O artigo tem o propósito de desenvolver as teorias do
comportamento criminoso, não de purificar ou reformar nada além da criminologia (= como as desigualdades sociais, por exemplo?). Para isso, realiza uma comparação do crime praticado nas classes mais altas – compostas por respeitáveis ou, ao menos, respeitados homens de negócios – com o crime praticado nas classes mais baixas – compostas por pessoas de baixo status social.
As estatísticas criminais mostram inequivocamente que o
crime, como popularmente concebido e oficialmente mensurado, tem alta incidência nas classes mais baixas e baixa incidência nas classes superiores da sociedade. Menos de 2% das pessoas enviadas à prisão pertencem às classes mais elevadas. Estas estatísticas dizem respeito aos criminosos submetidos ao trabalho da polícia, dos juízos penais/ juizados de infância e levados à prisão, e a crimes como homicídio, assalto à mão armada, roubo a residências, roubo, furto, crimes contra a liberdade sexual e embriaguês pré- ordenada, mas exclui o tráfico de drogas.
Os principais dados utilizados tradicionalmente pelos
criminologistas são precedentes judiciais e estatísticas criminais, obtidos nos órgãos da justiça criminal. A partir destes dados foram criadas teorias gerais do comportamento criminoso. Como esses dados demonstram que o crime está concentrado nas classes mais baixas, essas teorias concluem que o crime é causado pela pobreza ou por características pessoais ou sociais associadas estatisticamente com a pobreza, inclusive fraqueza intelectual, psico-patologias, ambiente favelizado e famílias deterioradas. É claro que esta síntese não faz justiça às variedades qualitativas das teorias convencionais sobre o comportamento criminal, mas apresenta corretamente a tendência central de todas elas.
A tese deste artigo é que estas análises estão iludidas e
incorretas. Na verdade, o crime não está estreitamente relacionado com a pobreza ou com psicopatias ou sociopatias associadas à pobreza. Uma adequada explicação do comportamento criminoso deve seguir um raciocínio bem diferente.
Estas teorias convencionais são inválidas principalmente
porque elas derivam de uma amostra de dados viciada. E essa amostra é viciada porque deixa de incluir várias áreas de comportamento criminoso ligadas a pessoas que não são das classes mais baixas. Uma dessas áreas negligenciadas é o comportamento criminoso do homem de negócios, que será analisado neste artigo.
Todo mundo concorda que os “barões do roubo” da
segunda metade do século XIX foram criminosos do colarinho branco. Algumas frases destes barões apóiam essa afirmação: 1) Colonel Vanderbilt perguntou: “Você não supõe que se possa gerir uma ferrovia de acordo com as leis, supõe?”; 2) A. B. Stickney, presidente de uma ferrovia, disse a dezesseis outros presidentes na casa de J. P. Morgan em 1890: “Eu tenho o maior respeito pelos senhores cavalheiros enquanto indivíduos, mas, como presidentes de ferrovias, eu não confiaria em vocês sem tomar minhas precauções”; 3) Charles Francis Adams disse: “A dificuldade de gerenciar uma ferrovia repousa na ambição (que se pretende de boa-fé) associada ao reduzido tom moral dos gerentes, e na completa ausência de qualquer padrão mais elevado de honestidade comercial”.
Os criminosos de colarinho branco atuais, que são mais
suaves e enganosos do que os ‘barões do roubo’, são hoje Krueger, Stavisky, e vários outros príncipes do mercado e capitães da finança e da indústria, e vários seguidores menores. Sua criminalidade tem sido demonstrada repetidamente nas investigações do real estado financeiro, dos comitês de reorganização, da falência e das políticas de imobiliárias, ferroviárias, seguradoras, indústria de armas, instituições financeiras, indústria do petróleo, etc. Casos individuais desta criminalidade têm sido reportados com freqüência, mas as notícias mais importantes deste tipo de crime são encontradas, em regra, nas páginas de finanças dos jornais, e não na capa. A criminalidade do colarinho branco existe em todas as áreas negociais e pode ser facilmente descoberta numa conversa informal com um representante de uma destas áreas, perguntando-lhe: quais são as práticas incorretas/deturpadas que se encontram na sua ocupação?
A criminalidade do colarinho branco é vista mais
frequentemente na distorção das normas financeiras das corporações; na manipulação do mercado; suborno comercial; suborno de representantes do Estado para assegurar contratos e normas favoráveis; deturpação de advertências e fraude negocial; apropriação indevida de fundos ou sua aplicação contrária às normas; fraudes tributárias. É o que Al Capone chamou de “o legítimo mercado negro”.
No mundo médico profissional, por exemplo, encontra-se a
venda ilegal de álcool e drogas; aborto; serviços ilegais ao submundo do crime; relatórios fraudulentos; casos de tratamento desnecessário; falsos especialistas; partilha fraudulenta de honorários, que inclusive viola as condições de admissão à prática de medicina (caso do médico que encaminha o paciente não ao melhor cirurgião, mas àquele que lhe pagará mais honorários). Os dados revelam que dois terços dos cirurgiões da cidade de Nova Iorque praticam a partilha de honorários!
Estes variados tipos de crimes de colarinho branco no
mundo dos negócios e das altas-profissões consistem, praticamente, de violação de confiança delegada ou implícita, e muitos deles podem ser reduzidos a duas categorias: 1) prática de distorção dos valores; 2) dubiedade através da manipulação do poder. No primeiro caso, os crimes envolvem fraudes e trapaças; no segundo, é similar à traição da confiança (usando o poder que lhe foi outorgado em benefício próprio, unilateral). Neste último caso, o ofensor ostenta duas posições antagônicas, uma de confiança, que vem a ser violada, geralmente por desvio na aplicação de fundos do interesse da outra posição. Não há disponível uma comparação estatística acurada dos crimes praticados nas duas classes sociais. A evidência mais ostensiva da natureza e prevalência da criminalidade do colarinho branco é encontrada nas grandes investigações. Tendo em vista seu caráter disperso, essa evidência é admitida como verdadeira. Algumas ilustrações (e não “provas”) da prevalência dessa criminalidade:
1) Em 1920, a Organização Federal do Comércio reportou
que o suborno comercial é uma prática comum e prevalente em várias indústrias. (vários dados estatísticos provam isso)
2) A criminalidade de colarinho branco na política é
generalizadamente conhecida como prevalente e funciona como um medidor ‘bruto’ da criminalidade de colarinho branco no mundo dos negócios – o padrão de conduta é o mesmo no mundo político e no empresarial.
Isto mostra que o crime não está tão concentrado nas
classes sociais mais baixas quanto as estatísticas indicam.
Além disso, o custo financeiro dos crimes de colarinho
branco é provavelmente tão grande quanto o custo de todos os crimes tradicionalmente vistos como ‘o problema criminal’. Por exemplo, um executivo de uma cadeia de supermercados que se apropria indevidamente de 600.000 dólares de uma loja num ano gera perdas seis vezes maiores do que s perdas anuais oriundas de quinhentos roubos de lojas daquela cadeia. Os inimigos públicos n° 1 a 6 em 1938 geraram perdas de 130 mil dólares por roubos, enquanto que Krueger se apropriou de uma soma total de 250 milhões de dólares (quase duas mil vezes superior).
As perdas financeiras geradas pelos crimes de
colarinho branco, que são imensas, ainda são menos importantes do que os danos causados para as relações sociais. Ao violarem a confiança, esses crimes criam desconfiança, que diminui a moral social e produz uma desorganização social em larga escala.
Qual é o critério para que algo seja considerado violação
da lei penal (ou para que uma conduta seja considerada crime)? A condenação numa corte criminal, sugerida como critério por alguns, não é adequada, pois muitos dos que cometem crimes não são condenados criminalmente. O critério, portanto, precisa ser complementado. Para tanto, não se pode esquecer que o critério do que é crime para uma classe social deve valer também para os crimes da outra classe. A definição não deve estar no espírito da lei, para o crime de colarinho branco, e na letra da lei, para os outros crimes. Como esta discussão está preocupada com as teorias criminológicas convencionais, o critério para o crime de colarinho branco deve ser justificado nos mesmos termos que o fazem os criminologistas ao lidar com outros crimes. O critério do crime de colarinho branco, como proposto no artigo, complementa o critério da condenação criminal em quatro aspectos, em cada um dos quais a extensão é justificada porque os criminologistas que apresentam as teorias convencionais do comportamento criminoso fazem a mesma extensão em princípio.
Primeiro: outros órgãos além da justiça criminal devem ser
incluídos, pois os tribunais criminais não são os únicos a julgar violações da lei penal. Assim, os criminologistas tradicionais já utilizam estatísticas de juizados da infância e da adolescência para analisar o comportamento criminoso, muito embora esses juizados não façam parte da justiça criminal. Portanto, também em relação aos crimes de colarinho branco isso deve ser admitido. Neste aspecto, os órgãos administrativos trabalham em muitos casos de violação da lei penal (órgãos como o CADE, por exemplo). Estes dados devem ser incluídos nos estudos de criminologia e não fazê- lo é uma das principais razões pelas quais suas amostras estão viciadas e suas generalizações estão equivocadas. Segundo: para as duas classes, o comportamento que teria uma expectativa razoável de condenação numa corte criminal ou num órgão administrativo equivalente deve ser definido como criminoso. Isto porque muitas vezes a parte ofendida está mais interessada em recuperar suas perdas monetárias do que em infligir uma pena. É o que acontece em casos de apropriação indevida de recursos de uma companhia (90% dos casos não são penalmente processados, pois isto poderia interferir na restituição dos valores pelo ofensor).
Terceiro: o comportamento deve ser considerado
criminoso se uma condenação é evitada apenas por causa da pressão exercida sobre órgãos da justiça criminal ou de instituição estatal correspondente. Exemplo: gangsters e mafiosos têm permanecido relativamente imunes em muitas cidades por força da pressão sobre testemunhas e oficiais do Estado. Mesmo assim, a criminologia tradicional usa esses dados por entender esta relação geral entre a pressão e a ausência de condenação. Assim também deve ser feito em relação aos criminosos do colarinho branco, que estão relativamente imunes à condenação devido à parcialidade (vício) de classe das cortes e ao poder que a classe desses criminosos exerce sobre a implementação e execução da lei. Esta parcialidade de classe afeta não só as cortes atuais, mas, num grau muito mais elevado, as cortes antigas, que exatamente estabeleceram os precedentes e regras processuais aplicadas hoje em dia. Assim, é justificável interpretar a atual ou potencial ausência de condenação à luz dos fatos notórios/conhecidos, considerando a pressão exercida sobre os órgãos que lidam com os criminosos do colarinho branco.
Quarto: pessoas que auxiliam o crime de colarinho
branco devem ser incluídas entre esta espécie de criminosos, tal como se faz em relação a outros crimes. Ao contrário do que ocorre em outros crimes, a investigação e o processo por crimes de colarinho branco costuma parar em um só criminoso. Mas, por exemplo, o suborno político normalmente envolve o conluio entre políticos e empresários, mas a persecução penal geralmente se limita aos políticos.
Esta análise dos critérios para obter dados mais reais da
criminalidade de colarinho branco resulta na conclusão de que a descrição desta criminalidade, em termos gerais, será também a descrição da criminalidade das classes mais baixas. Os aspectos em que a criminalidade das duas classes se diferenciam são mais incidentais do que de essência da criminalidade. E eles se diferenciam, principalmente, na implementação das leis penais a eles aplicadas. Os crimes praticados pelas classes mais pobres são geridos por policiais, promotores e juízes, com sanções penais na forma de multas, prisão ou pena de morte. Já os crimes das classes mais altas resultam ou numa ação não oficial, ou em processo por danos civis, em juízos cíveis, ou são tratados por agentes ou comissões administrativas, com sanções em forma de advertências, ordens de cessação da atividade e, ocasionalmente, a perda de uma licença. Só em casos extremos são aplicadas multas penas ou prisão. Assim, os criminosos do colarinho branco são separados administrativamente dos outros criminosos, e, na maioria das vezes, como consequência disso, não são vistos como verdadeiros criminosos nem por si mesmos, nem pelo público em geral, nem pela criminologia.
Essa diferença na implementação da lei penal se deve,
principalmente, à diferença de posição social dos dois tipos de criminosos. Os das classes mais altas são considerados, pelos juízes, como “homens de negócios, de experiências, de refinamento e cultura, de excelente reputação e pertencentes ao mundo social e empresarial”, pois eles estariam orientados basicamente a legítimas e respeitáveis carreiras. Devido a esse status social, eles têm grande influência no que será legalmente estatuído e no modo como o direito penal é implementado e administrado quando lhes afeta (=lobby). Exemplo: quando foi apresentado um projeto de lei que imporia limites a afirmações falsas/fraudulentas feitas através do rádio ou da imprensa, os editores e anunciantes organizaram um lobby bem sucedido contra a emenda, sob slogans de ‘liberdade de imprensa’ e ‘perigos da burocracia’. Contudo, essa emenda não criou um crime, pois as leis já proibiam afirmações fraudulentas através do rádio ou da imprensa. A emenda apenas implementaria a lei de modo que ela se tornasse coercitiva. Assim, a Administração não consegue implementar as leis por força das pressões exercidas por aqueles que as violam, que se usam de parlamentares, homens de negócios e outros. Nas palavras de Daniel Drew, “a lei (penal) é como uma teia de aranha: é feita para mosquitos e pequenos insetos, por assim dizer, mas deixa os grandes marimbondos rompê-la”.