pelo acaso. Essa
aproximação talvez tenha algo de impreciso, talvez seja uma mera impressão,
mas talvez também possa sugerir algo mais efetivo. O trabalho é referido por
John Gage, que observa que, “em sua série Espectro, o pintor se valeu da ideia
de que, já que todas as cores do espectro formavam o branco quando eram
misturadas, sua ordem não tinha importância”.143 No entanto, a realização
do trabalho não se faz apenas com a disposição ao acaso das cores; há
uma multiplicidade de eixos que constituem grades a organizarem essa
disposição. Assim, Gage ainda observa que “na obra de Kelly o feliz acaso
[neo-surrealista] se confrontava com a grade neocontrutivista do modo
mais impressionante, situação tornada possível pelo potencial sistemático da
cor espectral”.144 Nesse comentário, está em pauta uma outra discussão, algo
como a constituição da cor, mas o que interessa é a ocupação do espaço do
quadro pelas cores. Mesmo que supostamente de modo aleatório – mas até
isso é um artifício de elaboração, evidentemente, pois o que de fato se pode
supor é uma distribuição não regular, mas predeterminada –, o que importa
é que as cores/formas definem seus eixos numa complexa grade. É nesse
ponto que o quadro pode sugerir leituras para os componentes do poema.
Desse trabalho de Augusto de Campos há uma versão digital, um clip-
poema, em que o poema ganha efetivamente movimento – não mais apenas
o movimento abstrato de que falava Valéry, mas um movimento em que o
leitor pode acompanhar o surgimento na tela dos vários fragmentos, um de
cada vez, e composto cada um de uma cor. Assim, a cor que no Poetamenos
fazia parte de uma organização textual, aqui também faz o mesmo, agora se
apropriando de toda a página, propondo outras relações e até mesmo alguns
impasses. O que no trabalho de Kelly fica entre o acaso e a predeterminação
de um projeto pode lembrar-nos, sobretudo quando se leva em conta a

142. VALÉRY. Le coup de dés. Lettre au directeur des Marges, p. 627


143. GAGE. La couleur dans l’art, p. 43n.
144. GAGE. La couleur dans l’art, p. 44.

144
versão digital do poema, o que no trabalho de Augusto de Campos se situa
entre o ilegível e a decifração, entre o indício e a efetivação de um texto.
Ambos os trabalhos operam com cores como formas e, no caso do poema, as
cores assumem formas tipográficas. Um e outro trabalho são extremamente
complexos na distribuição de seus múltiplos componentes, mas de modo
especial no poema de Augusto de Campos, pois aí, com a versão digital, há
uma dimensão de mobilidade que justamente soma ao poema situações de
acaso, visto que, nessa versão digital, o leitor/visualizador não tem como
prever onde e qual fragmento será desencadeado. Todavia, mesmo com
todos os fatores aleatórios, não se pode supor que nem um nem outro dos
trabalhos dispensem um planejamento controlado, que, nos dois casos,
implica uma grade complexa, conforme já ressaltado.
Tem-se, assim, na poesia de Augusto de Campos, um percurso de
exploração de certos elementos – a tipografia, o suporte, a cor, a figura, a
composição – como forma de elaboração de uma talvez figura abstrata, para
usar o termo de Valéry a propósito do poema mallarmeano. No caso dos
poemas aqui examinados, o emprego desses elementos deu-se em vários
momentos em torno de um eixo, o da página; em outros momentos, em
torno de vários eixos. Esse eixo torna-se concreto quando se tem a dobra
da página como fator de construção do poema e se torna tridimensional
também graças às operações possíveis com os jogos de dobras dos Poemóbiles.
É como se houvesse não apenas diferentes abordagens desse elemento, mas
também um trabalho de complexificação dele. Na origem de tudo, pode-se
ler o poema de Mallarmé. Ao longo do percurso, há a introdução da cor
que se associa, mais do que ao texto, de modo especial à tipografia. Nessa
associação, a cor torna-se forma, a forma tipográfica – vê-se isso de modo
especial no último poema tomado como exemplo. Por fim, a introdução do
movimento pode funcionar como acréscimo de possibilidades de leitura,
sobretudo em consequência do acaso, que passa a participar da organização
do poema. No prefácio a Não, Augusto de Campos diz que alguns dos poemas
do livro “são mesmo versões estáticas de clip-poemas digitais, ‘poemovies’
a que a animação dá mais pulso”.145 Além desse “pulso” a mais, a versão

145. CAMPOS. Não, p. 11.

145
digital funciona também como o modo de o poema sair do livro; Augusto
de Campos, no prefácio, fala justamente, como aqui já citado, desse poema
na quarta capa como “quase fora do livro” – a versão digital possibilita que
isso se realize. Ainda nesse prefácio, o autor diz: “Grande parte do que eu
tenho feito em poesia migrou para o universo digital animado – a poesia em
cor e movimento”. A formulação do próprio autor talvez não corresponda
exatamente ao andamento de seu trabalho, pois, na verdade, essa poesia em
cor e movimento já vinha se produzindo desde o início da criação de Augusto
de Campos, como aqui se procurou ver, ainda que se tratasse quase sempre
– para usar mais uma vez a expressão de Paul Valéry – de um movimento
mental no espaço gráfico.

Referências
CAMPOS, Augusto de Campos. Não. São Paulo: Perspectiva, 2003.
CHRISTIN, Anne-Marie. L’expérience du Coup de dés. In: CHRISTIN,
Anne-Marie. Poétique du blanc. Leuven: Peeters Vrin, 2000.
CHRISTIN, Anne-Marie. Présentation. In: CHRISTIN, Anne-Marie. L’image
écrite ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 1995.
DRUCKER, Johanna. The visible word. Chicago: The University of Chicago
Press, 1996.
GAGE, John. La couleur dans l’art. Tradução de Lucile Gourraud-Beyron.
Paris: Thames & Hudson, 2009.
MALLARMÉ, Stéphane. Crise de vers. In: MALLARMÉ, Stéphane. Œuvres
complètes. Paris: Gallimard, 1979.
MALLARMÉ, Stéphane. Préface. In: MALLARMÉ, Stéphane. Œuvres
complètes. Paris: Gallimard, 1979.
VALÉRY, Paul. Le coup de dés. Lettre au directeur des Marges. In: VALÉRY,
Paul. Œuvres. T. 1. Paris: Gallimard, 1980.
VALÉRY, Paul. Dernière visite à Mallarmé. In: VALÉRY, Paul. Œuvres. T.
1. Paris: Gallimard, 1980.

146
A TRANSMISSÃO DA MÚSICA NA POESIA DE
MOYA CANNON

Luci Collin
Universidade Federal do Paraná-UFPR

A poeta irlandesa Moya Cannon nasceu em 1956 no Condado de Donegal


e foi educada em uma família bilíngue, tendo o inglês e o gaélico como
línguas maternas. Graduada em História e Política e com Mestrado em
Relações Internacionais, já publicou, até o presente momento, cinco livros.146
Detentora de prêmios literários importantes, como o Brendan Behan Award e
o O’Shaughnessy Award, a poeta vem sendo reconhecida internacionalmente,
e seus poemas já foram traduzidos para o espanhol, alemão e português
brasileiro. A obra de Cannon reflete o interesse da autora pela cultura e
pela identidade do povo irlandês, desde suas raízes celtas à preservação das
tradições a elas relacionadas. Também ligada à Ecocrítica, Cannon tematiza
as redes de interdependência que sustentam a vida no Planeta, a inter-relação
entre as criaturas humanas e não humanas. E ainda, o trânsito entre história,
tempo e lugar é um tema recorrente em Cannon, que, em seus textos, opera
uma “arqueologia” da linguagem, explora as profundas conexões entre o
saber ancestral e a atualização desses saberes em nosso cotidiano – entre
os mistérios e as demandas da sociedade pós-moderna.

146. Keats Lives (Carcanet Press, Manchester, 2015); Hands (Carcanet Press, Manchester,
2011); Carrying the Songs (Carcanet Press, 2007); The Parchment Boat (Gallery Press,
1997); Oar (Salmon Press, Galway, 1990 e Poolbeg Press, Dublin, 1994; Gallery Press,
Meath, 2000).
147
No presente artigo, focalizamos a relação de Cannon com a Música:
desde a expressão musical na Natureza, a transmissão ancestral de ritmos
e canções ao longo da história da coletividade humana, até a presença do
fenômeno musical na contemporaneidade, como elemento que instiga a
reflexão estética. Assim, para além dos termos da ‘inspiração’ temática,
pretendemos analisar como a música alimenta a sensibilidade poética
de Moya Cannon, como o tratamento da linguagem poética é afetado ou
balizado por essa relação e como a poeta pensa e se apropria desse espaço
de intermidialidade, reconfigurando-o como “espaço de transmissão” de
sua poética.
Cannon, que estudou música por mais de vinte anos – piano, na infância,
violão, na adolescência e, principalmente, concertina, na idade adulta, não
apenas se inspirou na música para a composição de seus poemas, mas também
já inspirou vários compositores, clássicos e populares, que usaram seus
textos como letras de suas canções.147 Há uma excepcional exploração da
musicalidade – como tema, como símbolo e como técnica – nos poemas de
Cannon. A relação música-poesia na produção da escritora abarca um amplo
espectro que vai desde a pura concepção de música e das relações entre o texto
musical e sua interpretação (incluindo os próprios instrumentos musicais),
até a musicalidade da linguagem, passando pela rítmica e a sonoridade dos
idiomas celta e inglês. A sensibilidade literária de Cannon é fundamentada
na relação entre palavra e música; assim, interessa-nos explorar essa relação
em seus desdobramentos: como a essencialidade da música reverbera nos
poemas de Moya Cannon e como se dá a transmissão dessa essencialidade
em quatro aspectos específicos.

147. A poeta vem trabalhando colaborativamente com músicos, como, o Quarteto de cordas
Con Tempo, a harpista Kathleen Loughnane, com cantores populares, como Maighréad
e Tríona Ní Dhomhnaill e com compositores do porte de Jane O’Leary, Philip Martin e
Ellen Crannitch.

148
Música como identidade
O processo de elaboração e de transformação de uma identidade, seja ela
individual ou coletiva, é gradualmente definido pelo conjunto de construções
operadas e praticadas por uma sociedade. Nesse contexto – que amalgama
forças políticas, históricas, ideológicas, geográficas, entre muitas outras –
a música é aquele elemento cultural constitutivo que age como influência
na identidade dos membros da sociedade e está, naturalmente, ligada à
identidade de um povo.
Poeta nutrida pela formação como historiadora e cientista política,
Moya Cannon explora as sutilezas da transmissão da música e das canções
ao longo do tempo e do espaço. Esse mecanismo de importação e exportação
da música dentro das culturas sempre impressionou Cannon que, em vídeo,
comenta sua experiência, por exemplo, ao travar contato com as práticas
ligadas à música no Canadá (quando de uma visita sua àquele país em 1996):
[...] fiquei muito comovida ao ouvir canções irlandesas que eu havia
aprendido na infância em Donegal, e que tinham viajado de um lado
para outro da Escócia, com os trabalhadores temporários, e que depois
foram trazidas para a Nova Escócia, por imigrantes das ilhas ocidentais
da Escócia. Elas haviam sobrevivido em uma forma bastante modificada,
mas ainda assim reconhecível.[…] Também me impressionou que
pareciam ser as pessoas mais desvalidas que carregavam as canções,
talvez porque essas pessoas, mais do que outras, precisassem carregar o
clima emocional de seu país de origem com elas, para seus novos lares.148

Em 2007, Moya Cannon lançou a coletânea de poemas Carrying the


Songs [Carregando as canções] e, no poema que dá título à obra,149 a persona
se refere às canções carregadas pelos imigrantes, desde seus locais de origem,
e que se espalharam pelo mundo:

148. CANNON. Oar. Keats Lives.


149. CANNON. Oar. Carrying the Songs, New and Selected poems, p. 14. Todos os poemas
em português aqui apresentados são parte da coletânea Melodias migratórias (CANNON,
M. Arte e Letras, 2017; tradução de Luci Collin).

149
CARREGANDO AS CANÇÕES
para Tríona e Mairéad Ní Dhomhnaill

Aqueles no poder escrevem a história, aqueles


que sofrem escrevem as canções.
Frank Harte

Sempre foram aqueles com bem pouco para carregar


que carregaram as canções
para a Babilônia,
para o Mississippi –
alguns destes últimos tinham menos do que nada
não possuíam seus próprios corpos
porém, três séculos depois,
profundos ritmos da África,
conservados em seus corações, em seus ossos,
carregam as canções do mundo.

Àqueles que deixaram meu condado,


[...]
as canções foram a moeda de suas almas
o metal puro de seus corações,

a ser trocado por outro ouro,


outras canções que soaram alegres e francas
quando lançadas
no tabuleiro de apostas dos seus dias.

O poema acima, ao lançar luz aos movimentos primitivos de comunicação


entre culturas, apresenta um insight da intrínseca necessidade humana de
estarmos vinculados à música como mecanismo de preservação da identidade
e símbolo de afetividade. A música, como parte da herança humana, é
transmitida pelas gerações afora como um código natural sustentado pelo
ritmo e mesmo um legado inato conservado pelo corpo – nas evocativas
batidas do nosso próprio coração.

150
Em outro poema, que tem por título “Entre gigas e escocesas”150, a
persona expressa um certo “desejo” da poesia de alcançar o mesmo nível
da música que é, conforme a persona argumenta, um meio mais potente na
comunicação dos “ânimos do coração”:

ENTRE GIGAS E ESCOCESAS

[...]
As melodias são migratórias
e voam de coração a coração
[...]

Porque o que mais importa a nós


mal pode ser dito em palavras
os ânimos do coração são melhor traçados
em sua própria linguagem –

o ritmo do acordeom de Cooley


que poderia abrir o coração de uma pedra,
as misteriosas danças escocesas de John Doherty
e a melodia que o mar lhe ensinou,
as partes altas da estrada e as profundezas
que só a música e o amor podem enfrentar
para nos trazer de volta aos nossos sentidos
e mais além.

Nesse poema, que apresenta os instrumentistas irlandeses Joe Cooley


(1924-1973), conhecido por seu acordeom, e John Doherty (1900-1980),
violinista de música folclórica, temos a tematização da fisicalidade,
a corporalidade da música em sua reprodução no corpo humano, bem
como a qualidade migratória das melodias em sua função de movimento e
transmissão. Há uma sutil subordinação da palavra à música: “Porque o que

150. CANNON. Entre gigas e escocesas, The Parchment Boat, p.112.

151
mais importa a nós / mal pode ser dito em palavras”... afinal, “só a música e
o amor” têm esse poder de redimensionar a nossa existência.

Música e mundo natural


Já foi mencionado que Moya Cannon vem sendo consideravelmente
analisada como uma das mais representativas vozes contemporâneas
vinculadas aos estudos de ecocrítica. É, portanto, recorrente na produção
de Cannon a perspectiva que apresenta e explora as relações entre música
como extensão do mundo natural. No poema abaixo, “Canção em Windsor,
Ontário”151, temos a sugestão de que a música é, em grande medida, uma
propriedade biológica e, portanto, natural:

CANÇÃO EM WINDSOR, ONTÁRIO


O gelo sussurra

enquanto se arrebenta contra


feixes de aço e madeiras trôpegas
no rio Detroit.

Grandes placas de gelo dos lagos


[...]
amassam-se umas às outras
para mostrar
como as cordilheiras são feitas.

E nos postes de madeira,


um passarinho
está de volta com a semente da música,
duas notas,
o intervalo de desejo
registrado nas cidades turbulentas.

151. CANNON. Canção em Windsor, Ontário, The P archment Boat, p.104.

152
Neste flagrante, o canto instintivo do pássaro parece irradiar a relação
inerente entre música e natureza; a ideia de “semente da música” estabelece
uma rede de sentido em que a noção de equilíbrio e harmonia é igualmente
ancestral, primitiva, mas recuperável para nós ainda hoje. O próprio
engajamento de Cannon em exibir-se como uma voz ligada à Natureza
potencializa a surpreendente simplicidade da beleza. Já no poema “Vibração
simpática”152 (título que é um termo técnico emprestado da Acústica), em
que a persona dialoga com uma instrumentista, a fusão entre Natureza,
música, instrumento musical e corpo, todos em um denso contínuo, forja
o próprio sentido da “vibração” na existência, em uma experiência em que
a música – a nota bem tocada – apresenta-se como ponte entre o natural e
o transcendental.

VIBRAÇÃO SIMPÁTICA
para Kathleen

“Você nunca golpeia uma nota,


você sempre tira a nota.”
[...]
A música, seu profundo e delicado segredo,
está guardado no lenho de cada árvore.
[...]
Nenhum golpe nem capim pode liberar a música
que é bálsamo para aliviar as feridas do mundo,
que conta e, modulando, reconta
a história de nossas próprias raízes tateantes,
do céu profundo do qual elas recuam
e, ao recuarem, alcançam –
a grande sinfonia de folhas da árvore.
Nenhum golpe ou capim pode nos trazer tal liberação
mas, às vezes, onde o selvagem não foi amansado,

152. CANNON. Vibração simpática, Oar, p. 58.

153
mãos, instruídas por anos de amor paciente,
podem vir a conhecer os ritmos ocultos da madeira,
podem numa arcada eviscerar
e tirar a nota,
enquanto o coração cede e cede
e canta.

A apresentação da música como instituição que reconta “a história de


nossas próprias raízes tateantes” reforça a relação que Moya Cannon tem
com o fazer poético arraigado na música e, portanto, imediatamente ligado
a um fazer que recupera o natural, o original. Como Cannon explica em
uma entrevista:
Adoro o fato de que arqueólogos encontraram uma flauta de osso de
40.000 aC na caverna Hohle Fels no sul da Alemanha, uma área onde algumas
das nossas primeiras esculturas também foram encontradas. É como se nossa
necessidade de fazer algo bonito, de fazer sons bonitos e compartilhá-los,
fosse um componente central de nossa humanidade. A música [...] É uma
das expressões mais refinadas da nossa cultura humana e também uma das
mais primitivas.153

Cruzamento de linguagens artísticas


Em muitos dos poemas de Moya Cannon se estabelece uma verdadeira
fusão de referências artísticas: a espacialidade das artes visuais, sobretudo
da pintura, se cruza ou dialoga com a temporalidade do texto poético, o
qual, por sua vez, funciona como suporte para o colóquio entre o texto
músical (igualmente marcado pela temporalidade) e a imagem. Exemplo
dessa “polifonia interartes” é o poema “O Cavaleiro cantor”154, que se elabora
com base em um famoso quadro, seu homônimo, pintado em 1949 pelo
notável artista irlandês Jack B. Keats (1871-1957) e que atualmente se encontra
em exposição na Galeria Nacional da Irlanda, em Dublin. O poema faz
uma atualização da liberdade expressa pela figura do quadro – o cavaleiro
músico – e recupera a emoção do sentir-se livre por meio da comunhão

153. California Journal of Poetics.


154. CANNON. O Cavaleiro cantor, Keats Lives, p. 40.

154
com a música, com as canções de um passado que adquire a qualidade de
atemporal.

O CAVALEIRO CANTOR

O cavalo branco, com peito


e cabeça dourados, vem de outro mundo,
[...]

Mas este cavaleiro de cabeça dourada é um de nós,


um jovem com a manga vermelha rasgada
trotando para casa, em pelo, das corridas,
[...]
tocando uma flautinha ou cantando
e o pintor, que pinta os dois,
é um velho que se lembra de centenas de corridas,
[...]

Mas como iremos nós, que não acreditamos


em corcéis mágicos, entender isso,
podemos só nos lembrar dos anos
entre quinze e vinte e dois
[...]
quando uma canção – impressa no vinil preto
      por algum Dylan, procurando a direção de casa,
      ou cantado por um conhecido em uma festa,
 [...]
libertou nossos espíritos amarrotados,
nos transportou por céus e oceanos
e nossas mãos, nossas cabeças,
eram douradas, douradas. 

Sobre a atmosfera explorada nesse poema, Cannon comenta que:

155
[...] durante meus anos de faculdade, escutei muita música tradicional
irlandesa, além da música folclórica das décadas de 1960 e 70. Considero
a metade dos anos 70 como uma época de ouro da música, mas, na
verdade, fui provavelmente eu que estava na época de ouro, quando
se é completamente receptivo, completamente permeável à música,
quando a música que você ouve literalmente lhe instrui – forma seu
espírito interior. [...] Em muitos aspectos, penso na música e na poesia
como diferentes facetas da mesma arte, os constituintes da canção.”
(CANNON, correspondência pessoal)

Ao recuperar, pela palavra, a música e seu impacto na tradição irlandesa e


conectá-la à uma tradição maior, que engloba boa parte do mundo ocidental,
o poema redimensiona a expressão musical como importante meio capaz
de estimular e sustentar a comunhão da sociedade. Como argumenta o
musicólogo Karl K. Veblen: “A música é uma tradição viva e, ao escolhermos os
momentos musicais que abordamos em nossas canções, estamos escolhendo
um momento no tempo que foi significativo para nós e para os demais.”155. A
menção, no poema, às canções e à sua importância como estímulo libertador
reforça que a música é, por si, o elemento de atualização das forças que
constroem e movem gerações ao longo dos tempos.

Instrumento(s) de transcendência
Moya Cannon constantemente afirma que a música é completamente
central não apenas para seu trabalho criativo, mas também para sua própria
vida; e uma das questões que ela levanta é o poder que a música exerce sobre
nós: “Como a música influencia nossos corpos e em nossas psiques de uma
forma tão poderosa? E o que é essa cadência especial, que pode elevar nosso
coração ou traçar sua quebra? Como evoluiu até se tornar uma companheira
fiel de nossa consciência?” (CANNON, correspondência pessoal).
Assim, finalizamos nossas observações sobre a poesia de Cannon,
destacando a transmissão da música como ponte para a esfera transcendental
por dois caminhos possíveis (e, possivelmente complementares): primeiro,
pela profundidade da relação entre um instrumentista e seus instrumentos

155. VEBLEN apud FITZGERALD e O’FLYNN. Music and Identity in Ireland and
beyond, p.126.

156
e, então, pela consideração sobre os artistas – músicos e/ou poetas – como
figuras xamânicas que falam à comunidade. Exemplo da primeira abordagem
é o poema “Violino”, 156 em que o instrumento musical serve como uma
metáfora para a nossa própria existência:

VIOLINO

De onde quer que venha a música


deve vir por meio de um instrumento.
Talvez por isso amemos tanto o instrumento
que mais se parece conosco -

[...]
vísceras,
um corpo que ressoa,

e a vida, o arco de crina e madeira


que nos põe a trabalhar horas cacofônicas a fio,
que funde escuro e luz em um tom profundo,
que nos toca, obstinado, em música.

A perspectiva final aqui apresentada é aquela que sugere que o músico,


como o poeta, como bem argumentado por Pound na menção à “antena
da raça”, é aquele instrumento de captação e transmissão de sutis saberes,
experiências transcendentais e percepções, como um xamã que fala à tribo.
Essa proximidade entre os discursos – artísticos e xamânicos – é comentada
pela própria Moya Cannon, que cita Orpingalik, o xamã canadense, que
explica de onde nascem as canções:

Canções são pensamentos cantados com a respiração quando as


pessoas se deixam mover por uma grande força, e o discurso comum já
não é suficiente. Uma pessoa é movida como um bloco de gelo à deriva
na corrente. Seus pensamentos são movidos por uma força fluida quando
sente alegria, medo, tristeza. E então acontecerá que nós [...] hesitaremos

156. CANNON. Violino, The Parchment Boat, p. 94.

157
antes de usar palavras. Mas acontecerá que as palavras de que precisamos
virão por si mesmas – quando as palavras que precisamos disparararem de
si mesmas – temos uma nova canção.
Cannon explica que todo esse processo se assemelha ao que, na tradição
da música irlandesa, é chamado de “espírito destilado” (“The Pure Drop”).
Como ela complementa: “Os melhores poemas, como as melhores músicas,
são dados – geralmente quando você tem-se mantido afastado de algo por
anos. A palavra irlandesa para ‘poema’ é dán, que é um cognato de donatus
do latim, doação, presente.” (CANNON, correspondência pessoal). Para
ilustrar essa perspectiva em que a música e a poesia exercem seu impacto
em nosso cotidiano, o poema “Ontem eu estava escutando no ipod” 157:

ONTEM EU ESTAVA ESCUTANDO NO IPOD

o concerto de violoncelo de Vivaldi -


então não ouvi o helicóptero pousar
lá embaixo no pátio do hospital
nem os vi transportar duas macas.

Duas horas antes, uma mulher jovem,


[...]
tinha caído no Atlântico com seu filho.
Uma queda longa, longa, do topo do penhasco –
[...]
Pergunto-me que terrores a fustigaram,
se, aos gritos, eles clamaram à terra que sumia,
se ela o segurou em seus braços,
ou pela mão,
e me pergunto se
algum anjo de asas fortes
os agarrou, a ambos, pelo pulso
quando entraram na água na base do penhasco,

157. CANNON. Ontem eu estava escutando no ipod, Hands, p.22.

158
se havia luz e música
a esperá-los –

e, se não havia, me pergunto


se a música de Vivaldi pode ser
uma ponte luminosa para lugar nenhum;
ou se todos nós podemos estar
despencando pelo longo penhasco do tempo,
cada um de nós sozinho,
com todos os nossos medos nos braços.

R. M. Rilke diz que a música é “a linguagem onde a linguagem termina”.


Provando sua afinidade com o poeta de língua alemã, Moya Cannon persiste
no escrever sobre os mistérios e as essencialidades da música, tentando
revelar como essa arte nos afeta, nos emociona e nos conforta. Vimos
como a sensibilidade poética de Cannon, alimentada pela relação poesia-
música, atinge profundidades reveladoras, que reiteram a observação da
poeta de que ambas, música e literatura, “respondem à mesma fome de
beleza e significado”158. Como comentário conclusivo, reforçamos que a
poesia de Moya Cannon apresenta uma intensa relação com a música, desde
a expressão musical na Natureza, a transmissão ancestral de ritmos e canções
ao longo da história da coletividade humana, até a presença do fenômeno
musical na contemporaneidade. Assim, acreditamos ter aqui ilustrado como
a música alimenta a sensibilidade poética de Cannon, como o tratamento da
linguagem poética é afetado ou balizado por essa relação e, principalmente,
como a poeta pensa e se apropria desse espaço de intermidialidade e trânsito
entre as linguagens musical e literária reconfigurando-o como “espaço de
transmissão” de essencialidades poéticas.

Referências
CANNON, M. Oar. Galway: Salmon Press, 1990.
CANNON, M. Oar. The Parchment Boat. Ireland: Gallery Press, 1997.

158. CANNON. California Journal of Poetics.

159
CANNON, M. Oar. Carrying the Songs, New and Selected poems. England:
Carcanet Press, 2007.
CANNON, M. Oar. Hands. Manchester: Carcanet Press, 2011.
CANNON, M. Oar. Keats Lives. Manchester: Carcanet Press, 2015.
DONOVAN, Katie. Nourishing the human spirit. The Irish Times, 10 de
dezembro, 1997. Disponível em: http://www.irishtimes.com/culture/
nourishing-the-human-spirit-1.135785. Acesso em: 3 mai. 2017.
FITZGERALD, M.; O’FLYNN, J. (ed.) Music and Identity in Ireland and
beyond. Kent: Ashgate, 2014.
CALIFORNIA JOURNAL OF POETICS. An Interview with Moya Cannon
– Issue 0
Disponível em: http://www.californiapoetics.org/interviews/3818/an-
interview-with-moya-cannon/ Acesso em: 3 mai. 2017.
UCD Library Special Collections. Publicado em 28 de jul. de 2015. https://
www.youtube.com/watch?v=CIGGDAQPHZ4. Publicado em 28 de jul. de
2015. Acesso em: 3 mai. 2017.

160
ARTUR OMAR: O ARTISTA QUE VIAJA NA
COR

Vera Casa Nova


Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG

Que tempos são estes, em que discorrer sobre árvores


é quase um crime, por que diante de tanta matança cabe
silêncio?
Bertolt Brecht

A fotografia é um meio de expressão, como a música


ou a poesia. É o meu meio de expressão e também minha
profissão. Mas, além disso, ela também é o meio que nos
permite, através das imagens, testemunhar.
Henri-Cartier Bresson

Pintura, desenho, foto, documentário: para mim


é um todo.
Pierre Assouline

161
Pela trajetória artística de Arthur Omar, podemos considerá-lo um
antropólogo visual. Pelos títulos de suas obras, os índices são claros: Triste
Trópico, Antropologia da Face Gloriosa, Demônios, Espelhos e Máscaras
Celestiais, o Esplendor dos contrários, entre outros.
A obra que aqui me proponho ler foi editada pela Cosac & Naify em 2002
e nos mostra a Amazônia em sua infinitude de verde e águas: O esplendor
dos contrários.
“Tudo aconteceu num sábado, 1° de Julho de 2000, no Rio Amazonas.
A partir daí, minha vida se tornou um perfeito tríptico de Hieronymus
Bosch, com passagens abruptas entre Terra, Céu e Inferno.”159 Assim se
inicia a narrativa – o texto – que vai sendo registrado através das câmeras,
ou melhor, do olho e da emoção de Arthur Omar.
A legibilidade de uma imagem – monumento da natureza – é complexa
e apresenta uma singularidade pensada nas relações entre o movimento e
seus intervalos, no livro das fotos e na montagem. A marca histórica das
imagens indica que elas pertencem a uma determinada época – ano 2000
– e eu as leio hoje. Talvez já não estejam mais ali, devido às queimadas, aos
madeireiros – à própria natureza em movimento.
Texto e imagem do Esplendor dos contrários apresentam uma Amazônia
que percorre os rios em suas cheias, rasantes, onde o grito da natureza –
monumental – compõe uma sinfonia lírica ao gosto dos poetas da região.
Didi-Huberman nos diz que “o artista é o inventor do tempo”. Eu diria que
Arthur Omar é o inventor do espaço, com seu olho coreografando as águas,
o verde, os troncos, os restos da natureza aparecendo e desaparecendo.
A grande angular sublinha a vastidão do nosso campo ocular, não a do
mundo real. A grande angular ressalta a perspectiva e regula a dramaturgia
do ponto de fuga. Ela permite gerar o grande a partir do pequeno, a curvatura
a partir do plano, o sólido a partir do líquido, e tornar equívoca a chave do

159. OMAR. O esplendor dos contrários, 2002. Na obra O esplendor dos contrários de
Arthur Omar, não se adotou numeração de páginas e as fotos não possuem títulos ou
legendas. Como as figuras estão relacionadas e dialogam entre si e com o texto da autora,
preferiu-se não adotar legendas neste capítulo. Todas as figuras reproduzidas têm por fonte
essa obra. [Nota do editor]

162
tamanho. A grande angular está aqui para você pensar no olho, e esquecer
a paisagem. E vice-versa.160
Zoomorfismo: os troncos apodrecidos se assemelham a jacarés à espreita:
esculturas do tempo, na duplicação da imagem ou uma reminiscência – A
excalibur do Rei Arthur:
Ferro de luz surgindo das águas. Brilho de espada, com a ausência da
espada. Como em Alice, sorriso do gato flutuando no ar, sem a existência
do gato. Grandeza épica do espelho d’água.161

Memória do autor, memória da máquina. Presença / ausência de uma


forma que aparece pela reflexão / refração da luz: uma espada (a luz entrando
na máquina: um ponto). Ou um azul-klein (Yves Klein) na imensidão do rio,
imensidão dos horizontes, infinitude das águas e céu. Nessa intensidade de
cores, o artista desliza e anda sobre as águas no vai e vem do barco que o leva.
O autor, ele mesmo, torna-se personagem desses espaços – ele caminha
sem fim – o tempo dessa caminhada se perde – ele experimenta, por exemplo, o
Rebojo. s.m. Bras. 1 – Repercussão ou redemoinho do vento, provocado
por mudança repentina da direção. 2 – Redemoinho ou contracorrente
causada pela sinuosidade do rio ou pelos acidentes de seu leito ou das
suas margens. 3 – Espumarada que água faz ao entrar no mar e nos rios.162

Nesse redemoinho ou rebojo, encontra-se o personagem em seu destino.


O personagem anda no azul, no verde... e não há limites. Anda no azul e no
verde, assim como o rio “assume formas côncavas e convexas” – movimento
em que “todos os elementos da paisagem ondulam e deslizam, uns contra
os outros...”
Focando, desfocando, e a paisagem surge “não como algo que eu habito,
mas como um desfile, onde a velocidade cria a variedade”.
Uma série de signos nas paisagens surge pelas formas que se descortinam
e se assemelham ou desassemelham pelo olhar: “Um cachorro pequinês nos
acompanhou... reaparecendo ao longe, na linha do horizonte...”

160. OMAR. O esplendor dos contrários.


161. OMAR. O esplendor dos contrários.
162. FERREIRA. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.

163
Zoomorfismo: formas, imagens, figurações de animais. Árvores e
troncos... zoomórficos ou antropomórficos: “a árvore bailarina dança sobre
as águas, com a beleza de uma garça”...

Foto: Arthur Omar

O cão em suas pernas se assemelha às pernas das árvores. São esculturas.


A cabeça do boi é uma máscara, bem ao gosto do autor. Os restos da natureza
oferecem ao olhar uma experiência constrangedora: a beleza em seus restos.
Raízes se encontram formando rizomas monstruosos. Impressões
flagradas pelas lentes da câmera não se repetem. “A surpresa traz informações
preciosas porque não se repetem e, portanto, não são verificáveis depois.”

164
Objetos de arte, esculturas banhadas pelo rio – galeria de arte banhada
pela luz. Agora, o personagem caminha na luz. Caminha pelos labirintos
que o rio traça. Luz inebriante, solar.
Não mais o azul, o verde, mas o amarelo, o marrom das águas e dos
troncos – esculturas. O personagem continua sua andança na cor, sua
navegação na cor, sua viagem na cor.
O objeto está ali, mas o esplendor vem a meu encontro, ele é um
acontecimento de meu olhar e do meu corpo, o resultado do mais
ínfimo – íntimo – de meus movimentos.163

Foto: Arthur Omar

Máscaras, totens: um “tronco ritual”. A aventura do esplendor se vê


agora. Os mitos da Amazônia, os rituais suscitam a ação. Por suas estruturas
fantasmáticas as fotos vão revelando delírios.
Inventar um objeto fascinante – talvez tenha sido o destino dessas
imagens.

163. DIDI-HUBERMAN. L’homme qui marchait dans la couleur, p.17-18.

165
Como inventar uma visualidade que se dirigiria, não à curiosidade do
visível, até mesmo a seu prazer – mas a seu único desejo, à paixão de
sua iminência (palavra que em latim se diz praesentia)? 164

A experiência da luz é mágica. O sobrenatural cai sobre o personagem –


cerca seus passos – até envolvê-lo. Ele experimenta “estas estranhas formações”
como se participasse de um ritual.
A figura humana: a moça, os homens da Amazônia. Esses homens
cobertos de folhas e barro incorporados à paisagem. Corpos híbridos,
misturados natureza e homem se amalgamam, confundem-se, texturizam-
se. Texturas concebidas pelo artista. A superfície da pele é a da relação com
a natureza, com o espaço – é a cor espacial. Nosso olhar é devorado pela
cor. O azul kleiniano de Arthur Omar vai também devorando as aves e os
restos de árvores .
Do alto, de avião, a foto traduz o movimento das nuvens que formam
com o rio a paisagem do azul: o aberto dessa paisagem.
Em seu livro L’homme qui marchait dans la couleur, um capítulo é
dedicado a J.Turrell – diz ele: “No fundo, o que deseja Turrell resulta talvez
em produzir lugares que seriam a experiência sempre indomável de um
equilíbrio secreto entre abismos simétricos.”165
Em Arthur Omar, o “esplendor dos contrários” resulta em produzir
efeitos nessa experiência do aberto assimétrico por um lado – o liso do rio e
o ondulante das nuvens – e, por outro lado, a evolução do espaço no tempo,
nesse paradoxo inquietante dos fotogramas.
As cores mudam durante minha leitura das fotos: verdes, azuis, brancos,
pretos, amarelos, marrons num encadeamento ininterrupto. As cores mudam,
mas de modo que não realizo quando olho, por exemplo, o pôr do sol.
Voar sob o olhar do céu. Ou seja, experimentar do alto o azul infinito
como as águas do rio.
O céu abraça tudo, simplesmente tudo. Não há nem lugar, nem vazio,
nem tempo fora dele, escrevia Aristóteles em seu pequeno tratado
monográfico “Do céu”. O céu nos viu nascer, ele que nunca nasceu,

164. DIDI-HUBERMAN. L’homme qui marchait dans la couleur,.p.18.


165. DIDI-HUBERMAN. L’homme qui marchait dans la couleur. p. 63.

166
nos verá morrer, que engloba todo o tempo, ele que é incorruptível
inalterável.166

O céu como uma imprevisível experiência visual: como tecido em sua


vertiginosa profundidade. Construir, habitar, pensar. Há uma habitação,
uma casa? Em meio ao rio. Fotogramas são montados, compostos sobre o
preto da página. O azul se contrasta com o negro – mais uma vez nota-se
o efeito do esplendor dos contrários nessa montagem onde o azul se limita
com o preto, constituindo em receptáculos dessa cor indomável do céu.
Nosso olhar se altera ao virar a página do ‘livro dos contrários’. Um corte. O
céu está em fotogramas menores, muito longe, os detalhes se movimentam,
há uma outra textura. O contrário entre o pequeno espaço da habitação e
a imensidão do céu se manifesta de forma intensa. O tempo se dilata para
que as paisagens possam ser visíveis. De uma página a outra, a luz modifica
a cena, a pequena casa em meio ao rio em negativo. “No fundo, o que deseja
Turrell resulta talvez em produzir lugares que seriam a experiência sempre
indomável de um equilíbrio secreto entre abismos simétricos.”167
“A dilatação acontece porque o próprio céu assim se mostra – sua
maneira, naquele momento do crepúsculo.”168
Depois da ausência de luz, a não reflexão das cores, o esplendor da luz
– flores, árvores, pinturas dentro da foto e sobretudo um crepúsculo onde
a luz do sol se reflete na imensidão do rio colorindo de amarelo as águas.
Das paisagens solares ao homem coberto de luz.
O urubu – um urubu voa no espaço branco das páginas. Figura
importante na região do rio – comer o que resta, limpar as margens do rio,
as carcaças. As asas negras, o corpo negro da ave em contraste absoluto com
a página branca. Mais uma vez o contraste das cores – nessa viagem do olho
do artista. Esplendor dos contrários: “Um moço absolutamente branco.
Como na estória de Guimarães Rosa. Quase fundido com a folha de papel.
Mesmo o vermelho aqui vem do branco dos olhos.”. 169
Arthur Omar explicita sua técnica:

166. Aristotéles apud DIDI-HUBERMAN. L’homme qui marchait dans la couleur, p. 65.
167. OMAR. O esplendor dos contrários.
168. OMAR. O esplendor dos contrários.
169. OMAR. O esplendor dos contrários.

167
Coloquei o flash a um palmo do seu rosto, quase como uma agressão.
Eu queria que a luz entrasse através da pupila e o iluminasse por dentro.
Abri o diafragma a fim de que a luz estourasse tudo. O olho vermelho
na fotografia nada mais é que o reflexo da luz violenta do flash nos vasos
sanguíneos, da retina, que enxergamos através da sua pupila dilatada.
Ele tinha que ficar reduzido ao branco total, e à cor das vísceras de seu
olhar. Ficou.170

Essa inebriante luz que ofusca, que “estoura tudo” – essa viagem de
dentro para fora, de fora para dentro do homem do rio e do próprio artista.
Nesses “fluxos”, segundo Arthur Omar, “os objetos são vistos como entidades
móveis em desdobramento sem fim, através do campo visual. Nosso corpo
também não tem lugar definitivo na paisagem, a não ser na instabilidade
estável do barco - que escorre pela água.”.171
A imagem não dá lugar à palavra. Não há como escrever com palavras,
mas com a foto  foto-graphos.
A experiência de Arthur Omar ultrapassa pintura e escultura na condição
de gêneros das Belas Artes. O rio, o homem, o céu são experiências visuais
externas. O horizonte, as profundidades (rio/céu) em suas ilimitações são
Uma zona sintomal do tempo celeste, uma zona de tempo, alguma
coisa que Husserl evocava sob a mesma palavra para significar saber
originário – um saber-horizonte – onde se funda, segundo ele, toda
produção, toda obra geométrica.172

Um saber – horizonte de passagem, onde o artista com sua câmera joga


com as cores, a profundidade e com ele mesmo. Obra que traz uma reflexão
– do ar-thur – do Om-ar – beirando o místico; não se vai à Amazônia sem
que lá se permita ser místico. A força, a pujança dessas cores e objetos, os
signos lá encontrados – a natureza do lugar – transformam o artista – seu
corpo – sua respiração – seu ar.

170. OMAR. O esplendor dos contrários.


171. OMAR. O esplendor dos contrários.
172. HUSSERL. L’Origine de la géometrie, apud DIDI-HUBERMAN, p. 81

168
Olhar as fotos do livro O esplendor dos contrários equivale a caminhar
sobre as águas do Rio Amazonas olhando o céu em sua absoluta força,
densidade, potência e poder. Imersão do leitor e do artista.
Uma viagem que exprime um desejo – de mudança interior, de
experiências novas, mais do que um deslocamento físico, O esplendor dos
contrários apresenta hibridismos entre as artes: escultura, pintura, fotografia,
literatura. Mas o que se ressalta é o jogo entre nitidez das linhas e seu
apagamento entre muitos momentos, no seu desfocado.
Luz e sombra nesse contínuo jogo. A claridade como qualidade da luz
e da exposição de nuanças luminosas mostra uma nitidez nas linhas dos
grandes planos e dos planos muito próximos. Em oposição ao preto da
página, a luz faz o “O esplendor dos contrários”.
Na pujança da Amazônia, as lentes da máquina de Arthur Omar parecem
dar transparência à opacidade, da nitidez de certas imagens para o flou de
superfícies espectrais.
O desfocado exprime o movimento, os deslocamentos e esboça formas
abstratas e sem sentido, por meio de efeitos de granulação, esfregaço, suas
espessuras e texturas variadas.
Em Arthur Omar, diferentemente de Jean-Claude Lemagny173 o corpo da
fotografia não é a sombra, mas a luz. Suas fotos são constituídas por valores
táteis de sua luz. Nadar, Man Ray, Ubac, Boiffard, Bellmer, são fotógrafos
da sombra, Arthur Omar, das cores, e da luz.
A floresta, a água do rio, não são fixas. O movimento se encontra em
cada foto. O olho percorre o espaço infinito ao mesmo tempo que percorre o
finito da foto. Um jogo que arma esculturas e texturas dos objetos fotografados
em seu volume variando com as cores.
Merleau-Ponty chama a atenção para um aspecto que em Arthur Omar
também se apresenta – a voluminosidade, ou seja, a profundidade visual.
É preciso redescobrir sob a profundidade como relação entre coisas
ou mesmo entre planos, que a profundidade objetivada, destacada da
experiência e transformada em largura, uma profundidade primordial

173. LEMAGNY. La sombra y el tiempo, p. 31.

169
que dá seu sentido àquela e que é a espessura de um médium sem
coisas. 174

Outras possibilidades de abordagem são possíveis. Esta foi a minha.


O valor da experiência caiu em cotação, mas cabe somente a nós, em
cada situação particular erguer essa queda à dignidade, à “nova beleza”
de uma coreografia, de uma invenção de formas.175

Foto: Arthur Omar

174. Merleau-Ponty apud DIDI- HUBERMAN. L’homme qui marchait dans la couleur,
p. 80.
175. DIDI-HUBERMAN. Sobrevivência dos vagalumes, p. 127.

170
Referências
DIDI-HUBERMAN, Georges. L’homme qui marchait dans la couleur. Paris:
Les Éditions de Minuit, 2001. 94 p.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de
Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 160 p.
LEMAGNY, Jean-Claude. La sombra e el tiempo: ensaios sobre la fotografía
como arte. Buenos Aires: La Marca Editora, 2008. 278 p.
OMAR, Arthur. O esplendor dos contrários. São Paulo: Cosac-Naify, 2002.
208p. [190 ilust].

171
172
POÉTICA DO INTERVALO NO LIVRO DE
DIÁLOGO FOTOLITERÁRIO

Márcia Arbex
Universidade Federal de Minas Gerais -UFMG/CNPq176

Temos que exigir dos fotógrafos a capacidade de


colocar em suas imagens legendas explicativas que as liberem
da moda e lhe confiram um valor de uso revolucionário. Mas
só poderemos formular convincentemente essa exigência
quando nós, escritores, começarmos a fotografar. Também
aqui, para o autor como produtor, o progresso técnico é um
fundamento do seu progresso político.
Walter Benjamin

A interação entre a escrita e a imagem, que se traduz por movimentos


de aproximação e distanciamento, mediação e imediatez, decorre da própria
natureza híbrida dessas mídias. A escrita, desde suas origens, é um produto
misto, uma vez que seu sistema se apoia sobre dois registros, quais sejam, o
gráfico e o verbal, a imagem (mídia visual) e a língua (mídia sonora), que são,
ao mesmo tempo, profundamente heterogêneas uma à outra e estreitamente

176. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico  e Tecnológico, Brasil, ao Projeto Sobrevivências da imagem
na escrita: tipografias e fotografias em narrativas contemporâneas.

173
complementares.177 A imagem, por sua vez, como “evidência obscura”178,
atinge-nos por sua presença imediata e, ao mesmo tempo, nos induz a uma
mediação pelas palavras, seja uma transposição ou uma écfrase. Colocadas
lado a lado, escrita e imagem reduplicam esse paradoxo e produzem uma
temporalidade complexa nesse intervalo que vai da escrita à imagem e
vice-versa, instaurando uma relação transgressiva das funções comumente
associadas, por exemplo, à ilustração e sua legenda. O objetivo deste ensaio,
baseado nessas premissas, é examinar a interação entre um tipo particular de
imagem – a fotográfica – e o texto poético, por meio do exemplo do álbum
fotoliterário Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debré (2000), produção
que reúne o texto de Michel Butor (1926-2016) e fotos do ateliê do artista
plástico Olivier Debré (1920-1999), realizadas por Julius Baltazar (1949-).
Pretende-se mostrar que essa interação é própria a uma poética do intervalo,
do entre-dois, decorrente das contaminações transgressivas e dinâmicas que
se estabelecem entre as duas mídias.

O livro de diálogo fotoliterário


O álbum fotoliterário Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debré [Dez
olhares sobre o ateliê deserto de Olivier Debré] pode ser considerado um “livro
de diálogo”, expressão utilizada por Yves Peyré 179 para se referir às produções
que reúnem poeta e pintor em um projeto comum, com ênfase na natureza
específica de diálogo e troca entre os autores. O termo nos interessa na
medida em que é menos redutor do que o de livro ilustrado, por exemplo,
e por valorizar a ideia de partilha e de cumplicidade entre os envolvidos.
Já o termo fotoliteratura remete a um “território” que, segundo Jean-
Pierre Montier, 180 designa um conjunto de produções editoriais ilustradas
de fotografias ou obras nas quais o procedimento e o imaginário fotográfico
a elas associados desempenham um papel estrutural. O álbum fotoliterário

177. CHRISTIN. L’Image écrite ou la déraison graphique, p. 11. Todas as traduções do francês
são da autora, salvo menção contrária.
178. DIDI-HUBERMAN. Devant l’image, p. 9.
179. PEYRÉ. Peinture et poésie. Le dialogue par le livre, p. 6. De acordo com o autor, essa
prática teria sido inaugurada entre 1874 e 1876 por dois poetas, que ele chama de visionários,
Charles du Cros e Mallarmé, e um artista, Édouard Manet.
180. MONTIER. Transactions photolittéraires, p. 20-21.

174
Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debré corresponde ao primeiro tipo,
uma vez que há nessa produção a presença visível da fotografia, imagem in
praesentia que determina os jogos de equilíbrio entre o texto e a imagem.
Do ponto de vista da produção, contudo, a imagem é anterior ao texto e
pode-se então falar de “imagem geradora”, 181 o que não significa que o texto
é um simples comentário suscitado pela imagem ou que estaria a serviço
dela; significa que o texto se situa a uma certa distância da imagem e, nesse
intervalo, nessa diferença, é que ele se constitui. A primazia da imagem não
implica, portanto, prioridade sobre o texto. Embora geradora do texto, ela
não instaura nenhuma hierarquia ou rivalidade; ao contrário, há um intenso
cruzamento de olhares, contaminações mútuas que dão lugar a uma relação
especular dinâmica e criativa.
O elemento mais imediato que caracteriza Dix regards sur l’atelier désert
d’Olivier Debré é a relação triangular que se estabelece entre os autores
envolvidos: escritor, fotógrafo e artista, cuja presença emblemática se
materializa nas fotos do ateliê. Com base na sua experiência de colaboração
com diversos artistas, Butor distingue duas maneiras diferentes de participar
ao lado do fotógrafo: uma relação indireta, quando se trata de lugares ou
pessoas que ele conhece apenas por meio da imagem e uma relação “direta
anterior”, quando o assunto ou sujeito fotografado já é conhecido. 182 No
primeiro caso, a relação indireta, a escrita é desencadeada por meio dessa
“janela” que constitui a imagem, mostrada do ponto de vista do fotógrafo.
No segundo, que nos interessa aqui, forma-se uma relação triangular de
caráter nitidamente afetivo:
Escrevo sobre o motivo, ao mesmo tempo, através do fotógrafo e ao lado
dele; posso distinguir entre aquilo que ele me mostra e a maneira como o
faz. É porque posso falar de modo distinto do dele, sobre aquilo que ele
me mostra, é justamente por isso que eu posso falar dele de verdade.183

181. Cf. MOURIER-CASILE, MONCOND’HUY. L’Image génératrice de textes de fiction.


p. 4.
182. BUTOR. Souvenirs photographiques, p. 1.177.
183. “[...] Je parle du motif à la fois à travers le photographe et à côté de lui ; je puis faire
la distinction entre ce qu’il me montre et la façon dont il me le montre. C’est parce que
je puis parler autrement que lui de ce dont il me parle que je puis vraiment parler de lui”.
BUTOR. Souvenirs photographiques, p. 1177.

175
Em Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debré, o escritor dialogou
com o fotógrafo Julius Baltazar, com o qual mantinha um laço de amizade
e de trabalho. 184 O aspecto afetivo se intensifica pela escolha do ateliê de
Olivier Debré, lugar já abandonado por seu ocupante, quando da passagem
do fotógrafo, e condenado ao desaparecimento, mas ainda impregnado desse
“espírito do lugar” que o distingue de outros e que toca particularmente o
escritor.185 Pintura, fotografia e escritura tecem, portanto, laços e se encontram
no espaço do livro para revelar os segredos de fabricação, a alquimia que
se opera nesse local que tem algo do laboratório e do santuário.186 Assim, a
“janela” que constitui a fotografia do ateliê cria uma passagem, ao mesmo
tempo que se mescla à memória do poeta, do artista e do local.
O cruzamento de olhares entre escritor-fotógrafo-artista e a interação
entre o texto e a imagem são intensificados pela concepção gráfica em
“díptico”187. Texto e imagem foram colocados em espelho, de modo que o olhar
oscila entre um e outro, dispostos na mesma linha de horizonte e ocupando
aproximadamente a mesma mancha gráfica. A vizinhança da escrita e da
imagem, habilmente calculada por essa disposição gráfica que os oferece
simultaneamente à visão, torna possível as “contaminações transgressivas”,
que serão descritas a seguir.

Da ilustração e da legenda: “contaminações transgressivas”


Walter Benjamin, citado em epígrafe no início deste ensaio, anuncia
o potencial transgressivo da relação entre a fotografia e sua legenda. Esse
potencial está atrelado à necessidade de se derrubar a “barreira entre a
escrita e a imagem” pelos meios técnicos disponíveis que fazem do autor
um produtor. É também de um “uso revolucionário” da escrita com relação

184. Com Julius Baltazar, pintor, gravurista e fotógrafo, Michel Butor realizou inúmeros
trabahos, em especial livros manuscritos. A lista desses títulos encontra-se no Dictionnaire
Butor: http://henri.desoubeaux.pagesperso-orange.fr/
185. A noção de “espírito do lugar” é particularmente cara ao escritor, a exemplo dos cinco
volumes intitulados Le Génie des lieux (1958, 1971, 1978, 1992, 1996).
186. Cf. ARBEX, LAGO. Espaços de criação: do ateliê do pintor à mesa do escritor.
187. BUTOR. O livro como objeto, p. 229-230.

176
à imagem que trata Anne-Marie-Christin no texto de sua conferência “De
l’illustration comme transgression” [Da ilustração como transgressão] (2009).
A autora parte de uma comparação entre a ilustração, tal como é
concebida na China, e a ilustração ocidental para demonstrar como essa
modalidade genérica foi questionada a partir do século 19 pelos artistas.
Em resumo, pode-se dizer que no caso da China, reunidas num mesmo
suporte, a caligrafia e o desenho têm uma relação de “contaminação” que
é o prolongamento de seu sistema de escrita ideográfico. No Ocidente
logocêntrico, cujo sistema rompeu os laços com a origem icônica da escrita,
fazendo desta um código abstrato, a reunião do texto e da imagem não é
“natural”; a imagem esteve com frequência subordinada à palavra e não tinha
autonomia. E nesse sentido, o termo ilustração significava, até o início do
século 19, a “imagem do livro” destinada a acompanhar o texto impresso
(em seguida, ele foi substituído, na França, pelo de estampa, gravura ou
prancha, para designar a imagem de um livro); indicava o papel funcional,
e não decorativo, da imagem em relação ao texto, incluindo os valores de
explicação, esclarecimento ou comentário. 188
Coube aos criadores e artistas recuperar a iconicidade da escrita e
reinventar essa escrita de natureza mista, híbrida, mais próxima da ideográfica,
buscando uma “dinâmica” entre as duas artes “igualmente senhoras da
página”189. Exemplos de “ilustração transgressiva” surgiram desde o fim do
século 19, quando foi resgatada uma prática que existiu nos manuscritos
medievais. Os livros produzidos em colaboração entre pintores e escritores,
fotógrafos e poetas demonstram amplamente essa ruptura da barreira entre
escrita e imagem. Pode-se falar nesse caso, com Evelyne Rogniat, de uma
poética do “entre-dois”: na modernidade, os “autores de imagens e de

188. No Dicionário do Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales, encontra-


mos a seguinte definição de ilustração: “Représentation graphique (dessin, figure, image,
photographie) généralement exécutée pour être intercalée dans un texte imprimé afin de
le rendre plus compréhensible, de compléter l’information qu’il apporte, de le rendre plus
attrayant.” Disponível em : http://www.cnrtl.fr/definition/illustration. Acesso em: 20 jan. 2018.
189. CHRISTIN. De l’illustration comme transgression, p. 10. Christin cita Matisse para
quem “o livro não deve precisar de ser completado por uma ilustração imitativa. O pintor
e o escritor devem agir em conjunto, sem confusão, mas paralelamente”.

177
textos inventaram uma poética do ‘entre-dois’, que não é nem ilustração na
dependência, nem autonomização de obras paralelas”.190
A ilustração, assim como a escrita, também é de certo modo um produto
misto, pois, segundo a autora, “em todas as sociedades, sejam elas orais ou
escritas, o contador de histórias, o mago ou o sacerdote procedem mais ou
menos da mesma maneira quando se trata de, verbalmente, acompanhar ou
completar uma imagem [...]”.191 Mas quando se trata de um texto escrito (e
não mais oral), o “mecanismo” é outro: consiste na reunião das informações
verbal e visual sobre um mesmo suporte, que são “oferecidas a um único
modo de apreensão, a visão, a qual deve intervir, de um lado, sob a forma
de leitura e, de outro, da contemplação”.192 No caso das ilustrações ditas
transgressivas, ainda que as informações verbal e visual estejam submetidas ao
único sentido da visão, a apreensão do conjunto se dá pelo “efeito de diferença
entre as duas mídias” e, em seguida, da “transgressão dessa diferença” que
faz surgir similitudes parciais entre elas. Por exemplo,
são o grau de iconicidade do texto assim como as modalidades gráficas e
espaciais através das quais ele se expressa que tornarão possível ou não,
criativas ou estéreis, essas contaminações transgressivas que, engajadas
inicialmente de um elemento a outro de uma imagem, ou do visível ao
invisível, devem passar então de um texto a uma imagem.193

190. “Comment les auteurs d’images et de textes ont-ils inventé une poétique de l’entre-
-deux qui n’est ni illustration dans la dépendance, ni autonomisation d’œuvres parallèles ?”
ROGNIAT. Chambres d’écho: propos sur la collection Carnet de voyages, p. 327.
191. “Dans toutes les sociétés, qu’elles soient orales ou écrites, le conteur, le mage ou le
prête procèdent à peu près de la même manière lorsqu’il s’agit d’accompagner et de com-
pléter oralement une image [...].” CHRISTIN. De l’illustration comme transgression, p. 3.
192. “Dans ce cas-ci, les informations verbale et visuelle sont réunies sur un même support,
offertes à un mode unique d’appréhension, la vue, laquelle doit intervenir d’un côté sous
forme de lecture et de l’autre de contemplation.” CHRISTIN. De l’illustration comme
transgression, p. 3.
193. “[...] l’effet de différence entre deux médias, comme celui de la transgression de
cette différence, reposent sur une similitude partielle entre le texte et l’image qui s’avère
devoir être dès lors conjointement brisée et exploitée. Ce sont le degré d’iconicité du texte,
ainsi que les modalités tant graphiques que spatiales, ces contaminations transgressives
qui, initialement engagées d’un élément à l’autre d’une image ou du visible à l’invisible,
doivent passer désormais d’un texte à une image.” CHRISTIN. De l’illustration comme
transgression, p. 3.

178
Com base nessas considerações, propomos pensar a interação texto-
imagem como transgressão, ainda que em diferentes graus, como veremos em
seguida. No livro escolhido para análise, não é o fotógrafo Julius Baltazar quem
escreve suas próprias legendas, como exigia Benjamin, citado anteriormente,
mas, ainda que esse fotógrafo transfira ao escritor e poeta Michel Butor esse
papel, as “legendas” não deixam de adquirir o caráter revolucionário exigido
por Benjamin desde a década de 1930. Talvez porque o próprio Michel
Butor também já foi fotógrafo, em outros tempos,194 podendo inclusive ser
considerado um autor produtor de primeira ordem. Pode-se considerar que
nesse álbum fotoliterário há ruptura da relação convencional entre ilustração
e legenda e a instauração de uma poética do intervalo, em que são possíveis
as “contaminações transgressivas”.

O punctum como mediador da escrita


As fotos em preto e branco que estão na origem do texto Dix regards
sur l’atelier désert d’Olivier Debré, foram apresentadas ao escritor Butor pelo
fotógrafo Julius Baltazar, que queria “guardar uma lembrança, um rastro
desse lugar que estava prestes a desaparecer,” 195 o que de fato acontece no
ano seguinte. O livro contém apenas uma foto do artista Olivier Debré, como
um espírito protetor do lugar onde trabalhou durante 50 anos (de 1949 a
1999). Podemos nos interrogar então como o escritor, mas também o leitor/
espectador, posiciona-se diante da imediatez da imagem, de sua presença,
de sua evidência; como se dá a mediação pelas palavras ?
Dividido em 10 capítulos ou fragmentos textuais, o livro propõe uma
espécie de volta ao mundo com 10 escalas visuais: o “olhar egípcio”, que abre
o livro, seguido do “olhar turangino”, “parisiense”, “norueguês”, “chinês”,
“japonês”, “africano”, “americano”, “precolombiano” e “sub-marino”, numa

194. Antes de começar a escrever sobre a fotografia ou para os fotógrafos, Michel Butor
praticou a fotografia ao longo de doze anos, de 1951 a 1962, após o retorno de sua estada no
Egito, como relata em suas “lembranças fotográficas”. BUTOR. Souvenirs photographiques,
p. 1.168. As fotografias de Michel Butor foram reunidas em Butor photographe: archipel
de lucarnes. Neuchâtel; Paris: Ides et Calendes, 2002.
195. “[...] afin de conserver un souvenir, de garder une trace de ce lieu qui va bientôt dis-
paraître.” DABAN. Introduction, p. 5.

179
mistura de épocas e lugares. A evocação geográfica e o motivo do “olhar”,
presente desde os títulos, mediadores privilegiados entre a imagem e o
texto, já desencadeiam no leitor/espectador um deslocamento do olhar, um
passeio pela imagem. Tema dominante do livro assim anunciado, o olhar
se encontra então em abismo nesse primeiro fragmento textual, “Le regard
égyptien” (FIG. 1), que cito na íntegra:
Em seu ateliê, o pintor olha. Sua tela, primeiro, seu modelo, quando
podia dispor de um (e com que intensidade!), todos os objetos que
chegaram até lá, mais ou menos escolhidos, mais ou menos impostos
pela administração, as pessoas que passam, o rumor; e as vezes a pintura
está lá justamente para protegê-lo contra essa invasão, essa confusão; ali
é seu refúgio. Mas o pintor também se sente olhado, ele trabalha para
o olhar do outro que apreciará ou não, experimentará, julgará, pagará,
utilizará. E esse olhar não é apenas futuro. Há o visitante, o marchand,
o amigo, o crítico. Isso interrompe em geral o trabalho, mas também
o invade. Assim que a pessoa importuna vai embora, que às vezes é
alguém respeitado, admirado, amado, não é fácil retomar o trabalho.
Não se está mais só. O olhar do outro permanece, invade tudo. O
exame ultrapassa o antes e o depois. Pois há também o ontem, o ano
passado, o século passado, os amigos de outrora, aqueles que morreram
antes de nascermos. É assim com os pintores que admiramos, mesmo
sem admiti-lo, mesmo dizendo o contrário. O que ele teria dito ao ver
isso? Os pintores ou todos aqueles que nos ofereceram diretamente ou
indiretamente algo a olhar. O olhar do outro é evocado, exorcizado,
celebrado no ateliê pelas figuras, reproduções ou citações, fantasmas
de rostos vindos por vezes de civilizações fantasmas pacientemente
desenterradas no deserto próximo ao Nilo.196

196. “Dans son atelier le peintre regarde. Sa toile d’abord, son modèle quand il en avait un
(et avec quelle intensité !), tous les objets qui ont abouti là, plus ou moins choisis, plus ou
moins imposés par l’administration, les gens qui passent, la rumeur; et parfois la peinture
est là justement pour le protéger contre cette invasion, car capharnaüm; il s’y réfugie. Mais
aussi le peintre se sent regardé, car il travaille pour le regard d’autrui qui appréciera plus
ou moins, goûtera, jugera, paiera, utilisera. Et ce regard n’est pas seulement futur. Il y a le
visiteur, le marchand, l’ami, le critique. Cela interrompt en général le travail, mais aussi
l’envahit. Une fois l’importun parti, lequel est parfois respecté, admiré, aimé, pas facile

180
Figura 1: Foto de Julius Baltazar.

Fonte: BUTOR. Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debret, p. 12.

de s’y remettre. On n’est plus seul. Le regard de l’autre demeure, envahit tout. L’examen
déborde avant et après. Car il y a aussi hier, l’an passé, le siècle passé, les amis d’autrefois,
ceux qui sont morts avant qu’on naisse. Ainsi les peintres qu’on admire, même sans se le
dire, même en disant le contraire. Qu’aurait-il pensé en voyant cela? Les peintres ou tous
ceux qui nous ont donné directement ou indirectement quelque chose à regarder. Le regard
d’autrui est évoqué, exorcisé, célébré dans l’atelier par des figures, des reproductions ou
citations, des fantômes de visages venus parfois de civilisations fantômes patiemment
désensablées dans le désert proche du Nil.” BUTOR. Dix regards..., p.13-14.

181
Desde a primeira frase, instaura-se uma distância entre o que a imagem
nos mostra e o que o texto diz, pois o artista Olivier Debré está ausente
dessa sala, não há ali, na foto, nenhuma das pessoas mencionadas. O que
vemos de fato é a acumulação de livros e objetos banhados pela luz que
atravessa a vidraça. Mas a última frase, por evocar “as civilizações fantasmas
pacientemente desenterradas no deserto próximo ao Nilo”, reconduz o leitor/
espectador à foto, para ver ali, dessa vez, o olho Uedjat, evocado desde o
título. Esse primeiro fragmento textual parte provavelmente, do ponto de
vista da produção, desses olhos pintados esquematicamente à maneira do
olho Uedjat , embora o texto não faça referência direta a ele. Colocado contra
a vidraça, sobre a biblioteca, em meio à desordem do estúdio, esse olho não
se vê na foto de imediato, mas ele parece ter sido para o escritor Butor o
punctum da imagem.197 Assim, aquilo que nos olha, retomando as palavras
de Didi-Huberman,198 é esse olho egípcio, os do deus falcão Horus, ou do
pintor Olivier Debré, seu fantasma; punctum da imagem que desencadeia
a escrita e parece inscrever não apenas a presença do pintor ausente na
imagem, mas a de todos aqueles que ali passaram.
O olhar se encontra ainda em perspectiva temporal. O texto convida
a recriar o vai e vem dos visitantes, amigos, jornalistas e marchands, numa
dança à qual, imagina-se, o próprio Butor teria assistido, tendo frequentado
ele próprio o estúdio de Olivier Debré. O texto busca revelar ainda o processo
de criação do artista, semelhante ao do escritor, que se insere na narrativa
ao utilizar o pronome on: mostra que o olhar do artista está inserido em um
meio saturado de imagens, sua invenção é uma crítica de obras anteriores.199
O artista, como o escritor diante de sua biblioteca, encontra-se no interior de
um imenso museu, evocado no fragmento textual pela alusão aos “pintores
que admiramos” ou todos aqueles que nos ofereceram direta ou indiretamente

197. Segundo Barthes, o punctum é um detalhe, um ponto sensível que surge “no campo
da coisa fotografada como um suplemento ao mesmo tempo inevitável e gracioso”. Esse
detalhe não seria intencional; ele diz apenas que o fotógrafo estava lá, que não podia não
fotografá-lo; mas para o spectator que o viu, ele é tocante.” BARTHES. A câmara clara,
p. 76. Sabe-se o quanto Butor se interessa pelo Egito e é sensível às representações do deus
falcão Horus, cujo símbolo é o olho Uedjat.
198. Refiro-me ao título de seu livro Ce que nous voyons, ce qui nous regarde. Paris:
Éditions de Minuit, 1992.
199. Cf. BUTOR. Crítica e invenção, p. 193-197.

182
algo a olhar”,200 museu miniaturizado nos livros de arte que se acumulam
na biblioteca que vemos na fotografia.

As metáforas recíprocas
As relações analógicas também podem suscitar as “contaminações”
entre escrita e imagem, como em “Le Regard norvégien” (FIG. 2), cujo
trecho é citado a seguir.
As telas estendidas em seus chassis, apoiadas contra as paredes, em
seguida uma sobre a outra, e que sempre têm que ser endireitadas,
corrigidas, senão elas desabam, podendo assim congestionar, obstruir,
impossibilitar a circulação nos canais do ateliê, os fiordes reservados,
as telas fazem deslizar até nossa planície as escarpas e cair as pedras,
as florestas quase verticais que vão dar em vales, cascadas e lagos aos
pés de igrejas e casas de madeira.[...]201

Nesse fragmento, as analogias, ou “metáforas recíprocas”, abrem a


imaginação, criando paisagens poéticas. Michel Butor utiliza essa expressão a
respeito das obras de arte imaginárias de Marcel Proust. Em seu estudo, mostra
que a pintura inventada do personagem Elstir irá revelar as analogias, as
metáforas recíprocas, pela utilização de um vocabulário permutável, fazendo
equivaler os termos terrestres e os marítimos, por exemplo, na descrição do
“Port de Carquethuit”202. É pela analogia formal que esse amontoado de telas
colocadas na vertical vai se comparar à paisagem norueguesa indicada desde
o título, com seus fiordes, florestas, lagos e vales. A evocação dos fiordes não
se deve unicamente à aproximação por analogia com a posição instável das

200. [...] Ainsi les peintres qu’on admire [...]. Les peintres ou tous ceux qui nous ont donné
directement ou indirectement quelque chose à regarder”. BUTOR. Dix regards…, p.14.
201. “Les toiles tendues sur leurs châssis, appuyées sur les murs, puis l’une sur l’autre et
qu’il faut toujours redresser, corriger, sous peine d’écroulement, donc d’égorgement, d’em-
bouteillage, d’impossibilité de plus circuler dans les canaux de l’atelier, les fjords réservés,
les toiles font descendre jusque dans notre plaine les escarpements et les éboulis, les forêts
quasi verticales qui se terminent en nappes de prairies, cascades et lacs sous les pieds des
églises et des maisons de bois. [...] BUTOR. Dix regards…, p.25.
202. Michel Butor utiliza essa expressão a respeito das obras de arte imaginárias de Marcel
Proust. Em seu estudo, mostra que a pintura inventada de Elstir irá revelar as analogias,
as metáforas recíprocas, pela utilização de um vocabulário permutável, fazendo equivaler
os termos terrestres e os marítimos, por exemplo, na descrição do “Port de Carquethuit”.
BUTOR. Les Œuvres d’art imaginaire chez Proust, p. 590.

183
telas colocadas contra as paredes, que faz da cena uma paisagem poética,
mas diz respeito ainda à biografia do artista, uma vez que ele guarda laços
estreitos com esse país, tendo ali estado diversas vezes e realizado exposições.

Figura 2: Foto de Julius Baltazar.

Fonte: BUTOR. Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debret, p. 24.

A materialidade das telas e os gestos que o pintor teria feito durante


seu trabalho também são motivos para a narrativa poética, que acaba por

184
contaminar a fotografia, como no trecho seguinte: “Quando a pintura desliza
e escorre sobre o grão do tecido já preparado, o pincel começa a chiar como
um par de esquis sobre a neve fresca”.203 A comparação da tela branca com
a neve, do ruído do pincel em contato com o tecido com o deslizar de um
ski sobre a neve chamam a atenção para a materialidade da pintura, para o
ato de produzir, para o gesto, imprimindo na imagem fotográfica algo que
está além do visível. Portanto, em nosso exemplo, embora o texto se inicie
com uma écfrase — “As telas estendidas em seus chassis, apoiadas contra
as paredes, em seguida uma sobre a outra” — logo ele se desvia, cria um
intervalo e as metáforas surgem, fazendo equivaler o ateliê e a paisagem, a
tela/pintura e a neve, o gesto do pintor e o do esquiador.
Outros fragmentos narrativos do livro parecem ter sido gerados também
a partir de analogias, por contaminação. Por exemplo, o texto “Le Regard
sousmarin” (FIG.3) (O olhar submarino):
A cena da imensa ópera longínqua: ou sua maquete no ateliê, suas
múltiplas maquetes para poder nadar de ensaio a ensaio, leves, mani-
puláveis; ou o próprio ateliê de tamanho intermediário entre esses dois
extremos, ele mesmo maquete, contendo aqueles que ali se deslocam,
cena também, mimetizando a grande, para além dos mares e desertos;
tudo isso concebido como um aquário com oxigenação, circulação,
iluminação [...]. Os peixes passam e repassam, suas escamas tornam-se
armaduras, suas nadadeiras, velas e asas, seu ajuntamento são movi-
mentos da multidão, suas viradas, deslizamentos de um reino a outro,
de uma dinastia à outra, de um regime a outro, na rotação das culturas
e dos astros, levados pelas correntes e pelas marés do céu.”204

203. “Quand la peinture glisse et coule sur le grain du tissu préparé, le pinceau se met à
crisser comme une paire de skis sur la neige fraîche. Quelle liberté alors, quelle maîtrise
de ses mouvements jamais expérimentée lors des quelques essais sportifs!” BUTOR. Dix
regards..., p. 25.
204. “La scène de l’immense opéra lointain: ou sa maquette dans l’atelier, ses multiples
maquettes pour pouvoir nager d’essai en essai, légères, maniables; ou l’atelier lui-même de
taille intermédiaire entre ces deux extrêmes, maquette lui-aussi, contenant les autres qui
s’y déplacent, scène aussi, mimant la grande au-delà des mers ou déserts; tout cela conçu
comme un aquarium avec oxygénation, circulation, éclairages.[...] Les poissons passent et
repassent, leurs écailles devenant cuirasses, leurs nageoires des voiles et des ailes, leurs
attroupements des mouvements de foule, leurs virages des glissements d’un règne à l’autre,

185
Figura 3: Foto de Julius Baltazar.

Fonte: BUTOR. Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debret, p. 48.

O fragmento evoca os trabalhos que Olivier Debré fez para a ópera


e cujas maquetes superpostas, mostradas na fotografia, são comparadas a
aquários, sem dúvida devido a seu formato, sua transparência e a capacidade
de recriar mundos em miniatura. A metáfora marinha é utilizada no emprego

d’une dynastie à l’autre, d’un régime à l’autre, dans les rotations des cultures et des astres,
emportés par les courants et les marés du ciel.”. BUTOR. Dix regards sur l’atelier désert, p.49.

186
de palavras desse campo semântico (nadar, aquário, peixes, correntes e
marés) fazendo da maquete da cena da ópera um mundo submarino, mas
também uma maquete do ateliê que, por sua vez, é maquete da grande
comédia humana representada na ópera.

Considerações finais
Nesse livro de diálogo fotoliterário, assim como em outras produções que
tratam dos ateliês,205 há um intenso cruzamento de olhares entre o artista, o
fotógrafo e o escritor, que se reflete na interação e contaminação entre as mídias
– pintura, fotografia, escrita. Embora a imagem seja geradora do texto, não há
hierarquia entre o texto e a imagem, que se unem numa cumplicidade que
reflete a do escritor com o fotógrafo. Há um deslocamento das modalidades
genéricas que são a ilustração e a legenda, uma vez que o foco não recai
nem sobre a foto nem sobre o texto. Assim, nada que possa parecer com
a descrição de um ateliê ou de telas de pintura. Nenhum zoom sobre um
objeto determinado, nenhuma ficção que tenha como base a imagem. O
texto deixa de ser legenda a serviço da imagem, transgredindo o papel
funcional para transformar a percepção da imagem. É no intervalo entre o
que se lê e o que se vê, no percurso do olhar entre essas duas mídias, ou da
tensão entre elas, que se monta e se desmonta o sentido.
Escrever à distância da imagem ou ao lado dela não significa apenas
traduzir uma imagem visível em palavras ou descrever o que se tem diante
dos olhos. Presente ao lado do texto, o que a imagem dá a ver muitas vezes é
a ausência, seu fora-de-quadro, e o trabalho da memória. Diante da imagem,
o escritor Butor não cessa, portanto, de inventar, de reconfigurar o passado,
uma vez que essas fotografias só se tornam pensáveis como construção da
memória.206 É no diálogo com a história do artista, suas telas e seu lugar de
trabalho, é diante de sua história de amizade, e não apenas com o visível

205. Cf. BUTOR, GODARD. L’Atelier de Man Ray. Esse livro também traz fotos de Maxime
Godard do espaço de criação que é o ateliê de Man Ray, com textos de Michel Butor.
206. Retomo aqui os termos de Didi-Huberman “Sempre, diante da imagem, estamos diante
do tempo. [...] Diante de uma imagem – por mais recente e contemporânea que seja – , ao
mesmo tempo o passado nunca cessa de se reconfigurar, visto que essa imagem só se torna
pensável numa construção da memória.” DIDI-HUBERMAN. Diante do tempo, p. 16.

187
dado pela imagem, que os textos poéticos desmontam a imagem de um ateliê
inabitado. O tópos do ateliê ganha, assim, um suplemento de significação,
pois a acumulação e a sedimentação que ocorrem no ateliê fazem desse lugar,
como diz o escritor, “um terreno de escavação em que cada golpe de enxada
faz jorrar um enxame de estilhaços de memória”207. A escrita se encarrega
da arqueologia material, o monte de objetos aparece como esse campo de
escavação em que a memória individual pode ter acesso à memória do lugar.
O par escritor-fotógrafo abre uma janela para mostrar o lugar do trabalho e
o trabalho do lugar, fazendo aparecer o que não está visível, mas presente,
testemunhando a sobrevivência do ateliê, numa incessante reconfiguração
poética do passado.

Referências
ARBEX, Márcia, LAGO, Izabela B. Espaços de criação: do ateliê do pintor à
mesa do escritor. Belo Horizonte: Viva Voz, 2015. 146 p.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio Castañon Guimarães.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução
de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 120-136. (Obras
Escolhidas, 1).
BUTOR, Michel. GODARD, Maxime. L’Atelier de Man Ray. Paris: Bernard
Dumerchez, 2005.
BUTOR, Michel. “Souvenirs photographiques”, Œuvres complètes, M. Calle-
Gruber (dir.). Paris:  Éditions de La Différence, vol. X., p.1169-1179, 2009.
BUTOR, Michel. Dix regards sur l’atelier désert d’Olivier Debret, photographies
de Julius Baltazar, introduction de Guillaume Daban. Neuchâtel: Ides et
Calendes, 2000.
BUTOR, Michel. Les Œuvres d’art imaginaire chez Proust, Répertoire II. In:
BUTOR, Michel. Œuvres complètes. Paris: Éditions de la Différence, 2006.
v. II: Repertoire 1. p. 576-608.

207. “[...] un terrain de fouilles où chaque coup de pioche fait jaillir un essaim d’étincelles
de mémoire”..BUTOR, GODARD. L’Atelier de Man Ray, p. 43.

188
BUTOR, Michel. O livro como objeto. In: BUTOR, Michel. Repertório.
Organização e tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva,
1974. p. 213-230.
CHRISTIN, Anne-Marie. Da imagem à escrita. Tradução de Júlio Castañon
Guimarães. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia (org.). A historiografia
literária e as técnicas de escrita. Rio de Janeiro: Viera e Lent; Edições Casa
Rui Barbosa, 2004. p. 279-292.
CHRISTIN, Anne-Marie. De l’illustration comme transgression. Palestra
proferida na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
em 2009. Inédita.
CHRISTIN, Anne-Marie. L’Image écrite ou la déraison graphique. Paris:
Flammarion, 1995.
DABAN, Guillaume. Introduction. In : BUTOR, Michel. Dix regards sur
l’atelier désert d’Olivier Debret, photographies de Julius Baltazar, introduction
de Guillaume Daban. Neuchâtel: Ides et Calendes, 2000. p. 5-7.
DESOUBEAUX, Henri (dir.). Dictionnaire Butor. Disponível em: <http://
henri.desoubeaux.pagesperso-orange.fr/>. Acesso em: 22 jan. 2016.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant l’image. Paris: Les éditions de Minuit,
1990.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Tradução Vera Casa Nova e Márcia Arbex.
Diante do tempo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015
MONTIER, Jean-Pierre (dir.) Transactions photolittéraires. Rennes: Presses
Universitaires de Rennes, 2015.
MOURIER-CASILE, Pascaline; MONCOND’HUY, Dominique (org.). L’Image
génératrice de textes de fiction. Poitiers: La Licorne, 1996.
PEYRÉ, Yves. Peinture et poésie: le dialogue para le livre. Paris: Gallimard,
2001.
ROGNIAT, Évelyne. Chambres d’écho: propos sur la collection Carnet de
voyages. In: MONTIER, Jean-Pierre et al. (dir.). Littérature et photographie.
Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008. p. 327-338.

189
LITERATURA BÁRBARA:
DIARY OF AN AMATEUR PHOTOGRAPHER

Angelo Mazzuchelli Garcia


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

O livro e a leitura
Durante a Idade Média, a forma de leitura passou por uma transformação
fundamental: ocorreu a “passagem de uma leitura necessariamente oralizada,
indispensável ao leitor para a compreensão do sentido, a uma leitura
possivelmente silenciosa e visual.”208 A oralização da leitura era uma prática
comum desde a Antiguidade;
Uma convenção cultural que associa fortemente o texto e a voz, a leitura,
a declamação e a escuta. [...] A leitura em voz alta permanece [...] o
cimento fundamental das diversas formas de sociabilidade: familiares,
eruditas, públicas, mundanas, e o leitor visado por grande número
de gêneros literários é um leitor que lê para outros ou um leitor que
ouve ler. Na Castela do Século de Ouro, leer e oir, ver e escuchar são
quase sinônimos, e a leitura em voz alta é a leitura implícita de gêneros
bastante diversos: todos os gêneros poéticos, a comédia humanista

208. CHARTIER. Do códice ao monitor, p. 187.

190
(lembremo-nos da Celestina), o romance em todas suas formas, até
ao Quixote, a própria História.209

A leitura silenciosa esteve, inicialmente, restrita aos scriptoria monásticos:


prática conveniente para a meditação e a oração. Posteriormente, chega às
escolas e às universidades. A vantagem dessa prática era a possibilidade de
ler mais textos em menos tempo. A função da leitura extrapolava àquela dos
monastérios (vinculada à entronização do mistério da Palavra), pois visava
ao “deciframento regulado e hierarquizado da letra (littera), do sentido
(sensus) e da doutrina (sententia)”.210
Genericamente, em termos técnicos, a decifração vincula-se ao grau
de legibilidade da escritura: decifra-se o texto adequada e rapidamente se
houver clareza de transmissão do seu teor. E o grau de legibilidade está
diretamente relacionado à diagramação das páginas de um livro. Diagramar
(planejar a disposição dos elementos gráficos em uma página) é uma das
competências do profissional atualmente denominado designer gráfico. Ao
elaborar o layout das páginas (determinando o tipo e tamanho das letras, o
espaçamento entre linhas, a estruturação de parágrafos etc.), esse profissional
tem como meta, em tese, garantir boa legibilidade e, consequentemente, a
clareza necessária para a transmissão da mensagem.
Eventualmente, a busca pela boa legibilidade pode gerar controvérsias.
Na tradução brasileira do livro Um homem (Un uomo), a estrutura original
concebida pela autora, a jornalista e escritora italiana Oriana Fallaci, foi
modificada. Segundo Araújo, a tradução “não era fiel à estrutura paragráfica
do original, construída em forma de monólogo compacto”.211
O que a escritora concebera como blocos de um longo discurso interior
foi transformado, na tradução, em diálogos convencionais, i. e., cada fala
contida num parágrafo, foi marcada com travessão, enquanto no original
não havia distinções semelhantes, mas aspeamento de interlocuções
para ‘relembrar’ diálogos.212

209. CHARTIER. Do códice ao monitor, p. 188.


210. CHARTIER. Do códice ao monitor, p. 188.
211. ARAÚJO. A construção do livro, p. 23.
212. ARAÚJO. A construção do livro, p. 23.

191
Fallaci declarou, posteriormente, ao Jornal do Brasil (em 7 de maio de
1981):
Em Um homem todos os diálogos são dados sem parágrafo, e não só
porque este é notoriamente o meu modo de escrever, de obter o ritmo
da página, a musicalidade da língua,.mas porque isto corresponde a uma
rigorosa necessidade de estilo ditada pela substância do livro. Quero
dizer, em Um homem o diálogo é um diálogo recordado, um diálogo
interior, e não um diálogo que determina um diálogo.213

A modificação da diagramação (seguindo uma reivindicação da casa


editora) visava, tecnicamente, proporcionar boa legibilidade:
O aspecto gráfico de manchas em grandes blocos compactos de texto (às
vezes tomando todo o seu espaço) resulta de fato em páginas maciças,
no mínimo pouco arejadas, o que, sem a menor dúvida, prejudica a
legibilidade. Ademais, no caso em questão não havia perfeito domínio
da técnica do monólogo interior, em que se devem distinguir através
de situações ‘dramáticas’ ou mesmo recursos gráficos, o que se passa
no presente do narrador e aquilo que é expresso como lembrança.214

Não é nosso propósito determo-nos em questões de estilo (ou de técnica


literária). Nosso foco é a expansão do conceito de legibilidade. A busca por
um adequado grau de legibilidade está subordinada à histórica associação
da escrita com a voz, ou seja, implica um modo de transmissão do teor que
não afete ou, segundo Culler, não “infecte” o pensamento – a fala – do autor.
Ler seria ouvir o próprio autor.
Na fala, [...] os significantes desaparecem tão logo são enunciados; eles
não interferem, e quem fala pode explicar quaisquer ambiguidades
para assegurar que o pensamento foi transmitido. É na escrita que os
desastrosos aspectos da mediação se fazem aparentes. A escrita apresenta
a língua como uma série de marcas físicas, que operam na ausência do

213. Fallaci apud ARAÚJO. A construção do livro, p. 23.


214. ARAÚJO. A construção do livro, p. 25.

192
locutor. Elas podem ser altamente ambíguas ou organizadas segundo
engenhosos padrões retóricos.215

A leitura de viva voz, segundo Chartier,216 subsistiu até o século XVIII.


Krüger217 estima que ela persistiu até o século XIX. Entretanto, a forma
oralizada de leitura, prática comum desde a Antiguidade, ainda perdura
– como conceito. Do oral depreende-se a musicalidade: a leitura oralizada
pode ser comparada ao ato de ouvir a declamação de uma pauta musical:
“um adequado entendimento textual” se dá “pela maior ou menor entonação
e modulação da voz, bem como pelos ritmos e pausas”218. Esse fenômeno, a
ideia de que a escrita é mera representação da fala – pensamento-som –, é
inerente à cultura ocidental; Jacques Derrida denominou-o fonocentrismo:
a “proximidade absoluta da voz e do ser, da voz e do sentido do ser, da voz
e da idealidade do sentido.”219

Design gráfico autoral e literatura


Fenômeno onipresente na cultura ocidental, o fonocentrismo rege a
concepção dominante do design gráfico. Essa concepção é oriunda de ideais
modernistas; vincula-se ao período histórico iniciado em meados do século
XIX, na Europa, em que artistas de vanguarda buscavam desvincular a arte
do academicismo, da tradição greco-romana. Mais especificamente, essa
concepção provém de um pensamento modernista tardio – cientificista,
objetivista, racionalista –, que estabelece rigorosa e metódica organização
dos elementos gráficos:
[...] vincula o bom design gráfico diretamente à boa legibilidade, ou
seja, à facilidade, velocidade e precisão com que o leitor apreende o
conteúdo da mensagem – o que depende da eficiência de um layout
reduzido ao mínimo de elementos necessários.220

215. CULLER. Sobre a desconstrução; teoria e crítica do pós-estruturalismo, p.106.


216. CHARTIER. Do códice ao monitor: a trajetória do escrito, p. 188.
217. KRÜGER. Comentários à arte edificatória de Leon Battista Alberti, p. 153.
218. KRÜGER. Comentários à arte edificatória de Leon Battista Alberti, p. 153.
219. DERRIDA. Gramatologia, p. 14.
220. GARCIA. A literatura como design gráfico: a linguagem em cena, p.125.

193
O desempenho esperado de um design gráfico racionalista assemelha-
se ao desempenho esperado da escrita concebida como mera representação
da fala: ambos anseiam transmitir um conteúdo de forma neutra. Escrita
e design gráfico devem ser, cada qual, uma “taça de cristal”221 – devem ser
“invisíveis”: a primeira objetivando não desvirtuar/corromper a fala do
autor; o segundo, visando à velocidade e à precisão de transmissão do teor
da mensagem. Portanto, escrita e design gráfico cumprem, assim, papéis
puramente instrumentais: ambos são veículos transparentes da racionalidade.
Pelo menos até a década de 1960, segundo Poynor, “a retórica profissional
insistia que o design era uma atividade essencialmente anônima, e de muitas
formas ainda o é: poucos membros do público saberiam citar o nome de pelo
menos um designer gráfico”.222 O anonimato, ou “invisibilidade”, vincula-se
diretamente ao caráter instrumental da profissão (proveniente do modelo
racionalista). Mas teorias pós-modernistas de design gráfico proporcionaram
o surgimento de uma nova abordagem da profissão, em contraposição à
ideologia modernista, racionalista e instrumental. Surge o conceito de design
gráfico autoral. A reivindicação de autoria abrange os conceitos da atividade
como um todo: traria a possibilidade de uma atuação menos passiva; mesmo
porque, afirma Poynor, “O ato de criar designs nunca pode ser um processo
completamente neutro [...]”.223
Em meio a esse contexto crítico, alguns designers gráficos começaram a
empreender uma trajetória criativa que alcançaria as fronteiras da literatura.
Na década de 1990, surgem projetos autorais com o intuito de “incentivar
o público leitor de ficção já existente a adotar experiências de leitura com
um grau de conteúdo visual incomum”.224 Assim, uma parcela de designers
gráficos torna-se autores/escritores: passa a explorar o potencial gráfico/
visual de signos verbais e de signos visuais, aliando-os, de forma indivisa, à
narrativa. Um exemplo é a obra Diary of an amateur photographer: a mystery
(1998), do escritor e designer gráfico britânico Graham Rawle.

221. “Taça de cristal” é uma metáfora utilizada por Beatrice Warde, num ensaio sobre
design gráfico publicado em 1932, para se referir à pretensão à clareza absoluta da trans-
missão de uma mensagem.
222. POYNOR. Abaixo as regras: design gráfico e pós-modernismo, p. 119.
223. POYNOR. Abaixo as regras: design gráfico e pós-modernismo, p. 120.
224. POYNOR. Abaixo as regras: design gráfico e pós-modernismo, p. 140.

194
Figura 1: páginas duplas sequenciais de Diary of an amateur
photographer: a mystery (abaixo 1A; mais abaixo 1B).

Fonte: RAWLE. Diary of an amateur photographer: a mystery. Copyright: Graham Rawle.

Diary of an Amateur photographer é uma narrativa em forma de diário


do protagonista, o aprendiz de fotografia Michael Whittingham. O processo
de composição das páginas do livro assemelha-se ao da colagem ou, mais
especificamente, ao da fotomontagem, procedimento artístico largamente

195
explorado por dadaístas e surrealistas. O conjunto sugere uma espécie de
scrapbook (livro que reúne recortes e objetos diversos). Rawle combina
laudas datilografadas, fotografias e diversos recortes de impressos (de jornais,
revistas e manuais). A composição ainda expõe grampos, fitas adesivas,
papéis amassados ou rasgados e transparentes.
A Figura 1 exibe uma sequência de páginas duplas do livro. Em 1A,
a página da direita exibe o verso de uma folha transparente datilografada
(o texto está invertido), que deixa vislumbrar, por meio da transparência,
a fotografia de uma mulher. Em seguida (FIG. 1B), a página da esquerda
exibe o anverso dessa folha transparente datilografada. Nessa mesma
página, a transparência da folha possibilita visualizar o cartão contendo
o desenho do policial visto na página dupla anterior (FIG. 1A). Ainda em
1B, a página da direita mostra a fotografia vislumbrada na página dupla
anterior. Evidentemente, as transparências e recortes não são literais: são
impressões, reproduções fotográficas – fiéis, verossímeis – de uma acumulação
de materiais diversos (que se conforma como um diário).
O diário, inicialmente, fora uma recomendação do professor de
Whittingham. O objetivo era que os alunos mantivessem um registro das
aulas e dos exercícios de fotografia. Depois de o protagonista encontrar uma
antiga e misteriosa foto, o diário se transforma no registro de uma investigação
de assassinato. Entretanto, o diário é, sobretudo, uma viagem pela mente
delirante de Whittingham, e a narrativa expõe – visualmente – os devaneios
da personagem. Há nas páginas do livro uma alusão ao processo criativo
de dadaístas e surrealistas, para os quais a colagem não estava relacionada
especificamente ao uso de cola, mas à articulação de fragmentos diversos
que proporcionasse novas e delirantes realidades. As fantasias visuais de
Whittingham revelam-se por meio de algumas fotomontagens feitas por ele
mesmo para compor o diário. A Figura 2A exibe uma dessas fotomontagens
que, por seu turno, remete às fantásticas composições de artistas dadaístas
e surrealistas, como as da alemã Hannah Höch.225

225. Cf. https://www.artsy.net/artist/hannah-hoch.

196
Figura 2: Página de Diary of an amateur photographer: a mystery.

Fonte: RAWLE. Diary of an amateur photographer: a mystery. Copyright: Graham Rawle.

Outro indício visual da mente excêntrica de Whittingham são as


fotografias escolhidas por ele para compor o diário. A conselho do professor,
os alunos deveriam recortar, a título de referência, fotografias que julgassem
interessantes em jornais e revistas. As imagens selecionadas pela personagem
são bizarras ou cômicas, como a de um homem com vários cigarros na boca
(FIG. 3). Vale mencionar que a comicidade também é um dos aspectos
inerentes às colagens dadaístas e surrealistas; uma das influências para
os artistas desses movimentos foram postais com fotomontagens cômicas
produzidos no início do século XX.

197
Figura 3: Página dupla de Diary of an amateur photographer: a mystery.

Fonte: RAWLE. Diary of an amateur photographer: a mystery. Copyright: Graham Rawle.

Autoria
Poynor226, aludindo ao ensaio “A morte do autor”, de Roland Barthes,
especula se a reivindicação de autoria não seria “ultrapassada, retrógrada e
reacionária”. Barthes afirmara que “é a linguagem que fala, não o autor”.227
Ainda segundo Barthes, “uma vez afastado o Autor, a pretensão de ‘decifrar’
um texto torna-se totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um
travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura”.228
No entanto, a hipótese de Poynor não se cristaliza; e o próprio teórico
admite isso. Conforme vimos, o design gráfico pós-modernista ansiava
desviar-se do caráter impessoal da profissão. Contrapondo-se à impessoalidade
de um modernismo racionalista, designers gráficos em desacordo com
esse ponto de vista utilitário passam a trabalhar de modo mais intuitivo e
expressivo: a clareza e a limpeza dos designs dão lugar à ambiguidade e ao

226. POYNOR. Abaixo as regras: design gráfico e pós-modernismo, p. 118.


227. BARTHES. O rumor da língua, p. 59.
228. BARTHES. O rumor da língua, p. 63.

198
ruído. As composições mais radicais (como as da tendência denominada
desconstrutivista) exploram um aparente caos visual para contrapor-se à
extrema economia de elementos do design gráfico modernista racionalista.
Esses designs subversivos derivam do conceito de colagem; a profusão de
imagens diversas gera projetos visualmente fragmentados e ambíguos.
Em termos conceituais, a subversão no campo do design gráfico funda-se
em teorias pós-estruturalistas de pensadores como Gilles Deleuze e Derrida:
na impossibilidade de um texto conter um sentido único e imutável, cuja
posse é do autor. Descarta-se a clarificação da mensagem em nome de uma
multiplicidade de leituras, geradas pela visão particular de cada leitor; o
intuito “é provocar o leitor a tornar-se um ativo participante na construção
da mensagem”.229 Elimina-se a objetividade, consagrada pelos modernistas
racionalistas, em nome da subjetividade.
Diary of an amateur photographer caracteriza-se por explorar essa
concepção de design gráfico. Em termos compositivos, as páginas do livro
contêm toda a subversão empreendida por designers gráficos pós-modernistas.
E mesmo que se reivindique uma autoria, é a linguagem que fala: as páginas
de Diary of an amateur photographer celebram a ambiguidade e geram leituras
fragmentadas. Portanto, contrariamente à especulação de Poynor sobre um
possível obsoletismo do conceito de design gráfico autoral, a autoria, nesse
contexto, não compreende o sentido de autoridade, de controle do significado.
O design gráfico já não é um mediador transparente de uma mensagem de
sentido único e imutável, cujo alicerce é a boa legibilidade. A clareza de
transmissão do teor é descartada, pois as leituras são pessoais e múltiplas.
Assim, a ideia de design gráfico autoral condiz com o pensamento de Barthes,
que elimina o autor: a autoria na esfera do design gráfico se conforma por
meio da dimensão performativa dos elementos visuais compositivos, não por
ter a pretensão de tornar o texto decifrável, provendo-o de um significado
último.

229. POYNOR. Typography now: the next wave, p. 26.

199
A hibridização texto/imagem
O termo “romance híbrido” (hybrid novel)230 foi adotado para designar
obras – tais como Diary of an amateur photographer – que exploram o
potencial gráfico/visual dos signos verbais e dos signos visuais, aliando-os
à narrativa.
Existe uma convicção quase generalizada de que as obras adequadas
à conjunção texto/imagem se restringem (ou devem se restringir) àquelas
destinadas ao público infantil. O corolário dessa crença: a literatura adulta
prescinde de experiências visuais. Jonathan Safran Foer, autor de romances
híbridos, alfineta:
É uma pena que as pessoas considerem o uso de imagens em um
romance como algo experimental ou corajoso. Ninguém diria que o
uso de letras em uma pintura é experimental ou corajoso. A literatura,
mais do que qualquer outra forma de arte, tem sido a mais protetora
de suas fronteiras – protetora demais.231

Embora a incompatibilidade da imagem com a literatura não seja uma


unanimidade, conceituados escritores são/foram rigorosos defensores das
fronteiras literárias. Gustave Flaubert se recusou a autorizar a publicação
de uma versão ilustrada de Madame Bovary. Após a morte de Flaubert,
a versão foi publicada em 1905 com ilustrações de Alfred de Richemont.
Essa publicação contrariava um princípio fundamental do escritor francês:
conforme afirma Reis, “a personagem fixada (termo de Flaubert) numa
ilustração [...] perde o potencial que possui”; uma figura ficcional modelada
verbalmente suscita “incontáveis leituras e diferentes imagens mentais”.232
“Gustave Flaubert sustentava que, numa obra de ficção, bastava, tanto ao

230. Segundo Christin Galster, “Hybrid novels [...] combine, transform, and subvert the
conventions of several narrative sub-genres; break down the boundaries between fiction,
poetry, and drama; import non-literary discourses and text types; and employ narrative
strategies that strive to imitate the organizing principles of painting, music, and film.”
(GALSTER apud HERMAN et al. Routledge Encyclopedia of Narrative Theory, p. 227).
231. Foer apud CASONATO. Report, p. 22.Tradução minha. No original: “It’s a shame that
people consider the use of images in a novel to be experimental or brave. No one would
say that the use of type in a painting is experimental or brave. Literature has been more
protective of its borders than any other art form - too protective”.
232. REIS. Pessoas de livro: estudos sobre personagens, p.32.

200
leitor quanto ao escritor, o poder do texto sugerir ou aludir”.233 Segundo esse
ponto de vista, a imagem provém do texto, mas não se materializa, não é
concreta – permanece em estado abstrato, imaginário e é sempre variável.
Não há em Diary of an amateur photographer imagem concreta que revele
aspectos físicos de Whittingham, por exemplo. Whittingham não exige um
corpo; o que realmente importa são aspectos psicológicos da personagem.
E esses aspectos não são modelados verbalmente por Rawle – não advêm
da fala do autor – mas resultam de um complexo mosaico narrativo verbo-
visual. Há um poder de sugestão equivalente àquele sustentado por Flaubert;
a diferença é que esse poder não provém exclusivamente da linguagem
verbal, mas de uma linguagem híbrida.
Além da controvérsia sobre o uso de imagens em obras literárias, há a
suposição234 de que a inclusão de experiências visuais num livro destinado
a um público adulto seja um artifício para esconder narrativas fracas, ou
literatura sem qualidade. Cabe salientar que nossa análise não pretende
realizar julgamento(s) de valor literário, mas pôr em perspectiva a linguagem
visual aliada à literatura. Há que se considerar também que romances híbridos
não podem ser comparados a romances convencionais; há uma substancial
diferença no que se refere à linguagem.
Outro ponto que convém esclarecer é que um romance híbrido não é um
livro ilustrado; texto e imagem não são meramente justapostos. Segundo a
classificação proposta por Leo Hoek235, relativa às relações texto/imagem, há
diversos níveis de interação, entre os quais, há o discurso multimidiático e o
discurso sincrético (intermidiático); o primeiro é gerado pela justaposição do
texto à imagem; o segundo, pela junção de ambos. O discurso multimidiático
admite uma separação física, de modo que haja autossuficiência de ambos;
o discurso intermidiático não possibilita essa separação – signos verbais e
signos visuais compõem um discurso único. A concepção de Diary of an
amateur photographer não foi dicotomizada: uma criação verbal seguida
da inclusão de imagens ilustrativas. Diary of an amateur photographer se
desenvolve num espaço entre a comunicação visual e a narrativa textual, de

233. GARCIA. O design gráfico do livro A marca e o logotipo brasileiros, p. 34.


234. Cf. CASONATO. Report, p. 17.
235. HOEK. Timbres-poste et intermédialité: sémiotique des rapports texte/image, p. 37.

201
modo indissociável: há uma dimensão performativa única, um amálgama.
Em sua acepção genética, o adjetivo híbrido refere-se ao organismo resultante
do cruzamento de espécies distintas – um único organismo –, pois não há
como dissociar uma espécie da outra.

A escrita em Diary of an amateur photographer


Em seu Ensaio sobre a origem das línguas, Jean-Jacques Rousseau afirma
que há três modos de escrever: o pictográfico – “a pintura dos objetos”, o
ideográfico, que se utiliza de uma convenção para “pintar os sons” (não
“pinta” objetos), e o fonográfico analítico (a escrita alfabética, puramente
fonográfica). Esses três modos de escrever corresponderiam a três estados
da sociedade: a pictografia seria adequada ao estado selvagem, a ideografia
corresponderia aos povos bárbaros, e a escrita alfabética seria a escrita dos
povos civilizados.236
Derrida, em Gramatologia, apresenta algumas contradições do
pensamento de Rousseau sobre as categorias de escrita e as respectivas
relações com os estágios da sociedade. Isso não impede que se faça um
exercício conjectural comparativo valendo-se das relações propostas por
Rousseau (independentemente das eventuais contradições indicadas por
Derrida). A escrita em Diary of an amateur photographer não se insere
plenamente em nenhum dos três modos de escrever enumerados pelo
pensador suíço. Entretanto, há um manifesto e robusto aspecto pictográfico
(a pintura dos objetos): as páginas contêm uma reprodução fiel do diário
de Whittingham, da acumulação de materiais diversos que o compõe. E
há também um componente fonográfico: o uso da escrita alfabética. Se
considerarmos esses evidentes aspectos, pictográfico e alfabético, a escrita
em Diary of an amateur photographer estaria situada num nível intermediário

236. ROUSSEAU. Ensaio sobre a origem das línguas, p. 111-112. Pode-se questionar o
motivo de se recorrer a um filósofo do século XVIII para tratar de uma obra contemporânea
como Diary of an amateur photographer. A hipotética correspondência entre os “modos
de escrever” e os “estados da sociedade”, defendida outrora por Rousseau, nos fornecem
elementos que possibilitam conectar, livre e criativamente, o conceito de “barbarismo”
(ao qual o título deste artigo faz referência) ao tipo de “escrita” presente em Diary of an
amateur photographer.

202
entre a pintura dos objetos e a escrita puramente fonográfica. Se a pintura dos
objetos corresponde ao estágio selvagem da sociedade, e a escrita puramente
fonográfica ao estágio mais avançado (civil), a escrita utilizada em Diary
of an amateur photographer corresponderia ao estágio intermediário, o de
barbárie.
Se bárbaros, para os antigos gregos e romanos, eram povos estrangeiros,
que falavam outra língua, a hipotética correspondência aqui proposta
estabelece um nexo sugestivo, visto que a escrita (bárbara) em Diary of an
amateur photographer é estranha à linguagem puramente literária.
A linguagem, para Rousseau, tem especificidades relativas às necessidades:
À medida que crescem as necessidades, que os negócios se complicam,
que as luzes se estendem, a linguagem muda de caráter, torna-se mais
apropriada e menos apaixonada, substitui as ideias aos sentimentos,
não fala mais ao coração mas à razão.237

Se a linguagem, por um lado, “torna-se mais exata, mais clara”, por


outro, fica “mais arrastada, mais surda e mais fria”238: quanto mais alto o
estágio civilizacional, menos apaixonada é a linguagem. Em decorrência,
segundo Derrida, supõe-se haver “uma boa e uma má escritura: boa e natural,
a inscrição divina no coração e na alma; perversa e artificiosa, a técnica,
exilada na exterioridade do corpo”.239
De um lado, a escritura representativa, decaída, segunda, instituída, a
escritura no sentido próprio e estreito, é condenada no Ensaio sobre a
origem das línguas [...]. A escritura, no sentido corrente é letra morta,
é portadora de morte. Ela asfixia a vida. De outro lado, sobre a outra
face do mesmo propósito, venera-se a escritura no sentido metafórico, a
escritura natural, divina e viva; ela iguala em dignidade a origem do valor,
a voz da consciência como lei divina, o coração, o sentimento etc..240

237. ROUSSEAU. Ensaio sobre a origem das línguas, p.111.


238. ROUSSEAU. Ensaio sobre a origem das línguas, p.111.
239. DERRIDA. Gramatologia, p. 21.
240. DERRIDA. Gramatologia, p. 20.

203
Embora a paixão para Rousseau, portanto, tenha uma dimensão
divina (que não nos cabe, aqui discutir), a proposição do filósofo encerra
a contraposição entre uma linguagem instrumental e uma linguagem
expressiva. E um dos principais atributos da escrita bárbara em Diary of
an amateur photographer é o caráter expressivo, vigoroso – performativo.
Não é absolutamente nossa intenção estabelecer um antagonismo (boa ou
má escrita), mas ressaltar que a escrita bárbara em Diary of an amateur
photographer decorre de uma necessidade de expandir o conceito de escrita
para além de um horizonte meramente instrumental.
Talvez o termo “bárbaro” possa, aqui, incorporar outra acepção, diferente
da mais corriqueira, de conotação negativa, que evoca incivilidade, rudeza.
Referimo-nos à antiga acepção coloquial brasileira: bárbaro como adjetivo
que revela qualidades positivas; ou uma interjeição que indica admiração,
aprovação ou entusiasmo. Exaltação criadora: a arte literária que extrapola
a ordinária função instrumental da escrita. Exaltação à escrita híbrida; à
possibilidade de aglutinar (não apenas justapor) texto e imagem na narrativa
literária.

Referências
ARAÚJO, E. A construção do livro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CASONATO, M. Report: [This is not] If on a winter’s night a traveler. 2012.
Disponível em: < http://the-publishing-lab.com/uploads/bookshelf/pdfs/
MartinaCasonato_PDF.pdf> Acesso em: 16 set. 2016.
CHARTIER, R. Do códice ao monitor: a trajetória do escrito. Estudos
Avançados, São Paulo, v. 8, n. 21, Ago. 1994.
CULLER, J. Sobre a desconstrução; teoria e crítica do pós-estruturalismo.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.
FALLACI, Oriana. Um homem. Rio de Janeiro: Record, 1979.
GARCIA, A. M. A literatura como design gráfico: a linguagem em cena. Belo
Horizonte: C/Arte, 2013.

204
GARCIA, A. M. O design gráfico do livro A marca e o logotipo brasileiros.
PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, Belo
Horizonte, v. 2, n. 3, mai. 2012, p. 120-136.
HERMAN, D. et al. Routledge Encyclopedia of Narrative Theory. New York:
Routledge, 2005.
HOEK, L. H. Timbres-poste et intermédialité: sémiotique des rapports texte/
image. Protée, v. 30, n. 2, 2002, p. 33-44.
KRÜGER, M. J. T. Comentários à arte edificatória de Leon Battista Alberti.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 2014.
POYNOR, R. Abaixo as regras: design gráfico e pós-modernismo. Porto
Alegre: Bookman, 2010.
POYNOR, R. Typography now: the next wave. New York: Hearst Books
International, 1992.
REIS, C. Pessoas de livro: estudos sobre personagens. Coimbra: Universidade
de Coimbra, 2016.
ROUSSEAU, J. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Unicamp, 2010.
WARDE, B. A taça de cristal ou a impressão deve ser invisível. In: BEIRUT,
M. (org.) et al. Textos clássicos do design gráfico. São Paulo: WMF; Martins
Fontes, 2010. p. 58-61.

205
206
“TUDO, NO MUNDO, EXISTE PARA
CHEGAR A UM LIVRO” OU DIÁLOGOS
E CRUZAMENTOS ENTRE OBRAS
ENCICLOPÉDICAS

Maria do Carmo de Freitas Veneroso


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Privilegiando as interartes e tendo como principal referência as relações


entre palavras e imagens, neste texto são estabelecidas aproximações entre
obras artísticas que podem ser consideradas enciclopédicas e enciclopédias
acadêmicas. São enfocados os seguintes trabalhos: o filme Encyclopaedia
Britannica (1971), de John Latham, a série de fotolitografias Paisagens, coisas,
bichos e um mergulhador (1995), de Mário Azevedo, os livros de artista Il
faut ce qu’il faut (1964), de André Balthazar e René Bertholo, e The world
explained (2012), de Erick Beltrán,241 em diálogo com a Encyclopédie de
Diderot e d’Alembert,242 a Enciclopédia Britânica e a Wikipedia.
Sabe-se que “as enciclopédias e suas categorias podem ser consideradas
expressões ou incorporações de uma visão sobre o conhecimento e, de fato,
uma visão do mundo (afinal, a partir da Idade Média, o mundo foi muitas

241. Esse livro pertence à Coleção Especial de Livros de Artista da Biblioteca


Universitária da UFMG.
242. Obra considerada rara, pertencente à Coleção de Obras Raras e Especiais da
Biblioteca Universitária da UFMG.

207
vezes imaginado como um livro)”.243 Para Campanella, o próprio universo é
um livro e “o mundo é o livro onde o juízo eterno escreve os seus conceitos”.
Já Galileu utiliza a metáfora do “livro da natureza” escrito em linguagem
matemática. 244
O desejo enciclopédico de apreender todo o conhecimento do mundo
pode ser aproximado da ambição, não alcançada, de Stéphane Mallarmé, de
realizar um livro absoluto. O poeta acreditava “que tudo, no mundo, existe
para chegar a um livro”. 245 Essa afirmação pode ser abordada de diferentes
maneiras: o livro, como “uma forma de fixar o efêmero, de agarrar o tempo,
de não desperdiçar nada da vida, um modo de legitimação e sobrevivência”;
no sentido cabalístico ou místico, o livro pode conter o mundo, “a chave de
acesso ao seu segredo – o livro da sabedoria onde a verdade estaria revelada”;
ou ainda, no sentido hegeliano, “de que tudo quer ser dito, trazido à linguagem,
ao livro que compreenda a racionalidade do real e a realidade do racional”.246
Seria, portanto, o desejo enciclopédico, um desejo de abarcar o universo,
em um livro, ou livros? Porém, esse desejo de conter todo o conhecimento
traz em si a própria impossibilidade de fazê-lo, já que o conhecimento está
em constante reconstrução. Neste texto, são apresentadas diferentes obras
enciclopédicas. Enquanto algumas delas foram criadas com o intuito de
conter todo o conhecimento, outras questionam essa possibilidade.
Para discutir esse assunto, em uma abordagem histórico-cultural, são
privilegiadas as relações entre palavras e imagens, estabelecendo diálogos
com os autores Peter Burke e Paulo Pires do Vale.

Conhecimento enciclopédico, conhecimento universal?


Como se sabe, o conhecimento especializado foi muitas vezes contrastado
com o conhecimento geral ou mesmo universal. Na Itália no século XV, o
“ideal do ‘homem universal’ era levado a sério em certos círculos [...], e disso
é testemunho a Vida civil, de Matteo Palmieri, segundo a qual ‘um homem

243. BURKE. Uma história social do conhecimento, p. 89.


244. Citados por PIRES DO VALE. Tarefas infinitas, p. 201.
245. MALLARMÉ. O livro, instrumento espiritual, s/p (encarte).
246. PIRES DO VALE. Tarefas infinitas, p. 201.

208
é capaz de aprender muitas coisas e tornar-se universal (farsi universale)
em muitas artes’.”247
O período moderno, geralmente aceito como os séculos de
Gutenberg (século XV) a Diderot (século XVIII), assistiu a uma explosão
do conhecimento, que se seguiu à invenção da imprensa, aos grandes
descobrimentos e à chamada “revolução científica”, que culminou com a
publicação da Encyclopédie de Diderot e d’Alembert. O desejo enciclopédico
de conter todo o conhecimento, sendo anterior a Diderot e d’Alembert, na
sua Encyclopédie, encontra uma efetivação. Nessa obra, há um desejo de
ordem, imperativo, que dá origem a volumes nos quais as páginas buscam
condensar todo o conhecimento do mundo, de modo ordenado. 248
Também na obra Il faut ce qu’il faut249 (1964-1965), de René Bertholo,
em parceria com André Balthazar, percebe-se “esse desejo de que tudo se
pode aproximar da página: objetos do cotidiano e citações visuais, telefones
e chapéus, símbolos e máquinas”. Porém, diferentemente da Encyclopédie,
“tudo parece em queda ou suspenso. Incontrolável ou desordenado”.250
Trata-se de um livro de artista não paginado (35 p.), impresso em
serigrafia por René Bertholo, com texto de André Balthazar, em uma edição
de 30 exemplares, numerados e assinados pelos autores, a lápis, na página
do colofão. O livro traz uma capa de papel, com impressão frente e verso em
serigrafia a cores, envolta em uma capa dura acondicionada em um estojo,
ambos revestidos em tecido verde.
O desenho utilizado nas imagens é esquemático, lembrando a linguagem
dos quadrinhos, e, em algumas páginas, há a utilização efetiva de requadros,
que delimitam as imagens, enquanto que, em outras páginas, as imagens
parecem flutuar em um espaço praticamente sem gravidade. A frase “por
trás da sua máscara de paciência, a eternidade acaricia as coisas efêmeras”
atravessa e associa duas páginas do livro, que são preenchidas por desenhos
que se referem, alguns deles ainda que vagamente, a figuras humanas. Ali,

247. BURKE. Uma história social do conhecimento, p. 81.


248. PIRES DO VALE. Tarefas infinitas, p. 202.
249. “É preciso o que for preciso.” Todas as traduções são minhas, salvo indicação em
contrário.
250. PIRES DO VALE. Tarefas infinitas, p. 202.

209
o texto e a imagem parecem desconectados, mas a presença de ambos
nos leva a buscar associações. A palavra “eternidade” está relacionada às
“coisas efêmeras”. Porém, o que é eterno não é justamente aquilo que não é,
a princípio, efêmero? Estaria essa efemeridade ligada ao ser humano, à sua
permanência efêmera na terra?
Em outra página, dupla, a frase “que nos pieds sont bas!” está posicionada
junto a imagens de corações, uma figura feminina alada, de cuja boca sai um
balão, dentro do qual há uma espécie de fumaça escura, que aparece também
na chaminé de uma fábrica, tudo isso cercado de parafusos, engrenagens,
uma luminária. A frase é dúbia. Diante de imagens que estão dispostas de
modo aparentemente aleatório no espaço da página, a menção aos “pés” nos
sugere uma direção “para baixo”, ou seja, de que há uma base para aqueles
objetos flutuantes (ou de que há um chão no qual aqueles objetos flutuantes
podem, eventualmente, apoiar-se).
Essa obra pode ser aproximada da instigante série de fotolitografias251
Paisagens, coisas, bichos e um mergulhador (FIG.1, 2 3) de Mário Azevedo.252
Trata-se de um projeto desenvolvido em 1995 e exposto em 1998, realizado pela
proposta de recombinar um grupo predeterminado de imagens pré-existentes,
apropriadas e selecionadas pelo artista, em um processo de releitura, por
meio do qual foi construída, a partir dessas “colagens de elementos”, uma
série de mais de sessenta cópias únicas, de 50 x 35 cm em média, impressas
em fotolitografia e aquareladas à mão,253 que dialogam entre si: “desde o início
do projeto, determinei que trabalharia com cópias únicas, dispensando o
rigor das tiragens clássicas e me entregando ao delicioso sabor do fazer, da
prática da impressão livre”254.

251. Fotolitografia é uma técnica de impressão fotográfica na qual é utilizada a chapa de


off-set, e as cópias podem ser impressas utilizando-se uma prensa manual.
252. A série foi desenvolvida durante o período em que ministrei a disciplina de pós-gra-
duação sobre gravura em 1995, no PPGArtes da EBA/UFMG.
253. Algumas cópias receberam, ainda, colagens e monotipias.
254. AZEVEDO, Paisagens, coisas, bichos e um mergulhador. Nessa análise da série
Paisagens, coisas, bichos e um mergulhador , de Mário Azevedo, optei por dialogar com
o autor, por meio do seu texto, que descreve o processo de criação utilizado na elaboração
da série. O texto de Azevedo foi apresentado no Seminário a respeito da gravura, coor-
denado pela professora Edna Moura, na Escola Guignard da Universidade do Estado de
Minas Gerais, em 1998.

210
Figuras 1, 2, 3: Mário Azevedo, da série Paisagens, coisas, bichos e um
mergulhador, fotolitografias aquareladas a mão, 1995.

211
Fonte: Fotografia de Mário Azevedo. Coleção do artista.

Azevedo explica que o projeto foi concebido com base em uma seleção
de recortes guardados e de cartões-postais da sua coleção particular (montada
em viagens, visitas a museus e exposições, além de alguns itens enviados
por amigos e correspondentes. O artista confessa: “Escolhi, afetiva e meio-
aleatoriamente, um grupo de reproduções para reproduzir, para conformar
novas imagens, em uma espécie de releitura: são trabalhos de outros artistas,
obras anônimas, estampas de embalagens e ilustrações de livros didáticos”,255
gerando um trabalho de bricolagem.
A série se baseia em combinações que partem de doze matrizes como
peças básicas, para as quais foram elaborados três grupos de quatro imagens,
divididos em gêneros: paisagens, coisas, animais. O repertório de imagens
utilizadas vai desde um desenho de paisagem de Vincent Van Gogh, uma
pintura de Jean Dubuffet, e o detalhe de um afresco romano de 500 a.C.
representando um mergulhador, até instruções encontradas em uma caixa/
embalagem de papelão. Assim, apropriando-se de uma série de imagens de
épocas e contextos diversos, Azevedo cria sua própria ”enciclopédia visual”,
inspirado nesse universo de referências pessoais.

255. AZEVEDO, Paisagens, coisas, bichos e um mergulhador.

212
A ideia da enciclopédia como a busca de um conhecimento universal
encontra-se presente não só na Encyclopédie de Diderot e d’Alembert, mas
também em outras publicações que se seguiram, como a Enciclopédia
Britânica, publicada inicialmente entre 1768 e 1771, em Edimburgo, Reino
Unido, e que logo alcançou grande popularidade, tendo sido ampliada,
com a sua terceira edição (1801), alcançando vinte volumes. Isso levou à
contratação de colaboradores, e as suas 9ª (1875–1889) e 11ª edições (1911) são
consideradas como marcos entre as enciclopédias acadêmicas e de estilo
literário. A partir da 11ª edição, a Britannica buscou tornar seus artigos
mais acessíveis, diminuindo-os e simplificando-os, gradualmente. Em 1933,
a Britannica tornou-se a primeira enciclopédia a adotar a política «em
contínua revisão», significando que ela seria continuamente reimpressa, e
cada verbete seria atualizado regularmente.
A 15ª edição introduz inovações, com uma única estrutura dividida em
três partes: a Micropædia, com doze volumes, contém pequenos verbetes,
a Macropædia, com dezessete volumes, traz longos artigos, e a Propædia,
num só volume, pretende fornecer um esboço do conhecimento humano,
de modo hierárquico, remetendo, dessa maneira, à Encyclopédie, que parte
da ideia da árvore do conhecimento e seus ramos. A Micropædia é destinada
à pesquisa rápida, além de ser um guia para a Macropædia; os leitores são
aconselhados a estudar o esboço da Propædia a fim de entender o contexto
do assunto e para encontrar outros artigos, mais detalhados.256 Atualmente,
a Encyclopaedia Britannica não publica mais versões em papel focando-se
apenas na sua versão on-line.
Enquanto obras como a Enciclopédia Britânica se baseiam no desejo
de condensar todo o conhecimento do mundo de modo ordenado, numa
forma de a ordem existir não apenas no livro, mas no próprio mundo,
a possibilidade de termos acesso a todo o conhecimento é questionada
em obras como o filme Encyclopaedia Britannica (1971), de John Latham.
Apropriando-se da Enciclopédia Britânica original, no filme, o artista
apresenta, em poucos minutos, todo o conhecimento contido nas páginas

256. Sobre a Encyclopaedia Britannica cf. KOGAN. The Great EB: The Story of the
Encyclopaedia Britannica.

213
da gigantesca Encyclopaedia Britannica, porém de forma inapreensível para
o leitor.
Trata-se de um filme mudo, que começa com uma imagem da capa
externa aberta de uma cópia da Enciclopédia Britânica. Nesse filme, cada
quadro corresponde a uma página da Encyclopaedia Britannica, filmado em
uma velocidade de 17 quadros por segundo, reduzindo o texto a um borrão
ilegível, ou seja, até que a soma do conhecimento humano que a Enciclopédia
representa, seja tornada ilegível. À medida que o filme continua, a imagem se
torna progressivamente superexposta, dificultando ainda mais sua leitura.257
Latham tornou o texto da enciclopédia – e, portanto, o conhecimento
contido em suas páginas – totalmente ininteligível, ao mesmo tempo que
apresentava esse conhecimento de forma visual.
Em 1993, surge a enciclopédia digital multimedia Microsoft Encarta,
que começa a tomar o lugar antes ocupado pelas enciclopédias impressas.
A partir de 2003, passou a ser apresentada em DVD e, em 2005, a Microsoft
anunciou que seu conteúdo se tornaria editável pelos usuários que pagassem
uma pequena quantia, mensalmente. A Microsoft criou versões similares em
vários idiomas, e versões locais poderiam trazer conteúdo licenciado de fontes
nacionais, podendo conter mais ou menos conteúdo que a versão completa
em inglês trazia. A edição completa em inglês (Encarta Premium) de 2005
contém mais de 68.000 artigos e grande quantidade de imagens, vídeos e
ferramentas. Muitos artigos podiam ser vistos on-line gratuitamente por um
serviço mantido por patrocínio. Foi lançado também um usuário de MSN
messenger para responder a questões instantaneamente – o Encarta Instant
Answers, criado para estar on-line a qualquer tempo e responder a dúvidas
em inglês, após ser adicionado pelo encarta@botmetro.net. As edições da
Encarta foram interrompidas em 2009, depois de ter aberto o caminho para
outras enciclopédias on-line.
Atualmente é relevante o papel desempenhado pela Wikipedia, uma
enciclopédia que se encontra em revisão ou reconstrução constante e que,
por esse motivo, adequa-se mais àquilo que se espera de uma enciclopédia,
ainda que não seja considerada totalmente confiável. Peter Burke explica que

257. Cf. http://www.tate.org.uk/art/artworks/latham-encyclopedia-britannica-t13844.

214
A democratização do conhecimento também atingiu as enciclopédias,
notadamente a Wikipédia on-line, criada por Jimmy Wales em 2001. O
projeto original para o que se chamaria “Nupédia” era mais tradicional,
com editores designando assuntos para determinados colaboradores.
Mas os planos mudaram, e ‘qualquer um pode editar qualquer página
em qualquer momento’, alteração que está ligada ao espírito de
compartilhamento e abertura da ‘cultura computacional’ do MIT e de
outras universidades.258

The World Explained (2012)259 é um projeto artístico de Erick Beltrán,


que pode ser aproximado da Wikipedia, por se apropriar do conhecimento
gerado por meio de entrevistas realizadas com pessoas não especializadas
nos assuntos abordados, reunindo diversas teorias pessoais sobre vários
assuntos. O trabalho é composto de três projetos expositivos realizados
em São Paulo, Barcelona e Amsterdã, onde Beltrán entrevistou um grande
número de pessoas, com uma lista de aproximadamente oitocentas perguntas,
cobrindo áreas muito diversas como biogenética, economia, física, história
e política. Entre as questões elaboradas, encontram-se: Quem foram os
primeiros cientistas? O que é um androide? Como o plâncton se move? Como
funciona um para-raios? Outras perguntas, mais subjetivas, exigiam menos
conhecimento especializado, não podendo ser respondidas de maneira
direta, por serem questões para as quais todas as respostas são igualmente
válidas e verdadeiras, como: O que determina nossas preferências? Quando
falamos de liberdade? O que é um sentimento?260
O projeto The World Explained desenvolve-se em três etapas: a primeira
consiste em entrevistar e coletar “testemunhos e observações”; a segunda
se ocupa em categorizar esses materiais e editá-los em entradas de uma
enciclopédia, ilustrada e impressa, e a fase final do projeto realiza a análise das
diferentes entradas, buscando detectar conexões ou paralelos entre elas, para
descobrir os padrões culturais a elas subjacentes. Beltrán explica, no manual
de introdução do projeto, que o objetivo dessa busca antropológica não é

258. BURKE. Uma história social do conhecimento II, p. 341.


259. Disponível em: https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/2015/08/09/
the-world-explained/
260. Cf. https://www.afterall.org/online/the-world-explained#.WuHXudPwaRs

215
tanto encontrar as respostas corretas, ou verdades absolutas, mas convidar
as pessoas a revelar suas “teorias pessoais” com as quais explicam o mundo
circundante. Segundo o artista, para dar sentido ao contexto em que vivemos,
navegamos em três diferentes áreas do conhecimento: o conhecimento
aprendido, a experiência e o desconhecido.
As teorias pessoais surgem quando, confrontados com uma situação
que não podemos explicar imediatamente, começamos a fazer nossas
próprias conexões. Vinculamos vários pontos de referência para
satisfazer nossa necessidade de que as coisas façam sentido [...] As
pessoas não revelam suas teorias pessoais com facilidade, mas podem
ser provocadas ao fazer uma série de perguntas que abrem um campo
de tensões.261

Beltrán buscou inspiração na micro-história, um gênero na história


cultural que se concentra em histórias pessoais e eventos aparentemente
menores, desenhando uma imagem de uma cultura ou mentalidade de
um período específico e explicando que “nossa visão do mundo está
determinada não apenas pelo que aprendemos sobre o mundo ou mesmo
o que experimentamos [...] Consiste em uma grande extensão de suspeitas,
conexões improvisadas e interpretações pessoais.”262
Usando diagramas, nós epistêmicos e visualizações do pensamento em
linhas de pensamento e movimentos que se cruzam, Beltrán desenvolve sua
teoria, que não busca apenas explicar a produção do conhecimento cotidiano,
mas também como as interpretações pessoais compõem as esferas sociais e
os sistemas de crenças de um grupo social, para estabelecer a importância
de um “conhecimento não especializado”, abrangendo elementos do acaso
e da imprevisibilidade.
The World Explained desenvolveu-se e cresceu ao longo do tempo. Depois
de realizar as edições da enciclopédia em São Paulo (2008) e em Barcelona
(2009), em dezembro de 2011 os primeiros resultados do volume de Amsterdã

261. Erick Beltrán, do manual para The World Explained: Microhistorical Encyclopaedia,


p. 2-7 apud VESTERS. The World Explained.
262. Beltrán apud VESTERS. The World Explained.

216
foram apresentados ao público no Tropenmuseum, um dos principais museus
etnográficos da Europa. Embora tenha adotado uma metodologia semelhante
à pesquisa de campo antropológica tradicional em The World Explained, não
se trata de uma antropologia estrito senso, mas uma antropologia artística,
sujeita às suas próprias regras e capaz de gerar interpretações mais livres. Ou
seja, por meio de seu trabalho, Betltrán desconstrói o olhar antropológico,
adotando uma postura que mistura realidade e imaginação.
No Tropenmuseum, a exposição teve a forma de um centro de informações
e oficina de impressão ao vivo. Na parede do fundo, uma sequência de
diagramas, gráficos informativos e textos ilustrava a teoria de Beltrán sobre o
conhecimento não especializado e os sucessivos passos dados para produzir
o volume de Amsterdã, da enciclopédia. Dessa forma, os diagramas e gráficos
de informação mostravam as atividades eram desenvolvidas no espaço da
exposição, em processo: de um lado, em um escritório, a equipe continuava
suas entrevistas, enquanto o outro lado era usado como sala de impressão.
Havia também sobras de materiais de embalagem, como testemunhas do
desenvolvimento contínuo da produção. Para Beltrán, essa produção ao
vivo e no local de um corpo de conhecimento – para o qual todos podem
contribuir – compõe a essência de O Mundo Explicado.
O projeto de Erik Beltrán resultou na publicação, The World Explained,
que, como seu subtítulo indica, pode ser lida como um “ÍNDICE DE
ENTENDIMENTO ATUAL DO MUNDO”. Apesar de o artista ter utilizado
um formato tradicional de pesquisa, no modo como a informação é coletada
e disseminada, a enciclopédia produzida por ele e sua equipe não pretende
criar um cânone oficial de dados objetivos ou conhecimento absoluto. Como
ele próprio explica, na capa da publicação, trata-se de uma “ENCICLOPÉDIA
MICROHISTORICA CONTENDO: Uma coleção de DESCRIÇÕES
PRECISAS, com detalhadas imagens e diagramas do MUNDO em todas
as suas FACETAS. tudo baseado em Uma visão NÃO ESPECIALIZADA em
cada área do CONHECIMENTO HUMANO. Esse arquivo UNIVERSAL
é uma COMPILAÇÃO de Testemunhos e Observações, obtidas por meio
de questões sobre interesses gerais a Respeito de DESENVOLVIMENTOS
social, COMERCIAL, MORAL E POLÍTICO”. E ainda: “Na sua Totalidade

217
a Publicação pode ser Lida como um Índice da Atual Compreensão do
Mundo pelas Pessoas”.
Nessa tradução, optou-se por apresentar as palavras na forma como
aparecem na capa da publicação, ou seja, preservando suas maiúsculas
e minúsculas, pois entende-se que essa grafia utilizada também nos diz
do conteúdo do texto. Assim, o encadeamento das palavras escritas em
letras maiúsculas: ENCICLOPÉDIA MICROHISTORICA / CONTENDO /
DESCRIÇÕES PRECISAS / MUNDO / FACETAS / NÃO ESPECIALIZADA
/ CONHECIMENTO HUMANO / UNIVERSAL / COMPILAÇÃO /
DESENVOLVIMENTOS / COMERCIAL / MORAL E POLÍTICO nos
fornece uma chave de leitura para a obra O Mundo Explicado, ao trazer
esses termos em destaque, em detrimento dos outros, como a nos indicar os
pontos mais relevantes do trabalho. São como palavras chave que abrem para
o leitor o sentido da obra. Assim, ao mesmo tempo que o artista fala de uma
“enciclopédia micro-histórica contendo descrições precisas”, ele menciona o
fato de tratar-se de uma obra “não especializada do conhecimento humano
universal”, em uma proposta aparentemente contraditória. Porém, quem
poderia falar com mais propriedade do “conhecimento humano universal”,
a não ser o próprio ser humano?
Algumas palavras são escritas com a inicial maiúscula: Testemunhos
/ Observações / Totalidade / Publicação / Índice / Atual / Compreensão /
Mundo / Pessoas. Isso parece indicar que haveria uma segunda camada de
significação no texto, indicando, possivelmente, os objetivos pretendidos.
Os textos da enciclopédia se baseiam em teorias pessoais e são
categorizados em uma série de tópicos que remetem a uma associação
livre de ideias como: “Futuro / Máquina / Perfeição”, “Cérebro / Banco de
Dados / Antepassado” ou “Fase / Afinidade / Sombras”.
Um outro dado interessante é que o design da enciclopédia baseia-se
na Cyclopaedia de Ephraim Chambers, ou, Universal Dictionary of Arts and
Sciences (1728), geralmente considerada a primeira enciclopédia inglesa,
que teria servido de inspiração primária para a Encyclopédie, remetendo,
pois, à tradição das enciclopédias canônicas, apesar de O Mundo Explicado
questioná-las.

218
Peter Burke avança na discussão sobre as enciclopédias, ao destacar
outros pontos, como o papel do processo de refugo daquilo que anteriormente
era tido como conhecimento, sobre o qual as bibliotecas e as enciclopédias
oferecem muitos exemplos. Sabe-se que, “no século XVIII, começou a surgir
a ideia de destruir livros não porque fossem heréticos ou subversivos, mas
porque eram considerados inúteis”. 263
Burke lembra que os bibliotecários têm-se preocupado com a quantidade
de novos títulos lançados no mercado, que agrava o problema de espaço
para as novas aquisições. Uma opção seria ‘dar baixa’ nos livros, ou seja,
desfazer-se deles. Ou banir os livros que são considerados menos úteis para
porões ou depósitos “fora do local”, para uma espécie de “limbo intelectual”,
visto tornarem-se inacessíveis ao público. “Um estudo de livros rejeitados
por essas vias por alguma grande biblioteca ao longo dos séculos poderia
ser muito revelador, mostrando a mudança das prioridades. Seria possível
estudar a longevidade das ideias pela ‘vida de prateleira’ dos livros em que
estão expressas”, como lembra Burke.264 Isso leva a crer que
tão revelador quanto um estudo das bibliotecas e de execução muito
mais fácil seria o exame semelhante dos conhecimentos descartados
das enciclopédias. Conforme aumenta o conhecimento, aumentam
as enciclopédias. Mesmo assim, basta comprar várias edições da
mesma enciclopédia para constatar a frequência com que os editores e
compiladores, pelo menos desde a segunda metade do século XVIII, têm
rejeitado uma grande quantidade de materiais anteriores, no momento
de atualizar a obra.265

Apesar disso, nota-se que esses tipos de reelaboração nem sempre


são feitas. “Um estudo dos verbetes sobre ciências naturais publicados em
enciclopédias britânicas nos séculos XVIII e XIX mostrou a sobrevivência de
muitas informações que os cientistas já consideravam incorretas”. No entanto,
reformulações sobre esse tópico só foram introduzidas na nona edição da
Enciclopédia britânica, em 1875, e, a partir desse ano, a quantidade de material

263. BURKE. Uma história social do conhecimento II, p. 190.


264. BURKE. Uma história social do conhecimento II, p. 190.
265. BURKE. Uma história social do conhecimento II, p. 190.

219
descartado nas principais enciclopédias vem aumentando rapidamente.
Apesar de haver razões práticas para algumas omissões, pode-se suspeitar
que a filosofia por trás delas costuma ser, muitas vezes, uma crença mais
ou menos ingênua no progresso, como se as ideias mais recentes fossem
sempre as melhores. É por isso que, para certas finalidades, pelo menos
em ciências humanas, os estudiosos muitas vezes preferem a undécima
edição da Enciclopédia britânica, publicada em 1911, às posteriores.266

Mesmo as enciclopédias digitais descartam material, apesar de


relativamente isentas de problemas de armazenagem – daí as propostas
de uma Wikimorgue ou de uma Deletopédia, em que os verbetes rejeitados
continuariam acessíveis, um equivalente digital das velhas edições da
Brockhaus ou da Enciclopédia britânica.267.
O que pode se concluir disso é que o que é descartado pelas enciclopédias
também nos diz alguma coisa sobre o conhecimento de cada época, e o
próprio fato de descartar informações e dados tem significados que nos
ajudam a compreender o que era ou não valorizado em determinado período.
Como afirma Burke
para os historiadores culturais, por outro lado, ignorar as ideias dos
vencidos é, como diz a velha expressão idiomática, jogar fora o bebê
com a água do banho. Assim, seria aconselhável que os historiadores
seguissem o filósofo inglês Bertrand Russel, cujo Esboço de tolices
intelectuais data de 1943, desde que abordassem o tema de maneira mais
relativista e distanciada do que esse ‘hilariante catálogo da estupidez
individual e organizada’, descrevendo e explicando os movimentos, em
vez de justificá-los para depreciar os conhecimentos mais antigos.268

Com base nesse estudo, conclui-se que tanto enciclopédias canônicas,


que buscam trazer com toda a objetividade e clareza o conhecimento de uma
época, quanto obras como The World Explained, que utiliza uma metodologia
não oficial para obter informações, e até mesmo o refugo das enciclopédias,

266. BURKE. Uma história social do conhecimento II, p. 190-191.


267. BURKE. Uma história social do conhecimento II, p. 191.
268. BURKE. Uma história social do conhecimento II, p. 192.

220
fornecem-nos dados importantes sobre a sociedade. Todas essas diferentes
propostas tentam, em última análise, “explicar o mundo”.

Referências
AZEVEDO, Mário. Paisagens, coisas, bichos e um mergulhador. Texto
apresentado no Seminário sobre gravura, coordenado pela professora Edna
Moura, na Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais, 1998.
BALTHAZAR, André (texto); BERTHOLO, René (serigrafias). Il fault ce
qu’il faut. Paris: edição dos autores, 1964 (livro de artista).
BELTRAN, Erick. The World Explained: A Microhistorical Encyclopaedia.
Amsterdam: Roma Publications/Tropen Museum, 2012.
BLOM, Philipp. Enlightening the World: Encyclopédie, the Book That Changed
the Course of History. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento. De Gutenberg a Diderot.
Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento II. Da Enciclopédia à
Wikipédia. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
CADÔR, Amir Brito. Enciclopedismo em livros de artista: um manual
de construção da Enciclopédia Visual. 2012. 193 p. Tese (Doutorado).
Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes da UFMG,
Belo Horizonte, 2012.
Coleção Livro de Artista da Universidade Federal de Minas Gerais.Disponível
em: https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/. Acesso em: 24 abr. 2018.
DIDEROT, Denis; ALEMBERT, Jean Le Rond d’. Encyclopédie, ou, Dictionnaire
raisonné des sciences, des arts et des métiers: par une société de gens de lettres.
Troisième édition. A Genève: Chez Jean-Léonard Pellet…; A Neufchatel:
Chez la Société Typographique, 1778-1779.
KOGAN, Herman. The Great EB: The Story of the Encyclopaedia Britannica.
Chicago: The University of Chicago Press, 1958.
LATHAM, John. Encyclopaedia Britannica. Filme, 16 mm, projeção, p&b,
6 min, 10 seg, 1971.

221
MALLARMÉ, Stéphane. O livro, instrumento espiritual. (Trad. Tomás Maia).
In: PIRES DO VALE, Paulo. Tarefas infinitas. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2012, encarte.
PIRES DO VALE, Paulo. Tarefas infinitas: quando a arte e o livro se ilimitam.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Caligrafias e Escrituras: diálogo
e intertexto no processo escritural nas artes no século XX. Belo Horizonte:
C/Arte, 2012.
VESTERS, Christel. The World Explained. Disponível em: https://www.afterall.
org/online/the-world-explained#.WuHXudPwaRs. Acesso em: 24 abr. 2018.
WILSON, Andrew. Summary. John Lathan. Encyclopaedia Britannica, 1971.
Disponível em: http://www.tate.org.uk/art/artworks/latham-encyclopedia-
britannica-t13844. Acesso em: 24 abr. 2018.

222
A TRAJETÓRIA POÉTICA DE MÁRCIO
SAMPAIO

Marília Andrés Ribeiro


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Este texto promove uma discussão sobre a relação intermidiática entre


a poesia e as artes visuais na trajetória poética de Márcio Sampaio, artista,
poeta, crítico e curador.269 Farei uma breve introdução para situar o artista
no seu contexto histórico e apresentarei, algumas obras que, ao longo de sua
trajetória poética, estabelecem um diálogo entre as artes visuais, a poesia
e a performance.
Natural de Santa Maria do Itabira, terra de Carlos Drummond de
Andrade, Sampaio conviveu com o ambiente artístico de sua cidade na
juventude e, desde os anos de 1960, desempenha um papel importante no
contexto artístico de Minas Gerais.
Márcio Sampaio inicia sua atuação artística em Belo Horizonte, em
1963, como líder do grupo de jovens poetas da revista Ptyx, formado por
João Paulo Gonçalves, Maria do Carmo Vivacqua Martins (Madu), Myriam
e Misabel de Abreu Machado, Dirceu Xavier e Paulo Alvarenga Junqueira.
Em depoimento, Sampaio revela como foi a articulação do grupo e a
descoberta de Ptyx:

269. Ver Cronologia e Fotobiografia de Márcio Sampaio em SAMPAIO. Declaração de


bens, p.238-259.

223
Éramos jovens e nos encontrávamos no Colégio Aplicação e nos
reuníamos aos sábados. Estudávamos cinema, arte, literatura e francês.
Descobrimos Proust, Mallarmé e Verlaine, e articulávamos ideias de
literatura e arte a partir do estudo sistemático de Carlos Drummond
de Andrade. Colaborávamos com o Suplemento Dominical do Estado
de Minas e, durante nossas conversas, resolvemos publicar a Revista.
Drummond tinha lançado o livro Lição das coisas, e o final do poema
“Ou isso ou aquilo” terminava com a palavra Ptyx. Drummond deu a
chave do poema e nós nos apropriamos dessa palavra, que não significava
nada e era apenas um ruído. Na verdade, Ptyx é uma palavra grega
que se refere ao barulho do mar dentro da concha. Ouvíamos coisas
fantásticas dentro das conchas.270

Márcio Sampaio participa, em 1963, da Semana Nacional de Poesia de


Vanguarda, realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
integrando o grupo de jovens poetas mineiros que mostrou poemas-cartazes
no saguão da Reitoria. A Semana foi o marco inaugural de atuação de uma
nova vanguarda artística em Belo Horizonte, reunindo intelectuais, críticos,
poetas e artistas em prol de uma nova atitude artística, pautada pelo ideário
concretista, direcionado para o nacionalismo crítico e o engajamento político.
Idealizada pelo crítico Olívio Tavares de Araújo e coordenada pelo
poeta e ensaísta Affonso Ávila, a Semana contou com o apoio do reitor
Orlando de Carvalho e com a participação de significativos representantes da
intelectualidade brasileira: Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari,
Benedito Nunes, Roberto Pontual, Fabio Lucas e Frederico Morais. Contou
ainda com a presença dos poetas Henry Correa de Araújo, Wlademir Dias-
Pino, Affonso Romano de Sant’Anna, Laís Correa de Araújo, Osmar Dillon,
entre outros.
A mostra de poemas-cartazes almejava a comunicação visual imediata
com o público, revelando o caráter político-revolucionário do evento que
enfatizava a importância da educação do olhar pela opção política do artista

270. Entrevista de Márcio Sampaio à autora. Belo Horizonte, 8 setembro de 1992. RIBEIRO.
Neovanguardas, p. 180.

224
militante, aquele que deveria usar a linguagem poética criativa para desvelar
a realidade, induzindo o leitor a tomar consciência de sua existência social.
Em abril de 1964, Sampaio lança o livro de poesias Rubro apocalíptico,
que teve grande repercussão por seu engajamento poético e político diante da
perplexidade instaurada no meio intelectual brasileiro pelo golpe militar. Em
1965, publica o segundo livro de poesias, O ciclo de barro, um longo poema
em 10 capítulos, em que soube resolver a proposta poética concreta militante,
integrando a comunicação “verbivocovisual” à mensagem existencial e
política.
Sampaio participa da criação do Suplemento Literário de Minas Gerais,
coordenando a seção de Artes Plásticas, na qual se afirmou como crítico
militante, porta-voz do ideário das novas vanguardas artísticas e incentivador
dos trabalhos dos artistas mineiros. Nesse espaço, publica sua reflexão crítica
sobre a arte produzida em Minas, participa das decisões artísticas de âmbito
nacional e dialoga com seus pares que atuavam no eixo Rio-São Paulo:
Frederico Morais, Roberto Pontual, Walter Zanini, Aracy Amaral, Jayme
Mauricio, Walmir Ayala, Mário Barata, entre outros.
Foi curador do Museu de Arte da Pampulha (MAP) e do Palácio das
Artes nos anos de 1960/70, onde organizou importantes exposições temáticas
como A paisagem mineira (1977) e O desenho Mineiro (1979). Como curador
do MAP, Sampaio organizou o 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea
de Belo Horizonte, que propunha a reformulação conceitual do Salão e a
abertura de espaço para as propostas inovadoras das novas vanguardas. Foi
também professor da Escola de Belas Artes da UFMG nos anos de 1980/90,
onde lecionou a disciplina Desenho de Criação.
Atualmente, Márcio Sampaio atua no circuito artístico como pesquisador
da arte e dos artistas de Minas Gerias e como curador de exposições
históricas, a exemplo de Neovanguardas (2007)271 e Entre Salões (2010)272,
mostras realizadas no Museu de Arte da Pampulha, em parceria com Marconi

271. Ver DRUMMOND; SAMPAIO; RIBEIRO. Neovanguardas.


272. Ver DRUMMOND et al. Entre Salões. Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte:
1969-2000.

225
Drummond, com o objetivo de resgatar a história da arte moderna e
contemporânea em Minas Gerais.273

A intermidialidade na poética de Márcio Sampaio


Sua trajetória como artista visual se mistura à sua atuação como poeta,
crítico e curador. Realiza a primeira exposição individual de desenhos e
objetos/poemas em 1965, no Clube Atlético Itabirano, em Itabira. Em 1966,
realiza mostra na Galeria ICBEU, em Belo Horizonte, apresentando uma série
de desenhos inspirados no Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e faz
uma nova exposição com desenhos e poemas-cartazes na Galeria Grupiara,
em Belo Horizonte. Em 1967, participa da IX Bienal de São Paulo com os
desenhos reunidos em O círculo monstrual, Do dia D do Deusdemônio e
Com Bat-Man, trabalhos que se aproximam da vertente realista fantástica.
Em 1969, faz uma importante exposição na Galeria Guignard, onde
apresenta os desenhos da série O círculo monstrual, que revelam sua reflexão
sobre o desenho “fantástico, surreal e sensual”, bem como sua ironia diante
da violência que se impunha no Brasil durante a ditadura militar (1964-1965),
pós-AI-5 (Ato Institucional Número 5). Na apresentação da mostra, o crítico
Ângelo Oswaldo de Araújo Santos desvenda o movimento do “Círculo” e
salienta que “é justamente o fluxo entre o mental e o surreal que vem conferir
à exposição a ideia circular, a imagem do grande “Círculo Monstrual”, no
qual gira a existência humana.”274
Com a artista Eliana Rangel, sua companheira e colaboradora ao longo
de 36 anos, compartilha um ateliê em Sabará, onde os dois vêm a desenvolver
intenso trabalho de criação.275Dedicada à Eliana, Márcio elabora uma série
de desenhos/poemas ideográficos construtivos que lembram a beleza e a
delicadeza dos desenhos e pinturas de Joaquim Torres Garcia.
Nos trabalhos realizados nos anos de 1960-1970, Márcio Sampaio integra
a poesia, a pintura e os materiais da vida na sua criação artística. Sua obra tem

273. Ver RIBEIRO. A crítica militante de Márcio Sampaio e a construção da neovan-


guarda mineira.
274. SANTOS. O Círculo Monstrual. Desenhos.
275. Ver SAMPAIO. Eliana Rangel. Geometria afetiva.

226
origem nos movimentos de arte concreta e poema-processo. Aproximam-se
das proposições neoconcretas que visavam à aproximação entre arte e vida
e a participação ativa do espectador na proposta do artista.
Foi no momento de aparecimento da “poesia além do verso”276, da
construção dos poemas-colagens, poemas-objetos, objetos poéticos e
instalações poéticas que verificamos a presença da intermidialidade na
obra de Márcio Sampaio. Ao apropriar-se dos recortes de letras dos jornais
para construir os Poemas colagens (1962), ou usar pequenas coisas para criar
um Alfabeto (1977), Márcio Sampaio trabalha com a relação intermidiática
entre o texto e a imagem, aproximando-se das imagens pop-concretas de
Waldemar Cordeiro (FIG. 1).

Figura 1: Márcio Sampaio, Pedra no caminho (Homenagem a Drummond),


poema colagem com recorte de revista,1962.

Fonte: SAMPAIO. Poesia além do verso.

276. Cf. SAMPAIO. Poesia além do verso.

227
Contudo, ao aplicar letras em uma bola de borracha para criar seus
objetos-poema (1964), ao apropriar-se de caixas, para fazer as intervenções
com letras e reproduções, a exemplo dos objetos Frágil (1969) e Festa/Fresta/
Floresta (1970) (FIG. 2), Sampaio convida o espectador participante a tornar-se
um coautor da proposta intermidiática do artista. Nesse sentido, seu diálogo
aproxima-se das propostas dos livros de artistas neoconcretos, como os de
Lygia Clark e Lygia Pape e dos poemas-processo de Wladimir Dias-Pino e
Osmar Dillon.

Figura 2: Márcio Sampaio, Festa/Fresta/Floresta, objeto, caixa de madeira


com aplicação de letras e reprodução de Rousseau, 1968.

Fonte: SAMPAIO. Declaração de bens.

É importante salientar o diálogo que Márcio Sampaio estabelece com


o crítico Roberto Pontual277 sobre os Materiais da Vida e os Materiais
Transfigurados. São propostas conceituais que visam à educação do olhar
para a descoberta dos materiais cotidianos e a possibilidade de transfigurá-
los em arte, de acordo com o deslocamento proposto pelos ready-mades, de
Marcel Duchamp (1887-1968).
Sobre os Materiais da Vida, Sampaio escreve:
Essas coisas que povoam o mundo emergem de repente da escura
viscosidade em que pareciam fadadas a dormir eternamente. Saltam do

277. Entre os anos de1969-1970, os artistas mineiros Márcio Sampaio, Eliana Rangel, Madu
e Luiz Fonseca desenvolvem um projeto interdisciplinar MG/GB com o crítico Roberto
Pontual e os artistas cariocas Paulo Roberto Leal e Osmar Dillon, que visava ao diálogo
entre mineiros e cariocas por meio da criação de textos, desenhos, pinturas, instalações
e performances.

228
anonimato para apresentar-se aos nossos olhos, a nosso sentir, como
objetos significantes, retomando, nessa nova situação, sua força poética:
explodem, envolvendo-nos com sua magia, provocando novos gestos.278

A propósito, Sampaio organiza a 1ª mostra/instalação Materiais da Vida,


no Festival de Inverno da UFMG, em Ouro Preto (1970), na qual apresenta
objetos, intervenções e happenings nos diversos espaços da Escola de Minas.
Essa mostra, referente às suas pesquisas sobre a poética do cotidiano, foi
organizada simultaneamente à exposição Materiais Transfigurados, com
curadoria de Roberto Pontual. Na ocasião, Sampaio fez nevar algodão na
Praça Tiradentes como uma das ações do trabalho Neve/Never/Rêve (1970),
que se transformou num objeto-poema e serviu como uma reflexão crítico-
irônica sobre a nossa tradição artística europeia. Neve/Never/Rêve é, ao
mesmo tempo, uma caixa de acrílico transparente que acondiciona as palavras
poéticas aplicadas em algodão e um registro da intervenção que aconteceu
no Festival de Inverno de Ouro Preto.
A partir dos anos de 1970, Márcio Sampaio inicia sua pesquisa sobre
a Antropofagia e o Tropicalismo, focalizando o trabalho inaugural de
Oswald de Andrade (1890-1954) e Tarsila do Amaral (1886-1973), até os
seus desdobramentos na obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Convidado
a participar como curador da exposição de inauguração da nova sede da
Aliança Francesa em Belo Horizonte, Sampaio organiza o evento Brasil, A
Festa, A Construção: Arte Total, que foi uma exposição happening tropicalista
realizada por jovens artistas, entre os quais estavam Eliana Rangel, Maria
do Carmo Vivacqua Martins, José Alberto Nemer e Liliane Dardot. Nesse
happening, foram homenageados, entre outros, os artistas Tarsila, Volpi,
Nello Nuno, Amilcar de Castro, Abelardo Zaluar, Angelo Aquino e Eduardo
de Paula. Mas a homenagem maior no evento foi feita a Caetano Veloso,
considerado o autor que realizou a síntese poética e musical, que convergiu
para a construção da festa tropicalista.
A retomada da Antropofagia e do Tropicalismo, aliada ao conceito de
ready-made ou de apropriação, formulado por Duchamp, culmina na série
de pinturas da Galeria antropofágica, na qual o artista Márcio Sampaio faz

278. PONTUAL. Arte/Brasil/Hoje, p. 20.

229
uma releitura intramidiática das obras de diversos artistas consagrados:
Ticiano, Goya, Manet, Mondrian, Malevich, Tarsila, Guignard, Amilcar e
Lygia Clark, entre outros. Nessa série, sua crítica é permeada pela ironia
inteligente, que questiona o sistema, o mercado e a produção de arte. Um
dos temas discutidos em sua exposição retrospectiva, realizada no Museu
Mineiro, em 1983, foi “a ironia possível face à crise”, ou seja, a apropriação
irônica de imagens de obras, exposições e atores do circuito artístico, por
meio de falsificações que são justapostas dentro do espaço do quadro.
O crítico Ângelo Oswaldo salienta, na introdução da mostra, o caráter
irônico, introvertido e mineiro de Márcio Sampaio na construção de sua
Galeria antropofágica, em que aparece “um duchampismo mineiro aliado a
Oswald de Andrade”. No comentário, Ângelo Oswaldo observa:
A antropofagia é a grande metáfora da assimilação da cultura alienígena,
assim como o ready-made constitui prova eloquente da inocuidade da
obra e de seu culto. Num primeiro momento, a Galeria Antropofágica
armou-se em Minas. Redescobria, então, Minas montanhosa e abissal,
solapada pelas atividades mineratórias e esvaziada pelo êxodo fatal. [...]
Márcio Sampaio promove a vinda de Duchamp e a volta de Oswald
para assistirem à devoração do rigor de Mondrian e Malevich pela
sensualidade da montanha barroca.279

Na obra Exposição de Mondrian, produzida em acrílica sobre Duratex,


entre 1973-1974 (FIG. 3), Sampaio coloca a imagem do Abaporu, de Tarsila
do Amaral, em frente a uma exposição de pinturas de Mondrian. O artista
faz uma transposição intramidiática da pintura Abaporu de Tarsila e das
pinturas de Mondrian e as insere dentro de outro contexto antropofágico, que
remete ao modernismo de Oswald e Tarsila e à formação da arte construtiva
brasileira, em contraposição ao neoplasticismo de Mondrian. A vertente
construtiva brasileira, por sua vez, tem um caráter singular, que engloba as
produções dos artistas concretos e neoconcretos, bem como as obras dos
artistas independentes que construíram uma poética própria pautada por
uma geometria sensível.280 E a poética de Márcio Sampaio se insere dentro

279. OSWALDO. Márcio Sampaio, [s. p].


280. Ver RIBEIRO. Arte Concreta e dimensões construtivas na arte brasileira.

230
dos desdobramentos dessa vertente construtiva, geométrica e sensível, por
meio da construção intermidiática da poesia, dos poemas-processo, das
artes visuais, das performances e das instalações interativas.

Figura 3: Márcio Sampaio, Exposição de Mondrian, acrílica s/Duratex,


1973-1974.

Fonte: SAMPAIO. A ironia possível face à crise: Márcio Sampaio.

Considerações finais
Em 2005, foi realizada a exposição retrospectiva Márcio Sampaio:
declaração de bens, na Grande Galeria do Palácio das Artes, em Belo Horizonte,
com curadoria de Marconni Drummond, onde foi reunida grande parte de
sua produção em desenho, pintura, instalação, objeto e poesia experimental.

231
Em 2010, foi publicado o livro Márcio Sampaio: declaração de bens281, como
registro da diversificada obra do artista.
Recentemente, Sampaio fez a doação generosa de seu acervo arquivístico
e bibliográfico para a implantação do Centro de Referência das Artes Plásticas
em Minas Gerais no Museu Mineiro, o que tem possibilitado aos estudiosos
realizar novas pesquisas sobre a arte brasileira.282 A presença de Márcio
Sampaio é exemplar no contexto da história da arte brasileira, como poeta,
artista, crítico, pesquisador e curador. Portanto, sua obra merece estudos
transdisciplinares e intermidiáticos.

Referências
DRUMMOND, Marconi et al. Entre Salões. Salão Nacional de Arte de Belo
Horizonte: 1969-2000. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2010.
DRUMMOND, Marconi; SAMPAIO, Márcio; RIBEIRO, Marília Andrés.
Neovanguardas. Belo Horizonte. Museu de Arte da Pampulha 50 anos, 22
dez. 2007-16 mar. 2008.
PONTUAL, Roberto. Arte/Brasil/Hoje. Revista de Cultura Vozes, Petrópolis,
v. LXIV, ano 64, n. 9, nov.1970.
RIBEIRO, Marília Andrés. A crítica militante de Márcio Sampaio e a
construção da neovanguarda mineira. In: RIBEIRO, Marília Andrés .
Neovanguardas. Belo Horizonte – anos 60. Belo Horizonte: C/Arte, 1997,
p. 179-204.
RIBEIRO, Marília Andrés. Arte Concreta e dimensões construtivas na arte
brasileira. Texto inédito produzido para o Projeto The Material of Form:
Industrialism and the Latin American Avant Garde, realizado pelo LACICOR/
UFMG, em parceria com a Universidad San Martin, em Buenos Aires, e a
Fundação Getty, em Los Angeles, 2015/2017.
SAMPAIO, Márcio. Declaração de bens. Belo Horizonte: Edições do autor,
2008.
SAMPAIO, Márcio Poesia além do verso. Belo Horizonte: Galeria de Arte
do Espaço Cultural da CEMIG, 30 de abril-19 maio de 2010.

281. SAMPAIO. Declaração de bens.


282. A doação do acervo de Márcio Sampaio foi realizada em 13 de dezembro de 2016.

232
SAMPAIO, Márcio. A ironia possível face à crise: Márcio Sampaio. Belo
Horizonte: Museu Mineiro, outubro 1983. (Catálogo da exposição).
SAMPAIO, Márcio. Eliana Rangel. Geometria afetiva. Belo Horizonte: Edição
do autor, 2012.
SANTOS, Ângelo Oswaldo de Araújo. Círculo Monstrual. Catálogo da
exposição O Círculo Monstrual. Desenhos. Galeria Guignard, Belo Horizonte,
1969.
SANTOS, Ângelo Oswaldo. Márcio Sampaio. In: A ironia possível face à crise:
Márcio Sampaio. Belo Horizonte: Museu Mineiro, outubro 1983. (Catálogo
da exposição).

233
234
BRAZIL’S INHOTIM:
MODERNIST PARADISE AND/OR POLITICAL
MEDIATION

Lauren S. Weingarden
Universidade Estadual da Florida, Tallahassee, FL

Introduction
Inhotim, Brazil’s outdoor contemporary art museum, is a modernist’s
paradise. Located in Brumadinho, 60 km from the Minas Gerais state
capital of Belo Horizonte, the museum collection comprises 500 works
of art by over 100 artists, presented in the outdoors or within twenty-two
galleries spread throughout a 3,000-acre environmental park.283 According

283. This essay issues from my research at Inhotim as a Fulbright Scholar (2012; Project
title: “The Performative Turn: Installation art and Baudelairean modernity.”); see Lauren
S. Weingarden, “The Performative Turn at Inhotim: Installation Art and Baudelairean
Modernity,” Aletria: Revista de Estudos de Literatura, v.1, nº 3, 2013, p 13-30. http://
www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/4110/pdf. Elsewhere I have
used Inhotim and its collection of Installation Art to model an embodied, experiential
aesthetic of contemporary art forms. See Lauren S. Weingarden, “Framing an experiential
aesthetics: The affective turn in contemporary installation art,” in Notions esthétiques
(II) : la perception sensible organisée, eds. Véronique Alexandre Journeau et Christine
Vial Kayser. Paris: L’Harmattan, collection « L’univers esthétique » ), p. 197-210; and
Lauren S. Weingarden, “Installation Art and Experiential Aesthetics: Mediating Art History
and Neuroscience Research,” Proceedings of the Twenty-third Biennial Congress of the
International Association of Empirical Aesthetics (2014): http://www.science-of-aesthetics.
org/data/proceedings/IAEACongressProceedings2014.pdf.

235
to Inhotim’s promotional literature, the institute’s mission is twofold. First,
it aims to provide public access to a collection of “contemporary artworks,
produced by artists from different parts of the world, providing an up-to-
date reflection on the questions of contemporaneity.” Second, Inhotim aims
“to define new museological strategies that provide the community with
access to cultural assets.”284 In this essay, my concerns are also twofold.
First, I question whether the “reflection on [global] contemporaneity” that
the museum offers obfuscates the possibility of distinguishing a Brazilian
modernity from an American-Eurocentric one. Second, in extrapolating an
indigenous modernism, and its political motivations, I show that Inhotim’s
novel museological strategies issue directly from Brazil’s historical avant-
garde and its latter-day practitioners presented at Inhotim.
In particular, I interrogate the museum’s presentation of Brazilian
contemporary art works as a global phenomenon. This exhibition strategy
glosses over political content and, thereby, presents a Brazilian dream
of globalism rather than a Brazilian modernism fraught with dissent.
Alternatively, I trace the history of the Brazilian avant-garde in tandem
with Inhotim’s collection history. I map these historical correlations by way
of Inhotim’s foundational collection of Installation art works, specifically
focusing on the room-sized creations of Hélio Oiticica, Cildo Meireles,
and Tunga. Each of these artists incorporated political messages specific
to Brazilian history, whether directed against the military dictatorship,
colonization or social inequality. Each artist, in turn, mediated and resolved
the political by emphasizing the viewer’s performative role in the meaning-
making of their Installation art works. This participatory role is also at the
heart of Inhotim’s novel museological practices.
My critical-historical interrogation begins with an overview of Inhotim’s
trajectory from a private collection to a public institution. This overview
provides the basis for an in-depth critical analysis of Inhotim’s global
contemporary art approach. Against this background, I foreground the

284. INSTITUTO INHOTIM. Disponível em: http://www.inhotim.org.br/en/inhotim/


contemporary-art/. The contemporary art collection is the museum sector of the Instituto
Cultural Inhotim also conducts educational, cultural and vocational programs that serve
local and regional communities and school systems.

236
ways mid-century Brazilian modernists revived the early twentieth-century
avant-gardes’ social and political programs and, subsequently, extended
the socio-political ethos to the artists emerging in the 1960s and 1970s, the
decades spanning the military dictatorship. Oiticica, Meireles, and Tunga
are among the most prominent artists who emerged from these decades. As
I will show, the participatory turn is central to their avant-garde approach,
wherein the viewer’s (ostensible) self-transformation effects social and
cultural transformation. I conclude my discussion with a reflection upon
the endurance of the participatory turn that defines a uniquely Brazilian
museological experience at Inhotim.

Bernardo Paz’s Inhotim: The Gilded Age in the 21st Century


In many ways, Inhotim’s transformation from a private art collection
into a public museum mirrors the founding of U.S. museums by newly-rich
industrialists and businessmen during the Gilded Age. Inhotim’s history
begins in the mid-1980s with its founder, Minas Gerais mining magnate
Bernardo de Mello Paz (known as Bernardo Paz).285 Like his Gilded Age
predecessors, Paz’s art collecting began as a private venture restricted to
adorning his private residence. By his own admission, Paz knew little about art
and collected what he liked, in this case, works by modern Brazilian artists.286
Then, in the late 1990s, Paz befriended the multimedia/Installation artist
Tunga. He encouraged Paz to sell his collection of modern Brazilian art so that

285. Paz made his fortune mining iron, selling ore to the Chinese, through the auspices of
his company Itaminas Comércio de Minérios S/A. In March 2010, the Itaminas Trade Ores
S/A was acquired by the Chinese consortium ECE for about $1.2 billion. (https://pt.wikipe-
dia.org/wiki/Bernardo_Paz). According to the Inhotim website, Inhotim was established
as a contemporary art museum, as Inhotim Centro de Arte Contemporânea, in 2002 and
opened for private visits in 2004. With the completion of a comprehensive infrastructure
for visitation in 2006, Inhotim opened to the public at large on a regular basis. Inhotim was
recognized as a Public Interest Civil Society Organization (OSCIP) by the Minas Gerais
State Government in 2008, a status subsequently recognized by the Federal government in
2009. During this transition, Inhotim was renamed Instituto Cultural Inhotim, establishing
itself as “a nonprofit institution aimed at the conservation, exhibition and production of
contemporary art, in conjunction with social and educational actions.” http://www.inhotim.
org.br/en/inhotim/about/timeline/. Cf. http://www.nytimes.com/2012/03/10/world/americas/
bernardo-pazs-inhotim-is-vast-garden-of-art.html?_r=0
286. Bernardo Paz in discussion with author at Inhotim, April 27, 2012.

237
he could begin collecting contemporary art and, especially, Installation art.
During the next decade, Paz’s affinities with Gilded Age collectors multiplied:
his collection holdings outgrew his residential confines; he engaged with
Tunga as his art advisor;287 and he converted his private collection into a
public museum. Paz’s expanding activities as an art collector were matched by
his growing wealth and, in turn, by his expanding land purchases, acquired
to display the large-scale – often room-size ‒ contemporary artworks.288
From Inhotim’s museological inception, both the property’s local history
and Paz’s personal alliances with Brazilian art communities impacted the
museum’s design and curatorial program. Beginning in the mid-1980s
Paz began purchasing the land in and around a farmstead, locally named
Inhotim.289 Originally, a quaint country house on the farmstead site served
as Paz’s weekend retreat and venue for his collection of Brazilian modern
art. Between 1987 and 1989 Brazilian landscape architect Roberto Burle Marx
(1919-1994) occasionally visited Paz in Inhotim, introducing the collector
to many indigenous plant species and to ideas for the design of the gardens
around the house.290
Paz’s own narrative exposes his affinities with Gilded Age collectors-
turned-cultural benefactors. In this account, Paz reveals how the Inhotim
museum complex grew fortuitously, from his modest country house and
the implementation of an expanded landscape design.

287. Subsequently, Paz engaged professional curators. As Jochen Volz explains, “Between
2001 and 2005, Paz worked with curator Ricardo Sardenberg, who introduced him to a
younger generation of artists who had emerged in the 1990s.” In 2004, Paz hired curators
Alan Schwartzman, Jochem Volz, and Rodrigo Moura. VOLZ. “Unfolding an institution.
Discovering Inhotim,” p. 17-18.
288. The following historical sketch is derived from VOLZ, “Unfolding an institution.
Discovering Inhotim,” and MOURA states in “A museum in the backlands,” p. 16-20, 30-36.
289. As curator Rodrigo Moura states in “A museum in the backlands” (p. 33), “A name
such as Inhotim is hardly pronounceable. Having taken roots in the land and its history as
a variant of Nhô [Mr./Senhor] Tim.” Mr. Tim was a farmer (and foreigner) who previously
owned the land upon which Paz built his complex. Mr. Tim’s farm ( fazenda de Inhotim)
used to be a tiny village with a few houses and inhabitants who earned their living from
farming or by working at jobs associated with this region, Brazil’s gold- and iron-mining
state. The actual landscape design was initiated by Pedro Nehring Cesar. VOLZ. “Unfolding
an institution,” p. 17.
290.

238
The fact is that I went to my farm and met Roberto Burle Marx, who …
helped me make the garden at first. After he died, [I] continued making
the garden. Then I found that the garden had no sense unless it was
something with more content and I started to build. Everything I did
was intuitive, nothing was planned. I started to build the art pavilions.
Suddenly I received requests for visitations, and as the visitors arrived, I
saw the eyes of these people shine. I thought I must be doing something
very different, because they are all thrilled.291

Paz’s conversion from private collector to humanitarian was equally


fortuitous. Inspired by the first (invited) visitors’ reactions, Paz began to
expand the art pavilions. During this time, he came to see that Inhotim “must
belong to society. It passed the limits of my possession, I’m bringing joy to
many people, … and in addition to joy, … curiosity; and through curiosity
[I’m bringing] dignity to many people. And with that I began to create the
institute Inhotim. It’s a public institution, all the works are public[.]”292
Here Paz’s self-assigned role of cultural patron and civic reformer matches
the Gilded Age collectors’ self-assigned role of edifying underprivileged
populations through public art museums and related educational programs.293

Burle Marx at Inhotim: Landscape Inception of Brazilian


Modernism/Avant-Garde
As Paz’s friendship with Tunga would become, his friendship with
Roberto Burle Marx was a critical turning point toward Inhotim’s re-
configuration as a modernist’s paradise.294 While landscape architect Luiz

291. PAZ. Interview with Beverly Adams.


292. PAZ. Interview with Beverly Adams.
293. Paz’s cultural mission is especially salient for Inhotim’s adjacency to the town of
Brumadinho. Once a city that profited from the iron-mining industry, today Brumadinho
bears all the marks of an impoverished economy. It is worth noting that Inhotim Institute, as
promoted by Paz, has contributed to Brumadinho’ s improvements, by means of the tourist
industry and in-house educational and professional training programs. Cf. INSTITUTO
INHOTIM.
294. Paz and Burle Marx worked on and published a book on Burle Marx’s landscape,
Roberto Burle Marx: uma poética da modernidade. Grupo Itaminas/Secretaria de Estado
da Cultura de Minas Gerais, 1989.

239
Carlos Orsini realized Inhotim’s current design, Burle Marx’s style endures
in both the details and the overall plan. As such, Inhotim’s unique botanical
garden-museum pavilion design is imbued with aesthetic hallmarks of
the Brazilian avant-garde in which the visitor/viewer becomes a creative
participant.295 Although Burle Marx is best known as an initiator a modern
landscape design, he was also a prominent painter and graphic artist aligned
with the mid-century avant-garde. Burle Marx translated the abstract-organic
elements of his painting into the meandering paths of his landscape design,
compelling the eye to rove freely, “which gives the body an imaginative
and sensory ubiquity.”296 As seen at Inhotim, this dynamic is manifested
in serpentine walking paths along which the visitor encounters changing
vistas of diversely colored, scaled, and amassed foliage and floral patterns.
In this setting, the museum visitor freely chooses among the meandering
paths that lead to unexpected encounters with free-standing artworks and
Installation art pavilions.
Burle Marx’s avant-garde social aesthetic endures in Inhotim’s garden
environment. According to Brazilian architect Haruyoshi Ono, who began
working with Burle Marx in 1965, “[Burle Marx] used to say the larger and
more open a project, the more he liked it, because it could be enjoyed by
all social strata.”297 Paz’s humanitarian aspirations echo Burle Marx’s. As
Paz explained in 2012, “Culture transforms a person[.] Thirty years ago in
Mexico, I saw a beautiful walled garden with a lot of people dancing and a
symphony orchestra playing. What did I do [at Inhotim]? I dropped the wall
so that people could enter. And you cannot imagine how they are educated.
The poor more than the rich.”298

295. The pavilions, galleries and landscape were designed simultaneously and adhere to the
aesthetic of the viewer’s discovery and contemplation between the art and natural setting.
Curator Rodrigo Moura emphasizes the dynamic between art and nature in his essay, “A
museum in the backlands,” p. 30-36.
296. For Burle Marx, the visitor’s embodied sensation of mobility and the freedom of
choice are the most important elements of experiencing his landscapes. See LEENHARDT.
“Playing with artifice: Roberto Burle Marx’s gardens.”
297. Today Haruyoshi Ono directs the landscaping company that Burle Marx founded
in the 1950s. See ROHTER. “A New Look at the Multitalented Man Who Made Tropical
Landscaping an Art.”
298. PAZ. Interview with Beverly Adams. In this interview, Paz credits his social benef-
icence to his parents, stating, “My parents were socialists, they used to participate of the

240
Tunga’s advisory and artistic presence at Inhotim
If Burle Marx’s experiential landscape aesthetic permeates Inhotim’s
environmental layout, Tunga’s aesthetic philosophy runs deep in the formation
and design of the museum. By the late 1990s, Paz’s Inhotim property had
become a fully developed botanical garden. And it was for this setting that
Paz acquired his first Installation artwork ‒ Tunga’s donation of True Rouge
(1997, 2003). Paz built a single building to house True Rouge, a glass pavilion
nestled in a clearing of verdant foliage with its own reflecting pond. Completed
in 2003 and named “Galeria True Rouge,” this nexus of art, architecture and
landscape became the museum’s template for exhibiting all future Installation
art acquisitions.299
When the museum opened to invited guests in 2004, the museum
complex consisted of three buildings devoted to exhibits from the collection
and two buildings dedicated to the work of Tunga and Cildo Meireles,
each designed by architect Paulo Orsini, as well as a number of sculptures
throughout the 86.5 acres of tropical gardens.300 When Inhotim was opened
to the general public in 2006, nine additional pavilions were planted within
an expanded tropical landscape setting, measuring 3,000 acres. By 2011, Paz’s
ranch had grown to the 5,000-acre museum-botanical garden-tropical forest
complex that is now home to twenty-two free-standing gallery-pavilions.
Tunga’s True Rouge was the first of two Installation art works displayed
in 2004 within the fledgling Inhotim complex. This work provides an entry
point to a critical-historical analysis of Inhotim’s claim for an international as
opposed to a Brazilian identity, a claim with which Tunga also self-identifies.
Tunga’s internationalism is the most salient feature of his early influence on

socialist movement in Brazil and I went through it without realizing what they were doing.”
299. According to curator Alan Schwartzman account: “I first came to Inhotim in 2003, when
Bernardo Paz, a mining entrepreneur, lived in a modest farmhouse surrounded by beautiful
gardens, a pool house and an abandoned guesthouse, and several other buildings that had
recently been constructed to house his rapidly expanding collection of contemporary art.
Tunga’s True Rouge was already installed in its own pavilion, and the building now devoted
to the work of Cildo Meireles was nearing completion.” SCHWARTZMAN. “A place worth
knowing,” p. 23. Cf. INSTITUTO INHOTIM. Galeria True Rouge. Architect: Paulo Orsini.
300. According to Volz, this was the extent of the “museum” when first viewed by “a selected
public of art professionals from Brazil and abroad.” VOLZ. “Unfolding an institution,” p. 17.

241
Bernardo Paz’s collecting practices. Although biographical details are scant,
Tunga’s artistic development during the 1960s-70s is international in scope
and avant-garde in practice.301 Brazilian art critic Suely Rolnick describes
Tunga’s early training as a coming-of-age in international revolutionary
politics: “[H]e was schooled in the cultural effervescence of 60s Brazil,
combined with the revolutionary Chile of Allende (where he was initiated
into the Latin-American neo-Baroque), and a Paris still contaminated by
May ‘68.”302 In numerous interviews, Tunga continued to reference a wide
range of theoretical and philosophical sources, from both the Americas and
abroad, that motivate his artistic practices. As well, he was emphatic about
his international identity, as recorded in a 2002 interview with Simon Lane:
[M]y trajectory as an artist has never been that of a Brazilian artist. I have
been participating for many years in what is called the international art
world, and never as the representative of Brazilian or Latin-American
art. I have always considered myself, and have been considered, a
contemporary artist. The idea of fatherland, of nation, has always been
alien to my work and to my perspective. Just as it was alien to the first
movements of Modernism, which said instead, “We are human.”303

With Tunga’s internationalist ethos in mind, we can align True Rouge


with earlier twentieth-century Dada and Surrealist practices. As installed
in the glass and white-washed concrete pavilion at Inhotim, True Rouge 304
recalls Marcel Duchamp’s network of crisscrossed strings suspended from
the ceiling, designed for the 1942 First Papers of Surrealism exhibition space.
Tunga’s work is suspended from the ceiling by a series of supports made up of

301. Born José de Barros Carvalho e Mello in Palmares, Pernambuco, in 1952, the artist
was professionally known as Tunga. According to his biography for Documenta X (1997)
Tunga studied architecture at the Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro (http://uni-
verses-in-universe.de/doc/tunga/e_bio.htm). Tunga died on June 6, 2016, while this essay
was in preparation.
302. ROLNIK. “Instaurations of the World,”, p. 147.
303. TUNGA. “Interview: Tunga by Simon Lane,” p. 48.
304. TUNGA. True Rouge, 1997, 2003; netting, wood, blown glass, glass beads, red ink,
sea sponges, pool balls, bottle cleaning brushes, felt, crystal balls, 1315 x 750 x 450 cm.,
Inhotim (after 2012 renovation). Photo: Daniela Paoliello. (Source: http://arteref.com/tag/
tunga/)

242
three wood planks, painted red and attached in an H-shaped configuration,
much like control bars of marionettes. Red nets of varying length attach to
each control bar. Each net holds variously arranged glass pearls, sea sponges,
billiard balls, bottle brushes, felt, crystal balls, and blown glass, some of
which contain liquid red paint. Circular, puddle-like shapes are painted
below the nets on the white floor. Measuring approximately 43 x 24.5 x 15
feet, True Rouge fills the entire gallery space. Unlike most Installation art
works, while viewers can see through the netting, they cannot walk through
it and are restricted to walking in the narrow space between the objects and
the gallery walls.
Upon viewing True Rouge, the construction registers as a random
assemblage of “found objects,” evoking Duchamp’s “ready-mades” and
the Surrealists’ artistic appropriation of everyday objects. This apparent
randomness further suggests the modernist idea of the “open work,”
wherein the multitude of viewers complete the work’s infinitely possible
meanings.305 Yet, the very presence of so many individual visitors activates
another dimension of the work, that of infinitely random changes between the
constituent parts. As visitors traverse the pavilion, their bodily movements
create ubiquitous wafts of air, triggering the work’s swinging motions.
Notwithstanding Tunga’s proclamations regarding his global identity,
and the work’s international art historical lineage, it is the human dynamic
that registers True Rouge’s specifically Brazilian “meaning.” Indeed, the
interconnectivity of the different elements that make up the whole ‒ wood,
string, suspended objects, red paint and puddles ‒ mirrors the interconnectivity
of the work and its viewers, and the viewers with one another. This mirroring
of interconnectivities is what renders the work’s social and cultural meaning,
a reflection of Brazil’s complex social fabric and ethnic blending.306 It is

305. On the theory of the open work see: Umberto Eco, “The Poetics of the Open Work”
in The Open Work (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1989), first published as
Opera aperta in 1962. For the practice of the open work, see Marcel Duchamp’s ready-
mades and his lecture/essay, “The Creative Act” (1957), in Salt seller; the writings of Marcel
Duchamp (New York: Oxford University Press, 1973).
306. For a general socio-economic history of Brazil’s modernization see: Larry Rohter,
Brazil on the Rise: The Story of a Country Transformed (New York: St. Martins Griffin,
2012). For a sociological study of the complexities of Brazilian nationality see: Thomas
Kuhn, “Construction of Belongingness in late modernity: national pride in Brazil from

243
in this social-historical context that, despite himself, Tunga expressed his
national pride.
Tunga revealed his nationalism in response to Simon Lane’s query
regarding the artist’s frequent mixing of mundane objects in his works.
Recalling Tunga’s statement that he tries “to put things together that are not
supposed to be together,” Lane asked, “does that mean that you are playing
a game of opposites?” Tunga denied this game-playing, explaining that the
juxtaposition of opposites is a condition of his Brazilian heritage: “If there
is a lesson to be learned in Brazil, it is that in Brazil there are no opposites.
What we find is the coexistence of what are conventionally called opposites.
Aristotle’s third principle, the law of the excluded middle, dissolves in this
social space. Perhaps at the juncture between the two we can find the avant-
garde of Brazilian culture.” In an earlier interview, Tunga elaborated on
his native experiences of Brazil’s cultural diversity, extolling this trait as a
strategic advantage over his European counterparts.307 Tunga’s identification
of the Brazilian avant-garde in terms of a dynamic social space in which
opposition is dissolved, secures his own status within this milieu.
Tunga’s nativist testimony notwithstanding, Bernardo Paz and, by
extension, Inhotim’s museological program remain fully committed to an
internationalist paradigm. Paz insisted on an international approach in
response to an interviewer’s query as to whether Inhotim presents a new
model of museum display: “There’s no model of exposition if you are dealing
with art, and this is not a Brazilian model, Inhotim is an international thing.
Nobody, in the whole world, shows art like Inhotim does, nobody. The famous
museums can have 200 Picassos, but any person feels a lot more in Inhotim.
Inhotim is contemporary art, its interactive art, the people participate of
the art.” Yet, Paz’s claims for Inhotim’s originality and internationalism are

a social inequality research perspective,” in Understanding Collective Pride and Group


Identity: New Directions in Emotion theory, research and practice, ed. Gavin Brent Sullivan
(Taylor & Francis eBook, 2014), pp. 161-172.
307. TUNGA. Interview in Jornal do Brazil. Rio de Janeiro, 19 June 1997; qtd. in ROLNICK.
“Instaurations of the World,” p. 44.

244
only possible because of Tunga’s legacy within the mid-century Brazilian
avant-garde, a legacy to which we now turn.308

Tracing the Historical Brazilian Avant-Garde at Inhotim

Anthropophagy to Neo-Concretism
The inception of Brazilian modernism and the emergence of an avant-
garde can be located in two cultural manifestos: Oswald de Andrade’s
Anthropophagic Manifesto (1928) and Ferreira Gullar’s Neo-Concrete Manifesto
(1959). These manifestos are seminal to re-tracing the Brazilian avant-garde’s
presence at Inhotim and re-inscribing its enduring legacy in the museum’s
foundational acquisitions of Hélio Oiticica’s and Cildo Meireles’s Installation
art works.
In his manifesto, Andrade used the metaphor of cannibalism as a
strategy for reversing the tide of international influences on Brazil’s native
culture.309 A few quotes suffice to intone the manifesto’s performative and
anti-rationalist stance: “Only Cannibalism unites us. Socially. Economically.
Philosophically;” “Tupi or not tupi that is the question;” “Cannibalism.
Absorption of the sacred enemy. To transform him into a totem.”310 As these
axioms attest, the manifesto proposes the swallowing of other cultures in
order to produce a new and stronger Brazilian culture. Marking the birth

308. As Tunga and his critics have acknowledged, the artist had Brazilian artists’ Hélio
Oiticica and Lygia Clark’s “experiments in freedom.” As Rolnick explains, “There is a
famous phrase of Mario Pedrosa’s which has resonated for several decades, in which he
defines art as ‘an experimental exercise in liberty.’ This statement, made in relation to the
neo-concretists Lygia Clark and Hélio Oiticica, … could trace a line that links them to their
predecessors in the anthropophagic movement and to countless contemporaries—some of
their own generation[.]” ROLNICK. “Instaurations of the World,” p. 44.
309. Andrade “employ[ed] the metaphor of the cannibal to develop a theory about the
ambiguous relationship between Brazilian native culture and international influences. The
cannibal eats the powerful opponent not out of revenge or out of hunger, but as a ceremonial
act of absorbing the force of the admired enemy, and as homage to the defeated individual.
Andrade proposed that Brazilian artists should add some aspects of European art to their
indigenous culture, digesting all influences to create something strong and new.” BRAGA,
“Hélio Oiticica and the Parangolés,” p. 48-49, note 16.
310. ANDRADE. Anthropophagic Manifesto, pp. 24-27; first published in Revista de
Antropofagia, São Paulo, May 1928.

245
of Brazilian modernism, this recipe for cultural cannibalism extends to the
participatory aesthetics and politics of Installation art. For the emergent
avant-garde in the 1920s, cannibalism was a revolutionary tactic for inverting
and subverting European cultural values. For the avant-garde generation
of the 1950s-70s, the Anthropophagic Manifesto provided a road-map for
subverting, through creative work, the Americanization of the Brazilian
economy, and subsequently, for opposing the military dictatorship,
Poet and art critic Ferreira Gullar wrote the Neo-Concrete Manifesto, in
1959, on the occasion of the first Neo-Concrete Exhibition, which took place
at the Museum of Modern Art of Rio de Janeiro.311 The Neo-Concrete Manifesto
demonstrates how anthropophagy guided the mid-century avant-garde’s
cannibalism of early twentieth-century geometric abstraction, primarily in
relation to Mondrian’s Neo-Plasticism.312 Here I highlight five points in the
Neo-Concrete Manifesto that both respond to the Anthropophagic Manifesto’s
performative and anti-rationalist agenda and extend to the participatory
aesthetic of Oiticica’s and Meireles’s Installation art works.
1) Anti-rati6onalism. As a reaction against Concrete art and its
rationalist reception of geometric abstraction,313 the Neo-Concrete
manifesto “proposes a reinterpretation of Neo-Plasticism[.]” To this
end, “Neo-concrete art founds a new expressive space.”
2) Direct experience of the art work. The “‘meaning’ of rhythms
and colors” in Neo-Concrete works can only be gained by “a direct
experience of perception.”
3) Dynamic fusion of art and life. Mondrian’s “destruction” of “the
surface, the plane and the line,” marks “the prophecy of a total
integration of art into daily life.”
4) Phenomenology. Neo-Concrete art “re-poses the problem of
expression, incorporating … form, space and structure ‒ which…

311. The Neo-Concrete Manifesto was published in the Sunday Supplement of the Jornal
do Brasil newspaper on March 23, 1959.
312. The Neo-Concretists also appropriated Kazimir Malevich’s Suprematism and the
Russian Constructivists’ non-Euclidean sculpture.
313. Luis Sacilotto’s (1924-2003) abstract geometric compositions best represents Brazilian
Concrete Art.

246
are connected to an existential, emotive and affective meaning.”
The Neo-Concrete work of art is a “living organism,” “a being who
… can only reveal itself in a direct, phenomenological approach.”
5) Spatialization of the work. “By ‘spatialization of the work’ [is meant]
that it is always making itself present, it is always restarting the
impulse that generated it and of which it was already the origin.”314
As Oiticica’s activities demonstrate, the Brazilian avant-garde found
not only a formal language in early twentieth-century abstraction; more
importantly, they retrieved theoretical programs for collective spiritual
evolution and social revolution.

Oiticica: Art as political/social transgression


Of the artists represented at Inhotim, Oiticica not only figures as a
representative of Neo-Concretism, he (with Lygia Clark)315 was the movement’s
leader. Although the Neo-Concrete group officially disbanded in 1961, Oiticica
continued to develop his series of Penetrables/ Penetrávels,316 which he began

314. GULLAR. Neo-Concrete Manifesto, p. 481-485.


315. Oiticica and Clark were at the forefront of developing Neo-Concrete art into partici-
patory events. Simone Osthoff provides a concise description of Clark’s oeuvre from this
period: “In the development of [Clark’s] work from painting to interactive sculpture, the
issue of edges between painterly illusion and literal space or between the canvas and the
frame had a kind of primary importance that was similar to the role that color played for
Oiticica. Clark moved into three-dimensional space by way of folding the plane into hinged
sculptures that combined geometric shapes and organic movements. This development
away from Concrete paintings resulted in a series of Neoconcrete sculptures titled Bichos
(Animals, or Beasts) from 1959 and 1960.” OSTHOFF. “Lygia Clark and Hélio Oiticica: A
Legacy of Interactivity and Participation for a Telematic Future,” p. 281.
316. In 1966 Oiticica identified Parangolés and Penetrables as “Anti-art, in which the
artist understands his/her position not any longer as a creator for contemplation, but as
an instigator of creation ‒ ‘creation’ as such: this process completes itself through the dy-
namic participation of the ‘spectator,’ now considered as ‘participator.’” Oiticica directly
relates anti-art and individual participation with social change: “This is the social mani-
festation, incorporating an ethical (as well as political) position which comes together as
manifestations of individual behavior. I should make it a bit clearer, first of all, that such
a position can only be a totally anarchic position, such is the degree of liberty implicit in
it. It is against everything that is oppressive, socially and individually ‒ all the fixed and
decadent forms of government, or reigning social structures. The ‘socio-environmental’
position is the starting point for all social and political changes, or the fermenting of them
at least ‒ it is incompatible with any law which is not determined by a defined interior
need, laws being constantly remade ‒ it is there taking of confidence by the individual

247
in 1960 with “O Grande Núcleo”. Penetrables/Penetrávels were be “penetrated”
by the “viewer,” so that, in Oiticica’s words, “color…become[s]…purely
aesthetic in the sense of a heightened experience.” Penetrables/Penetrávels,
also registered his anthropophagic acts. In this series, Oiticica asserted, “It
is not a matter of copying Mondrian, but of blazing the trail for a painting of
pure color, space, time and structure.”317 His choice of everyday (Brazilian)
materials and local performers that carried the colors was also a matter of
devouring and regurgitating the European master. The Tate Gallery’s Oiticica
exhibition website aptly describes this animated assemblage:
The Parangolés are capes, flags, banners and tents made from layers
of painted fabric, plastics, mats, screens, ropes and other materials.
Literally habitable paintings, they were designed to be worn or carried
while dancing to the rhythm of samba. They represent the culmination
of Oiticica’s unfolding of colour into the environment; dancers wearing
the capes appear as ‘colour-in-motion’ to the spectators.318

Subsequently, Oiticica cannibalized Pop and Conceptual art to create


penetrable environments as mechanisms for opposing socio-political
repressions.319

in his or her intuitions and most precious aspirations.” OITICICA.“Position and Program
– Environmental Program – Ethical Position,” p. 8-9. (“Posição e Programa – Programa
Ambiental – Posição Ética” was published in the July 1966 issue of Revista Gam, in Rio
de Janeiro). Oiticica reasserted these socially reforming, anti-art tenets in his 1967 essay,
“General Scheme of the New Objectivity.”
317. Oiticica, quoted in GALERIE LELONG. “Hélio Oiticica: Penetrables. May 4, 2012 –
June 16, 2012”. To note, Invenção da cor, Penetrável Magic Square # 5, De Luxe (1977), is
a posthumous construction based on Oiticica’s plan for an architecturally-scaled penetrable.
Displayed is constructed in Inhotim’s botanical garden, Magic Square #5 only existed on
paper during the artist’s lifetime, and can be regarded as an outdoor Installation art work.
According to the Inhotim website, Magic Square # 5 “consists of a group of six artworks
articulated around the idea of a “square” in both senses of the word – a geometric shape
and a public plaza. These artworks are proposals for open air architectural structures …
where people can spend time either alone or in shared experience with others, while get-
ting into live contact with forms, colors and materials.” (http://www.inhotim.org.br/en/
inhotim/arte-contemporanea/obras/invencao-da-cor-penetravel-magic-square-5-de-luxe/)
See also Oiticica’s model for Magic Square #5 at “Hélio Oiticica: Exhibition guide, room
10,” Tate Gallery.
318. TATE GALLERY. “Hélio Oiticica: Exhibition guide, room 9.”
319. Oiticica’s critical views of Brazilian art and culture were condensed in his 1973 article
“Brazil Diarrhea,” reprinted in Guy Brett et al., Hélio Oiticica,  Guy Brett, Catherine David,

248
Oiticica’s penetrable series resulted from his own immersion in the
Samba culture of Rio de Janeiro’s favela (shantytown), where he moved in
1964 and became a lead samba dancer in the Mangueira Samba School. His
most developed penetrable, Tropicália,320 was exhibited in 1967, in the “New
Brazilian Objectivity” exhibition held at the São Paulo Museum of Modern
Art. As an installation to be traversed by exhibition visitors, Tropicália created
a heightened, multisensorial experience of Brazil’s impoverished population,
left behind by rapid modernization. Oiticica’s fusion of art and life manifests
in a labyrinth-like environment of wooden frames, metal, terracotta, brick,
cotton fabric, plastic sheets, carpet, nylon fabric, interspersed with parrots,
plants, sand, ten poems, a television, patchouli root, and cinnamon sticks.
As an assemblage of disparate natural and manmade materials and
commonplace artifacts, both indigenous and imported, Tropicália is a
descendent of Andrade’s Anthropophagic Manifesto and a direct predecessor
to the multi-part Cosmococas, the participatory environments installed at
Inhotim. This historical connection is an important one; Tropicália is the
sensorial expression of Oiticica’s manifesto-like essay, “General Scheme of
the New Objectivity,” published in 1967 in the New Brazilian Objectivity
exhibition catalogue. In this text, Oiticica expanded upon Gullar’s Neo-
Concrete Manifesto, transforming the phenomenological into the political.
Oiticica wrote his essay in the same year that the military dictatorship
enacted a new, restrictive Constitution, which stifled freedom of speech
and political opposition, and enforced censorship of the press and the arts.
Oiticica’s essay thus intones the urgency for the Brazilian avant-garde to
take political action.321

Chris Dercon, Luciano Figueiredo and Lygia Pape, eds., Hélio Oiticica (Minneapolis, MN:
Walker Art Center and Rotterdam: Witte de With Center for Contemporary Art, 1993), pp.
17- 20; originally published as “Brasil diarréia,” in Ferreira Gullar (coord.), Arte brasileira
hoje (Rio de Janeiro: Paz e terra, 1973), p.147-152. On Oiticica’s cannibalism of Mondrian,
see: Sérgio B. Martins, Constructing an Avant-Garde: Art in Brazil, 1949-1979 (Cambridge,
MA: MIT Press, 2013), pp. 54-59. Oiticica’s appropriation of commonplace objects and
popular cultural practices align with the international Pop Art practices, while his extensive
generation of project notes and “open work” environments align with Conceptual art practices.
320. Helio Oiticia, Tropicalia, 1967. Photo: Omar Freitas (Source: http://dc.clicrbs.
com.br/sc/entretenimento/noticia/2015/10/10-bienal-do-mercosul-enfoca-ameri-
ca-latina-mas-o-que-mais-se-ve-e-arte-brasileira-4889757.html  
321. It can be argued that the Brazilian avant-garde emerged from the political unrest which
began 1961, initiated by conservative opposition to the leftist government. In 1964, this

249
Oiticica defined the New Objectivity as “an engagement and a position
on political, social and ethical problems.” He proposed the slogan “OF
ADVERSITY WE LIVE” as “the rallying cry of ‘New Objectivity’.” As Oiticica
explained, the New Objectivity mediated a collective consciousness of freedom
realized through the active spectator’s “internal search, inside the object [:]
the individual [spectator] … is invited to complete the meanings proposed
by it ‒ it is thus an open work.” It follows that in the ‘open work’ the artist
“create[s] new experimental conditions,” taking on the initiatory role of
“proposer” or “instigator.”322
As a Guggenheim Fellowship recipient, Oiticica resided in New York
from 1970 to 1978. During this time, the artist remained engaged with Brazilian
politics323 and continued producing art in the social-political spirit of the
New Objectivity. Cosmococa dates from this period. In total, there are nine
Cosmococas, numbered CC1 to CC9, collectively titled “Block-Experiments
in Cosmococa‒Program in Progress, 1973-74.”324 As Oiticica explains in the
project notes, it is through the embodied, participatory experience that
the individual gains her/his freedom: “[T]he main point in considering an
EXPERIMENTAL activity is in not limiting such an activity to its originators

political turmoil gave way to a U.S. backed military coup (which lasted until 1985). See
CALIRMAN, Brazilian Art under Dictatorship for an overview of the political conditions
and in-depth study of the Brazilian avant-garde’s response to Brazil’s dictatorship.
322. OITICICA. “General Scheme of the New Objectivity,” p. 40-43; first published in Nova
Objetividade Brasileira (Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 1967). Oiticica use the
term “instigator” in his 1966 essay, “Position and Program – Environmental Program –
Ethical Position,” as per note above.
323. According to CRUZ, “Against this backdrop [of artists’ exile during the dictatorship,]
it is interesting to note that the use of text, film and photography as artistic media made it
relatively easy for Oiticica to send his work to Brazil and circulate it locally there, which he
did throughout his entire time abroad. During this time Oiticica also incessantly wrote letters
describing his life and work in voluntary exile in New York, from 1970 on, and sent entire
series of slides and photographs to accompany his descriptions.” CRUZ. “TROPICAMP:
Some Notes on Hélio Oiticica’s 1971 Text.”
324. As curator-critic José Augusto Ribeiro explains, until Cosmococa was installed at
Inhotim, the program existed without the environments ever having been installed: it existed
only as photos, text and instructions. Ribeiro also explains that the title “Cosmococa” is
derived from other words Oiticica had coined, such as “ mancoquillage,” “which results
from the combination of Manco Capac—the name of a ruler of the Inca empire whose first
and last name join the syllables ‘Co’ and ‘Ca”’ combined with maquillage, which is a type
of painting, however cosmetic.” RIBEIRO. “Hélio Oiticica and Neville d’Almeida,” p. 148.

250
but of creating multiple let-outs for collective and individual participation
as an experimental exercise of liberty (MARIO PEDROSA).”325
At Inhotim, Cosmococa 1-5 have been realized as five room-sized
environments that occupy a single monolithic concrete building.326 Notably,
as curator-critic José Augusto Ribeiro explains, until Cosmococa was installed
at Inhotim, the program existed without the environments ever having been
installed: it existed only as photos, text and instructions.327 For Cosmococa
1-5, Oiticica collaborated with filmmaker Neville d’Almeida. Here, as in
Tropicália, the spectator-participator is immersed in a multi-sensorial
experience. Cosmococa 5 Hendrix War (FIG. 1) best exemplifies Oiticica’s
and the Brazilian avant-garde’s cannibalistic acts and participatory aesthetic.
It consists of a space hung with crisscrossed lines of multi-colored hammocks,
recalling the parangolés (the banners and capes worn by dancers in his public
performances) of Samba dancers. “Slides of images from the sleeve of Jimi
Hendrix’s War Heroes album, [outlined with] Neville d’Almeida cocaine
drawings, are projected on to the walls and ceiling of the room. Visitors are
invited to lounge in the hammocks and listen to Hendrix’s music, thereby
filling the space between the images and the music[.]”328 Here the visitor
not only animates the otherwise static hammocks, but does so in infinitely
unique ways.

325. Quoted in BUCHMANN and CRUZ. Hélio Oiticica and Neville D’Almeida: Block
Experiments in Cosmococa-Program in Progress, p. 6. To note, Mário Pedrosa, eminent
critic and intellectual in the 1960s, coined the phrase “the experimental exercise of freedom.”
According to Rina Carjaval, “[Pedrosa] used this phrase to describe those artistic practices
in Brazil, as well as the rest of the world, which sought to overcome the material consump-
tion of the object, rejected the contingencies of the art market, and privileged experiential
and collective practices.” CARVAJAL. “The Experimental Exercise in Freedom,” p. 33.
326. INSTITUTO INHOTIM. Galeria Cosmococa, 2010. http://www.inhotim.org.br/
inhotim/arte-contemporanea/obras/galeria-cosmococa.
327. RIBEIRO. “Hélio Oiticica and Neville d’Almeida,” p. 148.
328. MUSEU D’ART CONTEMPORANI DE BARCELONA. CC3-Maileryn. Quasi Cinema
(Block-Experiment in Cosmococa-Program in Progress), Collection/Holdings. http://www.
macba.cat/en/cc3-maileryn-quasi-cinema

251
Fig. 1: Hélio Oiticica and Neville D’Almeida, Cosmococa 5 Hendrix War,
1973, 2010; projectors, slides, hammock, soundtrack (Jimi Hendrix) and
audio equipment, variable dimensions, Inhotim.

Photo: Bryan Barcena.

Yet, this playful “experimental exercise of liberty” is also ruptured by


political intonations. The artist’s notes for Cosmococa 5 itemize: “record
album: WAR HEROES JIMI HENDRIX. Referring to the title of the War
Heroes LP and Hendrix’s involvement in the black liberation movement,
some of the slides show Hendrix’s face wearing make-up reminiscent of war
paint.”329 As well, cocaine raises issues both global and regional. In 1971, US
president Richard Nixon declared a ‘war on drugs,’ while illegal trade of the
commodity kept the Latin America economy solvent. Cosmococa 5 engages
the participant in the law’s subversion through his/her creative freedom.

329. Oiticica, quoted in BUCHMANN and CRUZ, Hélio Oiticica and Neville D’Almeida, p. 17.

252
Meireles: Art as embodiments of cultural trauma
Coming to artistic age during the dictatorship, Meireles cannibalized
Conceptual and Pop art both to critique political repression and to evade
censorship. Here I trace Meireles’s social activism in works dating from
the dictatorship, and extending to Red Shift and Through, among his three
Installation art works at Inhotim.330
Meireles’s own writings record his reactions to traumatic political events.
In an interview with John Alan Farmer, held in 2000, Meireles recalled that
he “started producing more explicitly political work in 1969.”331 He did so
in response to the government’s closure of an exhibition of young Brazilian
artists scheduled to open on May 29, 1969 at the Museu de Arte Moderna /
Rio de Janeiro.332 As Meireles recounted, “Three hours before the opening,
the police arrived, surrounded the museum, and ordered the show to be
dismantled immediately.” Meireles continued his response by linking this
event to his memory of student massacres under the military dictatorship:
“They used to say that for Brazil, May 1968 started on March 23, because
that was when daily confrontations with the police began, because they had
begun to kill students.”333
Meireles’s response to a similar question in 1970 directly links the political
to his art. Asked what kind of art could be significant under repressive
circumstances, Meireles answered: “If you are an artist in Brazil, you know of
at least one friend who is being tortured[.] . . . What can you as a young artist

330. As Calirman notes, Meireles joins other Brazilians who today “a certain reluctance to
being connected to the defunct dictatorship; the military regime looks moldy and musty,
a moment in the past better buried and forgotten” (CALIRMAN. Brazilian Art under
Dictatorship, p. 151). Beginning in 2002 and again in 2008, Meireles rejected the appellation
of a political artist, particularly in relation to Red Shift. However, since the first showing of
Red Shift in 1984, and again in 1998, his installation art works have provided occasions for
politicized historical readings. In that Meireles had not refuted these interpretations until
2002, I argue that Red Shift and Through mediate the cultural trauma of dictatorship, both
through the artist’s lived experience and through the works’ fabrication. See MAROJA.
“Red Shift: Cildo Meireles and the Definition of the Political-Conceptual” for a similar
attempt to restore the political intonations of Meireles’s work.
331. MEIRELES. “Through the Labyrinth: An Interview with Cildo Meireles,” p.36.
332. CALIRMAN. Brazilian Art under Dictatorship, p. 22-23. This was the Pre-Paris
Biennial, the closing of which led to an international boycott of the X São Paulo Biennial.
333. MEIRELES. “Through the Labyrinth: An Interview with Cildo Meireles,” p.36.

253
do that seems relevant and meaningful?”334 Meireles’s work from this epoch
includes Insertions into Ideological Circuits (1970-75).335 Here, the Insertion
series serves as our departure point for drawing an historical trajectory to
Através/Through and Red Shift.
Insertions into Ideological Circuits comprises a series in which Meireles
appropriated capitalist commodities – Coca Cola bottles and Brazilian bank
notes (reais), marked them with anti-government statements and put them
back into circulation.336 These works were unsigned and anonymous.337 For
the series Insertions into Ideological Circuits: Banknote Project (1970–75),
Meireles stamped Brazilian reais with ideological messages, such as “Yankees
Go Home” … and “Down with the Dictatorship”. Meireles stamped “Quem
Matou Herzog?” (Who Killed Herzog?) (1975) on bank notes “to protest the
… assassination [and the government’s cover-up] of the journalist Vladimir
Herzog.”338 In the 2000 Farmer interview, Meireles connected Insertions
directly to Gullar’s Neo-Concrete theory of spatialized art: “Remember that
the work is not what we see in a museum exhibition. … These objects are
only relics. The work itself has no materiality. ... It only exists when someone
is interacting with it.”339
In the Farmer interview, Meireles exposes how the spatialized social
effects of Insertions continue in his Installation works. Referring to the latter,
Farmer observes, “[Y]ou create situations, journeys that sometimes incite
fear, in which visitors have the opportunity to become more conscious of
their bodies in space ‒ not only in physical space, but in social space, too.”
Meireles responds: “Yes. I think that this tendency has been a characteristic
of Brazilian art. This location of an ethics in the relationship that the artist
constructs between him- or herself and the audience through the work of
art.” Here Meireles elaborates on the element of fear and its social effect: “I
play with people’s fears. Fear is the material of many of my works. … [W]hen
you have fear, your senses become heightened. You become more attentive

334. CALIRMAN. Brazilian Art under Dictatorship, p. 126.


335. Politically motivated works from this period also include Tiradentes: Totem- Monument
to the Political Prisoner (1970) and The Sermon on the Mount: Fiat Lux (1973-1979).
336. MEIRELES. “Through the Labyrinth: An Interview with Cildo Meireles,” p.36.
337. CALIRMAN. Brazilian Art under Dictatorship, p. 127.
338. CALIRMAN. Brazilian Art under Dictatorship, p. 140.
339. MEIRELES. “Through the Labyrinth: An Interview with Cildo Meireles,” p.37.

254
to your environment.” Farmer: “Does heightening the audience’s perceptual
faculties have social implications for you?” Meireles: “Of course. Taking
someone to the point of fear is a kind of initiation. That person becomes
engaged.”340 It is this sensation of fear, and its relation to the ethical, that
Meireles’s works at Inhotim compel.
Meireles’ Through (Através) (1983-89, 2007; FIG. 2 e 3), plays with
the labyrinth to induce a transient state of in-betweenness, of freedom
and restraint. Through is a 15-by-15-meter square labyrinth, comprised of
ordinary railings, wooden gates, metal fences, garden lattices, glass, paper
and plastic dividers, shower curtains, and strings of beads. Throughout
the installation, layers of broken glass shards cover the floor. At first, the
shimmering sea of greenish-blue glass is visually appealing, but the cracking
and slippery glass under our feet makes us feel unsteady and vulnerable.
Now, fear is materialized and socialized. The layers of screens intensify our
visceral response to enclosures, barriers, and transparent screens, shifting
our awareness between protection, internment and surveillance. Finally,
we arrive at the center of the labyrinth, illuminated by an enormous ball
of cellophane and tape. Here, we slow down to self-reflect upon the ball,
at once fragmented and a solitary whole. In our shared confinement, we
become mindful of the harsh light of an interrogation room, where under
the dictatorship, so many Brazilians suffered physical and psychic torture.
We might even share Meireles’s memory of friends who were tortured and
of student killings in 1968.

340. MEIRELES. “Through the Labyrinth: An Interview with Cildo Meireles,” p.38.

255
Fig. 2 e 3: Cildo Meireles, Through (Através), 1983-89, 2007, mixed media,
Inhotim. Photo: Bryan Barcena.

Photo: Bryan Barcena.

256
Red Shift (Desvio para o vermelho) (1967-1984, 2006),341 is an experience
of fear inverted. Upon entering the work, we are delighted by all things
domestic turned red. But this room (Impregnation [Impregnação]; FIG.
4) is only the first of three spaces of our transversal, during which delight
transforms to anxiety and fear.342 “In the second part, Spilled/Surroundings
(Entorno343), we discover a tiny vessel and huge puddle of red liquid in a
badly lit passageway.”344 The incongruity between the small container and
the large amount of spilled liquid is jarring. “In the last part, Shift (Desvio;
FIG. 5), the visitor is immersed in an almost completely dark room whose
single light is directed at a white sink mounted on the wall at a thirty-degree
angle with a spigot that continually gushes red liquid.”345 As we wend our
way back to the first room (FIG. 6), darkness and redness coalesce into a
sinister memory of torture, confinement, disorientation, uncertainty and
fear. When we re-enter the first room, all the red household objects register
as mundane and empty vessels of modernization gone wrong.

341. According to the INSTITUTO INHOTIM website, Red Shift was “conceived in 1967,
assembled in several versions since 1984 and on permanent display at Inhotim since 2006.”
342. Camila Maroja contrasts this red-infused room with the contemporary white gallery
space, but then responds to its associative resonance: “In Red Shift’s first space, titled
Impregnation (Impregnação), the traditional white gallery space is arranged as a typical
living room, although the familiar domestic space is made strange: all the objects are inex-
plicably red. The room works as a collection of color: from the fish swimming in a bowl to
the furniture and decoration, everything is red ‒ a fact that foregrounds Meireles’s comment
to the effect that it is a work of chromo-poetics. … Here, color cannot be reduced to any
straightforward association ‒ including blood, violence, or communism ‒ but operates in
a more subtle way, proposing different ways to view common objects and everyday life.”
MAROJA. “Red Shift,” p.55.
343. Red Shift: Spilled/Surroundings (Entorno). (Source: [note “credit: inhotim.org.br]
http://imguol.com/blogs/74/files/2015/06/Cildo-Meireles.jpg)
344. MAROJA. “Red Shift,” p.55.
345. As Maroja observes, “The artwork is circular in that, as Meireles explained, liquidity
is the state that is constant throughout the piece.” MAROJA, “Red Shift,” p.55.

257
Fig. 4: Cildo Meireles, Red Shift (Desvio para o vermelho): Impregnation
(Impregnação), mixed media, 1967-84, 2006; Inhotim.

Photo: Bryan Barcena.

Fig. 5: Cildo Meireles, Red Shift: Shift (Desvio), det. tilted sink with faucet
running red liquid.

Photo: Author.

258
Fig. 6: Cildo Meireles, Red Shift, exit from Spilled/Surroundings (Entorno)
to Impregnation (Impregnação).

Photo: Author.

If our experience of fear re-embodies the artist’s own visceral response


to the cultural trauma of censorship, brutality and terror, then Meireles has
realized his ideal spectator-participator of his works. However, as installed
among the international collection of Installation art at Inhotim, Meireles’s
Red Shift and Through are stripped both of their enduring legacy with the
Brazilian avant-garde and the embodiment of trauma in the works’ fabrication.
Alternatively, Oiticica’s Cosmococa sites suffer less in this setting. In these

259
environments, the “open work” guarantees that individual creative freedom
endures. Upon further reflection, however, we can restore Brazil’s cultural
heritage at Inhotim more broadly by considering its uniquely dynamic
museological design.

The Participatory Aesthetic as Museological Experience at


Inhotim
The participatory and transformative aesthetics that present in Oiticica’s
and Meireles’s Installation art works resonate in the entire museological
experience of Inhotim’s environment. Figuring among the multiple
Installation art pavilions dispersed throughout the botanical gardens, tropical
forest interiors, or landscape clearings, these complexes compel real-time
and real-body transformations that are both personal and social. As we
alternately pass through open-air spaces and enclosed gallery spaces, we
simultaneously pass through shared social spheres and solitary mindfulness.
Upon entering the pavilions, we are at once immersed in the Installation
art works, whereupon we engage with the defamiliarization of familiar
objects, sounds, and places. This defamiliarization process compels the
viewer/participant to rethink our values, expectations, and knowledge base.
Leaving the installation enclosure, we re-enter the verdant gardens, forest,
and clearings. Now, however, we are (socially) transformed by our internal
reflections upon the ruptured aesthetic experience that each installation
engenders. This transformative experience is not by chance. According to
Inhotim’s curatorial staff, the dynamic dualism between “nature” and “art”
is subtlety choreographed to facilitate the visitors’ immersive experiences
through which our senses and minds are alternately stimulated and calmed.346
To be sure, these participatory and transformative aesthetics are
consonant with global contemporary art practices. Notwithstanding, I assert
that Inhotim is an Installation art work writ-large, securely anchored in the
Brazilian avant-garde. To substantiate this claim, I demonstrate Inhotim’s

346. WEINGARDEN, interviews with art curator Rodrigo Moura and Botanical Garden
Director Lucas Sigefredo, April 2012.

260
museological alignment with Tunga’s strategy of “instauration,” a performative
practice that foregrounds the social dynamic in his Installation work.

Tunga’s “Instauration”: A Performative Strategy for Inhotim


“Instauration” is the term Tunga used to refer to a frequent strategy of
his work, a term he preferred over “performance.”347 As such, instauration
is a means for inscribing both a reflection of Brazilian daily life and a trace
of (actual) performances enacted in his works. Tunga has said that his
performance art is “a poetic way of experiencing everyday aspects. But my
reality is made up of things that are not always visible [in daily life].”348 Suley
Rolnick further explains, “instauration” signifies Tunga’s “incorporation into
[his] work of art, people who are strangers to the art world, who improvise a
performance with rituals and objects suggested by the artist.” Subsequently,
“the remains of the performance stay in the exhibition as an installation.”349
As the artist stated, each time performers occupy the work, “the structure
is remade, creating a new situation, a new thought. The works of art are
like onions. There is always one more layer.”350 Notably, the True Rouge
installation at Inhotim is both a remnant and an enlargement of the setting
for a performance piece.351 In 1997 performance, naked men and women
scattered buckets of red gelatin through the nets, the matter of which slowly
settled on the floor in large puddles. Thus the red puddles that figure in the
installation are traces of the earlier performance. Performativity continues
as ‘another layer’ in the current True Rouge setting; as previously stated,
the gallery visitors incur constant shifts in the suspended network of string
and artifacts.

347. FURLANETO. “Tunga mostra performances históricas em pavilhão de Inhotim.”


348. HARRIS. “Inhotim 2012 Premiere: Tunga.”
349. ROLNICK. “Despachos at the museum: Who knows what may happen...”, note 2.
See also ROLNIK.
“Tunga: Instauration of Worlds”;, p. 137-59.
350. Quoted and translated from FURLANETO. “Tunga mostra performances históricas
em pavilhão de Inhotim.”
351. The True Rouge performance was repeated at Inhotim during the inauguration of the
Tunga Pavilion in September 2012. (http://gq.globo.com/Cultura/noticia/2016/08/inho-
tim-celebra-10-anos-com-programacao-em-homenagem-tunga.html)

261
In the True Rouge event, the performers were “professionals,” rather
than local laypeople who have populated his other works. These include
ANXIOUS ASPIRING ASTONISHMENT (1996)352 and Teresa (Tereza; 1998);353
each work only exists because of the “strangers” presence as the work’s
embodiment.354 For example, when Teresa was previously seen in Los Angeles,
São Paulo and Buenos Aires, “100 ex-prisoners and homeless men, along with
entwined rope-like sculptures, were featured in the piece.”355 When Teresa
was seen at Inhotim in 2012, local gardeners from the museum complex
participated356. Notably, this performance marked the inauguration of a 2,600
square-meter gallery dedicated to Tunga, including six major installations
acquired by Inhotim since 2002.357 Traces of the performance are comprised
of braided grey blankets that meander through multiple gallery spaces and
down a stairway. The resulting organic, non-linear arrangement suggests the
gardeners’ random placement of the braids as they proceeded to “install”
the piece through the gallery spaces.
Given Tunga’s advisory role in Inhotim’s founding, the artist’s strategy of
instauration secures the museum’s foundational principles, and its enduring
socio-cultural mission, in Brazil’s historical avant-garde. In this regard, the
artist’s performative installations and Inhotim-as-Installation art extend
“the experimental exercise of liberty” as practiced by Oiticica and mandated

352. Presented in 1996 as part of the exhibition Transparências (Transparencies), at the


Museum of Modern Art of Rio de Janeiro, ANXIOUS ASPIRING ASTONISHMENT in-
volved “fifty young men dressed with special T-shirts and caps, carry briefcases that would
inadvertently open, spilling their contents – mingled elements, sand with jelly and several
niceties. This provoked an anxious aspiring astonishment in their suitcases. … The men
removed pearls, seeds, thermometers from their pockets, read Shakespeare’s ‘The phoenix
and the turtle’ for the audience as a poetic greeting.” http://www.tungaoficial.com.br/en/
trabalhos/e-a-a-espantos-aspiratorios-ansiosos/
353. HARRIS. “Inhotim 2012 Premiere: Tunga.”
354. The Tunga Pavilion at Inhotim includes his performance/installation art work “in-
side out, upside down” [“Under my Hat,” 1995] 1997, http://www.tungaoficial.com.br/en/
trabalhos/insideoutupsidedown/
355. Cf. http://www.tungaoficial.com.br/en/trabalhos/tereza-2/
356. TUNGA. Teresa (Tereza), performance, 2012, Psicoativa (Psychoactive) Tunga
Gallery, Inhotim. Photo: Carolina Overmeer (Source: http://harpersbazaar.uol.com.
br/cultura/carolina-overmeer-visita-o-pavilhao-de-tunga-em-inhotim/[MA1] )
357. As Gareth Harris reports, “[T]he artist has created a series of five performances to
mark the opening of the pavilion.” HARRIS. “Inhotim 2012 Premiere: Tunga.”

262
by Neo-Concretism. In fact, both Tunga and Bernardo Paz echo the older
artist’s conception of art as environments for social inclusion and diversity,
wherein ordinary activities and materials activate aesthetic responses in
their users. For Tunga, instauration was also a means of overcoming Brazil’s
extreme socio-economic divisions, so that the aesthetic space is where such
divisions dissolve. As he explained,
My experience as an artist is to show a work to people who do not come
from a ‘high culture’ milieu, but are capable of being deeply affected by
what they have seen. And to show the same piece to people who come
from a ‘high culture’ milieu, the so-called sophisticated public, and
they too will be deeply affected and capable of elaborating the same
phenomenon in a different way.358

Bernardo Paz’s museological role as social benefactor not only echoes


his Gilded Age predecessors, but also Tunga’s strategy of instauration. Paz
translated this strategy into his idea of a museum as not only a transformative
experience but a democratizing environment as well. We have already noted
how Paz aspired to “drop the wall” of traditional cultural institutions so as
to allow “people” to “enter” and become “educated,” facilitating “the poor
more than the rich.”359 In another interview, Paz explained his belief in the
transformative benefits of the public museum:
But I’m saying that Inhotim is a cultural mechanism that helps people
grow mentally, helps to make people better. I mean, is Inhotim beautiful?
It is. When I turned Inhotim into a public place, I began to see the
sparkle in the eyes of the people, they couldn’t believe what they were
looking at, and when foreigners come here they are amazed.360

The question of Paz’s belief in the transformative social power of Inhotim


continues in another interview, where the interviewer asked about the example

358. TUNGA. Tunga by Simon Lane.


359. As Paz recalled, “My parents were socialists, used to participate of the socialist
movement in Brazil and I went through it without realizing what they were doing.” PAZ.
Interview with Beverly Adams..
360. PAZ. Bernardo Paz fala da importância da arte contemporânea. Entrevista concedida
a Marília Gabriela.

263
Inhotim sets for other museums.361 Paz was quick to respond by emphasizing
Inhotim’s uniqueness as a museum. Yet, in doing so, he inadvertently betrayed
the museum’s legacy within the Brazilian avant-garde.
First, the model… There’s no model of exposition if you are dealing
with art, and this is not a Brazilian model, Inhotim is an international
thing. Nobody, in the whole world, shows art like Inhotim does, nobody.
The famous museums can have 200 Picassos, but any person feels a lot
more in Inhotim. Inhotim is contemporary art, it’s interactive art, the
people participate in the art. If the art is heavy, they can get out and look
at a wonderful landscape right outside. They can sit, rest, look at the
birds, the ducks, the water, the lagoon. And then you get into another
pavilion and have another living experience. This is not Brazil, this is
in Brazil, but this is the world.362

Here, despite himself, and his global identity for Inhotim, Paz
extolled Inhotim as a participatory, collective and mindful experience. By
characterizing Inhotim’s in these terms, Paz captured and encapsulated
the essence of Brazilian avant-garde, thanks largely to Tunga’s nativized
internationalism.
When Paz’s and Tunga’s internationalism is viewed in this light, we might
also ground Inhotim in the historical avant-garde’s acts of anthropophagy.
Just as the artists ‒ Oiticica, Meireles, and Tunga ‒ devoured the European
and U.S. avant-gardes in order “to produce a new and stronger Brazilian
culture,” Inhotim’s museum complex swallows international contemporary
art in a like manner. Here the individual pavilions, which house Installation
art works of global artists, are nestled within Brazil’s indigenous vegetation
and landscape designs. As the museum visitor follows the meandering paths
of the Burle Marx-inspired gardens, s/he becomes immersed not only in
Brazil’s natural terrain, but also in the performative and transformative ethos
of Brazil’s modernist heritage. By these means, Brazil has “cannibalized”

361. “Ostensibly” because Paz cuts off the interviewer who started his question: “So you
think your model is changing the…”
362. PAZ. Interview with Beverly Adams.

264
international contemporary art so that the “global” is experienced in a
uniquely Brazilian way.

Postscript
Appropriately named Psicoativa (Psychoactive) Tunga Gallery, the
multi-leveled exhibition space was inaugurated in September 2012 to display
thirty years of Tunga’s creative activity. As such, the Tunga Gallery presents
as a monumental, one-man museum, distinctive in scale and scope from
the one-story pavilions located nearby. After a long battle with cancer,363
Tunga passed away in June 2016, a few months shy of the fourth anniversary
of the Gallery’s inauguration. Whether or not Bernardo Paz intended the
gallery as an homage or (anticipated) memorial remains unknown. What is
certain, according to the Inhotim website, is that Paz intended the gallery to
pay homage to “the artist who first influenced businessman Bernardo Paz
to invest in contemporary art.”364 In casting this testament, Paz also paid
tribute to the Brazilian avant-garde’s legacy and ensured its endurance in
Brazil’s cultural and environmental fabric that is Inhotim.

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de Alberto Dwek Moura e Izabel Murat Burbridge. Brumadinho: Inhotim
Centro de Arte Contemporânea, 2009.

268
NOTA SOBRE OS AUTORES

ANDRÉ MELO MENDES : Professor Adjunto do Departamento de


Comunicação Social da UFMG. Possui doutorado (2008) em Literatura
Comparada pela UFMG. Realizou parte da tese de doutorado na Indiana
Universtiy (Bloomington). Sua dissertação de mestrado foi vencedora do
Prêmio Moinho Santista Juventude de 2002, sendo publicada pela Editora
da UFMG em 2007 com o título O amor e o diabo na obra de Angela Lago: a
complexidade do objeto artístico. Vice-Diretor do Espaço do Conhecimento
UFMG (2017), Coordenador do Núcleo de Comunicação do Espaço do
Conhecimento UFMG (2016-2017); Tem experiência na área de Comunicação,
atuando principalmente nos seguintes temas: teorias da comunicação,
semiótica, comunicação visual, estética, análise de imagens, fotojornalismo,
Angela Lago, Guimarães Rosa, Arlindo Daibert.

ANGELO MAZZUCHELLI GARCIA: Professor Adjunto da Escola de Belas


Artes da UFMG. Pós Doutor em Artes – EBA/UFMG (projeto financiado
pela Fapemig). Doutor em Letras: Estudos Literários – FALE/UFMG, com
período sanduíche na FCSH/UNL – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa. Mestre em Artes Visuais: Arte e Tecnologia
da Imagem – EBA/UFMG. Autor do livro “A literatura como design gráfico:
a linguagem em cena” (Editora C/Arte). Editor da revista “Grafias UFMG”.

BRUNILDA T. REICHMANN: É doutora em Literatura Comparada pela


UNL (USA) e pós-doutora em Intermidialidade pela UFMG. Foi professora
titular da UFPR e atualmente é coordenadora e professora do Programa de
Pós-Graduação em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de
Andrade – Uniandrade, PR. Em 2002 fundou a revista Scripta Uniandrade, da
qual é editora, com vários números voltados ao estudo da intermidialidade.
Criou, juntamente com Eliana Lourenço de Lima Reis, o GT Intermidialidade:
Literatura, Artes e Mídias da ANPOLL, onde atuou como coordenadora de

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2014-2018. É membro do GT Intermídia do CNPq, liderado pela Professora
Thaïs Flores Nogueira Diniz. Publicou vários artigos sobre intermidialidade
e organizou o livro Assim transitam os texto: ensaios sobre intermidialidade
(2016). Tem atualmente trabalhado com a adaptação de séries televisivas.

CECÍLIA NAZARÉ DE LIMA: Professora Adjunta do Departamento de


Teoria Geral da Música da Escola de Música da UFMG. Possui doutorado
em Cinema, pela Escola de Belas Artes da UFMG, e mestrado em Música,
pelo Instituto de Artes da Unicamp. É graduada em Piano, pela Universidade
do Estado de Minas Gerais, e em Composição, pela Escola de Música da
UFMG. Algumas de suas partituras estão publicadas no site do Projeto Sesc
Partituras do Sesc Palladium. Integra os grupos de pesquisa Intermídia:
estudos sobre a intermidialidade e Resgate da canção brasileira, com os
quais vem publicando artigos e partituras.

JAMES CISNEROS: Professor do Departamento de Literaturas e de


Línguas Modernas na Universidade de Montreal, Canadá, onde é membro do
comitê científico do centro de pesquisa sobre a intermidialidade (CRIalt). É
co-organizador de dois números da revista Intermédialités. Histoire et théorie
des arts, des lettres et des techniques: “Raconter/Telling”, sobre a narração, e
“Bâtir/Build”, sobre a arquitetura e espaço urbano.

JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES: Publicou Territórios/conjunções –


poesia e prosa críticas de Murilo Mendes (Imago, 1993), Por que ler Manuel
Bandeira (Globo, 2008) e Entre reescritas e esboços (Topbooks, 2010). É autor
do texto “Les rapports entre poème visuel et livre dans la poésie concrète
brésilienne », no volume Livres de poésie, jeux d’espace (org. I. Chol, B. Mathios,
S. Linares ; Honoré Champion, 2016). Organizou, com Flora Süssekind,
o volume Sobre Augusto de Campos (FCRB/7Letras, 2004). Pesquisador
aposentado da Fundação Casa de Rui Barbosa.

LAUREN S. WEINGARDEN: Professora de História da Arte na


Universidade Estadual da Flórida em Tallahassee, FL. Membro do conselho
da Associação Internacional de Estudos Palavra&Imagem (IAWIS) desde
1990. O foco de suas publicações é a inter-relação entre textos escritos e

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visuais e a respectiva função em contextos culturais do século XIX. Entre
suas principais publicações está o volume Louis H. Sullivan and a 19th-
Century Poetics of Naturalized Architecture (Ashgate, 2009), assim como
vários artigos acerca da modernidade francesa, conforme definição de Charles
Baudelaire e representações visuais de Edouard Manet. Em 2012, recebeu
auxílio de pesquisa pela Fulbright com o projeto “Trajectories of Baudelairean
Modernity: Brazil’s Inhotim in Context”, desenvolvido parcialmente na
UFMG.

LUCI COLLIN: Poeta, ficcionista e tradutora, tem 20 livros publicados


entre os quais Querer falar (poesia, Finalista do Prêmio Oceanos 2015),
Nossa Senhora D’Aqui (romance, 2015) e  A palavra algo (Prêmio Jabuti
2017 - poesia). É uma das organizadoras do livro de ensaios Ao vires
isto - Gertrude Stein, tradução & intermidialidade (2018). Participou de
diversas antologias nacionais e internacionais (EUA, Alemanha, França,
Bélgica, Uruguai, Argentina, Peru e México). Bacharel em Música (Piano
e Percussão Clássica) e graduada em Letras Português/Inglês concluiu, na
USP, o Doutorado e dois estágios pós-doutorais. Desde 1999 é Professora
de Literaturas de Língua Inglesa no Departamento de Letras Estrangeiras
Modernas da UFPR.

MÁRCIA ARBEX: Professora Titular da Faculdade de Letras da


UFMG, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários,
e pesquisadora pelo CNPq. Doutora em Literatura Francesa pela Université
Sorbonne Nouvelle - Paris 3, desenvolve desde então suas pesquisas na linha
Literatura, Artes e Mídias. Dentre as suas publicações destacam-se Alain
Robbe-Grillet e a pintura: jogos especulares (2013), Universo Butor (2012),
Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem (2006), Interartes
(2010). Publicou diversos artigos e traduziu obras de G. Didi-Huberman. É
editora da Aletria: Revista de Estudos da Literatura e membro dos grupos de
pesquisa CRIalt – Centre de recherches intermédiales sur les arts, les lettres et
les techniques, Université de Montréal; CEEI – Centre d’Étude de l’Écriture et
de l’Image, Université Paris Diderot; Intermídia, UFMG/CNPQ.

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MARIA DO CARMO DE FREITAS VENEROSO: Professora Titular da
Escola de Belas Artes da UFMG, onde atua no programa de Pós-graduação em
Artes, pesquisadora do CNPq. Doutora em Estudos Literários pela Faculdade
de Letras da UFMG e Mestre (Master of Fine Arts) pelo Pratt Institute, New
York, desenvolve pesquisas na linha Artes plásticas, visuais e interartes. Suas
publicações incluem os livros: Caligrafias e Escrituras. Diálogo e intertexto
no processo escritural nas artes no século XX (2012), Diálogos entre linguagens
(2009) em co-autoria com Maria Angelica Melendi, Maria do Carmo Freitas
– Depoimento (Coleção Circuito Atelier da Editora C/Arte (2004). É membro
do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA), da Associação Brasileira
de Críticos de Arte (ABCA); coordena o grupo de pesquisa Caligrafias e
Escrituras, UFMG/CNPq e integra o Intermídia, UFMG/CNPq.

MARÍLIA ANDRÉS RIBEIRO: Historiadora, crítica de arte, curadora,


professora e pesquisadora da arte brasileira moderna e contemporânea.
Licenciada em Filosofia pela FAFICH/UFMG (1972); Mestre em Artes Liberais
pela State University of New York at Stony Brook, USA (1975); Doutora em
Artes, pela ECA/USP, São Paulo (1995) e Pós-doutora, com supervisão do
Prof. Dr. Francisco Jarauta, pela Universidade de Murcia/Espanha (2014).
Publicou os livros: Neovanguardas: Belo Horizonte, anos 60, Belo Horizonte,
Editora C/Arte (1997) e Introdução às Artes Visuais em Minas Gerais, Belo
Horizonte, Editora C/Arte (2013).

MÍRIAN SOUSA ALVES: Doutora em Literatura Brasileira pela Faculdade


de Letras de UFMG, mestre em Cinema e Vídeo, pela York University
(CA) e bacharel em Comunicação Social / Jornalismo pela UFMG. É
professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET-MG
e atua como professora no ensino técnico e tecnológico, no Bacharelado
em Letras (Tecnologias da Edição) e no Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens. É integrante do Núcleo de Estudos Atlas (Análises
Transdisciplinares em Literatura, Arte e Sociedade), vinculado ao CNPq.
Atua nas áreas de Letras e Comunicação, com pesquisas relacionadas à
tradução intersemiótica e a narrativas audiovisuais.

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MIRIAM DE PAIVA VIEIRA: Professora Adjunta do Departamento de
Letras, Artes e Cultura, Universidade Federal de São João del Rei, onde atua
no Programa de Mestrado em Letras (PROMEL). Doutora em Teoria da
Literatura e Literatura Comparada (mobilidade na Universidade de Lund,
Suécia) e Mestre em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais. Fez pós-doutorado financiado pelo programa PDJ/CNP na
mesma instituição. Bacharel em arquitetura.  Suas áreas de pesquisa incluem
os estudos sobre a intermidialidade e seu ensino no âmbito da graduação,
os fenômenos midiáticos écfrase e adaptação, com ênfase nas relações entre
literatura, pintura e arquitetura.

MÔNICA PEDROSA DE PÁDUA: Doutora em Letras – Literatura


Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG (2009). É professora
associada da Escola de Música da UFMG e atual Diretora da Instituição.
Atua nas linhas de pesquisa Performance Musical e Sonologia do programa
de Pós-graduação em Música. É membro do Grupo de Pesquisa Resgate da
Canção Brasileira inscrito no diretório de pesquisa do CNPq em 2003. É
atual co-coordenadora do Projeto Plano de Cultura da UFMG e integra o
comité executivo do Fórum UFMG de Cultura. Atua regularmente como
cantora em música de câmara e concertos com orquestra como o Réquiem
de Brahms, o Réquiem de Mozart e a Missa Brevis de Beethoven.

THAÏS FLORES NOGUEIRA DINIZ: Professora associada, colaboradora


do programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade
Federal de Minas Gerais. e especialista em tradução intersemiótica e teatro
contemporâneo. Suas áreas de pesquisa incluem a relação entre a literatura
e as outras artes, especialmente o cinema, estudo sobre mitos e sobre a
intermidialidade. Fez seu doutorado na UFMG e na Indiana University at
Bloomington, nos Estados Unidos, obtendo o título em 1994. Fez seu pós-
doutorado em Londres, no Queen Mary College, University of London em
2004.  Atualmente coordena o grupo de pesquisa Intermídia.

273
VANESSA CARDOZO BRANDÃO. Professora Adjunta (DE) do
Departamento de Comunicação Social da UFMG. Graduada em Comunicação
Social (UFMG, 1997), Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa (PUC
Minas, 2005) e Doutora em Literatura Comparada (UFF, 2010), com
dissertação e tese defendidas sobre a obra de José Saramago. Pesquisa nas
áreas de Comunicação e Literatura, com os temas pós-modernidade e
produção literária, intermidialidade e estética da recepção (novos processos
de produção, leitura e textualidades nas redes digitais).

VERA CASA NOVA: Professora aposentada da Faculdade de Letras


da UFMG. Suas áreas de pesquisa concentram-se em Teoria da literatura,
Literatura brasileira e comparada, e atua nos interstícios da escritura e das
artes, da análise semiótica e das poéticas contemporâneas. Fez estágio de
pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris
com supervisão de Georges Didi-Huberman, em Antropologia da imagem.
É membro editorial das revistas Aletria, Interfaces. Organizou os livros
Viver com Barthes (2005), Estação Imagem: Desafios (2002), Interartes (2010)
entre outros. Fricções: traço, olho e letra (2008), Texturas (2000), Lições de
almanaque: um estudo semiótico (1996), entre outros. É também ensaísta
e poeta com participação em exposições de poesia visual em BH e livros
publicados, entre outros: Lucia Rosas: textos impuros (2000), Desertos (2004),
Rastros (2006), Poemas da página e da tela (2014). Como tradutora, traduziu
e traduz obras de Georges Didi Huberman, publicados pela Editora da
UFMG e Com Arte. Foi Pesquisadora do CNPQ.

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formato: 15,5cm x 22,5cm | 276p.
tipologias: Minion Pro, Myriad Pro

coordenação. editorial: Betânia G. Figueiredo


diagramação: Marcela Paim
capa: Marcela Paim
Imagem da capa: Philippe Enrico, “la grande roue”
(detalhe), 1994-1999, Marselha-Belo Horizonte, 200
x 280 x 2 cm, técnica mista.
revisão de textos: Cláudia Rajão
ISBN 978-85-8054-400-8

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