1.A estrutura da Comédia A comédia é uma forma de texto dramático em que a organização habitual do mundo é subvertida. Na comédia, os fracos vencem os fortes, as mulheres triunfam sobre os homens, os criados dominam os patrões. Neste tipo de peças, o cómico é fornecido por sucessões de enganos: uma das personagens (geralmente um pai ou um patrão, frequentemente as duas coisas) é sistematicamente enganada por todos aqueles que, na ordem normal da sociedade, são mais fracos do que ele. O que provoca o riso do público é o facto de este saber do engano, enquanto que o enganado o ignora. As comédias têm sempre como tema principal o amor e como objectivo final o casamento. Todas as comédias têm um final feliz, em que os enganos se desfazem, os erros são perdoados e os apaixonados podem casar. 2.As personagens tipo A personagem tipo foi a mais importante contribuição da Roma clássica para o teatro. Consiste em concentrar numa só personagem os defeitos e ridículos de todo um grupo que pode ser social, profissional, religioso ou de qualquer outro tipo. Isto cria uma personagem onde facilmente se reconhece o grupo sem que ninguém em particular se sinta atingido. Cria também uma personagem que facilmente provoca o riso, pelo exagero das suas atitudes. Na comédia clássica e na «commedia dell’arte», as personagens tipo tinham nomes fixos, que passavam de peça para peça. Na comédia romântica – como é o caso do texto em estudo – os nomes podem variar e variam com frequência, mas o carácter exagerado e risível da personagem mantém-se, embora adaptado à época. 3.A crítica social e literária Apesar do seu carácter ligeiro, e da sua função mais importante, que é fazer rir e deixar o público bem- disposto, a comédia também faz, com frequência, crítica de costumes, de comportamentos e até crítica literária. Esta última, sobretudo, é feita através da adopção da linguagem que se quer criticar, exagerando-a até ao ridículo. A crítica social, económica e /ou política é feita através da ridicularização, pelo exagero, de comportamentos e atitudes. 4. As características da comédia em Falar Verdade a Mentir Podemos dizer que todas as características já referidas como partes integrantes da comédia estão presentes nesta pequena peça. Vejamos como e onde: A peça central desta pequena obra é o engano – Duarte engana Brás Ferreira; José Félix engana Duarte e Brás Ferreira e o General consegue enganá- los a todos. O que mais faz rir o público é o conhecimento destes enganos todos, que os enganados ignoram. O tema básico é o amor e toda a narrativa se organiza em torno das dificuldades enfrentadas pelos dois casais de apaixonados e da maneira de as superar. É uma suprema ironia que a mentira, que é o que separa Duarte de Amália, seja também aquilo que é usado para os salvar. Só as mentiras de José Félix conseguem impedir que Duarte seja apanhado como mentiroso. Ao longo da peça, as mentiras vão-se acumulando, misturando e até contrariando umas às outras, o que cria, nas cenas finais, uma confusão tal que, durante alguns momentos, ninguém se entende e parece que tudo pode acontecer. No entanto, deste caos, emerge a ordem e uma simples revelação repõe a verdade dos factos. Quando o pano cai, todos os enganos foram desfeitos, todas as confusões foram esclarecidas e há dois casamentos no horizonte, bem como uma nova amizade estabelecida. Cumprem- -se, portanto, as regras da comédia. As personagens de «Falar Verdade a Mentir» estão muito próximas do modelo da personagem tipo. Brás Ferreira é o pai façanhudo e prepotente, embora tenha um verniz de negociante simpático. Amália é uma ingénua quase perfeita – se bem que demonstre mais engenho do que ingenuidade. Duarte aproxima- -se bastante do modelo do apaixonado meio tonto, e a sua faceta específica de mentiroso trapalhão para isso contribui muito. Joaquina e José Félix são perfeitos como casal de criados espertalhões que estão em todo o lado ao mesmo tempo, que resolvem tudo a contento de todos e sobretudo a seu próprio contento. Os «bonecos» criados por José Félix para enganar Brás Ferreira são muito típicos da comédia e constituem verdadeiros tipos. O General faz o papel de comparsa simpático, que não é estranho à comédia. A crítica social está em toda a peça. A mitomania de Duarte é apresentada como um hábito da moda, e o próprio confessa que mente porque a realidade é demasiado prosaica para enfeitar conversas. As relações entre criados e patrões também são objecto de crítica quando José Félix explica a Joaquina que o seu patrão está habituado a «fazer esperar os outros e a esperar ele pelos seus criados». Quanto à crítica literária, ela é evidente quando, logo de início, José Félix declama o seu amor por Joaquina em tiradas que ele diz inspiradas na linguagem dos «dramas modernos da Rua dos Condes» e que levam Joaquina a julgar que ele enlouqueceu. O que aqui temos é a voz de Garrett criticando os seus colegas dramaturgos. A linguagem usada tem o cunho da modernidade – modernidade da época, bem entendido – com o recurso a estrangeirismos, como «ambigu» ou «mal entendu», que no século XIX eram a marca do indivíduo culto e viajado, como actualmente o uso de palavras de origem inglesa, relacionadas sobretudo com o campo das tecnologias da informação ou da economia, é a marca do indivíduo moderno e conhecedor do mundo. A didascália é reduzida ao essencial – entradas e saídas, tons de voz, apartes e pouco mais. Isto é típico do teatro do século XIX, que deixa ao encenador uma maior liberdade na direcção dos actores do que era hábito até então. É essencial o pormenor das portas ao fundo do palco, que permitem a José Félix movimentar- -se sem passar pela cena. Encontramos uma influência do teatro clássico na cena em que Joaquina, sozinha, faz o ponto da situação e descreve o que se passa na outra sala e que os espectadores não estão a ver. 5.A vida social do período romântico em «Falar Verdade a Mentir» Para um leitor do século XXI, esta peça contém pormenores de difícil compreensão, se não se conhecer um mínimo sobre a vida e os hábitos sociais da época em que ela foi escrita. Nos primeiros anos do século XIX as classes sociais tinham uma divisão mais clara e limites mais estanques do que acontece actualmente. Criados e patrões eram facilmente reconhecíveis, pois vestiam- se, comportavam-se e falavam de forma diferente. A diferença do modo de vida entre as duas grandes cidades – Lisboa e Porto – e o resto do país era muito grande: um «provinciano» reconhecia-se facilmente, pelo vestuário, pela forma de falar e até pela maneira como andava na rua. As diferentes classes sociais habitavam os mesmos bairros, e a estratificação social era feita por andares. Na ausência do elevador, que ainda não tinha sido inventado, o andar mais caro era o de mais fácil acesso, o primeiro, e era esse o reservado às classes mais altas. Os pobres habitavam os andares mais altos, os sótãos, no 5º ou 6º andar dos prédios. As famílias ricas tinham frequentemente casas de campo, nos arredores de Lisboa, em Benfica ou Almada, onde passavam as datas festivas, e o Verão. Os provincianos ricos tinham casa em Lisboa ou passavam longas temporadas na capital, alojados em hotéis, onde dispunham de pequenos apartamentos. Como as viagens mais longas se faziam de barco, a zona dos hotéis em Lisboa era a Baixa, próxima do porto, pois os navios atracavam no Cais do Sodré. Só as famílias muito pobres não tinham, pelo menos, uma criada. O serviço doméstico era muito barato e o conforto da vida nas cidades exigia muito trabalho. As casas não tinham água canalizada, que era transportada em barris pelos aguadeiros. A água quente para os banhos era aquecida no fogão a lenha e a banheira era cheia jarro a jarro. Não havia frigoríficos, portanto as compras tinham que se fazer todos os dias. Nas lojas havia rapazinhos cujo trabalho era levar as compras a casa dos fregueses. A roupa era lavada à mão, desde as meias aos lençóis. Geralmente era mandada lavar fora. Usava- se muita roupa branca – nome dado à roupa interior – que além de lavada, tinha que ser engomada. As casas eram aquecidas por várias lareiras e iluminadas com velas – era preciso acender as velas ao início da noite e apagá-las. Também as lareiras tinham que ser acesas todas as manhãs de Inverno, alimentadas várias vezes por dia e apagadas e limpas à noite. Uma casa rica podia ter sete ou oito criadas, e até mais. As relações entre pais e filhos eram muito diferentes das que conhecemos. Nas famílias ricas, as crianças eram com frequência entregues aos cuidados de uma ama, e quando mais crescidas, de uma preceptora. As crianças ricas não frequentavam a escola – tinham professores em casa. Nas famílias burguesas, a mãe encarregava-se da educação das filhas e os filhos iam à escola até à altura em que começavam a trabalhar – por volta dos doze ou treze anos. As mulheres raramente trabalhavam fora de casa. Só as muito pobres o faziam, trabalhando como lavadeiras de roupa, como operárias, vendedeiras ou costureiras, ou empregando-se no serviço doméstico – estas últimas eram privilegiadas, pois trabalhavam dentro de casa e recebiam dos patrões alojamento, alimentação e roupa, pelo que podiam economizar os seus ordenados e, depois de trabalhar alguns anos, deixar o emprego e casar ou montar um pequeno negócio. Nas famílias muito pobres, as crianças começavam a trabalhar logo que fosse possível, por vezes antes dos dez anos. O vestuário era bastante diferente do actual. As crianças, a partir do momento em que começavam a andar, usavam um bibe – uma espécie de vestido curto e largo – fossem rapazes ou raparigas. Por volta dos sete ou oito anos, os rapazes começavam a vestir calções – a que se chamava calças curtas – mas continuavam a usar o bibe. Se fossem para um colégio, passavam a usar uniforme. Na adolescência, os jovens começavam a vestir-se como os adultos, embora de forma mais ligeira, e usando cores claras. Todas as peças de roupa eram cosidas à mão – a máquina de costura só foi inventada no final do século XIX e era demasiado cara para a maioria das pessoas. A roupa era feita por medida, pois não havia pronto-a-vestir. Nas famílias menos ricas, a roupa passava de uns irmãos para outros e até dos pais para os filhos. Só as pessoas ricas usavam sapatos. Os pobres andavam descalços, porque os sapatos eram muito caros. Também a alimentação era diferente da nossa. E claro que a alimentação dos ricos era diferente da dos pobres. Nas casas pobres, comiam-se apenas duas ou três refeições por dia. De manhã, comia-se um caldo e pão – a essa refeição chamava-se «almoço». Os trabalhadores levavam qualquer coisa para comer a meio do dia de trabalho (geralmente pão e algum conduto, se o tivessem) – chamava-se a isso a «bucha». A refeição que se comia em casa por volta do meio-dia chamava-se «jantar». Era sempre uma refeição ligeira. A maior refeição tomava-se ao anoitecer, por volta das seis ou sete da tarde e chamava-se «ceia». Incluía sempre sopa e, se pudesse ser, um segundo prato, geralmente arroz ou legumes. A carne era cara e os pobres só a comiam em dias de festa. Nas casas ricas, tomava-se um «primeiro almoço» logo de manhã, composto por chocolate, ou chá ou café, torradas, sanduíches e bolos. As crianças bebiam leite ou comiam papas de aveia. O «almoço» era tomado ao meio dia, e era uma refeição leve, composta por pratos frios. A meio da tarde tomava- se o chá, acompanhado por bolos, biscoitos, sanduíches ou torradas. Se havia visitas, estas eram convidadas para o chá. À noite jantava-se, e esta refeição era tomada em família. Compunha-se de sopa, um ou dois pratos e sobremesa. Se havia festa ou baile, servia-se uma ceia fria por volta da meia- noite.